Manta de retalhos

[dropcap]A[/dropcap] crónica de hoje vai seguir moldes semelhantes à escolha sortida de iguarias num restaurante chinês. Variedade e espírito de partilha.

Começo por um quase factoide, que muita gente já se habituou a encarar como normal: a amnésia que sentem os responsáveis pelos mais altos cargos da RAEM assim que passam a fronteira. Em declarações ao China Daily, o presidente do Tribunal de Última Instância (TUI) de Macau, Sam Hou Fai, referiu o papel dos tribunais em Macau para a estabilidade política regional. O juiz, considerado por muitos como um exemplo de independência, assassina a separação de poderes a cada frase ao China Daily com fervor partidário. Outra machadada na justiça local foi desferida quando o magistrado disse que os tribunais de Macau dão particular importância à gestão de casos que põem em perigo a segurança nacional. O homem que preside ao mais elevado tribunal na hierarquia judicial local, desde a fundação da RAEM, atravessa a fronteira e esquece a defesa da legalidade para ser colocar ao serviço da política.

Num Estado de Direito, estas declarações dariam lugar reforma antecipada e a uma severa auto-análise devido à gravidade do que foi defendido. Porém, por cá, é a rã que aumenta o lume que está por baixo da panela onde alegremente ferve. Outro aspecto extraordinário nesta história é a projecção, a ideia de que se alguém gritar muito alto que não cometeu nenhum crime, ninguém vai reparar no grande saco com a impressão cartoonesca de um cifrão que carrega às costas.

Por cá, o chavão “de acordo com a lei” é dito quase tão frequentemente como a interjecção em cantonês “ai yah”. Exemplo disso é a tomada de posse de Wang Sai Man como deputado, marcada para hoje à tarde, depois de clamorosamente violar a lei eleitoral numa não-eleição, como se nada fosse. Não dá jeito ser ilegal, portanto, não é.

O maior problema de se viver num Estado de Direito é que, por vezes, esta coisa de respeitar leis intromete-se na forma de fazer as coisas à lambão.

Um comum cidadão sabe bem isso. Se a sua matrícula cair do automóvel, o residente médio sabe que não pode simplesmente escrevinhar numa placa qualquer a antiga inscrição da matrícula e afixá-la no lugar vago pela matrícula. A vida em sociedade exige formas, procedimentos, condições que se precisa cumprir para haver segurança nas relações diárias no contexto de sociedade evoluída, onde as leis são a cola para as brechas abertas pela falta de ética social. Pessoalmente, sou um defensor da total anarquia mental, sou adepto do pensamento dinamite, da loucura e da insubmissão. Mas compreendo que depois na vida vivida as regras são necessárias para não regressarmos à selvajaria.

Já uma pessoa que ocupe uma posição mais elevada na sociedade tem uma visão diferente da lei e das obrigações dos comuns mortais. As regras são mais flexíveis, desde que o poder ainda precise dessa pessoa ou não precise sacrificar alguém como exemplo.

Mudando de canal, a semana passada foi marcada pela histórica inauguração do Metro Ligeiro, um meio de transporte cuja utilidade passa ao lado do quotidiano de quem por cá vive. Apesar da visível boa-vontade e dedicação do secretário da tutela, e do facto de nenhuma rede de transportes nascer completa, o problema que parece mais preocupante prende-se a capacidade de lotação das carruagens.

Questão que levou a algum embaraço logo no dia da inauguração, quando o transporte parou depois de soar um alarme para o excesso de peso na composição.

Ora bem, em todo o lado no mundo, o metro é uma espécie de lata onde se tenta enfiar todas as sardinhas no maior e concentrado cardume possível. Esta é a minha experiência. Espaço pessoal violado, sujeição a odores corporais indesejados, pisadelas e a minha psique como terreno fértil para a semente do niilismo que me grita todos os dias “somos demasiados”.

Parece que o Metro Ligeiro será mesmo ligeiro, em oposição a pesado. Mas como se vai controlar o peso da carga de forma a contornar questões de segurança? Como se impede essa força da natureza que é uma multidão de chineses prestes a entrar para um sítio onde existem cadeiras e toda uma paleta de qualidade de lugares para parquear o corpo durante uma viagem?

Questões ligeiras que exigem respostas de peso.

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