Amélia Vieira VozesLivro Negro Há cada vez mais cortejos de fétidas tendências desembocando nas agruras da edição, que provocam calafrios, e um mais que hediondo arbitramento autoral à mistura com editoras que não passam de pólos terroristas do conceito literário e, com toda esta superabudância de vacuidade degenerativa, não andamos longe de uma vingança gratuita feita paulatinamente por todos aqueles que em vórtice convocam as Nações para a morte do poeta. Só que ele ficará. Aliás, mais nada restará que a visão do Poeta, esse Felino que olha do cimo da Árvore da Vida, frondosa e alta, toda a existência a passar de um ângulo quase intangível – um gato também não dirige o seu olhar a partir de baixo, mesmo em doméstica convivência irá sempre para o cimo das estantes contemplar a disposição humana na arquitetura da sala. Sabemos muito bem que não somos guindastes, e por mais que transformemos em altura as nossas arquiteturas, fazemo-lo no estrito conceito de casulo, que a vertigem augura sempre na espécie razões de sobra para grandes projeções que se equiparam a Ícaros na ânsia terráquea por se lançarem no sol(o) onde estas agoras gentes não passam de seres paisagísticos, bilhetes-postais para tráfico de venda das suas próprias raízes, onde neste assistir do contrabando auspicioso se espelham ainda com sorrisos triunfalistas que selam o fim de uma civilização por alienação sem paralelo no tempo dos “autores” indutores… Induzimos os seres a sentirem-se estranhos em seus corpos, a procurarem a sua alma, as suas reminiscências, a mudarem, em vez de conservar, corrigir, adaptar. Impulsionamos a desordem biológica, o fim do contributo distributivo da espécie, e há agendas que pagam fortunas para estas manifestações e que esquecem a justiça social de uma outra humanidade explorada nos afãs de um jogo obscuramente propagandístico. Lemos este embuste como nos tirassem a luz das coisas começadas, dos mais belos instantes em que o espírito ganhou aquelas asas prestes a cruzar o Bojador da nossa ignorância, ultrapassando os nossos medos E No Livro Dizemos: Nós somos os povos do Livro. Inadiáveis, traumatizados, confusos, hierárquicos, suspensos, em transe. Ele se fez Negro pela opaca interpretação dos séculos, e nós, transgressivos sem causa, muito embora lembrando as fontes remotas da linguagem – esse sopro – língua escrita, fascinante código: chegámos ao atoleiro das frágeis reservas individuais ao serviço de pontos de vista, sentimentos, especulações e engrenagens. Estamos quase a dizer adeus ao primeiro parágrafo do Livro, e numa incongruente, demagógica e infernal tendência do culto da personalidade, ele é agora, e mais que nunca, inundado por pragas bem à porta de um outro patamar onde deve começar a sua acção: a linguagem telepática! O Livro vai mudar. Esta nossa etapa tão escapatória, escatológica, improvável, vulnerável, não será inscrita na sua proeza, a dos registrados. Para trás, lindos seres, belas fontes, e grandes, todas as experiências… Mas o Livro é apenas um. Nós achamos que ele é Negro como todos os buracos que engolem galáxias inteiras por este universo fora, mas também há homens que têm medo da penetração tal como qualquer estrela que não deseja dissipar-se, que o ser que penetra entrará para sempre na combustão do desaparecimento. E há ainda no Livro esse insidioso pecado de Onã.
Hoje Macau EventosLivraria Portuguesa | O lugar das letras nas artes visuais em livro A Livraria Portuguesa acolhe, no próximo dia 8 de Junho, a partir das 18h30, o lançamento do livro “A letra como elemento de expressão artística”, da autoria de Flávio Tonnetti e Cláudio Rocha. Esta obra “apresenta um olhar sensível para as letras no contexto das artes visuais”, propondo “uma abordagem estética da mensagem enquanto imagem: além de ser lida, a palavra foi feita para ser vista”. Assim, na apresentação da obra, serão analisados diversos exemplos de obras artísticas, desde a pintura à poesia visual e à colagem, sem esquecer as vanguardas europeias do século XX. Os conceitos e ideias abordados neste evento foram originalmente abordados pelos autores do livro num evento em São Paulo, Brasil, em 2018, tendo sido transformados numa obra em formato digital. O evento será apresentado por Roberval Teixeira da Silva, docente da Universidade de Macau, e por Sara Augusto, docente do Instituto Português do Oriente. Sobre os autores, Cláudio Rocha nasceu em São Paulo em 1957, sendo artista visual e designer. Por sua vez, Flávio Tonnetti nasceu na mesma cidade brasileira, em 1982, estando actualmente no território a fazer um programa de pós-doutoramento na Universidade de Macau nas áreas da arte e cultura, além de colaborar com o HM. Antes do lançamento do livro, os interessados poderão participar, às 17h30, numa oficina conduzida pelo tipógrafo e calígrafo macaense Aquino da Silva, membro da Sociedade de Design e Tipografia de Macau. Nesta oficina os participantes vão desenvolver letras a partir de placas e sinalizações dos prédios históricos de Macau.
Hoje Macau EventosGastronomia | Livro sobre legado macaense publicado em chinês O livro “Macaense Cuisine – Origins and Evolution”, de António Pacheco Jorge da Silva, foi traduzido para chinês. De acordo com uma publicação do Instituto Internacional de Macau (IIM) no Facebook, o lançamento decorre na próxima terça-feira, pelas 16h30, no pavilhão polidesportivo do Tap Siac. O livro foi publicado inicialmente pelo IIM e teve duas edições em inglês: uma em 2016 e outra em 2019. Nesse ano, foi distinguido com o prémio “Gourmand World Cookbook”, durante o evento da Feira Internacional do Livro em Macau. Foi agora traduzido com o apoio da Fundação Macau. O IIM aponta que esta edição foi publicada pelo Jornal Ou Mun “com a intenção de o fazer chegar à vasta comunidade de matriz chinesa em Macau”. A obra descreve as origens e a história da cozinha macaense, nomeadamente o que ficou das receitas e memórias das famílias macaenses que marcaram o antes e o depois da Segunda Guerra Mundial, um momento que marcou a emigração de macaenses. O lançamento, inserido no programa da Feira de Livros da Primavera, é aberto ao público. Será apresentado em cantonense pelo secretário-geral do IIM, Rufino Ramos, e pelo tradutor do livro, o professor Ieong Chi Chau.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasComo encontrei o amor em 10 dias [dropcap]N[/dropcap]o seu mais recente romance, Andrew Neill leva a sua técnica preferida, a ironia, à perfeição, a começar logo pelo título: «Como Encontrei o Amor em 10 Dias». O leitor mais distraído será levado a pensar tratar-se de um livro de auto-ajuda, que pretende ajudar-nos a encontrar eficazmente o amor, e num curto espaço de tempo. Mas o Amor é um Golden Retriever que fugiu do narrador do livro, John Walmsley, durante uma viagem que fizeram juntos numa carrinha a Pasadena, Califórnia, desde Denver, no Colorado. Numa das paragens que John faz numa Estação de Serviço, perde o Amor. O narrador conta-nos essa história de um modo simultaneamente divertido e reflexivo. «Tivemos sempre problemas em público, Amor e eu. Sempre que o chamava, com um tom mais severo – Amor, vem cá; ou Amor, senta –, caiam sobre mim olhares reprovativos, e nesse dia em que o perdi não foi diferente. Estava a pagar, dentro da Estação de Serviço, quando vejo o Amor sair a correr atrás de algum animal que viu. Deixei de imediato a carteira sobre o balcão, e virei-me a gritar “Amor, volta; Amor, volta”, para espanto das pessoas que estavam na fila, não se coibindo de fazerem comentários.» As reacções dos outros, não à relação entre John e Amor, mas entre John e quem eles julgam que possa ser, é uma constante no livro e sublinha o nosso ponto de vista usual na condenação pronta que fazemos aos outros ou, como Neill escreve: «Antes de tentar compreender, estamos já a condenar. Falar é sempre mais rápido do que reflectir, e muito mais distrativo também. Falar não custa nada e distrai-nos de nós mesmos. Há algum remédio mais eficaz para não pensarmos na merda de vida que temos do que falar mal de alguém ou de alguma coisa?» Evidentemente, Amor é um cão e não é um cão. É, porque se trata do Golden Retriever de John, e não é, porque ao longo do livro é sempre descrito como metáfora do próprio amor que todos nós perdemos na vida. Não só pessoalmente, cada um de nós a perder outro, mas a humanidade, ao entregar-se à fala, a um contínuo e imparável falatório, que tem como motor o mal. Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias», o mal é a fala e esta representa a distração, a falta de reflexão, no fundo, a falta de amor, pois este quer atenção, como a leitura ou a aprendizagem. Assim, o livro pode também ser lido como forma de aprendermos ou reaprendermos o amor, de como voltarmos à atenção perdida, como abandonarmos o mundo do falatório e começarmos a trilhar o caminho do amor. E, neste sentido é também um livro de auto-ajuda, ainda que num sentido mais alargado e talvez menos eficaz do ponto de vista comercial. De qualquer modo, o escritor consegue manter uma tensão contínua ao longo do livro entre realidade e simulacro, no tocante ao género Andrew Neill é conhecido pelas posições polémicas e assuntos delicados que trata nos livros que escreve e este romance não é diferente. Se estais lembrados, já em o «Não Conheço Esse Senhor», que provocou uma enorme celeuma nos EUA, Neill contava de modo irónico a história de um político desde a sua terra Natal, Gillette, pequena cidade em Wyoming, até Washington DC. Ian Bolden, o político, vai subindo na carreira através de situações e pessoas obscuras, e sempre que era confrontado pelos jornalistas acerca dessas ligações respondia «Não conheço esse senhor», apesar de haver fotos que o desmentiam. Ian Bolden mentia sem pudor, compulsivamente, adiantando as mais bizarras desculpas. A sua táctica mais arrojada, que era usada apenas quando já nada mais restava fazer para acreditarem nele, era a de que estavam a tentar destruí-lo. Diz num programa de televisão a uma jornalista que o entrevista, com um semblante entristecido: «Ellen, eu sei que parece que estou a mentir, que tenho culpa de tudo o que me acusam. Sei muito bem disso. Mas sabe porquê, Ellen, sabe porque todos pensam isso? Porque a teia de intriga que montaram foi muito bem feita. Aqueles que me querem destruir são muito poderosos. E eles sabem bem que eu sou uma pedra nos seus sapatos. Sabem que sou um obstáculo aos seus planos de subjugar o nosso país aos interesses das multi-nacionais.» Neste livro, o aproveitamento dos bens públicos para benefício próprio está tão ligado à prática comum da política, que não deixa de ser incómodo para toda a sociedade, para todo o eleitor, como quando Neill escreve, através de um cartaz que aparece nas mãos de Sherry Smith: «Votar é escolher aquele que te rouba». Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias» o tom é igualmente reflexivo, se bem que mais divertido. A ironia é levada ao extremo do seu rigor, da sua duplicidade. Para não estragar o fim àqueles que ainda não leram o livro, não poderei adiantar muito mais. Termino apenas por dizer que essa viagem de 10 dias no Oeste dos EUA em busca do Amor – e a do dia em que o perdeu – é uma viagem ao nosso quotidiano, ao nosso modo de vida mais próximo. Talvez mais do que «como encontrei o amor em 10 dias», o livro mostre «como acabei de me dar conta de que perdi o amor, em 10 dias». Seja como for, é um livro a ser lido, do melhor de Andrew Neill.
João Luz EventosLivro | George Takei inspira-se na infância em campos de internamento George Takei, o eterno Sulu de Star Trek, passou parte da infância num campo de internamento para norte-americanos de ascendência japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. O actor recorda o pedaço de história pouco conhecida pelo qual a sua família passou numa novela gráfica intitulada “They Called Us Enemy” [dropcap]O[/dropcap] norte-americano de ascendência japonesa George Takei entrou na cultura pop ao leme da USS Enterprise como o eterno Hikaru Sulu, uma das estrelas de “Star Trek”. Mais de vinte anos antes, o facto de ter nome e família japonesa fizeram com que o pequeno George, com apenas 5 anos, fosse deslocado com a sua família para o centro de relocação Rohwer, no Arkansas, um dos muitos campos de internamento destinados a norte-americanos com raízes japonesas. Entre Fevereiro de 1942 e Março de 1946, cerca de 120 mil pessoas viram-se forçadas a deixar tudo para trás e a viver o pesadelo que cairia no esquecimento, episódio negro diluído entre outras memórias da Segunda Guerra Mundial. O actor, autor e activista, que muitas vezes deu como exemplo este episódio de infância nas lutas contra a discriminação, verteu todo o episódio, que durou quatro anos, na novela gráfica “They Called Us Enemy”. Em declarações ao Los Angeles Times, o autor manifestou esperança de que as suas memórias cheguem às novas gerações. A forma para o fazer teria de ser graficamente à sua medida, uma vez que cresceu com banda desenhada e ainda hoje, com 82 anos, recorda a forte impressão que esse meio lhe provocou na primeira vez que folheou uma BD. “Talvez através da novela gráfica, da típica tira de cartoon, consiga chegar aos mais novos num ponto das suas vidas em que estão em constante absorção de informação”, perspectiva o autor ao jornal norte-americano. Luta por direitos O livro foi escrito em parceria com Justin Eisinger, enquanto os artistas Steven Scott e Harmony Becker deram vida aos quadrados que ilustram a narrativa. Apesar da acção decorrer em grande parte, naturalmente, durante a Segunda Guerra Mundial, também inclui a época dos movimentos de luta por direitos civis dos anos 1960. Uma das imagens mais marcantes de “They Called Us Enemy” está logo nas primeiras páginas, depois de Roosevelt ter declarado guerra ao império japonês. A imagem é simples: um mapa dos Estados Unidos que mostra as áreas onde se ergueram os campos de internamento, com zonas sombreadas cobrindo quase por completo toda a costa oeste até à fronteira com o México no Arizona. Depois de serem declarados pelo Governo “inimigos do Estado”, a família Takei viveu perto de quatro anos com o horizonte cortado por arame-farpado. A jornada começa em 1942, pouco tempo depois do quinto aniversário da criança que viria décadas mais tarde a tornar-se um ícone televisivo. A infância de George Takei foi interrompida por soldados armados com espingardas com baionetas a bater à porta da casa de família em Boyle Heights, em Los Angeles. De forma ríspida pediram que reunissem rapidamente os pertences que fossem capazes. Acompanhado pelos pais e os dois irmãos mais novos, George passou os primeiros meses de cativeiro em estábulos de cavalos na Pista de Corridas de Santa Anita, forçado a coabitar com ratos numa atmosfera empestada pelo cheiro a estrume. Depois dos meses iniciais, foram deslocados para o Arkansas, onde o autor recorda “as paisagens mágicas, fantásticas, com árvores que brotavam de pântanos” e onde viu pela primeira vez uma bola de neve. Apesar das condições humilhantes, a família tentou sempre adaptar-se à nova vida de forma a sobreviverem intactos à realidade do internamento. “Conto duas histórias paralelas. Queria captar a realidade daquele estranho novo mundo para o qual fui transportado, mas ao mesmo tempo quis contar a forma como os meus pais se sentiram, as angústias por que passaram”, explica o autor.
João Luz EventosLivro | George Takei inspira-se na infância em campos de internamento George Takei, o eterno Sulu de Star Trek, passou parte da infância num campo de internamento para norte-americanos de ascendência japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. O actor recorda o pedaço de história pouco conhecida pelo qual a sua família passou numa novela gráfica intitulada “They Called Us Enemy” [dropcap]O[/dropcap] norte-americano de ascendência japonesa George Takei entrou na cultura pop ao leme da USS Enterprise como o eterno Hikaru Sulu, uma das estrelas de “Star Trek”. Mais de vinte anos antes, o facto de ter nome e família japonesa fizeram com que o pequeno George, com apenas 5 anos, fosse deslocado com a sua família para o centro de relocação Rohwer, no Arkansas, um dos muitos campos de internamento destinados a norte-americanos com raízes japonesas. Entre Fevereiro de 1942 e Março de 1946, cerca de 120 mil pessoas viram-se forçadas a deixar tudo para trás e a viver o pesadelo que cairia no esquecimento, episódio negro diluído entre outras memórias da Segunda Guerra Mundial. O actor, autor e activista, que muitas vezes deu como exemplo este episódio de infância nas lutas contra a discriminação, verteu todo o episódio, que durou quatro anos, na novela gráfica “They Called Us Enemy”. Em declarações ao Los Angeles Times, o autor manifestou esperança de que as suas memórias cheguem às novas gerações. A forma para o fazer teria de ser graficamente à sua medida, uma vez que cresceu com banda desenhada e ainda hoje, com 82 anos, recorda a forte impressão que esse meio lhe provocou na primeira vez que folheou uma BD. “Talvez através da novela gráfica, da típica tira de cartoon, consiga chegar aos mais novos num ponto das suas vidas em que estão em constante absorção de informação”, perspectiva o autor ao jornal norte-americano. Luta por direitos O livro foi escrito em parceria com Justin Eisinger, enquanto os artistas Steven Scott e Harmony Becker deram vida aos quadrados que ilustram a narrativa. Apesar da acção decorrer em grande parte, naturalmente, durante a Segunda Guerra Mundial, também inclui a época dos movimentos de luta por direitos civis dos anos 1960. Uma das imagens mais marcantes de “They Called Us Enemy” está logo nas primeiras páginas, depois de Roosevelt ter declarado guerra ao império japonês. A imagem é simples: um mapa dos Estados Unidos que mostra as áreas onde se ergueram os campos de internamento, com zonas sombreadas cobrindo quase por completo toda a costa oeste até à fronteira com o México no Arizona. Depois de serem declarados pelo Governo “inimigos do Estado”, a família Takei viveu perto de quatro anos com o horizonte cortado por arame-farpado. A jornada começa em 1942, pouco tempo depois do quinto aniversário da criança que viria décadas mais tarde a tornar-se um ícone televisivo. A infância de George Takei foi interrompida por soldados armados com espingardas com baionetas a bater à porta da casa de família em Boyle Heights, em Los Angeles. De forma ríspida pediram que reunissem rapidamente os pertences que fossem capazes. Acompanhado pelos pais e os dois irmãos mais novos, George passou os primeiros meses de cativeiro em estábulos de cavalos na Pista de Corridas de Santa Anita, forçado a coabitar com ratos numa atmosfera empestada pelo cheiro a estrume. Depois dos meses iniciais, foram deslocados para o Arkansas, onde o autor recorda “as paisagens mágicas, fantásticas, com árvores que brotavam de pântanos” e onde viu pela primeira vez uma bola de neve. Apesar das condições humilhantes, a família tentou sempre adaptar-se à nova vida de forma a sobreviverem intactos à realidade do internamento. “Conto duas histórias paralelas. Queria captar a realidade daquele estranho novo mundo para o qual fui transportado, mas ao mesmo tempo quis contar a forma como os meus pais se sentiram, as angústias por que passaram”, explica o autor.
Hoje Macau EventosLiteratura | Obras sobre missionários de Macau lançadas no próximo dia 29 [dropcap]N[/dropcap]o próximo dia 29, o Instituto Internacional de Macau (IIM) vai lançar novas obras, em língua chinesa, sobre os missionários que trabalharam no território. A iniciativa está marcada para as 18h30 no auditório da Diocese. A maior parte dos livros resulta de tradução de obras da colecção em português dos “Missionários para o Século XXI”, como é o caso do primeiro sobre o padre Áureo Nunes e Castro, da autoria de João Guedes. Já o segundo sobre Luiz Ruiz Suarez foi escrito por Ieong Chi Chau, antigo director de uma escola católica, que fará a apresentação da sua obra, cuja tradução para a língua portuguesa está em curso. Esta série de edições pretende “aproximar as comunidades e promover o conhecimento dos obreiros e das legiões de servidores da Diocese de Macau, entre eles os padres, missionários, leigos e letrados, que fazem parte da identidade cultural de Macau”, realça o IIM, num comunicado enviado às redacções. Durante a cerimónia de lançamento das obras, vai ter lugar uma actuação do coro de S. Tomás que irá interpretar canções do padre Áureo, em homenagem ao insigne compositor e músico. A iniciativa do IIM e da Diocese de Macau, conta com o apoio da Fundação Macau e com a colaboração da Associação dos Antigos Alunos do Seminário de S. José de Macau.
Sofia Margarida Mota Política“De Macau a Lisboa – Na Rota das Porcelanas Ming” publicado pelo IC “[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e Macau a Lisboa – Na Rota das Porcelanas Ming” é o livro de Armando J. G. Sabrosa apresentado recentemente pelo Instituto Cultual (IC) que se baseia “nos dados obtidos através de trabalhos arqueológicos do autor numa abordagem que destaca o processo de transação comercial de porcelanas chinesas ao longo dos séculos XVI e XVII”. A investigação foi realizada recorrendo aos vestígios de peças encontrados enterrados e submersos, “uma área de investigação ainda pouco desenvolvida”, aponta o organismo em comunicado. Entre portos Segundo o IC, os objectos locais, revelam o espólio de “um grande centro exportador de porcelana chinesa, originário tanto de contextos religiosos e nobiliárquicos, como da área mercantil”. Já as peças de Lisboa, reflectem o que chegava a “um grande centro importador e receptor daquelas cerâmicas asiáticas, nomeadamente na zona ribeirinha, no antigo palácio dos Corte-Reais, e na Rua da Judiaria, em Almada”, aponta a mesma fonte. Além dos objectos, “De Macau a Lisboa – Na Rota das Porcelanas Ming” aborda “o meio de transporte, ou seja, o que liga aqueles dois centros por via marítima: uma das naus da Carreira da Índia, a presumível Nossa Senhora dos Mártires, que, com o porto de destino à vista, naufragou na barra do Tejo com toda a sua valiosa carga”. Armando Sabrosa foi bolseiro do Investigação Académica do IC em 2001. A investigação então realizada deu continuidade aos trabalhos arqueológicos em que participou em Macau, em 1995-96, no Colégio de São Paulo e na Fortaleza do Monte, bem como ao estudo que efectuou sobre o espólio recolhido nas obras dos jardins da Igreja de Santo Agostinho, no mesmo ano. O autor morreu vítima de um acidente, em 2006, deixando um número considerável de manuscritos científicos inéditos ou inacabados. De Macau a Lisboa – Na Rota das Porcelanas Ming é um destes exemplos.
Diana do Mar Manchete SociedadeHistória | Livro reaviva papel do Seminário de S. José na formação das gentes de Macau Desde princípios do século XX, é uma escola vocacionada em exclusivo para a formação de padres, mas o Seminário de S. José foi muito mais ao longo de quase 300 anos de vida. João Guedes foi revisitar o passado, reunindo peças de um ‘puzzle’ que estava por montar, num livro a ser apresentado na próxima semana [dropcap]C[/dropcap]om quase tantas páginas como os anos de vida do Seminário de S. José, o novo livro de João Guedes figura como um capítulo da história de Macau que estava por escrever. Aceitando o repto lançado pelos Antigos Alunos do Seminário de S. José, o autor lançou-se à missão de recolher os pedaços dispersos sobre a vida e o papel de uma instituição, cujo legado, olvidado pelos tempos, fica agora cristalizado em livro. A obra, intitulada “O Seminário de S. José – Na Formação das Gentes de Macau”, é patrocinada pela Fundação Macau. O lançamento está marcado para o próximo dia 19, pelas 19h, no restaurante Metrópole, localizado na Avenida da Praia Grande. Não se sabe exactamente quando tudo começou, porque a data da fundação do Seminário de S. José continua a ser “controversa”, mas as estimativas, com base em documentos da época, apontam para o intervalo entre os 1728 e 1749. Projecto dos jesuítas, o Seminário de S. José surge no contexto da almejada evangelização do Oriente que tinha o Japão e a China como principais eixos, constituindo-se como a “ponta de lança” para a missionação do império do Meio. “Os jesuítas fizeram a grande acrópole que é S. Paulo, com o colégio, para a evangelização do Japão, e depois, uma segunda, também erguida num alto, com uma imponência semelhante, para a evangelização da China”, começa por explicar João Guedes, em entrevista ao HM. Por ali passaram “nomes importantíssimos”, principalmente da cultura, e em escala antes de seguirem para o tribunal das matemáticas, em Pequim, iluminados da área das ciências, complementa. No entanto, o plano, “bem organizado”, vai perdendo fôlego até se esvanecer com a chamada “questão dos ritos”. Em causa o conflito que opôs os jesuítas – que defendiam a continuação da prática dos ritos pelos católicos chineses – e outras ordens religiosas, como os dominicanos – que alegavam que os permitir nos ritos era alimentar superstições incompatíveis com o catolicismo – terminou no século XVIII com a veredicto de Roma contra os homens da Companhia de Jesus. “A polémica foi de tal ordem que o imperador [da China] não teve alternativa senão pura e simplesmente expulsar os padres todos da China”, contextualiza João Guedes. Muitos procuraram refúgio em Macau, em concreto no Seminário de S. José, incluindo o último bispo consagrado da China que fica no território 14 anos à espera de poder entrar em território chinês, mas em vão, salienta João Guedes. A ordem de expulsão dos jesuítas dada pelo Marquês de Pombal chega em 1762, com a execução a redundar num cerco às instalações pertencentes aos jesuítas e na prisão de todos os professores em Macau. Com a expulsão dos jesuítas, o Seminário de S. José fica praticamente ao abandono, um reflexo, aliás, do encolher da força do padroado português do Oriente, mantendo-se pelos 15 anos seguintes na ‘mais apagada e vil tristeza até à chegada dos lazaristas’”, que irão “refundar” o Seminário de S. José que “regressaria, ou mesmo ultrapassaria, o seu antigo esplendor”. Ecos revolucionários Como narra o autor, foi nesta segunda fase da história que o prestígio do Seminário de S. José “se consolidou de facto”, constituindo-se como “a instituição de ensino local, já que a educação laica era virtualmente inexistente”. O liberalismo em Portugal vem, contudo, abrir um nova frente de crise, com os ecos da revolução a fazerem-se sentir localmente a partir de 1822. “Estamos numa altura em que o Seminário de S. José concentra a inteligência local e os professores eram todos sujeitos de grande formação e, portanto, progressistas, pelo que o liberalismo é decididamente apoiado por eles” e “contestado pelo clero secular, principalmente pelos dominicanos”. Após o golpe, Macau singrou durante um ano independente do intermediário poder de Goa e também à revelia de Lisboa”, um período que João Guedes descreve como “muito interessante”: “Durante um ano, Macau foi gerido como uma República e quem mandava era o Leal Senado e, aliás, esteve por um fio de deixar de pertencer à coroa portuguesa e passar a pertencer à brasileira”. Isto porque estávamos na altura do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e “existia em Macau uma corrente liberal para a qual fazia mais sentido Macau ser administrativamente gerido pelo Brasil”. Desde logo porque “quem justificava a existência de Macau eram os comerciantes que, naturalmente, preferiam os brasileiros democráticos em detrimento dos portugueses absolutistas”, mas essa aspiração nunca vingou. A ascensão ao poder dos miguelistas e, por conseguinte, o fim do liberalismo em Macau, dita a prisão ou a fuga dos padres do seminário que volta a mergulhar “numa lenta agonia”. “A educação em Macau simplesmente acaba. Não havia mais nenhum sítio para estudar em Macau. Era muito oneroso para as famílias terem que mandar os filhos para Portugal ou para as Filipinas, por exemplo…”, realça João Guedes. Durante a guerra civil travada em Portugal (1828 a 1834) mantém-se o interregno na formação, mas o cenário que viria depois estaria longe do ideal: “O Seminário de S. José seria novamente afectado, desta feita, por outra razão: o facto de o poder instituído em 1834 ser liberal anticlerical”, explica João Guedes. Os apelos para que o Seminário de S. José voltasse a ser entregue à Companhia de Jesus foram ganhando ímpeto, com os jornais da época a chamar a atenção para a “crassa ignorância” que reinava em Macau, com críticas de que “não existiria um só macaense de 20 anos que soubesse ler, falar e escrever com acerto a sua própria língua”. Os jesuítas acabam por voltar, num regresso que, segundo João Guedes, foi “tão marcante quanto fugaz”. “Durante os nove anos dos Jesuítas, o Seminário, além de ter crescido exponencialmente em quantidade revelou-se igualmente pela qualidade do ensino”, forjando alunos que “acabariam por ter papéis de relevo não só na vida eclesiástica, mas também noutras áreas”. O liceu Em 1870, por virtude de um decreto, o Seminário passa a “servir de liceu”, oferecendo “instrução secundária aos indivíduos que não se destinarem aos estados eclesiásticos”, tornando-o no “único estabelecimento de educação onde se ministrava o ensino secundário, com programa de estudos oficializado”, antes da criação de um Liceu em Macau, em 1893. Uma portaria definia que os professores teriam de ser obrigatoriamente de nacionalidade portuguesa e, pela segunda vez, os jesuítas foram novamente “arredados da história de Macau”. A saída do corpo docente não redundou, como antes, na ruína do seminário, já que no mesmo dia em que os jesuítas partiram (em 1871) chega a Macau um novo grupo, ainda que com um único padre entre os professores. Já a entrada no século XX marca o ponto de viragem, assinala João Guedes, dado que o S. José passa a ser um “verdadeiro seminário”, existindo exclusivamente para formar padres, depois de ter tido, durante décadas a fio, o “exclusivo da educação” e a particularidade e a “grande vantagem” de formar ambas as comunidades de Macau – a portuguesa e a chinesa –, enaltece João Guedes. Alunos notáveis Do universo de vultos que frequentaram o Seminário S. José, o autor do livro destaca nomeadamente o marechal Gomes da Costa, líder do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que instauraria o Estado Novo, mas outras figuras de relevo nacional ali completaram a educação primária e secundária, como os irmãos Artur e João Tamagnini Barbosa, exemplifica João Guedes. O primeiro foi, por três vezes, governador de Macau, enquanto o segundo foi ministro do Interior, das Colónias e das Finanças e desempenhou o cargo equivalente a primeiro-ministro durante a I República. Já da área da cultura emergem nomes como o pintor Luís Demée ou o intérprete-tradutor Pedro Nolasco da Silva. O livro, dividido em 12 capítulos, traça o percurso do seminário, fazendo-se acompanhar por uma série de fotografias de diferentes momentos de uma instituição que “entronca” na vida social da própria cidade.
Hoje Macau EventosJoão Morgado lança novo romance sobre o período da Inquisição É lançado na próxima segunda-feira o novo romance do escritor João Morgado, um dos convidados do festival literário Rota das Letras de 2017. A obra chama-se “O Livro do Império” e tem a chancela da editora Clube de Autor [dropcap]O[/dropcap] período da Inquisição em Portugal é o tema central do novo livro do escritor português João Morgado que será lançado na próxima segunda-feira em Lisboa. “O Livro do Império” tem a chancela da editora Clube de Autor e retrata Portugal numa fase em que o país “tem um império em declínio, com um rei destemido, mas influenciado por uma nobreza e clero corruptos”. Perante este cenário, a Inquisição “não hesita em prender, matar e destruir as mentes e as obras mais brilhantes”. O romance do escritor que foi um dos convidados da sexta edição do festival literário Rota das Letras “narra a vida de um poeta arrependido e a história de Portugal em vésperas da batalha de Alcácer-Quibir”. Nessa altura, Espanha “observa a decadência de Portugal, joga com o poder e o apoio dos jesuítas, e mantém a esperança de voltar a dominar toda a península”. Surge então um “trota-mundos sem eira nem beira”, apesar de levar uma vida de “prisões, putaria e inimigos poderosos”, decide “cantar as glórias desse povo num poema épico que lembra todos ‘aqueles que por obras valorosas’ se foram da ‘lei da morte libertando’”. Contudo, “ao cantar uma estirpe de homens que se igualara a deuses, por contraste compunha também um libelo acusatório contra a depravação vigente”. O livro questiona, então “como foi possível que el-rei e o Santo Ofício tenham deixado publicar esta obra”. Paixão histórica Nascido em 1965, na Covilhã, João Morgado desde sempre esteve ligado ao romance histórico, tendo publicado o seu primeiro livro desse género em 2015, intitulado “Vera Cruz”, e que versa sobre a vida de Pedro Álvares Cabral, apresentando uma tese original sobre a descoberta do Brasil pelos portugueses. Depois da obra inaugural, João Morgado partiu para um romance biográfico sobre Vasco da Gama, publicado em 2016. Posteriormente, foi reeditado o “Diário dos Infiéis”, que foi adaptado ao teatro, bem como “Diário dos Imperfeitos”. Numa entrevista publicada no jornal Ponto Final, em Março do ano passado, João Morgado falou das diferenças deste novo livro face aos anteriores. “O terceiro romance já está escrito, mas ainda vai ficar em segredo porque não sei ainda quando é que o vou publicar. Mas vou falar de uma outra faceta, de uma outra fragilidade humana, certamente.”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasApresentação de um livro perdido e actual [dropcap]V[/dropcap]em agora a lume As Constituições Perdidas de Aristóteles, com tradução do filósofo António de Castro Caeiro. Trata-se de um livro envolto em mistério e polémica. Logo na introdução, Caeiro escreve “Os fragmentos são citações de livros perdidos, imputados a Aristóteles. (…) Os fragmentos foram coligidos a partir de obras de outros autores e cobrem um período de mais de mil anos.” Adiante, o filósofo que aqui faz de tradutor acrescenta: “Aristóteles não escapou ao processo de falsificação.” Estamos, por conseguinte, diante de um livro que levanta inúmeros problemas, mesmo antes de analisarmos o seu conteúdo. Mas os olhares que mais me interessam salientar neste livro são outros e dois: o literário e o político, ambos extremamente contemporâneos, actuais. E começo pelo sentido político que grassa as páginas deste livro. Ao lermos estas Constituições não podemos deixar de ser invadidos pelo sentimento de estranheza que habitava estes povos, que no seu conjunto constituíam a Hélade. Ao lermos o livro vemos bem que o mundo é todo ele constituído de diferenças, de estranhezas. O mundo é um lugar estranho. E é este o ponto de vista que grassa os fragmentos. As palavras mostram esta estranheza que é a verdadeira dimensão do humano. Só quando está a sós e sem pensar é que um humano não é estranho para si próprio. Fora desse momento a estranheza invade-o e tudo para quanto olha aparece como não sendo familiar. Ao se agrupar num mesmo texto estes fragmentos sobre “outros povos”, pois é disto que se trata, está-se a promover a visualização da diferença numa tentativa de compreensão do outro. O tom do livro não é o da crítica ou repulsa do hábito do estrangeiro, mas do espanto e da tentativa de aproximação, de querer entender, de querer ver para além da evidente distância que há entre esse hábito e o nosso. Num dos fragmentos, o 611, III parte, Constituição de Creta, 15, ficamos a ver que a hospitalidade aos estrangeiros não era comum, fazendo dos cretenses um povo à parte. Escute-se esta passagem: “Todos os cretenses costumavam-se sentar em cadeiras. Foram eles os primeiros a partilhar alimentos com os hóspedes. Depois de terem dado uma parte do rendimento aos hóspedes, davam quatro porções ao rei: uma tal como deram aos outros, a segunda para o seu reinado, a terceira para a sua casa e a quarta para as suas peças de mobiliário. Em geral, em Creta há uma enorme boa vontade para com os estrangeiros. Também lhe chamavam o lugar de honra” Há aqui de algum modo, com o elemento que nos parece estranho de mostrar terem sido os cretenses os primeiros a sentarem-se em cadeiras, um elogio aos cretenses, mostrando que eram um povo evoluído, civilizado, e que isso se mostrava também ou principalmente pelo modo como tratavam os estrangeiros. Como se a atenção ao diferente fosse uma marca de civilização, uma marca de evolução, fazendo da aproximação entre os humanos uma mais-valia, um universal desejado e ambicionado. Quero, contudo, deixar claro que este esforço pela anulação da distância não vai promover a anulação da estranheza. Veja-se como exemplo o fragmento 611, Constituição de Esparta, 13: “As mulheres espartanas não tinham nenhum adorno, nem sequer podiam trazer o cabelo comprido ou andar com ouro. Alimentavam os filhos de tal sorte que nunca ficassem saciados, para que se habituassem a ser capazes de suportar a fome. Também os ensinavam a roubar e castigavam com açoites quem fosse apanhado a roubar, para que fossem capazes, como resultado deste treino, a sofrer e a permanecerem acordados se caíssem em mãos inimigas. Começavam logo desde crianças a falar de forma breve e a serem comedidos tanto a gozarem com os outros como a serem gozados pelos outros. As suas sepulturas são simples e iguais para todos. Entre eles ninguém coze pão, pois não têm farinha de trigo, mas apenas cevada.” Mas talvez os fragmentos em que este esforço de entender a diferença, o estranho, apareçam de modo mais claro sejam os fragmento 538 e 539. Vejamos primeiro o 538: “A krypteia era chamada a agência secreta dos lacedemónios – se é que se tratava de um dos órgãos de governação de entre os que foram incluídos na constituição de Licurgo, como nos informa Aristóteles. Como quer que tenha sido, permitiu a Platão formar uma opinião sobre a Constituição dos Lacedemónios e Licurgo. A krypteia agia assim: os comandantes jovens enviavam, de tempos a tempos, aqueles que lhes pareciam ser os mais inteligentes para o campo, apenas com um punhal e ração de sobrevivência. Mais nada. Escondiam-se durante o dia, espalhados por locais desconhecidos, e descansavam. Mas, de noite, faziam-se a caminho e assassinavam todos os Helotas que apanhassem. Aristóteles diz ter sido sobretudo quando os Éforos chegaram ao poder que decidiram declarar logo guerra aos Helotas, para o massacre poder ser praticado sem violação de escrúpulo religioso.” Percebemos claramente, no final, o esforço de Aristóteles em incutir racionalidade a um acto que em si mesmo parece falido de razão. E iremos ver o mesmo no fragmento 539: “Como diz Aristóteles, quando chegaram ao poder, os Éforos mandaram anunciar aos cidadãos que deviam cortar o bigode e obedecer às leis, para não terem de ser duros com eles. Eu acho que propuseram a coisa do bigode para que os mais novos se acostumassem a obedecer, mesmo a respeito dos mínimos detalhes.” Embora este último fragmento tenha um carácter cómico, à luz dos nossos dias, se em comparação com o primeiro, a verdade é que estamos diante da mesma espécie de fenómenos: por um lado a prepotência e irracionalidade dos actos perpetrados e, por outro, uma tentativa de compreensão, de conferir racionalidade ao que nos é estranho. Mas voltando ainda ao espectro da estranheza e da diferença, e neste caso em relação a nós aqui e agora, leia-se o fragmento 542: “Aristóteles diz que na Constituição dos Lacedemónios que estes usavam para os combates um uniforme cor de púrpura e isto por dois motivos. Primeiro, por causa da virilidade da cor. Depois, porque o sangue é dessa cor e assim ajuda a fazer pouco caso do sangue derramado.” Esta ligação da cor púrpura à virilidade soa-nos claramente estranha. Mas imbuídos do espírito do livro, deste exercício de aproximação ao estranho e distante, ficamos presos ao segundo argumento, o de ser duma cor semelhante à do sangue e por isso ter ou poder ter efeitos práticos e úteis. Esta aproximação contínua ao estranho e diferente faz deste livro um livro actual. Actual, porque necessário aqui e agora. Falta-nos hoje, e cada vez mais, este exercitar-nos na aproximação ao diferente e estranho. Aliás, o que temos visto recentemente é o nosso mundo a caminhar cada vez mais para uma anulação do diferente. Caminhamos perigosamente, e na contramão deste livro de Aristóteles, não num conferir racionalidade ao que nos parece carecer dela, mas conferir irracionalidade ao que nos escapa por falta de exercício racional. Isto só por si faz deste livro um livro urgente, um livro que tem um uso actual e necessário. Um livro político, na melhor acessão da palavra. Do ponto de vista literário, estes fragmentos estão repletos de pequenas pérolas narrativas, como se se tratassem de micro-contos, que, no seu conjunto, acabam por nos dar um retrato panorâmico da Antiga Grécia e da sua enorme diversidade. Relatos que nos instiga a querer ver mais do que nos é contado, a imaginar, a fazermos nós uma continuação daquilo que nos é contado, que é a função da grande literatura. E apenas como exemplo disto, vou ler-vos o fragmento 609: “Aristóteles, o filósofo, relata que alguns dos Gregos, quando regressavam de Tróia, foram surpreendidos, ao contornar o cabo Maleia, por uma tempestade violenta. Arrastados pelos ventos durante tanto tempo, vaguearam por muitos mares, acabando por ir dar a um local de Ópica, chamado Lácio, e que fica no mar Tirreno. Contentes por verem terra, puxaram os barcos para aí mesmo passarem a estação das tempestades, preparando-se para partir quando chegasse a Primavera. Então, numa noite depois de o fogo lhes ter destruído as embarcações, sem saber o que fazer para prepararem a partida, a inevitabilidade inesperada obrigou-os a fazerem vida justamente no local onde tinham ido dar. Isto aconteceu-lhes por causa das mulheres cativas que traziam de Tróia. Foram elas quem incendiou as embarcações, com medo da partida para a casa dos Aqueus, porque uma vez lá chegadas iriam para a escravidão.” Estamos assim perante uma versão da fundação da cidade de Roma, mais literária e mais humana do que a versão mitológica conhecida. E ao longo deste livro temos várias pérolas literárias semelhantes a esta. Terminava esta apresentação voltando à estranheza que percorre as páginas deste livro e que não vos deve ter passado despercebido ao escutarem os fragmentos que vos li. De facto, a estranheza está não só no conteúdo, para nós agora e para os povos da Hélade, confrontados uns com os outros nos seus hábitos, mas também na forma, neste confronto entre as línguas gregas que falam nos textos originais e a nossa língua portuguesa. Resta agradecer ao António de Castro Caeiro este livro fazer agora parte da nossa língua.
Hoje Macau China / ÁsiaEscritora de romance erótico ‘gay’ condenada a mais de 10 anos de prisão na China [dropcap]U[/dropcap]ma escritora chinesa foi condenada a dez anos e meio de cadeia pela publicação de um romance erótico com protagonistas homossexuais, uma pesada sentença que está a causar choque e indignação no país, foi hoje noticiado. De acordo com o jornal South China Morning Post, a escritora de apelido Liu, mas mais conhecida como “Tianyi”, foi condenada no mês passado por “produzir e vender material pornográfico”. O caso só foi tornado público na passada sexta-feira, na televisão chinesa. O romance de 2017, que vendeu mais de sete mil cópias na Internet, retrata um caso de amor proibido entre um professor e um estudante. Para a estação de televisão chinesa Anhui, que divulgou a sentença, o livro, “tingido de violência”, não contém mais do que “representações gráficas de cenas de sexo homossexual masculino”. A pornografia é ilegal na China, mas a pesada sentença dada à escritora originou indignação nas redes sociais. De acordo com a lei criminal do país, as sentenças aplicadas a quem produz e divulga material obsceno com fins lucrativos podem variar muito, dependendo da gravidade da ofensa. No entanto, utilizadores das redes sociais não tardaram a apontar que para muitos crimes graves, incluindo violação e homicídio, são ditadas, muitas vezes, em sentenças menores. A base legal da sentença da escritora é uma interpretação judicial emitida pelo Supremo Tribunal da China. De acordo com o tribunal, vender mais de 5.000 cópias de livros pornográficos ou fazer mais de 10.000 yuan com a venda é considerado uma “circunstância especialmente grave”, que carrega uma sentença de “prisão por não menos que 10 anos”. Liu não só vendeu mais de cinco mil cópias, como também obteve um lucro de 150.000 yuan ao fazê-lo. No entanto, a interpretação judicial foi publicada em 1998, pelo que os críticos defendem que está desactualizada. “Pode ter sido difícil vender cinco mil cópias em 1998, não havia internet na época. Mas agora não requer quase esforço”, disse um dos comentários mais apreciados no Weibo, rede social chinesa idêntica ao Twitter.