Até já, Joana

[dropcap]A[/dropcap] minha Joana tinha cerca de quinze anos quando morreu. A Joana era uma gata. Minto. Era “a” gata. Um bicho único. Porventura, e chegado apenas à segunda linha desta crónica, exagero. A minha mãe, que não se cansa de repetir alguns ditados capazes de sintetizar a vida e as suas experiências num conjunto bem medido de palavras, seria lesta a dizer “não há zorra a quem lhe pareça os filhos feios”. Para quem não sabe, zorra é uma raposa velha e matreira. Ao contrário de nós, citadinos, a malta do campo aquilatava a beleza dos animais pelo préstimo. A raposa, típica assaltante de galinheiros, não granjeava a simpatia – estética ou outra – dos donos das galinhas.

A verdade é que, embora goste muito dos dois gatos que neste momento me permitem morar com eles, a Joana era especial. O Rim e o Croquete são fantásticos. Tão diferentes um do outro como dois irmãos e capazes de em conjunto exprimir inteiramente a paleta dos comportamentos felinos. Mas a comparação é injusta, Rim e Croquete são dois magníficos exemplares da espécie Felis catus. A Joana era algo mais, estava mais próxima do humano do que dos gatos. Como diria a minha mãe, do alto da sua proverbial sapiência, “só lhe faltava falar.”

A Joana teve uma única ninhada de gatos. Gata de apartamento, não saía de casa. O que não impediu um gato Cardinali de entrar pela janela da cozinha (ainda não sabemos como) e de nos trocar a visita de médico por três gatinhos. Há vinte anos, eu tinha o sono muito mais pesado do que agora. A Joana (ainda não sabemos porquê) decidiu parir em cima de mim. Eu estava a dormir e só acordei na terceira e última prenda.

E quando acordei, encharcado de líquido amniótico, imaginei por momentos que com 24 anos tinha feito o meu primeiro xixi na cama. Passadas as formalidades de lamber copiosamente os filhotes e de comer a placenta (a Joana, note-se), decidi instalar mãe e filhos numa caixa de cartão ao lado da cama. A Joana, despeitada, passava o dia a levar os gatos pelo cachaço da caixa para a cama. Eu passava o dia a fazer o movimento inverso. Ela, que sempre dormira comigo, não percebia: renegas os miúdos?

Quando o Guilherme nasceu (este sim, meu) tive algum receio. É comum falar-se da ciumeira dos animais de estimação em geral e dos gatos em particular. A Joana não ia para nova. “You can’t teach an old dog new tricks”, pensava. Para minha surpresa, a Joana adoptou o Gui. Velava-lhe o sono e avisava-me quando ele acordava. Zangava-se comigo quando eu me zangava com ele. Mordia-me se lhe falava mais alto (também me mordia se cantava, mas isso compreendo muito melhor).

A Joana ainda passou por três mastectomias (as vantagens e desvantagens de ter oito mamas). São muitos meses com uma espécie de copo de Dry Martini à volta do pescoço. Felizmente para ela, o óbice de ver mais longe do que o presente estava do meu lado. Para a Joana, o incómodo da situação resumia-se às visitas ao veterinário. Não tinha – exceptuando os derradeiros dias – dores. Apesar de muito humana, não lograva compreender a inelutabilidade do futuro. Os dias da Joana eram os dias de qualquer gato: dezoito horas de sono, repartidas entre o sofá e um vaso desabitado na varanda e meia dúzia de refeições diárias.

O papa Francisco esclareceu-nos: um céu sem cães não é propriamente um céu desejável. Ainda não se pronunciou acerca dos gatos. A despeito disso, estou confiante de que, em havendo um quintal supra-terreno, a Joana lá esteja a desperdiçar tempo. Espero que ainda me conheça à chegada. Até já, Joana.

25 Jan 2019

“Jack, o Estripador” chinês foi executado

[dropcap]O[/dropcap] assassino em série responsável pela morte de 11 mulheres e raparigas entre 1988 e 2002, Gao Chengyong, foi executado depois de ser condenado à morte em Março do ano passado.

Como escreve a BBC, Chengyong seguia as suas vítimas até casa antes de roubá-las, violá-las e matá-las, cortando-lhes a garganta e mutilando os corpos. Por seguir este modus operandi, a imprensa chinesa começou a apelidá-lo de “Jack, o Estripador”, nome pelo qual foi conhecido o assassino em série que aterrorizou Londres durante a Era Vitoriana, no final do século XIX.

Casado e com dois filhos, o homem de 53 anos foi detido pelas autoridades em 2016 na sua mercearia na cidade de Baiyin, província de Gansu, depois do seu ADN ter sido identificado nos locais dos crimes.

O primeiro assassinato terá decorrido em Maio de 1988, quando uma mulher de 23 anos foi encontrada morta em Baiyin com 26 facadas no corpo. Seguiram-se outros homicídios de características semelhantes, tanto na forma de matar como no perfil das vítimas, raparigas novas, que vestiam vermelho quando foram mortas. A mais nova tinha oito anos.

Segundo os relatos na imprensa chinesa, as notícias sobre os assassinatos terão causado uma onda de pânico em Baiyin, levando a que muitas mulheres deixassem de sair de casa sozinhas.

4 Jan 2019

El duende

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]xperimentei no meu quase afogamento da semana transacta um estado prostrador de isolamento e de separação, instrumentos com que a morte pode actuar. Afinal, morre-se em comunhão ou contra ela: até a morte tem estas duas faces.

Levei demasiado tempo a combater contra a água sem me lembrar de que a água nos sustém. A minha consciência estava dividida. Naquele momento, seria uma morte macaca por causa das sensações despoletadas que acrescentariam agonia e desespero aos últimos instantes, ou melhor: um estado de orfandade.

Seria o contrário de morrer, por exemplo, numa trincheira, ao serviço de uma causa redentora, o que nos faz superar o medo e a eclosão da iminência, porque na verdade estamos fora de nós, envolvidos em algo que nos ultrapassa: aí «o corpo – como bem descreveu Ruy Belo – entra por engano morte»; ou de morrer mergulhado – a linguagem é tramada – num sentimento de unicidade, como o rio que penetra no mar, numa reminiscência que o exalta. Julgo ser disto que falam os místicos quando mencionam a importância da palavra Deus ser a última palavra. Julgo até que nomear Deus é outra forma de designar uma experiência que se localiza além das palavras e nos devolve a um estado de não-dualidade.

Só que esta experiência é concreta, não tem nada de “metafísica”.

A este sentimento de unicidade – como muita gente – já o experimentei. Algumas vezes nas aulas, ou numa por outra palestra, quando engreno na palavra e solta-se um fio discursivo que se conduz a si mesmo, num fluxo que ultrapassa as minhas capacidades expressivas. Aquela limpeza de raciocínio não é pauta que me pertença. Não me é habitual afluírem as palavras com o recorte, a nitidez, de quem lê um teletipo invisível, interior. Sou mais trapalhão, menos ordenado, menos inteligível. Contudo, nesse transe que me ocorre sulcar há um momento em que sou, à vez, actor, espectador e encenador, na medida em que observo os efeitos que a minha emprestada eloquência – num tempo dilatado, que não é o dos relógios – produz nos alunos.

Quando sou transportado por esta inominada energia verbal, embora não seja propriamente o ‘autor’ do texto, controlo a cadência rítmica, a respiração das frases, a melodia. Os alunos ou a plateia reagem consoante as virtualidades do instrumento cognitivo, a sua capacidade de escuta, mas claramente naquele momento somos um, como num cardume ou orquestra – enovelados na espécie de inteligência não circunscrita que nos abarca. O mais surpreendente é que ao mesmo tempo que as palavras me conduzem me sinto um ponto atento aos meandros, às minudências da enunciação – não separado da experiência mas numa dobra da mesma.

Inesperada aptidão e talvez similar à que Pere Gimferrer atribui ao poeta: ver o acto de ver, dobra na qual a consciência se reconhece a si mesma e as palavras se conciliam com o mundo que designam – em confluência.

Será esta a experiência do self-remembering a que aludem certos mestres budistas? Sinto que aquele fluxo discursivo se resgata ali, e a si mesmo, do esquecimento, expondo a sua face inteira, a sua amplitude, e que ressoa em mim uma maravilhosa não-identidade; a qual me consente encarnar aquela presença a si-mesmo, sem me fundir nela.

O que me surpreende nesta experiência não é tanto o fluido encadeamento dos conceitos como a sua liquidificação, a sensação de experimentar um pensamento pensante que transborda largamente a represa do pensamento pensado e se apresenta como a condição de possibilidade que emerge após o desaparecimento do sujeito que, paradoxalmente, incubou e expandiu.

Será raro esse estado de não-dualidade.

Nunca ouvi nenhum professor falar desta ocorrência e que sei comum ao que experimentam alguns actores durante a actuação. É como um despertar dentro da palavra e uma navegação no seu leito: basta seguir o ponto-da-vela, prenhe por uma lucidez diáfana.

E nesse estado tudo parece a um tempo simples e novo, como a resposta que o bailarino Nijinsky deu à senhora que no bar do teatro lhe perguntou:

«como é que faz?
perdão?
a maior parte das pessoas quando salta no ar vem imediatamente para baixo…
porque hão-de vir logo para baixo… – replicou Nijinsky – demorem-se no ar um bocadinho, antes de descerem…».

Agora leio no último e maravilhoso livro do John Berger, Confabulações, este naco sobre El Duende:

«Os artistas de flamenco falam muitas vezes de el duende. O duende é uma qualidade, uma ressonância que torna uma actuação inesquecível. Ocorre quando um artista é possuído, habitado por uma força ou um conjunto de compulsões vindas do exterior de si mesmo. O duende é um fantasma do passado e é inesquecível porque visita o presente para se dirigir ao futuro.

No ano de 1933, o espanhol Garcia Lorca proferiu uma palestra em Buenos Aires relativa à natureza do el duende. (…) “todas as artes”, declarou ele na sua palestra, “são capazes de duende, mas onde ele naturalmente encontra mais espaço é na música, na dança e na poesia declamada, uma vez que elas necessitam de um corpo vivo que as interprete, porque são formas que nascem e morrem de um modo perpétuo e elevam os seus contornos sobre um presente exacto. El duende actua sobre o corpo da bailarina como o vento sobre a areia”»

um mundo em estado de dador: imagens à procura de um relator, pensamentos que buscam o seu pensador, ritmos que procuram o seu canal (as configurações do duende) e calha-nos ser o transporte para o tempo dessas ”doações” mas só o corpo as intercepta e traduz.

Isso nota-se muito em quem recita: há quem só dê o conteúdo, aí captamos com a inteligência, e quem consiga o regresso do poema a um estado pré-verbal, que a performance do corpo, daquela voz, naquela expressividade, volta a fazer nascer.

Aí emocionamo-nos e o contacto com o recitador levanta o vento sobre a areia: então “vemos” o que ouvimos.

20 Set 2018

Justiça | Homem que incendiou karaoke condenado à morte

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]responsável pelo homicídio de 18 pessoas, após incendiar um bar de karaoke, em Abril passado, na província de Guangdong, no sul da China, foi condenado à morte, noticiou ontem a agência oficial chinesa Xinhua. Liu Chunlu foi julgado pelo tribunal Popular Intermédio de Qingyuan, localidade onde ocorreu o crime.

O réu confessou que iniciou o fogo por vingança, após lhe ter sido recusada uma sala privada nas instalações. Na mesma noite, uma reunião de negócios no bar terá corrido mal, após este ter sido interrompido por outro cliente. Liu decidiu então extrair óleo da sua moto e pegar fogo às instalações.

O incêndio causou a morte por asfixia de 18 pessoas e feriu quatro. Liu foi detido na manhã seguinte pela polícia.

A China tem registado vários incidentes do género, normalmente ligados a pessoas com problemas psicológicos ou ressentimentos com vizinhos ou a sociedade em geral. Em Abril passado, um homem armado com uma faca matou sete estudantes e feriu 19, quando os jovens regressavam a casa, no norte da China. Em Fevereiro, um homem matou uma mulher e feriu 12 pessoas num centro comercial em Pequim, também num ataque com faca.

13 Set 2018

Crime | Homem condenado à morte por ter assassinado e congelado a mulher

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m tribunal em Xangai condenou ontem à morte um homem que matou a sua mulher e manteve o corpo num congelador durante três meses. Zhu Xiaodong, chinês de 31 anos, foi considerado culpado de estrangular a sua mulher em 2016, após uma discussão. O homem envolveu o corpo da vítima num cobertor e colocou-o num congelador na sacada de sua casa, noticiam os ‘media’ locais chineses. Nos três meses seguintes, Zhu usou o dinheiro da mulher para pagar viagens e quartos de hotel que partilhou com outra mulher. Para esconder a morte da mulher, o homem fez-se passar por ela nas redes sociais, mas acabou por se entregar às autoridades pouco antes da festa de aniversário do seu sogro, onde a sua esposa era esperada.

24 Ago 2018

Índia | Violadores de rapariga de 8 anos condenados a pena de morte

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m tribunal indiano condenou ontem à morte dois homens de 20 e 24 anos pela violação de uma rapariga de 8 anos, que suscitou emoção e manifestações de fúria no país. A sentença é uma das primeiras a ser pronunciada na sequência de uma nova lei, que permite acelerar os procedimentos judiciários e a pena de morte para a violação de crianças. Na altura dos factos, há dois meses, multidões de manifestantes desfilaram aos gritos de “morte aos violadores”, após a agressão da rapariga, que continua hospitalizada em estado crítico. Os réus esperaram-na frente à sua escola em Mandsaur, no Estado de Madhya Pradesh (centro), onde o pai deveria ir buscá-la. Levaram-na para um local isolado, violaram-na e abandonaram-na. A rapariga apenas está viva porque foi levada de urgência ao hospital por pessoas que a encontraram. Na sequência de protestos acerca de casos anteriores, a Índia tornou a violação de crianças até aos oito anos punível com a pena de morte.

22 Ago 2018

Morreu Joël Robuchon, o ‘chef’ com mais estrelas Michelin

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]francês Joël Robuchon, o ‘chef’ com mais estrelas do guia Michelin no mundo, morreu ontem em Genebra, aos 73 anos, vítima de cancro, anunciaram ontem os serviços de assessoria do cozinheiro. Robuchon, que contava com 32 estrelas Michelin, tinha sido operado no ano passado a um tumor no pâncreas.
O Guia Michelin de 2014 deu a classificação máxima ao “Robuchon ao Dôme” com a assinatura do chefe francês.
Nascido em 1945 em Poitiers (no oeste de França), Robuchon recebeu várias distinções ao longo da sua carreira, como o título de melhor cozinheiro do século por Gaul & Millau, em 1990. “O maior profissional que a cozinha francesa já teve. Um exemplo para as futuras gerações de ‘chefs'”, escreveu o chefe de cozinha do Palácio do Eliseu, Guillaume Gómez, na plataforma de microblogues Twitter.
Aos 50 anos, depois de ver o seu restaurante “Joël Robuchon” ter sido nomeado como o melhor do mundo pelo International Herald Tribune, o ‘chef’ abandonou a cozinha do seu restaurante para se dedicar à transmissão de conhecimentos, participando em vários programas de televisão.
A sua intenção de tornar a cozinha mais acessível ao grande público foi alcançada através de programas como “Bon Appétit Bien Sûr”, em 2000, em que apresentava receitas simples e baratas todas as semanas, ou através de “Planète Gourmande”, a partir de 2011.
As suas viagens pelo Japão e pelos bares de tapas em Espanha inspiraram-no para a criação de um novo conceito de restaurante, com um ambiente mais dinâmico e jovial, mas oferecendo produtos de grande qualidade, algo que se viria a materializar no “L’Atelier”, presente em vários países

7 Ago 2018

Pontapés na bicicleta

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] orreu o Manel [Reis] (1947-2018), inventor sem registo de patente, senhor da liberdade. Vem dali vento, voo, escorre dali maré, descubro. Noite rimará doravante com cidade, conta sílabas e descobre o gosto, o gesto. Senta para ver, comenta, desdobra o horizonte, que não será nunca engomado, e colha o fruto por haver, a surpresa não pode ser nódoa, siga a elite construindo farol com medo da solidão, a querer um cheiro, antes do perfume. Sou de nenhures e ainda assim me custa vê-lo a atear fogos despropositados e tristes na louca pradaria de trufa da opinião a pedir mais e sempre mais ardências, despontando deslugar deslassado, carne mole de não lugar, coisa que não se pisa a não ser pelo dedo e olho, que ao mesmo tempo esfarela as palavras a fingir que não agridem, mas que depois risca a giz no ecrã o lugar que marca identidade e tribo como castelo de onde partir a partir, além de louças onde comer, as canelas que fazem o andar. Não entendo nem uns nem outros, que se fecham no arremessar dizeres fingindo que pensam, granito feito palavra. Agora que o intelectual se tornou insulto, a «ideia» virou pedra de calçada. Quanto mais escrevo, melhor percebo que despertenço, que falhei no modo de ser grupo, que logo me disperso indo e vindo, maré a compor praia em noite fria. Nem da minha tribo creio que sou. Ponto. (E ao nada empresto a realidade.) Posso ser, apenas, brilhando, ou morando baço? Posso, em querendo. Os estilhaços do gozo de ir indo e acendendo hão-de atingir alguém, dos quietos dos moribundos, dos apagados. Foi de sem querer. O Manel alargou apenas as possibilidades. Sem desenhar fronteiras, sem ferir. Dando os bons dias, acolhendo as boas noites. Só porque sim. Entenda quem possa. Pare de explicar quem o respeite.

 

Bica do Sapato, Lisboa, 2 Abril

De tão bons intérpretes da vida, alguns lutos não param a festa. Estava cinza o rio, gerundiando em rima com o céu. Contudo, diferença se fez a maré de amigos convocados para assistir de pé à Inês [Meneses] brilhar enquanto explicava de que modo podem ser os «Amores (Im)Possíveis»: pela palavra, esticada ao além, por gozo e alegria. «Ela lembrou-lhe que o amor é fogo que arde sem se ver, e ele deu-lhe uns óculos.» As frases-projéctil parecem-me isso mesmo, óculos que nos fazem ver as ardências das aproximações e afastamentos que, em cada momento, nos definem. Vemos mais longe, também com a lente aberta do sorriso que se solta destas tiradas, colhidas no seu habitat natural, o facebook, de modo a tornarem-se objecto. Para o malabarismo de palavras e ideias, a Elisabete [Gomes] criou um palco ao baixo, de apenas duas cores e suas variantes, plantando ênfases e aumentando corpo de letra, respondendo com movimento à dinâmica das ilustrações-metáfora do Tiago Galo, figuras que nascem de massas de cor em jogos de ternura e confronto. Ainda por cima, ergueu as mãos à dimensão de personagens, das que dançam. Não me canso de folhear o livrinho, que cresce muito para além da sua dimensão, de tanta subtileza que esconde. Uma frescura.

 

São Luiz, Lisboa, 3 Abril

Para celebrar os 30 anos da Cotovia, a Fernanda [Mira Barros] organizou ciclo de conversas, no vizinho jardim de inverno onde as únicas plantas são pessoas. Calhou a de hoje tratar da sobrevivência das pequenas editoras. Serviu logo o pretexto para reencontrar o Vasco [Santos], da Fenda, que há muito não nos encontrávamos. Ficou por matar a saudade, pois a ocasião não pedia fado. Apesar do competente esforço da Mariana Oliveira, não aconteceu novidade ou conversa, com a Adriana C. Oliveira, da Flop, e o António Guerreiro, cronista do Público. De tão simples, o assunto fez-se complicado: são poucos os que lêem, menos ainda os que compram. A Flop usa a angariação de fundos para a «altíssima literatura» edita. A Fenda aconselhou o assalto aos bancos, mas não creio que o pratique. O resto foi o habitual negrume analítico do António Guerreiro expondo o dilúvio de lixo que enche o mercado. Não há saída, só esforço. Cansa-me que nos deixemos aprisionar pelas minúcias das finanças, sem nos concentrarmos na recorrente ausência de estratégias e colaborações.

Sem querer, o dia foi salvo pelo golo de Ronaldo na baliza de Buffon: sem desistir da jogada, vai à linha de fundo recuperar uma bola que parecia perdida, faz o passe e logo corre para a receber no lugar onde ludibria os defesas e vence a gravidade aos 2,40 metros para marcar com pontapé de bicicleta digno de um bailado. E o estádio da Juventus, rendido, aplaude-o. De mão no peito, o enorme jogador agradece. A Cotovia, em 30 anos, fez elegantíssimo trabalho de edição dos clássicos gregos onde se celebram heróis.

 

Horta Seca, Lisboa, 6 Abril

A chuva pesa no hoje, encerra-o em si, não abre o espaço à fruição, oferece tristezas líquidas, incómodos, restrições. Cá dentro, brilham singulares fulgores. Como bom Caleidoscópio (ilustração a propósito nas redondezas), um ligeiro movimento muda cores e perspectivas, sugere formas, outras leituras. Momento e movimento. O próprio conceito da exposição evoluiu e se deixou encaixar no demais que fazemos, nas pressas e adiamentos. O João [Fazenda], parceiro de tantas andanças, abre rasgos nas paredes como há muito não fazia. Traz uma pasta negra e pesada, como o dia, mas mal se abre muda o mundo, com perfumes e fauna e paisagens e corpos e flora e começos de história e ritmo e nada, tão só o resultado dos gestos sobre os materiais. Por um triz não nos atrasámos, de tanto e saboroso tempo gasto na escolha e encenação dos originais. Urbanita que é, muita atenção espraia pelas ruas, pelos mercados das cores que se juntam às vozes, pelos jardins onde os corpos se confundem com as plantas. Mas os interiores são palcos portáteis, uma cena banal só pelo prazer do traço, ou composição com outra densidade retratando alguém que esculpe. Gosto de imaginar este desenhador incansável a desenhar o chão que pisa, sem rectas, movediço e inconstante, somente feito de cruzamentos, de rotundas, de encruzilhadas, de entroncamentos, enfim, de multiplicadores de possibilidades. O João desenhou-se maestro de visões, condutor de olhares, manipulador de camas de gato, domador de espelhos e prismas. Mas o tema da exposição acontece ser o estilo: ao figurativo, a cor e desenhado com a cor ou a preto e branco, junta-se o abstrato em pastel, em grattage, a lápis de cor, a pincel. Na sua gramática, o vaivém entre linha fina e traço grosso ganha aqui a vantagem dos que correm mais rápido. Manchas, nuvens, incisões, traços, formas soltas que ocupam o espírito dos que se atrevem a olhar, a alinhar em confundir-se com paisagem, em ser paisagem. Parece que oiço na pele o discorrer do papel, o absorver da tinta de tão sensorial se faz o conjunto, a escolha das cores, a organização das linhas. Nas suas composições, o João costuma exercitar uma elegância explosiva, um conforto que nos atrai e pede para ficar, solar. Nalgumas destas indefinidas deixa entrar diferente energia, desequilíbrios de plástica bruteza, plúmbeas. Lá fora parou de chover.

 

18 Abr 2018

Activista e advogado chinês morre em circunstâncias misteriosas

[dropcap style≠‘circle’]U[/dropcap]m importante advogado e activista chinês para os direitos humanos, Li Baiguang, morreu no Domingo num hospital militar na China na sequência de condições “misteriosas”, disse o presidente de uma associação que pediu a responsabilização do regime.

Li Baiguang, que representou agricultores e pastores cristãos, morreu poucas horas depois de dar entrada num hospital militar na província oriental de Jiangsu.

Através de um comunicado, Bob Fu, um activista religioso e presidente da associação não-governamental China Aid, apontou que “o regime chinês deve ser responsabilizado” pela súbita e “misteriosa” morte de Li.

“O hospital alegou que ele tinha um problema no fígado e que sangrou até à morte, mas Li estava saudável”, disse Fu, que acusou a China de ter “um histórico de negligenciar cuidados médicos a activistas dos direitos humanos até à sua morte ou de declarar pessoas anteriormente saudáveis como mortas.

Segundo a agência noticiosa AP, um funcionário do departamento de comunicação do hospital disse não ter ouvido do caso de Li Baiguang. “Não sei de quem se trata”, disse o funcionário, de apelido Yang, que acrescentou que a morte e as causas de morte são “assuntos privados”.

 

Teoria da incerteza

Devido ao seu trabalho e à defesa de pastores cristãos, Li recebeu várias lesões após ter sido, alegadamente, atacado por agentes de segurança à paisana em Outubro de 2017.

“Não sabemos exatamente se estas lesões contribuíram para o declínio da sua saúde, mas enquanto membro da convenção das Nações Unidas contra a tortura, o Governo chinês deve conduzir uma investigação imediata e imparcial para determinar se estes ferimentos determinaram a morte” de Li, disse William Nee, um investigador da Amnistia Internacional.

“O Governo tem a obrigação de assegurar que os advogados conseguem realizar os seus deveres profissionais sem medo de intimidação ou de interferência, e sem serem identificados com os seus clientes ou causas”, acrescentou Nee.

Em 2008, como resultado do trabalho na luta para a liberdade religiosa, Li Baiguang foi distinguido pela Fundação Nacional para a Democracia dos Estados Unidos.

28 Fev 2018

A última morada

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]u não quis dizer nada, mas achei a cova pequena. Tal como percebemos, a olho, que o espaço entre dois carros não vai ser suficiente para conseguirmos estacionar, a cova, assim que me acerquei dela, pareceu-me estreita para receber o caixão do avô Malaquias. Mas não disse nada. Afinal, tenho a certeza de que não é o primeiro buraco que os coveiros abrem, e não me apetecia de todo encetar conversa sobre um assunto tão melindroso quanto este e poder estar equivocado.

Enquanto o padre dizia as coisas que sói dizer-se nestas ocasiões, eu fazia contas de cabeça. O avô Malaquias tinha à vontade mais de metro e setenta. Um palmo aberto da minha mão tem cerca de vinte centímetros. Tendo em conta de que o caixão não pode ser exactamente do tamanho da criatura que recebe, e dando pelo menos quinze centímetros de desconto para a parte dianteira e para a traseira, cheguei à conclusão que a cova, no mínimo, teria de medir dois metros e dez. Ou, em contas de mão, dez palmos e meio. E por mais que me esforçasse em ver ali dez palmos bem medidos, ficava sempre aquém.

O pouco interesse que poderia ter pelas palavras do padre não sobreviveu a curiosidade que tinha em ver o avô Malaquias, esticadinho e sossegado como nunca o fora em vida, descer para dentro daquela cova sem precisar de flectir os joelhos. As restantes pessoas alheavam-se como podiam: uns compilavam listas de supermercado imaginárias, outros pensavam em como iriam chegar ao final do mês, outros ainda passavam em revista as resoluções de ano novo que haviam sido tão lestamente adoptadas como abandonadas. Ninguém, num funeral, quer estar atento ao que se passa no funeral. A convivência com a morte no outro não é salutar. A não ser por cauterização afectiva decorrente da profissão que se escolheu, a caixa-de-ressonância que é o humano não lida confortavelmente com a presença da morte.

Mal começaram a baixá-lo disse: “não vai caber”. O tio João, normalmente reservado, não se coibiu em corrigir os coveiros: “rapazes, isso vai muito torto”. E ia. Como de facto o caixão era ligeiramente maior do que a cova e não cabia na horizontal, os coveiros (na minha cabeça subitamente tão experientes a abrir buracos como a enchê-los de forma pouco ortodoxa) baixavam a cabeça do avô Malaquias primeiro, fazendo fé de que na diagonal aquele tetris inusitado encontrasse uma solução elegante. O tio João, embora ciente das dificuldades encontradas, estava pouco convencido da bondade da manobra. “Vão dar cabo da cabeça ao homem”, dizia, “pelo menos orientem os pés para baixo”, e os coveiros, ainda assim atentos à civilidade das observações do tio João, lá se esforçaram por inverter a posição do caixão, e o avô Malaquias lá entrou de pés para a cova.

Mesmo assim, e porque a geometria não se compadece do esforço dos homens, o caixão, apesar de inclinado – uma posição que me parecia assaz desconfortável para o tempo que o avô Malaquias ia passar naquele buraco – teimava em não caber totalmente. Uma pequena parte dele ficava de fora, malgrado o esforço dos coveiros em empurrá-lo para baixo. “Não é muito”, dizia um dos presentes; “mas não pode ficar assim”, ripostava outro. “Se cavarem um bocadinho mais no fundo, já não fica com nada de fora”, aconselhava um rapaz, visivelmente orgulhoso pela simplicidade e economia de esforço com as quais pretendia resolver o problema.

Quando voltaram, os coveiros vinham com marretas. À vez, como os trabalhadores dos caminhos-de-ferro enfiando tachas no solo, batiam com as marretas no caixão. “Vão parti-lo”, receava uma velhota. “Eles têm que resolver isto”, confidenciava o meu pai ao meu tio. Aos poucos, a terra cedia e o caixão, às sacudidelas, ia desaparecendo na cova. O tio João, à saída do cemitério, confidenciava-me, visivelmente perturbado: “não devia ter insistido em que o virassem”.

21 Fev 2018

Morreu a vocalista da banda The Cranberries

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] vocalista da banda irlandesa The Cranberries, Dolores O’Riordan, morreu ontem, “subitamente”, em Londres, aos 46 anos, anunciou o seu agente.

“A vocalista da banda The Cranberries estava em Londres para uma curta sessão de gravação”, lê-se num comunicado da agência Lindsey Holmes Publicity, citado pela AFP.

Formada em 1989, a banda de ‘pop/rock’ tornou-se mundialmente conhecida na década de 1990, com o álbum “Everybody Else Is Doing It, So Why Can’t We?”.

“Something Else” é o mais recente álbum da banda, editado em Abril do ano passado, que inclui três novos temas e no qual revisitou alguns dos seus sucessos, acompanhada pela Orquesta de Câmara Irlandesa.

A banda actuou em Portugal em 2009, no Campo Pequeno, em Lisboa, e no ano passado cancelou a sua atuação em Cantanhede, na Beira Litoral, no âmbito da Expofacic.

No comunicado emitido, a agência afirma que “a família está devastada e pediu para que se respeite a privacidade deste momento difícil”.

The Cranberries, que protagonizaram êxitos como “Zombie”, “Dreams” ou “Linger”, venderam em todo o mundo mais de 40 milhões de discos, noticia a Efe.

A banda irlandesa tinha-se dissolvido em 2002, e voltou a reunir-se em 2009, realizando então uma digressão mundial, que passou por Portugal. Em 2012, editou o álbum “Roses”.

Em Maio do ano passado, a banda iniciou uma digressão europeia, tendo entretanto cancelado algumas actuações, devido a problemas de saúde da vocalista.

Dolores O’Riordan nasceu em Limerick, no sudoeste da República da Irlanda. Durante os anos de interregno da banda, editou dois álbuns a solo, “Are You Listening?” (2007) e “No Baggage” (2009).

17 Jan 2018

A última garrafa

[dropcap style≠‘circle’]R[/dropcap]AUL: Quer então dizer que para morrer com a vossa ajuda, tenho de provar que não querer viver é: 1º uma doença; 2º uma doença terminal; e 3º de insustentável sofrimento?

 (sentando-se de novo)

 DOUTOR: Isso mesmo! Não se pode chegar aqui e dizer que não se gosta de viver e, pronto, passa-se imediatamente a ajudar a morrer. Não sei se está a ver o alcance da coisa? Tínhamos bichas de adolescentes com corações despedaçados, à porta, todos os dias; donas de casa a quem os maridos não prestam atenção; mulheres e homens enganados pelos conjugues. Enfim, está a ver! Era um sem fim de gente a aparecer aqui, para ajudarmo-los a morrer.

 RAUL: Senhor doutor, compreendo perfeitamente o que me está a dizer. Mas o senhor é que não está compreender aquilo que lhe tenho vindo a explicar. Eu não tenho uma causa para querer morrer, senão não querer estar vivo. Mais nada. Estar vivo é horrível. Não se trata de uma consequência, mas sim de uma causa. Nada na minha vida é razão para o suicídio. Antes pelo contrário. Não tenho coração despedaçado, não tenho conjugue que me engane, nem sequer rejeições sexuais, para além do que é normal na existência humana, e nem sequer quaisquer problemas com a profissão que exerço ou onde a exerço. O meu problema é com a vida em geral, não com as suas particularidades. Por favor, não tome aquilo que lhe digo de ânimo leve. Julgo que fiz mal em vir aqui.

 (levanta-se e dirige-se para a porta)

 DOUTOR: Não se trata disso, homem. (também se levantando e seguindo-o; toca-lhe no ombro) Não se vá já embora. Sente-se, por favor! Vamos lá conversar. Olhe, você é o meu último paciente de hoje, até podemos estar aqui mais tempo. (dirigindo-se ambos para os seus lugares anteriores) Não me leve a mal. Estou tão somente a tentar compreendê-lo. E, ao mesmo tempo, também a tentar explicar-lhe como é que o seu caso é visto daqui deste lado. Você ponha-se no meu lugar! Entra-me um indivíduo por esta porta, que nunca vi mais gordo, e desata a dizer que quer morrer, e que quer eu ajude. Vamos lá devagar! Não se trata de uma gripe!

 RAUL: Compreendo, doutor. Sei que não é culpa sua. A situação não é muito ortodoxa.

 DOUTOR: (rindo) Não é muito ortodoxa? Você não brinque, homem! É uma situação inexistente.

 RAUL: O senhor tem razão. (preocupado) Mas gostaria que não me confundisse que os casos hipotéticos a que se referiu há pouco atrás. Porque a minha situação é completamente diferente. E bastante ponderada. Não é de ânimo leve que chego aqui e lhe peço o que lhe estou a pedir.

 DOUTOR: Já vi. Sossegue, homem. Vamos lá tentar perceber o que se passa.

 RAUL: Aí é que está, doutor! Não há nada para perceber. Se quiser, é um cancro na alma que vai corrompendo tudo o que sou. E nestes últimos tempos tem-se tornado insuportável.

 DOUTOR: Está bem, mas eu tenho de perceber isso. Não po…

 (batem à porta)

 DOUTOR: Sim?

 ENFERMEIRA: Posso, doutor?

 DOUTOR: Toda a licença. Diga!

 ENFERMEIRA: Queria saber se ainda vai precisar de mim. É que já passa da hora, ainda tenho de passar pelo colégio dos miúdos.

 DOUTOR: Não, não. Pode ir, claro. Até amanhã.

 ENFERMEIRA: Até amanhã, doutor.

 (fecha a porta)

 DOUTOR: (levanta-se e abre a porta de uma estante) Posso servir-lhe um whisky?

 RAUL: Se não for incómodo.

 DOUTOR: Não incomoda nada. Deseja gelo, água lisa ou bebe-o puro.

 RAUL: Como já vi a garrafa, bebo puro. É crime estragar tão bom whisky com água.

 DOUTOR: Lá isso é verdade. Eu também só bebo puro, sou pouco escocês.

 (volta à mesa e serve o whisky e propõe um brinde)

 DOUTOR: À sua!

 RAUL: Obrigado. À sua!

 DOUTOR: Então, aonde é que estávamos?

 RAUL: Estava a dizer ao senhor doutor que não me confundisse com os casos…

 DOUTOR: Sim, sim. Já me lembro. Pois e eu ia precisamente a dizer-lhe que tenho de perceber aquilo que se está a passar consigo. Já percebi que não é um homem vulgar.

 RAUL: Desculpe, doutor, mas vulgar sou. Sou um homem como os outros.

 DOUTOR: Quero dizer no tocante à sua decisão de pôr termo à vida. Não se trata de um impulso que teve ou de um acontecimento que o fez tomar essa decisão. Arriscar-me-ia a dizer que é algo de filosófico.

 RAUL: Isso de filosofia é que não! Não me venha com filosofias. Não se trata de filosofia, trata-se de doença, doutor. Julgo que não há muito o que perceber, senão que é uma doença que me está a causar um sofrimento insuportável. E…

 DOUTOR: A vida, portanto.

 RAUL: Perdão!? Não compreendi.

 DOUTOR: A vida. A doença a que se refere é a vida.

 RAUL: Sim, a vida.

 (silêncio)

 RAUL: Mas quando digo que se trata da vida, há que dizer também que não sei bem.

 DOUTOR: Não sabe bem?

 RAUL: Claro, doutor. É que se fosse só a vida, provavelmente haveria mais casos como o meu. Haveria imensos.

 DOUTOR: Estou a ver.

 RAUL: O que quero dizer é que a vida, para mim, não é vida. É e não é. É, porque estou vivo e tenho as minhas responsabilidades como todos os outros. Não é, porque, sem razão nenhuma, ela se torna insuportável. Está a compreender?

 DOUTOR: Estou, estou. Continue, por favor!

 RAUL: É isso, doutor. Em mim, a vida é uma doença. E, no entanto, para tantos outros, para o senhor, por exemplo, a vida é apenas a vida.

 DOUTOR: Sim, estou a ver. E, dizia-me há pouco, padece disso desde a adolescência, portanto.

 RAUL: Mais ou menos.

 DOUTOR: Diga-me uma coisa: também não foi sempre assim, pois não?

 RAUL: Assim como?

 DOUTOR: A intensidade da dor.

 RAUL: Não. Dor sempre houve. Por vezes atenuava, sem perceber bem porquê. Mas de há alguns anos para cá, uns oito talvez, tem sido pior. E os últimos dois são difíceis de descrever, doutor.

 DOUTOR: Deseja um pouco mais de whisky?

 RAUL: Por favor, doutor.

19 Dez 2017

O direito de não ser

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]asta nascer. E o que deveria ser um acto natural surge imediatamente carregado de significados. Somos filhos, cidadãos, temos um nome e milhares de expectativas à nossa espera. Depois tornamo-nos alunos, eventualmente soldados e, finalmente, namorados, nubentes, casados, progenitores, empregados nisto ou patrões daquilo, entre outras possibilidades. Temos é de ser qualquer coisa. Sempre, em todos os momentos, vemo-nos constrangidos a ser algo como se isso fosse realmente parte integrante do que somos.

E quantas vezes não sentimos, inapelavelmente, que não somos aquilo que somos? Quantas vezes estranhamos os papéis que desempenhamos, bem ou mal, nas nossas relações com os outros? E quantas vezes não nos sentimos o maior dos hipócritas por representarmos um personagem que, bem o sabemos, pouco ou nada tem a ver connosco?

O problema é não termos direito de não ser. Obrigatoriamente, somos qualquer coisa, uma dessas categorias que não inventámos mas às quais temos de nos sujeitar. A penalidade é bem forte e passa logo por sermos ou não reconhecidos pelos outros. Quem não é nada de reconhecível exila-se numa terrível solidão.

É só experimentar e dizer a alguém desconhecido que não se é nada. O espanto, eventualmente, o medo, toma conta do interlocutor. Pois se não é possível catalogar e arrumar em gavetas, como posso ter confiança, ainda que mínima, nesta pessoa? Será que ela é, realmente, uma pessoa? Ou será apenas pessoa alguém a quem forem atribuíveis as características “normais” e as óbvias pertenças? É na distância a esta “normalidade” que se joga parte do fascínio que resta a esta época…

No entanto, tudo se tornaria fluído se não fossemos. Por vezes, a ânsia classificativa, analítica, a grelha sobre o real, apresenta-se como um constructo desesperado, um mecanismo fruste de atribuição de sentidos, incapaz de domar a realidade, senhor da falta e origem do remorso. Mas a sua ausência levaria à criação de um mundo no qual não nos reconheceríamos e obrigaria a uma aprendizagem radicalmente quântica, em que as oposições deixariam de ser a base do pensamento e o universo passaria a ser interpretado como um bailado, onde se estava mas não se era. Aparentemente impossível, portanto.

Logo, para dar sossego ao mundo, temos de ser qualquer coisa. Seja ela o que for, pois tudo parece fazer falta: os juízes e os criminosos, os médicos e os doentes, os políticos e os cidadãos, e por aí adiante… Tem é de se ser qualquer coisa, ainda que não nos apeteça ser nada ou entendermos que ser é contrário ao curso da física ou que, politicamente, a ideia de Ser descamba no fascismo. Não! Nada , rien, niente, nulla di nulla! Há que ser, existir não chega.

Como deixar de ser sem se ser outra coisa qualquer? E será essa uma meta desejável? Quererei eu perder as qualidades que me tornam no que sou e pelas quais os outros me reconhecem, para deixar de ser e simplesmente existir?

A condição é simples: exige um longo, prolongado, disciplinado, afastamento de seres que são e um mergulho nas águas do mundo; obriga a uma participação plena no aparente fluir e a travessia do rio Letes, um compulsivo esquecimento. Não a morte física mas um despojamento total do passado, na ânsia de uma vida no instante.

Claro: ninguém tem direito a não ser. Como diria Shakespeare, todo o mundo é um palco cada um de nós representa o seu papel, cada um de nós é qualquer coisa. E, sobretudo, cada um de nós tem uma dívida imensa por pagar, o que nos impede de deixar de ser, mesmo quando queremos simplesmente ser outra coisa.

És e pronto! Nada a fazer! Mas… se o pensei é como se já tivesse não sido. E este pensamento, tão português, fez emergir um sorriso que não atribuo ao que sou mas a esse universo de possibilidades outras que o não ser, discretamente, acumula.

 

4 Dez 2017

Zé Pedro, guitarrista dos Xutos e Pontapés, morreu aos 61 anos

O funeral da figura icónica do rock português decorreu na sexta-feira no Mosteiro dos Jerónimos, com o presidente da República e o ministro da Cultura a destacarem o legado deixado por Zé Pedro. Os Xutos e Pontapés actuaram em Macau em 1989 e 2006

 

[dropcap style≠‘circle’]P[/dropcap]rimeiro ouviram-se os “Contentores” e depois foi um desfilar de grandes canções, que ficaram para sempre nos ouvidos dos portugueses. Assim começou o concerto dos Xutos e Pontapés em Macau, corria o ano de 1989 e ainda se ouvia música no Fórum, perto do Instituto Politécnico de Macau. O evento inseriu-se na iniciativa “Rock Macau”, promovida pelo Governo de Carlos Melancia.

A banda repetiria a passagem por Macau 17 anos depois, com o concerto que decorreu em 2006 junto ao Lago Nam Van, inserido no Festival Internacional de Música de Macau.

Na altura, o grupo referiu-se ao concerto como sendo uma “desfolhada de memórias”, muito diferente do espectáculo de 1989, ano em que, além do Fórum Macau, também actuaram no Estabelecimento Prisional.

“Entre o público só havia chineses e não batiam palmas. Estavam muito quietos. Acho que ouviram a música e a seguir foram para as celas. Não reagiram e ficámos sem saber se tinham gostado”, recordou Zé Pedro à agência Lusa, ao fazer o contraste com a excitação dos portugueses presentes no concerto integrado no Rock Macau.

Zé Pedro referiu ainda, em 2006, que “há menos portugueses a viver em Macau” e o sucesso do espectáculo “depende da atitude dos músicos em palco”.

Anos depois, a banda está de luto com o desaparecimento de Zé Pedro, guitarrista e autor de muitos sucessos dos Xutos e Pontapés. Falecido aos 61 anos, vítima de doença prolongada, o músico foi recordado no funeral que decorreu na sexta-feira, no Mosteiro dos Jerónimos.

Além da homenagem prestada pelas milhares de pessoas que decidiram aparecer no local, Zé Pedro foi também recordado pelos governantes portugueses.

Em comunicado, o ministro da cultura, Luís Filipe de Castro Mendes, disse que o músico “contribuiu de forma decisiva e inovadora para o sucesso continuado de uma das mais prestigiadas bandas rock nacionais”.

Castro Mendes disse lamentar “profundamente a morte do músico Zé Pedro”, que “contribuiu de forma decisiva e inovadora para a história da música electrónica em Portugal e para o sucesso continuado de uma das mais prestigiadas bandas rock nacionais”.

“O seu entusiasmo, carisma e empatia deixaram uma marca indelével no panorama musical português, com músicas que acompanharam várias gerações, que o admiram com reconhecida ternura”, afirmou Castro Mendes.

“Dotado de um sentido musical notável, a música foi o seu sonho desde cedo e com ela conseguiu transformar o universo do rock português, a par da vida de muitos milhares de pessoas”, disse Castro Mendes, que traça o percurso do guitarrista “desde os ensaios na garagem de casa do seu avô, ainda adolescente, até aos dias de hoje, em grandes palcos portugueses e estrangeiros”.

Zé Pedro “teve uma vida intensa e uma brilhante carreira ao longo de quatro décadas”.

O músico, “que dizia ter sempre as mãos ocupadas com a guitarra, deixa-nos canções, como o ‘Ai a minha vida’, ‘À Minha Maneira’ ou ‘Contentores’, que inspiram também um retrato especial do país e de um certo modo de ser português”, remata o ministro da Cultura, que envia “sentidas condolências” à família.

 

As palavras de Marcelo

Também o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, classificou Zé Pedro como sendo um “guerreiro da alegria” e “da vontade de viver”.

“Era um guerreiro da alegria, da vontade de viver, de superar dificuldades, de nunca desistir. Chegou cedo demais o descanso deste guerreiro, que certamente não será esquecido por tantos e tantos amigos que deixou”, escreveu o chefe de Estado português numa mensagem publicada no website oficial.

Depois de manifestar o seu pesar a “toda a família e amigos do Zé Pedro”, lembrando que o músico “era assim afectuosamente tratado por todos os portugueses”, Marcelo recordou que “os seus primeiros passos na música coincidiram com o despertar do país para o movimento punk, tendo mais tarde fundado uma das maiores bandas de rock de Portugal, e sobretudo uma das que mais tempo sobreviveu e acompanhou várias gerações”.

Zé Pedro estava doente há vários meses, mas a situação foi sempre mantida de forma discreta pelo grupo, tendo só sido assumida publicamente em Novembro, a propósito do concerto de fim de digressão dos Xutos e Pontapés, no Coliseu de Lisboa.

José Pedro Amaro dos Santos Reis nasceu em Lisboa, em 14 de Setembro de 1956, numa família de sete irmãos, “com um pai militar, não autoritário, e uma mãe militante-dos-valores-familiares”, como recordou num dos capítulos da biografia “Não sou o único” (2007), escrita pela irmã, Helena Reis.

No final na década de 1970, Zé Pedro, com Zé Leonel e Paulo Borges, decidiu criar uma banda, baptizada Delirium Tremens. Passou depois a chamar-se Xutos e Pontapés, com a entrada de Kalú e de Tim para o lugar de Paulo Borges. O primeiro concerto realizou-se há 38 anos, em 13 de Janeiro de 1979, nos Alunos de Apolo, em Lisboa.

4 Dez 2017

GP | Daniel Hegarty morreu hoje depois de acidente na Curva dos Pescadores

Daniel Hegarty sofreu um acidente na Curva dos Pescadores, uma das zonas mais rápidas do Circuito da Guia.

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] piloto britânico Daniel Hegarty (Honda), que hoje sofreu um acidente a meio da prova no Grande Prémio de Motos de Macau, morreu na ambulância, quando seguia para o hospital, anunciou a comissão organizadora do evento.

“É com grande pesar que a Comissão Organizadora do Grande Prémio de Macau informa que o corredor britânico sucumbiu aos ferimentos quando seguia na ambulância a caminho do Hospital Conde S. Januário”, informou o coordenador da Comissão Organizadora, Pun Weng Kun.

Hegarty, de 31 anos, foi retirado de ambulância depois de, às 16:04, a meio da prova, ter batido na barreira na Curva dos Pescadores, de acordo com o relatório de incidentes da organização.

Segundo Pun, o piloto “sofreu ferimentos graves” e foi de imediato transportado para o hospital.

“A comissão já contactou com a família e membros da equipa de Daniel garantindo que lhes será prestada toda a assistência. A Comissão Organizadora do Grande Prémio de Macau manifesta as mais sinceras condolências à família e amigos de Daniel”, disse o responsável, numa comunicação à imprensa sem perguntas.

Esta era a segunda participação de Hegarty no Grande Prémio de Macau.

Acidentes do passado

Desde 2012 que não se registavam fatalidades no Grande Prémio de Macau.

Nesse ano, o português Luís Carreira, de 35 anos, morreu após um despiste durante a qualificação, também na Curva dos Pescadores, a zona mais rápida do Circuito da Guia.

Um dia depois, o piloto de Hong Kong Phillip Yau, de 40 anos, morreu aos comandos de um Chevrolet Cruze, na Taça CTM, ao embater contra uma parede, na curva do Hotel Mandarim, quando seguia a mais de 200 quilómetros por hora.

Foi nesse local que em 2005 morreu o francês Bruno Bonhuil, aos 45 anos, durante o aquecimento para a corrida de motos.

Em 1994, também no Grande Prémio de Motos, o japonês Katsuhiro Tottiori morreu na segunda manga da prova.
O japonês seguia sozinho na recta entre a curva dos Pescadores e a curva R quando uma paragem violenta da moto, devido a um problema mecânico, o projectou para fora da pista, tendo embatido nas rochas junto ao mar e falecido no local.

Em 1967, Dodje Laurel, o piloto filipino que maior projecção internacional conquistou, perdeu a vida na curva do Clube Marítimo, hoje curva do Hotel Mandarim, depois de ter embatido num poste de iluminação pública, capotando o carro que se incendiou de imediato.

18 Nov 2017

A partida

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira perda que tive foi a morte. Tinha oito anos e a morte foi-me comunicada tal como ela é, sem paninhos quentes. Ainda não se pensava muito na psicologia das coisas e ainda bem, porque há assuntos em que os rodeios não cabem. A morte é a morte, eu não percebia o que não tinha de perceber, entendi mais tarde, uma semana ou duas talvez, quando compreendi que morrer era perder para sempre. A minha primeira perda foi também um chocolate com passas e frutos secos, de tamanho gigante, nas minhas mãos de tamanho mínimo, uma espécie de pedido de desculpas antecipado pelos olhos que, à minha volta, se acinzentaram.

Com o tempo, a perda ganhou outros contornos, depois do significado inicial. A dada altura, num exercício filosófico de adolescente amante de poesia, atrevi-me a pensar que a perda era mais do que a morte e não precisava necessariamente de ser provocada por ela. A escala da perda variava conforme a fragilidade do momento. Repensei a tese uns anos depois, quando a perda caiu que nem uma pedra, toda ela definitiva, independentemente da força que achava ter para sobreviver ao que desapareceu. Sem chocolate com passas e frutos secos.

Mas imaginemos que há um índice de perdas. A relativização é algo que nos dá jeito, sempre. Macau é uma terra em que se perde mais do que se ganha, apesar de se ganhar muito, de forma profundamente desequilibrada. Há perdas várias, a todos os momentos, sem termos de recorrer aos lugares-comuns dos casinos onde se perdem fortunas e azares, amantes e outras substâncias inebriantes. Há perdas bem mais difíceis, porque são mais importantes e decisivas, apesar de não serem imediatamente fatais.

Perder a oportunidade de crescer bem é quase tão mau quanto não se ser. Não se querer ver é quase tão mau quanto só ter a escuridão como hipótese. Não se saber pensar é o pior. O problema é, mais uma vez, da literatura, da falta de literatura, e da iliteracia, a das letras e a do resto, de não se saber ler o que vai nos rostos, nas mãos, nos gestos cansados. Perde-se a possibilidade de ser mais nesta letargia húmida que tudo invade.

Perdem-se pessoas. A cidade é demasiado pequena para as pessoas que se perdem no entra e sai das fronteiras, nas despedidas junto aos barcos, imagem romântica sem qualquer romantismo que resista ao cheiro do combustível queimado, da água estagnada, da respiração dos passageiros apressados. Perdem-se pessoas por via do mundo ser grande, ter tanto para descobrir, mas também por via do cansaço, da desistência, de quem quis mais para isto para descobrir que isto não é para mais, é só para isto.

Macau é uma terra de dispensáveis, de vai um chega outro, não há vizinhança que sobreviva para contar a história da porta fechada. Ninguém reparou, sequer, que a porta se fechou.

Com as pessoas vão as memórias. A cidade é demasiado estreita para que não sejam conservadas. Ficam as pedras que sobram e os rostos pintados, muitos deles desconhecidos, de quem foi copiosamente chorado para ser esquecido logo a seguir, quase logo a seguir.

Não nos ensinam a partir, ficando.

28 Jul 2017

Susana Chou pede transparência sobre morte de Lai Man Wa

A ex-presidente da Assembleia Legislativa escreveu no seu blogue que está chocada com a morte da antiga directora dos Serviços de Alfândega e que estranha o suicídio, dado que Lai Man Wa desempenhava um cargo importante da carreira

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]mais uma voz a questionar uma morte que tem gerado polémica e muitas questões. Susana Chou, ex-presidente da Assembleia Legislativa (AL), escreveu no seu blogue que acha “estranho” o suicídio de Lai Man Wa, directora dos Serviços de Alfândega, dada a fase em que esta se encontrava no topo da carreira. Susana Chou defendeu ainda que o Governo deve tratar o caso de forma pública e transparente, pelo facto de Lai Man Wa ter desempenhado um cargo público e possuir uma “identidade especial”.
Afirmando não conhecer muito bem Lai Man Wa, Susana Chou referiu ter ficado chocada quando viu as notícias sobre a sua morte. “Com base na sua formação académica e a sua experiência profissional, e tendo apenas 56 anos, deveria estar no topo da carreira. Por que é que tomou a decisão de se matar? Será que encontrou uma dificuldade que não conseguia ultrapassar?”, questionou.
A morte da responsável pelos Serviços de Alfândega não apenas gerou dúvidas e ansiedade a Susana Chou, como a fez “reflectir o sentido, objectivos e dignidade da vida”.
A ex-presidente da AL apontou ainda que as explicações do Governo em relação ao processo e localização do corpo de Lai Man Wa após a autópsia chocaram a sociedade uma segunda vez. Para Susana Chou, o facto das autoridades policiais não terem avisado os meios de comunicação social sobre o local da morte fez com que tenham surgido rumores e questões sobre o caso.
Ainda assim, a antiga responsável máxima pelo hemiciclo diz “respeitar a defunta e a sua família”, além de que “confia no Governo de Macau”. Susana Chou diz que os cidadãos devem acreditar no tratamento do caso que está a ser feito pelo Executivo.
O corpo de Lai Man Wa foi encontrado numa casa de banho pública no edifício Ocean Gardens, na Taipa, sendo que as autoridades afastaram quase de imediato a hipótese de homicídio. O caso já espoletou várias reacções públicas junto da sociedade, tendo a Associação Novo Macau e outras exigido uma “investigação exaustiva” à morte da ex-directora. No hemiciclo, o deputado José Pereira Coutinho foi o único a questionar todo o caso, numa interpelação oral apresentada ao Governo.

17 Nov 2015

Lai Man Wa | Novo Macau pede investigação profunda

A ANM quer que o Governo investigue mais e melhor a morte de Lai Man Wa. A associação acusa o Executivo de não ser claro e de não ter em consideração todas as hipóteses à volta do caso. Também Agnes Lam acusa o Governo de colocar em causa a relação entre as autoridades e o direito à informação

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] Associação Novo Macau (ANM) pede ao Governo uma investigação aprofundada relativamente à morte da directora geral dos Serviços de Alfândega, Lai Man WA. Admitindo espanto e surpresa, a associação considera que as autoridades competentes não investigaram todas as possibilidades na morte da directora.
Numa declaração emitida ontem à comunicação social a ANM apresentou as suas condolências à família da vítima e apelou a que o caso não seja esquecido. Para a associação é inacreditável a definição e publicação de suicídio, avançado pelo Governo. scott chiang“A rapidez da realização de uma conferência pelo Chefe do Executivo, Chui Sai On, após apenas quatro horas do descobrimento da morte” é estranha, diz a associação. O grupo destaca ainda a insistência, por parte do Governo, em frisar que a vítima não estaria envolvida em casos suspeitos.
Para o grupo pró-democrata, o Governo não investigou todos os ângulos possíveis, não investigou todas as possibilidades, e resolveu tirar conclusões dentro de um curto espaço de tempo, ignorando todos os pontos dúbios da situação.
“Se um alto funcionário do Governo morre em circunstâncias tão anormais e o Governo de Macau decide encerrar o caso em apenas quatro horas, como é que os cidadãos comuns podem sentir que estão protegidos pela segurança e justiça?”, questionou Scott Chiang, presidente da ANM.
Com isto, o associação pede que seja elaborada uma investigação exaustiva sobre o caso e que sejam divulgadas as informações obtidas desse trabalho, mantendo sempre o respeito pela vítima.
É preciso, alega, que o Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, conjuntamente com o Ministério Público (MP) investiguem e publiquem as informações.

Aviso selectivo

Também para Agnes Lam, docente de Comunicação na Universidade de Macau (UM), há algo de muito errado em todo o caso. A começar pelo tempo em que aconteceu o caso e a chegada da informação aos meios de comunicação. Numa linha cronológica a morte de Lai Man Wa é apontada para as 15h30, tendo sido confirmada pelas 17h40, as só às 19h30 é foi convocada uma conferência de imprensa. Wong Sio Chak explicou, na altura, que esta diferença de horas aconteceu porque o prioritário era o socorro e não as entrevistas.
Para Agnes Lam esta justificação é “errada e irracional”. lai man waA docente considera que uma coisa não invalida a outra. “Avisar os meios de comunicação nunca iria impedir o socorro, são duas coisas que não entram em conflito. Esta diferença de horas prejudica o direito à informação que o público tem. Quando os jornalistas chegaram o corpo já tinha sido transportado, só o local é que estava disponível para investigar”, defendeu.
Agnes Lam acha que o caso é muito sensível e de muito interesse para o público, daí ser necessário a notificação imediata. “O mecanismo de notificação é a confiança mútua entre as autoridades e os meios de comunicação. Pode ser estar em causa e ser destruída caso haja uma selecção na informação”, argumentou.
Com 56 anos, Lai Man Wa, era casada e mãe de dois filhos. Licenciada em Ciências Policiais, pela Escola Superior das Forças de Segurança de Macau, e mestre em Administração Pública, pela Universidade de Zhongshan, iniciou a carreira profissional em Abril de 1985, na Polícia Marítima e Fiscal. As cerimónias fúnebres começaram na quarta-feira em que milhares de pessoas e membros do Governo prestaram a sua homenagem. O funeral decorreu ontem onde apenas familiares e amigos mais próximos puderam estar presentes. O Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, marcou também presença.

6 Nov 2015

Como vai o mega-empreendimento funerário afectar a relação entre Hong Kong e Shenzhen?

[dropcap]H[/dropcap]oje vamos analisar um artigo publicado no dia 18 de Junho pelo site “passiontimes.com”, de Hong Kong, em que foi revelada a intenção, por parte das autoridades locais, de construir um mega-empreendimento funerário na zona de Lo Wu.

De acordo com a Wikipedia, os “serviços funerários” são designados como “negócios especializados em fornecer enterros ou outros tipo de soluções para o armazenamento de cadáveres, assim como a organização de velórios ou outro tipo de serviços religiosos de forma a marcar o falecimento de um indivíduo, assim como o acompanhamento dos seus familiares. Um exemplo normal deste tipo de serviços incluiria o velório do morto, acompanhado do respectivo funeral, contando ainda com a reserva de uma capela para a celebração de uma missa durante o funeral. As agências funerárias coordenam o serviço de acordo com os desejos dos familiares ou amigos da pessoa falecida. Ao mesmo tempo, esta entidade trata de toda a documentação necessária, assim como de eventuais licenças e ainda outros detalhes adicionais, como por exemplo a coordenação com o cemitério ou a comunicação social, para a possível disseminação de obituários”.

De acordo com as notícias avançadas por esta mesma fonte este enorme empreendimento funerário vai começar as suas operações em 2022. Nessa altura, deverão estar disponíveis no mínimo 200 mil jazigos para o armazenamento de cinzas, espera-se ainda que o empreendimento possa suportar 178 mil cremações por ano.

De momento, Hong Kong dispões de 6 locais distintos para cremações, assim como de 134 igrejas onde se possam realizar serviços funerários, tudo isto para albergar os 42.100 falecimentos que se registam, em média, todos os anos nesta cidade. Pode-se assim concluir que a RAEHK dispõe no presente de mais oferta do que procura nesta área.

O mesmo artigo referia ainda que, em 2012, as autoridades locais decidiram fazer uma auscultação pública justo dos moradores de Sandy Ridge, a zona onde vai ficar localizado este empreendimento. E, apesar de nessa altura ainda haver muita gente reticente quanto ao futuro deste projecto, a maioria destes acabou por concordar na sua realização, facto este que foi comunicado ao Legislative Council no dia 9 de Janeiro de 2013. Mesmo assim, foi concordado que mais discussões sobre o assunto viriam a ser agendadas.

Com a concordância dos residentes de Sandy Ridge, o governo de Hong Kong não deve vir a enfrentar nenhuma dificuldade de maior quando começar a construção deste projecto funerário. Porém, outras vozes se levantaram em protesto, sendo que desta vez a maioria da posição é proveniente de Shenzhen. De acordo com Wang Rui, o representante do Comité Permanente do Congresso Municipal Popular, foi entregue uma proposta ao Governo de Shenzhen solicitando a oposição a este desenvolvimento. As principais razões apontadas para justificar esta tomada de posse prendiam-se com o mau cheiro que os residentes de Lo Wu e Shekou teriam de enfrentar, como resultados das inúmeras cremações que iriam aí ser realizadas, especialmente quando estes locais são assolados por ventos provenientes de sudoeste ou de sudeste. Outro factor determinante tem a ver com a possível depreciação do mercado imobiliário nestas zonas, tendo em conta que ninguém gosta de ter milhares de túmulos como eventuais vizinhos.

O caso ganhou entretanto uma grande popularidade e recentemente tem sido alvo de grande discussão em fóruns da internet.

Não é de estranhar que seja o lado chinês a levantar objecções, pois para além das razões já apontadas, para os chineses os funerais não são vistos com bom olhos, sendo mesmo um tópico tabu para algumas pessoas. O impacto psicológico é tal que algumas famílias chinesas chegam mesmo a proibir os seus filhos de trabalharem como agentes funerários.

Até ao presente momento, as discussões e as respectivas objecções existem apenas do domínio da internet. Mas as implicações que motivaram estas tomadas de posição são vitais. A maior parte dos nossos leitores ainda se devem lembrar dos acontecimentos do dia 8 de Fevereiro do corrente ano, em que mais de 100 residentes de Hong Kong realizaram uma manifestação em Tuen Mun contra os comerciantes suspeitos de estar envolvidos na importação paralela de bens. A maioria destes compra os itens em Hong Kong para que os mesmos possam depois ser revendidos na China, o que obviamente cria uma série de problemas aos residentes da RAEHK, tais como o aumento do custo das rendas e o congestionamento do tráfego nessas localidades, além da degradação da higiene pública e a eventual escassez de bens de necessidade diária como o leite em pó e alguns medicamentos, entre muitos outros. Para resolver o problema, o “visto de visita individual” que permitiam entradas múltiplas foram mudados em Abril deste ano, tendo na altura sido substituídos por vistos que permitiam apenas uma visita por semana. Estas novas medidas foram implementadas com efeito imediato, não tendo as autoridades procedido a nenhum tipo de consulta pública prévia.

Os cidadãos de Shenzhen foram os mais afectados por estes desenvolvimentos, especialmente porque a grande maioria de comerciantes envolvidos neste tipo de negócio eram provenientes da RAEHK. Ficaram na verdade bastante insatisfeitos, pois sentiam que haviam sido prejudicados pelos seus vizinhos de Hong Kong, que eram a real motivação para a nova política de imigração. Apesar de na altura não terem sido forçados a aceitar esta nova medida, temos de nos questionar sobre o seu estado de espírito, especialmente por terem permanecido tão silenciosos na altura.

Agora, com um mega-empreendimento funerário destinado a ser construído em Lo Wu, na fronteira entre Hong Kong e Shenzhen, o seu descontentamento parece ser ainda mais difícil de conter, visto este projecto não trazer nenhuma vantagem para os residentes do continente. Ainda mais difícil é de compreender se atendermos ao facto que até alguns residentes de Hong Kong se mostraram reluctantes em aceitar esta iniciativa. Esta nova farpa no relacionamento entre a RAEHK e Shenzhen, ainda por cima depois do escândalo relativo à importação paralela que resultou num maior controle nas fronteiras, faz com que a harmonia entre estas duas cidades passe no futuro a assumir um papel de extrema importância para todos nós.

Nenhum de nós gosta de ver conflictos e discordância. Se usarmos uma família como exemplo, e imaginarmos uma situação em que o irmão mais velho discute com regularidade com o mais novo, podemos facilmente concluir que isto acarretaria um enorme desgosto para os pais de ambos.

Historicamente, Shenzhen tem prestado uma grande assistência a Hong Kong. Mas o esperado aumento na procura de serviços funerários no futuro torna uma recusa deste projecto praticamente impossível. Tendo em conta os desenvolvimentos recentes, talvez este seja um bom momento para os governantes da RAEHK começarem a escutar com atenção os seus conterrâneos de Shenzhen. Mais ainda, o governo de Hong Kong vai ter saber como minimizar ou cancelar os eventuais inconvenientes que este projecto pode vir a trazer aos residentes de Shenzhen. Que tipo de medidas devem então ser tomadas para garantir uma resolução que possa ser vista com bons olhos pelos cidadãos de ambos os lados da fronteira? Esta questão requer não só uma abordagem do ponto de vista legal, mas vai também testar o talento político e ainda as relações interpessoais dos governantes da RAEHK. Seria então uma boa ideia que os mesmos usassem a relação harmoniosa que se verifica entre Macau e Zhuhai como um exemplo a ser estudado.

29 Jun 2015