Hoje Macau China / ÁsiaChina/África | Teoria da armadilha do endividamento é “fantasia infundada” Um conhecido analista chinês classificou ontem de “fantasia” a teoria da armadilha do endividamento nos países incluídos no projecto de infra-estruturas internacional da China, nas vésperas de Pequim anunciar milhares de milhões de dólares em empréstimos a África [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão há motivos para que a China queira levar a situações de incumprimento para poder então pressionar estes países”, disse Gao Zhikai, um dos mais conhecidos comentadores da televisão chinesa, à agência Lusa, em Pequim. A capital chinesa recebe, hoje e amanhã, o Fórum de Cooperação China/África, que reúne dezenas de chefes de Estado e de Governo dos países africanos, e deve anunciar a inclusão do continente na Nova Rota da Seda. Bancos estatais e outras instituições da China estão a conceder enormes empréstimos para projectos lançados no âmbito daquele gigantesco plano de infra-estruturas, que inclui a construção de portos, aeroportos, autoestradas ou malhas ferroviárias ao longo da Europa, Ásia Central, África e sudeste Asiático. Críticos da iniciativa apontam para um aumento problemático do endividamento, que em alguns casos coloca os países numa situação financeira insustentável. No Sri Lanka, um porto de águas profundas construído por uma empresa estatal chinesa, numa localização estratégica no Índico, revelou-se um gasto incomportável para o país, que teve de entregar a concessão da infraestrutura e dos terrenos próximos à China, por um período de 99 anos. Na sequência do episódio, o primeiro-ministro da Malásia, Mahathir Mohamad, cancelou projectos apoiados pela liderança chinesa no seu país e avaliados em mais de 22.000 milhões de dólares. “Nós não queremos uma nova versão do colonialismo porque os países pobres não conseguem competir com os países ricos”, afirmou Mahathir sobre a sua decisão. “Passivo Político” Também a directora-geral do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, alertou já para os riscos de derrapagem financeira e armadilha do endividamento. “Nos países onde a dívida pública é alta, uma gestão cuidadosa dos termos financeiros é crucial”, disse. Antigo intérprete de Deng Xiaoping, formado em língua inglesa e com um mestrado em Ciências Políticas na Universidade de Yale, Gao Zhikai considera aquelas acusações uma “fantasia completamente infundada” e lembra que o “endividamento é necessário” para arrancar com os projectos em países com pouco capital. “Condenar a iniciativa pelos termos do financiamento é simplesmente bater à porta errada”, defende o analista chinês, que ilustra o significado da Nova Rota da Seda com o caso de África, “provavelmente” o continente “mais fragmentado”, “devido ao colonialismo europeu”. “Estes países focaram-se em conectar as suas colónias, em vez de conectar os países tendo em conta a sua localização na respectiva região ou no continente” lembra. Segundo a unidade de investigação China AidData, desde 2000, Pequim concedeu mais de 110.000 milhões de dólares em financiamento aos países africanos. Aquele valor coloca o país asiático lado a lado com os Estados Unidos como o maior credor do continente, mas Gao Zhikai recorda que, ao contrário de Washington, Pequim não tem um “passivo político” para com África. “Enquanto os EUA têm uma longa história de esclavagismo, a China nunca teve um racismo institucionalizado contra os africanos”, recorda. Durante os anos 1960 e 1970, a então pobre e isolada China apoiou dezenas de países africanos “na luta contra o imperialismo” e na “defesa do internacionalismo proletário”. “As relações entre China/África começaram num nível mais elevado”, conclui Gao.
Hoje Macau Manchete PolíticaCimeira China-África | Fórum Macau defende relações bilaterais Glória Batalha Ung, secretária-geral adjunta, defendeu que o sucesso do Fórum China-África, que se realiza hoje e amanhã em Pequim, passa pelo fomento de relações bilaterais [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]importância da participação dos países africanos de língua portuguesa no Fórum China-África “deve ser avaliada no contexto das relações bilaterais” que estes mantêm com Pequim, disse à agência Lusa a secretária-geral adjunta do Fórum de Macau. Em causa, enuncia Glória Batalha Ung, está a participação de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, os cinco países africanos entre o oito que fazem parte do Fórum de Macau, uma plataforma de cooperação multilateral entre a China e os países de língua portuguesa. A terceira edição do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC) deverá juntar em Pequim, entre hoje e amanhã, dezenas de chefes de Estado e de Governo do continente africano. A cimeira contará com três novos países: São Tomé e Príncipe, Burkina Faso e a Gâmbia, que elevam assim para 53 o número de nações africanas com relações com a China. Desde 2015, a média anual do investimento directo da China no continente fixou-se em 3 mil milhões dólares, com destaque para novos sectores como indústria, finanças, turismo e aviação. O primeiro Fórum de Cooperação China-África aconteceu em Pequim, em 2006, e a segunda edição decorreu na África do Sul, em 2015. Intenções africanas São Tomé e Príncipe estreia-se hoje numa cimeira ao mais alto nível com a China, para onde viajou o primeiro-ministro, Patrice Trovoada, com investimento chinês para a construção de 300 apartamentos para funcionários públicos na mira do Governo. “Durante a minha estadia, um dos ministros que me acompanha irá assinar alguns acordos, um dos quais tem a ver com o projecto de construção de blocos de apartamentos para os funcionários públicos”, explicou. Patrice Trovoada diz-se satisfeito com o reatamento da cooperação entre os dois países, após uma suspensão de cerca de 20 anos, quando estabeleceu a cooperação com o Taiwan. Também Angola vai estar representada ao mais alto nível neste fórum, tendo na agenda as negociações para uma nova linha de crédito chinês de 11.000 milhões de euros, para financiar vários projectos. A comitiva é liderada pelo Presidente de Angola, João Lourenço, que terá encontro bilateral com o homólogo chinês, Xi Jinping, tal como anunciou, em comunicado, o ministro das Relações Exteriores angolano, Manuel Augusto. Em quase duas décadas, as relações comerciais dos países de língua portuguesa com a China registaram um aumento significativo. Se em 2002, antes do estabelecimento do Fórum Macau, o valor global das trocas comerciais era de cerca de 6.000 milhões de dólares, em 2017 foi de 117,6 mil milhões de dólares. Já o investimento directo da China nos países lusófonos passou de 56 milhões de dólares em 2003, para cerca de 5.700 milhões de dólares em 2016, sendo que o investimento total da China nestes países é de 50 mil milhões de dólares.
Tiago Bonucci Pereira VozesCADFund [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Fundo de Desenvolvimento China-África (CADFund) foi lançado em junho de 2007 como um instrumento do governo Chinês para a implementação prática dos seus planos e objectivos para o continente Africano. O CADFund foi estabelecido como parte de oito medidas anunciadas pelo então presidente chinês Hu Jintao, no Fórum Cooperação China-África (FOCAC) de 2006. Embora opere de acordo com princípios de mercado, o Fundo é uma ferramenta económica e diplomática do governo Chinês para incentivar os investimentos de empresas chinesas nos países africanos. O CADFund é uma subsidiária do China Development Bank (CDB). A missão do CADFund é facilitar a cooperação China-África e melhorar a capacitação das economias africanas por meio de investimentos directos e serviços de consultoria. Gao Jian, ex-vice-governador do CDB e director do fundo, afirmou na altura da sua criação que o CADFund destina-se a incentivar projectos conjuntos entre firmas chinesas estatais ou privadas, e empresas africanas (ou de outras nacionalidades) e que não visa a obtenção de lucros elevados, mas apenas não incorrer em perdas. O Fundo recebeu um total de 5 mil milhões de dólares, com um montante inicial de mil milhões de dólares pago em 2007, e outra injecção de capital de dois mil milhões de dólares anunciada durante uma conferência de empresários Chineses e Africanos em Julho de 2012. A capitalização de 5 mil milhões de dólares foi alcançada em 2015 e uma capitalização adicional de 5 mil milhões de dólares será alcançada este ano, provávelmente até ao FOCAC 2018, a ser realizado em Setembro deste ano em Pequim. Este aumento de capital foi anunciado pelo presidente chinês Xi Jingping em Dezembro de 2015 durante o encontro FOCAC de Joanesburgo, e foi justificado como uma medida para garantir a implementação bem sucedida dos 10 principais planos de cooperação China-África anunciados na mesma ocasião, e que promovem a cooperação em sectores bem definidos, como a indústria, agricultura, construção de infraestruturas, ambiente e comércio, entre outros. O CADFund é orientado para o lucro, não se tratando, de forma alguma, de ajuda externa. Os principais critérios de financiamento do CADFund baseiam-se numa avaliação do retorno do investimento: projectos qualificados para avaliação devem demonstrar perspectivas promissoras, com um potencial de crescimento rápido e estável, e a capacidade de gerar lucros. O período de participação do CADFund varia entre oito e quinze anos por investimento, findo os quais os investimentos devem ser lucrativos e, portanto, autossustentados. O CADFund é uma subsidiária do CDB, “stockholder” este que é o primeiro na linha de comando. O fundo é, no entanto, também uma ferramenta política e como tal reporta anualmente a um Conselho de Supervisão onde estão representados diferentes ministérios do governo Chinês. O Conselho de Administração é composto por membros do CDB e do CADFund. Actualmente, o fundo possui escritórios de representação em cinco países africanos: África do Sul, Etiópia, Zâmbia, Gana e Quénia. Esses escritórios servem como prestadores de serviços de consultoria para empresas Chinesas que desejam operar em países Africanos. De acordo com o organigrama publicado pelo CADFund, existem três departamentos de investimento: [i] Agricultura, Imobiliário e Indústria; [ii] Investimentos na Indústria de Mineração; [iii] Infraestruturas e Energia. Este esquema resulta de uma reestruturação levada a cabo em Abril de 2012, tendo os departamentos passado assim a ter uma base sectorial em vez de geográfica. A principal forma de participação do CADFund em projectos é através de investimentos de capital. Uma outra é funcionando como uma espécie de “fundo de fundos”, alocando uma parte do seu capital para outros fundos que investem em África. Será o caso do Fundo de Cooperação China-Países de Língua Portuguesa (CPDFund), fundo este que conta com a participação do CDB, Fundo de Desenvolvimento Industrial e Comercial de Macau, e CADFund, que é também responsável pela gestão do fundo. O CADFund investiu desde a sua criação em 88 projetos em 36 países africanos, num valor total de mais de 4 mil milhões de dólares. No entanto, os maiores financiadores para investimento Chinês em África são, de longe, o China Eximbank e o CDB. Estes dois bancos representam 84% do total de empréstimos a governos e empresas estatais Africanos durante o período entre 2000 e 2014. A iniciativa “Faixa e Rota” (BRI) terá possivelmente consequências para o direccionamento de investimentos destes financiadores. Uma recente directiva do China Eximbank exige a prioratização de investimentos relacionados com o BRI. No contexto Africano, o BRI, e apesar da vontade expressa em extender a iniciativa ao resto do continente, tem estado centrado na vizinhança do Corno de África. Do exposto pode-se aferir que actualmente o investimento Chinês em África é feito fundamentalmente com base em princípios de mercado, visando o lucro. Qualquer projecto de investimento tem de oferecer garantias de sustentabilidade. A estratégia está centrada não em obter lucros elevados no imediato, mas na promoção da internacionalização de empresas chinesas.
Hoje Macau China / ÁsiaComércio | Pequim é maior parceiro de África pelo nono ano consecutivo A China foi, no primeiro semestre de 2018, o maior parceiro comercial de África, pelo nono ano consecutivo, em resultado dos vários acordos de cooperação assinados entre Pequim e o continente, revelam dados ontem divulgados [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ntre Janeiro e Junho de 2018, o comércio bilateral aumentou 16 por cento, em termos homólogos, para 84.600 milhões de euros, afirmou o vice-ministro chinês do Comércio, Qian Keming, em conferência de imprensa. Em 2015, Pequim assinou dez acordos de cooperação com o continente, nas áreas económica e comercial, durante o Fórum de Cooperação China África (FOFAC), que se realizou em Joanesburgo. Qian afirmou que os acordos foram todos implementados e alguns “produziram resultados muito bons”. Desde 2015, a média anual do investimento directo da China no continente fixou-se em 2,5 mil milhões de euros, com destaque para novos sectores como manufactura, finanças, turismo e aviação. 30.000 quilómetros de autoestradas, uma capacidade anual portuária de 85 milhões de toneladas e uma capacidade de produção eléctrica de 20.000 megawatts. Emissor e receptor A próxima edição da FOFAC realiza-se em Pequim, entre 3 e 4 de Setembro, e contará com a participação de dezenas de líderes africanos, incluindo os presidentes de Angola e Moçambique, João Lourenço e Filipe Nyusi, respectivamente. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, também participará. Críticos apontam que a maioria do financiamento chinês em África parece servir o crédito à exportação e outros critérios que visam promover os objectivos chineses. “A maior fatia do financiamento não visa permitir um crescimento económico significante para os países receptores”, aponta a unidade de investigação China AidData, sediada nos Estados Unidos, que nota ainda que o financiamento chinês vai para países que votam alinhados com Pequim nas Nações Unidas. A China AidData diz que “isso não parece bem”, mas que uma análise aos EUA e outros países ocidentais demonstra a mesma tendência. Segundo estimativas ocidentais, vivem em África um milhão de chineses, dos quais um quarto em Angola.
Tiago Bonucci Pereira VozesA Rota da Seda e África [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]primeiro aspecto a considerar no que diz respeito à iniciativa “Faixa e Rota” (BRI) é que não é definida como uma política, mas como uma iniciativa. Não é um plano detalhado, mas, em contraste, escrito em termos um tanto flexíveis e sujeito a várias interpretações. Uma definição rigorosa do BRI é um exercício fútil, embora os seus objectivos sejam claros. A iniciativa é global, e, portanto, interessa procurar interpretar as oportunidades que podem surgir da sua implementação. Importa olhar para as implicações do BRI a nível interno. Os termos vagos em que está definida a iniciativa BRI, juntamente com os incentivos oferecidos às diferentes províncias da República Popular da China (RPC), convida os governos provinciais a procurarem projectos potenciais que se enquadrem na BRI. É um incentivo para as províncias chinesas investirem na diversificação da economia, maximizando as suas vantagens naturais e fomentando o desenvolvimento tecnológico e industrial que, tendo em conta o 13º Plano Quinquenal da RPC, deve centrar-se na prossecução do desenvolvimento económico e social, na maximização da qualidade e na promoção de políticas ambientalmente sustentáveis. Isto deve ser visto à luz do funcionamento do sistema político Chinês, fortemente baseado na meritocracia. Os governos provinciais têm uma margem de manobra relativamente ampla no que concerne a definição de políticas, sendo certo, no entanto, que estas têm de estar enquadradas nos objectivos estabelecidos pelo governo central. Governadores provinciais, naturalmente, procuram promoção política, para a qual têm de mostrar resultados práticos. A esperada desaceleração nos últimos anos do crescimento económico Chinês surge durante um processo de transformação economica, industrial e social. A deslocação de indústria Chinesa que se encontra saturada a nível interno para o Sudeste Asiático e para África, e a mudança para um modelo de exportação de produtos de valor acrescentado, são acompanhados pela tentativa de resolver o desequilíbrio interno entre zonas costeiras e o interior Chinês, e o acelerar do processo de internacionalização do seu tecido empresarial. As “duas frentes” do BRI são a “Nova Faixa Económica da Rota da Seda” (componente terrestre do BRI) e a “Nova Rota da Seda Marítima” (componente marítima). A rota marítima será preponderante para as regiões costeiras, mais desenvolvidas, e lar de centros logísticos multimodais e centros financeiros, enquanto a “faixa” estimulará o desenvolvimento do hinterland Chinês, convidando a alocação do excesso de capacidade industrial da RPC, e consequente fluxo ao longo da “faixa e rota”. Na frente internacional, a iniciativa consolida o que tem sido a política externa da China desde há vários anos, estabelecendo laços económicos em todo o mundo sob um rótulo de respeito e benefícios mútuos. A iniciativa BRI convida a participação dos diferentes governos estrangeiros e empresas privadas chinesas e estrangeiras, sob a premissa de amplos benefícios para todos os envolvidos. A participação do sector privado é um aspecto de primordial importância para o sucesso da iniciativa, o que acaba por ser uma das razões pelas quais suscita tantas dúvidas. Assumidamente, o governo Chinês toma a dianteira no que concerne o financiamento de vários projectos em curso. Mas não se trata de uma política de longo prazo, mas sim uma forma de salvaguardar, numa fase inicial, as empresas Chinesas envolvidas contra os riscos associados a grandes projectos em países em vias de desenvolvimento e/ou instáveis quer ao nível de segurança, quer ao nível das suas instituições. A expansão económica é um objectivo, ao mesmo tempo fortalecendo laços políticos e económicos – na verdade, expandindo a influência chinesa – e acompanhada pela internacionalização do Renminbi, uma política apoiada pelo estabelecimento de organizações multilaterais e mecanismos de financiamento, tais como o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (AIIB), o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Fundo da Rota da Seda. Os projectos de infraestruturas de transportes estão no centro da cooperação China-África, como ilustrado em Janeiro de 2015 com a assinatura de um memorando de entendimento entre a China e a União Africana para o estabelecimento de uma rede para conectar 54 países africanos através de projectos de infraestruturas de transportes. Tais projectos podem ser incluídos no BRI, estando especificamente relacionados com a sua componente marítima. Um exemplo é o caminho-de-ferro construido entre a cidade portuária de Mombasa e Nairobi no Quénia, que constitui a primeira fase do Standard Gauge Railway Project (SGR), cuja segunda fase está actualmente em curso e se extenderá para o Uganda, Rwanda, e República Democrática do Congo. Nairobi é o vértice Africano da Nova Rota da Seda Marítima, embora não seja uma cidade portuária, o que em si é indicativo de que a sua inclusão no BRI só faz sentido acompanhado pelo investimento em infraestruturas num continente com sérias debilidades num sector que é fundamental para avalancar o seu desenvolvimento económico. A China encara África como um mercado com enorme potencial. É desde 2009 o seu maior parceiro comercial e empresas Chinesas dos mais variados sectores têm-se instalado um pouco por todo o continente. A capacitação infraestrutural dos países Africanos é por isso encarada de forma estratégica pela RPC, com vista tanto à melhoria das condições ao nível logístico, como também para fomentar o desenvolvimento dos próprios países. Como mercado com grande potencial de crescimento, interessa à China que as projecções se venham a concretizar por forma a garantir o retorno do investimento já efectuado tanto pelo sector público como privado. A China, fruto de décadas de diplomacia e investimento contínuo, e livre de estigmas coloniais, tem já uma presença firme e priveligiada em África. O desenvolvimento do continente só irá premiar todo o esse esforço.
Hoje Macau China / ÁsiaDiplomacia | Xi Jinping diz que continente africano “promete um futuro radioso” [dropcap style=’circle’] O [/dropcap] Presidente chinês, Xi Jinping, afirmou, durante uma visita de Estado ao Senegal para assinar dez acordos de cooperação, que o continente africano “promete um futuro radioso” pelo “grande dinamismo” que demonstra Depois de ter chegado a Dacar, o Presidente chinês assinou com o seu homólogo senegalês, Macky Sall, novos acordos para reforçar os laços económicos, no âmbito da visita de Xi Jinping, a primeira deste nível desde há uma década. “Cada vez que visito África consigo avaliar o grande dinamismo deste continente, que promete um futuro radioso”, comentou o presidente chinês, afirmando-se “plenamente confiante no futuro da cooperação sino-africana”. Os dois dirigentes assinaram dez acordos nos domínios da justiça, da cooperação económica e técnica, infra-estruturas, valorização do capital humano e aviação civil. Os dois chefes de Estado falaram sobre “a cooperação bilateral, as relações sino-africanas e a actualidade internacional”, declarou, na altura, o presidente Macky Sall, comentando que a China “é uma das grandes economias da era moderna”, cujo percurso do povo prova que “o subdesenvolvimento não é uma fatalidade e que a batalha pelo progresso se ganha, em primeiro lugar, pelo espírito combativo”. A China é o segundo parceiro comercial do Senegal, a seguir à França, fornecendo àquele país africano materiais de construção e aparelhos de recepção de som e imagem, ascendendo a 559 milhões de euros, enquanto as exportações do país africano para a China atingiram mais de 115 milhões de euros em 2017, sobretudo em minerais e amendoins. Inúmeras infra-estruturas no Senegal foram construídas pela China, nomeadamente estádios, autoestradas, um hospital, um teatro nacional e um museu das civilizações negras. Trata-se da quarta visita do chefe de Estado da República Popular da China a África e irá passar por vários países, como o Ruanda e a África do Sul – país que organiza a 10.ª Cimeira BRICS – que reúne um grupo de potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) -, e ilhas Maurícias. Num texto assinado por Xi Jinping e publicado na sexta-feira no jornal senegalês Le Soleil, o Presidente chinês recorda que a China é o segundo maior parceiro comercial do Senegal, tendo as trocas comerciais crescido 16 vezes nos últimos dez anos. Xi Jinping assinala que a China é a maior fonte de financiamento e enumera alguns projectos lançados com fundos chineses, como a ponte de Foundiougne e a autoestrada que liga as cidades de Thies e Touba, que vão permitir ao Senegal “aumentar fortemente o crescimento económico” do país. “Para que haja desenvolvimento e prosperidade entre todos, temos de nos juntar e criar uma relação China-África ainda mais forte e de olhos postos no futuro”, apelou o Presidente chinês no texto. A 10.ª Cimeira BRICS terá como tema a “Colaboração para o Crescimento Inclusivo e Prosperidade Partilhada na 4.ª Revolução Industrial” e decorrerá entre os dias 25 e 27 de Julho, em Joanesburgo. Nos últimos anos, a China realizou vários investimentos em África, incluindo uma base naval na costa do Djibuti que custou cerca de 590 milhões de dólares.
Tiago Bonucci Pereira VozesInvestimento Chinês em África [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]este texto traça-se um panorama geral das relações comerciais entre a China e África, bem como da natureza dos investimentos chineses. O assunto é complexo, mas pretende-se aqui identificar as principais variáveis, aspectos problemáticos, “mitos” propagados, bem como perspectivas futuras. As exportações chinesas para África têm se mantido relativamente estáveis nos últimos anos. No entanto, entre 2014 e 2015, as exportações de África para a China caíram 66 por cento em valor, fundamentalmente devido à queda do preço do petróleo, a principal importação chinesa. Recursos naturais constituem o grande bolo das importações chinesas, pelo que as flutuações do mercado encontram correspondência imediata nos valores de exportação para a China que, de 2014 para 2015, regrediram para valores de 2007, tendo-se mantido estáveis de 2015 para 2016. Em termos de investimento directo estrangeiro (IDE), entre 2003 e 2016 regista-se um aumento contínuo de fluxo agregado de IDE da China em África, de 500 milhões de dólares americanos (USD) em 2003, para 39.9 mil milhões de USD em 2016. Neste capítulo, embora os Estados Unidos da América (EUA) continue a liderar as estatísticas, os anteriores valores representam, em termos relativos, respectivamente 2 por cento e 70 por cento do stock de IDE dos EUA em África, o que reflecte também a estagnação de investimento americano no continente no período pós crise económico-financeira do final da década passada. A queda de valor de bens primários nos últimos anos resultou num novo padrão no direccionamento do IDE chinês em África. Países ricos em recursos naturais como Angola e a Nigéria viram acentuadas quedas no IDE chinês, enquanto que países como o Quénia, Etiópia e Tanzânia sairam beneficiados. O IDE chinês incide principalmente nos sectores mineiro, construção e indústria transformadora, sector este que ganhou proeminência nos últimos anos com a tranferência de operações de empresas chinesas para África, fruto do aumento dos custos laborais na China. No que concerne empréstimos da China a governos e empresas estatais de países africanos, é de referir que valores por vezes divulgados na imprensa são manifestamente exagerados. A publicação The Economist Corporate Network, por exemplo, reportava em 2015 que os bancos estatais chineses (China Eximbank, China Development Bank, CDB) tinham-se comprometido com financiamentos num total de cerca de 1 bilião de USD durante a década seguinte, valor exagerado em pelo menos uma ordem de grandeza. Um olhar crítico sobre reportagens como a citada permite desvendar a origem destes exageros. Para que empresas chinesas, e governos africanos, possam requisitar financiamento a bancos chineses, precisam de ter à partida um contrato assinado. Por vezes são anunciados projectos na sequência da assinatura de memorandos de entendimento, que raramente têm resultados prácticos. O padrão identificado anteriormente para o comércio e investimento directo estrangeiro é observado também na análise de financiamento chinês para África: crescimento acentuado até 2013, seguido de ligeiro decréscimo. Entre 2000 e 2015 a China providenciou um total de 95 mil milhões de USD em empréstimos e linhas de crédito para governos e empresas estatais africanas. O maior beneficiário destes empréstimos foi Angola (20 por cento), seguido da Etiópia (14 por cento) e o Quénia e o Sudão (7 por cento). Os empréstimos são dirigidos maioritáriamente (63 por cento) para os sectores de transportes (construção e manutenção de estradas; caminhos-de-ferro), energia (projectos hidroeléctricos; linhas de transmissão de energia; gasodutos; centrais eléctricas a carvão e gás) e telecomunicações. O sector mineiro absorve 10 por cento dos empréstimos, sendo que estes consistem maioritariamente (mais de 80 por cento) em linhas de crédito para a empresa estatal angolana Sonangol. Apenas um terço dos empréstimos são garantidos com bens primários, prática usual para investimentos em países considerados de alto risco, mas que possuem bens que investidores consideram que ajudam a cobrir os riscos associados a investimentos nesses países, nomeadamente o risco de incumprimento. Trata-se de resto de uma prática da qual a própria China usufruiu no início do seu processo de reforma e abertura. Estima-se que linhas de crédito (garantidas com petróleo) providenciadas pelo China Eximbank ao governo angolano tenham financiado a construção de 127 obras públicas. É esta, portanto, a principal razão para a utilização deste modelo de financiamento, e não tanto a tentativa de garantir acesso a recursos naturais. O exemplo de Angola é ilustrativo: a China importa cerca de metade do petróleo produzido por Angola, mas companhias petrolíferas chinesas apenas possuem cerca de 10 por cento da produção de petróleo angolano, mercado que é dominado por empresas ocidentais como a ExxonMobil e a Total. Os termos contratuais associados aos empréstimos dos bancos estatais chineses impõem sempre a preferência pela utilização de bens e serviços da China. A controvérsia associada a esta relação entre financiamento chinês e fornecedores chineses tem origem sobretudo na ideia errada que financiamento chinês em países em vias de desenvolvimento corresponde a ajuda ao desenvolvimento, quando a função de todos os bancos exportação-importação, como o China Eximbank ou o US Eximbank, é precisamente o de providenciar acesso ao crédito para compradores de bens do país. Ou seja, muito do que é dito sobre a abordagem chinesa em matéria de investimentos em África não corresponde à verdade. A abordagem é fundada em princípios comerciais, e busca a expansão comercial chinesa, estando integrada no Going Out Policy. Recursos naturais constituem um aspecto fundamental nesta relação entre a China e África (tal como na relação entre África e os EUA e a União Europeia), constituindo a larga maioria das importações chinesas. Todavia, é importante lembrar que a própria China foi até 1993 um exportador líquido de petróleo, e que na fase inicial do seu processo de reforma celebrou vários acordos de compensação comercial em termos semelhantes aos que propõe a países africanos. A volatilidade do mercado de bens primários pôs a nu fragilidades associadas à dependência excessiva de alguns países em recursos naturais, incluindo dificuldades ao nível de pagamento de dívidas. A situação actual deve, portanto, funcionar como um incentivo para diversificar a economia e promover a boa governança (países como o Quénia e a Etiópia têm feito progressos significativos neste capítulo). No fim de contas, é a melhor forma de conquistar a confiança de investidores. A China é, hoje em dia, um player incontornável em África. Mas existem aqui também desafios importantes para o lado chinês. Como referia em 2007 o antigo Presidente Moçambicano Joaquim Chissano numa conferência em Oxford dedicada ao tema de perspectivas futuras para ajudas ao desenvolvimento “devemos procurar formas de aliar ajuda à atracção de recursos para o sector privado, por forma a apoiar a emergência de uma classe empresarial robusta com uma participação forte nas economias nacionais”. Ajuda externa representa uma fracção minoritária do financiamento chinês, mas a lógica é aplicável ao discurso de “benefício mútuo”. O sucesso em África serviria como exemplo noutras faixas e noutras rotas.
Hoje Macau China / ÁsiaDiplomacia | Washington acusa Pequim de “encorajar dependência” de África O secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, criticou a abordagem utilizada pela China para promover o desenvolvimento em África, afirmando que a postura de Pequim “encoraja a dependência” e prejudica a soberania e a estabilidade do continente [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] chefe da diplomacia dos Estados Unidos falava num evento numa universidade norte-americana sobre as relações EUA-África antes de partir, para o seu primeiro périplo pelo continente africano que vai incluir passagens pela Etiópia, Quénia, Chade, Djibouti e Nigéria. Rex Tillerson afirmou que o investimento chinês pode ter ajudado África a resolver problemas de infraestruturas, mas criou “dívidas acrescidas e poucos, ou talvez, nenhuns empregos”. O secretário de Estado reforçou que a abordagem de Pequim no continente africano também envolve empréstimos predatórios, corrupção e contratos de termos vagos. Em contraste, segundo frisou o representante norte-americano, a abordagem dos Estados Unidos em África quer apostar num espírito de parceria com os países africanos, ao mesmo tempo que promove o Estado de Direito e o desenvolvimento democrático. Na mesma intervenção na George Mason University, na Virginia, Tillerson frisou que os Estados Unido veem um “futuro brilhante” para o continente africano, à medida que a população daquela região cresce, e que a administração liderada pelo Presidente Donald Trump está “empenhada em salvar vidas em África”. Tal como aconteceu no seu primeiro périplo latino-americano, em princípios de Fevereiro, Rex Tillerson terá nesta ronda africana a missão de tentar neutralizar a crescente influência de outras potências, com a China e a Rússia, em África e reivindicar o papel dos Estados Unidos nesta área geográfica. Voltar atrás Reforçar os avanços da luta antiterrorista no continente africano será outros dos temas a marcar a agenda deste périplo. Numa nota enviada às redacções, o Departamento de Estado norte-americano informou que Tillerson anunciou uma verba de cerca de 429 milhões de euros para assistência humanitária das populações da Etiópia, Somália, Sudão do Sul e Nigéria, bem como dos países da região do Lago Chade, onde milhões enfrentam uma situação de insegurança alimentar e desnutrição por causa de conflitos em curso ou de uma seca prolongada. Ainda bem presentes estão as declarações polémicas que Donald Trump fez em Janeiro passado, durante uma reunião com um grupo de senadores para debater as leis migratórias para os Estados Unidos, quando se referiu a várias nações africanas e a outros Estados como “países de merda”. Na altura, a expressão usada por Trump desencadeou fortes reacções. Por exemplo, os embaixadores de 54 países africanos representados junto da ONU exigiram que o Presidente dos Estados Unidos se retratasse e pedisse desculpa.
Hoje Macau InternacionalFim de mandatos do Presidente da República na China inspira países africanos a seguirem o modelo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] decisão do Partido Comunista Chinês (PCC) em pôr fim ao limite de mandatos presidenciais vai “inspirar” países africanos e mostrar as contradições democráticas de regimes frágeis ou consolidados, consideraram à agência Lusa dois especialistas em África. O economista e sociólogo guineense Carlos Lopes, antigo secretário executivo da Comissão Económica para África (CEA) das Nações Unidas (2012/16) e atualmente ligado a projetos económicos na União Africana (UA), e o investigador, escritor, jornalista e comentador angolano Jonuel Gonçalves, atual professor na Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, partilharam, a opinião de que a influência poderá ser perigosa para a democracia. Em pano de fundo está o facto de 12 países africanos continuarem a combater o pluralismo democrático num continente que foi varrido ao longo de década de 1990 pelos ventos de democracia, em que alguns sopros resultaram, mas outros nem por isso. “Os países africanos vão inspirar-se e mostrar as contradições. Torna-se claro que já ninguém pode dar lições éticas a ninguém e que a crise da democracia representativa estalou no núcleo duro dos que a moldaram”, sustentou Carlos Lopes. Por outro lado, para José Gonçalves, a decisão do PC chinês, aprovada no final de fevereiro último, pode ser “perigosa para a democracia” em África, mas também já é vista com críticas e ironias por alguns setores africanos por… “copiar a estratégia” dos Presidentes da Guiné Equatorial, Camarões e Burundi, entre outros. “Isso vai servir de argumento aos que não limitam os mandatos e receio que (o Presidente da RDCongo, Joseph] Kabila também queira usar a decisão chinesa. Porém, há também o inverso, com muitas críticas e ironias em meios africanos ao PC chinês por copiar [Teodoro] Obiang, [Paul] Biya e [Pierre] Nkurunziza”, analisou José Gonçalves. Para Carlos Lopes, analisar a decisão do PC chinês é procurar também as causas da “mudança de flanco” de Pequim. “Desde a guerra do Iraque que tem vindo a acentuar-se uma contestação da legitimidade de certos princípios da ordem internacional. Isso deve-se ao facto de os Estados Unidos terem prescindido de um mandato da ONU e, a partir daí, terem aberto o flanco a que se critique os dois pesos duas medidas”, sustentou. “As possibilidades de guerra assimétrica que inauguraram os jihadistas acentuou o movimento de contestação. As eleições de Trump, os populismos extremos na Europa, com casos terríveis na Polónia e Hungria, com pronunciamentos racistas dos lideres, mostraram a ambiguidade do Ocidente em relação aos seus ditos princípios. Tudo isso deu força a que uma figura como Putin desenvolva um carisma internacional e agora a China mude de flanco”, defendeu. A onda de democracia que varreu nas últimas décadas o continente africano de norte a sul não soprou, porém, em 12 Estados, cuja Constituição não contempla a limitação de mandatos ou em que aprovaram ou vão referendar em breve uma decisão nesse sentido. Além dos casos da Guiné Equatorial, Camarões, Burundi e RDCongo, estão nessa lista a Argélia (Abdelaziz Bouteflika), Camarões (Paul Biya), Congo (Denis Sassou Nguesso), Gabão (Ali Bongo Ondimba), Quénia (Uhuru Kenyatta), Ruanda (Paul Kagamé), Togo (Faure Gnassingbé), Uganda (Yoweri Museveni) e Zâmbia (Edgar Lungu). Com a, pelos vistos, crescente ambição pela perpetuação no poder, e face à também crescente influência da China em África, onde o investimento é muito elevado, aos 12 Estados poderão juntar-se outros, onde a democracia é ainda fragilizada e débil, em que o “perigo de contaminação” se torna evidentes, mesmo tendo em conta que a democracia não se esgota em eleições, pelo que a solução pode passar pela conhecida tese de “democracia musculada”. Limitação de mandatos em África na ordem do dia e o “perigo” do exemplo chinês Pelo menos 12 países africanos estão envolvidos em processos em que pretendem reverter a ordem constitucional e pôr cobro à limitação de mandatos, tal como decidiu recentemente o Partido Comunista Chinês (PCC). Argélia, Camarões, Guiné Equatorial, Ruanda, Uganda, Burundi, Gabão, Congo, Togo, Zâmbia, Quénia e RDCongo, por diferentes razões, têm agora a “porta aberta” para se “inspirarem” no exemplo do PC chinês para se perpetuarem no poder. A dúvida paira sobre que caminho poderão seguir outros dos restantes 43 Estados africanos se a democracia, tal como está implantada, pode ser revertida. Entre os 12 países em causa, na Argélia não há limitação de mandatos e Bouteflika, 81 anos feitos a 02 deste mês, apesar de raramente aparecer em público, já deu indicações de que, em 2019, quer renovar as vitórias que tem colecionado desde 1999 (2004, 2009 e 2014), ano em que chegou ao poder depois de 26 anos como chefe da diplomacia argelina. O mesmo se passa nos Camarões, onde Byia, aos 84 anos, e há 35 no poder, vai recandidatar-se nas eleições deste ano. Idêntica situação é a da Guiné Equatorial, com Teodoro Obiang Nguema, no poder desde 1979, e no Ruanda, com Paul Kagamé, Presidente desde 2000. A situação já se “resolveu” no Uganda, onde Yoweri Museveni, Presidente há 21 anos, fez aprovar a lei que pôs cobro à limitação de dois mandatos, pelo que pode concorrer novamente na votação em 2021. No Burundi, há um referendo em maio próximo para se proceder a uma alteração constitucional, de forma a permitir a Nkurunziza candidatar-se a um terceiro mandato e, no limite, liderar o país até 2034. A polémica em torno do fim da limitação dos dois mandatos presidenciais também existe no Gabão, em que Ali Bingo Ondimba, filho de Omar Bongo, está no poder desde 2005 e venceu a votação de dezembro de 2017 no meio de grande contestação, pois já entrou no terceiro mandato. No Congo, Denis Sassou Nguesso, que passou 32 anos, intercalados (1979/92 e desde 1999 no poder,), foi reeleito Presidente em março de 2016, prolongando um regime que lidera com “mão de ferro”. Também no Togo, onde a instabilidade política e social começa a subir de tom, Faure Gnassingbé sucedeu ao pai, Gnassingbé Eyadéma, em 2005, e desde então, venceu as eleições de 2010 e 2015, estando já em discussão pública a alteração à Constituição que lhe permitirá concorrer a um terceiro mandato em 2020. A cumprir o segundo mandato, também Edgar Lungu, na Zâmbia, está a pensar em mudar a Carta Magna para poder apresentar-se novamente nas presidenciais de 2021, o mesmo sucedendo no Quénia, onde Uhuru Kenyatta, apesar do boicote da oposição, venceu as presidenciais de novembro de 2017, depois de ganhar as de 2013, e já iniciou o debate sobre a devida alteração constitucional para a votação em 2022. Complexa está ainda a situação na República Democrática do Congo (RDC), onde Joseph Kabila, cujo segundo e último mandato constitucional terminou em dezembro de 2016, conseguiu um acordo polémico com a oposição e prolongou a Presidência por mais um ano. No entanto, a data das presidenciais de 2017 nunca chegou a ser marcada, tendo sido recentemente fixada para 23 de dezembro deste ano. No poder desde 2001, sucedeu ao pai, Laurent-Desiré Kabila, assassinado nesse ano por um guarda-costas. Angola deixou a “lista” em agosto de 2017, com o fim dos 38 anos de regime de José Eduardo dos Santos, o mesmo sucedendo, mais recentemente, no Zimbabué, onde Robert Mugabe foi afastado compulsivamente pelos militares em novembro último.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDuas fábulas sobre lembrar e esquecer 03/02/2018 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calor vara o corpo, goteja pelas costas. Bebo uma caneca em dois tragos e peço outra. Na mesa em frente à minha uma ruiva magra como um galgo sofre a fustigação de uma negra de grande envergadura, que lhe quer mostrar como fala bem o inglês e lhe despeja à fraca figura parágrafos sobre parágrafos, sem tomar o fôlego. Para a outra aquele ímpeto é um verdadeiro apedrejamento e equilibra-se como pode, cilindrada. Conheceram-se pela Net e é a primeira vez que se encontram. A ruiva chegou de Joanesburgo, veio visitar a amiga. A moçambicana decidiu-se a tomar a ruiva como cunhada e martela-a com o extenso rol das qualidades dos irmãos. Numa pressão que a paralisa. Ao fim de quarenta minutos a negra, faz-lhe um reparo: Mas estamos aqui há uma hora e ainda não sei nada de ti. A ruiva balbucia qualquer coisa, timidamente. Antes de acabar a terceira frase a outra atalha: Deixa lá, o melhor é irmos para casa, temos de preparar o teu quarto. Mas primeiro deixa-me fazer uma oração pela nossa amizade. Uma oração? – pergunta a pobre, desconcertada. Uma oração. Nós somos muito religiosos. Não te importas? Não… – gagueja a ruiva. Óptimo… Mete as mãos em prece e abre a torneira: Oh Lord, agradeço-te por nos teres trazido esta irmã, por nos brindares com a sua amizade como o maná no deserto, e que, oh Lord, ela encontre no nosso lar o seu refúgio e a inspiração para superar as provações que a vida lhe dará, mas, Oh Lord, sê suave e benevolente com ela, e com o meu irmão Jacques que alimenta muitas esperanças nesta amizade, e Oh Lord, não tragas tormentas onde os caminhos são de flores para colher… Oh Lord faz com que a Jessica nunca mais se esqueça de nós… A oração prossegue infindável, por dez, quinze minutos. A Jessica está um feixe de vergonha, quer já esquecer os «oh Lord» que a amiga percute, a triste ideia de ter vindo. Quando a amiga acaba, salta da cadeira no mesmo lance e arrasta-a. Só lhe falta pôr a coleira. Uma das empregadas está siderada. Uma miúda dos seus vinte anos, com tudo intacto. Entreolhamo-nos, ela ri-se: Que bom, ainda haver pessoas assim. Bom, teríamos de saber mais qualquer coisinha, pode ser muito boa na oração e ser uma grande, grande, pecadora…- minimizo. Não… brinca, vê-se que é uma cristã… E isso tem uma grande importância? Para mim, sim – diz. Então qual é a sua igreja… A Igreja Universal – responde-me. Ah, uma vez assisti a um dos vossos cultos… Onde? No Cinema África, está a ver ao tempo… Então está cá há muito tempo. Eu, vivo cá há treze anos… Não me diga que agora vou ver sempre esta cara-linda… A cara-linda é comigo? – insisto, surpreso. Claro. Sai-me de jacto: Mas você julga que não sei o que é uma ruína? Retorque: Cada idade tem a sua beleza… Já sabe tudo sobre o comércio de Deus. Não me hei-de esquecer de voltar. 05/02/2018 Um fox terrier com três patas. O Tripé. Mordeu-me duas vezes na bochecha esquerda. A de baixo, entenda-se. Lembro-me porque era o cão do Spencer, um cabo-verdiano que era um diabrete com a bola. O talhante Dias vaticinou, Este rapaz está destinado ao Benfica. Aos catorze redobrou-se a aliança: o Spencer entrou no Benfica. Foi uma festa no bairro e abriu-se o champanhe. Lembro-me que o pai do Adriano era embarcadiço e a mãe – uma mulata com dengue – começou a ter uns casos. Constava. Tudo se abafava, à mãe da futura estrela do Benfica perdoava-se tudo. Lembro-me da primeira vez que nos zangámos. O Victor Hugo, my best friend, desentendeu-se com ele e o Spencer deu-lhe um empurrão que o fez cair desamparado, partindo o braço. Lembro-me que no instante em que o reencontrámos, no bar do cinema, há sete anos que não falávamos. O Victor Hugo cochilava ao meu lado com os diálogos rebarbativos do Ingmar Bergman. Ao intervalo quis dar de frosque. Fomos ao bar esgrimir argumentos. Foi aí que o encontrámos. Jogava no Braga, no Benfica fora barrado pelo Chalana e mudara-se para o norte. Tivera duas épocas de vulto, mas agora estava lesionado. Tornou-se evidente que teria de rever o filme noutra ocasião. Arrastou-nos para uma discoteca, em frente à Lisnave. Aí passámos a pente fino as recordações comuns, decilitro a decilitro. Com um senão que foi espalhando as metástases: as pequenas incidências, os ângulos de vista sobre os episódios vividos em comum dividiam-nos em tudo. Enfim, tudo quanto marcara o Spencer, não nos causara mossa, impressão, não recordávamos, e vice-versa. Vivêramos duas vidas paralelas e instalava-se o nevoeiro. Ele, pelo seu lado, não se lembrava do “acidente” em que partira o braço ao Victor Hugo, «não me lembro, juro…», e emborcava o seu quinto whisky. Tínhamo-nos afastado tanto? E estávamos a caminho da segunda garrafa de whisky. O Adriano, mandou vir outra a garrafa, que ele pagaria, pois estávamos tesos. Eram os 500 contos que ele se gabara de ganhar contra os 10 do Victor Hugo na Lisnave salvaguardavam-nos de quaisquer hesitações. Só que ele insistiu em continuar a desfilar as suas lembranças e nós a disfarçarmos as lacunas com um olho na miúda da pista. De repente levantou-se um burburinho na porta e o Spencer julga reconhecer a voz de um patrício e foi espreitar a confusão. Nós, aliviados, comentávamos o desacerto do reencontro. Bebemos mais meia garrafa, antes de começarmos a suspeitar que ele não voltava. Mais tesos que o Tripé, e com oito contos de despesas. Um ano depois, a sair de casa, reencontro-o a estacionar o Mustang à entrada do prédio da mãe. Dou-lhe um abraço, chamo-lhe sacaninha e pico-o pela «banhada». Ele ouve a queixa, mede a situação, saboreia os pormenores e sentencia, secamente, Oh, pá, não me lembro de nada, juro!
Jorge Rodrigues Simão PerspectivasA emergência da China (II) “New China’s was not a capitalist economy on the basis of private ownership, as in European and American countries, nor was it a socialist economy on the basis of public ownership, as in the Soviet Union and Eastern Bloc countries. It was something altogether novel: a new-democratic economy, with both a capitalist sector and a socialist element. The regime of the new democracy was a system of democratic centralism designed by the National People’s Congress. It was totally different from the parliamentary system of the former democracy, and belonged to the classification of the representatives’ conference of the socialist Soviet Union. However, it was also completely different from the Soviet system, because it eradicated class, while the Chinese system was based on an alliance of all revolutionary classes.” “Characteristics of the Common Programme Draft by the Chinese People’s Political Consultative Conference, September 22, 1949” – Zhou Enlai [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, apesar do seu motivado discurso em Bandung, e das suas negociações com Kissinger, não era visto pelo Ocidente como um diplomata. A sua visita a África, em 1963, deixou-o muito desiludido quando os africanos rejeitaram o seu pensamento sobre a revolução, pois era o última ideia que os recém independentes países africanos procuravam. Tais países desejavam estabilidade. A China talvez tenha cometido erros com a África, assim como esta cometeu muitos erros consigo mesma, dado que o continente ficou dividido em cinquenta e cinco países e com duas mil subdivisões históricas, culturais e linguísticas. A China aprendeu como ser um estado o mais rápido possível, especialmente com os poderes coloniais que foram enfraquecidos pela II Guerra Mundial e que começaram a sair com mais avareza sem preparar as estruturas governativas e a administração pública dos estados que rapidamente se tornaram independentes. A Nigéria teve a sua sangrenta guerra civil no final da década de 1960. O Congo desmoronou-se desde o início da década de 1960. Nos países onde as potências coloniais se recusaram a sair, e ressalve-se a situação de Portugal que se recusou a descolonizar Angola, guerras sangrentas de libertação entraram em erupção, traduzidos em conflitos originados por movimentos competitivos de libertação. A China, em Angola, apoiou o movimento errado, ou seja, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) no poder desde a independência, em 1975, foi apoiado pelos soviéticos e cubanos. A China apoiou no Zimbábue a luta armada de Robert Mugabe contra o governo da minoria branca conservadora que, em 1965, declarou unilateralmente a independência como Rodésia, e liderado por Ian Smith. Robert Mugabe tornou-se primeiro-ministro, em 1980, ao ganhar as primeiras eleições democráticas. Em Abril desse ano, é declarada a independência, passando o país ter o nome que actualmente ostenta, e a partir de 1982 Mugabe começa a liderar o país como ditador, até 21 de novembro de 2017, quando renuncia a favor de Emmerson Mnangagwa que tomou posse como presidente, a 24 de Novembro de 2017. O apoio da China a Robert Mugabe significou não só amizade duradoura, como o Zimbábue sempre manteve com a China desde a independência em 1980, um rápido e ardiloso trabalho diplomático para reparar as relações com os países que não tiveram a ajuda chinesa, como foi o caso de Angola. Ainda que a China tenha começado a fornecer assistência ao desenvolvimento de África pouco depois de Bandung, é facto que iniciou uma nova fase dessa ajuda de forma mais aguerrida, muito ligada a futuras parcerias comerciais e exploração de recursos, após a era da libertação da maioria negra na década de 1990, quando a África do Sul finalmente alcançou o domínio da maioria negra sob a liderança de Nelson Mandela (prémio Nobel da Paz de 1993) e líder do Congresso Nacional Africano (CNA na sigla inglesa), fundado em 1940. Nelson Mandela foi presidente do país de 1994 a 1999. As parcerias comerciais e a exploração de recursos começaram em boa verdade, dez anos após a enunciação formal de Deng Xiaoping sobre as “quatro modernizações”, em 1978, de forma a que sua máquina industrial funcionasse e pudesse fabricar mercadorias para o comércio, que exigiam recursos minerais e petrolíferos em grande escala e que a África poderia fornecer. A remoção das tensões políticas com os Estados Unidos, juntamente com a plenitude de todas as liberdades diplomáticas, foram igualmente importantes para o sentido chinês de globalização que, desde esse período, começou a alarmar o mundo ocidental, e com o assento no Conselho de Segurança da ONU, percebeu o seu significado, o que aplacou todos os seus presentimentos sobre ser o “império do meio”, apesar do longo período de marginalização. Apesar da caducidade da “Teoria dos Três Mundos”, a aspiração a um papel de liderança nunca desapareceu completamente da China, que entendeu que devia ser realizado pela diplomacia económica e não pela diplomacia política. Mesmo assim, a enunciação da teoria, conjuntamente com o reconhecimento diplomático da China pelos Estados Unidos, que conduziram a ter o referido assento no Conselho de Segurança da ONU, e ao sucesso das “Quatro Modernizações”, estabeleceu uma era de prosperidade e uma forma peculiar de globalização chinesa, pois o seu poder começou a estender-se a todos os cantos do planeta. O papel da África foi crucial, embora seja de enfatizar que o alarme ocidental sobre a compra chinesa de tanta influência económica no continente nasce de análises muito fracas. Em primeiro lugar, a influência foi literalmente adquirida. A China não forçou a colonização da África, como a Europa o tinha feito. A China não apoiou o racismo por causa da expropriação mineral, como os Estados Unidos o fizeram e acima de tudo, a África não é um continente negro tolo e inocente que não podia fazer escolhas por si e em seu benefício. A China sempre teve que negociar as portas de entrada para a África e apareceu com um novo modelo económico, que poderia ser chamado de “modelo de Xangai”, em oposição a um “modelo de Washington” baseado nos imperativos políticos e na condicionalidade económica do Ocidente. O “modelo de Xangai”, era a condição leve, com um generoso carregamento de liquidez, projectos de desenvolvimento e fundos, que precederam a exploração de recursos minerais e petrolíferos. Se os africanos muitas vezes conduziram negócios difíceis, apesar dos medos ocidentais de inocência e da ingenuidade africana, os chineses geralmente, configuravam a África de forma condescendente e superior, e que foi especialmente real para as empresas privadas chinesas que poderiam ser terrivelmente ingénuas e racistas nas suas ideias acerca da forma de operar em um contexto africano. A difícil gestão chinesa das minas da Zâmbia, por exemplo, levou a muitas mortes de trabalhadores locais sem condições adequadas de saúde e segurança, no quase inexistente sistema nacional de saúde do país. Tal situação alargou-se a um sistema de valores que sustentava o modelo oficial chinês. A experiência e os ganhos de trabalhar na África ajudaram os chineses nos seus planos para o futuro. A África trouxe um novo amanhecer para a China. O Ocidente sempre desfilou, ao lado da sua generosidade, às vezes como condição para receber benefícios, valores de democracia, pluralidade e transparência. A generosidade chinesa foi retratada como suborno e sem valor. O que provavelmente está no trabalho realizado é a ética confucionista de “guanxi”, que descreve a dinâmica básica de redes de contactos e influências pessoais, e que constitui um conceito central da sociedade chinesa. No entanto, é uma reciprocidade em uma cadeia de hierarquias verticais. Enquanto os valores ocidentais na sua forma mais pura são horizontais, como em uma democracia, os valores confucionistas não o são. O respeito e a obediência fluem, desde a pessoa ao imperador. Todavia, a provisão e cuidados devem fluir para baixo, caso contrário, o imperador perderia o mandato do Céu. Além disso, a personagem superior não deve apenas causar um fluxo de valor, deve fazê-lo primeiro e, se o destinatário abaixo for particularmente fraco (ou subdesenvolvido), o fluxo para baixo deve ser generoso, o que revela a visão chinesa do destinatário africano, que é (talvez inconscientemente) de uma entidade mais fraca e comprovadamente menos desenvolvido. O provimento chinês de acordos com adoçantes abundantes, pode ser visto como parte da responsabilidade chinesa em um arranjo hierárquico, mesmo quando toda a retórica é sobre parcerias iguais. Tal, como na “Teoria dos Três Mundos”, o ethos subjacente era uma liderança chinesa e, implicitamente, de superioridade. Tal senso de liderança era, em um sentido mais verdadeiro, uma expressão do realismo chinês como uma abordagem das relações internacionais. A China considerou que era impotente e foi um grande choque psicológico, após milénios de poderio. Actualmente considera-se livre para voltar a ser novamente uma super potência, mas por causa da era de humilhação, teve um genuíno e confucionista senso de solidariedade com os outros que emergiam da mesma condição. Era um idealismo empático com realismo, o mesmo sentimento de afastamento cultural que levou a China a um perigoso estádio um século antes. É de considerar que desta vez, com grande parte dos recursos do mundo em seu poder, está certa de que ganhará em parte a batalha da globalização. O caso chinês sugere que a apreciação cultural se torna importante para a compreensão da política externa, de forma que o “stress” da escola inglesa sobre a história e o “stress” da escola de Copenhaga sobre as formações discursivas, devemos acrescentar o “stress” nas formações culturais. No que concerne à China, o “stress” seria confucionista, mas também no sentido preconizado pela escola inglesa, totalmente histórico, dada a memória íntima e a recordação do século de humilhação pelos poderes imperiais. O comportamento dos Estados Unidos após a II Guerra Mundial em relação à China não teria sido mais que um eco contínuo dessa situação. O avanço nas relações com os Estados Unidos, ocasionado em grande parte pelos esforços de Kissinger e Zhou, foi intuitivo e, na medida em que um actor intuitivo pode ser racional, lideraram sem a panóplia de ambos os lados do aparelho de formulação governamental de política externa, com toda a sua organização burocrática, e sem as respostas de repertório. Simplesmente não havia um repertório nesta situação. Há um outro exemplo em África, no qual o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, entrou em negociações com Frederik Klerk (presidente da África do Sul de 1989-1994 e vice-presidente de 1994 a 1996, sendo no último período presidente, Nelson Mandela) acerca do racismo sul-africano em 1989, sem qualquer preparação racional, resumos de políticas ou biográficos. O presidente Kaunda, desconsiderou o seu Ministério dos Negócios Estrangeiros e o seu pessoal da Casa do Civil, entendendo que era uma racionalidade formada inteiramente pela intuição e fé na força moral da igualdade e no desejo pela paz. A China, no caso da África, estabeleceu um longo namoro, e está a receber o retorno à medida que os acordos de longo prazo de exploração de recursos naturais se concretizam. O sentimento nasceu de uma empatia chinesa pela humilhação de África nas mãos dos poderes coloniais e Zhou Enlai, em 1956, criou como marco da política chinesa, o princípio da não-intervenção nos assuntos internos dos outros países. Esta foi simultaneamente uma observação do princípio fundamental do vestfalianismo, e também um compromisso com a África, de que a China não seria como as grandes potências que foram ao continente nos séculos XVIII e XIX. A reforma da Organização da Unidade Africana (OUA), em 2000, viu a adopção do princípio da não-indiferença. É um princípio que tem sido irregular e selectivo, talvez simplesmente convenientemente observado, diante da turbulência e das matanças que continuam em certas partes da África até ao presente. Os chineses, associados com uma posição do século XX, nada têm a dizer à formal posição africana do século XXI. Talvez, e uma vez mais, olhando para trás se poderia negar à China a possibilidade de olhar o futuro que lhe pertence. Todavia, deve haver a consideração sobre a formulação da política externa chinesa que está a ser sujeita ao impulso e à tracção, nos termos que Graham Tillett Allison, Jr. descreve no seu livro “Reaking Foreign Policy: The Organizational Connection”, de diferentes organizações na ordem ideológica, económica e política chinesa, em que todos procuram adquirir posições em matéria de relações externas. Existem as estruturas organizadas do governo, como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Gabinete do Primeiro-ministro do Conselho do Estado. Podemos dizer que as estruturas de pesquisa, particularmente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, têm sido até agora menos fortes, pois há os órgãos de política externa do Exército de Libertação do Povo Chinês, e acima os comités de política externa do Partido Comunista Chinês. As instituições financeiras chinesas, cada vez mais, têm uma grande palavra a dizer em toda a conjuntura. Todavia, os órgãos do partido são os mais importantes em matéria de tomada de decisões e ninguém sabe como funcionam. Na ausência de uma figura como Zhou Enlai, que foi correctamente e propositadamente impenetrável, pela sua sobrevivência política, poucos líderes existem com carácter ou personalidade, que se possa dizer terem carregado um poderoso ethos pessoal para o domínio global, como foram os casos de Zhou Enlai e Kissinger.
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasDivagar [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] vagar é o meu maior sonho, o mais difícil. Quanto a estes últimos, tal gosto deve-se também à variedade das formas, entretanto tão uniformizadas. Alguns dos meus preferidos: o Citroën Boca-de-Sapo e a carrinha Citroën HY, que, em Lisboa, deu peixarias e bibliotecas, a carrinha Volkswagen Pão-de-Forma, o Morris Mini e o Fiat 600 originais, o BMW Isetta, com uma só porta, na dianteira, onde se situava o volante, o “espacial” AMC Pacer X, o Simca 1100 (que era o do meu pai, na minha infância) e tantos, tantos outros, mais antigos, que, em Portugal, podem ser vistos, por exemplo, no Museu do Automóvel Antigo, em Caxias, ou no Museu do Caramulo. Esse vagar, que me é tão invulgar e tão necessário, é parte da razão porque gosto tanto de museus, de bibliotecas, de algumas livrarias. Aí, encontro-me com a lentidão e o silêncio (o silêncio!, o adorado silêncio). Algumas livrarias (poderia citar muitas outras): a Strand, em Nova Iorque, mastodôntica e completíssima; a Anticyclone des Açores, em Bruxelas, dedicada às viagens; a Librairie Ancienne, do simpático Patrick Laurencier, na bonita cidade de Bordéus; e acima de todas, exclusivamente dedicada aos versos, a saudosa Poesia Incompleta, livraria que de Lisboa se transferiu para o Rio de Janeiro e aí morreu, às mãos de duas sociedades que, claramente, preferem telenovelas. Ocorre-me agora um outro estabelecimento, de que fui visitante habitual na adolescência e que permanece activo, no qual esses predicados do sossego e do silêncio se aliam a uma grande beleza, por via das peças expostas. Refiro-me à loja filatélica A. Molder, fundada por um emigrante húngaro, em 1940, e situada num 3º andar da Baixa lisboeta. Mesmo para quem não colecciona selos, é bem merecedora de uma demorada visita. Estas contam-se entre as poucas lojas que não me incomodam – não gosto de fazer compras, em geral, e detesto comprar roupas e sapatos, em particular, tanto mais que o meu tamanho faz com que os esforços de prova resultem, o mais das vezes, infrutíferos. Assim, ao longo dos anos, venho, sempre que possível, deixando tais encargos em mãos alheias, felizmente sem que com isso me ache contrariado com o que visto. Outra excepção a essa aversão às compras é, porém, a comida, pelo muito que gosto de cozinhar e, sobretudo, de comer. Gosto de bons supermercados, desde que não estejam muito cheios de lojas gourmet, desde que não sejam pretensiosas e sobreavaliadas, e, sobretudo, de mercados, com destaque para aqueles em que o peixe fresco, em diversidade e qualidade, prevalece, a par de frutas, legumes, flores, etc. Já referi aqui o excelso Mercado dos Lavradores, no Funchal. Soberbos são, claro está, o Mercat de La Boqueria, nas Ramblas, em Barcelona, e o Mercado de San Miguel, em Madrid, onde também se compra e come. Mas a minha preferência talvez vá para mercados mais pequenos, como o de Ayamonte ou o de Olhão, terras piscatórias em que se sabe do valor de tantos peixes desconhecidos ou desprezados nas grandes cidades, e que se vão mantendo mais ou menos incólumes à avidez predadora de hotéis e restaurantes. Aí se compra uma série de peixes saborosos (folhas ou cartas, agulha, ruivo, aranha, polvos pequenos, etc) a preços entre 1 e 2€/quilo. Ou seja, é possível até a um pedinte fazer as refeições que mais me agradam. De todos os peixes, os que mais me seduzem são, no entanto, os de rio: fataça, truta, sável, a dispendiosa e trabalhosa lampreia, enguias (ou irós ou eirós). Nas margens do Tejo, em várias localidades, é imperioso comê-los: em Vila Franca de Xira, na Lançada, em Tancos (bem perto do belo Castelo de Almourol, fortificação medieva implantada numa ilhota no meio do rio) ou em Vila Nova da Barquinha, por exemplo. Mas não se pense que sou completamente imune aos encantos da carne (aliás diria que, felizmente, não sou completamente coisa alguma). Acontece, apenas, que as peças de carne mais correntes – bifes, febras, costeletas, etc – me são mais ou menos indiferentes. O mesmo não se poderá, porém, dizer de fígados, pernis, cabidelas, ossobucos (ou jarretes), mãos de vaca e outras coisas que tais. A propósito: Até há meia dúzia de anos, achava a mão de vaca repugnante, meramente por questões visuais, sem que – cretino! – a tivesse, sequer, provado. Acontece que, estava eu em Cabo Verde, fui convidado para jantar em casa de D., o porteiro do prédio em que vivia. D., muito pobre, habitava num cubículo, tendo por únicos “equipamentos” um colchão, o tapete sobre o qual, sendo muçulmano, fazia as suas orações e um “campingaz”. Sobre este, cozinhara, com dedicação e habilidade, uma tachada de mão de vaca com grão, que, pelos vistos, é prato que também se come na África ocidental, de onde provinha (do Gana?, da Gâmbia?, não me recordo). Pensei com os meus botões: “Tens de te sacrificar, não te podes negar a comer o que, talvez com sacrifício, te preparou”. E assim fiz. Só que a repulsa limitou-se à primeira garfada. Imediatamente me apercebi de que o prato era delicioso e amaldiçoei-me por nunca antes o ter provado. Desde então, e até porque Lisboa é pródiga em tascas e restaurantes que o confeccionam eximiamente e existem, também, muito aceitáveis versões enlatadas, não se passa um mês em que não coma este prato. Mas como gosto mesmo de comer é em formato de tapas, com grande variedade de sabores, em pequenas quantidades, sobre a mesa. Hoje, eu, que outrora comia como um leão, só desse modo consigo ultrapassar uma medida mais ou menos frugal. Para isto, a cidade mais propícia que conheço é Bilbau, onde terei chegado a provar 15 iguarias numa só refeição.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteEntrevista | Eugénio Novikoff Sales, artista plástico Um desajustado do mundo. Nascido e vivido entre culturas, foi definido como o pai de um novo estilo de pintura, o da lusofonia. Eugénio Novikoff Sales mostra em cada quadro “a mancha negra africana”, com paciência da China e sem o apoio da terra que o viu nascer. Os seus quadros estão expostos no Albergue SCM até 3 de Setembro [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ilho de pai português e mãe russa, nasceu em Macau e cresceu em Moçambique. Como é que se juntam estes mundos tão diferentes? Só recentemente é que consegui, digamos, integrar-me comigo. Senti-me sempre diferente das outras pessoas. Por exemplo, quando estive no liceu em Macau, não me dava com os colegas chineses que estavam a aprender português. Não me identificava. Por outro lado, também não me identificava com os portugueses e não entendia as conversas. Não por causa da língua, mas pelo que diziam: falavam muito de compras e coisas novas, o que não me interessava. Tinha chegado de Portugal, onde também não me dei bem. Antes, tinha estado em África. Foi onde me senti melhor. Apesar de não me relacionar com a população portuguesa, acabei por ter outro tipo de amigos. Eram das tribos que havia em Nampula. Lembro-me que havia lá um jardim em que se fazia uma feira todos os domingos. Vinham pessoas das comunidades pequenas ali à volta e traziam os filhos. Traziam estátuas de pau-preto também, e vinham vestidas com as capulanas e aquelas cores todas. Tudo isso me marcou e era com estas crianças que brincava. Agora já percebi que o tempo dilui as coisas e já lido melhor com o desajustamento e mesmo comigo. É considerado o pai de um novo estilo artístico, o da lusofonia. Como é que aconteceu? Sempre gostei de pintar e de fazer desenhos. Quando andava no liceu de Macau já gostava de rabiscar nas paredes. Tive um professor que apareceu na sala uma vez para me fazer uma pergunta. Tinha visto uns desenhos e perguntou-me se eram meus. Disse que sim, e perguntou-me se tinha mais quadros. Respondi também que sim. Foi vê-los. Passados uns dias disseram-me que o antigo Museu Luís de Camões iria ter uma exposição de pintura e fui convidado a participar. Foi quando tive a minha primeira exposição oficial. Mas desde essa altura que quem via os meus quadros não os conseguia integrar em nenhum estilo específico. Aquela exposição acabou por ir para Hong Kong. As pessoas identificavam com facilidade os motivos africanos nas minhas pinturas, mas não sabiam dar-lhes um nome. Não era cubismo nem expressionismo, nem nada. A definição aconteceu quando tive a minha exposição na residência do cônsul e me foi dado o “título” de pai da arte da lusofonia na China. Mas se me perguntar o que é, também não sei dizer ao certo. Há, por exemplo, dois países com os quais não tenho ligação. São o Brasil e Timor Leste, e que também fazem parte do mundo lusófono. Em que é que África se expressa na sua pintura? Em Moçambique marcaram-me muito as cores e os movimentos. Mas foi essencialmente a cor preta. É uma cor difícil de se manejar. Mas penso que é aqui que entra o que está dentro de nós e, neste caso, tem sempre uma ligação com a selva. E como é que entra Macau nesta lusofonia? Através do papel de arroz que agora é um dos meios que utiliza? Quando há exposições em Macau, há jantares no final em que os anfitriões colocam à disposição dos pintores folhas de papel de arroz e tinta-da-china. A primeira vez que peguei neste papel não achei fácil de manejar com aquela tinta porque espalha-se com muita facilidade. Mas lá ia tentando, resolvi fazer uns estudos neste material com acrílico e achei que funcionava bem. Desta forma podia também usar cores, as minhas cores mais puras. Nos meus desenhos não há remendos. Acho ainda que a China também se expressa no meu trabalho através da paciência que tenho de ter para fazer os meus traços. É como se fossem fios de uma renda, calculada e espontânea. Esta é a minha parte chinesa. Sei que gosta da arte feita no Oriente, mas que também considera que lhe falta qualquer coisa. Os artistas chineses têm uma técnica muito boa, mas falta-lhes, por vezes, cor. Não estudei arte, não estudei a técnica, mas também pinto e sou reconhecido. Sou reconhecido pela China, por exemplo. O que lhes falta é aquilo a que chamo de “mancha negra de África”. É um termo meu para descrever aquilo que não sei de outra forma. Penso que pintores internacionais como o Picasso ou o Matisse tinham esta “mancha negra”, estava dentro deles. É uma coisa que não se aprende e não é relacionada com a cor. A “mancha negra” é a alma de uma pintura. Li numa entrevista que deu que, na sua opinião, devia existir um sistema em Macau para proteger os artistas. O que queria dizer? Penso que, em Macau, a escolha dos artistas que devem ser projectados e reconhecidos está a ser manipulada dentro dos círculos em que se inserem. Deveria existir um departamento, sem interesses, para organizar uma base de dados de todos os artistas locais e do seu género de pintura. Aqui não há uma forma de identificar os artistas. Aqui nenhum artista é conhecido pelo seu estilo, enquanto no estrangeiro é o estilo que adopta ou que cria que marca um artista. Macau deveria ser a plataforma da lusofonia, é uma coisa nova e poderia influenciar a China, que está cada vez mais aberta ao Ocidente e às suas influências. Por outro lado, as associações têm uma espécie de monopólio dos artistas. Para se conseguir fazer alguma coisa neste sector temos de fazer parte de uma associação. São as associações que promovem os seus artistas e acaba por se tratar sempre de um ciclo fechado. Deveria ser criado um departamento para dirigir uma secção de apoio aos pintores locais, e Carlos Marreiros é um homem carismático, capaz de dirigir uma tarefa deste tipo. O que acha da criação artística do território? Em 1980, António Conceição Júnior organizou uma exposição dos artistas de Macau. Mais tarde apareceu o Círculo dos Amigos da Cultura com o Carlos Marreiros. Mas, depois disso, vários artistas saíram desse círculo e começaram a criar as suas próprias associações. Foi o descontrolo. As associações queriam artistas que pertenciam a outras. Estavam também presentes criadores que tinham vindo do Continente e que queriam fazer a sua própria associação. Em Macau, temos muitos artistas, mas derivam todos do mesmo grupo. O que se passa agora é que qualquer associação, para ter o seu apoio, ensina artes aos seus alunos. Quando fazem uma exposição até o nome diz: “Artista x vai fazer a exposição com os seus alunos”. Estas iniciativas têm o apoio do Governo mas são, na sua maioria, entidades que não projectam o nome de Macau para o exterior, porque não aparecem com trabalhos novos. Os professores também não querem que os alunos sejam melhores do que eles ou que tenham mais sucesso. O Governo deveria dar mais importância aos artistas que projectam a imagem do território no exterior, aos artistas internacionais. No meu caso, quando comecei a pintar, não era para ser famoso. Mas Macau está a fazer artistas para a posteridade e isto é feito dentro de um círculo fechado. Entretanto, há artistas que estão a ficar completamente esquecidos e que têm valor. Tem sido fácil para si ser artista aqui? Neste momento estou numa fase de alguma crise. Não vendo os meus quadros abaixo de determinado preço. Não posso fazer isso e prefiro não vender do que desvalorizar o meu trabalho. Como sou também o pioneiro do estilo da lusofonia, acho que os meus quadros têm de ter valores altos. Posso oferecer, mas não vendo as minhas obras se não for pelo valor que acho justo. Mas tem sobrevivido com a pintura? Vive de quê? Vivo de patrocinadores. Quando tenho de me deslocar para exposições, são os patrocinadores que tenho que me facultam o dinheiro. Dão-me um valor e eu faço a gestão desse dinheiro. Aqui também não há um mercado de arte. Não há leilões. O meu estilo de pintura é um marco e como tal tem um preço. Por outro lado, nunca tive apoios do Governo. Nunca fui apoiado pela Fundação Macau e já tenho três exposições internacionais. Mas penso que virá o dia em que os meus quadros vão ser reconhecidos aqui. Está zangado com Macau? Não é com o Governo em si que estou zangado. Mas há figuras negras em Macau que têm sempre uma palavra a dizer em quem é que deve ter apoios. É isso que me incomoda.
Hoje Macau EventosRota das Letras | Deusa d’África fala de Moçambique, da guerra e da paz [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] escritora e activista cultural moçambicana Deusa d’África, que está em Macau a participar no festival literário Rota das Letras, sonha com “um país que seja homem”. A “guerra” só deve ser feita por causas justas, como a literatura. Aos 28 anos, Deusa d’África é autora de “Ao Encontro da Vida ou da Morte” (poesia), “A Voz das Minhas Entranhas” (poesia) e “Equidade no Reino Celestial” (romance). Nasceu Dércia Sara Feliciano, no sul de Moçambique, na província de Gaza. Anos mais tarde, trocou o nome de baptismo por o de uma das personagens que criou em “Equidade no Reino Celestial”. “A minha mãe decidiu que eu devia ser Dércia Sara Feliciano. (…) E o nome que eu escolhi para mim é Deusa d’África. E ela aceita este nome, tanto que quando me acorda (…) ela diz: ‘Deusa, hora de ir ao trabalho’. E no meu local de trabalho dizem que não gostam do nome Dércia, porque Dércia é difícil. Então Deusa é mais simpático”, explicou durante uma palestra no Rota das Letras. Deusa d’África é mestre em Contabilidade e Auditoria, lecciona na Universidade Pedagógica e na Universidade Politécnica, e é gestora financeira do projecto Global Fund – Malária em Moçambique. É a partir de Xai-Xai, capital de Gaza, a cerca de 200 quilómetros de Maputo, que reflecte sobre o país que “cresceu economicamente”, mas que enfrenta “muitos desafios”. “Há muitos elementos que envolvem o crescimento de um país, dos quais ainda necessitamos como um povo, para que o país possa se erguer e possa se tornar aquilo que nós sonhamos, que é um país que seja homem, um homem competitivo diante dos outros homens, que são os países”, disse Deusa d’África em entrevista à Lusa. A autora refere-se, em concreto, à necessidade de criar “um ambiente de paz e de tranquilidade” para que o povo moçambicano possa “crescer, viver e sonhar”, num ambiente de paz que não fique “à mercê da vontade dos homens”. A paz em Moçambique tem estado sob permanente ameaça nos últimos anos, devido a clivagens entre a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder, e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo). Entre 2013 e finais de 2016, o país foi assolado por acções de violência opondo as Forças de Defesa e Segurança (FDS) e o braço armado da Renamo, no âmbito da contestação do processo eleitoral de 2014 pelo principal partido da oposição. A mais recente trégua entre as duas partes foi anunciada no passado dia 3, com a duração de 60 dias. “Felizmente temos esta informação, esta trégua (…) vai-se prolongando uma semana, duas, um mês. São notícias boas, mas não é o que nós sonhamos como moçambicanos”, disse. Sem paz, “não podemos estudar, as crianças não podem crescer, não podem tornar-se os homens do futuro, os presidentes de amanhã, os ministros de amanhã diante desta situação”, acrescentou, reflectindo a propósito do conflito que considera “um problema de vaidade humana”. Das festas aos funerais Deusa d’África desenha as suas próprias roupas e sonha com um desfile de moda, entre tantos projectos que lhe faltam fazer. Além da escrita – que lhe permite ser homem, mulher, criança e às vezes até seres inanimados –, Deusa d’África acumula o papel de activista cultural, nomeadamente através da associação Xitende, fundada em 1996 e da qual é coordenadora-geral. A autora diz-se activista “pela sociedade inteira”, que luta pela “justiça social” e em prol da produção literária num país onde, diz, “se lê menos” e faltam políticas de promoção da leitura. “Sou um contraste. Tudo muito estranho, mas vem do berço. (…) A minha família sempre foi ligada às artes, especificamente literatura, música, e eu não podia ser diferente dos meus”, afirmou. “Com cinco anos de idade, na primeira classe, eu já dizia poesia. Em todos os casamentos no bairro, todas as festas de aniversário, tinha de estar lá a dizer um poema. Hoje em dia sou convidada até em cerimónias fúnebres. Dizem que quando eu digo um poema até se esquecem que estão num ambiente triste, viajam no além”, contou. Deusa d’África não vê limites quando toca à dinamização cultural. Por exemplo, entre outras “actividades absurdas”, organizou uma marcha pelo livro por ocasião de uma celebração do Dia Mundial do Livro, a 23 de Abril. Para a autora, o livro e a poesia “são uma forma de resistência, uma forma de combate, uma forma de fazer a guerra”. Uma guerra contra? “Uma guerra é uma guerra. O importante é que a guerra tenha causas”. “O problema dos homens é que eles fazem guerras sem nenhum motivo. E o que nós temos que aprender, diz até Adolfo Hitler no livro ‘A Minha Luta’, é aprender a fazer uma guerra tendo uma causa justa”, disse. “E neste caso específico, a causa é a literatura, a promoção da nossa literatura, ao promover a literatura estamos a promover a própria existência da humanidade. Uma causa mais do que suficiente para que a gente lute por ela”, acrescentou.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasActos de fé & Fumo negro 03/02/2017 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira vez que aterrei em Maputo, em 1995, encontrei à entrada do Hospital Central um amputado, de ambos os pés, que vendia sapatos só de pé esquerdo. Impecavelmente engraxados. Cem meticais por sapato. E o par, perguntava o traunseunte curioso. Há-de chegar… – jurava com aquele brilho fanático nos olhos que encontramos nos aficionados da agricultura biológica – o mister passa cá pra semana… e lhe garanto o par. O eventual comprador era convidado a um acto de fé. Ai de quem pusesse em dúvida a convicção de que o vendedor completaria a entrega da metade que faltava. Tão insubornável fé só a reencontrei num vendedor de cautelas em Cacilhas, no outro lado do Tejo. Ia apanhar o cacilheiro e apanhei-o a limpar com papel de jornal as lentes de casco de garrafa dos seus óculos, de haste presa à armação por um arame, enquanto a sua boca de um verdete desdentado, proferia para um tipo de fato Boss, sapatos italianos e pingente de ouro na gravata: Eu há vinte anos que jogo no mesmo número! Apanhei a frase no ar e desviei-me para um balcão, no fito de beber um café e de ruminar três minutos no absurdo de um maltrapilho tomar a miséria por oráculo. Gente que acredita cegamente em «factos alternativos», tal como Kellyanne Conway, a assessora de Trump, que, para justificar um decreto idiota, inventou um alegado atentado que nunca se verificou, o massacre do Bowling Green. Simultaneamente, e não é acaso se na moldura da comédia humana tais actos coincidem com a institucionalização dos «factos alternativos», foi destaque da semana a ímpia permissão que esteve quase a ser sancionada pelo parlamento romeno, o qual queria legitimar o desvio de fundos públicos, por abuso de poder, desde que não se ultrapassasse a irrisória quantia de duzentos mil euros. Esta piedosa imoralidade ganhou o seu primeiro argumento em plena Europa. Porque foi com certeza uma primeira tentativa e este novo guião para uma futura regulação política dos bens e dos erários públicos irá repetir-se e vingará, dado que cai como ginjas no estado pantanoso em que se locomovem inúmeros Estados. Lembremos o caso do Brasil. Há-de pois espantar-me o que li hoje nos jornais moçambicanos, sobre o ex-genro do ex-presidente Guebuza, o mesmo que assassinou a filha deste, há dois meses atrás? Relatava-se assim no novo «facto alternativo»: «Zofino Armando Muiane, segundo consta da acusação particular da família Guebuza, é um espião sul-africano que usava o nome de Washington Dube». Hesitamos, se rimos se choramos. A seguir, na grande maioria dos estados africanos, virá impor-se a nova lei, imitada da desenvolvida Europa. 04/02/2017 É uma coisa maravilhosa a força com que as mulheres sobressaem no actual momento da literatura portuguesa. Tanto na poesia – e bastam-me cinco nomes: Raquel Nobre Guerra, Joana Emídio Marques, Rita Taborda Duarte, Inês Fonseca Santos e Maria João Cantinho – como na prosa, aonde, dentro do que pude ler (e mais não refiro por não terem chegado a Maputo), dois nomes se destacam com livros recentes que são a todos os títulos excepcionais: Ana Margarida Carvalho, com Não se pode morar nos olhos de um gato, e Alexandra Lucas Coelho, com Deus Dará. A literatura no feminino dá cartas, aparenta ser um feixe de enorme energia que veio para ficar, o que não significará apenas uma afirmação individual como um insofismável avanço na paridade social, cunhada nos patamares simbólicos, E interrogo-me no mal-estar que estas mulheres emancipadas, inteligentes, maduras, poderão sentir perante a notícia de que a lei russa despenalizou a violência doméstica, mormente se o homem a não pratica mais do que uma vez por ano. É que tudo o que é mau, tende a repetir-se em todas as latitudes. Uma vez por ano, argumenta-se, não faz um agressor, é um mero problema de comunicação no casal, que muito carinho posterior pode atenuar. Bom, há casos em que a violência no casal pode ser mútua. Mas são minoritários. O que interessa é o pano para mangas que o retrocesso desta lei dá ao álibi, esquecendo que as relações assimétricas são claramente maioritárias. E ficando o agressor sem cadastro isso não dará azo a novas investidas? Ao fim de quantas vezes se considerará ser a primeira vez? O que me faz lembrar certas tradições rurais moçambicanas pelas quais se ensina a seviciar a mulher sem deixar marcas (consulte-se sobre estas e outras matérias o portal da Wlsa. Talvez por isso tenhamos assistido a esta aberração: a independência de Moçambique, durante 35 anos, não produziu uma única poeta à altura das duas que o colonialismo fez brotar: Noémia de Sousa e Glória de Sant’Anna. 07/02/2017 O que é um ateu? Agrada-me esta definição: alguém que é imune à idiolatria e que livre, até de si mesmo, não teme contradizer-se. O que autorizará o caso de ateus-que-são-intermitentes, como eu, no sentido em que têm fé, na graça epicurista do vestido amarelo que esculpiu o corpo da macua que passou agora à minha frente na esplanada, espalhando no ar uma intensidade que contamina, por exemplo, como num género de inteligência-não-circunscrita – sem que para isso necessitem de acrescentar um nome à origem dessa energia transpessoal. O Budismo, neste sentido, alheia-se da necessidade de nomear Deus. Vem isto a propósito de uma das palavras que mais tem inundado o imaginário popular dos últimos tempos e que está de facto a ter um peso terrorista: a apostasia e o seu praticante, o apóstata. Palavra que julgava banida. Considero insultuoso que metade da humanidade me considere um apóstata. O ateísmo e o laicismo tem sido vilipendiados, nestes últimos anos, e considero que um dos combates do século passará por recuperar o direito e o bom nome de uma espiritualidade sem Deus.
Rui Flores VozesDa impunidade política na Guiné-Bissau [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] nova crise política na Guiné-Bissau faz levantar dúvidas, uma vez mais, sobre a adequação do quadro jurídico-constitucional em vigor no país com a realidade sócio-política guineense. Esta é uma questão que tem sido levantada em tempos de confrontação política ou na sequência de mais um golpe de Estado. Desta vez, a crise colocou o Presidente da República eleito pelo PAIGC, José Mário Vaz, contra o líder do PAIGC e primeiro-ministro demitido, Domingos Simões Pereira, e a nomeação de um governo de iniciativa presidencial, chefiado por Baciro Djá, ex-ministro da Presidência do Conselho de Ministros que se incompatibilizou com o antigo secretário-executivo da CPLP. Tudo por alegada corrupção e incompetência do executivo. As crises político-securitárias têm-se repetido na Guiné-Bissau como em poucos outros países da África Ocidental. A história regista o facto de que, desde as primeiras eleições multipartidárias em 1994, não houve nenhuma legislatura que chegasse ao fim nem um Presidente da República que completasse o seu mandato. As razões para que isso tenha acontecido e continue a acontecer, 31 anos depois do primeiro acto eleitoral e 42 anos após a independência, são várias e têm sido apontadas nos últimos anos pelos mais diversos comentadores. As consequências directas são os golpes de Estado e os assassínios, mas o analfabetismo, o tribalismo, a incapacidade de diálogo entre os vários protagonistas políticos são alguns dos problemas que os diversos analistas têm identificado como causas estruturantes da instabilidade permanente que tem marcado a Guiné-Bissau pós-colonial. Uma das principais questões que enquadram o problema da recorrente instabilidade da Guiné-Bissau foi salientada pelo ex-representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas no país, José Ramos-Horta, quando há dias, nas páginas do Público, apontou o dedo a um dos mais recentes legados lusos, a influência jurídico-constitucional: “A crise resulta de uma Constituição que foi cozinhada em Portugal, sem qualquer consideração à realidade social da Guiné-Bissau, mas encomendada e absorvida na Guiné-Bissau, logo a seguir ao derrube do Presidente Amílcar Cabral. A partir desse primeiro golpe nunca mais conheceu paz.” Antevendo as dificuldades que poderiam existir entre o poder presidencial e o executivo, Ramos-Horta, diz o próprio, procurou deixar um conselho ao Presidente Vaz, quando deixou a chefia da missão da ONU na Guiné-Bissau: “Esse modelo Constitucional não desculpa tudo. A crise tem a sua génese no Palácio Presidencial, num Presidente que, mau grado as prerrogativas ou limitações dos seus poderes, devia acima de tudo ser o mediador, homem de diálogo, fazedor de consensos. Foi o que aconselhei o Sr. Presidente José Mário Vaz a ser: o homem do diálogo, o apaziguador. Obviamente ele não ouviu. Ou ouviu mas sucumbiu a tentação e resvalou pelo mesmo trilho muito perigoso por onde passou outros Presidentes de triste memória.”[quote_box_right]O reconhecimento da diferença e das especificidades sócio-culturais de países como a Guiné-Bissau deve ser o primeiro passo para se encontrar uma estrutura jurídico-política que permita a estabilidade, elemento essencial do desenvolvimento.[/quote_box_right] Político experiente, Ramos-Horta sabe do que fala quando refere que o modelo jurídico-constitucional guineense não se adapta à cultura sócio-política do país. Afinal, a Guiné-Bissau, como Timor-Leste mais de duas décadas depois, adoptou um sistema político inspirado no modelo semipresidencialista português. Tanto num caso como no outro, assessores portugueses estiveram por detrás das propostas que haveriam de ser consagradas em lei. A lógica do Presidente-mediador, apagador de fogos, proponente de compromissos é uma marca do sistema presidencialista. Uma marca que tem estado ausente da Guiné-Bissau de Vaz, como esteve ausente em Timor-Leste, em 2006, quatro anos depois da independência, quando Xanana Gusmão era o Presidente e o país, dividido entre dois grupos étnicos, esteve à beira de uma guerra civil. A questão constitucional está há muito identificada. Foi um dos problemas elencados, por exemplo, durante as duas dezenas de conferências organizadas pela Assembleia Nacional Popular, com o apoio do então Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, “Caminho para a Consolidação da Paz e Desenvolvimento”, que procurou fazer o diagnóstico das principais causas de conflitos na Guiné-Bissau e avançou propostas para a sua resolução. Nesse documento, os que sugeriam a introdução do presidencialismo – o modelo em vigor nos vizinhos continentais da Guiné-Bissau, quer anglófilos quer francófonos – faziam-no “como forma de evitar conflitos de competências entre os titulares dos órgãos de soberania”. A principal fonte de problemas identificada, no entanto, foi outra: uma certa cultura de impunidade, que propiciou assassínios políticos, a descredibilização do Estado, o tráfico de droga. O reconhecimento da diferença e das especificidades sócio-culturais de países como a Guiné-Bissau deve ser o primeiro passo para se encontrar uma estrutura jurídico-política que permita a estabilidade, elemento essencial do desenvolvimento. No que ao impasse constitucional diz respeito, muitos não querem ver o problema. Parte da elite guineense foi formada em Portugal e não quer sequer abrir a porta à discussão, aparentando ser imune às lições da história, que nos mostram que, também no processo de consolidação democrática de Portugal, a tensão entre o poder presidencial e o poder executivo foi motivo de instabilidade. Outros aproveitam o actual quadro para dar razão aos que proclamam que existe uma espécie de poder à africana que tem alergia ao Estado de Direito e aos direitos das minorias, em que o Presidente usa o seu poder absolutamente numa lógica de total sobreposição da pessoa do Presidente ao Estado, na qual a concepção republicana do Estado está ausente. Ao optar por isolar Simões Pereira, um político reputado – que congregou o apoio da chamada “comunidade internacional”, de quem recebeu a promessa, há apenas cinco meses, da doação de mil milhões de euros de ajuda ao desenvolvimento – vai no caminho de perpetuar a instabilidade. As pequenas conquistas do último ano, tão celebradas pelos guineenses quer na sua terra quer na diáspora, vão ser todas postas em causa. Afinal, foi só agora, nos últimos meses, que Bissau, pela primeira vez em muitos, muitos anos, passou a ter electricidade 24 horas por dia. Vaz está no lado errado da história.
Rui Flores VozesA gendarmerie de África [dropcap]E[/dropcap]nquanto os Estados Unidos da América (EUA) têm desempenhado, nalguns casos com particular desvelo, o papel de polícia do mundo, a França, por seu lado, tem-se mostrado muito confortável no fato de gendarme do continente africano. Os casos de intervenção das forças armadas francesas sucederam-se durante o século XX. Este novo milénio tem mostrado a mesma tendência. Embora com o Presidente Jacques Chirac, na sequência do papel desastroso desempenhado pela França no Ruanda, tenha parecido que os franceses se estavam a afastar de África, as recentes intervenções autorizadas por Hollande, na República Centro-Africana e no Mali, reforçaram esse papel de polícia do continente africano. Ao contrário de Portugal, que fez a descolonização pela batuta do processo revolucionário em curso, com um resultado final que pode ser resumido pela ideia de uma debandada institucional generalizada – afinal, Portugal combatia os movimentos de libertação nacional em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique e estava à beira de uma guerra civil –, as circunstâncias da continuidade da ligação militar de Paris com as suas antigas colónias são diferentes. Acima de tudo – e esta é a principal diferença – a França procurou continuar a ligação orgânica com as colónias e tratou de garantir que os novos regimes africanos a aceitavam como o mais relevante parceiro – senão o único – no sector estratégico da cooperação e assistência técnica militares. Em troca, Paris requeria apoio nas votações nas Nações Unidas. Simples, bonito e eficaz Na verdade, essa proximidade não foi muito difícil de estabelecer. Como no caso das antigas colónias portuguesas, a maioria dos líderes políticos que saíram dos processos de independência tinham grandes proximidades com o antigo poder colonial – ou haviam estudado na “metrópole” ou tinham até tido papéis de destaque no aparelho colonial. Criaram-se pois redes de contactos mais ou menos informais que tiveram em Jacques Foccart, assessor do Presidente Charles de Gaulle e responsável pela célula africana dos serviços secretos, o principal impulsionador desta relação privilegiada. Esta relação de proximidade adquiriu um nome próprio: “Françafrique”, que chegou aos dias de hoje e que expressa uma certa intimidade entre as elites africanas e o poder em França traduzida, na prática, pela manutenção de generosos orçamentos da Europa para o continente africano. Quem o inventou foi o primeiro presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouet-Boigny, logo em 1973. Passados mais de 40 anos, a relação de proximidade com a África sub-sahariana mantém-se. Num recente artigo para a Political Science Quarterly, a revista académica publicada pela Academia de Ciência Política de Nova Iorque, o investigador francês Victor-Manuel Vallin faz o balanço desta relação especial. A França mantém acordos de cooperação militar com oito países africanos, alguns da sua esfera de influência tradicional (como são os casos do Senegal, Costa do Marfim, Benim, Camarões, Gabão, Republica Centro-Africana, Comoros) e outros mais recentes, mas com uma importância geo-estratégica capital (como é o caso do Djibuti, país onde a França instalou uma das suas maiores bases militares em África e onde, além dos EUA, está presente o Japão que, em 2011, estabeleceu ali a sua primeira base militar no estrangeiro desde o final da II Guerra Mundial). Estes acordos de defesa implicam nalguns casos a manutenção de uma presença militar no país. A França tem bases no Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Costa do Marfim, Níger, Chade, Gabão, Republica Centro-Africana e Djibuti. Estas têm como principal objectivo contribuir para a manutenção da ordem pública – leia-se o status quo, que a alteração de regime pode sempre pôr em risco os interesses nacionais. Mas Paris mantém também nestes países um número considerável de assessores (e não apenas nos Ministérios da Defesa), que aconselham as autoridades na definição das diferentes políticas. Durante a minha estada na República Centro-Africana, por exemplo, conheci vários destes assessores que tinham acesso privilegiado ao ouvido dos respectivos ministros. Estes assessores constituem uma fonte considerável de informação sobre a situação do país, o que dá à França a upper hand em termos de conhecimento rigoroso do que se passa de um ponto de vista politico e militar, que faz dela um caso único, por exemplo na África Central. Esta proximidade levou ao estabelecimento de academias militares, em 17(!) países, com as quais a França gasta 10 milhões de euros por ano e nas quais os militares franceses dão formação à futura elite castrense. Este é um papel decisivo para a afirmação internacional da França. É no continente africano, por exemplo, que a língua francesa tem capacidade de crescimento. Não é em França, na Bélgica ou na Suíça, ou mesmo no Canadá, que o francês pode sonhar de novo em desempenhar um papel de destaque na política internacional, como tinha no início do Século XX, em que era, ainda, a língua da diplomacia internacional, um papel que desempenhou em regime de monopólio praticamente desde o Século XVII. São agora longínquos os tempos em que os diplomatas britânicos e americanos usavam o francês para vincular a posição dos seus Estados. Mas França já não está só neste papel de polícia voluntário do continente africano. Há outros actores no continente a ganhar destaque. Desde logo, os EUA. No âmbito da luta contra o terrorismo, Washington aumentou consideravelmente a presença em África, onde criou, em 2007, o Africom, um comando militar dedicado para o continente. Essa vontade de contribuir para a solução dos problemas africanos foi visível, por exemplo, recentemente, quando Obama enviou contingentes militares para a África Ocidental, para ajudar na contenção do vírus do ébola e, anteriormente, havia despachado assessores militares para darem formação, no âmbito da luta contra Joseph Kony e o seu Exército da Libertação do Senhor. Embora os EUA – e a China, que entretanto também reforçou o seu envolvimento com o continente, tendo já assinado acordos de cooperação militar com 15 Estados africanos – sejam os “new comers”, a França mantém-se, hoje em dia, como um parceiro quase único do chamado “mundo ocidental” contra as consequências do extremismo em África. Os números actuais da presença francesa em África não são conhecidos. Mas quando o primeiro-ministro Lionel Jospin, em 2002, deixou o poder após cinco anos de contínua diminuição da presença militar no estrangeiro, continuavam pela África sub-sahariana 5300 operacionais franceses. Este número cresceu, indesmentivelmente, nos últimos anos após as operações na República Centro-Africana e no Mali. E assim se deverá manter nos próximos anos. Como também a tentação de, por vezes, interferir directamente no desenrolar dos acontecimentos nos países onde os interesses e a presença francesa são muito grandes.
Hoje Macau China / Ásia MancheteAngola e China “podem ir mais longe” na cooperação [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, manifestou-se esta terça-feira empenhado em “estreitar as relações com a China”, afirmando que os dois países “têm imensas potencialidades para valorizar” e “podem ir mais longe” na cooperação bilateral. “A história tem demonstrado que é na base da confiança e do respeito mútuos que se forjam relações sólidas e duradouras, como a parceria estratégica com a China”, disse José Eduardo dos Santos no início das conversações com o homólogo chinês, Xi Jinping. “Os laços de amizade e de solidariedade entre os nossos povos e países são muito fortes e queremos continuar a estreitá-los”, acrescentou. As conversações decorreram no Grande Palácio do Povo, no centro de Pequim, depois de uma cerimónia de boas vindas com guarda de honra, salvas de canhão e o hino nacional dos dois países tocado por uma banda militar. Dezenas de crianças agitando bandeiras de Angola e da China saudaram os dois presidentes. Na avenida que passa no topo norte da praça Tiananmen, frente à imponente tribuna de cor de púrpura que dá o nome do local – Porta da Paz Celestial (Tiananmen) -, os candeeiros estavam ornamentadas com as bandeiras dos dois países. “A China foi o país que mais depressa compreendeu a situação difícil de Angola no final da guerra, em 2002, e qual a ajuda que poderia dar à reconstrução nacional”, realçou o Presidente angolano. Numa entrevista feita ainda com os jornalistas presentes na sala, salientou também que “em poucos anos, Angola conseguiu grandes progressos” e que “a China é hoje o maior importador de petróleo angolano”. O velho amigo José Eduardo dos Santos iniciou na segunda-feira uma visita de seis dias à China, acompanhado por nove ministros. É a sua quarta visita àquele país em 27 anos, o que faz do Presidente angolano “um velho amigo da China”, como lhe chamou o homólogo chinês. “Esta visita injectará novo ímpeto na parceria estratégica entre China e Angola”, disse o presidente chinês, que é também secretário-geral o Partido Comunista Chinês (PCC), o cargo político mais importante do país. Xi Jinping definiu “o aprofundamento das relações com Angola” como “uma política consistente da China”, afirmando que esse relacionamento “é um modelo da cooperação mutuamente vantajosa” que o seu país mantém com África. “África é um amigo seguro da China e a China fará o seu melhor para que África alcance a paz e o desenvolvimento económico”, declarou. Orgulho e estratégia [quote_box_right]”A China foi o país que mais depressa compreendeu a situação difícil de Angola no final da guerra, em 2002, e qual a ajuda que poderia dar à reconstrução nacional” -José Eduardo dos Santos, Presidente angolano[/quote_box_right] Evocando o 40.º aniversário da independência de Angola, que se assinala em Novembro próximo, o Presidente chinês disse que o MPLA, o partido no poder, e o povo angolano “devem estar orgulhosos” pelas “extraordinárias mudanças” entretanto ocorridas no país. O programa de José Eduardo dos Santos na China inclui ainda uma deslocação a Tianjin, o maior porto do norte do país, a cerca de 150 quilómetros da capital, e um fórum económico com quase 200 participantes. Xi Jinping visitou Angola em 2011, quando era vice-presidente da China, e foi também nesse ano que os dois países assinaram um “acordo de parceria estratégica global”. Devido à acentuada diminuição do preço do petróleo no mercado mundial, no primeiro trimestre deste ano, o valor das exportações angolanas para a China caíram cerca de 50% em relação a igual período de 2014. A China anunciou que ajudará financeiramente Angola a “superar as dificuldades” criadas por aquele fenómeno, mas não especificou o montante da ajuda. Segundo fontes chinesas, o volume dos empréstimos e das linhas de crédito concedidos pela China a Angola desde 2004 rondará os 15.000 milhões de dólares.