A serra

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s meus avós maternos moravam numa localidade com uma dúzia de casas, no algarve profundo, um sítio chamado Vale de Ebros (que sempre achei que se escrevia Vale de Zebros – porque era assim que o pronunciavam – até erguerem uma tabuleta à entrada). Não tinham electricidade, não tinham água canalizada, não tinham carro. De cada vez que lá ia, era como se regressasse a um passado de que só ouvira falar em livros de história.

O meu avô, um homem muito magro, tremelico de mãos, tomou um comprimido pela primeira vez aos 73 anos. A minha avó, também ela magríssima, movia-se com uma velocidade surpreendente para a idade. Nunca conhecera ninguém tão duro e frio. A minha família mais próxima é toda ela muito emotiva, muito italiana. A minha avó, pelo contrário, era um rochedo. Quando a minha mãe, depois de uma série de mortes na família, lhe perguntou: “mas como é que mãe aguenta?”, ela respondeu: “filha, alguém tem de tomar conta desta gente”. Alguém tinha de tomar conta daquela gente.

O algarve profundo é a antítese do litoral. Em paisagem e em costumes. O litoral é dos pescadores, a serra é dos agricultores e dos criadores cabras, ovelhas e galinhas. São, no fundo, dois algarves. O algarve do peixe e da pesca, das procissões da Senhora da Orada, do turismo em massa espelhando vidros e euros noite fora; e o algarve das viúvas perenemente de negro, das mulheres transportando pesados cântaros de água sobre a cabeça, o algarve das vendas – as tascas à beira da estrada onde se compra desde minis geladas a gel de duche.

A minha avó ia comigo ao quarto e fazia-me a cama, amontando colchas sobre colchas para fazer face ao frio que até em Agosto se instalava assim que o sol se punha. Antes de apagar a lamparina, dizia “drome, filho”. E eu corrigia, invariavelmente: “dorme, avó, dorme”. “Sim, filho, a avó também vai dromir”.

O meu avô perdeu a visão de um olho por causa das cataratas. Recusava ser operado. Quando lhe surgiram cataratas no olho que restava, decidiu-se pela operação. Passou o resto da vida a lamentar não ter feito a primeira. Quando o via regressar do pastoreio, gritava-lhe, à distância: “venda-me um borrego desses para o Natal”. Ele, que via muito mal, não me reconhecia. “Não estão para venda”, atirava. Quando percebia que era eu e que os tinha ido visitar, chorava. O meu avô chorava por tudo e por nada. A minha avó não chorava nunca.

O campo de que me recordo era um lugar muito duro. As pessoas levantavam-se quando o sol raiava, todos os dias. Tratavam dos animais – bestas, como chamavam às mulas e cavalos; porcos, que engordavam para a matança e ovelhas e cabras; uma vaca ou outra, para leite; galinhas que acorriam à primeira pessoa que saia de casa de manhã, à espera da ração. Muitos homens e mulheres eram alcoólicos. Durante o dia, bebiam o péssimo vinho que eles próprios faziam. À noite, iam para a venda jogar cartas e beber minis. Um dos meus primos bebia uma grade e meia de minis todas as noites. Tinha os olhos mais azuis que já vi. Em bebé, diziam nunca ter visto uma criança tão linda. Teve poliomielite e ficou entrevado do lado direito do corpo. Pastoreava umas cabras que conduzia graças a uma funda. Tinha uma pontaria exímia. Morreu com trinta e seis anos, de cirrose hepática.

As pessoas enlouqueciam facilmente. Acumulavam raiva de anos e anos de mal-entendidos e de zangas e, num dia pior, com uma enxada ou uma caçadeira, matavam o vizinho de sempre por um palmo de terra. Depois, entregavam-se. “Leve-me, seu guarda, dei cabo da vida desta família, leve-me.” O mal irrompia e submergia com a mesma facilidade. As pessoas desconfiavam umas das outras. Desconfiavam de quem chegava de fora com carros grandes com vidros eléctricos. Não acreditavam que o homem tivesse ido à lua. “Fazer o quê, filho?”, replicava o meu avô às minhas aspirações a ser astronauta.

Passei muito tempo zangado com aquele sítio para onde os meus pais insistiam em levar-me no fim-de-semana, impedindo-me assim de andar de bicicleta ou de jogar à bola com amigos. Não queria ir, fazia birra, era sempre um drama. Percebo agora, muito mais tarde, que levo comigo esta serra para onde quer que vá. A sua aspereza, a sua aridez, a sua pouca paciência para com os fracos. Mas também a sua surpreendente generosidade, o cheiro a esteva e os nomes de algumas árvores. Nenhum dos meus avós está vivo. É a eles que dedico este pequeno texto.

14 Mai 2018

O meu jardim             

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão vou falar da entrada de Portugal no Festival da Eurovisão este ano, “O Jardim”. Se bem que podia muito bem, e já agora vamos apoiar a nossa canção, cum camano, nem que seja abstendo-se de dizer mal. Adiante. Do que queria falar era do “jardim” onde moro, o meu edifício. Ao contrário do que acontece com a generalidade dos prédios de habitação em Portugal, que têm um número de polícia numa qualquer rua, avenida, praceta ou pátio, em Macau estes têm além do número um nome, e é pelo nome que são mais conhecidos.

O meu chama-se “Jardim Real”, e com toda a certeza que muitos dos leitores vivem também num “jardim” qualquer, apesar de às vezes não se ver no raio do prédio uma única flor. Ás vezes há uma planta no rés-do-chão, junto ao condomínio. Isto explica-se facilmente pelo facto da designação para “edifício” e “jardim” serem a mesma: “fa yuen” (花園) . Isto tem ainda outra história, mas fica para outra altura.

O meu “jardim” (portanto…) tem vinte andares, e vivo num dos mais altos. Não vou aqui dizer qual, porque parece mal, e ainda pensam que estou a convidar para uma visita domiciliária, mas todos os meus vizinhos sabem. Ser o único português a viver num destes “jardins” é o mesmo que ser um elefante cor-de-rosa. Toda a gente sabe onde moro, a composição de todo o meu agregado familiar, e chego mesmo a ter quem no elevador carregue no botão do meu andar, sem que eu lhe peça nada. A mais engraçada é a senhora do condomínio, que por vezes quando chego diz-me “a tua mulher já está em casa”.

Um dia destes o meu filho chegou perto da hora da almoço, e a senhora informou-o prontamente que “o teu pai saiu há cinco minutos”. E garanto que não pago extra de condomínio por este serviço de secretariado! Adorável é também quando ela nos vê a sair carregados de malas e pergunta “ah, vão viajar?”. Que perspicácia! Repito: é uma querida. Do que é me que estou a queixar, se tenho tratamento VIP? Deveria eu pavonear-me deste estatuto de ave rara, ou de último moicano? E será que sinto…tchan tchan tchan…”racismo”?!?! Não, nada disso, pode-se dizer que é um “choque cultural”, pronto. E é mesmo, apesar de também se poder dissertar muito sobre este assunto. Fica igualmente para outra altura.

Escusado será dizer é que não me resta senão ser discreto. Sim, tenho a certeza que se acontecer alguma coisa cá em casa, toda a gente fica a saber que foi na jaula do elefante rosa. Foi por esse motivo também que não exagerei nos festejos do título do FC Porto no último fim-de-semana, que marcou o regresso à normalidade e repôs alguma justiça no atribulado futebol português. Muitos tentam, mas só um é penta. Pois, mas então a conclusão. Ah sim, é uma maravilha viver aqui neste jardim sem flores, junto da gruta de Ali-Babá.

10 Mai 2018

Oszkar Fulop: “Apaixonei-me por esta terra”

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]szkar sempre teve um fascínio com a Ásia, um continente que o aliciava e o chamava de forma surda, numa voz que chegou ao centro da Europa. Na altura, essa voz chegou através de uma proposta de emprego que não soube como recusar. Assim começava a expedição de um húngaro, oriundo da Transilvânia, a terra do Drácula. Antes da Primeira Grande Guerra, o território pertencia à Hungria, mas com a queda do Império Austro-Húngaro, seria anexado pela Roménia. Oszkar faz parte de uma família húngara numa região com apenas dois mil húngaros.

Oriundo de uma nação fracturada por múltiplos impérios, entalada entre blocos políticos, Oszkar desde criança que sentiu o chamamento dos países asiáticos. Com a queda do muro, e a chegada do capitalismo, as coisas melhoraram mas não tanto. “Tivemos um período difícil, e parecia impossível termos um trabalho e ganhar dinheiro que nos permitisse ser turistas”, recorda o segurança. Com a vida enleada num marasmo, em 2013 foi a uma agência de emprego e, por acidente, acabou por conseguir um trabalho na longínqua Macau. Seria um guarda imperial no Hotel Grand Emperor. “Apesar das condições salariais não serem espectaculares, esta era a melhor oportunidade que tinha para conseguir estar na Ásia, e Macau pareceu-me, desde logo, um bom sítio para começar”, lembra. Dessa forma o húngaro estaria a escassas duas ou três horas de voo de países que queria muito conhecer, tais como a Tailândia, o Japão, e a China interior.

“Cheguei ao aeroporto de Hong Kong e sabia zero sobre o que me esperaria, não sabia que Macau tinha sido uma colónia portuguesa”, confessa o segurança. Veio sozinho, e só tinha os representantes da empresa que o contratara à distância à sua espera no ferry. Depois de conhecer o sítio onde iria morar, de ter formação no trabalho que iria desempenhar, restava-lhe conhecer a cidade onde passou a morar. No entanto, o primeiro impacto foi difícil de encaixar. “Nos primeiros seis meses tinha a certeza de que ia apanhar o primeiro avião para deixar Macau para sempre, mas depois apaixonei-me por esta terra”, explica.

Primeiro estranha-se

Macau foi-se entranhado em Oszkar, lentamente. Levou tempo a perceber aquilo que não gostava. O principal problema a barreira da linguagem, a comunicação. Não tinha nada a ver com o local, nem com a cultura. Hoje em dia, o húngaro é feliz no território, vive num bairro tradicional, São Lázaro. Um dos episódios marcantes que mudou tudo aconteceu por acaso, foi uma feliz coincidência. Numa tasca tradicionalmente chinesa, conheceu um grupo de locais. “Comecei a passar mais tempo com eles, e aí conheci mais locais. Percebi que estava a fazer uma aproximação estúpida e que eu é que estava errado”, confessa Oszkar.

O húngaro percebeu que se demonstrasse que estava a aprender a língua, a fazer um esforço, os chineses gostavam de si, incondicionalmente. Foi aí que o amor lhe bateu à porta. “Conheci uma rapariga portuguesa que já vivia aqui desde 1994, com uma paragem pelo meio, e aí fui descobrindo a comunidade portuguesa, um grupo mais alternativo”, recorda. Essa foi mais uma porta aberta para mergulhar na vida da cidade, assim como para conhecer Portugal.

“No Verão de 2014 visitei Portugal, conheci o Algarve e o Alentejo, adorei os cenários naturais, as barragens e a comida”, explica.

Hoje em dia, Oszkar considera-se um cidadão do mundo. Apesar das saudades imensas da família, o húngaro olha para a Europa com imensa preocupação. “Existe muito racismo a vir à superfície na maior parte dos países europeus”, comenta com alguma tristeza. Tal facto, levou o segurança a sentir o velho continente como um território onde se espalha a ignorância, o medo, o que faz com que não se sinta seguro por lá. Porém, em Macau sente-se em paz.

20 Jan 2017

“Os Resistentes – Retratos de Macau” #4

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
17 Dez 2016

Marieta da Costa, arquitecta | A fazedora de mundos

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á conhecia Macau antes de vir para cá morar: o território era destino de férias por causa de ligações familiares. Há cinco anos, fez as malas e decidiu deixar Londres, cidade onde nasceu o primeiro filho, e mudou-se para a terra do marido. “O espírito de comunidade em Inglaterra não existe da mesma maneira que em Macau e foi também isso que nos fez voltar, além de que o meu marido tem cá família”, diz Marieta da Costa, arquitecta.

Um salto no tempo para o início do percurso que, feitas as contas, a fez chegar aqui. Marieta da Costa chegou ao final do 9o ano e, à semelhança de quase todos os miúdos com 14 ou 15 anos, não fazia ideia do que queria ser quando fosse grande. A mãe ainda lhe recordou que gostava de desenhar, tinha jeito e era criativa, mas a arquitecta não imaginava, na altura, que fosse possível colocar a criatividade ao serviço de uma profissão.

“A minha mãe decidiu pôr-me numa universidade a fazer exames psicotécnicos. Nessa altura, ainda não se ouvia falar muito disso. Estive um dia inteiro a fazer exames muito rigorosos e, quando vieram os resultados, dava tudo para Arquitectura, Design de Interiores, Design de Equipamentos, professora de Educação Visual”, conta. A mãe decidiu procurar “a melhor escola de Artes em Portugal, ao nível do secundário”, e foi assim que acabou por ir parar à António Arroio, onde estudou Design de Equipamentos, “com uma componente técnica muito grande”.

Curso terminado, quis ser arquitecta. “Não me adaptei, porque vinha de um ensino muito artístico e a universidade de arquitectura onde estive era muito ‘vamos copiar o Siza Vieira’, ‘porque é que ele é muito bom?’, ‘porque é o ‘Souto de Moura é fantástico?’. Queria fazer coisas à minha maneira”, explica.

Primeiro ano feito, esteve de férias em Inglaterra para melhorar o inglês. Ao final de um mês, voltou para Portugal, fez as malas e regressou a Londres. “Foi um grande choque para os meus pais, porque o ano lectivo em Inglaterra já tinha começado e normalmente prepara-se a entrada no ano anterior.” Os pais tinham medo que perdesse o interesse pelos estudos. “Disse-lhes que ia trabalhar e ver qual era a melhor universidade para fazer arquitectura, e assim fiz.”

Marieta da Costa começou a trabalhar, enquanto preparava as candidaturas às universidades de Arquitectura. Porque também se interessava por Design de Interiores, concorreu a um curso nesta área. Entrou em todas as instituições de ensino superior, mas a escolha foi para a Chelsea College of Arts. A licenciatura em Arquitectura exigia sete anos, um tempo que, à época, era em demasia. O Design de Interiores tinha vencido.

“No último ano conheci o meu marido, estávamos a fazer o mesmo curso, mas faltava-nos qualquer coisa. Eu sabia que me faltava arquitectura. Então acabei o curso e fui para a London Metropolitan University.” Foram anos “muito bons”, de “muito trabalho”. “Entretanto, engravidei. Tive de fazer a minha defesa de projecto enquanto o Lio ficava nos braços do pai à espera que a mãe acabasse. Foi um bocado complicado, mas correu tudo muito bem.”

A mudança para Macau foi fácil, mas ao nível profissional a integração foi “um pouco complicada”, sobretudo porque decidiu por um caminho alternativo. “Não queria ir trabalhar para casinos, nem no sector privado. Decidi abrir a minha empresa. Não andei à procura de trabalho. Ia fazendo muito design de interiores, fazia muito restauro. Há dois anos comecei com um projecto novo”, explica.

O “projecto novo” chama-se arquitectarte: aulas de arquitectura para crianças com idades compreendidas entre os três e os cinco anos. “Não é ensinar Arquitectura no verdadeiro sentido da palavra. É pegar numa forma, num objecto, e dar uma série de ideias para que percebam o que é habitar o sítio onde estamos, olhar em redor e ver as coisas de forma diferente”, descodifica. “É pegar num quadrado e explicar que dá para fazer uma coisa 3 D, um objecto. Trabalho muito a tridimensionalidade.”

Quanto a Macau, é uma cidade que a faz sentir-se em casa. Cinco anos depois de se despedir de Londres, as comparações continuam a ser inevitáveis. “Toda a gente diz que Macau é difícil e eu vejo muitas lacunas mas, comparando com outros sítios, existe imenso apoio”, aponta. Além do factor familiar, há “os amigos que se constroem e que se adoptam como parte da família”. Marieta da Costa encontra “um espírito de comunidade” que não existia no sítio onde viveu década e meia.

25 Nov 2016

“Os Resistentes – Retratos de Macau” #3

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
20 Nov 2016

“Os Resistentes – Retratos de Macau” #2

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
24 Out 2016

“Os Resistentes – Retratos de Macau” #1

Sapataria Wong Lam Kei • 1946

“Os Resistentes – Retratos de Macau” de António Caetano Faria • Locanda Films • 2014


Realizador e Editor: António Caetano Faria
Produtores: Tracy Choy e Eliz L. Ilum
Câmara e Cor: Gonçalo Ferreira
Som: Bruno Oliveira
Assistente de Câmara: Nuno Cortez-Pinto
Editor Assistente: Hélder Alhada Ricardo
Sonorização e Mistura de Som: Ellison Keong
Música: Orquestra Chinesa de Macau – “Capricho Macau” de Li Binyang
17 Out 2016

Laurentina da Silva, produtora de eventos: “Já não se sonha em Macau”

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]aurentina da Silva é “orgulhosamente” macaense. Nascida e criada em Macau, lamenta nunca ter saído da terra para conhecer as suas raízes lusas. “Sempre vivi aqui, nunca daqui saí e tenho pena por não conhecer a terra do meu pai e as minhas origens portuguesas, pelo que a ideia que tenho daquele país é apenas das histórias que o meu pai contava”, explica ao HM.

Enquanto filha da terra, sente-se um verdadeiro fruto da mistura de culturas. “Também tenho a cultura chinesa muito vincada por causa da minha mãe e no fundo não sou nem uma coisa nem outra e ao mesmo tempo sou as duas.”
Laurentina da Silva festeja com a mesma intensidade as duas grandes festas da família, uma de cada cultura: “Festejo sempre o Natal e o ano novo chinês e nem podia ser de outra maneira. São duas datas muito importantes para mim, precisamente porque sou filha deste cruzamento.”

O dia-a-dia da macaense é passado a lidar com arte. Trabalha na Fundação Rui Cunha e faz a ponte entre linguagens, a chinesa e a portuguesa, no que respeita à produção de exposições e eventos. “Finalmente tenho um trabalho ligado à arte”, desabafa enquanto explica que na sua formação na Escola Portuguesa de Macau fez o secundário na área artística, mas a vida não permitiu o seguir dos estudos.

A paixão pelas “coisas bonitas” sempre a acompanhou e vem desde pequena. “Gosto de criar coisas”, explica Laurentina da Silva. Numa viagem às memórias, a jovem vai a um infância em que via a mãe a costurar e com o tempo e a proximidade começou a interessar-se pelo ofício. Na adolescência pediu para que lhe ensinasse os dotes da agulha e dedal e começou a fazer roupas para si e para quem quisesse. De tal forma que quando casou foi ela que fiz os vestidos das amigas.

As línguas aproximam

Paralelamente, Laurentina Silva é uma poliglota. Nasceu bilingue a comunicar entre o Português e o Cantonês. Apesar de nunca ter tido ensino oficial de Mandarim, a infância encarregou-se de a amestrar na escrita e leitura de caracteres por obrigação materna.

“A minha mãe obrigou-me a aprender caracteres e eu tinha que passar horas a fazer cópias, porque é a única maneira de os memorizar”, relembra ao pensar nos dias, não tão felizes, de calo no dedo. “Nas férias, por exemplo, tinha, diariamente, que decorar um número de caracteres que a minha mãe definia e não podia sair de casa sem os saber.”

Se na altura foi duro, agora Laurentina da Silva “agradece”. Na oralidade, percebe-se o sotaque de Taiwan, num Mandarim mais doce. “Gostava de ver programas daquela região e fui assim que fui aprendendo a falar”, confessa.
Mas a formação linguística continua, porque “falando em diferentes idiomas, não só as oportunidades de emprego se abrem, como as relações sociais também podem ser mais e melhores”, como explica. Foi assim que o Inglês, disciplina a que não era muito boa na escola, também foi desenvolvido e, recentemente, resolveu abraçar o Coreano, porque “conhecimento não ocupa espaço”.

Macau, a terra que a viu nascer e onde vive é, actualmente, sentida com um ligeiro amargo de boca. “Já não se sonha em Macau”, afirma com tristeza ao olhar para o crescimento do território e as suas consequências. Macau deixou de ser um sítio pequeno onde as pessoas são próximas, agora é um lugar em que os jovens se desinteressam porque pensam que têm o futuro assegurado com um trabalho no Governo ou nos casinos, ilustra a macaense com alguma tristeza.

Mas nem tudo são espinhos e o crescimento galopante da terra fez com que “mais pessoas conhecessem Macau”. Outro aspecto de relevo e que acompanhou a evolução da terra foi a criação de mais empregos e uma maior acessibilidade a determinados cargos por parte dos locais. “Antigamente quem não soubesse Português não tinha acesso a determinados empregos e agora isso já não é assim, o que faz com que as pessoas de cá tenham outras oportunidades.”

Mas Laurentina continua a sonhar e os desejos que tem não se desvinculam da sua própria identidade. “Gostava que Macau protegesse o Patuá por ser um dialecto de cá e porque transmite esta coisa do que é ser macaense”, remata.

14 Out 2016

Rua de Macau II

[dropcap style=’circle’]”R[/dropcap]Rua de Macau” é um filme da autoria do nosso cineasta Sérgio Perez. Lançado em 2008, conta a história de Miri, uma chinesa de Macau sofisticada, recém-regressada do estrangeiro onde concluiu os seus estudos. (*)

Miri deixa-se deslumbrar pela nova indústria do jogo. Sente-se atraída pela escala, opulência e requinte das novas propriedades acabadas de inaugurar. Por outro lado, entusiasma-se também com a nova comunidade de expatriados anglofónicos que vai populando Macau e com a qual se identifica.

A pequena cidade adormecida onde Miri cresceu, transformou-se e deixou de ser o backwater onde nada se passava. Agora sim, é uma cidade. E internacional.

Por mero acaso – e depois de ter rejeitado um expatriado à porta de um bar – Miri decide dar uma volta a pé por Macau. É assim que descobre um pequeno e humilde restaurante português nas vísceras da malha antiga da cidade.

Interessa-se pelo estabelecimento onde fotografias antigas de Macau com jogadores de hóquei em campo na Caixa Escolar enfeitam as paredes e onde se come minchi ao som de música em patuá. Mas, sobretudo, interessa-se por Miguel, um rapaz Macaense simples, interessante e bem-parecido, filho do dono desse pitoresco estabelecimento.

Apaixonando-se por Miguel, Miri acaba também por se apaixonar pelo charme do seu antigo Macau.

Mas um dia cai em si e decide que não é nada daquilo que quer – e regressa ao seu Macau do bling-bling.

* * *

“Rua de Macau” foi rodado numa época em que a cidade se transformou num grande estaleiro, palco da primeira onda de construção dos novos empreendimentos da indústria do jogo, bem como de outras tantas infra-estruturas materializadas pelo governo visando preparar Macau para a metamorfose que advinha.

O tempo passa num instante e o filme – que contou com a colaboração do autor desta coluna – está perto de fazer 10 anos. Pelo que ora se decidiu desenvolver aqui uma sequela, uma actualização e contextualização com a nova realidade – de uma forma muito pessoal e peculiar.

* * *

Rua de Macau II

No dia seguinte Miri, confusa e sozinha em casa, contempla a ideia de ir ter com Miguel para lhe explicar a razão da reacção brusca e agressiva da noite anterior. Na verdade, tratou-se tudo de um equívoco.

Miri sabe que deixou Miguel magoado e, por isso, sente-se mal. Tem a consciência pesada e quer ir ter com ele para que possam pelo menos manter uma relação como amigos.

No entanto, hesita.

Não por medo ou por pensar que, regressando ao restaurante onde Miguel trabalha, irá emocionar-se novamente com aquele ambiente de fotografias antigas, comida portuguesa e músicas em patuá.

Tem também a certeza que nem o olhar charmoso de Miguel a fará vacilar.

O problema não está aí.

Miri hesita porque o restaurante fica numa zona altamente inacessível da cidade. É que Miri é sofisticada, mas mora nos blocos de habitação social de Seac Pai Van.

Não conduz porque a carta de condução que tirou no estrangeiro ainda não foi aceite em Macau – a última explicação que lhe deram foi que no país onde tirou a carta conduz-se do lado contrário, pelo que o processo demora um pouco mais.

Vai ter de ir de autocarro. É uma viagem longa – está habituada a comutar diariamente apenas entre Seac Pai Van e Cotai, onde trabalha – e não lhe agrada a ideia de ter de atravessar a cidade toda num autocarro que, quase sempre, está cheio de operários das obras que circulam em grupo porque vivem todos juntos em apartamentos transformados em dormitórios.

Ainda assim, persistente, vai ao seu iMac e faz uma pesquisa para saber qual o autocarro que deve apanhar para se chegar àquele fim-do-mundo. Enerva-se porque não consegue encontrar, de uma forma intuitiva, a informação que procura. E recorda-se que o website da Reolian era, nesse aspecto, o melhor de todos pois permitia visualizar todas as linhas de autocarro em interacção com imagens de satélite do Google Maps.

Agora, encontra apenas tabelas e mais tabelas com números dos autocarros e respectivas paragens identificadas ou pelo nome da rua ou, pior, pelo nome do prédio adjacente – e mais nada.

“Like, I’m supposed to know all the names of the streets or the names of the buildings? WTF?”.

Frustrada e irritada, Miri dá um muro na parede. Por sorte, esta manteve-se intacta – podia ter sido pior.

É no meio disto tudo que Miri recebe uma notificação no seu iPhone 6. Trata-se de um aviso de chuvas intensas. Por essa razão, as escolas vão-se manter fechadas. “Good”, pensa Miri. Finalmente algo positivo, pois não havendo escola haverá menos tráfego – a eventual viagem até ao restaurante será menos morosa.

No entanto, à cautela, decide ficar em casa e não arriscar pois desconfia que a notificação de chuvas intensas se trate apenas de um simulacro. Nunca se sabe e não vale a pena verificar pela televisão pois também eles participam nos simulacros.

* * *

Miguel está sentado sozinho numa mesa do restaurante onde trabalha.

É-lhe servido pelo pai um minchi com arroz branco, mas sem ovo estrelado – Miguel ficou traumatizado com o episódio dos ovos falsos vindos da China e, desde então, deixou de comer ovo.

Nem a criação do Centro de Segurança Alimentar o curou desse trauma. A imagem que viu no noticiário de uma falsa gema de ovo cozida com textura a borracha a saltitar como uma bola de pelota basca ficou-lhe gravada na memória para sempre.

Com ovo ou sem ovo, Miguel decide ir ter com Miri. Sabe que ela mora no Seac Pai Van, que isso fica no fim-do-mundo, mas está decidido a embarcar numa viagem que, com azar, poderá até vir a ser mais longa do que uma ida a Hong Kong.

Miguel tem uma mota, mas prefere ir de autocarro. É que, mesmo com a faixa reservada para motociclos da Ponte de Sai Van, tem consciência do perigo que é atravessar a ponte de mota.

Amor é também determinação e coragem, está certo. Mas Miguel perdeu recentemente um amigo, vítima de um acidente, e não quer arriscar.

O que Miguel não sabe é que está para vir uma grande tempestade de chuvas intensas. Miguel, sendo Maquista, tem por teimosia instalado no seu telemóvel a versão em língua portuguesa da aplicação que faz essas notificações – mesmo sabendo que, por esse motivo, essas tardam a chegar porque precisam de ser traduzidas; ou por vezes não chegam sequer a ser enviadas.

No caso em concreto, fica-se sem perceber bem o que aconteceu – o filme não revela esse pormenor desnecessário.

Por outro lado, o seu pai irritou-se com todo o episódio dos anteneiros e a partir daí deixou-se de ver televisão no restaurante. É que o homem, sendo um antigo de Macau, apreciava a clandestinidade do sistema montado pelos anteneiros e das 90 patacas que pagava por mês que lhe dava acesso a todos os canais, incluindo o tal de desporto tailandês onde via o seu futebol.

Assim, quando se deu cabo do esquema e se criou a Canais de Televisão Básicos de Macau, S.A., por solidariedade com os anteneiros o velho botou prontamente a televisão no lixo.

Desconectado e sem informação actualizada, Miguel está à espera do autocarro numa paragem provisória sem cobertura – porque a rua está em obras para a instalação de cabos da MTEL – quando cai uma chuvada que o deixa molhado até à cueca. Frustrado, regressa ao restaurante.

* * *

Passado uns tempos, quis o destino que Miri ganhasse uma oportunidade para finalmente ir ter com Miguel ao restaurante: foi notificada pelo Centro de Saúde da Areia Preta para ir a uma consulta marcada uns anos atrás.

É que, tal como muitos que não têm casa própria, Miri mudou de casa umas 20 vezes antes de se fixar em Seac Pai Van. E, pelo percurso, chegou a morar na Areia Preta.

Deslocou-se a essa zona da cidade através da Uber. Por azar, o carro que a transportou foi parado pela polícia. Miri é persuadida pelos agentes da autoridade a confessar que estava a utilizar um transporte ilegal. Ao condutor foi aplicada uma multa pesada.

Atrasada, Miri acaba por faltar à consulta. Decide então caminhar em direcção ao restaurante. Para a sua enorme surpresa, o estabelecimento já lá não estava. No seu lugar encontra uma loja que vende não se sabe bem ao certo o quê. Perdida, Miri pergunta ao homem da loja – um sujeito com ar de artista – pelo restaurante.

“Não sabes?”, respondeu o artista. “Não aguentou a renda e fechou as portas!”.

Surpreendida e insatisfeita, Miri responde: “E tu? Como aguentas tu a renda?”

“Tenho um subsídio do Fundo das Indústrias Criativas.”

Miri encolhe os ombros e desiste. Afasta-se de tudo e todos, sorrindo sempre.


(*) “Rua de Macau” tem a duração de 45 minutos e está disponível no YouTube, podendo ser visto no topo deste artigo.

15 Abr 2016

Jana Dvorska, professora de Inglês

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stá em Macau há cinco anos. Foi o amor que a trouxe e foi o amor que quase a levou. Mas isso são outras histórias porque a realidade é que Jana gosta de estar por cá: “é um sítio maravilhoso”, diz. “Mal cheguei, senti-me imediatamente feliz”, explica.

E foi em Outubro que chegou. Pois é, porque o pior viria a seguir. Primeiro com o frio e depois com as humidades. Mas é o frio, especialmente o deste último Inverno, que a mói mais: “foi horrível, detesto frio”. Isto apesar de ter crescido em Calgary, no Canadá, “onde temos seis meses de Inverno” diz Jana e, talvez por isso, tem uma paixão assolapada pela praia: “Imagino-me a escrever poemas na praia e a viver assim”, confessa Jana, em inglês, a língua que considera a sua principal. É também a que ensina, mas não a única que domina. Italiano, Francês, Português e, claro, Checo – Jana é checa – fazem parte do seu repertório.

Foi para o Canadá com a família aos cinco anos e aos 21, depois de se formar em Francês e Sociologia, voltou para República Checa sozinha, “porque precisava de experienciar a cultura”, conta.

Nasceu em Ostrava mas foi para Praga, “a Paris do Leste”, apelida, uma cidade que adora, “especialmente aquelas ruas medievais, o castelo, a ponte Charles..”, exemplifica. Foi aí que tudo começou a mudar quando conheceu um português que trabalhava na mesma empresa.

Meia volta ao mundo

Apaixonaram-se e mudaram-se para Manchester onde desenvolveu uma atracção pelo futebol pois, explica, “tínhamos um amigo que trabalhava para o Cristiano Ronaldo e ele foi simpático, assinou-nos umas T-Shirts e deu-nos bilhetes para um par de jogos”. Dois anos e picos depois seguiram para Lisboa onde viriam a estar um ano mas o suficiente para Jana dizer que o seu clube é o Benfica e para confessar que “talvez queira para lá voltar um dia”.

Desporto é algo que faz parte da sua vida. “Fazia muito ski e patins em linha em Calgary mas agora faço yoga, medito todos os dias e gosto de correr nos trilhos da Taipa e de Coloane”.

Voltávamos a Macau e, por falar em trilhos, Jana espera que as ideias de urbanização em Coloane não vão avante “porque é o único espaço verde que anda temos desimpedido e precisamos dele”. A falta de jardins e espaços verdes é mesmo o que ela menos gosta em Macau. “Percebo que a cidade é pequena mas talvez se pudesse fazer um esforço para termos mais jardins e espaços para andar a pé e de bicicleta”, diz.

Gosto pelo ensino

Quando falamos de sonhos Jana diz que vive perto deles, pois faz o que mais gosta: ensinar. “Fiz outras coisas na vida mas ensinar é a minha profissão, é o que mais gosto.” É professora na Escola Secundária Hou Kong, onde adora estar, depois de passar pelo Instituto Politécnico, pela Universidade de São José, pela Universidade Cidade de Macau (UCM) e pela Escola das Nações, esta uma experiência menor para ela porque “os estudantes vêm de famílias ricas e por isso são muito pouco respeitadores”.

A permanência em Macau “tem sido óptima para a minha própria educação”, diz, pois aqui tirou um mestrado em Educação e um diploma de pós graduação na mesma especialidade.

Decorar muito e opinar pouco

“A dificuldade de ensinar chineses é terem pouca confiança e poucas oportunidades para falarem. Passam a vida a memorizar. Por isso estou sempre a dar-lhes oportunidades para falarem, para nos conhecermos mutuamente”, diz Jana, considerando ser essa a principal pecha no sistema educativo local. “Memorizar datas, nomes é ridículo na era do Google”, afirma ainda Jana, que considera que os alunos chineses “têm poucas oportunidades para formarem uma opinião sobre os factos” – o que a jovem tenta providenciar nas suas aulas, pois. “Na minha classe quero é que eles participem, que falem. Não há nada para memorizar”.

Para a jovem professora a relação que se desenvolve com os alunos é, por isso, essencial: “ponho-os à vontade para falarem, para perguntarem o que entenderem. Até perguntas pessoais”.

Esse à vontade levou-a a um episódio que não esquece quando, ainda na UCM, uma aluna veio confessar-lhe que era lésbica, como a pedir conselhos, pois tinha medo de o confessar aos pais. Jana tranquilizou-a e deu-lhe coragem. Foram apenas dois semestres e nunca mais a viu pessoalmente mas segue-a pelo Instagram onde percebeu que ela tem colocado imagens com uma namorada nova. “Fiquei feliz. Deve estar tudo a correr bem”, esclarece.

Um privilégio

E viver em Macau? “Macau é um paraíso para adultos”, diz, mas foi logo adiantando que também permite “qualidade de vida e é um sítio fácil para encontrar os amigos e é segura. Isso é muito importante”. Além disso, “acontece muita coisa como o Festival de Cinema que aí vem, o Festival Literário, há música, muitas bandas locais”, aclara.

Também considera que a cidade “dá muitas oportunidades, é óptima para trabalhar, proporciona bons salários e várias oportunidades de trabalho. Também é uma boa base para explorar a Ásia”, conta. Tudo somado, “é um sítio especial e sinto-me privilegiada por aqui viver”, confessa.

15 Abr 2016

Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stive fora de Macau a maior parte deste Inverno. Depois voltei para uma terra onde o ex-Procurador fora preso, surgira o projecto de um arranha-céus no pulmão da cidade e os taxistas continuam a impor a sua lei no espaço público. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Lá fora, na distante e fria Europa, sofrem-se atentados terroristas; nos fanáticos Estados Unidos debate-se a possibilidade de um homem estranho ser presidente; na aldeia global, emergem os Panama Papers: o capitalismo mostra a sua garra. O mundo discute o racismo, o islamismo, o terrorismo, as fugas de capitais, guerra, refugiados, a poluição. Aqui o homem que nos protegia dos bandidos vai dentro e o Governo hesita em pôr na ordem os carroceiros porque “eles têm um lóbi antigo, do tempo da Revolução Cultural, com ligações ao Governo Central” (???!!!), porque tudo está bem enquanto se puder construir em toda e qualquer parte. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.
A desadequação desta cidade à realidade chega a dar ternura. “Só em Macau”, expressão incensada, está a ganhar dimensões novas, feéricas, audazes. Infelizmente, que nem sempre por bons motivos. Mas, suspendamos os julgamentos e apreciemos o grau de Espanto a que continuamente somos sujeitos.

Como muito bem definiu Descartes e outros sábios, o Espanto provém de um aparecimento súbito de algo inesperado. Na verdade, para o filósofo francês, o Espanto é filho da Admiração: ficar espantado também é admirar se lhe acrescentar o seu carácter de inesperado. Só que, dependendo da causa do Espanto assim ele se pode transformar em outras e diversas emoções. Pode, eventualmente, despertar o riso ou uma contemplação estética. No piores casos, quando a causa do Espanto é algo de ameaçador, pode transformar-se em Medo.

Cada um de nós lidará à sua maneira com os factos espantosos que Macau em catadupa nos proporciona. Tal depende do grau de consciência cívica, do sentido de humor, da paciência e de muitos outros factores que seria fastidioso enumerar. Basta termos esta certeza: será muito difícil encontrar outro abençoado lugar onde tantas vezes nos sintamos assaltados pelo espanto. Cuidei ser a Índia, talvez, e para lá viajei; mas depois de duas semanas nada por ali se comparava com a capacidade feérica de Macau que há 26 anos me espanta. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Não percebemos bem de que se queixam os residentes. Esta cidade está cheia de surpresas, de milagres de unicórnios. Poste-se o cidadão numa paragem de autocarro e constatará que existem três (!) companhias de transportes públicos para servir 35 km2. Contudo, o mais sofisticado neste serviço é o facto dos autocarros com o mesmo número ou que fazem a mesma linha teimarem em andar sempre juntos, uns atrás dos outros, como os elefantes da cauda da mãe. Não gostam de andar sozinhos, é o que é. Tem que se compreender. Depois passa um tempo interminável até que voltem a passar. É um estilo, pronto. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Outro fenómeno interessante, que talvez alguns considerem bizarro, é o aglomerado de empresários nas ou junto das principais cadeiras do poder. Feitas as contas, Macau deve bater recordes. São, literalmente, mais que as mães, porque muitos deles têm irmãos. Já para não falar nos primos, nos filhos e nos cadilhos. Trata-se de uma clientela educada que, com honrosas excepções, prefere comer pela calada. Ainda por cima, esta exagerada concentração serve de alimento aos “opositores do regime” que nela encontram tribuna alta para lançarem os seus protestos e imprecações. É, de facto, espantosa e fascinante esta dialéctica política que, à parte de ser sensaborona (o que lhe acrescenta chique), remete a população para um estado de inércia bovina, o garante imprescindível da harmonia. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

E, como se não bastassem as acções e as não-acções dos nossos queridos governantes têm também surgido nos últimos tempos várias reflexões sobre a comunidade portuguesa aqui residente. Mas atenção: não se trata de coisa fácil visto esta comunidade estar intrinsecamente dividida, à partida, na sábia opinião dos analistas, entre os reinóis (os que nasceram no reino) e os macaenses. Ficámos então a saber que os primeiros se dividem entre os dinossauros e os neo-tugas; e os segundos entre tantas categorias e castas, às quais não é indiferente o bairro de nascimento, que não seriam suficientes as páginas deste jornal. E cada um de nós cultiva a sua ilha, ouve a sua música e esconde ciosamente o que tem. Fantástico! Longe do paraíso original, reinóis ou macaenses ou lá o que nós somos, temos esta capacidade única, espantosa, de nos preocuparmos sobretudo em levantar a pele das nossas próprias costas, sem acinte nem maldade. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

12 Abr 2016

Anónimos

Imprecisa, em 1986, uma notícia informava que um condutor de triciclo cometera suicídio pendurando-se no gradeamento da ponte Macau-Taipa

triciclos almeida ribeiro[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]perfil da cidade parecia benevolente na contraluz do sol poente. Com a ponta do pé, que recolheu de imediato não fosse haver um poço sem fundo, sentiu a água morna e o lodo do leito do rio. Sentiu repugnância. Decidiu pôr-se de novo a nado, duas cabaças atadas à cinta. Nadou até sentir um apoio sólido por debaixo da fina camada de lama. Parou no molhe, exausto.

À direita, na ligação da barreira de pedra, pescadores lançavam redes esticadas por quatro bambus. À esquerda, o vulto de uma igreja no cimo de uma colina. Olhou para trás, levou a mão à cintura e puxou a corda fina de fibra de coco. Foi puxando, encostado às rochas, receando os fachos de luz que um farol projectava. Por fim, a corda trouxe um saco de pano. Encostou a cabeça ao molhe e respirou fundo. Chegara. Lentamente, desatou a corda apenas pelo tacto e desembaraçou-se das cabaças. Com cuidado subiu as pedras do molhe. Os intermitentes lampejos do farol permitiram que visse os pescadores, bambus ao ombro, dirigirem-se para terra firme. Deitou-se, o saco fazendo de almofada, para que a roupa secasse, mas adormeceu, não soube por quanto tempo. Acordou sobressaltado, olhando um céu estrelado. Não sabia as horas. Levantou-se e decidiu que tinha de caminhar. Subindo dois degraus que o trouxeram para terra, vislumbrou perto umas árvores. Mais longe, contra o céu ainda escuro, erguia-se uma massa ainda mais negra.

Guó Jianjun atravessou lesto a estrada deserta, os braços apertando o saco contra o peito. Embrenhou-se na terra batida, sentindo a humidade sob os pés. Havia um cheiro que o fez recordar os campos que atravessara a cavalo. Agachou-se, concentrando os sentidos para entender a razão daquele odor. Discerniu uma barraca ao longe. Sapos coaxavam e mosquitos zuniam perto, numa sinfonia que lhe era familiar. Viu uma bananeira com fruta por colher. A fome apertava, comeu. De uma lata, bebeu água, mão em concha.

Lá para Oriente já clareava e uma luz acendeu-se na barraca próxima. Junto à bananeira, escavou rapidamente a terra húmida. Abriu o saco, retirou algo que colocou no buraco, e cobriu-o novamente. Colocou um pesado pedregulho por cima e alisou a terra. Olhou em volta. Precisava fixar o local antes de se afastar.

Amanhecia quando Guó chegou à cidade. Olhou em redor para se orientar. Encaminhou-se para uma rua. Tudo era novo aqui. Os edifícios recordavam-lhe vagamente Xangai, Tsingtao, mas aqui tinham um sabor que não sabia decifrar. Sobre jornais velhos, esteiras, caixas de papelão espalmado, viu gente a dormir debaixo de arcadas.

Guó Jianjun tinha servido Chiang Kai-shek desde os tempos de Xangai. Tornara-se um dos elementos de ligação entre o Generalíssimo e o chefe do Grupo Verde, Du Yusheng, a quem chamavam “Du, orelha grande”. O Grupo Verde era uma seita que fazia os trabalhos sujos para o Kuomintang. Chegara a major quando a debandada no seu regimento começou, depois das notícias de Nanjing. Pegaram no ouro que puderam, meteram-se a caminho, cada um por si, e deixaram Xangai para os japoneses.

Conseguira chegar a Ao Men. Era a última etapa. Pelo caminho, vira cadáveres que boiavam nos braços do delta. Tinha conseguido contornar os guardas japoneses, nunca largando o saco. Da ilha vizinha tinha olhado a cidade, mas não se atrevera a atravessar aquele braço de água porque lanchas patrulhavam junto aos juncos em descanso.

Ouvira tiros, vislumbrara caçadores que se entretinham a caçar. A sua Mauser C96 perdera-a na fuga. Tirara o uniforme e lançara-o a um poço numa aldeia abandonada. Caminhou até onde tudo era deserto e, na calada da noite, foi atravessando ilha a ilha. Quase desesperara.

Guó Jianjun, curvado, percorreu as arcadas. Passou por uma praça de traça ocidental. Procurou andar por ruelas, evitando expor-se. Meteu por uma viela, assinalada numa placa como Rua dos Cules e, ironicamente, desembocou na Rua da Felicidade. Desorientado, virou à direita, na Travessa do Aterro Novo. Encontrou uma casa de câmbios e de penhores. De cabeça ainda rapada, rosto sujo, preocupava-o não se fazer entender. Olhou em volta e entrou rapidamente, contornando um alto biombo vermelho. Olhou para cima, para o funcionário atrás das grades protectoras. Pôs a mão na cintura e retirou das calças um lingote de ouro bem amarelo, quase quadrado, com a inscrição 999 e, por baixo, 1000. Deveria ter de espessura um dedo.

O funcionário olhou a peça com ar de treinada indiferença. Olhou para Guó e, sem querer, tremeu. Guó Jiajun olhava-o com um olhar que há muito não tinha. Era um olhar frio, gélido, impiedoso. O homem retirou-se, e Guó ouviu-o falar com outro num dialecto desconhecido. O homem voltou, olhou de dentro da jaula. Disse-lhe algo em cantonense. Guó respondeu uó pu tong(1) . O outro pegou numa folha e escreveu com o pincel “o câmbio está a oitocentas patacas”. Guó olhou para ele e rosnou ” Huángjīn shì jīn” (ouro é ouro). Os olhos eram duas ranhuras. O homem voltou a conferenciar com o superior invisível. Aproximaram-se os dois e o patrão olhou, mirou, e, atarantado, gaguejou “ni shi, ni shi” (você é, você é…). Os olhos de Guó abriram-se mais, aquele rosto gordo não lhe era estranho. “Ni shi lu ma?” A frase era enigmática, pois lu tanto podia significar verde como corça. Guó sorriu, levou a mão direita ao externo, o polegar e o dedo mínimo abrindo-se ao máximo, o indicador e o anelar esticados e o dedo médio recolhido e deixou a mão escorrer lentamente até ao estômago.

O superior deu uma ordem ao funcionário, abriu a porta oculta para Guó subir, ni lai, lai (venha, venha). O outro ficou a contar enormes notas arroxeadas de dez patacas. Cem notas de dez.

Li Gangming reconhecera Guó. Como era pequeno o mundo. As memórias de Du Yusheng, o orelhas grandes, tinham atravessado Xangai até ali. Ambos eram sobreviventes da mais recente das tragédias na China. Ambos tinham receado o poder crescente de Mao e de Zhou Enlai. Os comunistas tinham-se separado dos do Kuomintang desde 1927, embora ambos tivessem combatido os japoneses. Aquilo era uma confusão. Apenas tinha sabido que os do Kuomintang haviam fugido, quando os japoneses entraram em Xangai.

Li levou Guó para outro compartimento, mirou Guó e pegando num pau com uma forquilha, depois de ter consultado uns papelinhos atados à roupa, tirou uma túnica e calças largas que lhe entregou.

O funcionário, agora reverente, entregou com as duas mãos um embrulho com as mil patacas. Foi buscar uma bacia de esmalte, água quente e entregou uma toalha para Guó limpar o corpo.

Meia hora depois Li Gangming e Guó Jiajun, agora apresentável, saíram e foram jantar. A guerra acabara, era tempo de se ajustarem algumas contas.

Guó passou a viver à grande, quarto no Hotel Central. Jogava com frequência. Li Gangming fora obrigado a fechar a casa de penhor, vendera a licença de cambista por bom dinheiro e partira para Hong Kong.

Aos poucos, a cidade foi-se despovoando dos refugiados. O mundo não parava. Muitos ficaram, adaptando-se ao pequeno burgo. As idas de Guó Jiajin ao buraco junto à bananeira pararam. Esgotara tudo, estoirara tudo numa febre autodestrutiva, numa raiva contra o destino. Vivia na miséria após alguns, poucos, anos de abundância.

Pedalava um triciclo, tez queimada do sol, longas barbas brancas, e corpo magro, ressequido. Falava sozinho.

Nos anos oitenta, um jornal noticiou, de forma vaga, um suicídio.

Era Guó Jiajun que havia desistido de viver. Durante a noite, o ex-major tirou o cinto, atou-o ao corrimão da ponte, enfiou a cabeça e deitou-se de barriga para baixo e deixou-se asfixiar. Morte anónima, a do condutor de triciclo.

3 Mar 2016

Camaleão excelentíssimo

Ambíguo, heteronímico, multifacetado, David Bowie foi a figura da cultura pop que melhor interpretou a segunda metade do século XX

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]avid Bowie, que morreu no domingo, aos 69 anos, conjugou magistralmente talento, ‘gancho’ comercial e ambiguidade, tornando-se num dos músicos mais influentes de sempre, com um estilo ímpar que nunca deixou de reinventar. Provocador, enigmático e inovador, construiu uma das carreiras mais veneradas e imitadas da indústria do espectáculo, que o colocou no pedestal das lendas da música.

Nascido David Robert Jones, a 8 de Janeiro de 1947, no seio de uma família modesta de Brixton, um bairro popular do sul de Londres, a lenda do rock viu o primeiro sucesso chegar em 1969, com “Space Oddity”, uma música que se tornou mítica sobre a história de Major Tom, um astronauta que se perde no espaço.

Nessa altura, já tinha operado a primeira de muitas reinvenções, ao “batizar-se” David Bowie quatro anos antes, para evitar confusões com Davy Jones, vocalista dos The Monkees, banda rival dos Beatles.

Os anos 1970 viram-no dominar o panorama musical britânico e conquistar os Estados Unidos da América com uma série de álbuns de sucesso.

david_bowie_hd_wallpaper-1600x1200Bowie, que estudou budismo e mímica, traçou o caminho para vingar como uma das figuras de maior relevância durante mais de cinco décadas. Multifacetado, também foi actor, produtor discográfico e venerado como ícone de moda pela tendência para provocar por via da indumentária.

Autor de álbuns aclamados como “Heroes” (1977), “Lodger” (1979) e “Scary Monsters” (1980), o artista, radicado em Nova Iorque há anos, chegou ao topo da indústria a 06 de junho de 1972 com “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spider From Mars”.

Este disco, em que relata a inverosímil história da personagem Ziggy Stardust, um extraterrestre bissexual e andrógino transformado em estrela de rock, reuniu duas das obsessões do cantor: o teatro japonês kabuki e a ficção científica. Contudo, essa excêntrica personagem foi apenas uma das muitas personalidades que adotou ao longo da carreira, como os outros “alter egos” da sua produção criativa: Aladdin Sane ou Duque Branco.

Em 1975, chegou o primeiro êxito nos Estados Unidos, com o ‘single’ “Fame”, que co-escreveu com John Lennon, e também graças ao disco “Young Americans”. Mais tarde, em 1977, chegou o minimalista “Low”, a primeira de três colaborações com Brian Eno, conhecidas como a “Trilogia de Berlim”, que entraram no top 5 britânico.

Ao lugar cimeiro da tabela musical no seu país chegou ainda com “Ashes to Ashes”, do álbum “Scary Monsters (and Super Creeps)”; colaborou com os Queen no êxito “Under Pressure” e voltou a triunfar em 1983 com “Let’s Dance”. Em 2006, anunciou um ano sabático e desde então muitos fãs choraram a prolongada ausência que deu azo a todo o tipo de rumores sobre a sua saúde.

Após anos de silêncio, David Bowie “ressuscitou” em 2013, aos 66 anos, com “The Next Day”, um disco produzido pelo veterano Tony Viscontti, o seu homem de confiança que enamorou a crítica com típicos elementos ‘bowinianos’. Um ano depois, pôs no mercado a antologia “Nothing Has Changed”, com a qual celebrou meio século de carreira.

O seu mais recente álbum foi “Blackstar”, em que surge como um ‘rocker’ ainda apostado em surpreender ao enveredar por alguma experimentação jazz, o qual foi posto à venda na passada sexta-feira, coincidindo com a data do seu 69.º aniversário. O seu 25.º álbum, surgido sob o signo de uma misteriosa estrela negra (“Blackstar”), é atravessado por baterias epilépticas, por correntes e explosões de saxofones (o primeiro instrumento de Bowie) e por uma voz de veludo que transmite ora doçura, ora inquietação em surdina.

David Bowie, que lutava há 18 meses contra um cancro, era casado desde 1992 com a modelo somali Iam, com a qual teve uma filha, Alexandria Zahra “Lexi” Jones. Tem outro filho, Duncan Jones, fruto de um primeiro casamento com Angela Bowie.

Blackstar, a última partida

O novo disco é sombrio e desafiador. Gravado ao lado de um quarteto de jazz (o Donny McCaslin Quartet), traz ecos do disco Outside, que Bowie lançou em 1995, em que conspirava com a ficção científica e o início da era digital, além de forte influência de música electrónica. Também é influenciado pelas distopias da nossa época actual – o saxofonista McCaslin disse que a faixa-título teve o Estado Islâmico como inspiração – e pelo disco mais recente do rapper Kendrick Lamar, To Pimp a Butterfly e tem uma música (“Girl Loves Me”) composta no inglês torto inventado por Anthony Burguess em Laranja Mecânica. É um disco que fala de morte de uma forma estranha e sem pessimismo, como se o cantor e compositor estivesse a preparar a forma como quer ficar conhecido.

Músicos locais lamentam morte de ídolo

bowie_aladin_sane_1000px“Uma gigante perda”
A morte do artista David Bowie, aos 69 anos, vítima de cancro, apanhou o mundo de surpresa. Depois de pulos de alegria, por parte dos seus seguidores, com o lançamento do novo álbum “Blackstar”, na semana passada, é tempo de chorar a morte do cantor.

“Estou chocado, fui apanhado completamente de surpresa. É uma perda enorme para o mundo da música, para os músicos, para o mundo”, reagiu Luís Bento, empresário e músico, residente em Macau. “Os anos 80 e 90 foram marcados pelo Bowie, nem acredito que isto aconteceu”, apontou ao HM. David Bowie era, conta, um artista de mão cheia que fez o que muitos não conseguem fazer. “Os músicos a sério são-no até morrer. Não tenho dúvida disso e Bowie é só mais um exemplo da qualidade e trabalho que sempre o distinguiu”, frisou.

Para Darrren Kopas, membro da banda local Music Boxx, esta é claramente “uma gigante perda”. “O mundo conhece o David Bowie, é uma referência para qualquer músico de pop rock. Perdemos um grande artista”, frisou.

O músico Ladislau Monteiro, mais conhecido por Zico, relembrou os tempos em que os discos do artista inundavam a casa dos pais. “Claro que David Bowie é uma influência. É um ídolo. Qualquer músico da nossa geração tem o Bowie como referência. Fico muito triste, muito triste mesmo, com esta notícia”, apontou.

“É uma enorme perda para o mundo musical”, refere Vincent Cheong, proprietário do Live Music Association (LMA). Bowie, diz, conquistou o mundo e agora deixa-o mais pobre.

O trabalho “Blackstar” fecha a história de uma vida. David Bowie despediu-se assim dos fãs. “Esta foi a melhor prenda que David Bowie nos podia deixar, um álbum”, refere Tatiana Lages, uma assumida seguidora do trabalho do artista.

Quais são os teus direitos como ser humano?

Bowie, sendo inglês, não partilha da visão anglo-saxónica do mundo, que é pragmática.

Nasce numa Londres parcialmente destruída pelos raides aéreos alemães e sujeita a um racionamento até 1954.

Bowie fez uma audição para o musical Hair, a primeira peça com nudez integral a estrear em Londres depois do fim da censura. Mas não foi aceite.

A chave está nos anos 70, quando Bowie surge como Ziggy Stardust.

O seu interesse pelo teatro musical era de tal forma que, em 1973, Bowie solicitou à viúva de George Orwell autorização para adaptar o romance 1984 para palco, mas não foi aceite. E foi daí que nasceu o álbum Diamond Dogs (1974), que é um concerto completamente encenado.

Bowie tinha visitado a Factory, de Andy Warhol, em Nova Iorque, onde o seu agente tinha comprado, em 1966, uma gravação de um álbum de Lou Reed and the Velvet Underground que era, também, uma forma completamente diferente de fazer teatro musical.

O que é interessante de analisar são as formas que Bowie encontrou para se fechar do mundo, como quando decidiu ir para Berlim nos anos 70. Na verdade, para ele tudo é representação e essa ideia está já no início da sua carreira.

Bowie foi aluno de Lindsey Kemp, um actor que foi também mimo e não se sabe se tiveram ou não um caso. Mas foi Kemp quem o levou para uma série de filmes onde era sempre type-casted.

A grande diferença de Bowie é que, ao contrário de outros grupos, nos anos 1980, como os Pet Shop Boys, ou agora a Lady Gaga, não teve que preencher qualquer vazio. Ou pelo menos, não o mesmo vazio. Marcel Duchamp fez o mesmo quando, nos anos 1920, deixou de produzir e considerou que o grande gesto criativo era jogar xadrez [publicou, mais tarde, o livro The Art of Chess].

Se o Ziggy Stardust andasse nas ruas de Londres ou de Lisboa, duvido que alguém lhe desse importância. Mas há muitas cidades no mundo em que se o fizesse, teria uma reacção hostil e possivelmente violenta, ou pior.

A influência de Bowie percebe-se na linha da frente de uma das maiores divisões do mundo, que já não é política ou religiosa, mas na verdade, é muito mais fundamental: quais são os teus direitos como ser humano?

Bowie não tem um programa político, mas disse: “eu decido ser isto, e tu decides o que queres”. A grande fractura, hoje, está na diferença entre o indivíduo e os seus direitos. Entre o indivíduo e a liberdade de escolha.

Há uma frase de William Blake que me parece ser adequada para explicar Bowie: alguém que não teve um predecessor, que não vive a par dos seus contemporâneos e não pode ser substituído por qualquer sucessor.

12 Jan 2016

David Bowie – “Lazarus”

“Lazarus”

Look up here, I’m in heaven
I’ve got scars that can’t be seen
I’ve got drama, can’t be stolen
Everybody knows me now

Look up here, man, I’m in danger
I’ve got nothing left to lose
I’m so high, it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
Ain’t that just like me?

By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass

This way or no way
You know I’ll be free
Just like that bluebird
Now, ain’t that just like me?

Oh, I’ll be free
Just like that bluebird
Oh, I’ll be free
Ain’t that just like me?

DAVID BOWIE

12 Jan 2016

Onde moram as algas – Conto de quase natal

[dropcap style=’circle’]À[/dropcap]procura daquela latinha de chá onde guardo o menino Jesus. A única figurinha do presépio que tenho minha. Há quase vinte anos já era vintage, agora continua, porque o menino não cresceu. Em minha casa, a dos meus pais, também o presépio toda a vida se guardou numa caixa de sapatos. Este ano o meu presépio, reduzido a esta única figura como sempre, tem um cenário diferente. Um asteroide. Cinza, queimado, de Raku. Penso nele como o pequeno planeta do principezinho. A sensação de não ter havido salvação é a mesma para um e para outro. Defraudada humanidade pela troca do ser transcendente que era imaterial, superior e triplo sem o ser, por um humano na arrogância do próprio deus, idêntico aos outros, mas com missão impossível. Por isso voltou. Morreu por amor, supostamente, e para aquilo que não conseguira em vida, a salvação dos mortais, que talvez não se reconhecessem na fé por um igual. Voltou aos céus para que a humanidade pudesse voltar interiormente o olhar para cima. Suponho que é mais ou menos a isto que Žižec chama a monstruosidade de Cristo. Morrer por amor é lindo, afinal. E difícil para além de todas as metáforas. Talvez ele fosse então superior. Não estou preparada para mais um Natal. De novo. E isto não é um conto de natal. Que não saberia escrever. É do lugar onde moram as algas. Na minha casa. E, a fazê-lo seria afinal muito curto, a começar na palavra não. Ou a acabar. Somos pessoas que precisam de vez em quando de sair de si. É o que farei mais uma vez. Arrastada para outro lugar. A pensar que talvez valha a pena ou a pensar que não tenho coragem e que depois vou decidir aliviada que será a última vez. E nunca é. Como nada do que pensamos ser.

Vem este tempo que não vem de lado nenhum e que não tem nenhum lado bom. Sair à rua, e todos os desconfortos etéreos e fundos da alma ficam difusos por detrás de uma sensação mais urgente. Dominadora. A de um mal-estar exterior, físico, sem protecção de abafos que valha. Há sempre uma parte do corpo a receber o frio gelado. Há a crescente humidade a tomar conta da roupa a chegar lentamente ao mais interior. A luta contra o vento de frente, o chapéu que se vira. O nariz quase congelado. As mãos escondidas com força. Não há maneira de este tempo odioso de inverno ser suportável. Também porque a alma anda caída de pequenas alturas, é certo. A queda não é grande. Ou então é uma maneira de todo o transtorno das sensações, todo o desgosto omnipresente, se substitua, em parte, àquela infelicidade maior. O inverno há-de passar como sempre.

Naquela noite, outras sensações, uma casa com gente que bebe até aos confins da alma, que dança e dança mesmo em cima da mesa, que despeja agruras, e ingredientes a cru, pelo meio das cartas. Do Tarot. Despindo-se de si como é urgente de vez em quando, e como se de um casaco pesado demais para se trazer em casa. Há momentos em que um adulto tem que se sentar no chão, ou subir para cima da mesa. Intervalos de si. Sair do lugar. E o caminho para casa, depois de vencido um sono quase mortal a certa altura. Caminho curto nas ruas já desertas. Quase desertas. É ainda a luta do corpo a querer despertar o suficiente para chegar ao desmaio na cama, no calor e no arrumar da noite. Os passos a tornar-se rápidos, a dor de cabeça a subir de tom, mal escondida por detrás daquele gelo de noite, como um saco de gelo natural sobre a fronte. A dor de cabeça a tornar-se insuportável à velocidade a que os passos se tornavam ritmados. Insuportável lá atrás, mas estancada pelo gelo. A perturbação das sombras inquietantes que se tornavam várias ou voltavam a uma só. A fazer querer olhar em volta, a sentir-me seguida. Que recuavam ou avançavam mais depressa do que os meus passos e sem descolarem deles. Como um grupo incerto a diferentes velocidades, que me acompanhasse. Solto de mim. Independente no seu móbil, mas ironicamente. E era. Nas luzes amareladas das ruas. O frio da noite a sobrepor-se à melancolia que volta a tomar conta da memória até ali entretida com outras vozes. É o que o frio tem de bom. Ser mais forte que outros males. O mesmo para males de qualquer coisa. E aos mal- de- amor ou mal de amar, e dos males do amor, há dias em que só nos acompanha o amor. Outros em que só nos acompanha o mal. Como duas sombras diferentes que por vezes se arrastam pelo chão, velozes ou a deixar-se ficar um pouco para trás. E que nunca se desprendem dos passos. Dependendo das luzes da cidade que percorro. Mesmo com o frio e mesmo enquanto dormem de pálpebras cerradas, são amareladas e quentes. A noite presta-se. E há aquilo sempre. Aquilo que sempre me aperta a alma de dentro. Ser com dúvidas de ser. De o ser. Momentos da noite. Uns são os meus e outros de ninguém. Que sou.

O sono a vencer de novo. Boa noite ao candeeiro da mesa. Só umas palavrinhas sobre o trabalho, antes de dormir: o grande problema é quando o hoje parece não existir, mas somente o ontem, na sua etérea, progressiva diluição, e o amanhã na sua inultrapassável ainda não existência e imprevisibilidade. E, quando, neste mecanismo de resistência ao autoapagamento, apenas tenho como suporte cristalizar no eterno presente só meu. E aí, o que sobra são sentimentos. Os mais duradouros, apenas. E nesses, custo a ancorar os mais inseguros com tendências fugidias. Porque os resistentes são como o vírus, que instalado, simultaneamente se alimenta e destrói a partir de dentro.
Primeiro a incerteza do que existe.

Depois, quando a incerteza começa a ser substituída por formas ainda ambíguas, instala-se uma primeira fase de insegurança. A partir daí crescem na mesma razão e expressão as possibilidades de definição das formas, que tendem a assumir progressivamente com a maior clareza diferentes vocações, e as potencialidades de insegurança. E um dia, o culminar do lirismo. Momento seguinte: terror absoluto. O que no fundo poderiam ser metáforas para ontem e amanhã…E são duros e resistentes, ambos os sentimentos. É o que por agora existe, e o hoje é um nada só meu. Assim, termino como comecei.

Ou não…porque na pintura, na vida, no jogo, os grandes jogadores são os que perdem e ganham grandes fortunas. E, perder e ganhar pode ser ainda uma outra maneira de dizer ontem e amanhã.

A pensar no desabafo de Virginia Wolf: “Oh the delicacy and complexity of the soul”, quando deambula pelos escorregadios meandros da alma (“ the slipperiness of the soul”), e fantasia acerca de escrever um diálogo da alma consigo própria: “As for the soul…the truth is, one can’t write directly about the soul. Looked at, it vanishes; but look at the ceiling, (…) at the cheaper beasts in the Zoo which are exposed to walkers in Regent’s Park, and the soul slips in. It slipped in this afternoon.”

A tentar pensar nas pequenas, muito pequenas coisas que trazem sempre agarradas metáforas possíveis. As coisas de nada, e de entre essas, a tentar fixar-me na mais pequena em cima da mesa. A tentar fugir a uma prévia definição de um tema, sempre algo triste. A tentar que algo venha por si. A enrolar um cigarro. O filtro. Já para não pensar na mortalha como a roupa que todos os dias vestimos para morrer mais um pouco e isso acontece. O filtro.

Ou o filtro do café. Também. Às vezes sinto-me tão perdida. Tão, tão perdida nos labirínticos corredores. Que gostava que tudo fosse tão simples como as minhas latas de chá.

Levantar pela manhã e começar o dia a abrir janelas. Estender a mão para a prateleira do meio. Aquela em que a caixa de lata do cacau tem café, a latinha dos biscoitos de limão tem bolacha-maria, a dos bombons tem orégãos, a do chá de Jasmim tem chá de três anos, a do Earl Gray, raiz de Valeriana, a do Pu-Erh, Camomila, a de Orquídea, Tília. E assim sucessivamente…E depois aquela mais nova de todas, oferecida. Decorada com rosas que tem dentro, simplesmente, chá preto com pétalas de rosa. Ao lado, o bule da avó, o da bisavó e o da tia- avó. Um outro de um mercado de rua em Cantão. Esta prateleira está em ordem. Ao lado, a caixa do pão vinda dos anos cinquenta, guarda chocolates e algas Wakame. Todos os dias, por assim dizer começo e acabo a estender a mão para aquela prateleira de enganos inofensivos. Pelo meio está o pior.

Se tudo fosse tão simples. Como elas. Que basta abrir ou simplesmente abanar. Todas produzem um tsch tsch tsch diferente. Todos os meus dias começam e muitos deles acabam naquele estender da mão, para aquela prateleira. E com tudo o que trazem e levam pelo meio. Naquele dia, algo em mim se recusava a acordar. Nem mesmo porque o sonho fora mau. É mau sonhar com os anjos. De um modo geral o sonho é menos sonho e naquela noite teve a realidade que os sonhos têm, e que entristece não mais do que a realidade. Uma daquelas manhãs em que o olhar é mais lento e fixo. Fixado por momentos no filtro do café. Fixado nessa realidade tremenda. Depositar uma essência na fronteira de que passa só uma realidade líquida, imparável mesmo ao filtro. Que se bebe todos os dias. Igual, diferente. Nunca a mesma, mas sem uma identidade própria. Como se todos os dias se tomasse o mesmo café. Que passa. Sem deixar nada de específico. Talvez um dia, muito discretamente mais amargo. Num outro, um tanto excessivamente açucarado. Pequenas diferenças desprezáveis. Há um único café. E do pó nada mais a dizer, que não de que ao pó retorna. A origem, a essência, não permanece, é discreta e descartada sem se lhe sentir o sabor directo. Da realidade visível também. Algo fica preso no filtro do café. Mediatização existencial logo pela manhã. Ausência de corpo. De alma. Como um livro. E que mora em outro lugar. Como as algas.

19 Dez 2015

O Colóquio

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o fim-de-semana passado tive o prazer de participar no III Colóquio Sobre a Identidade Macaense organizado pela Associação dos Macaenses (ADM). Ao contrário do que muitos poderão pensar – sobretudo os ilustres que reagem logo com um “Epá, que seca! Outra vez essa treta da identidade macaense?..” – o evento foi bastante estimulante e foram colocadas questões pertinentes.

Uma conterrânea nossa que esteve presente perguntou-me se ia falar do colóquio aqui na minha coluna. Respondi-lhe prontamente que “apenas se o colóquio correr mal, para poder má-linguã!” pois, caso contrário, para quê elogiar a iniciativa de quem trabalha em regime de voluntariado e sacrifica o seu tempo livre para preparar eventos que dão bastante trabalho organizar?

(Caríssimo leitor, estou a ser irónico).

Miguel de Senna Fernandes, na qualidade de moderador, fez lembrar por diversas vezes à assistência de que estávamos num debate para partir pedra e confrontar ideias sem cerimónias. Ora, numa interpretação mais directa da minha parte, estávamos ali “prá porrada”. Mas no fim não houve muita, pois da assistência, que interveio bastante, foram mais as questões lançadas do que as respostas dadas.

Faço aqui um pequeno registo do que me pareceu mais interessante, aproveitando também para apresentar as minhas próprias observações.

O inquérito

Muitos foram os elogios dirigidos ao José Basto da Silva que apresentou os resultados do inquérito, da sua iniciativa, que foi lançado on-line. Foram mais de 500 os inquiridos e temos aqui uma ferramenta de trabalho muito útil.

Trata-se de bom material para analisar a textura da comunidade macaense à luz de diversos critérios, permitindo aos interessados lançar estudos com base em dados estatísticos concretos. Portanto, podemos abandonar o “acho que”, “penso que”, “sinto que” e citar concretamente “de acordo com as respostas obtidas no inquérito do Bosco-chai”.

E, já que estamos nisso, do inquérito conclui-se que os macaenses da faixa etária mais avançada falam mais português que chinês e são pessimistas em relação ao futuro da comunidade.

E agora acrescento: porque cristalizam definições, são incapazes de aceitar uma realidade em constante mutação, estamos em 2015 e ainda não aceitaram a transferência de soberania e são campeões na invocação do artigo 9º da Lei Básica.

(Este último a propósito da pequena tempestade no Facebook resultante de um chonto di gente que se sentiu incomodada porque o inquérito foi inicialmente lançado em inglês, em detrimento da língua de Camões. Haja paciência.)

A próxima geração

José Luís Pedruco Achiem, um dos oradores, sublinhou a necessidade de manter uma taxa de fertilidade acima dos 2.1% como condição absoluta para que a comunidade sobreviva.

Muito bem, mas fazer filhos apenas não basta, certo? A verdadeira questão, obviamente, será como educar os nossos filhos garantindo que a chama da comunidade maquista se mantenha viva. Falou-se em tradições e gastronomia, mas para mim a chave da questão está no domínio das línguas.

A língua não é apenas uma ferramenta de comunicação, é um universo cultural. E numa altura em que se assiste ao declínio do uso do português no seio da comunidade, é urgente que os pais macaenses programem a educação dos filhos para que sejam bilingues em pleno.

Esqueça-se o inglês, língua que se aprende facilmente em dois tempos, e concentre-se no chinês e no português.

E não se venha dizer que esta ou aquela língua foi descartada por causa do sistema de ensino que se decidiu seguir: caríssimo leitor, pode matricular o seu filho no Pui Cheng e falar português com ele em casa, uma coisa não impede a outra. E aqui falo com autoridade porque a minha taxa de fertilidade é de 2.0, aos 3 anos o meu filho já era trilingue e da minha menina de 2 meses não espero outra coisa.

Sobre línguas não vou desenvolver mais pois este tema foi por mim abordado em detalhe no artigo “Noite de Natal no Karaoke”. (*)

Rethinking the boundary

Foi este o tema desenvolvido por Elisabela Larrea, a primeira oradora do colóquio. A nossa amochai apresentou o seu trabalho em inglês – ai os antigonços e os seus intestinos que devem estar a mexer, e de que maneira – e conseguiu transmitir o que para mim faz todo o sentido e sempre defendi: a riqueza do ser maquista reside precisamente na sua diversidade cultural, portanto porquê criar fronteiras redutoras?

Tudo muda com o tempo: o mundo mudou, Macau também, portanto os parâmetros de definição da identidade Macaense têm, necessariamente, de mudar e evoluir.

A Elisabela não falou do nada: segundo a sua pesquisa, a peça de Patuá “Olá Pisidénte” (1993) continha 99% de palavras em Patuá e apenas 1% de Cantonense e Português, sendo que a audiência era maioritariamente macaense e portuguesa.

Já a recente peça “Qui Pandalhada” (2011) apresentou apenas 61% de palavras em Patuá; e 26%, 10% e 2% em Inglês, Chinês e Português, respectivamente. Quanto à audiência, para além dos macaenses e portugueses, verificou-se o que já sabemos: uma presença significativa de chineses.

Aceitar que ambas as peças são manifestação da cultura macaense é também aceitar, por conseguinte, que a definição do conceito de macaense é mutável.

Descartemos os complexos: a nossa multiculturalidade deve ser celebrada em pleno.

Aquela coisa do “no meu tempo”

Foram vários os intervenientes que recordaram o Macau antigo e lamentaram a ausência dos lugares de convívio onde outrora socializavam com a malta, apontando essa situação como uma das ameaças à sobrevivência da comunidade.

Houve até quem dissesse que para muitos é preferível não estar em Macau “a assistir a essa destruição, sendo se calhar mais fácil estar nos Estados Unidos, ou num outro país qualquer, onde se sentem melhores”.

Salvo o devido respeito, não posso concordar com essas afirmações. O discurso do “no meu tempo” arrepia-me. O nosso tempo é o nosso tempo, as coisas mudam de geração em geração.

Aos fins-de-semana o meu filho de cinco anos diverte-se nos parques limpos, bem tratados e bem equipados do IACM, ou então nos indoor playgrounds dos novos empreendimentos. E divertimo-nos à brava. Quem sou eu para lhe dizer que no meu tempo as coisas eram melhores?

Aliás, escrevo estas linhas depois de um agradável jantar com amigos do meu tempo, estivemos num restaurante formoso de um dos novos casinos, fomos servidos por um chef português nosso amigo. Boa comida, bom ambiente, bom convívio.

“No meu tempo” não era necessariamente melhor ou pior, era diferente – e não temos forçosamente que ser pessimistas em relação ao futuro. O passado é bom, mas é morto.

Considerações finais

Não quero deixar de destacar a positiva participação de intervenientes em língua chinesa. Deu um colorido à coisa e sei que essa era uma das intenções da ADM – por essa razão todo o evento teve tradução simultânea. Aliás, qual o sentido de um colóquio para debater a identidade macaense se for apenas entre nós, entre a malta? Se for para isso, mais vale combinarmos uma jantarada entre nós…

Os meus parabéns à ADM pela iniciativa. Para o ano há mais, certo?

Sorrindo Sempre

Há 10 anos atrás, quando trabalhava no Governo, conheci um caso em que um funcionário avançou, sem a devida autorização superior, com a execução de uma obra que implicou despesas do erário público.

Quando, já intempestivamente, o funcionário submeteu a papelada para processar a coisa, superiormente foi exarado o seguinte despacho: “Aprovo com efeitos retroactivos e sanciono o técnico responsável pelo sucedido, sendo que o mesmo será tido em consideração aquando da renovação do seu contrato”.

Tradução: “a m**** já está feita e vou aprovar a contar da data em que foi feita, mas estou lixado contigo e sou capaz de te pôr na rua.”

Volvidos 10 anos, sou confrontado com o seguinte caso: alegando falta de espaço no pavilhão onde costuma organizar as suas Festas de Natal, o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes (DJCN) decidiu este ano alugar um espaço no exterior: o auditório do IPM.

Alugar um espaço no exterior custa dinheiro. E das duas, três: ou (1) o DJCN não sabia, ou (2) sabia e fez mal as contas, ou então (3) sabia, fez bem as contas e apercebeu-se que precisava ainda do carcanhol dos encarregados de educação, mas por mera má gestão ou por motivos que sou incapaz de compreender, decidiu que estes deveriam ser informados apenas no último momento.

Pois que com a Festa a realizar-se no dia 12 de Dezembro, o DJCN decide apenas enviar aos encarregados de educação, no dia 8 de Dezembro, um e-mail onde se lê: “(…) todas as despesas inerentes a esta deslocação representam um montante elevado que irá ser suportado pela escola. Ainda assim, torna-se indispensável que os Pais e Encarregados de Educação adquiram os respectivos bilhetes no valor de 75 MOP cada. (…)”

Caríssimo leitor, não vou passar fome por ter de arrotar as 75 pataquitas. Mas incomoda-me saber que a DJCN toma decisões dessas sem consultar primeiramente os encarregados de educação, para depois enviar um e-mail assim, em cima do joelho, já com tudo decidido e o facto consumado, obrigando-nos a arrotar as tais 75 pataquitas. E, que eu saiba, em Macau nenhum jardim de infância pede aos pais que paguem para ver a actuação dos seus próprios filhos no Natal.

O (a) responsável por essa borrada toda merece, indubitavelmente, um puxão de orelhas semelhante ao daquele despacho escrito.

Sorrindo sempre? Não.

(*) “Noite de Natal no Karaoke”, edição de 24.07.2015 do jornal Hoje Macau.

11 Dez 2015

Sexo, Perspectivas e Coca-cola

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]sexo gera vida, cria pessoas, adiciona números à contagem populacional. Não há ninguém neste planeta que tenha aparecido sem uma prévia noite de paixão pelos seus progenitores. Nós existimos porque há sexo e porque é praticado. Sim, tudo o que escrevo não consegue ultrapassar as franjas do óbvio, mas tento enaltecer o facto do sexo ser a raiz de tudo.

Se sexo é a raiz de tudo, é por isso a raiz de todo o bem e de todo o mal que existe no planeta. Sexo permite o surgimento de pessoas que se desenvolvem das mais variadas formas. Não sei se nós humanos somos inerentemente bons ou maus e parece-me que tem sido extremamente difícil esclarecer essa dúvida, apesar de muitos filósofos, sociólogos, antropólogos e psicólogos se terem debruçado sobre o caso. Nascemos com alguma predisposição genética para certas tendências cognitivas e comportamentais, informação genética essa oferecida pelos gâmetas do pai e da mãe. E depois… a vida molda-nos da forma que nos é oferecida. Recebemos, reproduzimos e reconstruímos visões do mundo que dada a diversidade que existe neste planeta, a diversidade é felizmente mantida. Na diversidade cabe tudo, as diferenças físicas e culturais que por vezes são partilhadas por grupos, e as diferenças individuais, porque ninguém é igual a ninguém (e olhem que a maioria dos estudos para entender o desenvolvimento humano usa gémeos verdadeiros como objecto de estudo, ou seja, duas pessoas com exactamente a mesma carga genética, e facilmente se percebe que a diferença continua a existir).

Há tantas pessoas diferentes que as práticas sexuais, que na sua essência partilham alguma universalidade (excitação, orgão sexual, orgasmo), podem ser diferentes. As diferentes ideologias e consequentemente as diferentes práticas podem-se complementar ou entrar em conflito. Primeiro começa com a conversa que os nossos pais têm connosco sobre como se fazem bebés. E aí somos introduzidos ao sexo. Depois é a puberdade que traz um mar de inseguranças acompanhada de alterações drásticas no corpo (alterações que nos preparam fisicamente para procriar) e o bombardeamento de informação vinda de todos os lados sobre o sexo, quando ainda é desconhecido, e depois da primeira vez, que apesar de mais familiar ainda permanecerá envolto em muito mistério e tabu.

As redes de informação que contribuem para a ideologia sexual colectiva e individual são de uma complexidade assustadora. São namorados, namoradas, amigos, pais, médicos, religião, pornografia, internet, livros, televisão, jornais, opiniões, discórdias, e tantas outras coisas mais que nos ajudam a perceber o que é que achamos do sexo e de que forma o queremos vivê-lo. Ora dada a complexidade, a primeira dificuldade que reconheço é saber separar o trigo do joio. Porque se há pessoas que conseguem sair desta confusão com uma sexualidade saudável e prazerosa para todos, há outras que se metem em concepções menos amigáveis ao nosso bem-estar. Os mitos e os rumores são uma coisa gira de se observar: ‘A coca-cola é um poderoso espermicida’. Houve quem de facto acreditasse que um banho pós-coito com a famosa bebida americana constituísse um eficaz contraceptivo. Por isso cientistas fizeram questão de falsificar a teoria através de estudos. Resultado é que Coca-cola Light (em comparação com as outras Coca-colas) tem alguma influência na mobilidade dos pequenos espermatozóides, tornando-os menos energéticos e mais lentos a chegar ao destino. Se isso constitui um método contraceptivo, muito dificilmente. Parece-me a mim que só se tornaria mais numa barreira que o esperma teria que enfrentar (isso e a selvajaria que o interior vaginal é) mas não incapacitador de trazer vida ao mundo.

O que quero dizer é que a nossa sexualidade encontra-se num constante processo de manutenção e desenvolvimento pelo o que somos neste momento e pelo que nos é sugerido e apresentado no mundo. Se nos dizem que a Coca-cola é um espermicida, porque não confirmar com outras fontes ou outras opiniões? Senão teremos todo o mundo a tomar banho em Coca-cola enquanto lhes saltam bebés incessantemente. Porque de bem verdade que a Coca-cola é muito mais barata do que qualquer outro método contraceptivo.

Por isso haja bom senso. Bom senso para perceber que há histórias e estórias, zonas cinzentas e outras explicações. A vida faz-se destas complexas narrativas individuais e colectivas onde cada um de nós se vê na complicada situação de dar sentido às coisas, mesmo que as coisas não façam sentido nenhum.

17 Nov 2015

Um país, muitos sistemas

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stávamos na segunda metade dos anos 90 e não era, naqueles tempos, vulgar questionar-se o conceito do espaço Schengen, da moeda única e, enfim, todo o projecto europeu. Era tudo cor-de-rosa, fazia tudo sentido – qual crise económica, imigrantes do Leste ou refugiados Sírios.

É nesse contexto que um sábio amigo meu, numa conversa sobre o futuro de Macau, diz-me assim: “numa altura em que na Europa abolimos as fronteiras e usufruímos da livre circulação, com Macau e Hong Kong a China vai criar fronteiras dentro do seu próprio país”.

Essa observação, aparentemente simplista, tinha na verdade um significado bastante profundo. Possivelmente por essa razão tenha ficado bem guardada e fechada nas gavetas do meu pensamento para que, passados quase 20 anos, pudesse ser revisitada para uma nova reflexão num cenário completamente diferente e, então, inimaginável.

O que vou contar passou-se recentemente. A história em si de piada tem pouco, mas merece ser contada pela extrema absurdidade da coisa e como testemunho das bizarras situações que podem ser criadas dentro de um país que decidiu ter dois sistemas.

Éramos ao todo quatro colegas de serviço, a caminho de Zhuhai para uma reunião de trabalho. Foi tudo meticulosamente planeado e discutido com antecedência, nomeadamente a agenda da reunião e a língua a utilizar, que tivemos o cuidado de solicitar desde logo que fosse o cantonense, evitando assim qualquer tipo de desvantagem que o eventual uso do mandarim nos poderia trazer.

Logisticamente, a minha assistente teve o cuidado de organizar o transporte para as Portas do Cerco, definindo rigorosamente as horas de partida, de regresso e os respectivos pontos de encontro, uma vez tratando-se da fronteira com o maior movimento em toda a China.

Tínhamos acabado de chegar às Portas do Cerco e, para qualquer pessoa de fora que olhasse para nós, não havia nada de invulgar no nosso grupo que se resumia a quatro sujeitos locais, todos falantes de cantonense, fisicamente orientais, com feições bastante semelhantes até, e que, por algum motivo, vão juntos à China saindo de Macau – tal como os milhares à nossa volta que, todos os dias, atravessam a fronteira de forma afogosa.

Só que afinal éramos todos diferentes.

Quando nos aproximamos dos balcões da migração, subitamente apercebemo-nos de algo que fomos incapazes de antecipar: cada um de nós ia, afinal, utilizar uma combinação distinta de documentos de viagem para sair de Macau e entrar na China.

O John (*), chinês natural de Macau, ia registar a sua saída com o BIR da RAEM e entrar na China com o wui heong cheng. (**)

O Brian, chinês de Hong Kong (aliás Hong Kong Citizen, conforme gostam de se denominar) ia com o BIR da RAEHK e o wui heong cheng, respectivamente.

Eu, maquista, tinha já na mão o BIR de Macau e o passaporte português com visto para a China de entradas múltiplas e prazo de dois anos.

E agora o over the top: o Albert que, apesar de ser chinês originário de Hong Kong, e tão local como qualquer um de nós, é na verdade natural de Londres, Inglaterra. Para todos os efeitos, é cidadão das terras de Sua Majestade e, como tal, para ambos os territórios ia utilizar o único documento de viagem que possui para o efeito: o passaporte da Grã-Bretanha. Com a particularidade de que, para entrar na China, ia até estrear um visto novo com direito a… duas entradas apenas!

Foi assim que no meio da típica confusão do primeiro andar do posto fronteiriço das Portas do Cerco, em que por alguma razão toda a gente atravessa a fronteira a correr – porventura com receio de uma eventual aparição do Coronel Mesquita liderando as tropas rumo à tomada do Passaleão – combinámos à pressa como ponto de encontro a zona logo à saída de Gongbei.

E separámo-nos.

Ora, o caríssimo leitor sabe muito bem o resultado dessas combinações feitas à pressa, pois certamente leu a edição anterior desta coluna em que me debrucei sobre a nossa abusiva dependência dos telemóveis para marcar encontros banais do dia-a-dia.

Quando cheguei a Gongbei e ao nosso suposto ponto de encontro, estava lá apenas o John. Foi o primeiro a despachar-se por ser portador dos documentos mais vantajosos para essa viagem em particular. Se o destino fosse a Europa, eu seria certamente o primeiro a chegar.

Ficámos então à espera dos outros dois que por alguma razão nunca mais apareciam. A dada altura veio um polícia que nos mandou embora, pois não podíamos permanecer ali parados à porta do posto fronteiriço de Gongbei. Pelo que descemos as escadas rolantes que dão acesso ao célebre centro comercial subterrâneo.

O que aconteceu nos 20 minutos seguintes podia facilmente figurar num filme do Woody Allen. A simplicíssima tarefa de comunicar a mudança do ponto de encontro aos nossos colegas Brian e Albert acabou por se tornar num verdadeiro bicho-de-sete-cabeças.

Excerto de diálogo entre o Brian e o John:

John: “Olha, estamos no centro comercial à vossa espera. Onde andam vocês? Sabes do Albert?”
Brian: “Eu já me despachei. O Albert, a última vez que o vi estava ainda na fila para foreigners… Centro comercial? Passei pelo centro comercial e não vos vi!”
John: “Passaste pelo centro comercial e não nos viste? Desceste as escadas rolantes?”
Brian: “Escadas rolantes? Não vi nenhuma escada rolante, estás na zona do tabaco duty free?”
John: “Não! Isso não é o centro comercial! Mas onde estás tu afinal? Já atravessaste a fronteira?”
Brian: “Estou numa praça e não vejo nenhuma escada rolante! Devo voltar para trás ou não? Passo pela migração outra vez?”
John: “Fica aí onde estás! Manda-me uma foto e já te dou indicações!”
Três minutos depois liga o Brian ao John:
Brian: “Não consigo enviar a foto! Estou com problemas de rede! Há pouco o Albert ligou-me, teve problemas porque preencheu mal a ficha! Mas fiquei sem perceber onde estava porque a chamada caiu!”
John: “Vai ao settings do telemóvel e liga o data roaming! Já deves estar com a rede da China! É por isso que não consegues enviar a foto!”
Brian: “Roaming? Mas aqui já conta como roaming?”

Depois de muitos telefonemas e finalmente reunidos, conseguimos ainda assim chegar ao local da reunião antes da hora. Pelo que decidimos ir tomar um café ao Starbucks para refrescar a cabeça e esquecer toda aquela desnecessária aventura transfronteiriça.

Do nosso pedido de macchiatos, lattes e frapuccinos em que identificámos as bebidas em inglês, a funcionária ao balcão pediu-nos que repetíssemos tudo, apontando para uma lista inteiramente escrita em chinês. Pois isto de se misturar cantonense com inglês é comum em Macau e em Hong Kong, mas na China nem tanto. E ela não percebeu nada do nosso pedido. “OK… Alguém sabe como se diz frapuccino em chinês?”

Naturalmente, viemos a ter a mesma dificuldade na nossa reunião. Felizmente, valeram-me os 12 anos em que trabalhei no Governo e aprendi a falar cantonense decentemente, comme il faut. Já os meus colegas não tiveram a mesma facilidade: habituados a misturar termos técnicos em inglês no meio do cantonense, em diversas ocasiões ficaram encravados. É de facto irónico, mas facilmente compreensível para quem conhece bem o nosso meio.

Apesar de tudo, a reunião correu bem e entendemo-nos perfeitamente. E a chave da questão está aqui: entendemo-nos porque nos quisemos entender; e ambas as partes fizeram um esforço para se entenderem.

Caríssimo leitor, raramente falo de política na minha coluna, mas hoje apetece-me afirmar com alguma firmeza que acredito verdadeiramente na fórmula “um país, dois sistemas”. Não me arrepia nem um pouco que dentro do mesmo país haja dois ou mais sistemas e uma grande heterogeneidade cultural entre as suas gentes.

Não vejo de facto problema nenhum e certamente não é isso que me faz sair à rua com a bandeira do antigo Leal Senado na mão a reclamar de forma bacoca o que quer que seja.

Estamos muito bem assim. E que venham outros 50 anos.

Sorrindo Sempre

Tanto build-up a antecipar a tão esperada conferência de imprensa da NASA, e afinal limitaram-se a anunciar – pela enésima vez – que existe água em Marte.

Só que desta feita, dizem eles, apresentam provas irrefutáveis: imagens espectaculares que mostram muita coisa. Excepto o essencial, que se calhar todos queríamos ver: a água propriamente dita.

Entre outros, a NASA demonstrou dominar a técnica do filme erótico-não-pornográfico, que mostra e não mostra.

A comunidade científica ficou excitada.

Eu também não.

Sorrindo sempre.

(*) Todos os nomes deste artigo são fictícios.
(**) Salvo-conduto emitido pelas autoridades chinesas.

30 Out 2015

O telemóvel mal-educado

200_s[dropcap style=’cirlcle’]T[/dropcap]ortura, entre outros, é também ter de digerir afirmações de ilustres que verbalizam assuntos como se do objecto em discussão alguma coisa entendessem, quando na verdade deveriam era aproveitar a oportunidade para se manterem calados, contribuir para a redução da poluição sonora e a criação de um ambiente favorável à manutenção da nossa sanidade mental.

E é esse o tema que vai ser hoje abordado: silêncio e sanidade mental.

A pedido do meu filho, no sábado passado passei com ele a manhã no Museu das Comunicações, um excelente sítio com expositores de altíssima qualidade. A todos aqueles que gostam de bater no Governo por tudo e por nada, e sem razão nenhuma, eis aqui um exemplo demonstrativo de que nem tudo no Governo está mal, porque o Governo tem coisas boas também. E muitas até.

Regressando ao Museu. Uma das atracções preferidas do meu filho são os telefones antigos que ainda funcionam perfeitamente. Entre eles, estão aqueles pretos de discar e em forma de champuleung que a CTT instalava no passado, nos tempos em que os números de telefone em Macau tinham apenas quatro algarismos.

“Sabes, o papá quando era pequeno tinha um telefone assim em casa”, disse eu para o meu filho. Olhou para mim sem perceber se era a brincar ou a sério.Como as coisas mudaram. Eram tempos em que telefonava para a casa dos meus amigos e não sabia ao certo o que iria acontecer, pois (1) podia não ser o meu amigo a atender a chamada, pelo que tinha de dizer “olá, queria falar com o fulano de tal, se faz favor” e do outro lado até podia vir um “e quem fala, se faz favor?”; e (2) o meu amigo podia até não estar em casa, pelo que então podia responder “ah, então diga-lhe se faz favor que liguei, fico então à espera que me devolva a chamada”.

Quando penso nisso até sinto uma certa saudade, pois com a chegada do telemóvel esses diálogos desapareceram das nossas vidas. Em contrapartida, ganhámos outro tipo de expressões e hábitos, nomeadamente o “ligo-te quando estiver a chegar”, “podes descer agora”, “vou a caminho”.

No meio de muita conveniência, o telemóvel permitiu também uma falta de rigor total. O “às 15:30 à porta do Leal Senado” foi substituído pelo “ligo-te quando estiver despachado, diz-me por onde andas que vou aí ter contigo”.

É absurdo o número de chamadas que às vezes fazemos só para combinar uma coisa simplicíssima que podia ser definida logo desde o início. Mas, por alguma razão, preferimos adiar decisões simples como, por exemplo, o local para um almoço.

Pelo que, no gozo, quando se começa uma conversa para combinar algo, mando a boca: “mas para que andam vocês a tentar combinar coisas? No fim, acaba-se sempre por combinar que amanhã um de vocês vai ligar para o outro para combinar melhor…”

Com o advento do smartphone as coisas mudaram ainda mais – e para pior. Agora, para se combinar um jantar cria-se um chat room. Convida-se um chonto di gente e passa-se dias e dias a conversar, a conversar e a conversar por mensagem. Centenas de mensagens apenas para se definir dia, hora e local para um jantar.

Não escondo que às vezes até me divirto com isso, pois aproveito para desenvolver alguma conversa inconsequente que me faz muito bem à cabeça. No entanto, numa reflexão mais profunda, não consigo mesmo perceber que tipo de evolução vem a ser essa.

Não me entenda mal, caríssimo leitor, não sou contra a tecnologia não apadrinho aquele discurso miserabilista de que a próxima geração vai ser assim ou assado por causa do smartphone.
Aliás, no que concerne às tecnologias fui sempre um early adopter: no início do milénio quando ainda todos usavam Nokia, já eu enviava emails com um telemóvel da HP do tamanho de uma raquete de ténis de mesa.

A questão é que não posso simplesmente fazer de conta que está tudo bem e que isso é normal. Se é normal – e se calhar para o meu filho vai ser muito normal – então trata-se de um normal que vai sempre merecer de mim muitas reservas. Porque essencialmente não consigo passar constantemente o tempo a ler e a responder às mensagens do Facebook, Whatsapp, Telegram, WeChat, iMessage e SMS.

Para agravar, tenho ainda o telemóvel de serviço – sim, faço parte daqueles que andam com dois telemóveis na mão – que de quando em quando faz soar um “ding” porque recebo cerca de 100 emails por dia. E não, não podem ser ignorados pois trata-se de trabalho. E tenho também o Lync instalado, onde igualmente recebo mensagens. E o Calendar, sendo que ao longo do dia vou recebendo meeting invitations que têm de ser respondidos.

Finalmente, os meus dois telemóveis, sendo telemóveis, servem certamente para receber chamadas. Ah, tenho também o telefone de linha fixa no gabinete e não são poucas as chamadas que recebo: quando volto de uma reunião, a primeira coisa que faço é ver o registo das chamadas perdidas. Há sempre duas ou três, pelo menos.

Tudo isto é anedótico e, ao mesmo tempo, perigoso. Multitasking é uma palavra que está na moda, mas tudo tem o seu limite. Pelo que tenho procurado colocar um travão à coisa.

Quando chego ao trabalho de manhã, não me ponho imediatamente a ler e a responder aos emails. Antes de mais, faço uma lista das tarefas a cumprir e planeio o meu dia de trabalho conforme a agenda. Só depois é que faço o login no computador e leio os emails. Pois, caso contrário, começo o dia simplesmente a reagir aos emails de terceiros – ou seja, ao trabalho dos outros e não à minha própria iniciativa de trabalho.

Por outro lado, decidi colocar as notificações de todos os apps de mensagens em silêncio. Verifico as mensagens apenas quando me dá jeito e me apetece – e não quando o telemóvel chama por mim.

Sim, eu sei, demoro a responder às mensagens. Mas antigamente também não se apanhava necessariamente as pessoas em casa quando se telefonava e esperava-se, portanto ninguém vai morrer por causa disso.

Acima de tudo, trata-se de manter a sanidade mental. As interrupções constantes fazem-nos muito mal e provocam ansiedade mesmo sem nos apercebermos. E não é por acaso que a boa educação exige que se bata à porta antes de se entrar.

O telemóvel, por natureza, é um ser mal-educado porque nunca bate à porta. Portanto, a não ser que queira mesmo passar a maior parte do tempo com uma postura de Corcunda de Notre Dame a olhar para o seu smartphone sem saber o que se está a passar à sua volta, ou mesmo enlouquecer, talvez não seja má ideia exigir ao seu telemóvel que bata à porta antes de entrar.

É o que tenho feito. E como resultado, entre outras coisas, sinto até que tenho estado mais tempo com o meu filho.

Sorrindo Sempre

Babosices vindas de todos os quadrantes referentes à invasão demográfica de que Macau tem sido palco nos últimos anos é algo que, com toda a certeza, o caríssimo leitor já se cansou de ouvir.

O que o caríssimo leitor não sabe, no entanto, é que algo semelhante se verificou recentemente no Jardim de Infância D. José da Costa Nunes (DJCN). Não, os turistas de visto individual (ainda) não se matricularam nessa escola. Quando disse “semelhante” referia-me ao facto de ter havido também uma pequena invasão demográfica.

Pois que a DJCN abriu mais duas turmas em resposta a esse tão interessante fenómeno e, nessa decorrência, na semana passada foram lançadas as actividades extra-curriculares, cujas inscrições tiveram início às 8:30 da manhã na secretaria da escola.

Conforme habitual, foi notificado aos pais que as colocações seriam feitas por ordem de chegada. O chamado “first come, first serve basis” que, aqui para esta parte do mundo, tem sempre potencial para produzir efeitos espaventosos.

À cautela, a minha esposa chegou pouco antes das 8:30 para evitar surpresas desagradáveis e garantir colocações nas actividades preferidas do nosso filhote. Mesmo assim, conseguiu apenas a senha n.º 48. Porquê? Ora, porque a senha n.º 1 foi distribuída a um ilustre encarregado de educação às 5:00 da manhã.

Hábitos diferentes, de facto, pois pelos vistos os encarregados de educação “daqueles” miúdos estão já acostumados a madrugar à porta de uma escola para fazer fila e ser o primeiro. É cultural – e nós, portugueses, não temos disso no nosso sangue.

Mas nunca é tarde para aprender.

Pelo que, para a próxima, antes das inscrições vou submeter ao IACM uma licença de ocupação provisória de espaço público – porque vou acampar à porta da escola.

Sorrindo sempre.

18 Set 2015

Andar na vida

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje andamos pelas redes sociais, pelos avatares do ecrã, mais do que pelos cafés ou pelas ruas. Tal pode ser entendido como um alívio: de facto, nem sempre o contacto humano é salutar, desejável ou sequer suportável. Desse ponto de vista Macau é exemplar pela forma rápida como nos fartamos uns dos outros. Mais do que Coimbra, Macau é realmente uma lição.

Ora, como todas as lições, nem sempre é bem entendida pelo “estudantes”. Ele há melhores e piores alunos e há mesmo aqueles que desistem dos estudos e vão pairar por outras paragens. Por exemplo, alguns não admitem a fluidez excessiva do real que aqui se organiza. Não admitem, nem entendem, como aquilo que ontem era amarelo hoje pode ser quase azul, e como em pleno tufão se aclimata uma bonança. É difícil para quem não está disposto a perder as penas e ser gente.

O que é isso de ser gente? Talvez aquilo que Álvaro de Campos definiu como o desejo de ser todos e toda a parte e, por isso, criar uma arte da sobrevivência a toda a sela. É o credo do exilado, daquele marcado de lonjura e estesia.

A isso se chama andar na vida. Ou por ela. Evitar a brida, recusar os freios e, na imensidão das coisas e dos mundos, ir andando, a nosso trote ou a galope, mas em carta ainda por navegar.

Andar na vida: passar sempre com o compromisso de passar e nunca deixar nada para trás que não se carregue como um remorso. Como as saudades de um regresso impossível, de uma odisseia sem Penélope final — todo o exilado enferma do síndroma do tapete inacabado…

E queremos ou não andar? Sabem bem os estimados leitores, lá bem no seu íntimo de crente, que só há realmente uma vida e que esta não deve ser perdida em entretantos e outros quebrantos de aflições. Não valemos nada, a não ser o nosso caminho.

Como diria o Padre Teixeira: “Anda, queres vir daí?”. Sim: a vida deve ser, sobretudo, passada a andar.

8 Set 2015

Ensaio sobre o lugar

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste seria o momento em que, à luz daquela estética dos salões do século dezanove, os cavalheiros se retiravam com os seus conhaques e os seus whiskies, para falar dos assuntos sérios da cousa pública, deixando as senhoras libertas, para repôr um pouco de pó de arroz no rosto, e partilhar a dimensão do comezinho da via privada. Os desconfortos dos dias difíceis do mês ou os mistérios da mudança de idade. Receitas da vida e também da dos outros. Os assuntos domésticos e os do amor. Tudo muito filtrado, muito metafórico, muito cheio de alusões e reticências, e muito púdico, a fazer medrar nas mais jovens neste ambiente de gineceu, aquela curiosa qualidade mítica para muitos, atávica, senão mesmo estruturalmente ancorada no código genético, que é a intuição. Feminina. Mas este seria um outro tópico de conversa.

Do amor, poderia dizer que é como um hotel de cinco estrelas. É preciso um bom lugar, mas também bons costumers. Como juntar matérias inflamáveis e uma boa dose de piromania. E pega fogo em combustão espontânea. Mas, diria antes: é como um hotel de charme. Actores, cenários e palco, produção atenta, uma realização sensível. Para além de uma espécie de moral estética que induziria no erro de se esperar a teatralização do sentir, há o fascínio real do estar. Gostar de estar, indissociável do gostar de se ver estar. Não, no meu ponto de vista como atitude narcísica, mas como reflexo de estar no lugar certo do mundo. No amor há o fenómeno do espelho. Há a necessidade de identificação com o caracter desenhado no olhar do outro. Com o lugar. Os actores gostam de se ver no papel, ou não. Um bom amante seria então simultaneamente um bom lugar e um bom hóspede.

Descer a rua. Uma rua das muitas que levam ao rio. Lugar, antigamente de chegadas e partidas. De marinheiros. Ao lado direito, antes de desembocar na margem, e um pouco desnivelado aquele toldo com nuvens a sombrear o pavimento em mosaicos de arabescos azuis, evocativos de um médio oriente onde a sabedoria ainda protege do calor tórrido sem recursos contra a natureza das estações. Um desvão, pequeno e sombrio relativamente à rua, tanto quanto o sol ainda a escaldar, faz desejar um abrigo. Mesas redondas num amarelado de fórmica debruada a latão, e cadeiras que arredondam nas costas, convidativas ao repouso de toda a coluna em paz. O entrançado numa matéria colorida e variados matizes, como se nelas, entretecidos nas cores, se misturassem tempos, memórias e paradigmas apetecidos. Tudo de um outro tempo, de facto. E é aí que quero estar. Mas primeiro à beira- rio, amigos esperam-me num lugar mais juvenil, impessoal, amplo. Deixei para trás aquele vislumbre de interiores voluptuosos e entorpecentes, para além das janelas de guilhotina, mistura de cores aveludadas e tactilmente apetecíveis, veludos azuis ou tintos como o vinho, sedas ocre dourado, um barroco aconchegante, em contrastes semi-exóticos. Objectos confortáveis do passado, sofás e poltronas macias, quebra-luzes époque, imagens e esculturas românticas. Pensei. Tenho um encontro para mais tarde. Marquei-o ali mesmo. Por agora, esperam-me mais abaixo.

Depois volto a subir a rua. Do outro lado da estrada, a memória de um enorme grafismo rigoroso, meses atrás, no prédio devoluto, que dizia: ± SILÊNCIO ±. Como se a cidade falasse comigo por enigmas. O céu de um azul prússia, intenso embora já a escurecer, naquele dilema entre uma luminosidade feérica e fortemente colorida, e a noite quase, quase a instalar-se de vez. Mas é, perto do rio, um momento que se prolonga num resplendor estóico, resistindo às luzes da cidade ainda, e competindo com elas. Espreito de novo aquele cenário em desvão, os mosaicos, as três mesas e as cadeiras coloridas e, surpreendentemente, uma única ocupada por um grupo. Desço, contente com o inesperado sossego em contraponto ao exterior, para o meu encontro e sento-me na mais distante. Um pouco mais tarde uma rapariga tão silenciosa como eu sentou-se na do meio. E, abalado o grupo conversador, um homem ocupou a primeira mesa. Ficou tudo certo, sereno e bem. Os três em linha, quietos, silenciosos e ensimesmados. A música, no volume certo, entre um estilo pop de fusão, aquelas coisas difíceis de situar, uns blues a ressoar talvez a Nova Orleães, e outras fusões um pouco lounge que não reconheço. Entendi contudo uma mão de mestre na articulação progressiva de sons, numa espécie de viajem nas horas…

A mesa para dois, livre. E pareceu-me perfeito. Sentei-me só, e pensei na importância daquela outra cadeira ali, precisamente para lembrar que não era uma cadeira com o vazio de alguém mas uma simples cadeira em si. Um lugar. Não o espaço preenchido de uma ausência. Uma espécie de nada por oposição ao vazio. Um lugar, é isso. E, como qualquer lugar, uma entidade suficiente em si. Sem a necessidade de ser validado como lugar de algo ou alguém. O lugar puro. E eu nunca trago para um encontro destes alguém à revelia da sua vontade ou consciência. Tento. Nem memórias nem sonhos. Sequer os meus anjos têm lugar nestes encontros. Comigo só, mas inteiramente só em mim e não, como relativamente à cadeira, só, pela ausência de alguém. Só pela natural solidão imanente da matéria. Só, naturalmente e sem a veemente ausência de outrem. Esta é uma disposição que me ajuda a situar, mesmo para me lembrar de que, tal como não sou uma daquelas pessoas que preferem os bichos às pessoas – eu que os adoro – não finjo que não gosto da sua presença. Ou prefiro, às vezes. Mas tento não transportar a sua falta. O problema das pessoas, é serem afectadas. Literalmente. Afectadas pela vida, as inseguranças, as megalomanias, as mágoas, as frustrações. E sobretudo os medos. E que se deixam envelhecer mais do que os bichos e sobretudo, que se deixam estragar mais do que eles. Transcendendo em muito os incontornáveis limites da biologia.

Nunca falho estes encontros. Já falhei outros, embora nunca pela acção voluntária da minha vontade, passe a redundância. Este é também um dos verdadeiros encontros a dois. O de uma pessoa, com a não ausência da outra. De uma certa forma, uma ausência a que se nega a imperatividade e a extensão. A que não se permite a presença. Sim. Há encontros perfeitos. Aqueles que preenchem de uma forma densa e sem margens ou folgas um pedaço, seja de que dimensão fôr, de existência. Não porque nos façam felizes, mas porque são absolutamente justos, verdadeiros e confortáveis. O que é bom. Verdadeiros mas talvez não reais. Vistos de outro ângulo.

Há outros encontros, esses realmente perfeitos. Com o outro, que não eu. Mas tão raros. Pode-se passar uma vida ao lado da possibilidade de um. Por falta de jeito, de charme, de segurança, de vista. E esperar. Que as probabilidades, no seu cálculo imperscrutável, não forjem o encontro no dia seguinte àquele em que já lá não estaríamos.

Encontros daqueles a que não se vê o fim. E o homem é raro na perfeição, por isso deve estar sempre em guarda. Circunscritos num pedaço de eternidade. Mesmo quando esta se desfaz logo a seguir. E a que não se admite a presença de terceiros. E, de entre os mais temíveis intrusos, o tempo, a distância, o esquecimento, ou o desencontro, é o medo aquele cuja manifestação se revela verdadeiramente terrível. E quando isso acontece, quase impossível de erradicar.

Suponho que é a esta hecatombe, que Alain Badiou se refere com o seu conceito de “encontro”, como uma grandiosa descoberta do outro e de si: “For it to be a genuine encounter, we must always be able to assume that it is the beginning of a possible adventure. You cannot demand an insurance contract with whomever it is that you have encountered. Since the encounter is incalculable, if you try to reduce this insecurity then you destroy the encounter itself, that is to say, accepting someone entering into your life as a complete person.”

Mergulhar nas revelações sem lei. A nudez das palavras à mistura com os beijos. Que são um extraordinário lugar físico para as palavras. O tempo anacrónico. E nunca o medo.

Mas é tão perigoso isso. Tive uma amizade durante dezassete anos, pessoa singularmente amoral, ou até imoral, com quem tinha uma média de largas horas semanais ao telefone. Em que trocámos bárbaras confidências. Um dia. Uma única palavra. E acabou subitamente. Ela ofendida com um disparate que transcendeu, ocultou ou ofuscou os milhares de outras palavras usadas durante todo aquele tempo. Sim. Falar é uma coisa perigosa. Mas gosto desse desafio. Despojar a alma de qualquer artifício – o limite é a dor, ou ir além do Bojador – sem ter que ver no outro uma flor frágil. E de ver a totalidade possível do outro. Guardar alguns segredos também, evitar alguns espinhos. Sem falsidade.

Eu tenho uma inconsolável nostalgia de ambientes do passado. Tão mais confortáveis e envolventes, quão desaparecidos ou em vias de extinção. Sem sequer serem substituídos por ambientes contemporâneos que consigam magicamente ter essa qualidade numa outra linguagem. Talvez afinal os objectos tenham uma alma que acumula referências e humanidade de momentos passados, de sentimentos que lhes transmitem algum calor, um acalento que a modernidade não consegue alcançar. Talvez precisem de amadurecer. Sempre gostei de ambientes vividos, objectos manuseados, marcas de vida. Das atmosferas pesadas de um luxo sensorial e decadente dos velhos cabarets. Os lugares dos espectáculos de burlesco, e dos episódios burlescos da vida. Nas zonas portuárias, com maior fascínio porque muitos estão de passagem. Vindos de longe e com destino incerto. Também eu encontrei um dia um marinheiro de águas profundas num cabaret decadente. Mas em outras longitudes. Curiosamente a primeira coisa que lhe vi foram os pés. Só depois dei com o rosto no topo de um corpo aprumado e uns ombros firmes. Um grande encontro face a tudo o que depois não teve sentido nenhum. Numa outra vida. Enfim.

Pensão Amor. O lugar de que falava. Não pensão, já. É um pastiche de outros tempos, mas feito com carinho. Lugar de imitação de outros imaginários que não de hoje, mas terno e generoso para acalento de nostalgias. Um nome que se não fosse absolutamente real seria poesia pura. Há um lugar. Natural, produzido ou forjado na fantasia. Poderia ter este nome, mas seria plágio. E não precisa dele. Basta a designação plena de lugar. Como na arte, um site-specific. Lugar natural de algo. Ou desencantado da miríade de todos os outros para envolver a estrutura, a forma a instalar. Mesmo pré-existente, conceptualmente escolhido e quase produzido em função de…De liberdade. Da superação do medo. Do encontro com um eu depurado, reflectido em olhar alheio. Intemporal, eterno, indelével. Mesmo que no momento seguinte todo o referencial pudesse mudar. Mas nesse lugar tão específico, as coisas formuladas e sentidas têm alguma escala. E são eternas enquanto duram. Só depois se lhes vê o fim. Mas essa é já uma outra história. Um outro lugar. Vago. Ou não. Simplesmente lugar.

14 Ago 2015

À distância de um tango

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]eis e vinte da tarde e finalmente aqui, como combinado. Um primeiro encontro, mesmo que seja apenas o deste ano, é sempre tocado daquela emoção que é uma mistura de nervosismo e ansiedade. Mesmo que seja o encontro romântico com o mar. Olho para o lado, onde poisei na areia o saco de praia e os sapatos de salto alto. E não consigo deixar de achar cómico, delicioso e um pouco simbólico. Eles vieram por falta de lembrança, na corrida de sempre antes de sair de casa, a antever os vários percursos que passam também por uma reunião e por fim, o mar. Vieram por engano, mas fazem todo sentido num primeiro encontro. E porque estou confinada por mais um ano, provavelmente, à impossibilidade daquilo que um certo novo-riquismo sofregamente consumista, instalado algures no nosso imaginário, designa por férias. Sair, viajar para longe. Ver coisas diferentes e invejáveis. Fugir à escala da existência quotidiana. Comprar coisas exóticas como prova de mundanidade. Um paradigma que só muito pontualmente, na verdade se cruza com o meu. Mas penso que saí de uma reunião de trabalho e estou quase sem transição, aqui. Frente ao mar. Com os pés numa areia clara e quente, e com a alma a desanuviar. E que aconteceu no espaço de um tango. Ouvido no caminho, se bem que repetidas vezes. Um – especial – que me enleva desde há meses. De Pugliese, só instrumental sem os fantasmas e os enganos de uma letra a contaminar a leitura dos sons. Este em particular, acabou por se tornar a partir de um momento qualquer, quase figurativo. Quase narrativo. E de tal forma o sentido que evoca, a paisagem que descreve e representa se impôs com rigor, que ficou para sempre o mesmo. O mesmo sentido, a mesma imagem quase fílmica e o mesmo tango. Ouvido obcessivamente. Mas não pode apanhar-me distraída. Preciso concentrar-me para ver. E é íntimo, o mais íntimo que pode ser na memória de um encontro de amor. Êxtase e lamento. Ficou.

Mas hoje, este encontro com o mar. Tão fácil. E longe da multidão imaginada, silencioso o auditório de areia, no local que escolhi. Só vozes dispersas e longínquas, e o som do vento, não forte, mas suavemente audível. A maré a começar a subir e aquelas nuvens muito ténues, muito fininhas como um véu espraiado em largos farrapos, interrompidos por todo aquele azul, que hoje são dois. Um entre elas e outro em redor. E pensei, antes de começar a esvaziar este meu saquinho de tormentos de hoje, como ossinhos de colecção, como tudo isto assim, e uma coisa de nada, é um privilégio. Que esquecemos de incluir nos paradigmas modernos de qualidade de vida. Porque é o vizinho da porta ao lado. Pequenos prazeres, à beira dos quais uma classe média, seja lá o que isso é, sempre esteve, mas sempre com os olhos postos lá mais adiante, num horizonte que viu fugir para parte incerta há uns tempos. Para não falar dos verdadeiramente pobres. E que, amargurada, frustrada relativamente a muitos sonhos que encarava como instalados no rol das possibilidades, não consegue por vezes desmontar e afinar pelas reais e restringidas possibilidades. Não. Não tenho nada a criticar aos sonhos dos outros, mesmo se forem megalómanos, frívolos por vezes e centrados em algum exibicionismo. O direito a ter opções é inalienável. Mas olho para este meu fim de tarde, e sinto-o como se de um luxo se tratasse. Porque vivo numa cidade alegremente espraiada ao lado de um grande rio e com uma costa de mar à distância de um tango.

E nesse novo-riquismo de que falava há também o inflacionamento dos sentidos. Do sentido lúdico, como somatório de todos os outros. O deslumbramento depois da contenção carente em que se viveu. Um certo novo-riquismo em que o pós 25 de Abril, e mais tarde a entrada na EU, nos precipitou, esperançosos e confiadamente, em paradigmas complexos. E um dia, na frustração.

E não se trata, de todo, de fazer a crítica da ambição ou o elogio da mediocridade. Sem transição, lembro-me daquele género muito particular do cinema português, sobretudo nos anos 40 e 50. Esse cinema conformado, quietinho e bem comportado, a funcionar perfeitamente de acordo com a política do Estado Novo, e sobretudo da “política do espírito”, curiosa expressão sinónima da censura. O retrato de um “bom povo”, expressão de má memória e tão cheia de significado. Porque muito compostinho. Os pobres muito honrados, alegres e infantis, sempre preocupados com pequenas coisas fúteis, porque das outras não se podia falar. Em que tudo acaba sempre a cantar. Naquelas vozes trinadinhas. O povo a cantar como rouxinol a propósito de tudo e de nada, feliz com a sua simplicidade e a sua ração diária de alpista. Sem outros problemas que os sentimentais. Aquelas comédias de bairro, com o António Silva e o Ribeirinho e Vasco Santana. E que eu adoro, claro. São encantadoras e fazem-nos rir ainda e sempre. Mas sem esquecer o que significavam à época em termos de falta de liberdade de outros vôos no cinema – que os houve, mas se diluíram – e de expressão, mesmo em termos artísticos. E o cinema é perigoso porque imita demasiado bem a vida.

Mas este era o cinema acarinhado e patrocinado pelo estado em função de géneros bem definidos, como por exemplo, nas palavras de António Ferro, director do S.N.I.: “quando se tratar de comédias amáveis ou até de bons costumes populares, mas não explorem o que há ainda de atrasado, de grosseiro, na vida das nossas ruas ou no porte de certas camadas sociais”.

Volto lá atrás ao momento em que me lembrei desta ideia de povo colorido e parcial. Não é o contentarmo-nos com as coisas pequenas que eventualmente temos ao nosso alcance, à falta de melhor, mas sim o isolar essas coisas do facto de, de momento não haver mais opções, e dar-lhes o valor absoluto que elas têm. É não remar contra a maré. Melhor dizendo, não remar a favor da infelicidade. Desta falta de horizontes um pouco acabrunhante, que nos amarfanha, por vezes demais. Que desgasta a energia para continuar a ter um olhar lúcido não só sobre a necessidade de se ser crítico e inconformado, sobre a validade de protestar e ter a noção do que falta em termos de opções, mas também sobre a forma como isso nos centra por vezes num desalento, em que sem darmos conta estamos a alimentar a auto-piedade. Ou então fruir e limpar a alma daquele tipo de mágoa alienante. Enquanto a angústia e as ondas vão e vêm, folga a alma e os sentidos.

Concentro-me de novo só no mar. Quando vem a onda. A subida agora nítida da maré. Há aqui um desafio neste meu olhar já mais apaziguado. Chega até mim ou não, antes que parta. É um pequeno braço de ferro. Não quero ceder à ansiedade recuando de imediato e mais uma vez. Já recuei a toalha uma vez porque ao chegar se estava ainda naquele breve romanço entre marés. E medi mal a distância de conforto.

E concentro-me depois no Céu. O azul do céu, em dois azuis, e o do mar que é esverdeado mais para cá. E o azul da minha alma in deep blue. E lembro-me que afinal, do azul, do que era para dizer, tudo ficou para dizer mais tarde. Noutras páginas. Mas ainda assim esteve sempre ali. Todo o tempo subliminarmente na minha disposição, e a ocupar todo o espaço e toda a consciência como um íman.
E disponho-me a voltar para casa, para tudo e para perscrutar mais tarde o efeito desta limpeza desintoxicante que já conheço de outras marés.

[quote_box_left]E lembro-me de que digo às vezes que a vida não está para saltos altos. Mas está. Às vezes. À distância de um tango[/quote_box_left]

Mesmo porque não vim para construir castelos de areia. Ou castelos na areia, como dantes e como, sobretudo na infância, quando eram reais, mais sólidos que os outros e como tal pela sua natureza, os que mais inevitavelmente se desfaziam na primeira onda. Mas é bom saber que podemos fazê-los e não que este é um país em que todos os projectos são de areia e vão pela água abaixo. Limpo os dedinhos destes pés que tanto me aturam e arrastam por aí, quantas vezes com a alma a puxar para trás. Tentando não ser demasiado exigente com a areia, por esquecer o prazer que foi hoje o primeiro contacto com ela, fina e quente, substituído pela contrariedade de a levar para casa. E calço os tais sapatos de salto alto, que vieram por engano.

Três páginas de letra miudinha e alguns cigarros depois, são já mais de oito horas. Volto ao carro, ao meu tango secreto e à marginal apinhada agora. Acrescento estas linhas sobre o volante, num semáforo, que abre e fecha sem desenvolvimentos, e enrolo um cigarro. É o elogio do pequenino do meu dia. Deixo a Riviera para trás, rumo a casa. Passada a curva do Mónaco, tiro os óculos porque me lembro de que vou com o sol nas costas. E, de súbito, como sempre, tudo à minha direita ficou ainda mais azul. Penso distraidamente se não deveria ser à minha esquerda, mas vou vagamente para leste…E lembro-me de que digo às vezes que a vida não está para saltos altos. Mas está. Às vezes. À distância de um tango.

12 Jul 2015

Óbito | Maria Barroso faleceu ontem aos 90 anos. “Não era só a mulher de Mário Soares”

Depois de semanas em coma profundo, morreu a mulher do ex-presidente da República e primeiro-ministro português Mário Soares. Maria Barroso acompanhou o marido em várias viagens oficiais a Macau, sempre com uma personalidade própria. Fernando Sales Lopes, Arnaldo Gonçalves e o líder do PS em Macau lembram a mulher forte por detrás do presidente

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]oi mulher e primeira-dama, mas também mais do que isso. Ajudou a fundar o Partido Socialista (PS), dirigiu o Colégio Moderno durante a ditadura de Salazar, lidou com o exílio do marido, foi actriz. Todas as vidas couberam na vida de Maria Barroso, esposa do antigo presidente da República Portuguesa e primeiro-ministro Mário Soares.

Maria Barroso faleceu ontem aos 90 anos depois de ter estado em coma profundo durante várias semanas, após uma queda.

Em Macau, Maria Barroso esteve várias vezes, quer a acompanhar o marido quer como convidada do Festival Internacional de Música, onde falou publicamente sobre a importância de divulgação da Língua e cultura portuguesas. Mas nem por isso teve um papel secundário.

“Era uma pessoa discreta mas sempre presente, tinha uma personalidade tão forte que ela estava lá. Não veio só acompanhar o marido, ela também foi convidada muitas vezes para vir ao festival e depois fazia as suas visitas”, recorda ao HM o historiador Fernando Sales Lopes, que com ela travou conhecimento em Portugal.

Para Sales Lopes, Maria Barroso era uma pessoa culta e uma mulher que lutava na sua componente política e social contra a ditadura. “Mas a Maria Barroso é a mulher de Mário Soares mas não é a mulher do Mário Soares. Ela, por si, vale muito”, acrescenta. A personalidade vincada saltava à vista, tanto que um mestre chinês, aquando de uma das visitas de Soares a Macau, chegou a dizer-lhe, enquanto lhe lia a sina, que este só tinha chegado aos altos cargos políticos por ter uma forte mulher ao seu lado.

Carisma e cidadania

“A impressão pessoal que tinha dela é que era uma pessoa com uma presença pessoal muito forte, com um grande carisma, uma enorme capacidade do uso da palavra” – Arnaldo Gonçalves, académico

Arnaldo Gonçalves, académico, diz recordar-se mais de Maria Barroso na qualidade de estudante da Universidade Católica Portuguesa (UCP), onde foi aluno. Em Macau, das poucas visitas oficiais que acompanhou, recorda-se de uma mulher que “se apagava um bocado na presença (de Mário Soares)”. “Era a maneira de estar dela, porque o Dr. Mário Soares é aquela pessoa pró-activa que se conhece”, contou ao HM.

Maria Barroso passou a estar ligada à UCP depois do filho ter sobrevivido a um grave acidente em Angola. Foi então que se converteu ao catolicismo.

“A impressão pessoal que tinha dela é que era uma pessoa com uma presença pessoal muito forte, com um grande carisma, uma enorme capacidade do uso da palavra. Várias vezes a ouvi falar da importância de uma educação para a cidadania, que era uma coisa que ela dizia muito”, disse Arnaldo Gonçalves.

Para Fernando Sales Lopes, essa ligação à religião mostra bem como Maria Barroso nunca fugiu aos seus ideais. “A Maria Barroso foi uma pessoa íntegra, que defendeu sempre as suas ideias sem se curvar, uma lutadora em todos os aspectos. Toda a gente sabe que Mário Soares é ateu e quando o filho teve um acidente em Angola, ela converteu-se ao catolicismo. A partir daí passou a ser uma mulher crente, sem se afrontar com Mário Soares.”

À Rádio Macau, Jorge Neto Valente, presidente da Associação dos Advogados de Macau (AAM), recordou uma viagem oficial feita pelo casal a Macau, no final dos anos 70, inícios de 80. Neto Valente foi com Soares e a mulher até Cantão, de carro, em dia de tufão. “Mesmo assim houve aqui um encontro de pessoas que os estimavam”, lembra o advogado, recordando uma mulher “sempre muito coerente, sempre com muita dignidade”.

Tiago Bonucci Pereira, líder da secção do PS em Macau, frisou que “faleceu uma grande mulher que deixa um legado muito importante, com uma vida marcada pela democracia e causas sociais. Estará sempre ligada à luta contra o fascismo e a fundação do PS. É um exemplo de cidadania e humanismo”.

8 Jul 2015