Hoje Macau PolíticaVisita oficial | Ministro da cultura português quer aprofundar relações com a China [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ministro da Cultura de Portugal, Luís Castro Mendes, manifestou a disponibilidade do Governo português para aprofundar as relações culturais com a China, destacando “as mais valias” que a diversidade cultural pode oferecer aos dois países. Luís Castro Mendes discursava na inauguração do “Fórum Cultural entre a China e os Países de Língua Portuguesa”, um conjunto de seminários de intercâmbio e o principal motivo da visita oficial de dois dias a Macau que terminou sábado. “Os resultados [deste fórum] irão permitir reforçar a relação especial da China com a língua portuguesa e com as culturas que são transmitidas pela língua portuguesa em todo o mundo”, sublinhou. No caso de Portugal, “é incomensurável o potencial ainda por explorar no quadro das excelentes relações históricas com a China”, países que celebram, em 2019, quatro décadas de relações diplomáticas. Na sexta-feira, o ministro afirmou que Xi Jinping vai estar em Lisboa no início de Dezembro, numa antecipação do ‘ano da China em Portugal’. Neste sentido, o Governo português “está disponível para promover o aprofundamento das relações culturais” com os homólogos chineses, “procurando estabelecer pontos de diálogo entre Estados e povos”, disse. Noutro patamar Por sua vez, o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, considerou que o intercâmbio cultural também eleva “a outro patamar” as cooperações multilaterais entre a China e os países lusófonos em áreas como o “turismo, comércio e investimento”. De acordo com o responsável, Macau vai facultar aos países lusófonos “oportunidades de estudo, formação e estágios destinados aos profissionais na área turística, de convenções e exposições”. No campo do ensino, Alexis Tam também garantiu aumentar as bolsas de estudo, “tanto para os estudantes lusófonos que aprendem chinês”, mas também para “os alunos chineses que aprendem português”. O fórum cultural sino-lusófono é um dos quatro eventos da primeira edição do “Festival de Artes e Cultura entre a China e os países de Língua Portuguesa”, um ‘novo capítulo’ no intercâmbio cultural entre estes países, na opinião do Instituto Cultural (IC), que organiza o certame.
Hoje Macau Manchete SociedadeDiplomacia | Ministro português da Cultura em vista oficial a Macau O ministro da cultura português, Luís Castro Mendes, chega amanhã a Macau para participar no fórum cultural entre a China e os países lusófonos. O evento insere-se no “Encontro em Macau”, festival de artes e cultura, que traz ao território trabalhos de artistas internacionais [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, viaja esta semana até Macau para participar num fórum cultural entre a China e os países lusófonos, que tem procurado, através da língua e da cultura, intensificar o intercâmbio entre as partes envolvidas. O responsável pela pasta da Cultura vai estar presente, amanhã, na abertura da exposição “Chapas Sínicas – Histórias de Macau na Torre do Tombo”, um conjunto de documentos em chinês que retrata a cooperação entre as autoridades chinesas e portuguesas em Macau durante a dinastia Qing (1693-1886). As Chapas Sínicas – assim chamadas devido ao carimbo que era colocado na correspondência – compreendem um total de 3.600 documentos, referentes ao período entre 1693 e 1886, e fazem parte do acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. No ano passado, foram inscritas no registo da memória do mundo da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). A partir de sábado, 102 destes documentos vão estar patentes em Macau, sendo que 35 foram traduzidos, na época, do chinês para português. Diversidade bilateral A inauguração antecede a abertura oficial do Fórum Cultural entre a China e os Países de Língua Portuguesa, no sábado, durante a qual se esperam intervenções do ministro e de outros oradores. Nas palavras do Instituto Cultural de Macau (IC), este fórum “dedicado à diversidade” contribui para o “intercâmbio e a cooperação cultural sino-portuguesa”, e está integrado num evento ainda maior: Encontro em Macau – festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa. A 1.ª edição do encontro arrancou na terça-feira com a projecção, no Centro Cultural, do filme “Ira de Silêncio”, última obra do realizador chinês Xin Yukun. A primeira longa-metragem do cineasta português Manoel de Oliveira, “Aniki-Bóbó”, e o documentário “Douro, Faina Fluvial” vão encerrar o alinhamento do festival de cinema, que conta com um total de 24 filmes e 23 sessões de projecção, de acordo com o IC. Além do Festival de Cinema e do Fórum Cultural, O “Encontro em Macau” organiza ainda, durante o mês de Julho, uma exposição anual de artes e um serão de espetáculos.
Diana do Mar EventosCultura | Festival de artes sino-lusófono a partir de dia 30 [dropcap style=’circle’] M [/dropcap] acau vai acolher, a partir do próximo dia 30, o primeiro “Festival de Artes e Cultura entre a China e os países de língua portuguesa”. Os bilhetes vão ser colocados à venda no fim-de-semana. Cinema, música e dança figuram entre as propostas da primeira edição do “Encontro em Macau – Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa”. A iniciativa, organizada pelo Instituto Cultural (IC), vai decorrer entre 30 de Junho e 13 de Julho. O Festival de Cinema entre a China e os Países de Língua Portuguesa conta com 24 filmes, dividindos em três categorias: “Filmes em Chinês”, “Filmes em Português” e “Imagens, Macau”. “Wrath of Silence” (“Ira de Silêncio”), o filme mais recente do realizador chinês, Xin Yukun, abre o festival que vai fechar com uma “dobradinha” do cineasta português Manoel de Oliveira, falecido em 2015. Os filmes escolhidos foram “Aniki Bóbó” (a sua primeira longa-metragem) e “Douro, Faina Fluvial” (o seu primeiro documentário curto). O cartaz inclui três películas contemporâneas da China, nove filmados recentemente em países de língua portuguesa, como Portugal, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Guiné-Bissau, bem como na África do Sul, e outros tantos (em chinês e em português) que foram gravados em Macau entre 1923 e 2015. As exibição dos filmes vai ser complementada com seminários pós-projecção e palestras, indicou o IC, num comunicado enviado ontem. Música e dança Já a 6 de Julho, pelas 20h, realiza-se o Serão de Espectáculos entre a China e os países de língua portuguesa. O Grupo de Artes Performativas de Gansu é um dos que vai subir ao palco do grande auditório do Centro Cultural, dando a conhecer os costumes do povo do noroeste da China, através de música e dança com elementos do seu património cultural intangível, realça o IC. No que diz respeito aos grupos musicais e de dança dos oito países de língua portuguesa que também vão actuar no serão, o destaque vai para o agrupamento musical português Galandum Galundaina que irá apresentar melodias antigas. Os bilhetes para o Festival de Cinema vão ser colocados à venda na Cinemateca Paixão a partir de amanhã, custando 60 patacas. Os ingressos para o Serão de Espectáculos vão ficar disponíveis na bilheteira online de Macau a partir de domingo, ao preço de 50 patacas.
Manuel de Almeida h | Artes, Letras e IdeiasA Razão de Existir (o prazer, a alegria & a «face») “A maior ameaça à nossa liberdade é a ausência de sentido crítico” [dropcap]A[/dropcap] frase é do Nobel da Literatura Wole Soyinka – pseudónimo literário de Alcinwande Oluwale, que nasceu a 13 de Julho de 1934 em Abeokuta, na Nigéria e que foi o primeiro escritor africano a receber o galardão. Criticar mas também convencionar, divergir mas também convergir, contestar mas também construir – resumindo ter um pensamento urbano! Antes de mais, gostaria, desde logo, de fazer uma declaração de interesses. Gosto de ter uma relação com o mundo, de construção e não de destruição. Gostaria que não se criassem – ou não nos obrigassem – a viver em círculos cáusticos, nem destrutivos e gostaria, por fim, que Macau não precisasse de se distinguir negativamente de ninguém, se souber distinguir-se positivamente (a música é melhor que o caos – sem casa, nem lar). Terra onde complacência é norma e o desleixo tradição, Não obrigado! («Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo com os nossos méritos» – Albert Einstein). Vivemos num Território de dúvidas! Apesar de tudo, estou feliz, por não integrar o «partido» do pensamento único, nem o «comité» do elogio mútuo e, além disso os meus pensamentos não estão agarrados a qualquer compromisso. Eu não acredito em sociedades de admiração mútua. “Toda a vez que estiveres do lado da maioria, é hora de parar e reflectir” – na opinião de Mark Twain -, mas cada um sabe de Si. Gosto de leituras diversas e dispersas, a juntar à degustação matinal da imprensa escrita – as outras só por uma questão de princípios ideológicos quase abandonei – gostaria de lembrar Hegel: “A Leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno”. O abandono premeditado de outras formas de comunicação, já que “os factos não me interessam” – estou a parafrasear Musil, o d’ “O Homem sem Qualidades” – que acrescenta, e faço minhas as suas palavras, “só as interpretações” -, apesar destas nem sempre denotarem ambição crítica (um grave problema cultural) e sem essa cláusula não há evolução do pensamento – nem no mínimo critica moral. As palavras são acções. Já Nietzsche dizia: “Não há factos, só interpretação de factos”. Mas interpretação dos factos sem conhecimento: Não. Esperemos que o pensamento não autorizado nunca seja crime. Convém, desde logo, saber separar má-língua e crítica. «A má-língua é derrotista e paralisante, ao contrário do espírito crítico, que põe em causa falsos alarmes e falsas evidências,sabe analisar, sabe avaliar, sabe destrinçar» – resumindo, decide. O problema da crítica – segundo Nuno Júdice – “é trazer as inimizades dos ressentidos, a arrogância dos medíocres e o fechamento da corporação”. A morte da crítica corresponde essencialmente ao desaparecimento do debate político. Criticar não é ter ódio a ninguém – é discordar. Um outro grave denominador comum é a chamada “censura social” que não nos deixa falar verdade. Já Confúcio apregoava, “saber o que é correcto e não o fazer é falta de coragem”. Para isso, precisamos urgentemente de um pouco mais de ambição e um pouco menos de contenção, precisamos de limitar o uso do conceito consenso e usar preferencialmente compromisso, precisamos de um pouco mais de exigência e tenacidade para acabar com a indigência – terminar com o padrão de “política de pequeno círculo” (café/mahjong, «fazendo da língua mesa de conversa») -, ter uma mudança de atitude, com uma visão aberta e não dogmática da realidade. Temos de saber criar um diálogo civilizacional entre política e felicidade. Políticas arrojadas, com uma desconstrução do discurso assim como também de conceitos, para acabar com este tipo de sociedade cuja personalidade é fraca, pungente, imperfeita e refém, para a dotar de uma personalidade forte, gloriosa, perfeita e criadora. Não é por acaso que a população, hoje em dia, está despida de transcendência, valores ou referências. Assim, nunca construiremos uma sociedade coesa, humanista e solidária – é preciso reforçar o sentimento de pertença e de partilha -, estar atento ao próximo. Discursos estruturantes – com uma linguagem enxuta e drenada, em vez de técnica e factual, sem futilidades, insignificâncias e provincianismos. A comunicação é dificiente, insuficiente, tardia e às vezes nula. Prometer e negar devem ser palavras excluídas do discurso político. Definir e aplicar políticas de transformação estrutural e modernização efectiva. Não abdicar da cultura do exemplo. Apostar na cultura cívica – competência, dedicação e empenho – e, educacional. Recuperar valores de cidadania. Reestruturar o tecido social e familiar. Transformar a paixão em carácter. Aplicar uma maior justiça fiscal (temos de saber descontextualizar os números). Ter uma visão cultural humanista. Fazer cumprir o dever de memória, porque ao perdê-lo, perde grande parte da sua identidade (sem sentimentos de pertença) e dignidade. Criar um quadro de diálogos entre o presente e a memória. Combater privilégios. Reforçar a economia social. Promover a economia verde e 4.0 (baseada no conhecimento) e crescimento azul – «Definir um rumo e um propósito, dizer para onde vamos e por onde vamos». Só assim se pode criar uma sociedade caracterizada pela responsabilidade, iniciativa, autonomia, liderança, disciplina, participação e, sobretudo, ambição. Daí resulta uma cultura moderna de risco, conhecimento, inovação e reforma de métodos e mentalidades. O sociólogo alemão George Simmel diz que, para se desenvolver, “uma sociedade precisa de uma certa quantidade de harmonia e desarmonia, de associação e competição”. Temos de combater a resignação e o medo – “O medo devora a alma” – Rainer W. Fassbinder. Precisamos de uma palavra de confiança. Já Goethe dizia: “As pessoas infelizes são perigosas”. Falta saber conciliar a política do poder com a política da razão e essa leitura passa por uma interpretação correcta da relação entre pobreza, direitos sociais e políticos. Torna-se necessário examinar e rever, cuidadosamente, os modelos de respostas às dificuldades. Não se pode, ou não se deve, oscilar entre a insensibilidade para com os mais pobres e a vassalagem para com os mais ricos. Engolimos explicações que nunca deveriam ser aceites por uma sociedade saudável («que respire») e minimamente exigente («com poder de orientação») – devíamos de ser capazes de unir esforços e reunir interesses. A mentira vence, sem mentiras não havia vitórias… Até porque os últimos anos foram de sofrimento privado e letargia pública. “E o que não presta é isto, esta maneira Quotidiana Esta comédia desumana E triste, Que cobre de soturna maldição A própria indignação Que lhe resiste” Miguel Torga (1907/1995), escritor
Hoje Macau EventosFundo das Indústrias Culturais | Apoios com novas regras [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s apoios concedidos pelo Fundo das Indústrias Culturais vão ter novas regras a partir do próximo dia 1 de Março. Se até agora existiam duas fases de candidatura para financiamento de projectos, a partir de Março as candidaturas podem ser feitas em qualquer altura. De acordo com o despacho publicado ontem em Boletim Oficial, vão ainda ter direito a apoio os “programas específicos”. A ideia é ajudar a desenvolver as indústrias culturais dentro das suas especificidades. Os apoios sob a forma de empréstimo sem juro, podem ter auma duração de dez anos enquanto que as ajudas a fundo perdido têm uma duração máxima de cinco anos, sendo que o valor máximo a conceder a cada projecto não pode ultrapassar 9 milhões de patacas. Até Outubro do ano passado foram aprovados pelo Fundo das Indústrias Culturais um total de 53 projectos no valor de de 124 milhões de patacas, em subsídios a fundo perdido e empréstimos sem juros.
Manuel de Almeida h | Artes, Letras e IdeiasIdeias, factos e ideais “Neste mundo onde se grita, ninguém ouve os gritos dos que sofrem.” Raul Brandão (1867/1930), escritor e jornalista português [dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ostava de poder comunicar sensações que pudessem levar a uma partilha de sentimentos, percursos, diálogos…, já que vivemos num meio de sordidez moral, intelectual e estética. Não sei porque escrevo, talvez porque algo me dói – talvez devido aos charcos da escassez de ideias -, ou será paixão? Sempre tive mais dúvidas que certezas, desde novo que perdi a pressa de coisa alguma e, penso sempre que o melhor está sempre por vir – tenho uma consciência tranquila com o tempo -, mas nunca gostei de ouvir falar no esplendor tenebroso do destino. “Os meus destinos só estão bem comigo. Ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado”, faço minhas as palavras de Amadeo de Souza-Cardoso. O tempo – esse derradeiro e implacável juiz -, sei o que é (« vivo com ele»), mas não sei explicar – parafraseando ideias de Eduardo Lourenço. Sempre achei que o tempo era um conceito mais constante. Enganei-me! Antes de pensar e agir, é preciso sentir. Pertenço a uma geração de transição, contradição e afirmação. Perdi a ilusão de que pela escrita se pode mudar o Mundo, só Almeida Garrett – quem mais podia ser -, acreditava que com a contundência da sua escrita podia mais do que a espada. Mas os grandes textos tornam-se impossíveis de se abarcar numa só Leitura. Estamos a chegar a um estado de saturação, o ritmo é frenético e electrizante que não nos deixa pensar.Vivemos dentro de um passo que não é o nosso, é o compasso das máquinas e dos computadores («o triunfo da correcção automática»). Sôfrega de atenção, actividade e consumo. Roubam-nos o tempo. Infelizmente já não temos tempo para silenciar o ruído…, saborear momentos…, ter capacidade para sonhar. Torna-mos a vida pragmática e racional. Temos de saber parar para reflectir! Sentir («viver») Macau –“ a maneira mais profunda de sentir uma coisa é sofrer por ela” – escreveu Gustave Flaubert -, é percorrer a sua geografia afectiva e sentimental. É combater vícios, sarar feridas, detectar maleitas. É lutar contra a falta de honestidade intelectual e coerência de pensamento, a falta de seriedade. É envolver-nos na sua alegria e tristeza («dramas e frustações») e, comprometemo-nos moral e éticamente com a cidade. Não se pode ficar inume a nada do que vemos e ouvimos à nossa volta. Sempre tive uma sensação de proximidade com Macau, sólida e delicada, sensual e familiar. É a penumbra das coisas íntimas que nos atravessam e nunca mais nos largam. Sinto-me abraçado pela utopia quotidiana da Cidade ( «romântica/sensível e material/vício») – «venho de um tempo em que viver em Macau era rasgar possibilidades». Sempre tive uma “fiel dedicação à honra de estar” -, para lembrar Jorge de Sena. Mas nada hoje em dia em Macau parece coerente e inteiro . Vive-se de fragmentos. Não existe uma linguagem de poder, criação e criatividade. A Gramática da idêntidade («auxíliavamos nos apontamentos») desapareceu. Macau é o deslugar do lugar… Uma Cidade excessiva, massacrada,torturada, flagelada. Fico triste de vê-la “maquilhada como uma mãe morta” – para lembrar Joan Margarit – , os «filhos» estão abatidos, moribundos, despedaçados, consolam-se! Não há uma paisagem ética. Há uma espécie de floresta encantada, recheada de perigos. Uma oposição entre hino e elegia. A maior parte dos portugueses a viver em Macau já deixaram de interrogar a vida – confiam nela -, criaram ilusões. Viram partir as referências (« gostam de olhar a Lua em noites de luar»). Os mais velhos olham o céu com menos admiração e mais receio. Nos últimos anos a realidade transformou-se em abstração para muita gente. Vivemos em cavernas de silêncio . Arrumam-nos os dias («um teatro de medos e esperanças um discurso de ficções e de metáforas»). Há luz do dia, nasce a angústia!… Precisamos de luz no coração. Não há consciência crítica nem fraternidade cívica. Se não houver uma ética de convicções, não haverá naturalmente uma ética da responsabilidade. Ninguém assume responsabilidade sobre nada – e, por isso o estado a que o Território chegou, é provavelmente, obra do acaso. Estudamos a narrativa da obediência e esquecemos a poesia da desobediência («em homenagem à “liberdade” verbal»). A população é educada para não reagir, não questionar, não prostestar. Vive-se em economia política do verbo («é triste não os sabermos conjugar») Degustamos a luz da poesia no silêncio da vida! Temos de criar um pensamento autónomo, não enfeudado em dogmas ou crenças. Sermos mais persistentes na exigência crítica, argutos analistas de ideias e factos, perscrutadores de paradoxos e sabermos interrogar constantemente. Não existe por exemplo uma actividade crítica original à materialidade formal . Uma das máximas da mundividência é o diálogo. Mas não existe diálogo se não soubermos quem somos. A propaganda é o colapso da linguagem. O «Poder» não é nem nunca será sinónimo de verdade e justiça, muito menos terá o monopólio da moral e da legitimidade. Exige-se seriedade, respeito, confiança e honestidade. Vive-se num ambiente infeliz, injusto, irrespirável («assemelhando-se a uma fábrica de preconceitos») –, que pode provocar a desintegração da sociedade («tornou-se amarga»). É uma sociedade que fabrica a solidão, a demência, a esquizofrenia. Existe défice de confiança -, a população ainda olha para o Governo com um profundo sentimento de orfandade, inevitabilidade e apatia -, pode ser dócil e empenhada, mas não é imbecil nem estúpida. Rejeita os discursos ambíguos («saber “renascer” a esperança»). Falo da falta da esperança e desgaste da estratégia. São vozes humanas que «devemos» saber escutar. Falta-lhes contudo o exercício da palavra («recurso das palavras»). Não têm o poder da frase evocativa. Vivemos entre o dogmatismo e a descrença. Temos de nos tornar mais vigilantes, mais organizados, mais cidadãos – uma cidadania activa e responsável. Existe um pessimismo generalizado e uma desmotivação colectiva. Crescem as franjas de indignados («a textura social agita-se»). Precisamos de “outra forma de vivência” – com uma agenda política sólida (« a relação com o “Outro”») e uma visão estratégia da sociedade e, não com artefactos ideológicos («sem alma e sem rosto»), nem com rigidez doutrinária. É preciso apostar em causas, ideias e projectos, de maneira a “construir” uma sociedade mais justa e inclusiva, com valores, solidária, coesa e humanista. A sociedade está a ficar mais egoísta, mais individual, deixou de ter uma visão colectiva. Uma sociedade tantas vezes intoxicada pelo consumismo e pelo hedonismo, pela riqueza e pela extravagância, pelas aparências e pelo narcisismo. O mosaico espiritual desapareceu, instalou-se a decadência moral na cidade. A dúvida e a incerteza, são um perigo, para o dia de amanhã…e, a ideia de que não há culpados…, pode-nos levar a pensar que a culpa seja «nossa». Afinal de contas a idade não serve só para envelhecer. Ou será? Os sonhos não envelhecem (sem nunca mostrar apreço ou subversão)…. e as árvores morrem de pé («o “medo” do sobressalto do despertar»). “outros amarão as coisas que eu amei” Sophia de Mello Breyner
João Santos Filipe Manchete PolíticaAgnes Lam arrasa Festival Internacional de Cinema A deputada atacou o Festival Internacional de Cinema e defendeu que promoção da cultura vai além do convite para que as estrelas internacionais para passeiem na passadeira vermelha. Horas depois, deixou o hemiciclo antes de ser votado o debate sobre os órgãos municipais [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] deputada Agnes Lam criticou ontem a organização do 2.º Festival Internacional de Cinema, que considerou o evento um sucesso, apesar de precisar de oferecer bilhetes para ter pessoas nas salas. Na Assembleia Legislativa, a legisladora moderada frisou que uma actividade cultural que custa 20 milhões de patacas precisas de conseguir atrair os residentes. “De acordo com informações oficiais, 10 mil dos 15 mil bilhetes [distribuídos para a cerimónia de Entrega de Prémios do Festival] eram cupões que foram distribuídos principalmente às escolas, associações e a profissionais do sector cultural e artístico de Macau e do exterior, e da comunicação social”, começou por apontar Agnes Lam. “Esta iniciativa custou 20 milhões de patacas do erário público e deveria servir para atrair turistas e criar marcas culturais locais. Se até foi difícil convencer as pessoas a comprar bilhetes, como é que se pode dizer que a iniciativa alcançou os objectivos?”, questionou. Além da questão monetária, a legisladora admite que se registem perdas com o evento, se “o objectivo da actividade for cultivar um ambiente cultural”. Porém, mesmo nesse capítulo defende que é importante que seja registada uma elevada taxa de participação. “O Governo deve definir indicadores passíveis de rastreio, tais como a taxa de participação do pessoal local do sector cinematográfico, com vista a esclarecer a contribuição desta actividade para o desenvolvimento cultural”, apontou. “Não podemos só emitir notas de imprensa e convidar alguém a pisar a passadeira vermelha para dizer que a actividade promoveu o desenvolvimento cultural de Macau”, disparou a deputada, naquela que foi a sua intervenção mais agressiva na AL, horas antes de abandonar o hemiciclo quando se debatia o debate sobre a criação de órgãos não-municipais. Bilhetes à borla Por outro lado, a membro da Assembleia Legislativa apontou o dedo à oferta dos bilhetes, que diz prejudicar os residentes e turistas que se disponibilizaram para pagar pelos ingressos. “Os membros do Governo não devem ser ambiciosos e avançar com as actividades só por avançar, nem devem oferecer bilhetes para as salas não ficarem vazias, quando a atracção dos eventos é zero”, defendeu. “A oferta de bilhetes afecta a avaliação do Governo e dos cidadãos sobre os efeitos das actividades, é um desperdício de recursos, e afecta as pessoas que pagaram bilhetes, os residentes passam a criar o hábito da oferta de bilhetes, afectado gravemente a cultura de pagar, criado pelo sector cultural, bem como o desenvolvimento do sector e do ambiente de exploração”, acrescentou. Agnes Lam terminou a intervenção antes da ordem do dia, que antecede a agenda do Plenário, deixando o desejo que “as autoridades com responsabilidades na área cultural façam uma boa gestão, utilizem racionalmente o erário público” e “adoptem uma política cultural visionária, a fim de contribuírem verdadeiramente para o sector cultural de Macau”. O Festival Internacional de Macau é organizado pelo Governo, nomeadamente pelos Serviços de Turismo, que estão sob a tutela do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam.
Manuel de Almeida h | Artes, Letras e IdeiasMistérios de Factos & Estórias de Memórias [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pós a fulgurante estreia ficcional em 2000, com o título “As Más Inclinações” e, tendo como subtítulo “Breviário do Jogo” – que a crítica apelidou de escrita “silenciosa”, construída com uma “agilidade vocabular perfeita e refinada”, de um autor “estranho, requintado e provocador”, E. Trovoada está de volta aos escaparates das livrarias, agora com “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, com a chancela da «Chapas Sínicas». Apesar do reconhecimento público, foi com “O Estranho Caso de Mr. Mao” de 2006 e de “A Chave da Casa Abandonada” de 2009, que o talento e o reconhecimento de Trovoada se consolidou. A crítica foi unânime – aclamou, aplaudiu – rendeu-se: “Uma obra importantíssima, das mais originais e poderosas no actual panorama editorial” – podia ler-se –, “destruição de mitos” de um autor que “reinventa, recria os factos, procurando transmiti-los de forma original, sem traumas, tormentos ou desilusões” , ou ainda, “acolhe memórias ,experiências e sensações de forma a preservar e conservar a identidade colectiva”. A obra de estreia de E. Trovoada, “As Más Inclinações – Breviário do Jogo” (2000), não é um livro de grande complexidade estrutural, nem de grande sofisticação intelectual, mas é um livro de uma prosa magnífica – escorreita, sadia, pura –, que vai do confronto pessoal ao político. O autor começa por reflectir sobre o lugar que habitamos, a construção da identidade, afectos, memórias – a relação umbilical entre as pessoas e o seu espaço –, não na teoria de Le Corbusier , onde “uma casa é uma máquina de morar”. É uma obra centrífuga – em vez de seguir em frente –, ela anda para os lados, avança para a periferia e, a partir do quarto capítulo a linearidade da narrativa estilhaça-se de vez. Passa a salpicar o texto com pormenores inconsequentes, pequenas aventuras, experiências vazias, diversificadas por vezes, mas banais, em viagens nocturnas ao submundo do crime e da aventura – registos crus, mas poéticos, com diálogos excêntricos, mas esplêndidos -, às saunas, discotecas, casinos e botecos ordinários. Ainda assim é um livro em que as boas intenções não contrariam a boa literatura. “O Estranho Caso de Mr. Mao” (2006) é uma introspecção, uma reflexão que nos leva pelo espaço físico dos tribunais, dá-nos a conhecer o seu funcionamento e as personagens com que o autor se vai cruzando – o mundo contraditório da razão, a irrealidade – , a confusão, o caos. O descortinar de factos recentes. O “Medo” faz parte da construção narrativa, é um “Ser” presente. Forte e robusto. O autor não fornece respostas directas, apresenta ideias e soluções, não as impõem, discute-as com o leitor – o leitor é cúmplice -, tudo de maneira serena, arrumada, educada. Com uma grande economia de tensão e considerações narrativas, E. Trovoada procura através das palavras atingir um grande alcance reflexivo, de grande exigência e fixa a discussão a um nível elevado do pensamento, com uma prosa lenta, complexa e meticulosa. Notável (condição social) o capítulo do julgamento, ao abolir a hierarquia dos discursos, ao não colocar num plano superior a explicação do juiz, relativamente ao do réu. O autor sabe – e, também porque sabe -, consegue desmitificar a importância da Justiça, sobretudo de uma justiça com várias questões por decidir, por resolver e fértil em suposições e inquietações. “A Chave da Casa Abandonada”, de 2009, é um livro para adultos de todas as idades , recheado de um humor mordaz e colorido, com fragmentos acutilantes e melancólicos. Com uma prosa telúrica – que tanto nos horroriza como nos faz soltar gargalhadas –, povoado por criaturas aborrecidas, imaturas e ilegíveis. A figura de Eunídes é disso um bom exemplo. Vive entre “ a imagem moral do fracasso” e o “símbolo físico do abandono” – dúvida e pânico. A obra duplica-se, desdobra-se num par de histórias paralelas: a do narrador e das personagens. Um e outros “vivem” os mesmos espaços, lugares, tempos, são coniventes. Aqui o que impressiona, é a forma `sage` como o autor consegue manter em suspenso o conflito entre histórias. A espantosa capacidade de síntese – torna o final soberbo -, os “zumbidos” dos carros a circular, o “ladrar” dos cães abandonados e, as pessoas de “máscara” a vaguear pela cidade – “é a vida do tempo a passar”. Finalmente, o ansiado livro acabado de chegar às Livrarias, “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, o autor escreve com a leveza habitual, um registo que mistura, humor, memórias, estórias, mas com uma acutilância precisa, feroz, que lhe advém do facto de conhecer bem a política, todos os meandros da política, mas infelizmente não ser político, apesar de ser inculto, provinciano, ignorante e melancólico. Trovoada usa palavras de arremesso contra a situação política e social, mas não escancara o horror da banalidade e da futilidade de forma amarga, selvagem, oca. Constrói um quadro com boa parte da sociedade civil farta dos desmandos políticos, do caciquismo, corrupção, das venalidades do poder, sem cair na tentação da grande eloquência, nem aspira a fazer da obra um testamento histórico. Usa os estratagemas narrativos tradicionais – para não perder o leitor, para conferir acção -, como conversas, telefonemas, pápeis, o que torna a obra ao mesmo tempo “compacta” e “porosa”. Vive entre hiatos e reconstruções documentais verídicas. Em todos os livros, os textos de E. Trovoada não são para afirmação ou acusação de ninguém, nem tão pouco são textos panfletários ou propagandísticos. São antes de tudo livros escritos com uma elegância rigorosa, com uma criatividade a roçar o mágico e, uma deslumbrante forma de olhar a sociedade – nua e crua. Uma prosa livre e estruturante, de um autor maldito e obrigatório. “Não criamos nada. Juntamos coisas.” Ana Teresa Pereira, em “O Lago” (2011)
João Paulo Cotrim PolíticaA ironia é um passaporte Fidalgo, Bairro Alto, Lisboa, 2 Agosto [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]erto e sabido: não nos encontramos na refeição apenas para comer. Celebramos Gaia. Por breves momentos, somos matéria afinada, ser e planeta, absorvendo a vida que dele resulta para a prolongar nos modos que soubermos. A arte da mesa fez-se sinal enorme de civilização, um gosto atento aos detalhes, capaz de retirar de cada grão o essencial. Não distingo nisto, nem a amizade, maneira de criar chão e céu vencendo a solidão a que somos destinados, nem a cultura, a ferramenta com que operamos a mais cirúrgica das funções: sabedoria. Na prateleira, a mancha de texto distingue bem a garrafa das restantes. Palavras a vestir o vinho. Juntou-se, em rótulo de vinho exclusivo de restaurante com os pergaminhos do Fidalgo, o desenho original à pena de autor desconhecido, mas oriundo de uma redacção qualquer do velho Bairro Alto, um texto de Ateneu a explicar a cadência das refeições, devidamente traduzido e enquadrado pelo mano António [de Castro Caeiro], tudo sob a batuta gráfica do mano José Teófilo [Duarte]. Testemunho simples de gestos talvez complexos: à mesa se celebra o começo e o fim dos dias. O negro dança sobre fundo branco e o vinho é da região de Lisboa. Aconselha-se vivamente. Santa Bárbara, Lisboa, 5 Agosto A nossa casa ergue-se em largo lugar com o nome da santa que, na tradição cristã e por via de martírio violentíssimo com final dramático, se tornou protectora contra tempestades e relâmpagos e padroeira dos artilheiros, mineiros e outros trabalhadores do fogo. Oiço a reza da minha avó, santa bárbara dos trovões, enquanto fechava tesouras e alinhava talheres para que não atraíssem o raio. O chão escalda-me e por isso fujo cobardemente das notícias sobre o país que arde. Fecho as páginas-tesouras. As imagens só agravam mais a ferida da impotência. Em poucas áreas da nossa vida comunitária teremos, há várias décadas, uma tal produção de pensamento tido e havido sobre a nossa floresta, outra forma de dizer, a nossa ruralidade. Basta acompanhar as incansáveis investigações e as intervenções de figuras como o estimado biólogo e professor da Universidade de Coimbra, Jorge Paiva, para o confirmar. Não apenas as ideias jamais foram postas no terreno como se caminhou na direcção oposta, a da fogueira. Arde nisto também uma forma de fazer política, a da universal cedência aos interesses, à cupidez e ao encolher de ombros, na qual a governação não se ergue da mediocridade e os actos de cidadania activa não abandonam as mesas de café. O meu próprio cansaço me queima. Nem Santa Bárbara nos vale. Diário de Notícias, 7 Agosto Moro por estes dias em montanha russa, sem saber onde me encontro, se no pico antes da queda se no esforço da subida. Encontro bálsamo no Folhetim de Verão do Diário de Notícias, narrado com a mestria habitual do Ferreira Fernandes, e ilustrado pelos corpos irónicos do Nuno [Saraiva] (ilustração nesta página). A soma das partes ainda há-de resultar noutro objecto, um livro, está bem de ver. Foi nascendo nas mesas da vizinhança, por entre conversas e gargalhadas, em delírio, mas dos que podem ser a notícia a qualquer momento. O cronista maior do reino esconde grande conhecimento das curvas e contracurvas da história, de quem conduz nas suas estradas, dos que foram sendo atropelados, das paisagens e das suas árvores. Há que conferir com as figueiras-benjamim e os loendros rosa. Deram por isso? Leva por título, «Lisboa, Capital do Mundo», mas esconde na ironia a ideia de porto de abrigo. Parte da plausível ideia de que Trump poderia bem despejar a sede da ONU, por razões venais e simbólicas, a qual, por via das típicas manipulações da alta política, aterraria em Lisboa. Afinal, daqui «partiram as naus que fizeram o mundo juntar-se». Não há ponta de inverosimilhança na narrativa que vai discorrendo com a leveza de gin and tonic, nem na composição das personagens, menos ainda no retrato da política, com os seus cálculos e ligeireza. O fato da ficção, embora talhado à medida, não esconde o músculo e as gorduras da realidade. E depois, sob o manto diáfano da fantasia, mora um belo amor por Lisboa. Nova do Almada, Lisboa, 8 Agosto Passaporte morto, passaporte posto. Já perdi um bom quarto de hora a mirar e remirar o livrinho de rasgar fronteiras. Conheço o pânico de não o ter à mão nos olhares e gestos do poder absoluto. Recordo a febre adolescente de encher as páginas de carimbos, troféu inefável do sítio que não se conhecerá nunca, apesar de visitado. Não gosto de viajar, consigo agora sabê-lo. Verifico as minhas características e confirmo a minha identidade, na qual falta o essencial, o peso. Eles lá sabem. Antigamente também contava a cor dos olhos. Nesta edição, a ilustração que complica as falsificações diz dos monumentos, da fauna e da flora, da guitarra e do cante que faz agora a identidade do rectângulo. Também se esconde muita tecnologia nisto que se dá a ver, dizem. Tanto esforço para garantir a estrangeiros que somos mesmo este nado e criado aqui. Metro, Lisboa, 9 Agosto Se a Maria [Keil] fosse viva, muito provavelmente iríamos celebrar os seus 103 anos ali para o Príncipe Real. Subiria a rua com ar ladino, a parar para comentar a roupa estendida, o motard ruidoso, o reflexo do sol na fruta ou aquele azulejo. Trazia sempre a ironia de ponta e mola, mas não amanhava com ela o peixe. Trocaríamos as mais recentes dos gatos e duas ou três lamentações. Os azulejos dos Anjos têm as volutas meio apagadas da sujidade do passar, do tempo e das gentes, mas brilham de cada vez que as olho. Le Monde du Dimanche, 11 e 12 Agosto Sophie Calle conta da sua Histoire de Amour com o gato de irónico nome Souris (rato). O nome de alguém que mais vezes pronunciou. Conta detalhes habituais para os que celebram o que contém de vida esta inquietação a que chamamos gato. Mas inusitada e perturbadora resulta a foto do Souris em pequeno caixão e mortalha. Com estranheza, revela-se melhor o pequeno deus que nele habitou. Não achas, Manuel [António Pina]? «Há um deus único e secreto/ em cada gato inconcreto/ governando um mundo efémero/ onde estamos de passagem.// Um deus que nos hospeda/ nos seus vastos aposentos/ de nervos, ausências, pressentimentos,/ e de longe nos observa.// Somos intrusos, bárbaros amigáveis,/ e compassivo o deus/ permite que o sirvamos/ e a ilusão de que o tocamos.»
Sofia Margarida Mota Entrevista Manchete PolíticaEntrevista | Isabel Pires de Lima, académica e ex-ministra da Cultura de Portugal Os livros apareceram porque não havia outra hipótese e as escolhas académicas foram consequência de um percurso natural. A política chega porque sempre gostou de dar resposta ao que lhe pedem. Isabel Pires de Lima é uma mulher do Norte, uma investigadora sem papas na língua que explica por que razão é difícil mexer na cultura em Portugal [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo é que apareceu o interesse pela literatura? Com o quadro familiar. Foi-me induzido o gosto pela leitura em casa. A minha mãe era professora primária e evidentemente que lia. O meu pai tinha estudado em Coimbra, convivido com a geração dos neo-realistas e ainda com o resto dos presencistas, e tinha muito as referências literárias daquela geração. Desde cedo, comecei a ler porque tinha livros em casa. A prática de contar histórias também encheu a minha infância e, na adolescência, tive a sorte de não me ter alheado da leitura. Conquistamos facilmente as crianças para a leitura – o problema vem depois. Perdemos os leitores na adolescência. Se a passam, está ultrapassada a prova. Naquela altura também não havia a cultura impositiva da imagem, nem a oferta cultural que há hoje. Nasci em Braga, fiz lá o meu ensino secundário e fazia férias numa aldeia no norte da ilha da Madeira, de onde a minha mãe é originária. Havia muito que fazer, mas era entre primos. Na verdade, era um período em que lia muitos clássicos porque era o que havia. Fartei-me de ler Camilo. À medida que fui avançando nos estudos, fui-me interessando mais pela literatura, apesar de ser melhor aluna na área das ciências. Tinha um certo gosto pelo francês, apesar de não apreciar muito línguas. Tive hesitações, no secundário estive inscrita em Economia e gostava de Geografia. Acabei por me formar em Literaturas Modernas que, na altura, se chamava Filologia, na área de Português e Francês. Estive muito ligada à cultura francesa e até comecei a minha carreira universitária a ensinar literatura francesa. Só quando enveredei para a preparação do doutoramento é que me fixei na literatura portuguesa e hoje trabalho mais em literaturas de língua portuguesa e nas relações da literatura com outras artes, nomeadamente com as artes visuais. Como é feita essa relação? Voltamos à questão do gosto pessoal. Hoje, quando penso nas minhas opções, percebo que o que andava à procura era de Sociologia que, na época, nem existia na universidade portuguesa. Mas aquilo de que gostava verdadeiramente na vida era ter sido artista visual, artista plástica. Não sou nada dotada, não desenho bem, mas é uma área que me interessa muito. Para este gosto foi fundamental o meu contexto familiar. Os meus pais viajavam bastante, eu também comecei a viajar sozinha muito cedo e ia a museus e galarias de arte. Fui-me formando bastante nesse campo. Por outro lado, como já disse, comecei por ensinar literatura francesa e um dos pratos fortes do meu programa foi o surrealismo francês. Estudar o surrealismo na literatura implica o trabalho no campo das artes visuais. Não faz sentido falar em literatura surrealista sem falar em artes plásticas. O surrealismo é de facto um campo em que o cruzamento interartístico semiótico é muito importante. Já tinha gosto e aprofundei-o muito. Nos últimos 15 a 20 anos tenho estado ligada a um instituto de investigação, o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Também integro o Conselho de Administração da Fundação de Serralves. Estou mergulhada nas artes. O seu doutoramento foi em literatura portuguesa do século XIX. Sim, trabalhei sobre Eça de Queirós numa perspectiva sociológica. Hoje tenho noção de que andava à procura de uma área nas ciências sociais. Quando comecei a preparar o doutoramento, acabei por me fixar felizmente na literatura portuguesa. Acabei por lá ir parar também por necessidades da própria universidade. Escolhi um escritor realista e adoptei uma metodologia teórica associada à sociologia da produção literária. Não fui para a sociologia da recepção. Fixei-me no Eça, que não era evidente para mim até porque, um pouco ingenuamente, pensava que o essencial sobre o Eça estava feito. Mas na Universidade não havia muito trabalho com perspectivas contemporâneas sobre o Eça e “Os Maias” em concreto, pelo que foi uma espécie de pânico quando me foi dada esta obra. Assustou-a porquê? Porque achava que era uma obra-prima intocável e pensei que já estivesse muitíssimo explorada. Hoje estas questões não se colocam aos jovens investigadores. Há centenas de jovens a fazer doutoramentos. Na época era uma coisa raríssima e havia a ideia de que existiam campos em que era preciso explorar áreas que nunca tivessem sido exploradas. O que não é verdade. Fui empurrada para “Os Maias” e ainda bem, mas aconteceu-me aquilo que acontece a quem trabalha com clássicos: nunca mais se vê livre deles. “Os Maias” é uma obra que faz parte do currículo do ensino secundário. Os jovens desta idade estão preparados para entender este tipo de clássicos? Os Maias são a obra-prima do Eça. Talvez não seja o romance mais fácil para uma iniciação ao contacto com o autor. Talvez fosse mais fácil “O Primo Basílio”. Muitos estudantes são iniciados no Eça através de contos ainda antes de “Os Maias”. Talvez não seja o romance mais fácil, por ser um romance muito longo e nós hoje temos poucos leitores de longo fôlego – e não apenas na adolescência, temos mesmo poucos leitores. O que é que se está a passar com o hábito de ler? A literatura perdeu poder simbólico e perdeu muita capacidade de atractividade para preencher os espaços de lazer. As solicitações hoje são imensas e de variadíssimo tipo. Há uns anos tínhamos muito mais tempo. Não havia televisão ou internet. Não existiam as solicitações visuais e de imagem que há hoje. É difícil escapar ao império da imagem. A leitura é muito exigente: exige um espaço de solidão, de prática individual, um espaço de um certo silêncio, tudo aquilo que nós não temos, nem em casa. Se calhar, hoje em dia, os jovens até têm mais estas situações na escola do que propriamente em casa. Por isso temos perdido muitos leitores. Por outro lado, por que lêem mais as mulheres? As mulheres ainda estão tendencialmente mais reduzidas ao espaço doméstico. Estão muito mais em casa, têm mais espaços de solidão, há mais mulheres sozinhas do que homens sozinhos e tudo isto converge para levar este género a ler. Outro aspecto actual é que há mais mulheres com formação superior do que homens. Depois, por razões culturais, são mais induzidas a uma espécie de formação individual, de atenção ao mundo íntimo que pode ser feita através da literatura. Os homens ainda são mais educados no sentido do êxito fora de casa. Da literatura à política. A política foi um acaso, como muitas outras coisas na minha vida. Tenho tido na vida a seguinte atitude: sou muito empenhada no meu trabalho onde quer que esteja, mas não sou muito ambiciosa. Não sendo ambiciosa, tenho uma atitude perante a vida de uma certa curiosidade intelectual, e raramente me furto às propostas e desafios que me fazem. Não tenho medo da mudança e é até uma coisa estimulante. A política veio ter comigo. Não estou inscrita em nenhum partido político mas, desde muito cedo, respondi sempre às solicitações da comunidade da cidade onde vivo, o Porto. Ia a diversas acções e palestras quando me era pedido. Atenção que fiz isto numa altura em que a própria universidade não via isso com muito bons olhos, já nos anos 1970 e mesmo 1980, porque era considerado uma dispersão àquela coisa que era o trabalho académico puro e duro. Mas sempre estive muito articulada com a vida cultural da cidade. Quando me propuseram integrar uma lista de candidatos a deputados pelo Partido Socialista, devo dizer que foi uma grande surpresa. Não estava nada à espera. Acabei por ir para o Parlamento um bocadinho por curiosidade. Acabou por ser ministra da Cultura. Foi também surpreendente o convite que me foi feito. Desta vez menos, porque já estava na Assembleia da República (AR) e sempre ligada, de alguma forma, à cultura e às questões da língua. Fui sondada pelo então primeiro-ministro José Sócrates, com quem não tinha uma relação de grande proximidade. Curiosamente, de vez em quando falávamos de poesia, porque era uma área de que ambos gostávamos. Quando saí do Governo, continuei na AR mais um ano e meio. Enquanto ministra da Cultura, quais foram os maiores desafios que encontrou? Diria que o mais difícil foi o pôr um pouco de ordem numa casa bastante desorganizada. A cultura tinha ganho um estatuto de Ministério há relativamente poucos anos. Foi criada uma estrutura bastante ampla dentro do Ministério com uma multiplicação de direcções gerais, por exemplo. Logo a seguir, antes de mim, há o primeiro quadro comunitário de apoio à cultura. De repente há dinheiro para injectar, o que fez com que houvesse uma espécie de pujança do próprio ministério com o ministro Carrilho. Quando cheguei já não estávamos no tempo das vacas gordas, as vacas já estavam a emagrecer bastante, o que fez com que tivesse de existir contenção de meios. É preciso ainda lembrar outra coisa: no primeiro Governo de José Sócrates, encontrámos um défice de 7,5 por cento e, em cerca de ano e meio, reduzimos para três por cento. Isto obrigou a muita contenção orçamental. Foi preciso fundir organismos e isso gera sempre grandes tensões internas dentro do Ministério. São acções que levam sempre a perdas de pequenos e grandes poderes. Esta foi uma das dificuldades. Outra dificuldade foi a aposta que, claramente, fiz em políticas de descentralização. A cultura em Portugal era, de facto, muito em Lisboa. Apostar em políticas que prestassem atenção ao resto do território também gera algum incómodo. Ainda por cima, eu era uma ministra vinda do Porto e mulher, e não membro do Partido Socialista. Estas três coisas juntas dificultaram um bocadinho a minha vida. Fiz esta opção de descentralização também porque, entretanto, com os tais dinheiros comunitários que tinham chegado, tinha havido a construção de equipamentos descentrados. Alguns deles estavam fisicamente de pé, mas não acontecia nada lá dentro. Outra das dificuldades foi lidar com – e vou usar palavras que nunca usei enquanto estava no Ministério – uma certa mentalidade subsídio-dependente. Mas, atenção, acho que há razões para que exista esta subsidiodependência. Hoje já há um público mais alargado, mas naquela época não havia públicos. Muitas vezes dizia uma coisa que chocava um bocadinho quem me ouvia, nomeadamente no âmbito de acções do Partido Socialista: não é só a cultura que depende de subsídios em Portugal. A maior parte dos empresários também o é. Ninguém se escandaliza quando se atribui um subsídio a uma fábrica de salsichas, mas se for para a cultura é um problema. A razão é que na fábrica as pessoas vêem um retorno para a economia e, na cultura, o retorno é muito lento. Hoje já é bastante visível, mas é muito difícil fazer perceber isto. O que é que se pode fazer? É preciso fazer perceber às pessoas que o investimento na cultura é barato. Num Orçamento de Estado, são tostões. Todavia, a filosofia orçamental continua a ser do corte na cultura. Por mais que se tente explicar isso num Conselho de Ministros, designadamente a um primeiro-ministro, é sempre muito difícil passar a mensagem. Por exemplo, tentar acentuar que o pouco que se investe em cultura potencia enormemente o muito que se investe em educação. Esta relação é dificílima de se fazer entender e é uma coisa óbvia. Importa também dizer que não é só difícil em Portugal. Há excepções. O Reino Unido é uma delas, mas também tem uma organização muito diferente. Por outro lado, não é fácil lidar com os agentes culturais. Estou a incluir os criativos e os agentes no terreno. São pessoas muito individualistas e é muito difícil definir quem é o interlocutor. Enquanto o ministro da Educação sabe que o seu interlocutor é o sindicato, o ministro da Cultura recebe o grupo A que não se dá bem com o grupo B e o B fica chateado porque recebemos o A. Depois são também grupos inorgânicos. Isto tudo acrescido do facto de que estes agentes têm uma fácil cobertura da comunicação social. Costumo dizer a brincar, mas é a sério, que o artista e o agente cultural têm sempre um amigo na comunicação social, o que faz com que, de repente, uma coisa pequena ganhe uma dimensão extraordinária. Há solução para esse problema no que respeita aos criativos e agentes? Não é fácil. Tentámos alterar as regras dos concursos para apoios a projectos em várias áreas. Para que isso acontecesse fomos falar com todos os grupos do país, o que levou uns meses, de modo a poder fazer o levantamento. Era extraordinária a diferença de realidades e de reivindicações, e inclusivamente de comportamentos. Muitas vezes, os grupos reagem muito mal a qualquer tentativa que o Estado faça de controlo do seu investimento. Mas essa é uma obrigação de quem gere dinheiro público. Quando falávamos de controlo de bilheteira, era logo um nervoso geral. Depois, há sempre aquele fosso entre os grupos que são dependentes de subsídios e aqueles que praticam uma arte que é mais comercial e que não dependem desses dinheiros. No entanto, também têm outras reivindicações e tudo isto gera muita tensão. Por outro lado, é preciso entender que há áreas em que o Estado tem forçosamente de intervir e que vão ser sempre dependentes, a não ser que tivéssemos uma mentalidade e uma dinâmica empresarial que não temos. Por exemplo, dentro do património, não há empresas em Portugal a sustentarem os arquivos, como mecenato, por exemplo. Mas os arquivos têm de existir e têm uma manutenção elevadíssima. São áreas onde não é possível não pensar em investimento do Estado e ainda há muito por fazer. Há muita coisa feita, o tecido cultural português mudou muitíssimo desde o 25 de Abril para cá. Uma das áreas em que acho que tivemos muito sucesso foi no campo da educação e da saúde, e mesmo da segurança social e, claro, da cultura, onde tivemos muitos sucessos, pese embora a percepção colectiva não seja essa. A cultura tem a seu favor e contra si o facto de ser muito transversal. Hoje há a percepção de que estas transversalidades atingem todos os campos e todas as áreas. Não imagina quanto me sentia pregador no deserto ao falar em turismo cultural. Isto não foi assim há tanto tempo. Hoje penso que é realmente chato ter razão antes do tempo. Mas era muito claro, para quem se move neste universo da cultura, que Portugal tinha potencialidades a desenvolver ao nível do turismo cultural, muito mais do que ao nível do sol e da praia. Já na altura defendia que o Ministério da Cultura deveria ser da Cultura e Turismo, como já o é em alguns países. Claro que também tenho a percepção de que este boom do turismo cultural teve circunstâncias facilitadoras, como a perda do turismo no Magreb. Mas também é verdade que hoje o turismo de longo curso é mais facilitado. Mas, na Europa, era claro que Portugal tinha muito potencial.
Hoje Macau EventosCultura | Ministro português destaca papel de Macau [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s pontes culturais entre Portugal e China são muito antigas, mas a literatura, sobretudo a contemporânea, é fundamental para estreitar essas relações e proporcionar um maior conhecimento humano mútuo, destacou o ministro português da Cultura, Luís Castro Mendes. “São muito antigas as pontes culturais entre Portugal e China, graças, em muito, ao papel que Macau desempenha. Macau é um lugar privilegiado de cruzamento entre Portugal e China, entre o Ocidente e o Oriente”, lembrou Luís Castro Mendes, no encerramento do 1.º Fórum Literário Portugal-China, que se realizou esta semana em Lisboa. O ministro destacou o património cultural da literatura clássica e sublinhou que a literatura chinesa contemporânea constitui um território de descobrimento. “É para começar a colmatar e a combater esta carência que se fez este fórum. Espero que tenha contribuído para estreitar relações e espero que tais pontes nos aproximem cada vez mais uns dos outros”, disse. O fórum reuniu escritores portugueses e chineses, que debateram os temas da literatura, sociedade e inclusão. “Podemos aprender muito uns com os outros nas áreas científicas, tecnológicas, mas há uma coisa muito importante que a literatura traz: é a compreensão do humano. Compreendemo-nos melhor uns aos outros como seres humanos através do conhecimento mútuo das nossas literaturas”, afirmou. Os caminhos deles O debate abriu com a escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso que, como foi destacado no início do fórum pela presidente da Associação Chinesa de Escritores, Tie Ning, “não está publicada na China, mas vai ser”. Para a autora de “O Retorno”, “a melhor maneira de contar a verdade é inventar a melhor mentira que a sirva” e uma história ficcionada bem contada é mais real, porque perdura no tempo e pertence a mais gente, do que a própria realidade efémera. Para José Luís Peixoto, no centro da literatura está a natureza humana e é isso que torna os livros universais e compreensíveis em qualquer lugar do mundo, independentemente do tempo, do espaço, da história e da cultura a que está ligado cada escritor. “Por isso, um livro é compreensível aqui e do outro lado do mundo, porque partilhamos valores e ideias”, afirmou. Gonçalo M. Tavares disse que a escrita é um trabalho solitário e que o trabalho do escritor é aproximar-se e afastar-se dos acontecimentos, para ter vários olhares. Na opinião do autor, um escritor tem de ter uma visão do passado e do futuro, e ilustrou a ideia com uma personagem “que era tão vesga que, à quarta-feira, olhava ao mesmo tempo para o domingo passado e para o domingo seguinte”. O escritor Zhan Wei, vice-presidente da Associação Chinesa de Escritores, centrou a sua atenção na Internet e na forma como esta põe em risco o individualismo e a apreciação da arte. “As pessoas vão afastar-se por não estarem habituadas a ter paciência. A era da Internet é rápida, barulhenta, as pessoas perdem a paciência para o que não é assim”, afirmou. Chi Zijian considerou que a literatura, como criação individual, não se pode separar da sociedade e defendeu que um escritor deve conseguir integrar-se na sociedade para observar e exteriorizar-se, para conseguir dar vida à história que quer contar. Su Tong, o mais conhecido em Portugal dos autores chineses que participaram no fórum, recorreu a um conto do escritor norte-americano John Cheever – “The Enormous Radio” – para afirmar que toda a história reflecte alguma coisa do escritor e da sociedade. O conto narra a história de um casal que conseguia ouvir numa estação do seu rádio as conversas dos vizinhos, acabando essas vivências por se refletir nas suas próprias vidas. “É como se fosse o escritor a fazer a imitação de algo invisível. Temos de nos tornar invisíveis e entrar no rádio gigante ou tornarmo-nos o próprio rádio, para escutar a pulsação da sociedade”.
João Luz Entrevista MancheteEntrevista | Pedro Mexia, crítico literário e cronista Pedro Mexia é o homem dos sete ofícios literários. Publicou poesia, faz crítica literária, crónicas, comentário político e é um dos membros do Governo Sombra, programa da TSF que passa na TVI 24. Pedro Mexia estará no festival literário Rota das Letras no próximo mês [dropcap]C[/dropcap]omecemos pela política portuguesa. Que balanço faz do Governo liderado por António Costa? É uma novidade, nunca tinha sido tentado e conseguido uma aliança de esquerda no parlamento, assim como nunca tinha acontecido ser o segundo partido mais votado a liderar um Governo. Isso causou alguma perplexidade e acusações, acho eu, despropositadas de ilegitimidade. O que acho que tem acontecido é que estão todos a fazer um esforço bastante grande para que o Governo consiga superar as divergências, muito grandes, que os partidos têm em certas áreas. Nomeadamente nas áreas das questões europeias ou na renegociação da dívida e, eventualmente, em outras que não vieram à baila, como a NATO. Tem havido um certo esforço para maximizar as áreas de concordância, tais como desfazer o que foi feito no Governo anterior nas áreas do trabalho, do rendimento. Também se tem tentado arranjar pontos comuns que permitam cumprir a legislatura. Parece-me que, neste momento, nenhum dos eleitorados dos partidos que apoiam o Governo do PS veria com bons olhos que se tirasse o tapete ao Governo. Está a ser uma legislatura em esforço dado o facto de esta solução ser melindrosa mas, globalmente, do ponto de vista do Governo, parece estar a correr bem. Parece existir uma espécie de extensão político-social que acho que tem beneficiado muito a percepção pública do trabalho do Governo. E como tem visto a actuação da oposição? O PSD tem tido uma atitude um pouco insólita que é, simplesmente, esperar que o Governo falhe nos seus propósitos e que, depois, o eleitorado reconduza o PSD nas próximas eleições. A oposição no Parlamento tem sido pouco construtiva e, nalguns casos, votando contra medidas que, no passado, defenderam, embora, em contextos diferentes. Acho que o PSD ficou muito atordoado com o facto de não ter governado na sequência das eleições que ganhou, é normal que tenha ficado. Mas não se percebe muito bem qual é o horizonte estratégico que tem, a não ser esperar. Isso parece-me que é pouco. O CDS, como já fazia quando estava no Governo, tenta sempre colocar-se um pouco à margem. Tenta passar uma mensagem mais positiva e menos agastada, mas está muito dependente do sucesso da sua líder na corrida a Lisboa. “O PSD tem tido uma atitude um pouco insólita que é, simplesmente, esperar que o Governo falhe nos seus propósitos e que, depois, o eleitorado reconduza o PSD nas próximas eleições.” Que ideia tem de Macau? Tenho alguma ideia do que vou lendo e do que me dizem algumas pessoas que conheço que aí estiveram e que aí vivem. Não é uma ideia muito substantiva. Há duas coisas que sobressaem, digamos assim, nos testemunhos que vou tendo. Uma tem que ver com o facto de a presença portuguesa ser relativamente incipiente, por exemplo, em termos da utilização da língua e do ponto de vista arquitectónico. Mas, por outro lado, parece haver uma comunidade portuguesa hiper-consistente, no sentido, por exemplo, da multiplicação de jornais. Parece haver uma compensação da diluição da presença portuguesa no que é hoje um território chinês. Como contraposição a isso uma comunidade que tem algum… não sei se dinamismo é a melhor palavra. Atrai-lhe a ideia da queda de impérios? Vê nisso algum romantismo? Claro que sim. Há uma cena muito boa na versão longa do Apocalipse Now, onde aparece uma plantação de uns franceses no meio da Indochina francesa. Aquilo tem imensa força porque é, realmente, o fim do mundo e isso tem um certo frisson literário. Por falar em apocalipse, como racionaliza o fenómeno Donald Trump? Não é muito difícil de racionalizar em termos do significado de um eleitorado descontente que queria, no fundo, alguém que partisse a loiça e que fosse completamente diferente. Alguém que tivesse um discurso, atitude e actuação completamente diferentes daquelas que os políticos mais conservadores, ou mais liberais tinham tido. Mas essa explicação racional, para mim, não chega para apagar certos paradoxos. Nomeadamente uma certa passividade do establishment republicano, que acordou tão tarde para o perigo real desta candidatura. Houve uma cisão muito grande dos opinion makers conservadores e dos políticos conservadores. Os primeiros, em geral muito críticos, e os segundos, no mínimo, conformados em relação ao Trump. Nem os paradoxos, evidentemente intrínsecos, dos descamisados e desempregados escolherem um milionário para protagonizar as suas queixas e os seus agravos. Além do mais, há algo que acho muito importante, as ideias dele são apenas uma parte daquilo que ele é. São ideias flutuantes ao longo do tempo, muitas vezes parecem improvisadas. O que acho realmente preocupante é a personalidade de Donald Trump. É uma personalidade infantil, de uma volatilidade, de uma fúria que amua, que seriam simplesmente risíveis num adulto, mas que dão bastante inquietude tendo em conta como ele vai reagir a assuntos sérios. Ele perde tempo a discutir quantas pessoas estavam na tomada de posse, a Casa Branca dedica-se a falar da marca de roupa da Ivanka. Esse lado é caricatural, mas há assuntos em que os Estados Unidos são protagonistas destacados que não são assuntos cómicos e, portanto, isso preocupa-me. “Donald Trump tem uma personalidade infantil, de uma volatilidade, de uma fúria que amua, que seriam simplesmente risíveis num adulto, mas que dão bastante inquietude tendo em conta como ele vai reagir a assuntos sérios.” O mundo aguenta uns Estados Unidos assim tão destabilizados? Não sei se isto vai durar a legislatura toda, há duas ou três hipóteses diferentes. Uma é a legislatura toda e, de facto, se a situação se degradar cada vez mais, não sei o que será daqui a um ou dois anos, se continuarmos a este ritmo. A segunda é isto continuar a esta ritmo e tornar-se uma espécie de novo normal e as pessoas habituarem-se, o que seria o resultado mais catastrófico de todos, achar que não tem mal o Presidente dos Estados Unidos dizer as coisas que diz e fazê-las, atacar a imprensa, juízes, etc. O terceiro, que seria o melhor dos resultados, seria os americanos afastarem este Presidente antes do fim do mandato. Porque, francamente, é um embaraço para a América e para o mundo. Como vê a ascensão de focos de populismo na Europa, nomeadamente de extrema-direita? Nalguns casos a deriva para o populismo não é propriamente de direita. Também tem havido movimentos importantes de populismo à esquerda. No caso da Grécia em que o Syriza varreu, praticamente, o PASOK. Na Espanha assistimos à emergência de um partido que acaba com o bipartidarismo, o Podemos. Temos também o fenómeno italiano do 5 Estrelas, difícil de classificar como sendo de esquerda ou de direita. Não é só a direita. Mas, claro que há uma espécie de Internacional Nacionalista muito activa, aliás, aparecem juntos em comícios. Houve as eleições da Áustria, o caso francês e o holandês. Na maioria dos casos talvez seja à direita, que está mais em ascensão, pela simples razão de, entre os principais temas, estarem a segurança e as migrações. São temas tradicionalmente mais caros ao eleitorado de direita. Portanto, é normal se há atentados, se há problemas com as vagas de emigrantes e refugiados, que a direita e a extrema-direita estejam particularmente activas. Li que a discografia dos The Smiths era algo de fundamental para si. Tem alguma música que destaque? Isso é complicado porque não são duas, nem três. Entre muitas há uma canção que acho particularmente curiosa, porque tem que ver com o facto de o Morrissey não ter grande receio de exprimir aquilo a que se pode chamar de maus sentimentos. É uma canção chamada “Death of a Disco Dancer” que, no fundo, é sobre um certo cepticismo face à ideia de que “nos vamos todos dar bem uns com os outros”. “All very nice, very nice…” “Maybe in the next world.” Há toda uma tradição “feel good” numa parte da música pop que ele rejeita claramente. Nem sei se é uma das melhores canções dos The Smiths, mas é muito exemplificativa de uma certa crueza com que o Morrissey trata os assuntos, de uma forma que não tínhamos visto antes. Essa canção, não sendo das minhas preferidas musicalmente, é muito exemplificativa da sensação que tive quando conheci a banda e percebi que era completamente diferente do que tinha ouvido antes. “Na maioria dos casos talvez seja à direita, que está mais em ascensão, pela simples razão de, entre os principais temas, estarem a segurança e as migrações. São temas tradicionalmente mais caros ao eleitorado de direita.” Costuma estar atento às novidades do panorama musical? Estou mais ou menos atento. Não sou, claramente, uma pessoa do hip hop nem da electrónica. Tenho um gosto um bocadinho delimitado na música pop que é, basicamente, as bandas de guitarras. Dentro desse nicho estou bastante atento, ainda por cima agora tenho um programa na Rádio Radar. Temos sempre um disco novo todas as semanas, estou mais atento por obrigação, mas não com o lado mais exaustivo que tenho com o cinema e com as estreias de cinema. Embora com o spotify, que sou subscritor, é mais fácil chamarem-nos à atenção e estar a par das novidades do que a picar a Internet aqui e ali, ou a comprar discos. Porque nunca se aventurou, em termos de escrita, no romance? O romance é uma obra de imaginação, pelo menos como eu o entendo. Simplesmente estar a contar uma história real mudando os nomes, que era o que eu faria se escrevesse um romance, parece-me desinteressante. Como não sou capaz de inventar coisas que não aconteceram, não sou capaz de escrever um romance. Como resolve o conflito entre a introversão e o papel público que desempenha? Não há nenhum conflito porque, para já, a maior parte do que eu faço é escrever e isso não se opõe à introversão, pelo contrário, até se casa bastante bem com ela. Outro tipo de actividades, ou compromissos, que eu tenha são obrigações em que procuro fazer o melhor. Está-se a trabalhar, a desempenhar um papel e, portanto, o facto de ser introspectivo, ou introvertido, não é contraditório com isso. As pessoas têm de fazer a sua vida, são-nos pedidas certas coisas e eu faço na medida do que posso e sei. Se eu tivesse de ser DJ, ou coisa do género, é que seria mais complicado.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasVencer a gravidade Possolo, Lisboa, 11 Fevereiro [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]elder Macedo veio lançar o estimulante «Camões e Outros Contemporâneos» (Presença), mas ainda teve tempo de ir ao Obra Aberta e à Escola de Escritas do mano Luís Carmelo, onde dissertou sobre a demanda que fez dele ensaísta, ficcionista e poeta. Demanda em busca de si, com passagem pelo Gelo e pelo Império, e do outro, sobretudo o obscuro feminino. Helder transporta-nos ao avesso dos orgânicos movimentos da inteligência que podemos ver em acção, putos fascinados na torre do relógio. Algumas traduções bíblicas, descobriu ele, investiam na palavra moça o sentido de alma. A outra luz se lê o «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», de Bernardim. De corpo e alma, partiu ela. De alma e coração, fico eu a ouver Helder Macedo. Horta Seca, 13 Fevereiro A Companhia Nacional de Bailado, ainda sob direcção da Luísa Taveira, foi convidando um grupo heteróclito de poetas para dançar. Quer dizer, para se sentarem a ver. Chegou hoje a antologia de inéditos da temporada de 2016. O inevitável desequilíbrio em nada mancha a boa ideia, depositada agora nas cadeiras de quem arrisque deixar-se impressionar pelo sublime esforço. De Fernando Luís Sampaio, ressoam-me «as canções mais tristes/do meu tempo» (…) «Canções queimadas por mil vozes, onde a língua se precipita». E tocou-me a agreste melodia de Margarida Vale de Gato atirada à filha: «Peço de ti o que não te ocorre perguntar e tenho/para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo./O mundo está cheio de mortos que não chegam/a cair, o mundo está cheio de mortos que são vivos/com pouca sede (…)» Pelo meu lado, lá consegui erguer a fio-de-prumo tristonhos versos, depois de horas no escuro a ver corpos erguer-se muito acima. De si e destes dias rasteiros. Teatro Nacional, Lisboa, 14 Fevereiro Era questão de tempo. Estou sempre a perder o combate com a agenda e costumo atirar-me para cima dela na velha táctica de peso morto para suster a vaga de golpes, mas desta vez ultrapassei uma linha qualquer. Ontem vi-me à porta de um Nacional na semi-obscuridade das segundas-feiras. A conversa aprazada entre Carlos Fiolhais, Miguel Loureiro e Gonçalo Waddington, em torno de «O Nosso Desporto Preferido – Presente», há muito estava marcada para hoje, São Valentim. Como bem notou o arguto e divertidíssimo Carlos, melhor dia não haveria tendo em conta a proposta radical da peça para alcançar civilização de tipo superior: a abstinência sexual. Precisava, portanto, vencer, qual bailarino com a gravidade, a lei da física que me impedia de estar ao mesmo tempo em dois sítios diferentes, aqui e no lançamento do Helder. Não consegui, pelo que fiquei a ouvir o Miguel ler na perfeição excerto dos mais interrogativos, em páginas de torrencial poesia onde ecoam os gregos, essa natural raiz das coisas. A língua é desbragada e precipita-se. Uma cadeira arma-se em personagem principal. Temos deuses a insultar-se e um Michel, que só pode vir de Houellebecq. Ninguém como o Gonçalo usa em palco a ciência como instrumento de perguntar futuro, no caso a possibilidade de livrar a espécie humana das necessidades básicas. O Carlos soltou leitura desconcertante e erudita, em torno do cientista enquanto ladrão do fogo dos deuses, que será hoje a decifração final do código genético. Mas também na qualidade de pateta aprendiz de feiticeiro. Em ciência, a utopia acaba quase sempre em distopia, disse ele que sabe. Na peça, a experiência tem tudo para acabar mal. Por aqui, a conversa continua: é uma tetralogia… Convento de Jesus, Setúbal, 15 Fevereiro Não tinha ainda atravessado estas portas manuelinas para o interior da justa recuperação de Carrilho da Graça, dado voltas ao claustro onde Zeca e tantos outros cantaram, mirado as gárgulas a quererem soltar-se dos calcários. Detalhes, neles se encontra Deus e um espinho da coroa de Cristo ou um osso de S. Sebastião. Queria tanto tempo para me perder! Somos senhores de grandes tesouros e deles tão pouco usufruímos. Perderia horas prestando vassalagem a Santa Gerturdes, esta representação do mistério em corações inflamados, o olhar desejando a luz, os lábios ardendo em oração. Ainda inebriado pelas visões, acabo em excelente companhia a usufruir de um divinal ensopado de pata-roxa, servido pelo castiço Luís Rebelo, n’A Casa do Peixe. Prosaicamente. Horta Seca, 16 Fevereiro Faz toda a diferença ver os originais do António Jorge Gonçalves para este seu livro que irradia «o esplendor dos corpos que dançam/Na órbita da morte», como escreve o Fernando Luís no seu poema. Em folhas de banal espessura e formato, desenhou a marcador em negativo. A cor acontece em folha separada com a transparência da aguarela. A combinação destes elementos aproxima a linguagem da gravura, mistura de tempos e tradições, fundo exacto para a dança da morte que coreografou. Cada imagem ganha peso de símbolo, abrindo para múltiplas leituras em jogo de espelhos. Mais um caso único, que merecia ser lido fora das fronteiras estritas do seu género. Na inauguração, tivemos casa cheia, sobretudo com as gargalhadas de Novo de Matos, o desenhador de bisturi que lhe salvou a vida. «A Minha Casa Não Tem Dentro», mas tem uma menina que desenha. E uma morte que anda com ela de comboio. Menina e morte as trouxeram de muito longe de regresso ao pai. S. Luiz, Lisboa, 18 Fevereiro Nisto, estou em palco rodeado de crianças a perceber que as minhas histórias para as mais disparatadas infâncias nascem do esforço de tudo e mais alguma coisa em ser outra coisa. Outra coisa um pouco mais que tudo. No Poesia-me, da Inês Fonseca Santos, circulou como arrepio a perguntinha: que queres tu? Pois, se o pretexto era o «Querer Muito», que tanto deve ao camaleónico talento do André da Loba. Às tantas, sobrou para mim. Costumo dizer a verdade do «astronauta», que me acompanhou longe no tempo, mas naquele instante quis ser «bailarina». Sem que tivesse dado por isso, sentada aos meus pés estava uma querídissima, de tutu e tudo. Ofereceu-se para dar lições, que começaram finda a sessão, ainda em palco para não perder minuto. Aprendi as três posições principais, mas não o nome dela. Tolo.
Rui Filipe Torres PolíticaA morte dos deuses é a morte da humanidade 17 DE DEZEMBRO DE 2016, LISBOA [dropcap]O[/dropcap] céu de chuva dos dias anteriores afastou-se e o dia chega com sol e no mar ondas vigorosas, alguém, em redacção de jornal prepara notas laudatórias para cronologias de morte anunciadas. A cidade vive nesta tarde uma morte profunda, inevitável como todas, por isso absolutamente inaceitável, marcada com o ferro de cronos, irremovível, doentia, miseravelmente fútil. Acresce que ao incontornável aperto do tempo, a companhia viu-se sujeita a contornos orçamentais que, no seu entendimento, não permitem a continuidade do seu projecto, “a intenção de construir um teatro de reflexão com uma função activa na realidade cultural portuguesa”. Ainda talvez incerto, torna-se provável que a Companhia Cornucópia tenha terminado nesta tarde a sua longa, única, brilhante, e inestimável carreira. Em actividade desde 1973, levou a cena, 126 criações, cerca de 5. 100 representações, algumas estreias mundiais, encenadores convidados, co-produções, dezenas de actores em palco. Entre outros escritores dramaturgos, William Shakespeare, Tchekov, Moliére, Genet, Pasolini, Strindberg, Holderlin, Brecht, Garcia Lorca, Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, António José da Silva, Botho Strauss, Samuel Beckett, Heiner Müller, Raul Brandão, Edward Bond, Rui Belo, Rainer Werner Fassbinder, Arthur Schnitzler, Johann Wolfgang von Goethe, Aristófanes, Diderot, Voltaire, Marquês de Sade. Luís Miguel Cintra, visivelmente cansado e doente, é um gigante da cultura portuguesa do último quarto do século XX e deste início de do XXI. Actor com presença magnética, de profunda sensibilidade e investigador da alma humana, foi e é presença referencial na cinematografia de Manuel de Oliveira, e marco na investigação estética do teatro contemporâneo. A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro, ou mesmo aqueles que conhecendo, ou pensando conhecer, estão contra este teatro que nunca quis ser de efeito comercial fácil e alegria tautológica à construção da imbecilidade humana. “A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro.” São várias as vozes que pululam nos comentários nas redes sociais à notícia do fim da companhia, com afirmações tão esclarecidas como certamente quem as produz, de que se a companhia não consegue viver com o subsídio que lhe foi atribuído e com as receitas de bilheteira, deve fechar a porta, também ficam a perder a possibilidade de mais facilmente vir alguma a perceber qual a dimensão deste projecto na elevação do pensamento arcaico ao civilizacional, a relevância da cultura nas sociedades e nas relações entre povos e países. Entretanto, há outras vozes, sem dúvida mais sábias, e igualmente neste sábado 17 de Dezembro, surge a possibilidade de, talvez, a companhia poder resistir algum tempo mais, a possibilidade de Luís Miguel Cintra e Cristina Reis ( que há dezenas de anos assina o espaço cénico das sucessivas criações) se mantenham em actividade. Uma conversa em palco, improvisada, sem prévio ensaio, inesperada, e talvez auspiciosa. O Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rabelo de Sousa decidiu ir a palco, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, também o faz, é um texto em cada um é autor próprio. Luís Miguel Cintra tem esta conversa talvez anteriormente imaginada, mas não programada. Prova-o o cancelamento da visita agendada a Castelo Branco do Ministro da Cultura. Talvez que o problema do financiamento possa ser ultrapassada favoravelmente à continuação do teatro do Bairro Alto em função criativa, dando continuidade ao que tão brilhantemente tem feito; interrogar o homem sobre os seus anseios, medos, sonhos, fragilidades, grandezas. Ajudar-nos a perceber o que é a final estar vivo em sociedade, o que somos e o que podemos ser. Talvez Lisboa não tenha cado irremediavelmente mais pobre neste dia, ainda que seja breve e efémero, também o tempo dos mestres, todos ganhávamos com o esforço empenha- do e consistente da tutela no anular, ou avançar no tempo, a perda.
João Paulo Cotrim PolíticaLíngua suja FACEBOOK, LISBOA, 13 DEZEMBRO [dropcap]N[/dropcap]os terrenos da minha infância cresciam unas ervas esguias com tons de primavera e sabores invernosos. Depois das corridas e outras ocupações suadas, espremíamos o seu suco entre dentes. A sabedoria científica do bairro chamava-lhe azedas, mas a palavra não contém o arco-íris de sabores agridoces. Este poema-raio da Rita Taborda Duarte, que espremi, entre afazeres, soube-me a azeda. E fez chorar um gajo que nunca será mãe, e dificilmente será mulher, também pela razão simples de que tem saudades de filhos que não chegou a parir. «QUANDO A MULHER SE TRANSFORMOU MÃE // As mães,/ azedas,/ transformam em leite/ tudo aquilo em que tocaram e/ aflitas / escavam uma cova funda no coração do útero.// Todos os meses têm mênstruos férteis/ e povoam o mundo com as saudades / dos lhos/ que não chegaram/ a parir// Só depois/ puxam como Arianes loucas/ o cordão dos lhos entrançado/ na meada da infância/ – dobam-no até à raiz do tempo –/ e guardam no ventre desabitado/ o novelo de uma imensa solidão» EL CORTE INGLÉS, LISBOA, 13 DEZEMBRO Mais uma sala cheia para ouvir Helder Macedo lançar preciosas pistas de navegação no alteroso oceano que é a obra de Shakespeare. Outro espectáculo subtil da inteligência, não apenas na análise das quatro obras, centrada em um conceito (culpa, em Hamlet; nada, para Rei Lear; traição, em Otelo; bond, i.e., vínculo, título de dívida, e mais…, para O Mercador de Veneza), mas nas múltiplas articulações com os nossos dias. Interessa-me, aqui e para já, cometer a inconfidência da conversa ajantarada e avantajada. O Helder foi Secretário de Estado da Cultura de uma breve e exaltante experiência de governação, capitaneada pela carismática e saudosa Maria de Lurdes Pintasilgo, nos finais de 1970. Isso, de par com a sua posterior candidatura à Presidência da República, marcou o fim da minha infância, de complexa e azeda maneira. Tê-lo, à mesa, a testemunhar de um tempo que fez um nó no tempo, derrubou as paredes da sala e colocou-nos, também ao José Anjos e à Susana Santos, no meio de um filme, misto de Buñuel com Pasolini e pitada de Fellini. Muito do que agora se dá por adquirido na cultura de Estado, apesar das ameaças constantes, teve então gestos primordiais, que valia a pena revisitar. Como esse estranho episódio de interrupção da democracia por razões técnicas à maneira do canal único de televisão, cometido pelo governo que se lhe seguiu, liderado por Sá Carneiro, com Vasco Pulido Valente no lugar de SEC e onde surge – nas Finanças, claro! – a sombria figura de Cavaco: cada uma das medidas tomadas pelo governo Pintassilgo foram suspensas, nalguns casos até ao nível do despacho. Um deles autorizava a resolução de problema eléctrico no Museu de Arte Popular, que acabou por estar na origem do célebre incêndio que destruiu preciosa obra colectiva (Vieira da Silva, Pomar, João Vieira, entre muitos outros), na qual se celebrava o primeiro aniversário da revolução. Shakespeare, sempre tão próximo. PASSEVITE, LISBOA, 17 DEZEMBRO A polémica que por aqui lavra confirma o peso das palavras. O Ricardo Araújo Pereira disse que hoje seria difícil hoje fazer uma velha rábula com «anões, coxos e mariconços», que incluía também vesgos, fanhosos e atrasados mentais. A provar que tinha razão, explodiu uma troca de argumentos muito interessante. Ou quase. Eduardo Pitta, no seu blogue armou que «Ricardo Araújo Pereira lamenta não poder achincalhar os mariconços. Eu não sei o que é um mariconço.» Paulo Corte-Real, da Ilga, fez o curto-circuito aos crimes de ódio. “Conhecendo a dinâmica dos crimes de ódio como conheço, também conheço a sua ligação aos insultos.” Hoje, no Expresso, a deputada Isabel Moreira acrescenta uma aula de ciência política. «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?». A liberdade, diz ela, embora com nuances, é valor de direita. A esquerda é mais igualdade. Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade. A pele das palavras muda e é divertido imaginar que as conseguiremos limpar até ficarem brilhantes de tão puras. Velho tornou-se depreciativo? Chamemos-lhe sénior. Demos-lhe mais anos de vida? Anão passou a magoar? Tratemo-lo por indivíduo desproporcional ou de baixíssima estatura. Com isso cresceu? Uma amiga contou-me da dificuldade que teve, ao longo de meses, em passar a tratar por clientes os deficientes com quem trabalha. A bem do rigor, foi banido o uso de utente, paciente, etc. Hesitei na palavra deficiente, mas melhora se a substituir por pessoa portadora de deficiência? Não creio que o combate vital à descriminação se resolva assim. E perigosa me parece esta deriva, em gente tão atenta aos detalhes da língua, que lê insulto no humor. Obviamente, o humorista não está livre de crítica e pode ignorá-la, mas também desaparecer por falta de graça. Ora uma das grandes conquistas da civilização, a duras expensas, foi a liberdade de expressão e do grito, por exemplo, no espaço polémico do desenho de humor, da caricatura. Como em inumeráveis atitudes e leis censórias, o argumento de defesa dos assassinos dos desenhadores do Charlie Hebdo foi a defesa da honra perante terrível ofensa, no caso, religiosa. Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade. André Carrilho, que inaugurou ex- posição de brutais serigrafias (Uppercut, na Passevite, até 5 de Janeiro) feitas a partir dos seus cartoons (o que ilustra a crónica foi capa do DN na sequência do Charlie Hebdo), que se acautele: vai ter que emagrecer muito gordo, revestir muita careca e corrigir narinas. Ele tem histórias para contar. HORTA SECA, LISBOA, 18 DEZEMBRO Acabo de saber que, segundo um colega editor, as edições da abysmo são «apanascadas». Deu-me uma alegria redentora que nem vos conto.
Fa Seong A Canhota VozesParem de se sentir bem convosco próprios [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi só uma vez. Os governantes de Macau, sobretudo o chamado “secretário dos cinco anos brilhantes”, defendem que as medidas ou as actividades que o próprio Governo realiza “obtêm grande sucesso”, ou que “ganham bons comentários da maioria da população”, apesar de existirem várias opiniões ou criticas que revelam exactamente o contrário. É irritante observar que eles se sentem bem meramente consigo próprios, além de virem a público dizer que a maioria dos residentes também concorda com o que se passa. Antes de dizerem isso, não devem ter ouvido as críticas da sociedade, as que são difundidas nas redes sociais e nos meios de comunicação social, ou então apenas fazem ouvidos moucos. A harmonia é uma das características associada a Macau, à sua sociedade e às suas gentes, mas não é surpreendente que muitas pessoas prefiram ficar em silêncio sobre coisas que realmente não gostem, em vez de falarem dos problemas existentes. Olhando por aí, é fácil desmentir o que os dirigentes do Governo defendem de bom. A primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, que acabou esta semana, é o exemplo mais recente. O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, salientou aos jornalistas que o festival foi organizado com grande sucesso, que recebeu todas as mensagens positivas, tendo ainda falado da surpresa de muitos com o sucesso da realização do festival pela primeira vez. Não posso negar os bons comentários que foram feitos e que o secretário ouviu, mas não deve ter ouvido falar das outras opiniões de especialistas e espectadores de festival expressas nas redes sociais. Essas críticas falam de salas vazias na exibição dos filmes seleccionados no festival, em momentos onde apenas os realizadores de renome e os actores apareceram para falar do filme com apenas dez espectadores. Seria curioso saber o que eles pensaram nesse preciso momento. Quando eles pensavam que os filmes não foram suficientes para despertar a curiosidade das pessoas, para as levar a comprar bilhetes, veio a saber-se que, antes dos filmes começarem a ser exibidos, já os bilhetes estavam esgotados. Então para onde foram esses bilhetes? Para as personalidades VIP convidadas pela organização do festival? Para os funcionários e familiares? Pode ter acontecido o caso de que, muitos dos que queriam realmente ver os filmes não conseguiram comprar bilhete. Mas as críticas não ficam por aqui. Um espectador do filme “Gurgaon” partilhou a sua opinião à publicação “All About Macau”, sobre a ida de um grupo de 50 estudantes à sala de cinema, tendo-se deparado com a falta de legendas em chinês, o que levou a que não tenham usufruído do filme, pela falta de entendimento do mesmo. Os responsáveis por esta edição do festival não podem tapar os olhos a esta situação. Tratando-se da primeira edição, o Governo deve prestar mais atenção a todas as reacções, quer sejam elogios como críticas. Num território tão pequeno, se todos fizerem ouvidos de mercador às críticas existentes, a cidade morrerá aos poucos, porque onde não há críticas, não há melhorias.
Angela Ka SociedadeFocos no turismo cultural não reúnem consenso [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] área do turismo cultural não reúne consenso entre académicos do território. A atenção a ser dada diverge, com diferentes analistas a defenderem a preservação de diferentes aspectos. Para Lam Fat Iam, presidente da Associação de História Oral de Macau, é fundamental que a tarefa principal seja “a conservação dos edifícios históricos e espaços comunitários construídos em diferentes épocas no território”. O responsável diz que a preservação do património cultural e a adição das novas actividades não “deverão ser opostos, mas sim compatíveis”, como frisou em declarações ao Jornal de Cidadão. Lam Fat Iam considera que o princípio de desenvolvimento tem que ser a manutenção do património cultural e dos costumes tradicionais que actualmente existem e, de modo a operacionalizar esta sugestão, o presidente da Associação de História Oral de Macau sugere que em primeiro lugar deverá ser feita “a protecção da textura da cidade que inclui as ruas, becos, calçadas e travessas”. Paralelamente, diz, deverão ser conservadas as demarcações das diferentes zonas tendo em conta a linha litoral e do horizonte do território. “Fazendo bem a integração destes elementos, sob uma visão macro, a história, a cultura e as construções de Macau poderão usufruir de um controlo e protecção favoráveis”, conclui. A académica e presidente da Associação Energia Cívica e membro do Conselho para as Indústrias Culturais Agnes Lam considera que um aspecto de relevo é a atenção dirigida aos monumentos contemporâneos. O Governo continua a “colocar mais ênfase no passado do que o presente e aqueles que já entraram na lista do património são tratados generosamente”, considera, acrescentando que o património contemporâneo e datado do séc. XX não está a ser devidamente tido em conta. Agnes Lam ilustra a situação com o exemplo das instalações dos estaleiros de Lai Chi Vun que integram “um vasto espectro da história do território”. Já a dedicação ao espaço criado pela fusão oriental e ocidental ao longo de 500 anos é, para o presidente da Associação para Protecção do Património Histórico e Cultural, Cheang Kok Keong, a prioridade a ter em conta no âmbito da exploração do turismo cultural de Macau, dada a sua raridade, especialmente na China. Por outro lado Cheang Kok Keong defende que o Governo tem que procurar um equilíbrio entre o espaço turístico cultural criado pelo investimento de capital e as novas tecnologias características das grandes empresas sendo que ambas fazem parte do turismo cultural da região. “O património mundial é outro cartão para atrair turistas e não se deve ceder a projectos demasiado comerciais”, defende.
Sofia Margarida Mota SociedadeParticipação cultural de residentes a aumentar [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s residentes participam cada vez mais em actividades culturais e na ida ao cinema. É o que indica um inquérito sobre a participação dos cidadãos em actividades culturais divulgado ontem pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC). O objectivo do inquérito era a recolha de informações sobre a participação em actividades culturais de indivíduos, com idade igual ou superior a 16 anos. Os dados mostram que 257.900 residentes participaram em actividades culturais no segundo trimestre de 2016 e a taxa de participação nestas actividades foi de 59,2%, uma subida de 1,2% em termos anuais. A actividade que registou um maior número de participação foi a ida ao cinema. Um total de 169.800 residentes optou pela sétima arte, concretizando um aumento em 7,6%, em termos anuais. Dos filmes escolhidos, 35.100 residentes assistiram a filmes/vídeos produzidos em Macau, um número que cresceu 58,5%. Este aumento tem na sua origem, segundo o DSEC, a promoção da produção local de filmes/vídeos e de se ter organizado uma série de eventos para os exibir. A ida às bibliotecas também aumentou, com cerca de 114.400 residentes a frequentarem estes espaços, o que representa mais 3,1% em termos anuais. A taxa de participação dos residentes nesta actividade foi de 26,3% e a dos estudantes de 68%, sendo superior à aderência dos não estudantes, que foi de 22%. O número de residentes que visitaram museus ou locais do património mundial aumentou 19,1%, em termos anuais e cada participante efectuou em média 2,8 visitas a museus ou locais do património mundial, números idênticos aos do segundo trimestre de 2015. De entre os residentes que participaram nesta actividade, 72,4% visitaram locais do património mundial, com cerca de 82.500 visitantes, e 65,9% foram aos museus, num total de 75.100. Assistiram a espectáculos 90.500 residentes, menos 0,7% em termos anuais. Cada participante assistiu em média a 2,3 espectáculos, média idêntica à do segundo trimestre de 2015. De entre os vários espectáculos, os mais populares foram os musicais ou os de dança, com a participação de 65.500 pessoas que representam 72,3% do total. A opção pelo teatro foi feita por 45.200 residentes. O número de residentes que assistiram a exposições de arte foi de 38.300, registando uma subida de 5,2% em relação ao trimestre homólogo de 2015. Destaca-se ainda o facto de que 95,7% destes participantes estiveram presentes em diferentes tipos de actividades culturais e 51,6% participaram em quatro ou mais tipos de actividades.
Joana Freitas Entrevista MancheteGuilherme Ung Vai Meng, presidente do IC: “Trabalhamos para ter mais património na UNESCO” A UNESCO pode vir a ter mais património classificado de Macau e as ruas do território vão encher-se de músicos, com licença para tocar. São algumas das ideias de Ung Vai Meng, que se diz satisfeito com o trabalho feito pelo património e com a lei que o regula [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stá como presidente do Instituto Cultural (IC) há muitos anos. Como avalia o trabalho que tem sido feito até agora? Entrei aqui a trabalhar em 1983. Sou presidente há seis, ou sete anos. Sinto-me feliz a trabalhar na área da cultura. Posso dizer que sou [testemunha] e vejo como o IC cresceu. Já vi muitos funcionários reformarem-se, até fiquei com alguma inveja (risos). Cresceu muito o IC, não só ao nível da quantidade, mas de qualidade. Este ano foi muito importante, com a entrada de pessoal [e departamentos] do IACM na nossa equipa. Agora temos mais de mil funcionários, 16 bibliotecas, muitos museus e galerias. É um espaço que cresceu e onde podemos encontrar [vários] recursos, é uma base cultural. O mais importante é a qualidade dos funcionários, sinto-me feliz por estar a trabalhar com eles. Dantes não tínhamos, por exemplo, profissionais de arqueologia, tínhamos de convidar pessoal de fora. Agora convidamos para nos ajudarem, mas somos nós quem inicia o trabalho, sem andar a pedir “por favor”. Dantes não tínhamos também pessoas que soubessem restaurar o património, agora temos. Há património que Macau tenha perdido por não saber como preservar? Macau é uma cidade com uma longa história e a lista de património foi logo elaborada em 1964. Nos anos 1970, uma equipa de escavação de Hong Kong descobriu alguns vestígios em Hac Sá, a iniciativa foi deles, sim, mas depois da transferência formamos a nossa equipa, em 2006 mais ou menos. Mas mal descobrimos vestígios arqueológicos, já nessa altura, preservamos o terreno. Como não reunimos as condições para expor estes vestígios, a melhor maneira foi deixar no local, por isso em Hac Sá existe um parque onde não há construções, para que isso pudesse ser preservado. Não perdemos nada, é uma forma de preservação diferente. É como o campo de futebol na Rua dos Estaleiros em Coloane. É para preservar, para futuramente podermos construir um museu ou espaço para exposição dos vestígios. Que não vai ser para já… Não nos pertence só a nós, também à futura geração. Não podemos aproveitar tudo agora, temos de deixar alguns para o futuro, para que eles possam aproveitar, até com melhores técnicas. Acha que há mais sítios em Macau onde se poderão encontrar este tipo de vestígios? Há mais. De certeza. Imagine debaixo da vila de Coloane… há outra vila, de há três mil anos atrás. Acho romântico, vivemos uma vida em cima, mas lá em baixo tinha outra, da era do Neolítico. Até encontrámos tanques industriais, tão engraçado. Sobre o património, quantos itens classificados é que Macau acumula neste momento? O conceito de património agora é diferente de antigamente. No século passado, o nosso conceito de 1956 era apenas de imóveis. Agora inclui património arqueológico e bens intangíveis. Imóveis temos 128. Quando e quantos vão entrar mais na lista? Este ano, antes de Dezembro. Nove vão ser classificados e depois desta classificação, vamos iniciar outro grupo. O edifício da Rua da Barca, que sofreu demolição parcial, integra a lista? Não. Estamos ainda na fase final de análise da reparação, mas vamos ocupar-nos agora com o processo de classificação, deixando a reparação para mais tarde. Que nove integram esta primeira lista? As muralhas da cidade, que têm três secções, o Armazém do Boi e o Canil Municipal de Macau, por exemplo. São vários conjuntos, não só nove lugares específicos. Há muita gente que defende a inclusão da Escola Portuguesa de Macau (EPM). Devia entrar no património? Pessoalmente, acho que sim. É tão bonita. Mas está já pensada para entrar na segunda lista de imóveis? Estamos a deixar os colegas [do património] considerar. O meu colega, Wong Iat Cheong, Chefe da Divisão dos Estudos e Projectos pode falar disso. W.I.C.: Estamos sempre a considerar edifícios com potencial valor. Quando reunirmos suficientes opiniões [sobre isso] podemos iniciar o procedimento de classificação. Depois vamos ouvir o proprietário, o Conselho do Património Cultural e opiniões e decidimos se vai ou não ser classificado. Que outros edifícios é que o presidente poria na lista, se pudesse escolher? Aprendi a pintar desde muito pequeno, quando andava no liceu. E o meu professor levava-me para os locais para pintar, aí desenvolvi amor pelo património. Se me pergunta quais os imóveis que punha, não consigo enumerar todos. Macau do século XIX e XX era muito bonito. Anos 1970, muito mais bonito que é agora. (risos) Não consegue escolher? Preservava todos os edifícios dessas eras? Se fosse possível (risos). Existe um preço na preservação do património cultural. Trabalho no Museu de Arte de Macau há dez anos e, às vezes, havia cidadãos que doavam relíquias ao museu. Não podemos aceitar todos, os que têm muito valor claro, mas alguns temos de desistir. Há que investir muitos recursos para a preservação. O mesmo acontece com o património. Na nossa lista de 128 itens há mais de 400 edifícios. Numa cidade tão pequena como esta, isto requer um esforço enorme, ainda que valha a pena, porque temos de preservar as características. Se não conseguirmos, é uma cidade igual às outras. Os edifícios de uma cidade são a alma dessa cidade. Como se faz esse processo de separação? É resultado da inteligência e da sabedoria que vamos adquirindo, que já veio dos nossos antepassados e que temos de continuar a preservar. Macau é muito pequeno, só a península tem pouco mais de dez quilómetros quadrados e o Centro Histórico ocupa 1,2 desse espaço – 12% da península de Macau é património. Não existe só o Centro Histórico, existem imóveis que devem ser preservados fora dele. Temos de contribuir com muitos esforços, mas sinto-me satisfeito. É controverso escolher o que integrar na lista? É um trabalho conjunto. Como uma sociedade democrática é importante e normal a discussão. Mas o mais importante é que o processo seja aberto e público. Cabe ao IC fazer uma proposta. A decisão não é do IC. Já sentiu que deveria ter entrado um imóvel na lista que acabou por não ser aprovado? Não, fico contente por existirem tantos, porque quando entrei no IC a trabalhar foi no departamento do património e naquela altura os meus colegas portugueses abriram uma janela para esta situação. Um arquitecto que trabalhava comigo marcava no mapa o património com cor vermelha e agora esses sítios são património. Passou por muitos processos e passou do papel [à realidade]. Sinto-me mais alegre agora, que toda a população pode entrar no processo. Naquela altura, a população não percebia porque é que se tinha de preservar casas arruinadas. Agora a população está mais informada. Mas continua a ser difícil negociar com os proprietários? Sim e testemunhei essa mudança de atitude da população. Muitos dos proprietários é que apoiam esta classificação. Claro que temos que gastar algum tempo para explicar o valor das coisas, a importância. Quando percebem essa importância, concordam com a nossa sugestão. Mas também existem pessoas indiferentes à nossa ideia e temos de seguir a lei, não podemos obrigar os outros a seguir a nossa vontade. Por exemplo, existe uma sala dentro do Templo de Na Tcha, perto das Ruínas, onde havia uma associação que se reunia lá, mas cedeu o espaço ao IC, que passou agora a ser o museu de Na Tcha. Mas o IC foi muito ganancioso (risos), porque quisemos mais, quisemos fazer escavações, porque é dos locais mais antigos da cidade. Eles deixaram, fizemos e percebemos que a forma da Igreja [de São Paulo] original não era original, era em cruz, como nas igrejas da Europa. Percebemos que as pessoas do igreja e de Na Tcha conviviam e a igreja não terminava, antes, no limite que agora termina. Mas isso só foi possível com a ajuda da associação. O IC disse numa resposta a uma interpelação que o Plano de Salvaguarda e Gestão do Centro Histórico estaria pronto em 2017. Em que consiste? W.I.C.: São as medidas previstas na Lei de Salvaguarda, como a manutenção das ruas com as características [antigas], controlo do enquadramento paisagístico, a preservação do contexto da zona e exigências sobre o restauro dos imóveis à forma original. Estão a pensar cortar no número de turistas na zona, por exemplo, ou no trânsito que chega ao Centro Histórico? W.I.C.: Este tipo de medidas tem de ser resolvido através de uma equipa interdepartamental, falamos de coisas mais concretas [sobre o património]. Mas não vão estar na agenda esse tipo de sugestões? W.I.C.: Na fase actual não podemos falar de forma concreta nesse tipo de medidas. O conteúdo será publicado em regulamento administrativo e se incluirmos essas são medidas se calhar é difícil de implementar. Ung Vai Meng com Wong Iat Cheong A Lei de Salvaguarda do Património foi aprovada em 2013 e o plano chega, se tudo correr bem, em 2017. Quatro anos depois, não está atrasado? W.I.C.: O Centro Histórico tem um espaço muito grande e implementar estas medidas vai afectar a vida da população, por isso é que não podemos fazer tudo rápido, temos de pensar bem. Também estamos a aprender e a trabalhar ao mesmo tempo, aproveitando para aperfeiçoar estas medidas. Macau quer integrar mais património na UNESCO? É nosso desejo integrar mais património na UNESCO, claro. Aliás estamos a trabalhar nisto… [quote_box_left]“A preservação do património tem um preço, a ser pago pela sociedade[/quote_box_left] Há algo concreto? Não podemos revelar ainda, porque estamos em trabalhos. Mas há possibilidade disso acontecer. Mas imóveis ou outros bens? Está a acontecer com o nosso arquivo e da Torre do Tombo, em Lisboa, estamos a desenvolver um projecto para nos candidatarmos à secção da Memória da UNESCO. Já conseguimos integrar nas Memórias da Ásia. No ano passado fomos à UNESCO fazer uma apresentação. Também trocámos ideias com representantes de Portugal, que nos disseram que, no futuro, se calhar vai candidatar a calçada portuguesa como património mundial. Macau entra de certeza. Depois dos alertas da UNESCO, como é que está a situação de Macau com a organização? W.I.C.:Depois do incidente com o Farol da Guia, Macau tomou muitas medidas para [respeitar] o património, como regular alturas dos edifícios à volta. A lei também é uma resposta aos alertas da UNESCO. A UNESCO está satisfeita com o nosso trabalho. O grupo Root Planing criou uma petição para manter o Centro dos Toxicodependentes e o antigo armazém dos SS, ao lado do São Januário. Acha que aqueles edifícios têm realmente valor patrimonial? Têm um certo valor, mas perante um maior interesse público, decidimos não preservar, senão não era discutido no Conselho do Património. Por isso é que digo que a preservação do património tem um preço, a ser pago pela sociedade. Outra questão que tem sido levantada, e que levou um arquitecto a pedir a intervenção da UNESCO, é o muro feito no Quartel de São Francisco. São obras de melhoria e estou satisfeito, porque demoliram construções ilegais, que não eram originais. Antes, havia construções ilegais junto desse muro e está tudo preservado agora. A construção nova não pode ser passada como antiga, porque se não, daqui para a frente não dá para distinguir o que foi construído antes e mais tarde. Serve também para demonstrar a nossa sabedoria. A obra foi bem feita? Foi. São compatíveis e estão em harmonia, as construções. Dá para distinguir o que é antigo e novo. Não queremos imitar. Há muitas imitações no Cotai. A Lei do Património é boa? É muito boa. É um instrumento forte, porque antes não conseguíamos proibir as demolições ou obras ilegais. Agora podemos. Atribui força ao IC para proteger o património. Os antigos pareceres do IC não eram vinculativos, agora são. Estou muito contente até poder participar na elaboração e implementação desta lei. Precisa de revisão? Não. Eventos culturais para Macau. Temos algo na manga, algum especial? O Festival Internacional de Música faz 30 anos, por isso estou muito agradecido pelo esforço de terem feito isto há 30 anos. Não se pode imaginar Macau há 30 anos, só com uma ponte, mas com um festival destes. É o mais antigo ao nível da Ásia. Vai ser especial e com muitas surpresas. Depois o Festival de Artes e o de Wushu. Fringe também é organizado por nós agora. E licenças para os músicos tocarem nas ruas de Macau, vamos ter? Sim. Vamos esforçar-nos neste sentido, já temos um plano, tem que ser legal. Espero que depois Macau possa ter muitos espectáculos na rua. Já avistamos a luz ao fundo do túnel. (risos) E uma exposição sua, enquanto pintor? Não. Desde que assumi a posição de director do MAM que parei de expor, por causa do conflito de interesses. Mas vou continuar a pintar. Sou diligente na pintura, como sou um funcionário diligente (risos). Está preparado para continuar à frente do IC? Sim, até quando estiver cansado, quando for um ‘bolo velho’ (risos). Sou o segundo ‘bolo velho’ do IC.
Hoje Macau SociedadeIndústrias culturais | Leilões e hastas públicas são nova aposta do Governo O Governo vai apostar no sector dos leilões e hastas públicas, dentro da área das indústrias culturais. A notícia foi avançada ontem, por Alexis Tam, Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, que indicou que o Governo vai, nos próximos dias, criar um grupo de trabalho dedicado em exclusivo ao sector. Cortar na carga fiscal, promover a formação de pessoal especializado e criar legislação específica para regular este negócio foram algumas das sugestões que saíram do Conselho para as Indústrias Culturais, que reuniu ontem de manhã pela primeira vez. No encontro foi ainda apresentado um estudo sobre as expectativas de desenvolvimento em Macau de leilões e de hastas públicas. O Secretário considera que se trata de uma indústria muito promissora. “Achamos que o mercado de leilões de arte e de antiguidades poderá ter um grande sucesso”, afirmou Alexis Tam, citado pela Rádio Macau. Também a deputada Angela Leong concordou, sendo ela parte interessada, pois é proprietária de leiloeiras no território. A deputada disse, durante a sua intervenção, que é importante que o Governo acabe com o imposto de selo que recai sobre estas transacções. “Acho que Macau deveria pensar em revogar o imposto de selo nas obras de antiguidades”, apontou. Por sua vez, o deputado Gabriel Tong, também membro do Conselho, reforçou a opinião, já defendida também na Assembleia Legislativa (AL), de maior trabalho na legislação anti-corrupção e branqueamento de capitais para regular estas de transacções. “Nós já temos esta legislação mas temos que ver se é capaz de abranger e regulamentar a actividade desta indústria”, apontou.
Fernando Eloy VozesPura ficção. E uma mensagem para a comunidade macaense [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]Este texto é um plágio. Este texto também é uma ficção pelo que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência… Com a devida vénia a Ésopo, aqui vai: Era uma vez uma pequena cidade antiga à beira mar onde pouco ou nada se passava. Tinha vivido tempos difíceis mas, um certo dia, os locais tinham descoberto uma forma de se sustentar. Alguém vindo de fora montou uma gaiola dourada onde criava galinhas. Galinhas essas, mágicas com certeza que, segundo reza a lenda, punham ovos de ouro. Não eram muitos mas o suficiente para os habitantes da cidade terem uma vida digna. E assim se passaram anos, uns mais tranquilos do que outros naturalmente, mas o pão não faltava e os tempos das fomes e das necessidades há muito tinham passado. Não era uma vida perfeita, mas a cidade gozava de bons ares, tinha até o maior índice de esperança de vida do mundo e as pessoas tinham uma vida livre, de alguma forma satisfeita, sendo vulgar reunirem-se em grupos animados em jantaradas ao ar livre pela noite dentro. Viva-se aquilo que os de fora chamavam um vida descansada, laid back. Porque, para além das galinhas que proporcionavam o rendimento aos autóctones, a própria cidade e a sua forma tranquila de vida era uma atracção para os de fora. Aos seus portos chegavam viajantes de variadas origens não só à procura do ouro das galinhas, como também para descobrirem essa cidade lendária que as histórias homenageavam, à procura da poesia que só esta cidade antiga conseguia oferecer. E alguns gostavam tanto que até decidiam ficar, porque não eram apenas as galinhas que eram mágicas, toda a cidade construída ao longo de séculos sob a influência de povos de diversas origens, respirava odores de lenda, era um lugar sem igual no mundo. Mas chegou um dia em que tudo mudou. Descontentes por acharem que a gaiola dourada não tinha capacidade para mais galinhas, alguns habitantes poderosos decidiram chamar gente de fora para construir mais gaiolas e criar mais galinhas até porque nas regiões vizinhas a criação daquelas galinhas era considerada tabu e só nesta cidade era possível criar tais criaturas mágicas. E assim foi: de um dia para o outro construíram-se novas gaiolas e criaram-se milhares de galinhas mágicas. O resultado foi espectacular! A produção de ovos de ouro chegou a níveis impensáveis e a cidade encheu-se de curiosos que vinham ver o milagre e, quiçá, levar um ovo com eles. O sucesso foi tal que até os vizinhos se arregalaram com tanta fartura, e deitaram abaixo velhos tabus e começaram também eles a construir gaiolas. Mas os habitantes da nossa velha cidade estavam demasiados ocupados com as suas fábricas de ovos de ouro para perceberem o que se estava a passar ao lado e continuaram a deitar abaixo prédios antigos, bairros inteiros para criarem ainda mais galinhas. Os preços na velha cidade subiram tanto e os espaços foram tão reduzidos que muitos demandaram a outras paragens e a velha cidade depressa se transformou num galinheiro. Mas o pior estava para vir: um certo dia, a produção de ovos caiu e milhares de mirones começaram a debandar para outras bandas porque, afinal, o fenómeno dos ovos dourados não era um exclusivo da nossa velha cidade. Na realidade, a partir do momento em que se torna vulgar, para ver galinheiros tanto se pode ir aqui como ali. Os outros, os que vinham à procura da cidade das lendas também há muito tinham deixado de a visitar, porque ela não mais pode ser encontrada, atafulhada de galinheiros e lojas de pechisbeque. Espantados, os habitantes da cidade coçam agora o cocuruto olhando para a cidade antiga que os seus aviários destruíram, interrogando-se sobre o próximo passo a dar. (continua numa rua perto de si) À COMUNIDADE MACAENSE Muito se tem falado nestes últimos dias sobre o ser macaense, ouvindo-se muita coisa. Fala-se de idiomas, de etnias, do que é ser, do que é sentir, se é macaense ou macaísta, macaio ou lacaio, português ou marroquino, chinês ou mongol, mediador ou criador, nativo ou amante, mais ou menos mestiço, houve até quem falasse em fazer mais filhos… Todavia, há algo que se sobrepõe a todos esses conceitos, ideias ou hipóteses: chama-se Macau. Sem Macau não havia macaenses. Por isso, se pretendemos de facto discutir a comunidade, não podemos passar ao lado da terra. Uma terra onde, qualquer dia, as memórias vão limitar-se aos cemitérios e, caros amigos, sem memória, sem espaços comuns, sem reminiscências do passado, sem uma traça que distinga um lugar, não há cultura que resista. Por isso, a minha modesta contribuição para essa discussão é que se debata a cidade, o seu planeamento, a sua forma de viver. Ser macaense, tem muito de amor à terra, isso parece ser uma nota comum. Mas são apenas 28 km2… Não é a cultura que está em vias de extinção, é a cidade que lhe deu origem e a discussão tem de ser recentrada na cidade, e com carácter de urgência! Porque sem Macau não há cultura macaense. Macau, mais do que nunca, precisa dos que a amam, precisa de ser defendida dos usurários que a pretendem destruir. Essa é a missão dos macaenses se pretendem que a sua cultura chegue ao próximo século, às próximas décadas… Essa tem de ser a cultura do momento, esse tem de ser o debate, mais, essa tem de ser a acção – acção construtiva, inteligente, moderna, forte e com sentido de missão. O resto é pura retórica que o tempo se encarregará de engolir – e os tempos andam depressa por estes lados. Depois podemos sentar-nos à sombra de uma Figueira de São João e discutir a cultura com um lai chá fresquinho e umas trincas numa batatada. MÚSICA DA SEMANA La Pandilla – “La Casa” “Era una casa muy chiquitina. Sin desvancito y sin cocina. No se podía pasar adentro por que no había ni pavimento. No se podía ir a la cama. No había techo ni las ventanas. No se podía hacer pipí por que no había un orinalín. Pero era hermosa con mis canciones en el país de las ilusiones. Pero era hermosa con mis canciones en el país de las ilusiones.”
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasDois pontos [dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Dei umas voltas por várias cidades da Ásia, grandes e pequenas, mais ou menos modernas. Depois voltei a Macau. E, ao olhar à volta, cheguei a uma conclusão: por aqui não existem turistas. As estatísticas bem me podem gritar que entram 15 milhões por ano. Eu não acredito. E não acredito porque sou como São Tomé. E a verdade é que não os vejo. É bem possível que Macau provoque nas pessoas estranhos comportamentos. Até aí ainda vou. Mas que os turistas aqui entrem e não vão a lado nenhum, não passeiem, não estejam nos restaurantes, não saiam à noite, desculpem mas isso não engulo. Quero ver os turistas, quero vê-los nas esplanadas, nas lojas, nos restaurantes e nos bares. Como acontece em todas as cidades do mundo. Logo, quem são os 15 milhões que entram pelas fronteiras? Fácil: alguns são jogadores – a maior parte vem, como sempre veio, de jet foil; outros são uns senhores que têm um comportamento bizarro que consiste em desenvolver uma fixação/paixão por passar fronteiras para lá e para cá. Quem sou eu para julgar as obsessões alheias? Cada um faz o que quer com o seu tempo e se em Macau existe tanta gente a atingir o clímax ao mostrar o passaporte na fronteira, porque não aceitar tão deslocada mas inofensiva mania? A mim só me prejudica na medida em que alonga a fila do lado da China. Mas… nada de grave. Dá para aguentar com um mandarínico sibilar nos lábios. Aliás, o turismo bem que podia fomentar uma daquelas campanhas que dá prémios, mas desta vez à própria população. Quem encontrar um turista fora das hordas e o apresentar na Praça do Senado, tem direito a uma ida à Torre (de Pisa). Enfim. [dropcap style=’circle’]2.[/dropcap] Vi num filme um rapazito que mordiscava uma maçã acabada de arrancar de sua original árvore. Não se tratava de um pomar mas de uma dessas árvores semi-selvagens, que se esforçam por crescer e cujos frutos exalam o olor inexcedível desse trabalho. Pensei então que cada vez menos crianças terão acesso a este deleite, simplesmente porque essas árvores são cada vez mais raras. Basta tentar comprar fruta verdadeira em Macau para compreender esta situação. As maçãs não têm sabor, as peras são aguadas. Quanto a pêssegos, uma verdadeira desgraça. Onde estão aqueles exemplares a desfazerem de sumo e vibrantes odores nas nossas bocas? Algures no mundo, talvez, mas não nos escaparates locais. E o que aqui é verdade repete-se em quase todas as cidades do mundo, mantendo a garotalha na mais perfeita ignorância das coisas boas e simples do mundo. Pensei depois que as gentes de antigamente, as que iam ao mercado e tinham dinheiro para pagar a boa fruta se calhar nem lhe davam valor. Estas coisas são assim. Provavelmente, sou eu e outros que, na falta, gabamos as suas qualidades que qualificamos de excelsas, quando para os antigos não passavam de uma banalidade. Não deixemos, portanto, de apreciar com reverência as nossas actuais banalidades. O seu destino é fazer as delícias dos vindouros. Quando faltarem, sobretudo.
Andreia Sofia Silva SociedadeCultura | FIC só apoiou 30% das candidaturas [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o final de dois anos de funcionamento, o Fundo para as Indústrias Culturais (FIC) apresentou ontem os resultados das candidaturas a apoio financeiro, sendo que a percentagem de aprovações surpreende por ser baixa. Apenas 26,79% dos projectos viram luz verde do FIC, ou seja, 62 de um total de 321 candidaturas. Estes dados dizem respeito a 2014, sendo que este ano o FIC só aprovou oito projectos, os quais deverão representar 15 milhões de patacas em apoio concedido. Com um investimento de 89 milhões de patacas por parte do Governo, os projectos aprovados prometem criar 413 postos de trabalho, dirigindo investimentos num valor total de 460 milhões de patacas. Tratam-se sobretudo de candidaturas na área do design criativo, exposições e espectáculos culturais, colecção de obras artísticas ou media digital, entre outras. Citado pela Rádio Macau, o presidente do FIC, Leong Heng Teng, frisou que não é objectivo da entidade reduzir os apoios financeiros, por culpa da austeridade imposta pelo Executivo. “Não se pretende reduzir a força do apoio financeiro às empresas. Temos um determinado nível de autonomia na concessão do apoio”, garantiu. Davina Chu, vogal do conselho de administração do FIC, explicou que os projectos candidatos a apoio o ano passado não tinham muito conhecimento das regras de candidatura. “Apesar de o número de candidaturas ser um pouco inferior ao ano passado, a qualidade dos projectos está a subir”, explicou. Projectos na calha Daqui para a frente, o FIC afirma estar a estudar novas hipóteses de financiamento às Pequenas e Médias Empresas (PME). “O FIC pretende, ainda, lançar, a título experimental, apoio financeiro a projectos específicos, sendo os destinatários projectos nas áreas das marcas de moda, exposições e espectáculos culturais locais e da indústria cultural da economia comunitária, aumentando o nível de apoio”, pode ler-se no comunicado cedido à imprensa. Para o próximo ano será ainda lançada a “medida das indústrias culturais, mediante a cooperação entre as três partes do Governo, indústrias e académicos, encarregando estabelecimentos de ensino superior locais de proceder a análises e estudos”. Tais análises serão feitos com os dados apresentados até agora pelas empresas candidatas, por forma a traçar planos até 2018.
Leonor Sá Machado Eventos MancheteArtista local Ieong Tai Meng vai abrir residência para artistas em Macau [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] artista local Ieong Tai Meng, que foi recentemente galardoado com o prémio de Ouro em Pintura pela Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), vai abrir um centro de arte e residência para artistas de todo o mundo. E é mesmo ali no centro, na Rua dos Ervanários. A localização sofreu alterações, já que o Instituto Cultural não permitiu a criação do centro na primeira opção geográfica de Ieong, mas a Rua dos Ervanários tem a sua importância histórica. “Os meus antepassados viveram ali, na década de 40”, começou o artista por explicar. À conversa com o HM, contou a história de como veio parar a Macau, considerando-se já da terra. “Eu nasci na China, mas pedi para vir para cá e foi-me dada a autorização de entrada porque tenho cá família, os meus antepassados são da região”, explica. Nascido no distrito de Sanshiu em 1949, foi director da Associação de Pintura Chinesa, membro da Associação de Artistas Populares da China e da Associação Nacional de Arte Francesa. Ieong deu ainda aulas em escolas de arte de Macau, Xi’an, Jilin e Xangai, sendo ainda investigador no Museu de Nanjing. Rotulagem de Baco Na calha está o design de rótulos de garrafas de vinho portuguesas. É que há pouco tempo, a produtora de vinhos portuguesa DFJ fez um tributo ao artista: em seis dos seus vinhos figuram impressões de telas originais do pintor chinês. Ieong toma a Flor de Lótus como inspiração. Primeiro, por ser “bonita e o símbolo de Macau, uma flor santa”, mas também por ser difícil de retratar, o que só por si já confere beleza à planta. Esta parceria será lançada na Feira Internacional de Macau (MIF), que arranca já esta semana. “É uma maneira de aliar a cultura da arte à cultura vinícola, que está muita na moda”, afirma. Ao HM, explica ainda ter “um fascínio” pela cultura de Portugal e que vai desde a arquitectura, ao vinho, das pessoas à própria tradição deixada no território. A viver em Macau há mais de 36 anos, pinta desde os 13 e foi aperfeiçoando a sua arte e talento pelos pincéis e pelas flores de lótus ao ponto de oferecer telas a conhecidos dirigentes desta e da Administração portuguesa. Até Mário Soares teve direito. Hoje em dia já não tem obras suas à venda, mas o estatuto de artista de renome faz chegar à sua porta vários fãs e coleccionadores que querem ter peças de Ieong nas paredes lá de casa. Ou do escritório. Tanto faz o local, desde que mostrem o que de bom ainda se faz em Macau. Prémio inesquecível Foi dentro das quatros paredes do Museu do Louvre que Ieong Tai Meng recebeu um Ouro pelo seu percurso no campo da Pintura. Em jeito de agradecimento, o presidente da SNBA, Michel King, fala de Ieong como um artista que “caminha sobre a grande estrada da cultura chinesa e não fica encostado ao tronco das árvores de frutos acabados de amadurecer”. E é assim mesmo que o mundo parece ver o pintor chinês. Com exposições a solo e colectivas em Londres, Coreia do Sul, Taiwan e vários outros locais, Ieong sagrou-se no mundo das artes com uma série de prémios e nomeações em edições da Exposição Nacional de Artes. Foi a pintura Sonho de Lótus que valeu o Ouro a Ieong, em Dezembro do ano passado. Em apreciação estavam mais de 2000 obras de artistas de 20 países. A próxima mostra do artista em Macau está pensada para Março de 2016, mas até lá os fãs poderão ver o seu trabalho numa exposição organizada pela entidade francesa, de 17 a 20 de Dezembro. O futuro reserva ao artista outros projectos, alguns deles relacionados com a ligação entre a China e Portugal. Um deles, explicou, “pretende abrir portas à colocação de produtos alimentares portugueses no mercado chinês”, assim fomentando a cooperação comercial.