Discurso de encerramento da Semana da Cultura Chinesa

[dropcap]D[/dropcap]os portos frígidos da Europa — atravessando mar e medo, até a Índia ser memória de um odor — desceram da caravela dizendo à China ali estarem para comerciar e que sua mercadoria era húmida de suor e sal, a implorar praia, para o sol venerarem como nas Áfricas haviam cometido.

O mundo acabava aqui. Os chins não acolheram; também não hostilizaram. Deixaram-nos andar ao abandono nessa terra, por vezes de gigantes, e ser fantasmas de uma récita improvável.

À margem da vida e dos dias, ainda hoje esses espíritos da Lusitânia aqui desfilam e se reproduzem, entre guinchos e gargalhadas, abismos de baías e o redondel das sucessivas pestes. A verdade nunca os afligiu nem o badalar das horas os apoquentou.

Das igrejas brotavam anjos e o farto Buda sorria, entre dois folguedos infantis. As histórias escapavam de bibliotecas para encher as praças moles.

Não viera o crucificado. Mas sua mãe, pairando sobre a rocha feita templo, abençoava a cidade e garantia a paz. As árvores floriam todas as primaveras. As aves arribavam e algumas quedavam-se, presas firmes do lodo. E veio o jogo para que os homens criassem mundos como só as crianças criam mundos: homens finalmente infantes.

Desirmanada na praia, a mercadoria ainda atende o sol, reza por todos, assiste ao desfolhar dos séculos. Nada por aqui se passou e, como escreveu Auden, “nada de sério aqui poderá acontecer”.

Ora,

Algo de sério aqui tentámos fazer durante uma semana.
Algo que não fique na sombra dos nossos gestos e nos restos dos nossos dias.
Algo que permaneça convosco, nesta cidade, mas que se espalhe ao mundo nesta língua — por vezes rude e surda, doutras maviosa e branda — que do Tejo ao Rio das Pérolas, por naus humanas viajou e se instalou.
Foi tempo de nela visitarmos a cultura chinesa: o pensamento, a estratégia, a pintura, a etnografia e hoje a sua cúpula: a poesia.

E como é vasto este mar. E tanto fica ainda por navegar, ilhas por desembarcar, continentes por descobrir e gentes, bichos, histórias, plantas, mistérios, palácios e cabanas por encontrar. Tanto, tanto e mais além.

Conversámos com Confúcio, espantámo-nos com Frederico Rato e Sun Bin. Pela mão de mestre Leong, levemente pintámos a nossa primeira flor, desenhámos os nossos primeiros caracteres. Descemos ao inferno com Shee Va e dele trouxemos o espanto de dois mundos. E hoje, com Yao Feng, cavalgámos as estrofes de Li He, o donzel das unhas longas, mestre da palavra e do espaço.

Por uma vez não foi solitária a viagem. Contou com todos os que aqui se deslocaram e também com outros que na distância nos seguiram, dando bom uso à tecnologia que por vezes nos abafa.

Não fomos perfeitos e muito ficou por dizer, como muito fica por fazer. Quedam-se os livros para ler, para ler e para ler. Uma, duas, muitas vezes. Como Macau sabe muito bem, o importante é o que fica, não o que passa sem deixar memória. E as nossas memórias destes dias permanecerão para sempre nas páginas destes livros, de geração em geração, sempre prontas a novas leituras, sempre disponíveis a nóveis interpretações.

Uma coisa tende como certa: é que prometemos voltar. Nesta língua, a este mar. E nele pescar outros peixes, outras sereias e monstros, outras ilhas visitar.

Não seremos breves. A mercadoria está ainda por secar. Temos de história comum 500 anos e outros 500 por cumprir.

Assim entendo o que é aqui cumprir Portugal.

Muito obrigado.

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