Médio Oriente | China expressa “profunda preocupação” com agravamento de tensões

A China expressou “profunda preocupação” com o agravamento da situação no Médio Oriente, após o ataque do Irão contra Israel, e pediu “calma e contenção”. 99 por cento dos mísseis e drones lançados por Teerão foram interceptados, não causando grandes danos

 

Em comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês manifestou preocupação “com a actual escalada da situação” na região e apelou a “todas as partes para que exerçam a calma e a contenção”. O Irão lançou no sábado à noite um ataque com ‘drones’ contra Israel “a partir do seu território”, confirmou o porta-voz do exército israelita num discurso transmitido pela televisão.

As tensões entre os dois países subiram nas últimas semanas, depois do bombardeamento do consulado iraniano em Damasco, a 1 de Abril, no qual morreram sete membros da Guarda Revolucionária e seis cidadãos sírios. “Esta é a mais recente manifestação das repercussões do conflito em Gaza. A prioridade máxima é a aplicação efectiva da Resolução 2728 do Conselho de Segurança da ONU e o fim do conflito em Gaza o mais rapidamente possível”, indicou o comunicado de Pequim.

A China deixou ainda um apelo à comunidade internacional, “especialmente aos países influentes”, para que desempenhem “um papel construtivo na manutenção da paz e da estabilidade regionais”. O Conselho de Segurança da ONU realizou ontem uma sessão de emergência, a pedido de Israel, para discutir os ataques iranianos de sábado à noite.

Na semana passada, o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, condenou “de forma veemente” o ataque atribuído por Israel ao consulado iraniano em Damasco.
Numa conversa com o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, Wang pediu ainda respeito pela soberania do Irão e da Síria e sublinhou “a inviolabilidade” das instituições diplomáticas.

A China reiterou que a recente escalada das tensões é “uma extensão” do conflito na Faixa de Gaza e que a “prioridade imediata” é “acalmar a situação” na região. Pequim tem manifestado apoio à “causa justa do povo palestiniano para restaurar os seus direitos e interesses legítimos” e à solução de dois Estados, ao mesmo tempo que manifesta consternação pelos ataques contra civis por parte de Israel.

Ataque bloqueado

O Corpo de Guardas da Revolução do Irão, o exército da República Islâmica, lançou um ataque “em grande escala” com drones e mísseis contra Israel, anunciou a televisão estatal iraniana. “Em resposta aos numerosos crimes cometidos pelo regime sionista, incluindo o ataque à secção consular da embaixada da República Islâmica do Irão em Damasco e o martírio de um grupo de comandantes militares e conselheiros do nosso país na Síria, a força aérea da Força Aeroespacial do Corpo dos Guardas da Revolução Islâmica disparou dezenas de mísseis e drones contra alvos específicos dentro dos territórios ocupados”, disse a televisão estatal citando o departamento de relações públicas dos Guardas.

Israel, com a ajuda dos principais aliados ocidentais, incluindo os EUA, o Reino Unido e a Jordânia, afirmou ter interceptado cerca de 99 por cento dos lançamentos durante o ataque em massa, mas acrescentou que alguns mísseis balísticos chegaram a Israel, danificando a base aérea de Nevatim, no sul de Israel.

15 Abr 2024

Médio Oriente | China preparada para mediar acordo de paz entre israelitas e palestinianos

O ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qin Gang, referiu esta segunda-feira, em conversas separadas com os homólogos israelita e palestiniano, que a China está preparada para mediar um acordo de paz no Médio Oriente.

As conversas telefónicas com os ministros dos Negócios Estrangeiros de Israel, Eli Cohen, e do Palestina, Riyad Al-Maliki, citadas pela agência de notícias estatal Xinhua, ocorrem num momento em que a China tem feito um avanço diplomático no Médio Oriente, que causa embaraço aos Estados Unidos. Qin encorajou o seu homólogo israelita a “tomar medidas que permitam a retoma das negociações”, enfatizando que a China está “pronta para desempenhar o papel de mediador”.

O chefe da diplomacia chinesa referiu ao seu homólogo palestiniano que a China é a favor da retoma das negociações o mais rápido possível, ainda segundo a agência estatal. O ministro chinês lembrou aos seus dois homólogos que a China apoia uma solução baseada no princípio de dois estados, enquanto o processo de paz israelo-palestiniano está parado desde 2014.

‘Chapéus” há muitos

As autoridades norte-americanas têm procurado minimizar o papel da China, argumentando que Pequim ainda está longe de superar os norte-americanos no Oriente Médio, que permanece em grande parte sob a protecção do ‘chapéu’ de segurança de Washington, noticiou a agência France-Presse (AFP).

No entanto, este avanço diplomático da China desafia Washington, suspeito de abrir mão gradualmente do seu lugar como actor-chave na região, para se concentrar melhor a curto prazo na guerra da Rússia contra a Ucrânia e, a longo prazo, na China e na Ásia-Pacífico.

Eli Cohen divulgou também esta segunda-feira, em comunicado, que pediu ao homólogo chinês, durante a conversa telefónica, que este usasse a sua influência sobre o Irão para “impedi-lo de obter capacidades” nucleares.

“Conversamos sobre o perigo do programa nuclear do Irão, perigo compartilhado por muitos países da região, inclusive países que mantêm relações diplomáticas com o Irão. A comunidade internacional deve agir imediatamente para impedir que o regime do aiatolá em Teerão obtenha capacidade nuclear”, salientou o ministro.

Esta é a primeira conversa entre os dois ministros e ambos concordaram em continuar o diálogo bilateral, informou o ministério israelita. Os dois também abordaram a próxima visita em Junho à China do Presidente palestiniano Mahmoud Abbas, para se encontrar com o Presidente chinês Xi Jinping.

Ano sangrento

A Palestina vive o início de ano mais sangrento desde 2000, no quadro de um agravamento da violência entre israelitas e palestinianos que, desde o início de 2023, registou a morte de 96 palestinianos e árabes israelitas em incidentes violentos com Israel e também 19 pessoas do lado israelita, vítimas de atentados.

Israel conquistou Jerusalém Oriental durante a Guerra dos Seis Dias, em Junho de 1967, juntamente com a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Posteriormente, anexou Jerusalém Oriental, uma decisão nunca reconhecida pela comunidade internacional. Os palestinianos pretendem recuperar a Cisjordânia ocupada e Gaza e reivindicam Jerusalém Oriental como capital do Estado da Palestina.

18 Abr 2023

Príncipe herdeiro saudita é pragmático e procura assegurar papel de líder no Médio Oriente, diz analista

O analista de política internacional Filipe Pathé Duarte defende que a retoma das relações entre a Arábia Saudita e o Irão demonstra o “pragmatismo” do príncipe herdeiro saudita na procura de assegurar o papel de líder no Médio Oriente.

Em declarações à agência Lusa, o académico da NOVA School of Law de Portugal lembrou que o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman está a procurar “isolar” Israel para que se possa, paralelamente, pôr em causa os Acordos de Abraão (assinados em 2020 pelo Estado israelita com os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein e, mais tarde, com Marrocos e o Sudão), devendo ainda ter-se de perceber se a “guerra por procuração” no Iémen vai ou não continuar.

Questionado pela Lusa sobre se o recente acordo entre Riade e Teerão, patrocinado pela China e assinado a 06 deste mês, é “contranatura”, Pathé Duarte admitiu que tudo é possível.

“Não sei se é contranatura. Bin Salman é um líder extremamente pragmático. Temos de perceber verdadeiramente o futuro deste acordo. Por um lado, isola Israel, por outro, pode pôr em causa os Acordos de Abraão e temos ainda de pensar na efetividade desse acordo. Para isso, temos de pensar no que está a acontecer no Iémen e perceber se a guerra por procuração vai ou não continuar”, respondeu.

“De qualquer maneira, o acordo parece ser uma espécie de acordo antinatura, mas não é. Bin Salman é um pragmático e está a tentar assegurar, cada vez mais, a sua posição como líder do Médio Oriente”, sustentou.

Para Pathé Duarte, as consequências da retoma das relações entre sauditas e iranianos, além de pôr em causa os Acordos de Abraão e o isolamento de Israel, suscita ainda mais uma questão, que é tentar perceber se a causa palestiniana voltará a tornar-se “uma forma de unificação de todo o mundo árabo-muçulmano contra Israel”.

“Nos últimos anos tem havido uma espécie de um apagar da causa israelo-palestiniana precisamente por esta aproximação de Estados árabo-islâmicos a Israel [os Acordos de Abraão], isolando progressivamente o Irão. O que temos aqui, eventualmente, é o resultado do pragmatismo de Bin Salman, podendo assistir-se aqui a um volta-face das dinâmicas no Médio Oriente em que Israel pode sofrer”, argumentou.

Para o docente e investigador, os Acordos de Abraão “foram um passo altamente positivo para Israel porque isolava o Irão e unificava o mundo árabo-islâmico, aproximando-o progressivamente” de Telavive, ao mesmo tempo que “diluía” a causa palestiniana.

“Mas, quando há uma fragilidade em termos de política interna em Israel, por regra, o que acontece é que surge sempre uma violência sectária. E pergunta-se: será que essa violência sectária é instigada para que surja num momento de instabilidade política para Israel? E é instigada por quem?”, questionou, sublinhando que só o tempo poderá responder cabalmente a estas questões.

“Mas, sim, acho que o que estamos a assistir é a um isolamento de Israel, tendo, sobretudo, como pano de fundo, cada vez mais, a situação interna de Israel [cujo atual Governo é o mais à direita da história do país ao integrar parceiros ultraortodoxos e de extrema-direita], que está confrontado com um problema existencial”, afirmou.

Para Pathé Duarte, esse problema existencial passa por se saber se Israel quer verdadeiramente ser um Estado democrático secular ou se quer ser um Estado judaico.

“Se quer ser um Estado judaico, vai ter de, possivelmente, contar com movimentos de âmbito mais extremista no poder, que, por sua vez, são um desafio às liberdades, direitos e garantias e ao próprio Estado de Direito. Neste momento, Israel sabe que está a confrontar-se com esse problema. E sabendo que está a ser confrontado com esse problema, há imediatamente um reequilíbrio no plano regional, com uma aparente aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, justificou.

“Temos de olhar para o pragmatismo de Bin Salman e de olhar também para o que vai acontecer no Iémen, para, a partir daí, podermos perceber se, de facto, há um acordo e uma aproximação com pernas para andar ou se é meramente resultado de um momento contextual”, declarou.

O Iémen vive desde 2014 mergulhado num conflito entre os rebeldes xiitas Huthis, próximos do Irão, e as forças do Governo, apoiadas por uma coligação militar liderada pela Arábia Saudita e que inclui os Emirados Árabes Unidos.

Ainda questionado pela Lusa sobre se a atual contestação interna ao Governo israelita deixa no ar a ideia de que o executivo está a prazo, Pathé Duarte sublinhou ser “difícil perceber”, embora defenda que a legitimidade do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu “está a ser posta em causa”. “E, se num Estado de Direito a legitimidade está posta em causa, os governos alteram-se”, concluiu.

13 Abr 2023

Análise | Influência chinesa no Médio Oriente fruto das limitações diplomáticas dos EUA

O crescimento da influência chinesa no Médio Oriente, impulsionado pela recente mediação no restabelecimento das relações diplomáticas entre Irão e Arábia Saudita, resulta das cada vez maiores limitações diplomáticas norte-americanas na região, segundo analistas.

Para Nic Robertson, editor diplomático internacional da CNN, a influência dos Estados Unidos no Médio oriente está “em declínio”, com a Arábia Saudita – e em particular o seu príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman – a ficarem frustrados “com a diplomacia cambaleante” dos Estados Unidos, nomeadamente em casos como o do alegado envolvimento do príncipe no assassínio do jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi, ou quando a Casa Branca pediu que o país cortasse a produção de petróleo rapidamente, para em seguida pedir para aumentá-la.

A China garantiu no sábado passado que o seu papel na retoma das relações diplomáticas entre o Irão e a Arábia Saudita não tem uma agenda escondida e que não pretende preencher um vazio no Médio Oriente.

“A China não persegue qualquer interesse egoísta” e vai continuar a apoiar os países do Médio Oriente “a resolver as suas diferenças através do diálogo e em consultas para promover a paz e estabilidade duradouras em conjunto”, segundo uma declaração colocada no ‘site’ do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A intervenção de Pequim no reatamento das relações diplomáticas entre os dois países, incluindo a reabertura de embaixadas depois de sete anos, foi vista como uma grande vitória diplomática da China, com os países do Golfo a considerarem que os Estados Unidos reduziam a sua intervenção na região.

“Acho que este acordo demonstra que a influência e a credibilidade dos EUA naquela região diminuíram e que há um novo tipo de alinhamento regional internacional a ocorrer, que fortaleceu e deu à Rússia e à China uma nova influência e estatuto”, defendeu Aaron David Miller, membro do ‘Carnegie Endowment for International Peace’ e ex-assessor de política do Médio Oriente para o Departamento de Estado.

20 Mar 2023

Afeganistão | China critica retirada dos EUA mas espera trabalho conjunto

A “retirada precipitada” das tropas norte-americanas do Afeganistão teve um “sério impacto negativo” sobre o país, apontou hoje o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, ressalvando estar “disposto” a dialogar com Washington para gerir a situação.

O comunicado emitido pelo ministério cita uma conversa por telefone entre o ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Yi, e o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken.

De acordo com o texto, Wang frisou que a China está “disposta a comunicar e dialogar com os Estados Unidos para promover uma abordagem suave na questão afegã, visando evitar nova guerra civil ou um desastre humanitário, e para que o país não se converta num viveiro e refúgio para o terrorismo”.

Wang indicou que Pequim vai tentar “encorajar os afegãos a estabelecer um país aberto, de acordo com as condições nacionais, e com uma estrutura política inclusiva”.

“Os factos revelam, mais uma vez, que é difícil afirmar, por meio da imposição, modelos estrangeiros em países com história, cultura e condições nacionais diferentes”, observou Wang Yi.

Aquele argumento é frequentemente utilizado pela diplomacia chinesa para refutar acusações sobre o caráter totalitário do regime chinês e violações dos direitos humanos no país.

“Um regime não pode durar sem o apoio do povo”, declarou o ministro chinês, acrescentando que “resolver os problemas pela força e por meios militares só aumenta os problemas”. “Devemos refletir seriamente sobre este ensinamento”, realçou.

No que diz respeito às relações entre os dois países – que se deterioraram desde a presidência de Donald Trump (2017-2021) – a China acredita que o caminho certo é “encontrar uma forma de as duas grandes potências coexistirem pacificamente”.

O Departamento de Estado dos Estados Unidos emitiu uma declaração sucinta, na qual indicou que Blinken e Wang “falaram sobre os acontecimentos no Afeganistão, incluindo a questão da segurança” e os esforços de ambos os países para garantir a segurança dos respetivos cidadãos.

17 Ago 2021

Médio Oriente | China exorta EUA a desempenharem papel diplomático construtivo

O recente pedido da China, Noruega e Tunísia para que o Conselho de Segurança da ONU emitisse uma declaração e um pedido de cessação das hostilidades foi negado pelos Estados Unidos que se opuseram à resolução

 

A China renovou ontem os apelos para que os Estados Unidos desempenhem um papel construtivo no conflito em Gaza e parem de bloquear os esforços das Nações Unidas para exigir o fim do derramamento de sangue.

O porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros Zhao Lijian disse que a China, que assume actualmente a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU, pediu um cessar-fogo e a prestação de assistência humanitária, entre outras propostas, mas que a obstrução por “um país”, impediu o conselho de se expressar.

“Pedimos aos Estados Unidos que assumam a sua responsabilidade e uma posição imparcial para apoiar o Conselho, desempenhar um papel na redução das tensões e reconstruir a confiança para uma solução política”, disse Zhao, em conferência de imprensa.

A China “condena veementemente” a violência contra civis e pede o fim dos ataques aéreos, ataques terrestres, com foguetes e “outras acções que agravam a situação”, disse Zhao.

Israel deve “exercer contenção, cumprir efectivamente com as resoluções relevantes das Nações Unidas, parar de demolir as casas do povo palestiniano, parar de expulsar o povo palestiniano e parar de expandir o seu programa de anexações, parar as ameaças de violência e provocações contra muçulmanos e manter e respeitar o ‘status quo’ histórico de Jerusalém como um local sagrado religioso”, disse Zhao. Os pedidos para que o governo de Joe Biden tome uma posição mais activa sobre a violência estão a aumentar.

Alta tensão

Os Estados Unidos, o aliado mais próximo de Israel, bloquearam os esforços da China, Noruega e Tunísia para fazer com que o Conselho de Segurança emitisse uma declaração, incluindo um pedido de cessação das hostilidades.

A China há muito se retrata como um forte apoiante da causa palestiniana, enquanto constrói laços políticos, económicos e militares com Israel. Os actuais combates são considerados os mais graves desde 2014.

Os combates começaram em 10 de Maio, após semanas de tensões entre israelitas e palestinianos em Jerusalém Oriental, que culminaram com confrontos na Esplanada das Mesquitas, o terceiro lugar sagrado do islão junto ao local mais sagrado do judaísmo.

Ao lançamento maciço de ‘rockets’ por grupos armados em Gaza em direcção a Israel opõe-se o bombardeamento sistemático por forças israelitas contra a Faixa de Gaza. O conflito israelo-palestiniano remonta à fundação do Estado de Israel, cuja independência foi proclamada em 14 de Maio de 1948.

18 Mai 2021

Gaza | Mortandade sobe com ataques israelitas, enquanto Nações Unidas discutem solução

Depois de uma semana de hostilidades, à hora do fecho desta edição o número de mortos do lado palestiniano ronda as duas centenas, com mais de 50 crianças mortas, enquanto do lado israelita as baixas contam-se pelos dedos de duas mãos. O Conselho de Segurança da ONU reuniu ontem para tentar encontrar uma via que conduza ao cessar-fogo, com a China a culpar Washington pela inacção das Nações Unidas

 

A reunião, inicialmente marcada para sexta-feira com carácter de urgência, foi solicitada por 10 dos 15 membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas (China, Tunísia, Noruega, Irlanda, Estónia, França, Reino Unido, São Vicente e Granadinas, Níger e Vietname).

Os últimos dados do Ministério da Saúde palestiniano apontam para a existência de 181 vítimas mortais na Faixa de Gaza na sequência dos bombardeamentos do exército israelita. Do lado de Israel, o último balanço dá conta de 10 mortos.

Os Estados Unidos, que tinham rejeitado a data de sexta-feira para a reunião, mostraram-se favoráveis a que o encontro se realizasse no início da próxima semana, “para dar um pouco mais de tempo à diplomacia para conseguir resultados”, nas palavras do chefe da diplomacia norte-americana, Antony Blinken. Porém, Washington acabou por concordar em realizar a reunião de emergência ontem, numa solução de compromisso entre as duas datas, segundo fontes diplomáticas. A realização deste tipo de reuniões de urgência por videoconferência requer o consenso dos 15 Estados membros do Conselho de Segurança, mas tem sido prática comum nos últimos meses, devido à pandemia de covid-19.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, foi uma das vozes que apelou à intervenção do Conselho de Segurança para procurar o alívio da escalada de violência e culpou os Estados Unidos pela inacção da ONU.

“Infelizmente, o conselho tem falhado sem chegar a consensos, com os Estados Unidos a apostarem numa posição que contraria a justiça internacional”, referiu no sábado Wang, citado pela Xinhua, numa conversa telefónica com o seu homólogo palestiniano Shah Mahmood Qureshi.

O governante chinês voltou a expressar o apoio à chamada solução de dois estados independentes, via que deve ser a prioridade das Nações Unidas, com vista a colocar de novo Israel e Palestina na mesa de negociações.

Cruz que se carrega

O Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) pediu ontem aos membros do Conselho de Segurança da ONU que “exerçam influência máxima para acabar com as hostilidades entre Israel e Gaza”, um conflito de “intensidade nunca antes vista”.

“As populações de Gaza e de Israel enfrentam o mais intenso ciclo de hostilidades registado em anos”, refere o CICV num comunicado publicado a poucas horas de ter lugar uma reunião virtual do Conselho de Segurança da ONU dedicada ao conflito no Médio Oriente.

No mesmo comunicado, citado pela Agência France-Presse (AFP), o CICV apela a todas as partes que “ponham fim à escalada (da violência) e garantam o melhor acesso às pessoas afectadas na Faixa de Gaza”. “A intensidade deste conflito é algo que nunca tínhamos visto antes, com ataques aéreos incessantes contra Gaza, uma zona densamente povoada, e com foguetes a atingirem grandes cidades de Israel, provocando a morte de crianças de ambos os lados”, refere o director-geral do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Robert Mardini.

Leve reprimenda

A Casa Branca advertiu Israel de que garantir a segurança dos jornalistas é “primordial”, após uma investida israelita ter destruído um edifício em Gaza onde funcionava a agência de notícias Associated Press, que ficou “chocada e horrorizada” com o ataque. “Dissemos directamente aos israelitas que garantir a segurança dos jornalistas e dos meios de comunicação independentes é uma responsabilidade de importância crítica”, disse a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki.

As forças armadas israelitas destruíram no sábado um edifício que albergava os escritórios da agência de notícias Associated Press (AP) e outras organizações jornalísticas em Gaza, num ataque à capacidade de os meios de comunicação reportarem o que se passa no território. O ataque, cujas razões continuam por explicar, aconteceu uma hora depois de os militares terem avisado o proprietário que iam atacar o edifício, ordenando a sua evacuação.

Através de uma declaração, a AP manifestou-se “chocada e horrorizada” com o ataque israelita, que destruiu a torre que albergava os seus escritórios e os da Al Jazeera, em Gaza, que classificou de um “desenvolvimento incrivelmente inquietante”.

“Estamos chocados e horrorizados com o facto de os militares israelitas terem atacado e destruído o edifício que alberga o escritório da AP e outros meios de comunicação em Gaza”, disse o presidente da agência norte-americana de notícias, Gary Pruitt. E acrescentou: “Há muito que conhecem a localização do nosso escritório e sabiam que os jornalistas estavam lá. Fomos avisados de que o edifício seria atingido”. “Este é um desenvolvimento incrivelmente perturbador. Evitámos por pouco a terrível perda de vidas. Cerca de 10 jornalistas e ‘freelancers’ da AP estavam no edifício e, felizmente, conseguimos retirá-los a tempo”, disse.

Pruitt referiu que a AP solicitou informações ao governo israelita e que está em contacto com o Departamento de Estado norte-americano para tentar saber mais. “O mundo estará menos informado sobre o que está a acontecer em Gaza por causa do que aconteceu hoje”, concluiu.

Ex-vizinhos de escritório

Por seu lado, o chefe do gabinete da Al Jazeera na Palestina e em Israel classificou o ataque como um “crime” e uma tentativa de o exército israelita “silenciar os media”. Falando em directo no canal de notícias em língua árabe, o chefe do gabinete da Al Jazeera para a Palestina e Israel, Walid al-Omari, disse que este “crime” era mais um de uma “série de crimes perpetrados pelo exército israelita”, em Gaza. Israel não quer “apenas espalhar a destruição e a morte em Gaza, mas também silenciar os meios de comunicação social que vêem, documentam e dizem a verdade sobre o que está a acontecer”, adiantou, advertindo que tal “é obviamente impossível”.

O proprietário da Torre Jala, Jawad Mehdi, disse que um oficial dos serviços secretos israelitas o avisou, antes do ataque, que tinha uma hora para evacuar o edifício. Mehdi pediu mais 10 minutos para os jornalistas levarem o seu equipamento, o que foi recusado.

A Al Jazeera confirmou na rede social Twitter que os seus escritórios estavam no edifício e transmitiu imagens ao vivo do desmoronamento da torre, envolta numa nuvem de poeira.

O exército israelita alegou que equipamento militar do Hamas se encontrava no edifício, onde os profissionais dos meios de comunicação estavam a ser utilizados como “escudos humanos”. Disse ainda que avisou previamente “os civis” no seu interior.

Rotas de fuga

A passagem de Rafah, aberta excepcionalmente pelo Egipto para a entrada das ambulâncias na Faixa de Gaza, não é controlada por Israel, que impôs um bloqueio ao enclave palestiniano há cerca de 15 anos.

Por norma, esta passagem fronteiriça está encerrada aos feriados, incluindo a Eid al-Fitr, a celebração muçulmana que marca o fim do jejum do Ramadão e que começou na quarta-feira.

Uma criança foi o único sobrevivente depois de um bombardeamento das forças israelitas ter pulverizado no sábado de manhã uma casa no campo de refugiados de al-Shati. Entre os escombros foram encontrados 10 corpos, oito deles de crianças, de acordo com a agência de notícias palestiniana WAFA.

Ontem de manhã, um ataque aéreo das forças israelitas atacou vários prédios em zonas residenciais e estradas numa parte da cidade de Gaza. Fotos de residentes e jornalistas mostraram os danos provocados pelas bombas, incluindo uma cratera que bloqueou um dos principais acessos a Shifa, o maior hospital da faixa de Gaza.

Num comunicado, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar “desolado” com o número de baixas civis. “O secretário-geral recorda todas as partes que atacar indiscriminadamente alvos civis e meios de comunicação social são violações das leis internacionais e devem ser evitados a todo o custo”, afirmou em comunicado.

O chefe da diplomacia europeia convocou para amanhã uma reunião de emergência dos ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia (UE) por videoconferência para discutir a escalada da violência entre Israel e palestinianos. “Tendo em conta a escalada em curso entre Israel e a Palestina e o número inaceitável de vítimas civis, convoco uma videoconferência extraordinária dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE para terça-feira”, escreveu Josep Borrell na sua conta na rede social Twitter.

Segundo o alto representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, os ministros irão “coordenar e discutir a maneira como a UE pode contribuir para pôr fim à violência actual”.

17 Mai 2021

Sob o céu de Palmyra

[dropcap]P[/dropcap]assara por Palmyra mas de Palmyra não saíra. Um esgaço de gente, eu, somente, a espaçar entre os doentes. Palmyra nunca ficava para trás e nós — que bem para a frente andávamos! Talvez às voltas, em círculos vários, complexas ovais, mas ali estava de novo Palmyra, sob as nossas sombras esticadas; e a noite que se aproximava; e o suão se levantava. E em Palmyra dormiria. Ali atendia o dia. A noite pertencia à lei.

Todas as noites as passei em Palmyra. Vagueei sob arcos e arcadas, grandes portas e escadas, visitei ruelas, lojas, tabernas. Conheci os donos das esquinas, os senhores dos bairros. Era, amiúde, convidado para jantar.

Conheci mulheres e elas conheceram-me, embora a nenhuma me vinculasse por me saber mera passagem.

Todos os dias saía de Palmyra e me metia ao caminho. Talvez de um forte, talvez do mar, de um porto.

Sonhava barcos no dorso do meu camelo. E comandava embalado toda uma tripulação. Pensava na cidade onde pretendia atracar. Teria ela mar ou um mero rio? Depois sentia um solavanco maior, um bramido e despertava do meu devaneio. A besta acabava de se ajoelhar, já noite crua, às portas da cidade de Palmyra, não muito longe da Fonte Eterna, de onde tantas vezes olháramos o contraluz do castelo e, num gelo súbito, tremêramos.

Estava em Palmyra e outra noite se estendia à minha frente. Um velho recolhia cacos. Interpelei-o: “Velho Mestre, apresenta-me à rainha. Ouvi que ela ordena sobre Persas e Romanos e ainda outros povos cujo nome é terrível e não se deve pronunciar”. O velho aquiesceu. Nessa noite, adormeci sossegado na taberna.

Mas outro dia espairecia e ao caminho eu me fazia. E para Leste me dirigi, para Leste indiquei o meu olhar. Desta vez fi-lo sozinho, oscilante no dorso de meu dedicado animal. E, em devaneios, sob o sol ainda tépido da manhã, o velho do nada me aparecia e me dizia ter a rainha anuído a meu tão ousado intento. E o coração pulsava desmedido sob a pele, pois já longe me julgava.

Forte bramido: meu camelo que ajoelha e eu acordo em terra de Palmyra, lá no seu largo outonal. Ali aterro em solo quente, ainda oscilante da viagem, mas quente fornalha, a escaldar, quase miragem, não fossem reais as armas que estendidas me esperavam. E, por detrás de estandartes, de homens de várias artes, soldados e generais, ministros e sicofantes; sem manobra de intenção, surge impávida a rainha.

“Dizem-me que queres sair de Palmyra e não o consegues. Todos os dias, porém, o tentas. Levas a tua magra tenda e ala pelo deserto, que preferes a esta cidade. O que pretendes de mim?”

“Que intercedas junto aos deuses que me tramam. Morfeu e a sua dama. Os deuses dos caminhos desta terra, os do deserto, os da falta de água.”

“Vai-te, homem. Sai da minha cidade. Ninguém quer ouvir o teu resmungo, a acidez da tua língua estrangeira, a rigidez desse discurso, as várias cores dos teus costumes.” E gargalhava. E assim, sob tochas, me levaram à rua e da rua ao largo e do largo às muralhas onde o meu camelo me esperava. O dia já despontava.

E montado por mim dei. Tinha finalmente a esperança, sagrada por ordem real, de me afastar de Palmyra. E tão crente, tão seguro, estava de por fim poder partir que — mal ordenei ao bicho: “Oriente!” — dei por mim logo a dormir.

Sonhava com a cidade que eu tanto desejava e via Palmyra ao fundo, chorosa e definhada. Lá para trás, ficava. Palmyra, a santificada, a da fonte sempiterna, a sempre núbil do deserto. E por toda a noite errei. Devo ter dado voltas e revoltas, ter voado da gangrena ao desespero, editado ânsias de corvos e prateleiras de ícones abandonados. Era o mundo um cemitério. Vasto, orgíaco de morte.

Acordei num bramido de joelhos. Era ainda em Palmyra onde, do pesadelo, o nobre animal me acoitava. Havia uma porta entreaberta e um guarda, que generoso acolhia: “Entra, palerma. Todas os dias…: para onde tanto vais?…”

“Tenho um encontro prometido em Samarra. Mas em Palmyra sempre me vejo e dela não consigo sair. Quando me afasto de Palmyra, logo adormeço e sonho, desemboco em devaneios e sempre por mim dou de volta, a esta mesma cidade. Tentei o chá, o café, as raízes interditas. Mas sempre os devaneios me tomam. Diz-me — tu que vês os homens e as mulheres a passar —, o que posso eu fazer?”

“Continua a tentar, rapaz. Todos dias. Mantém pronta a tua tenda. Alguma vez o camelo te levará para Oriente e te depositará ainda estremunhado no mercado de Samarra, onde cumprirás o teu encontro. Ninguém te poderá acusar de chegares atrasado ou de não teres firmemente tentado.

“Entretanto, devaneia no dorso do teu animal e pelo teu pé nas travessas desta cidade. O que poderás fazer é devanear: de dia pelo deserto e de noite pelas tabernas de Palmyra.”

O guarda, que era um crente, acrescentou ainda: “A bondade divina permitiu a miríade dos seres e das manias. Por isso, também para a tua doença haverá um lugar sob a roda do céu.”

17 Jul 2020

Aquilo que importa

[dropcap]P[/dropcap]or estes dias Macau parece regressar timidamente às suas rotinas. Na verdade, não sabemos se alguma vez voltará a ser o que era ou se voltará ao seu dia a dia habitual. Mas isso não tem de ser necessariamente mau a longo prazo.

Ao mesmo tempo, o fantasma do coronavírus parece estar a chegar em força a outras regiões do globo como à Europa ou ao Médio Oriente. O Mundo treme, e antevêem-se mais casos, medo e mortes, à semelhança daquilo que a China e sobretudo o Sudeste Asiático começou a sentir na pele há cerca de um mês/mês e meio com o encerramento de escolas e actividades públicas, shutdown de cidades e “clausura caseira” de prevenção. Esta deve ser uma experiência que deve ser tida em conta pelos países onde o surto ameaça agora chegar.

No entanto, quer seja de um lado ou do outro do globo, uma crise desta natureza, que nos afecta directamente, quer porque os nossos movimentos passam a estar limitados, porque interfere com as nossas decisões, somos impedidos de apanhar um avião para ver a família ou simplesmente, porque tem o efeito de nos fazer pensar como a vida era mais simples antes de tudo isto, pode também ser uma oportunidade para encarar o nosso dia a dia daqui para a frente com outros olhos.

Até porque, talvez, aquilo que importa mesmo, tem estado sempre ao nosso alcance e vai além dos problemas do quotidiano que nos deixam ciclicamente frustrados, quer seja nos no emprego, em casa ou até no trânsito que teima em não andar quando decidimos fazer-nos à estrada. Com os nossos “azares” relativizados cabe-nos ir à procura de fazer melhor quando a conjuntura assim o deixar. Assim como Macau.

27 Fev 2020

PR do Irão acusa indirectamente separatistas árabes em ataque no país

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Presidente do Irão, Hassan Rouhani, acusou ontem separatistas árabes apoiados por um país “da margem sul do Golfo Pérsico” de estarem por detrás do atentado que fez pelo menos 29 mortos em Ahvaz, no sudoeste do Irão.

“Não temos dúvidas sobre a identidade daqueles que fizeram isto, sobre o seu grupo e sua filiação”, disse Rouhani à televisão estatal antes de partir para Nova Iorque, onde vai participar na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Durante a guerra entre o Iraque e o Irão (1980-1988), “aqueles que causaram esta catástrofe (de sábado) (…) apoiaram os agressores e cometeram crimes”, acrescentou Rouhani.

“Enquanto (o antigo Presidente iraquiano) Saddam (Hussein) estava vivo, eles eram os seus mercenários. Em seguida, mudaram de mestres e um dos países da margem sul do Golfo Pérsico” foi responsável por apoiá-los, afirmou o Presidente iraniano, sem nomear nenhum país.

“Todos esses pequenos países mercenários que vemos na região são apoiados pelos Estados Unidos. São encorajados pelos norte-americanos”, acrescentou Rouhani.

O grupo jihadista Estado Islâmico (EI) reivindicou a responsabilidade pelo ataque a Ahvaz, mas as autoridades iranianas não parecem levar a sério esta reivindicação.

Críticas a Ocidente

O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Irão anunciou no sábado à noite que convocou diplomatas da Dinamarca, da Grã-Bretanha e da Holanda em Teerão para expressar “o forte protesto do Irão contra o facto de que os seus respectivos países abrigarem alguns membros do grupo terrorista que perpetraram o ataque em Ahvaz.

A Frente Popular e Democrática dos Árabes de Ahvaz reivindicou também o atentado a partir de um canal por satélite, Iran International, baseado em Londres.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano disse que insistiu junto do ministério homólogo britânico que é “inaceitável que o porta-voz (deste grupo separatista) seja autorizado a reivindicar este acto terrorista numa estação de televisão em Londres”.

Teerão também criticou Copenhaga e Haia por serem complacentes como grupo, acusando os dois países europeus de acolherem alguns dos seus membros no seu território

“Esses terroristas comportam-se exactamente como EI”, afirmou a chancelaria iraniana, acusando a Europa de falta de empatia com o Irão quando é tocada por ataques.

Já no sábado, Ramezan Sharif, porta-voz da Guarda Revolucionária Iraniana, acusou os atacantes de estarem ligados a um grupo separatista árabe apoiado pela Arábia Saudita.

De acordo com o mais recente balanço oficial, 29 pessoas foram mortas em Ahvaz, no sábado, por um comando de quatro homens que abriram fogo contra a multidão que assistia a um desfile militar.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, também transmitiu as suas condolências aos iranianos afectados pelo ataque em Ahvaz.

Num comunicado, divulgado no sábado pela ONU, Guterres “condenou o ataque de hoje (sábado) na cidade no sudoeste do Irão de Ahvaz”.

A nota acrescentou que Guterres “expressou as suas condolências às famílias das vítimas, ao Governo e ao povo do Irão”, também desejando que “todos os feridos recuperem rapidamente”.

25 Set 2018

Venda de armas para Médio Oriente aumentou mais do dobro em 5 anos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s vendas de armas para o Médio Oriente e Ásia aumentaram significativamente nos últimos cinco anos, sustentadas pela guerra e tensões nestas regiões, indicou hoje o Instituto Internacional de Investigação sobre a Paz de Estocolmo (SIPRI).

Num relatório, o instituto indica que a nível mundial as vendas de armas, que têm subido desde 2003, aumentaram 10% no período 2013-2017, mantendo-se os Estados Unidos como o principal exportador, com 34% do mercado.

A Ásia-Oceânia é a principal região importadora (42% do total), à frente do Médio Oriente (32%), mas foi nesta que as compras e entregas aumentaram para mais do dobro (103%), enquanto na primeira o crescimento foi de 1,8%.

O relatório do SIPRI, que se cinge às armas principais (aviões, sistemas de defesa antiaérea, blindados, mísseis, navios, satélites), revela que a Arábia Saudita se tornou o segundo importador mundial de armas depois da Índia, com um aumento de 225%.

Os Estados Unidos são o primeiro fornecedor dos sauditas (61% das importações), seguidos do Reino Unido (23%) e da França (3,6%).

Na sexta-feira, Londres assinou com Riade um protocolo de acordos para a compra pelos sauditas de 48 aviões de combate Eurofighter Typhoon, o que provocou debates e protestos no Reino Unido.

“Os conflitos violentos generalizados no Médio Oriente e o respeito pelos direitos humanos suscitaram um debate político na Europa ocidental e na América do Norte sobre a limitação das vendas de armas”, sublinha no relatório Pieter Wezeman, investigador do SIPRI.

“No entanto, os Estados Unidos e os Estados Europeus continuam a ser os principais exportadores de armas para a região e forneceram mais de 98% das armas importadas pela Arábia Saudita”, assinalou.

Na Ásia e a nível mundial, a Índia, que ao contrário da China não possui ainda produção nacional para ser autossuficiente, continua a ser o primeiro importador.

A Rússia é o seu principal fornecedor, com 62% das entregas de armas, embora o abastecimento dos Estados Unidos tenha mais que quintuplicado nos últimos cinco anos.

“As tensões entre a Índia, de um lado, e o Paquistão e a China, do outro, alimentam a procura crescente da Índia por armas que ela ainda não consegue produzir”, explicou um outro investigador do SIPRI, Siemon Wezeman.

O relatório indica ainda que três países registaram um aumento substancial das suas exportações de armas: Turquia (145%), Coreia do Sul (65%) e Israel (55%).

O Brasil registou ao contrário uma queda de 20% nos últimos cinco anos, embora seja o primeiro país exportador da América Latina.

13 Mar 2018

A Vinda

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]sperar por quem partiu é uma actividade da ordem da expectativa redentora: erguer o que caiu, reerguer, tornar a levantar. Nascer de novo. Toda a nossa existência tem o ciclo da ilusão rotativa ampliada a uma esperança que supera em muito o nosso comedimento temporal e racional e amplia a vida para lá das fronteiras do possível. Desmesuradamente construímos a esperança como um doce sacrifício a manter mesmo quando a única que se nos é dada viver seja o momento, que sabiamente vivido é a mais bela casualidade de todos os factores.
Não diferimos aqui das grandes desovas marítimas em bandos de vida animal, nem nos falta o canto de amor das baleias, nem o banquete ártico dos ursos, nem o construir em cima do já feito voltando ao mesmo ninho. O que difere um pouco da frase pré-socrática que é o não nos banharmos duas vezes nas mesmas águas, o que, entenda-se, pode designar que o pensamento é um exercício relativamente recente na esfera da vida. Tudo se move pela memória, ou nos parece que ela é tão avantajadamente mais lata que o pensamento fica entorpecido nas suas malhas. Ora, em princípio, quem nasceu já não volta a nascer, a menos que figuradamente e aí acrescenta então mais espaço ao conceito de nascituro. Mas nós, que pensantes e a soçobrar de sonhos queremos que nasça alguém já nascido, prosseguimos um estranho caminho configurado de lenta transformação sem recurso a singularidade.
Neste momento todos os ânimos se ateiam no Médio Oriente devido a um agente incendiário que irracionalmente governa o mundo, pois ele achou que à beira da “desova” natalícia o melhor presente seria fazer perigar o instante, o que não é de todo oposto a uma certa animalidade atávica de configuração dinâmica; aquele local é uma masmorra em forma de dinamite planetária que um ligeiro toque remete para as enguias em pleno Mar dos Sargaços. Ora, aqueles povos inteligentes em vez de inteligir o óbvio, imediatamente respondem sem freio a um estímulo de causa-efeito: imaginai os não inteligentes, como se comportarão?! Abaixo de um qualquer enxame de vespas.
Naquela terra tudo espera vindas a duplicar… a triplicar: a vinda de Cristo, a vinda do segundo e terceiro Templo, a vinda de Elias, mas quem ali se instalou, enquanto uns morriam e outros eram desterrados, não quer abrir a sua mão nem para acenar do outro lado da rua onde deslizam com as fortes correntes de ar da cidade os que estão nas tendas, uns ao relento, outros atrás de um sudário, enquanto eles, os do usucapião, se instalaram no melhor dos locais, que os outros dizem que é seu, mas que também é deles, porque também um outro ali subiu aos céus. Aquela gente estava sempre a ascender. E para que se saiba do arfar do movimento, aquele é o ponto mais fundo da Terra. E assim, entre memória e conflito, a tensão faz do cérebro um grande órgão de fogo.
Efectivamente, e à medida que fomos desenvolvendo capacidades, instalámo-nos em terrenos muito estranhos para a frágil anatomia transportada: já nada nos lembra a primeira lava de extração da raça dos gigantes que casavam com as filhas dos Homens, e aquelas personagens de crânios ovais, tudo o que circula na nossa corrente sanguínea do nascer de novo se assemelha descomunalmente. Esta rotatividade imparável faz-nos um atordoamento simbólico mas muito belo pois que somos feitos desta fórmula composta. Quando os grandes ciclos se festejam, eles não sabem já o que seja a festa, mas, chegados ali, como o corpo tem memória ele segrega a mesma baba Pavloviana. É interessante ver que não diferimos em nada de um cachorro. Em Jerusalém preparam-se as festas, Hanukkah, Natal, uns julgam que o Messias vai a qualquer hora nascer – que não é aquele – mas nada é aquilo que estamos à espera, é sempre outra coisa, ou não será? Que vão reerguer o Templo e já há quem esteja a fazer utensílios com madeiras do Líbano e tudo… enfim, Deus é total, sim, e onde ele estiver, saibamos que não morremos de monotonia, pois que o cérebro humano tem o dom maior que é o de fazer, refazendo, aquilo que já estava feito.
Lembro-me de Arafat em pranto quando desejou passar o Natal em Belém e não deixaram, lembro-me da morte de Isaac Rabin, dos ortodoxos russos na Igreja da Natividade com as cadeiras pelos ares e, de facto, quando olho tudo isto é como se fosse pela primeira vez. Depois penso que a forma de vida cultural é tudo o que não é passível de mudança. Para se mudar um homem, sem dúvida que a única mudança possível é matá-lo. E mesmo assim, ele volta, reergue-se, ressuscita, elevam-se as pedras, erguem-se os altares, tudo o que algures radicalizámos, volta. Mas não nasce, nascer é outra coisa. Nós ainda não nascemos. Estamos configurados até ao fim das provas para este desastre em permanência e até ele tem o seu labor e os seus equilíbrios a manter. Vamos aqui, e já que ainda aqui vamos, para a semana é de novo Natal e até os Orientes se embebedaram desta seiva dos mais loucos da Terra para finalmente deles extraírem um propósito que também nos ultrapassa.
A vir então que venham todos, pois que para sairmos da Roda há que não deixar nada e ninguém para trás, há que salvar todas as vidas como se fosse a nossa e deixar de pensar que voltar é tornar a existir. Ascensionais vamos à Ceia. Muda o mundo os seus ângulos e da recta parada nascerá a vertical subida.

O Espírito e a Esposa dizem: «Vem!»
Diga também o que escuta: «Vem!»
O que tem sede que se aproxime; e o que deseja beba
Gratuitamente da água da vida.»

Apocalipse- Epílogo- 17

18 Dez 2017

O regresso dos neo-cons

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ataque norte-americano à base aérea de Shayrat na Síria, como retaliação a um alegado ataque químico que terá morto um número indeterminado de civis, é um sinal de que a política externa norte-americana, ao contrário do que havia prometido o candidato presidencial Donald Trump, vai ser interventiva. Mais do que imprevisível, a Presidência Trump está a tornar o mundo um local mais perigoso. Após parecer que, afinal, Bashar Al-Assad seria tolerado pelo novo inquilino da Casa Branca, Donald Trump faz uma reviravolta e deixa claro que o governo sírio pisou o risco ao recorrer alegadamente a armamento químico.

Ora, sem verificação independente sobre o que verdadeiramente terá ocorrido na passada terça-feira em Khan Sheikhoun, território sírio controlado por rebeldes, em que um alegado ataque químico terá provocado a morte a dezenas de civis – alguns relatos falam em 89 vítimas, incluindo 33 crianças e 18 mulheres –, as diferentes partes do conflito foram construído a sua própria narrativa. Afinal, a guerra faz-se também pela forma como se comunica. E cada qual aproveitou o ataque para reforçar a sua posição contra o outro.

Se, por um lado, Trump justificou o ataque levado a cabo pelas forças norte-americanas como uma medida retaliatória justa, o governo sírio diz que não recorreu a armamento químico contra a sua própria população, que se tratou apenas da libertação de um produto químico armazenado pelos rebeldes, após um ataque aéreo específico a um arsenal rebelde.

Por outro lado, se a Rússia – principal aliado de Assad – apareceu ao lado do governo sírio, validando a construção da realidade apresentada por Damasco, já o Reino Unido apontou o dedo a Moscovo, acusando-o de ser também responsável pela morte de civis. Acto contínuo, Boris Johnson cancelou a visita à Rússia.

A narrativa construída passou – naturalmente, sublinhe-se – pelo “uso” do chamado mainstream media. A CNN, por exemplo, não deixou de salientar que a maior parte dos líderes europeus e mesmo “caseiros” apoiavam a decisão unilateral norte-americana. A cereja no topo do bolo era o apoio declarado de Hillary Clinton.

A Russia Today (RT) procurou contra-atacar recorrendo a Ron Paul, antigo candidato presidencial norte-americano, que sublinhou que o realismo dos neo-conservadores está de volta a Washington.

O momento da resposta também tem de fazer parte da análise. Ao proceder ao bombardeamento da base aérea de Shayrat, nos arredores de Homs, quando estava a decorrer a cimeira com Xi Jinping, Donald Trump não quis deixar grande espaço para imaginação sobre o que pode fazer com a Coreia do Norte. Aliás, caso analistas mais distraídos não tenham percebido o alcance da nova política externa norte-americana, neste fim-de-semana, a marinha norte-americana fez avançar vários navios de guerra, incluindo o porta-aviões Carl Vinson, para a península coreana.

O que é facto é que o Conselho de Segurança das Nações Unidas está bloqueado no que à guerra na Síria diz respeito. Apelar a uma reforma do órgão da ONU responsável pela paz e segurança no mundo não parece que vá contribuir para um termo imediato do conflito sírio. Não é possível imaginar-se que num futuro próximo China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia aceitem que outros possam bloquear decisões do Conselho de Segurança. É difícil imaginar, por exemplo, que a China, embora mantenha uma relação estreita com a Índia no âmbito dos BRICS, aceite um dia que Nova Deli venha a fazer parte do grupo dos P5. As dúvidas sobre o conteúdo dessa reforma são imensas. Por exemplo, perguntar-se-ia, além do Brasil, que outro país deveria aceder ao estatuto de todo-poderoso no Conselho de Segurança? A África do Sul, outros dos BRICS, ou a Nigéria, país que há muito é um dos grandes contribuintes para o departamento de manutenção de paz da ONU?

Aos olhos daqueles que vêem que, após mais de seis anos de conflito, a ONU não conseguiu chegar a um consenso para a paz na Síria, a decisão de atacar agora o regime de Assad poderia – tendo em conta o número de vítimas civis – ser uma acção justificada. Mas com o envolvimento russo na Síria, forçar a saída de Assad poderá ter consequências muito mais vastas do que apenas contribuir para uma possível solução para um conflito no Médio Oriente.   

Por tudo isto, na reunião de urgência do Conselho de Segurança da passada sexta-feira, o representante permanente da Bolívia lembrou a ida àquele mesmo órgão, em 2003, de Colin Powell, apelando ao apoio dos outros 14 estados-membros para a intervenção no Iraque e apresentando “provas” que depois se revelaram falsas. Por tudo isso, e com os neo-cons a dominarem a agenda, fica a dúvida sobre a efectiva intenção de Trump. Ao fim de três meses no poder, longe estão já as declarações de não envolvimento americano nos conflitos do mundo. 

10 Abr 2017

José Manuel Rosendo, repórter: “O jornalista não é um vendedor de sabonetes”

Porque não se trata de oferecer às pessoas os aromas que elas querem, os jornalistas não estão hoje a fazer o que devem. Faltam recursos, investimento, opções editoriais que permitam os caminhos certos a quem tem a informação como profissão. José Manuel Rosendo, jornalista da Antena 1, tem a carreira marcada pelos cenários de conflito, pelo Médio Oriente que aprendeu a conhecer nas piores circunstâncias. Uma conversa sobre a guerra, as ideias feitas que é preciso combater e a atenção que não se dá ao mundo

[dropcap]C[/dropcap]omo é que aconteceu fazer reportagem de guerra? Como é que a oportunidade surgiu?
Lembro-me muito bem. O nosso saudoso Luís Ochoa passou por mim na redacção e perguntou-me se eu queria ir até ao Afeganistão. Não estava minimamente à espera, mas disse que sim. Acabei por não ir dessa vez. Isto foi em 2001, logo a seguir ao 11 de Setembro. A oportunidade voltou a surgir em 2003, com a invasão do Iraque. Aí, a Antena 1 enviou um jornalista para o Iraque e havia a possibilidade de entrarem tropas no país através da fronteira com a Turquia. E eu fui, nessa perspectiva, que acabou por não se concretizar, porque a Turquia não abriu a fronteira e, portanto, por ali não houve invasão terrestre, apenas permitiram que o espaço aéreo fosse utilizado. Confesso que fiquei um bocado frustrado. Ninguém passou, ficámos todos na zona turca. Acabei por ir lá quando soube que a GNR ia para o Iraque. Fiz a proposta de ir ver para onde é que a GNR ia, fomos lá fazer reportagem, em Nassíria. Depois, como já lá tinha estado, quando a GNR foi mesmo para o Iraque, fui eu também. A partir daí, fica aquele bichinho, não pela guerra, mas por tratar aquele tipo de informação, aquela área do mundo. Tinha uma noção da importância do Médio Oriente, mas essa noção cresceu muito a partir do momento em que comecei a acompanhar e a perceber que é uma coisa central em termos de política internacional, e é uma zona permanentemente em conflito.

“Quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.”

É uma zona também complicada de compreender. Há o obstáculo da língua, as características culturais e políticas são muito diferentes das nossas. Como é que se ultrapassa tudo isto?
É curioso e, às vezes não temos noção disso, que o chamado Ocidente começou por ser ali. O Ocidente, há uns milhares de anos, era ali, na zona do Crescente Fértil, aquela zona que vai do Líbano, passa pelo norte do Iraque, pela Síria, pelo sudeste da Turquia, até pelo Irão. Aí era o Ocidente, em contraponto ao Oriente, que era na China, na zona do Rio Amarelo. Os povos começaram a deslocar-se para a Europa e o Ocidente é aquilo que hoje sabemos. Acho que é preciso ler muito, estudar muito. Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade. À medida que vamos conhecendo o terreno, percebemos que há conceitos que interiorizámos – não todos, obviamente – que são retratos distorcidos da realidade. A realidade é diferente.

Nomeadamente na relação com a religião.
Sim. Na maior parte daqueles países, o Islão é um pilar central da vida das pessoas. Mas não faz delas radicais, nem extremistas – não tem nada que ver uma coisa com a outra. Os povos árabes são como outros povos quaisquer, onde há pessoas más e pessoas boas, onde há pessoas radicais e outras mais ponderadas. Agora, como é uma região em permanente ebulição, que tem fronteiras artificiais, rica em recursos, onde meia dúzia de décadas em termos históricos não é nada – portanto, até há pouco tempo estava uma região colonizada –, tudo isso contribui para que haja até agora um conflito quase permanente naquela zona. E depois há a interferência externa que dificulta ainda mais as coisas.

Para o Ocidente mais a Ocidente, até há poucos anos o Médio Oriente era um problema que não lhe dizia respeito. De repente, com as alterações políticas, a guerra, as vagas de refugiados, o Médio Oriente foi bater à porta das pessoas de outra maneira. O desconhecimento é o principal problema em relação à integração de refugiados?
Acho que sim. É uma parte do problema que, se calhar, é potenciada pela situação financeira que a Europa atravessa. Mas, se os refugiados estão agora a bater à porta da Europa, a Europa bateu durante muito tempo à porta dos países onde estas pessoas viviam. Essa é que é a questão. O Médio Oriente era uma questão de segunda linha em termos de actualidade. Era lá longe. De repente, percebemos que não é bem assim. Aliás, sobretudo os países do Sul da Europa deviam olhar com mais atenção para todo o Mediterrâneo. Neste momento, a política externa da União Europeia (UE) é uma coisa que ninguém sabe muito bem o que é, não se dá a devida atenção à questão do Mediterrâneo mas, de facto, é a nossa vizinhança próxima. Estamos mais próximos dos nossos vizinhos africanos do que do Norte da Europa. Também entendo que os países do Norte da Europa não tenham grande apetência por discutir os assuntos do Mediterrâneo. Isto é um dilema no qual a UE está envolvida, não sei como se poderá resolvê-lo, e é mau que tenham de se tomar decisões sobre pressão – nomeadamente por causa dos refugiados – não havendo uma política externa já definida para estabelecer uma relação com estes países que são a nossa vizinhança. A geografia é uma coisa à qual não se pode fugir: por muito que nós queiramos, não mudamos isso. Portanto, há que encontrar formas de estabelecer um relacionamento que seja bom para todas as partes. Tem de se encontrar esse ponto comum.

Até que ponto deverá ser uma preocupação dos jornalistas, e de quem tem um conhecimento maior em relação ao Médio Oriente, ter um papel de sensibilização – diria até pedagógico, se quisermos – para que a integração dos refugiados em Portugal seja bem-sucedida? O jornalismo deve ter este papel de garantir que as pessoas têm acesso ao quadro todo.
Sim. Mesmo que não seja com o objectivo pedagógico, o facto de divulgarmos informação correcta, de aprofundarmos os problemas, de darmos contexto às pessoas, isso faz com que, de facto, resulte numa atitude pedagógica em relação aos problemas. E acho que devemos fazer isso, dar a conhecer, informar, relatar com o máximo rigor, fugindo aos tais conceitos, aos lugares-comuns. Mas é preciso ter espaço para isso.

“Tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares.”

E há espaço?
Não há espaço suficiente, sobretudo em Portugal, o que tenho dificuldade em perceber. Temos três canais nacionais de televisão, 24 sobre 24 horas. Temos rádios nacionais. Perdemos horas e horas e horas a falar sobre futebol. Debates de gente sentada, a discutir se foi penálti ou fora de jogo, e com as imagens do respectivo jogo a andarem para trás, para a frente, para trás, para a frente. Perdemos horas. Bastava que se desse uma horinha por semana a estas questões – e não digo para falar apenas do Médio Oriente, estamos completamente afastados daquilo que se passa na Ucrânia, que é à porta da Europa. Se, neste momento, fizéssemos um inquérito e perguntássemos o que é que se passa, por exemplo, na Holanda, em termos de eleições, ou o que se passa na Alemanha, as pessoas não sabem. Pura e simplesmente não sabem, porque nós temos uma informação que mantém em agenda determinados assuntos – e não digo que não sejam assunto, continuam a ser, mas são mastigados e remastigados. Se há uma coisinha nova, para se dar esse acrescento de informação vai buscar-se tudo o resto, constrói-se ali uma novela e lá vão dez minutos ou um quarto de hora de telejornal com aquilo. No dia seguinte, a história repete-se. Isto é muito complicado. Não sei como é que se dá a volta a isto. Dá-se a volta havendo vontade editorial, mas depois não há pessoas. Estamos numa situação complicadíssima.

Voltando à guerra. Vários países percorridos, muitas situações complicadas. Para quem não é jornalista, como é chegar de repente, com uma equipa pequena – ou sozinho – a um cenário de guerra, recolher informação e passá-la de uma forma que, ainda por cima, não é visível, atendendo a que trabalha sobretudo na rádio? Como é que se conta essa guerra?
A maior parte das vezes vou sozinho, sem mais ninguém. Só para ter uma ideia, recordo-me, por exemplo, de ver a CNN alugar um piso de hotel. Chegam lá e alugam um piso inteiro: produtores, jornalistas, câmaras, motoristas, segurança, tradutor. Em 2011, Kadhafi foge de Trípoli, entrámos na cidade e os hotéis estavam fechados, porque a maior parte dos trabalhadores eram imigrantes dos países ali à volta e tinham fugido. Como caíram lá os jornalistas todos, reabriram à pressa dois ou três hotéis. Esperámos na recepção, deitados no chão, que nos dessem a chave do quarto. Esse hotel tinha um jardinzinho que era o único sítio onde se conseguia ligar o satélite. Recordo-me de ver a equipa da Al Jazeera, de manhã, a fazer os briefings, e eram mais de 20 pessoas. E isto só em Trípoli, não contando com os que já estavam na rua. Isto dá uma ideia da dimensão. Quem vai sozinho faz passo a passo. Somam-se contactos, conhecem-se fixers [locais que ajudam os correspondentes estrangeiros], vai-se tendo referências, e é com isso que se consegue trabalhar. Depois, tento fazer sempre reportagem com pessoas lá dentro. Não é aquela reportagem que recorra muito a fontes políticas ou militares, sobretudo em termos de informação pura e dura – acho que a maior parte das vezes somos enganados nesse tipo de coisas. Aquilo é de uma riqueza informativa tal que as histórias quase que vêm ter connosco, muitas vezes. Temos de ter os sentidos despertos para perceber, quando vamos a passar, onde é que está a história, e para perceber o ângulo. Depois, tem de se cuidar de tudo: os países em guerra funcionam de uma forma anárquica, os serviços não funcionam, a maior parte das vezes é preciso recorrer ao mercado negro para arranjar combustível, tenho de me preocupar com o carro, com o guia, com o tradutor, com as comunicações, com a alimentação, com o sítio onde vou dormir. Mas quem vai fazer este tipo de reportagem não se pode queixar, isto não é uma lamúria. E dormir no chão também não é nada do outro mundo. Já sabemos como é.

Das muitas histórias que guardou, alguma que o tenha marcado particularmente?
Há histórias. Há a de um camarada que depois morreu, e isso mexe um bocadinho connosco. Mas há histórias… Lembro-me que, no Líbano, tinha estado em Beirute e depois houve um dia em que decidimos ir para a sul, para a zona mais Hezbollah. Telefonaram-me da rádio a dizer que Israel tinha acabado de bombardear Qana e as agências estavam a dizer que foi um morticínio. Íamos a meio do caminho, fizemos um desvio e fomos para Qana. Israel bombardeou e atingiu um edifício que abateu, as pessoas tinham-se refugiado na cave, morreram lá em baixo, e muitas eram crianças. Quando cheguei lá, parámos e uma série de pessoas apareceu à volta do carro. Agarraram-me e percebi que me queriam mostrar qualquer coisa. Levaram-me para junto de uma carrinha, abriram as portas de trás e eram só corpos de crianças. Estavam as equipas de socorro a tirar as crianças lá de baixo, e adultos também. É uma imagem que fica.

Como é que se lida com esse contacto com a morte? Presumo que a primeira vez seja muito complicada.
É. Mas às vezes nem é preciso chegar à morte. Aconteceu-me agora no Iraque, da última vez que lá estive. A minha primeira preocupação é o som, obviamente, mas também faço fotografia, mas para mim. Quando percebo que tenho ali um espaço faço umas fotografias. Estava numa zona, à entrada de Mossul, que era o primeiro posto da frente para onde eram transportadas as pessoas feridas nos combates. Era um corrupio brutal. Uns chegavam mortos, crianças, adultos, velhos. E eu estava ali a fazer fotografias daquele movimento. As pessoas que estavam ali, os militares, não tinham meios. Não se podia chamar hospital àquilo – era uma vivenda, com umas macas. Quando enchia – o fluxo era grande –, começavam a pôr as macas cá fora, na rua, no meio do pó. Às tantas chega um miúdo, que devia ter uns nove ou 10 anos, que vinha ferido, ensanguentado. Deitam o miúdo na maca, o médico põe-lhe a faca nas calças e abre. Quando vou a fazer a fotografia, vi que o joelho praticamente tinha desaparecido. Acho que foi a primeira vez que não fui capaz. Talvez por ter um filho daquela idade, naquele momento houve ali um clique, virei a cara e fui embora. Não sei porquê. Sabemos que na guerra morrem pessoas, que há bombardeamentos e que vamos encontrar pessoas mortas, inconscientemente até já vamos preparados para isso, mas, de facto, naquele momento, virei a cara. Se calhar fui mau jornalista na altura, não faço ideia. Passado um bocado voltei, mas aquela imagem daquele miúdo, ferido daquela forma… Não consegui.

“Para entender o Médio Oriente é preciso, sobretudo, tentar escapar a alguns conceitos que estão enraizados e que não correspondem à realidade.”

E voltar ao dia-a-dia de uma redacção, dos assuntos que, de repente, perdem toda a importância?
Isso é que é uma chatice, porque voltas, chegas à redacção e dizes “não se passa nada”. Começas a olhar para os assuntos e pensas “mas que importância é que isto tem?”. Essa é a parte mais difícil, retomar o ritmo da informação diária, corriqueira, ainda por cima porque valorizamos muito a trica política. Gosto muito de política, a grande política – as políticas de desenvolvimento, de educação, esses temas fortes que devem ser debatidos com profundidade e agarrados com unhas e dentes – mas detesto a trica política, que não leva a lado algum. Passamos a vida com um que diz que o outro acordou mal disposto e depois vamos ouvir o que foi acusado de ter acordado mal disposto. Chegamos ao fim do dia, esprememos esta informação e vemos o que tivemos aqui: nada, na maior parte dos casos. Essa trica política faz parte do marketing político e deixamo-nos ir atrás dela. Se calhar é por isso que as pessoas se afastam um bocadinho de nós, e deixam de ler, de ouvir e de ver televisão, porque estão fartas. Não estamos a ser capazes de dar às pessoas aquilo que é realmente importante.

Há vontade de voltar à guerra?
Não digo voltar à guerra, mas vontade de voltar ao Médio Oriente, sim. Ninguém sabe muito bem o que vai por ali acontecer, há muito tempo que se fala na necessidade ou até na inevitabilidade de se redesenharem as fronteiras no Médio Oriente. No Iraque, vamos ver o que vai acontecer em Mossul. Não sei até que ponto continuará a ser como o conhecemos até 2003. Não sei se a Síria vai continuar a ser com as fronteiras que tinha até agora, há ali um problema entre xiitas e sunitas que não sei como vai acabar. Temos a Rússia agora metida em força na região, os Estados Unidos dão sinais de querer regressar, depois de Obama ter tido uma política em que passou a questão do Médio Oriente para segundo plano. É um tempo de expectativa e é preciso voltar lá, perceber o que está acontecer. Mas enquanto tivermos estas opções editoriais e esta falta de recursos… É preciso investimento na informação porque, se não há recursos, não há retorno financeiro, e então corta-se. Passado um tempo, os recursos são ainda menos, o retorno é ainda menos, e corta-se de novo. É o caminho para o abismo. Também é importante que quem invista na informação não veja nela um pote de rebuçados ou de sabonetes. A informação não é isso, é outra coisa. Houve alguém que disse, aqui há uns tempos, que deixámos de dar às pessoas o que é importante e passámos a dar aquilo que elas querem. Pronto, acabou. Isto é o inverso do que devia ser o jornalismo; é o vendedor de sabonetes, que dá à pessoa o sabonete com o aroma que ela quer.

16 Mar 2017