Cristiana Su, Relações Públicas no Instituto Cultural

[dropcap]C[/dropcap]ristiana Su é, tal como tantos outros jovens que por cá andam, natural de Macau. No entanto, o seu nome engana quem possa julgar que viveu em Portugal. Na verdade, a história desta jovem é particular, no sentido em que não segue o destino habitual.

Ao invés de ter ido estudar para Portugal, Inglaterra ou EUA como tantos outros, o rumo de Cristiana foi diferente: aos oito anos de idade mudou-se com a família para a região vizinha de Zhuhai, onde cresceu e cumpriu o ensino educativo até atingir a maioridade. Aos 18, retorna ao berço que a viu nascer, com um objectivo claro: licenciar-se. Foi assim que a sua história no território (re)começou.

“Mudei-me para cá e fiz a licenciatura em Estudos Portugueses na Universidade de Macau”, começou a jovem por explicar ao HM. Viver em Zhuhai, diz, foi bom enquanto durou, mas parece-se mais com “um local de relaxamento e descanso, para onde as pessoas vão quando se reformam”.

Macau tornou-se assim num local onde Cristiana se imaginou a evoluir profissionalmente. Fruto de heranças distintas, tem dupla nacionalidade e nasceu em Macau: duas mais-valias que fazem do mundo a cidade de Cristiana.

Entre estudos e novos conhecimentos, acabou por cumprir um estágio de seis meses na Universidade de Coimbra. Actualmente, trabalha como Relações Públicas e Organizadora de Eventos Culturais no Instituto Cultural, onde se diz “muito feliz”. Isto não só porque gosta de viver em Macau e naquilo em que a cidade se está, aos poucos, a transformar, mas porque muito se interessa por actividades culturais, como são a realização de exposições, peças de teatro, concertos, entre outras.

“Estou no IC desde Agosto [do ano passado] e a adorar o que faço, especialmente porque posso fazer parte da transformação de Macau na área cultural”, diz ao HM. Uma das curiosidades acerca desta jovem é o facto de falar, fluentemente, três línguas.

“Falo Inglês porque é a língua com que comunicamos em casa e Mandarim e Português porque aprendi mais tarde”, esclarece.

Entre ajudar a organizar eventos culturais e comunicá-los aos meios de comunicação, faz algumas traduções e participa activamente em algumas dessas actividades. Questionada sobre o actual panorama cultural na região, Cristiana diz considerar que o Governo “está a fazer um grande esforço” nesse sentido. À parte do trabalho no IC, a jovem sente-se privilegiada por viver em Hac-Sá e poder usufruir daquele zonas, dos seus trilhos de caminhada e da praia e de pequenos cafés que vão surgindo por toda a cidade, o desenvolvimento daquilo a que chama de “crescente cultura de fazer e beber café”.

Ocidentais no Oriente

Não é, no entanto, comum ouvir-se uma jovem notoriamente loira, de traços ocidentais, a falar Mandarim como se de uma nativa quase se tratasse. Natural é, por tudo isso, que a comunidade chinesa se surpreenda ao ouvir Cristiana a comunicar fluente e comodamente na língua da Mãe-Pátria.

“É muito engraçado quando, em trabalho, se combina alguma coisa com alguém por telefone, em Chinês, e depois se chega ao sítio e a pessoa não nos reconhece porque não parecemos a pessoa que atendeu a chamada”, conta Cristiana, entre risos.

A experiência de trabalhar num departamento que faz da cultura personagem principal é, para a jovem, bastante boa, uma vez que não é só possível perceber as mudanças progressivas da cidade, mas também do contexto de mentalidade local. “Acho que nunca vi tantas notícias sobre novas exposições e eventos culturais nos jornais como hoje em dia e isso é um dos sinais de que Macau e a comunidade estão cada vez mais preocupados com a difusão da cultura”, explica.

Pelos olhos de uma criança dos anos 90, esta era uma cidade segura, mais calma e que Cristiana associa à presença lusa. “Antes, relacionava muito Macau à herança cultural portuguesa e a Portugal, porque a diferença entre Macau e Zhuhai, mesmo sendo as duas zonas chinesas, é muito diferente. Mas hoje em dia, associo Macau a toda a indústria do Turismo, aos grandiosos hotéis e casinos”, distingue a jovem, licenciada em Estudos Portugueses. “Vejo Macau como uma cidade internacionalizada”, frisa. Cristiana justifica esta internacionalização com o facto de haver sempre coisas a acontecer, lojas e restaurantes a abrir numa cidade que actualmente pouco pára.

De Zhuhai para o mundo

“A vida é mais fácil. Atravessa-se a fronteira e há mais coisas, mais parques, mais natureza, mais desporto e eu gostei dos anos que lá vivi e acho que Macau hoje é um pouco confuso, com muita gente e trânsito”, confessa ao HM. Ainda assim, embora descreva Macau como um “pouco insuportável para se viver”, gosta de cá estar e não pretende deixar já o território. Hoje em dia prefere Macau a Zhuhai.

“Para pessoas que procuram um emprego e uma vida mais atarefada, este é um sítio melhor”, justifica. A vida de Cristiana começou em Macau, para passar quase dez anos por Zhuhai e simplesmente regressar à região que a viu nascer.

No entanto, não se trata de um caminho sem fim e Macau pode não ser a última casa do jogo. “Gosto muito desta cidade para viver e trabalhar, mas não me imagino a criar família e ter filhos aqui, por isso projecto uma próxima etapa da minha vida noutro sítio e os EUA ou Portugal são duas das possibilidades”. O que importa, diz, “é tentar”, já que a vida são dois dias e um deles está já a passar.

Neste momento, Cristiana parece querer aproveitar aquilo que a cidade e a vida lhe dá, nunca descartando o facto do mundo ser agora global e capaz de acolher quem o quiser abraçar.

5 Jul 2015

A propósito de Alan Turing

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m longo artigo de Christian Caryl* vem generosamente juntar-se ao muito que se tem escrito ultimamente sobre Alan Turing. Reabilitado com alguma fanfarra pela rainha em 2013, a sua história vem lembrar quanto as transformações de mentalidade por vezes se desenvolvem num período curto, isto numa altura em que, na semana passada, se estende a todos os Estados Unidos da América o direito ao casamento entre parceiros do mesmo sexo.

O artigo de Caryl parte da apreciação de um filme recente, The Imitation Game, de Morten Tyldum, e de dois livros sobre o cientista inglês, Alan Turing: The Enigma, de Andrew Hodges, e Alan Turing: Pioneer of the Information Age, de B. Jack Copeland.

Tanto os livros como o filme sublinham com intensidade a importância de Turing como descodificador do sistema de códigos usado pelos alemães durante a segunda guerra mundial (Enigma) mas também como importante cientista nas áreas da ciência de computadores e inteligência artificial e como impulsionador da ideia das bases matemáticas da vida.

O artigo constante da NYRB de Fevereiro acrescenta que os smartphones, tablets, ou laptops de hoje devem muito ao trabalho de Turing como investigador na área dos computadores. Como se tudo isso não bastasse, Caryl informa, com um entusiasmo que vem dos anos 80, altura em que foi publicado o livro de Hodges, que o cientista britânico foi um corredor de longa distância de competência olímpica.

[quote_box_right]Pensar em Turing e ver um filme de televisão dos anos 90 cria uma aproximação mais honesta. Este tem o tom de um filme que se vê em casa durante a tarde de um domingo de chuva quando ainda se fumava em frente das crianças[/quote_box_right]

Ironicamente, o facto de ser homossexual, e a pena a que se viu condenado por isso, pode ser o que contribuiu para a sua fama recente. Não tivesse sido sujeito a um tratamento que a nossa sensibilidade contemporânea tem até dificuldade em compreender, e não tivesse terminado a sua vida (aos 41 anos) aparentemente como resultado desse tratamento, a sua biografia não teria o elemento dramático que o tornou numa figura que suscita uma curiosidade cada vez mais alargada.

Caryl não é amável para com o filme, onde detecta muitas falhas. A maior será a de que o filme de Tyldum reduz a figura do retratado à caricatura de um génio torturado, um excêntrico coitadinho pouco à-vontade no seu mundo. Esta é, segundo o autor do artigo, apenas a história de uma vitimização.
Há muitas outras críticas. A de que o filme apresenta um Turing lavadinho e bem vestido (saído de um catálogo da Burberry, diz o autor do artigo), interpretado por um actor que parece que é famoso no mundo limpinho e aborrecido de grande parte do cinema de hoje (esta parte é minha), quando o descuido de Turing com a sua aparência física, vestuário e higiene pessoal é bem conhecida. É um tipo de lavagem que vende bilhetes.

Junta-se o aviso de muitas outras falhas a nível histórico, sobre a história pessoal de Turing (nomeadamente no que pertence às circunstâncias que rodearam a sua morte, que Copeland, no seu livro, explica que pode não ter sido um suicídio) e sobre a história da sua actividade profissional e vastos interesses científicos e filosóficos.

O autor do artigo parece especialmente indignado pelo retrato que o filme faz do último ano de vida do matemático (monstrous hogwash nas suas palavras) em que este, completamente contrário ao que o filme relata, terá mantido a total posse das suas capacidades mentais e continuação entusiástica de vários projectos pessoais.

Do que ninguém se parece lembrar, e esta longa introdução parece adiar, é que existe um outro filme para televisão, não muito antigo, sobre o agora famoso matemático. Breaking the Code é um filme de 1996 de Herbert Wise, um realizador nascido na Áustria mas de obra desenvolvida no Reino Unido, com uma longa carreira no filme para televisão – é o realizador, por exemplo, da série I, Claudius, de 1976.

Importante será notar que há 19 anos alguém se interessou o suficiente por Turing para fazer um retrato fílmico da sua vida.

Seria fácil partir da vontade de contrastar um filme recente e bem arranjadinho, menos honesto na sua intenção, com uma visão autorizada por um realizador há 19 anos e valorizar esta pelo pioneirismo e pela patine acrescentada. Este pequeno artigo não é uma comparação porque nem sequer conheço o filme recente.

Pensar em Turing e ver um filme de televisão dos anos 90 cria uma aproximação mais honesta. Este tem o tom de um filme que se vê em casa durante a tarde de um domingo de chuva quando ainda se fumava em frente das crianças.

Grande parte dele concentra-se, de um modo afável mas não paternalista, na sua condição de homossexual e na importância da matemática, as cenas referentes à sua adolescência sendo bastante poéticas e inocentes e as cenas que ilustram o seu recrutamento cheias de uma conversa matemática e filosófica felizmente exagerada para as exigências de um filme de televisão. É de louvar.

Paralelamente – e é por aí que o filme começa – a componente policial da história, em torno do roubo que levou ao conhecimento público da sua orientação sexual, tem um peso compreensível num filme para televisão.

Menos habitual é que nele se incluam 2 ou 3 cenas com longos monólogos (menos possível no cinema para crianças ou no Cinema Burberry que hoje se pratica em larga escala) em que se afirma sobretudo a determinação de Turing, o seu amor pela matemática, a necessidade imperiosa da criação de uma máquina que lidasse de modo rápido com os dados necessários à decifração e a sua implacável devoção ao país que depois o castigará por um pormenor da sua vida privada.

Moderno no filme de Wise é a dedicação à exposição da sedução dos estudos de matemática, uma que tem conhecido, no século XXI, um incremento quase pop no culto a Turing e, por exemplo, Kurt Gödel, e na ideia de que não há maneira de dizer, à partida, que problemas são passíveis de serem ou não provados.**

Turing não é apresentado como um grande excêntrico mas como um homem de idade (a trama parte dos anos 50, muito depois da sua contribuição para o esforço de guerra) e usa várias analepses. Este homem de idade não é, como parece ser em The Imitation Game, um homem com extraordinárias desadequações sociais, e o desmazelo – que lhe vinha da adolescência – é parte considerável da sua descrição, que é intensa. Praticamente não há cenas em que Turing não apareça – a roer as unhas e mal vestido.

O filme de Herbert Wise é profundamente simpático para com a figura de Turing e muito íntimo na sua apresentação, quase sem cenas de exteriores, com poucos actores e com uma tonalidade próxima do teatro (Derek Jacobi participou numa produção teatral sobre a vida de Turing onde também o interpretou – a história não é tão desconhecida na Grã-Bretanha quanto o era no resto do mundo até há pouco tempo). Insiste-se, num outro longo e apaixonado monólogo, na extrema necessidade de criar uma máquina (o computador de hoje) que permita lidar rápida e eficientemente com problemas de decifração que poderiam mudar o rumo da guerra.***

Finalmente, a hipótese da sua morte não ter sido causada por suicídio é mais do que aflorada. A figura da mãe tem, para o fim da história, uma importância cada vez mais explícita e é esta que se insurge contra esta improvável hipótese.
Pode ser que o futuro nos reserve a revelação de novos dados sobre a sua morte.

*NYRB, February 5-18, 2015, Vol. LXII, Number 2.
** aconselha-se o seguinte aliciante e longo livro de banda desenhada que usa a vida de Bertrand Russell para nos mostrar uma história da matemática dos séculos XIX e XX: Logicomix, An Epic Search for Truth, de Apostolos Doxiadis e Christos Papadimitriou (onde se fala e desenha longamente sobre Gödel e Wittgenstein, também objectos de discussão e admiração em Breaking the Code).
*** uma interessante discussão que se não aflora no filme (e que, concedamos, seria excessiva à matéria primária em questão) é a da lenta destruição da importância do pensamento matemático alemão e austríaco por parte do opressivo regime anti-judeu nazi que obrigou à fuga, para os Estados Unidos, dos seus nomes mais ilustres e à transferência para este país deste complexo de pensamento.

30 Jun 2015

Ao negro, ao rubro ou às cegas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda e sempre, visualizando um mundo inteligível por camadas. Aí, onde a estética do sublime vive nas orlas extremas. As mais inalcançáveis arriscadas e fugidias. A mais elevada (as esferas mais altas de Nietzsche) e intangível porque volátil, a esfera do utópico sonhado, que preconiza a morte da filosofia porque idealmente se teriam desenrolado todos os nós do conflito pelo entendimento da vida, sentido e fim, e aquela que os filósofos amantes do saber perseguem. Amam-na perseguindo a sua morte. O que é uma curiosa forma de amor. Como noutras em que o apaziguamento traz no final a mudez dos não sentimentos. A morte por se alcançar a inutilidade final. Ou aquela outra dimensão mais subterrânea de onde se desentranham verdades dolorosas, conclusões parciais no limite do suportável, do encarável. O domínio da natureza humana como fundamento de todas as complexidades sem mais responsabilidades a remeter para fora do estritamente humano. O remexer nas perplexidades inerentes e como tal sem solução excepto do ponto de vista do saber interior ao ser. Sem uma lógica ou uma razão física ou metafísica para o desenrolar de questões, para além dos próprios mecanismos do intelecto humano. Se não é o universo a estabelecer as bases para a sua própria interrogação mas as condicionantes humanas, o que sobra é fútil, é um encadeado de elucubrações e devaneios da alma do indivíduo colectivo, inútil e vã como pressuposto universal. Ou o universo se dimensiona por referência ao homem na sua insuficiência, por incapaz de se entender a si mesmo. A filosofia é o que é imperfeito, o que é desconhecido, misterioso. “Só conhecemos o que a si próprio se conhece” como diz Novalis. E descer às profundezas é penoso e atemorizante.

Depois há todo um universo intermédio, à superfície, que é o domínio do pitoresco. O colorido, alegre e paisagístico, feito de formas e elementos naturais, lúdicos, onde se situam os viciados no discurso pelo discurso, e nas palavras pelas palavras de um modo decorativo e hedonista. Como na pintura, o excesso de cores a conduzir para uma progressiva dissolução do sentido. Cinco cores, cinco palavras-chave. Seria o ideal. Nem demais nem de menos. Tudo o resto são as cambiantes de claro-escuro que tornam complexo. Que modelam as formas em volumes mais suaves ou mais acidentados conforme a expressão. As palavras bonitas e os conteúdos frescos, apaixonados feéricos e embriagadores de onde não podemos senão resvalar, como da beira de um penhasco, conduzidos pelo flautista de Hamlin, e cair em desamparo da futilidade ligeira, para o pântano tenebroso das questões profundas. Diria dessa camada do meio, o verdadeiro limbo. A fuga em frente. E das outras camadas, céu e inferno em simultâneo. Quantos infernos tinha Dante? Nove camadas de sofrimento entranhadas nas profundezas da terra.

Mas como nas dualidades externamente estabelecidas como reverso umas das outras, na sua inextricável vivência a duas faces, dos opostos só faz sentido perceber as relações entre eles estabelecidas e desfeitas, a sucessiva deslocação de um ponto de vista para o outro, um olhar cubista que recuando se ilude na mistura de todos eles num mesmo plano. E esse é um exercício retórico. Assumir a validade de, em cada momento, nos resignarmos ou pelo contrário desafiarmos a lógica inalcançável das coisas, ao olhar através de um só desses ângulos parece ser uma imperfeição mais humana e possível. Saltar agilmente de face para face, de camada para camada sem perder contudo de vista a possibilidade das outras. Ou nos perdermos. Mesmo que desse sítio do mundo visível, tudo nos seja apresentado ao negro. Ou ao rubro. De outro modo seria às cegas.

28 Jun 2015

Uma Macaense Uyghur

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]xiste um ditado chinês que, em tradução livre, diz: “não se receie uma vida mal destinada; receie-se antes um nome mal escolhido”. (*)

Pretende este ditado sublinhar a importância que a escolha do nome tem para os chineses, tratando-se de um processo meticuloso e profundo em que são analisados os significados de cada caracter, bem como o sentido, a sonoridade e o número de traços do conjunto todo. É uma operação que reflecte perfeitamente a riqueza da cultura milenar chinesa.

Todavia, é comum por estas bandas a adopção de um nome em inglês para facilitar a interacção diária, já que no nosso ambiente multicultural essa é frequentemente a língua veicular utilizada. Neste contexto, o que até hoje ainda não consegui perceber é por que razão o mesmo cuidado não é tido na escolha desses nomes adoptivos em inglês.

Por cá existem indivíduos com nomes ingleses fantasticamente surreais. Se o caríssimo leitor desconhece esse fenómeno, tenho então a seguinte proposta a fazer: vá ao McDonald’s mais próximo de si e veja os nomes que os funcionários ao balcão trazem no peito. Já vi Zombie, Milk e até Wasabi.
Falo, naturalmente, de forma generalizada. Há também casos interessantes em que o nome em inglês é coerentemente escolhido em função da sonoridade do nome em chinês. Por exemplo, conheço uma rapariga chamada Mak Hoi Lan (para quem não sabe: Mak é apelido e Hoi Lan é nome) que se chama Helen Mak em inglês. O resultado parece-me bastante feliz.

Delicio-me com essas coisas que são para mim de grande interesse pois evidenciam a cultura híbrida a que estamos expostos aqui nesta parte do mundo.

Feita essa introdução, vou agora falar das caricatas situações que enfrento por causa do meu nome. Não o faço por egocentrismo, quando muito para expor o que nós, macaenses, temos de aturar dada a nossa natureza mestiça.

O meu nome – André – foi sempre uma dificuldade para os chineses. Fui criado por várias empregadas chinesas e nenhuma foi capaz de pronunciar o meu nome correctamente. O melhor que se conseguiu foi An-Te-Lé.

Sendo André um nome difícil para os chineses, toda a gente me trata por Ritchie, muito mais fácil por ser inglês (**). Como tal, sempre que qualquer chinês me pergunta pelo nome, digo “Ritchie”. E aqui começa a confusão, pois assumem que Ritchie é um nome de adopção, semelhante a Zombie ou Wasabi.

Para complicar as coisas, na comunicação social em língua chinesa fiquei conhecido pelo nome Lei On Tak, concebido em 2003 quando regressei a Macau. Assim, tudo somado, frequentemente sou identificado como o Mr. Ritchie Lei.

O problema é o trabalho que dá fazer as rectificações quando necessárias, pois tipicamente ficam a olhar para mim com um ar incrédulo. Até já fui contrariado: uma rapariga que, apontando para a face em chinês do meu cartão de visita, insistiu que o meu nome não era como eu dizia que era. Haja paciência.

Entretanto, sou diariamente confrontado com um outro problema que já todos conhecem: a famosa vírgula do BIR. De um momento para o outro, em Macau passei a chamar-me “Xavier Sales Ritchie, André Duarte”.

Aborrece-me o facto de, mesmo depois de séculos de presença portuguesa em Macau, a malta ser incapaz de perceber que nos nossos nomes o apelido principal é o último nome, e não o primeiro.

Passei a ser Mr. Xavier. E o facto de Xavier ser um nome muito difícil para os chineses também não ajuda em nada. “Zeivier”, “Sáfiar”, “Ex-Eivier”, já me chamaram esses nomes todos.

No outro dia recebi a chamada de um desconhecido que iniciou a conversa da pior forma, em inglês: “Hello! Is it Mr. Zei… Errr… Saf… Ahm…”. Tive de o acudir, mas fi-lo em cantonense e com um tom propositadamente seco: “Ouça, eu sou o Mr. Ritchie. Falo chinês. Vamos falar em chinês?”

Pobre coitado… Ora, como poderia ele adivinhar que, com um nome tão complicado, do outro lado da linha encontrava-se afinal um sujeito fisicamente oriental e perfeito falante de cantonense?

Contudo, os meus dramas não se limitam a Macau. Também sofro em Portugal: quantas vezes não me fizeram elogios despropositados, do género “Oh, mas o senhor fala tão bem português, fala português como um português!”

Normalmente ignoro. Mas às vezes não me controlo e respondo torto: “Muito obrigado. O senhor também fala muito bem português. Onde aprendeu a falar tão bem?”. É antipático, eu sei. E as pessoas não têm culpa. Só que a paciência tem limites.

Entretanto, como Ritchie não é um apelido português, em Portugal nem sempre é pronunciado correctamente: já me chamaram de Ricky, Rí-xe ou Rís-ti. Aliás, quantas vezes não tive de soletrar o meu apelido em serviços públicos, bancos ou simples reservas de mesa?

Um dia armei-me em esperto e, ao telefone com um funcionário da Telepizza, identifiquei-me como “André Sales”, sendo este o meu apelido que vem antes do Ritchie. Reacção do outro: “Sales é com um L ou com dois L’s?”. Apeteceu-me dizer um palavrão.

Felizmente, nem tudo no meu nome está mal: pelo menos não tenho nenhuma preposição. A minha mulher, por exemplo, tem o apelido “de Jesus” e é vítima de uma situação espectacularmente pitoresca: por causa da tal vírgula do BIR, em Macau passou a ser Ms. De! E como De (leia-se “dí”) soa a compatriota do interior da China, com as feições que tem devem pensar que é Uyghur!

Isto tudo tem muita piada, mas também não tem: um conterrâneo meu esteve perto de perder um voo porque nos altifalantes fartavam-se de chamar pelo Mr. De e ele, naturalmente, não se apercebeu que era o destinatário da mensagem. Portanto, se o caríssimo leitor tem como apelido “dos Santos” ou “da Silva”, esteja atento e não diga que não avisei: passou a ser Mr. Dos ou Mr. Da.

Enfim… Conheço inúmeras histórias semelhantes, mas fico por aqui e vou fechar o artigo regressando àquele ditado chinês para dizer o seguinte: (1) a minha vida está bem destinada, muito obrigado; e (2) não, apesar de tudo, não acho que o meu nome tenha sido mal escolhido.

Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida.

Em qualquer parte do mundo, até mesmo em Macau, ninguém consegue compreender que laia de gente somos nós.

De resto, acho que nem nós próprios nos compreendemos.

[quote_box_right]Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida[/quote_box_right]

Sorrindo Sempre

No ginásio que frequento há um tirano que tem a mania que tudo o que lá está foi feito para o uso exclusivo dele. No seu universo os outros utentes não existem.

Entra na sauna e, sem o consentimento dos presentes, deita água em grande quantidade para cima das pedras. Mas depois não se aguenta nem um minuto: abandona o recinto, deixando os outros lá dentro a ferver com as altas temperaturas. Eu fervo a dobrar: de calor e de raiva.

Sorrindo sempre, é verdade. Mas no outro dia coloquei um travão: enquanto corria na minha máquina preferida, que tem uma televisão à frente, o dito chega, instala-se na máquina ao lado e decide mudar de canal sem me dizer nada.

Quer dizer, estava eu muito bem a assistir a passagens de modelos do Fashion TV com umas mulheres bestiais e, de repente, tenho pela frente um crocodilo do National Geographic a comer um animal vivo, com sangue a jorrar por todo o lado?

Com muita calma, paro a máquina de corrida, saco o comando da televisão e mudo novamente para o Fashion TV. Mais: tiro as pilhas do comando e meto-as no bolso. Isso tudo sem dirigir um único olhar ou palavra ao tirano. Chupâ ovo.

Retomo tranquilamente o meu exercício. Quando acabo, recoloco as pilhas no comando e, como o tirano ainda corria, mudo para o National Geographic. O crocodilo estava morto e todo aberto, a ser analisado em laboratório. Ele acenou e sorriu para mim (o tirano, não o crocodilo).

Às vezes, viver em Macau é também assim. O conceito da multi-secular amizade abarca essas situações. Não se trata apenas de nos entendermos bem com o próximo. Acima de tudo, temos é de nos desentender bem. E foi assim durante séculos.

Sorrindo sempre.

(*) 唔怕生壞命,最怕改壞名 (ng pa sáng wai meng, choi pa koi wai méng).
(**) Na verdade, não é inglês porque Ritchie deriva de Ricci: o meu antepassado era italiano e veio de Palermo no séc. XIX

26 Jun 2015

Não temer a perda

serhumano[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]inguém me levaria a mal de ser um poucochinho, porque esse é o poucochinho que todos sonhamos talvez ser. Mas acrescentar algo ao curso das coisas revela-se uma tarefa difícil, por vezes morosa, doutras absurda.

Existe uma quase crença na assumpção de que nos definimos pela dor e contra ela. A dor cerceia os territórios, ensina-nos onde podemos ir e que espaços nos estão vedados, interditos. A dor é uma paidéia, um curso inferior que nos constrói como sujeitos, ora tementes ora desafiantes.

É que existem limites para a dor, para a paciência do animal constantemente submetido a uma qualquer tortura, seja ela de ordem física, mental ou social. E, quando esses limites são atingidos, o animal ousa finalmente mostrar os dentes. É o princípio de todas as revoluções.

Para evitarmos a dor muitas vezes nos encolhemos, nos menorizamos, tendemos a desaparecer dos quotidianos, na organização proposta, nas tarefas que nos matam ao matar o tempo. É por termos evitado a dor, na forma de humilhação ou desprezo alheio, que muitos de nós não estão com a pessoa que realmente amaram ou na profissão que realmente as realizaria.

Para ser é preciso, dizem, sofrer. Nunca gostei desta ideia porque entendo que mesmo a experiência da dor, do desconforto, não significa obrigatoriamente sofrimento.

Qualquer mudança é um incêndio e a contemplação das chamas um prazer eufórico. Porque somos humanos, temos uma capacidade acrescida de colorir as nossas sensações e os nossos medos. De modo a realmente fruir e a desenvolver coragem.

Para ser mais, não se pode temer a perda.

24 Jun 2015

Mudança de paradigma

[dropcap type=”2″]É[/dropcap]vulgo dizer-se que uma imagem vale por mil palavras, mas é vulgar porque assim é como julgo ser o caso desta. Por isso mesmo, hoje poupo palavras e coloco o foco neste instantâneo captado no passado domingo de manhã a caminho de Zhuhai. Mas como qualquer pessoa que não passe a vida enclausurado no ar condicionado dos gabinetes ou dos automóveis vegetando em realidades alternativas, podia ter sido em outro dia qualquer…

Para quem há pouco tempo cá está ela pouco dirá, mas para quem cá nasceu ou pelo menos aqui vive há meia dúzia de anos, sabe perfeitamente que uma foto destas há não muito tempo atrás teria de ser captada no sentido Zhuhai – Macau.

Mas o paradigma mudou: a realidade de hoje é que, apesar dos sustos constantes com a segurança alimentar e produtos de consumo na China, muitos cidadãos de Macau não vêem outra alternativa senão atravessarem diariamente a fronteira com os cestos vazios. São cada vez mais e cada vez mais apressados, mesmo quando a Pataca já não vale mais do que o Reiminbi como em dias que já lá vão. A propósito, lembro-me de Shakespeare quando um dia escreveu que “Algo está podre no reino da Dinamarca” ou então estou completamente enganado, esta imagem é uma ficção e a realidade é que vivemos numa cidade virada para os seus habitantes e com eles preocupada. Se assim for, lamento a interpretação deturpada.

Música da Semana

Naturalmente,  “Os Vampiros” de Zeca Afonso. Tenha uma boa semana caro leitor.

(…) “São os mordomos do universo todo
Senhores à força mandadores sem lei
Enchem as tulhas bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei

Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada” (…)

16 Jun 2015

A menina que tinha um olho na nuca

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ra eu um teenager quando um dia, na zona de fumadores do Liceu, encontro um chonto di gente à volta de uma revista, discutindo um assunto com grande entusiasmo.

Tratava-se de uma revista de fofoquices de Hong Kong (*), daquelas que folheamos quando estamos no cabeleireiro. Trazia um artigo impressionante: uma menina que tinha um olho na nuca. Perfeito, simétrico, bem no meio do cabelo. As fotos eram convincentes. E assustadoras.

A malta comentava com grande excitação esse incrível fenómeno. E enquanto uns apontavam as vantagens que essa rapariga teria nos exames escritos por poder copiar o colega de trás, outros contavam histórias de freak shows que tiveram a oportunidade de assistir na Tailândia, cujos pormenores não vou aqui descrever por não ser adequado, e ainda outras histórias incríveis que conheciam, contadas por um amigo. E esse amigo, claro, é sempre um indivíduo que ninguém conhece e ninguém sabe ao certo quem é.

Os meus conhecimentos limitados do corpo humano aliados ao bom senso foram suficientes para me levarem a concluir, prontamente, que aquele artigo não devia ser levado a sério. Um olho na nuca? Naquela revista? I mean, come on…

No entanto, fui imediatamente confrontado pelos presentes que me exigiram, sem demora, argumentos concretos que sustentassem a minha posição. Ora, tinha mais que fazer. Afastei-me e fui à minha vida.

Fast forward para a actual era das redes sociais e o cenário repete-se.

Li algures que, no futuro, havemos de registar os tempos actuais como “antes do Facebook” e “depois do Facebook”. Não sei se será necessariamente assim. Contudo, não deixa de ser um facto que o Facebook, em conjunto com as outras redes sociais, alterou profundamente a forma como vivemos as nossas vidas.

E, sobretudo, a forma como a informação – seja ela útil ou inútil, mas sobretudo a inútil – é partilhada e divulgada.

O Facebook regista actualmente mais de 1.44 mil milhões de utilizadores. O news feed do Facebook é um espaço em constante actualização, a todo o segundo, com todo o tipo de informação, desde a estrondosa notícia do Jorge Jesus no Sporting aos inconsequentes selfies do não-sei-quem na praia com os seus cãezinhos.

Deixemos de lado os selfies do não-sei-quem. Não me incomodam nada e confesso até que me relaxam ao fim do dia quando estou cansado e desligo o cérebro.

O que me preocupa mesmo é as notícias bombásticas que são imediatamente partilhadas e espalhadas pelo mundo fora, pois frequentemente carecem de rigor informativo e, como tal, têm um poder deformativo enorme. Os comentários que conseguem gerar nas redes sociais e os impactos que têm na formação da opinião pública é um fenómeno que não pode ser ignorado.

Por alguma razão as agências noticiosas, também elas presentes nas redes sociais, e logo a seguir os cibernautas, têm a ânsia de divulgar as notícias sem antes verificar a sua veracidade, a credibilidade da fonte, apurar os factos ou simplesmente parar para reflectir um pouco sobre o assunto.

Dessa atitude resultam notícias que são verdadeiramente hilariantes.

O jornal satírico World News Daily Report, por exemplo, publicou um artigo sobre uma suposta entrevista que Ringo Starr deu a um jornal afirmando que o verdadeiro Paul McCartney morreu em 1966. O actual Paul McCartney é um sósia chamado Billy Shears, o qual entretanto se veio a revelar um excelente músico. Apanhei essa notícia no The Mirror, jornal que, achava eu, devia ser mais maduro e ajuizado.

Por sua vez, a cadeia americana KTVU, subsidiária da Fox News, anunciou em primeira mão os nomes dos quatro pilotos do malogrado voo da Asiana Airlines que se despenhou na aterragem em São Francisco: Sum Ting Wong, Wi Tu Lo, Ho Lee Fuk, Bang Ding Ow. Explicação para quem não entendeu a absurdidade da coisa: “Something’s wrong! We’re too low! Holy f***! Bang, ding, ow!”

Anda tudo louco?

Naturalmente, esses são casos extremos em que só se deixa levar pela notícia quem, de facto, é muito obtuso e não tem cura. Por isso, deixemos estar.

Analisemos agora outro tipo de notícia, menos surreal e com potencial para produzir efeitos mais abrasivos. Um exemplo que apanhei agora mesmo em circulação no news feed, vindo da Rede de Informação Universal (RIUS): “Brasil vendeu o jogo para a Alemanha num esquema de corrupção que envolveu milhões”.

Essa captou a minha atenção pois veio na altura certa, coerente com o recente escândalo de corrupção da FIFA. Não sei o que é a RIUS, mas não interessa: tal como aquele nosso amigo que ninguém sabe ao certo quem é e que conta histórias mirabolantes, é irrelevante.

E como nas redes sociais tudo funciona à velocidade da luz, em menos de 24 horas essa notícia já gerou 930 chilreanços no Tweeter, 247 mil likes e shares no Facebook e outros tantos milhares de comentários pelo ciberespaço fora.

Nessas ondas de comentários tudo é válido e, por alguma razão, a discussão tende a escorregar para o campo da irrazoabilidade, onde falsas verdades são ditas com convicção e disparates que, sinceramente, não lembram nem sequer ao palhaço, são abundantes.

Agora vejam: se com a notícia inicial alguém se sentiu lesado e pretende, através de um segundo post, colocar algum rigor à coisa e repôr a verdade, desejo-lhe então muita sorte pois terá pela sua frente uma tarefa árdua e ingrata.

Porque entretanto já ninguém quer saber do conteúdo desse segundo post uma vez que, na sequência do primeiro post em que a notícia foi lançada bombasticamente, milhões de cibernautas já partilharam, comentaram, formaram uma opinião e tomaram uma posição sobre o assunto em discussão. E tudo com base em disparates e falsas verdades que por vezes são até maleficamente e habilmente semeadas no momento certo.

[quote_box_right]Voltando então à história da menina que tinha um olho na nuca: mal sabia eu na altura que, afinal, tinha acabado de viver um cenário que se havia de repetir, persistentemente, ao longo de uma fase particular da minha vida profissional.[/quote_box_right]

E agora o busílis da questão: é apenas assim no ciberespaço? Não. Na realidade, trata-se de um comportamento que não se limita apenas às redes sociais, não fossem os cibernautas (também) pessoas reais de carne e osso.

No nosso pequeno e queridíssimo Macau, assiste-se a essa atitude em todo o lado, nomeadamente no programa da manhã da rádio chinesa, no fórum semanal no Jardim da Areia Preta, nos debates e sessões de consulta pública, ou mesmo naquele órgão oficial onde representantes do Governo são convocados para prestar esclarecimentos a um grupo de distintas personalidades, entre elas um ilustre que interpreta a violência doméstica como modo de aproximação conjugal.

É assim que se forma a opinião pública.

E, posto isso, estamos a chegar ao fim do artigo. É momento de revelar ao caríssimo leitor a verdadeira raison d’être do tema de hoje o qual, mesmo não sendo uma especialidade minha, nem nada que se pareça, insisti em desenvolver: o que acabou de ler foi um desabafo.

Sim. Porque no passado, em diversas ocasiões, o autor desta coluna foi incumbido da tarefa de, em conjunto com a sua equipa de trabalho, dar a cara para o dito segundo post – o tal que todos ignoram pois a discussão na sequência do primeiro post ganhou ímpeto e tomou já um rumo próprio.

Não é nada fácil desviar um rio com uma corrente forte. E cito aqui as sábias palavras de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler: “uma mentira repetida 1000 vezes torna-se verdade”.

Voltando então à história da menina que tinha um olho na nuca: mal sabia eu na altura que, afinal, tinha acabado de viver um cenário que se havia de repetir, persistentemente, ao longo de uma fase particular da minha vida profissional.

O final foi o mesmo: a dada altura afastei-me e fui à minha vida.

Sorrindo Sempre

Quem teve a pachorra de ler o Sorrindo Sempre anterior (edição de 29 de Maio) lembra-se com certeza da bengalada que dei a um funcionário do Fundo de Pensões (FP) a quem atribuí o título de ignóbil e pedi para deixar de pensar com o traseiro.

Para a minha agradável surpresa, no dia em que a coluna foi publicada recebi uma chamada da Presidente do FP, que foi muito simpática comigo e me pediu desculpa pelo sucedido. Explicou-me também por que motivo o FP dá especial atenção ao endereço e ao nome do contribuinte, merecendo por isso um esclarecimento:

1. O FP mantém uma base de dados dos contribuintes e o endereço é uma referência importante na eventualidade de futuras notificações.

2. Rigor no registo do nome do contribuinte é fundamental para evitar que o cheque com o dinheiro do Fundo de Previdência seja emitido com gralhas.

As explicações da senhora Presidente pareceram-me legítimas, ainda que não justifiquem o que para mim continua a ser uma falta do seu funcionário: o facto de ter sido incapaz de levantar aquelas (falsas) questões na minha presença.

No entanto, seria muito mesquinho da minha parte insistir no assunto. E, no fim, até pedi desculpa à Presidente do FP, pois a senhora tem coisas muito mais importantes com que se preocupar no exercício das suas funções do que aturar as tretas que o André Ritchie escreve na sua coluna. Senti-me bastante mal pelo tempo que desperdiçou ao telefone comigo. Muito ng hou yi si.

O Sorrindo Sempre é o meu espaço de desabafo para denunciar com cinismo e alguma maldade as absurdidades do meu dia-a-dia. Não quero, no entanto, transmitir a ideia de que sou uma prima donna que barafusta por tudo e por nada.

Assim sendo, o Sorrindo Sempre desta semana termina então com este esclarecimento e sem uma história bombástica. Hoje mou ah. Paciência. A vida é assim.

Sorrindo Sempre.

(*) Vulgarmente conhecidas por “pat gwa chap chi”.

12 Jun 2015

Eddie Murphy, mestre de capoeira: “Macau foi amor à primeira vista”

[dropcap class=”type1″]S[/dropcap]e lhe falarmos de Edilson Almeida consegue reconhecer? É difícil, até porque até ele tem algumas dificuldades em se reconhecer pelo nome próprio. Pois bem, Edilson Almeida é, nada mais nada menos, do que o Mestre Eddie Murphy, cara muito conhecida de toda a comunidade de Macau.

“É um orgulho, uma alegria quando passo na rua e as pessoas levantam a mão, dizem ‘olá mestre Eddie’, é muito bom”, começa por nos contar o único mestre de capoeira de Macau, Hong Kong e China.

Mesmo lesionado não negou, como estávamos à espera, dar uma entrevista ao HM. De sorriso rasgado, conta-nos um pouco do que é. “Sou um optimista, adoro o que faço, amo minha família, adoro Macau.”

Foi há sete anos que chegou ao território, não à China. Isto, porque vivia em Shenzen há cinco anos. “Acredita que nunca tinha vindo a Macau? Não acredito nisto, mas é verdade, em cinco anos aqui ao lado nunca vim a Macau. Estava cego”, relembra.

A convite para colaborar com uma academia que na altura existia em Macau, o mestre Eddie abraçou o desafio e mal colocou os pés neste território não teve dúvidas: “foi amor à primeira vista”.

“Mal cheguei fiquei apaixonado. Só o facto de ver coisas em Português, os nomes das ruas, os autocarros… não queria acreditar, senti-me em casa”, conta. A verdade é que num abrir e fechar de olhos, o mestre e a sua família criaram raízes neste lado do mundo.

Primeiro passos

[quote_box_right]Foi há sete anos que chegou ao território, não à China. Isto, porque vivia em Shenzen há cinco anos. “Acredita que nunca tinha vindo a Macau? Não acredito nisto, mas é verdade, em cinco anos aqui ao lado nunca vim a Macau. Estava cego”, relembra.[/quote_box_right]

Pouco tempo depois de residir em Macau, a academia em que Eddie trabalhava fechou e o mestre de capoeira temeu o pior. “Tinha um mês para sair de Macau porque tinha ficado sem trabalho, pensei no que iria fazer para arranjar uma solução”, relembra, frisando que foi a ajuda das pessoas que fez com que, sete anos depois, Eddie Murphy seja responsável por uma academia de capoeira, uma empresa de entretenimento, uma escola de dança e de grande parte dos eventos de carnaval e latinos que acontecem no território. “Também é da nossa responsabilidade a organização do carnaval em Hong Kong”, acrescenta.

Na altura, relembra, muita pessoas foram ao encontro do mestre de capoeira e apresentaram sugestões e “muita ajuda” para que o Eddie conseguisse avançar com a sua vida aqui. Por Macau ser um espaço pequeno, com traços de pequena vila, tem este lado positivo.

“Em Macau é possível conhecer toda a gente. Todos sabem quem é quem e se é bom ou mau”, explica, sublinhando que cada um “escolhe com quem quer andar”.

“À minha volta gosto de ter pessoas boas, pessoas que gostam de fazer o bem, pessoas positivas e que se esforçam por estar de sorriso mesmo nos dias maus. Tu tens duas formas de viver a vida, ou de sorriso ou de cara fechada, tu é que escolhes o que queres ser”, partilha.

União é a máxima

facebookNão associar o mestre ao seu trabalho na capoeira é quase impossível. Foi Eddie Murphy que trouxe para China esta espécie de dança que culturas mas, principalmente, que “faz bem à alma”. Das suas aulas fazem parte alunos de todas as nacionalidades e giro é ver as diferenças de comportamentos, reflexos dos diferentes lugares de onde chegam.

“Os chineses são mais tímidos, porque são assim por natureza, o português é mais aberto. Com as crianças chinesas é preciso ir mais devagar, mas depois de se sentirem à vontade funcionam como família”, conta.

E é esta união a base da capoeira e de todos os ensinamentos que o mestre pretende passar a todos aqueles que passam pela sua vida. “Muitas vezes acontece que quem começa a frequentar as aulas tem problemas, tem uma fase menos boa na vida, muitas vezes ligadas com a família. Os meus alunos chineses têm muitas vezes esse problema, uma educação mais rígida, com mais respeito porque é um respeito imposto e não pode ser assim. É importante – e esta é uma das linhas da capoeira – que se perceba que o respeito é merecido e não imposto”, partilha.

Eddie Murphy acredita que Macau está melhor do que há sete anos e é a Taipa a zona que mais lhe enche o coração. “Sou muito ligado aos valores familiares, à minha família de sangue ou à da capoeira, porque é isso que somos, uma família, e a Taipa permite no tempo livre ires passear com a tua família, ir a um parque com as crianças, dar um passeio. Adoro a Taipa”.

É a indústria do Jogo que mais preocupa Eddie Murphy. “É preciso ter algum controlo nos casinos e na construção dos casinos, é preciso dar atenção aos que cá moram e não querem saber dos casinos, olhar para os filhos dos trabalhadores [desses espaços] que muitas vezes estão sem os pais durante a noite”, argumenta.

Um amor para sempre

Não há hesitação nenhuma quando perguntamos ao mestre o que pretende fazer no futuro. “Quero ficar em Macau, já não saio daqui”, diz-nos de sorriso rasgado. “Tenho recebido muito amor aqui, dos meus alunos, dos pais dos meus alunos, de todos aqueles que até não se identificam com o movimento da capoeira mas vão aos encontros e estão connosco”, conta.

Planos para o futuro não faltam. Eddie Murphy, marcado pelo seu espírito de trabalho, levanta um pouco o véu e conta-nos que talvez para o próximo ano Macau receba, pela primeira vez, o Campeonato Mundial de Capoeira, que poderá receber pelo menos cem países.

12 Jun 2015

Oito e 80

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]Mesmo não querendo que na minha coluna deste jornal se fale unicamente da hibridez e multiculturalidade de Macau, a verdade é que, no seguimento da minha última intervenção, acabei por dar continuidade a esse tema.

Não que não tenha tentado fugir dele: ocorreu-me escrever sobre a professora Ana Maria Amaro, recentemente falecida, ainda que numa perspectiva diferente, explorando o facto de se tratar de uma investigadora que se debruçou intensamente sobre Macau, mas que, surpreendentemente, nunca mais aqui voltou desde 1972.

Em 1972 Macau tinha menos de 250 mil habitantes. Não existia ainda nenhuma ligação terrestre entre Macau e a Taipa. Havia hortas no Porto exterior, búfalos na Taipa e kwai chi lous (*) em Coloane. os números de telefone tinham apenas quatro algarismos.

Foi esse o Macau que Ana Maria Amaro vivenciou no momento em que se foi embora há 43 anos atrás para nunca mais voltar. Isso não a impediu, no entanto, de continuar a publicar obras sobre os costumes e as tradições da comunidade macaense.

Não escondo que fiquei algo afectado com essa questão, obrigando-me a reflectir um pouco sobre o assunto. E aparentemente não fui o único: bastará ler com atenção os comentários, ainda que subtis, que algumas personalidades deixaram nos jornais na sequência da sua morte.

Não será necessariamente um problema. o importante é estarmos cientes desse facto, para que na apreciação da sua obra a mesma seja adequadamente enquadrada no tempo. Pois uma coisa é certa: as cidades e as suas gentes são organismos vivos em constante mutação.

Posto isso, fico por aqui e vou mudar de assunto para evitar que me atirem pedras.

[quote_box_right]“Keily, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: somos portugueses, somos campeões na arte do desenrascanço. Qual é o problema?”[/quote_box_right]

Disse no início que iria dar continuidade ao tema da hibridez de Macau. Vamos a isso. Como o caríssimo leitor decerto saberá, durante alguns anos vesti a camisola do Governo e dei a cara para um projecto infra-estrutural bastante controverso. E comi muitas balas pelo caminho, diga-se de passagem. Balas à parte, hoje vamos recordar coisas boas: uma das tarefas que tive de cumprir no exercício das minhas funções foi a de apresentar o projecto junto dos mais novos nas escolas de Macau.

Essas apresentações foram sempre feitas na companhia da Keily, a minha amável assistente da área das relações públicas. Portanto, uma dupla formada por um português-macaense e uma chinesa.

Vou começar por partilhar a minha experiência de uma apresentação numa escola chinesa.

Mal chegamos à porta da escola, está à nossa espera uma funcionária que nos cumprimenta de forma calorosa, exibindo um enorme sorriso.

Somos levados ao gabinete do Director da escola, que nos recebe com a mesma simpatia, embora já de forma mais reservada. Sentamo-nos e tomamos um chá, trocamos os cartões e conversamos protocolarmente.

O Director leva-nos ao anfiteatro, onde está já tudo pronto para a apresentação: computador com o ficheiro Power Point que a Keily fez chegar com antecedência; projector já ligado; mesa no palco com flores e etiquetas onde se lêem os nossos nomes, indicando os respectivos lugares; e alunos, muitos alunos, centenas de alunos. e também professores. Todos já sentadinhos à nossa espera. Batem palmas quando entramos no anfiteatro.

O Director faz um breve discurso. Mais palmas. Passa-me a palavra e faço então a minha apresentação. Chego ao fim e pergunto se alguém tem dúvidas. Levantam-se logo vários braços. Uma a uma, vou respondendo às perguntas, todas elas interessantes. No fim, o Director toma a palavra, agradece a todos e fecha a sessão. Acompanha-nos até à porta da escola. Despedimo-nos cordialmente.

“Keily, correu mesmo bem, não foi? Nunca pensei que os alunos pudessem demonstrar tanto interesse pelo nosso projecto!” disse eu, satisfeito, à minha colega.

“Ritchie, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: mal informámos que vínhamos fazer uma apresentação, os professores agendaram para trabalho de casa que cada aluno preparasse pelo menos três perguntas. Os professores depois analisaram as perguntas, filtraram e escolheram as mais interessantes e menos embaraçosas para nós, as menos kám kái. Antes de cá chegarmos, já estava combinado quem perguntava o quê. Não percebes mesmo nada disso pá…” respondeu-me a Keily, em jeito de troça.

Agora a apresentação numa escola portuguesa.

Chegamos à porta da escola e não está lá ninguém para nos receber. Dirigimo-nos então à secretaria. “Apresentação? Que apresentação? Não sei de nada…”.

Aparece um professor, simpático, que se oferece para tratar do assunto. Leva-nos ao anfiteatro, que está vazio. Não está lá nenhum equipamento montado. Dou uma ajuda na instalação do projector e do computador, que entretanto alguém trouxe.

“Olhe, falta um cabo de ligação ao projector, este aqui não dá.” “Bolas, precisamos de uma extensão, o cabo não chega lá.” Não há stress. Foi tudo resolvido, agora só falta a assistência.

O professor, despachado, vai ao recreio da escola. “Ó vocês aí, vá! e vocês também, esse grupinho, venham cá! Vamos assistir a uma apresentação.” Pronto, já temos assistência. entretanto vieram mais uns professores.

“Posso?”, pergunto ao professor. “sim, força!”. Faço então a minha apresentação. Chego ao fim e pergunto se há questões a levantar.

Silêncio absoluto. Zero. O professor olha para trás, para a esquerda, para a direita, para todos os lados, e o silêncio persiste. Sentiu-se kám kái e, face à situação, é ele que levanta o braço, é ele que faz a pergunta. Respondo à pergunta e voltamos ao silêncio.

Finalmente, um rapaz de óculos, com cara de malandro, faz uma pergunta pertinente, questionando se as receitas das tarifas serão suficientes para cobrir os custos de operação do empreendimento.

Essa deu-me trabalho. Mal acabo de responder, umas meninas da fila de trás desatam a bater palmas, desalmadamente. Não pela excelente resposta que tenho a certeza que dei, fruto de tantos anos de experiência no campo do discurso insípido.As meninas pretendiam, com as palmas, terminar a sessão. E assim foi. Os professores agradeceram, conversámos um pouco, rimo-nos e despedimo-nos. Foram-se todos embora.

A Keily e eu ficámos sozinhos no anfiteatro.

“Ritchie, mas o que foi isso, correu tão mal! Cheguei a pensar que tínhamos de cancelar tudo e marcar uma nova sessão, mas que grande confusão!”, disse-me a Keily, chocada.

“Keily, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: somos portugueses, somos campeões na arte do desenrascanço. Qual é o problema? Tivemos computador, projector, assistência, correu tudo lindamente. e mais: aquele miúdo fez-me uma grande pergunta! Sabes, como achas que os portugueses chegaram aqui há 500 anos atrás? Não percebes mesmo nada disso pá…” respondi à Keily, em jeito de troça.

Macau tem dessas coisas.

Sorrindo Sempre

Com a minha saída da função pública, tive de ir tratar da liquidação da minha conta do Regime de Previdência junto do Fundo de Pensões (FP) a fim de receber o meu pé-de-meia depois de 12 anos de contribuição.

Segundo me explicou ao telefone uma competente funcionária do FP, tinha apenas de preencher um impresso, anexar uma fotocópia do BIR e entregar tudo na sede do FP.

O que ela não me explicou, no entanto, é que no FP iria ser atendido por um funcionário ignóbil. Coitada, como poderia ela adivinhar?

Depois de ter apresentado os tais papéis, e tendo o ilustre funcionário garantido que estava tudo em ordem, ia eu no carro a atravessar a Ponte de Sai Van, a caminho de casa, quando o dito me telefona e pede para eu voltar atrás pois, afinal, encontrou irregularidades no preenchimento do impresso.

Então quais eram as irregularidades? (1) o endereço, segundo aquele especialista, continha um erro ortográfico, pois escrevi “Poplar Court”, quando obviamente deveria ser “Popular Court”; e (2) o acento no meu nome “André” estava torto. Sim, o acento estava torto. Por isso, disse ele, eu tinha de voltar atrás para preencher novamente o impresso.

First things first, vamos apurar os factos: (1) o prédio onde moro chama-se mesmo “Poplar” e não “Popular” como aquele ilustre sugeriu; e (2) o acento… Desculpem, mas nunca tive dificuldades em escrever o meu próprio nome, portanto o acento estava bem. Ponto final.

Senti que o devia arrasar. E assim foi.

Não, não houve palavrões e não levantei a voz. Mas fui agressivo e acutilante no uso das palavras. encarnei novamente o detestável Simon Chan do sketch Maquista Idol do patuá. exemplo: “Não volte a pensar com o traseiro, está bem?” (**)

Enfim, sorrindo sempre…

P.S. – Senhor Presidente do FP, não leve a mal ter contado essa história. Por favor, não encrave o meu processo. Sorria um pouco também.
(*) Malfeitor que rapta crianças.
(**) “Iong kor si fat lam yeah”, expressão que faz sentido em cantonense.

29 Mai 2015