A Bússola Marítima (XIII)

Criada a partir da bússola magnética, originária do século IV a.n.E., também a bússola marítima foi, na dinastia Song, uma invenção chinesa do século XI. Era uma bússola feita num vaso de madeira com água onde se encontrava a boiar um caniço atravessado por uma agulha magnética a apontar sempre a direcção Sul.

Gravados no bordo superior do vaso encontravam-se num círculo as 24 direcções, determinadas segundo a ordem de Tian Gan (天干) (10 Caules Celestes), Di Zhi (地支) (12 Ramos (12 Ramos Terrestres), Ba Gua (八卦) (8 Trigramas), Wu Xing (五行) (5 Elementos) e entre os 12 Zhi (Ramos Terrestres) intercalam-se 8 Gan e 4 Gua. Assim se determinavam as posições das 24 direcções, cada uma separada por 15°. Explicação de Zheng Yi Jun dada n’ “As técnicas de navegação nas armadas de Zheng He e a sua contribuição para a ciência náutica”, de onde nos socorremos para este artigo.

A teoria dos Cinco Elementos ((Wu Xing, 五行): Madeira (木, Mu), Fogo (火, Huo), Terra (土, Tu), Metal (金, Jin) e Água (水, Shui)) partiu da ideia das cinco direcções (Leste (东, Dong); Sul (南, Nan); Centro/Meio (中, Zhong); Oeste (西, Xi); e Norte (北, Bei)), que conjugados são a base da composição de todas as coisas.

Os dez Caules Celestes (Tian Gan, 天干), combinação do yin e yang nos Cinco Elementos, dão: Jia (甲) Madeira, Leste – yang; Yi (乙), Madeira, Leste – yin; Bing (丙) Fogo, Sul – yang; Ding (丁) Fogo, Sul – yin; Wu (戊), Terra, Centro – yang; Ji (己) Terra, Centro – yin; Geng (庚) Metal, Oeste – yang; Xin (辛), Metal, Oeste – yin; Ren (壬), Água, Norte – yang; Gui (癸), Água, Norte – yin. Zheng Yi Jun refere, “Como Wu e Ji pertencem ao elemento Terra e a sua situação é, portanto, no centro, não indicando qualquer posição de direcção, desprezam-se, e daí serem utilizados apenas oito Gan (干) em vez dos dez.”

Os doze Ramos Terrestres (Di Zhi, 地支): o rato Zi (子), Água, Norte, yang; o boi Chou (丑), Terra, Centro/NorteNordeste, yin; o tigre Yin (寅), Madeira, Leste/LesteNordeste, yang; o coelho Mao (卯), Madeira, Leste, yin; o dragão Chen (辰), Terra, Leste/LesteSudeste, yang; a serpente Si (巳), Fogo, Sul/SulSudeste, yin; o cavalo Wu (午), Fogo, Sul, yang; o carneiro Wei (未), Terra, Centro/SulSudoeste, yin; o macaco Shen (申), Metal, Centro/OesteSudoeste, yang; o galo You (酉), Metal, Oeste, yin; o cão Xu (戌), Terra, Centro/OesteNoroeste, yang; e o porco Hai (亥), Água, Norte/Nortenoroeste, yin; correspondem a 12 posições de direcção do círculo no Feng Shui, usando-se aqui o nome dos animais apenas a sintonizar o leitor ao reconhecê-los nos anos do calendário chinês.

Serviam estes caracteres também para a marcação da duração do tempo que o Sol levava para dar uma volta à Terra. Quando o Sol se encontrava a Sul (180°) era a posição Wu, pelo contrário, quando se encontrava na posição 0/360°, era a posição Zi. Os caracteres ordenavam-se a partir de Zi, segundo o movimento dos ponteiros do relógio.

Entre os 12 Zhi intercalavam-se 8 Gan (干) e 4 Gua (卦). “Para completar as 24 direcções, faltam as correspondentes aos quatro pontos colaterais (Noroeste, Nordeste, Sudeste e Sudoeste) designados com quatro posições de direcção de entre os 8 Gua (八卦): Qian (乾, simboliza o Céu), Gen (艮, montanha), Xun (巽, vento) e Kun (坤, Terra). As outras posições de direcção dos restantes 8 Gua são, Kan (坎, água), Li (离, o fogo), Zhen (震, o trovão) e Dui (兑, lago), a corresponder às posições de direcção Zi (Norte), Wu (Sul), Mao (Leste) e You (Oeste). Esta combinação deu as 24 direcções.

AS 24 DIRECÇÕES

Quando o Sol se encontrava na direcção Norte (0/360°) é a posição Zi (子, Água, Norte, yang), correspondendo também ao gua Kan (坎, água). Já na direcção Leste (90°) está Mao (卯, Madeira, Leste, yin), onde ainda se posiciona o gua Zhen (震, trovão). Com o Sol a Sul (180°) está a posição Wu (午, Fogo, Sul, yang) ocupada também por o gua Li (离, fogo). Na direcção Oeste (270°) está You (酉, Metal, Oeste, yin), posição de Dui (兑, lago) do baguá.

Entre cada uma das quatro direcções cardinais estão registadas posições separadas por 15° e assim, após a direcção Norte nos 0° marcada por Zi (子), (Água, Norte, yang), aparecia nos 15° a posição de Gui (癸), (Água, Norte – yin), seguindo na posição 30° Chou (丑), (Terra, Centro NorteNordeste, yin). Vem depois a direcção do Nordeste, a 45° marcada por o gua Gen (艮, montanha). Aos 60° encontra-se Yin (寅), (Madeira, Leste/LesteNordeste, yang); aos 75° Jia (甲), (Madeira, Leste – yang); aos 90° na posição Leste, Mao (卯), (Madeira, Leste, yin), com o gua Zhen (震, trovão).

A marcar os 105° aparece Yi (乙) (Madeira, Leste – yin) e aos 120° Chen (辰), (Terra, Leste/LesteSudeste, yang). Estando Jia entre Mao e Yin; Yi entre Mao e Chen; Jia e Yi, assim colocados, significam Madeira do Leste.

A direcção Sudeste em 135° com o gua Qian (乾, Céu); na marca de 150° está Si (巳), (Fogo, Sul/SulSudeste, yin) e a 165°, Bing (丙), (Fogo, Sul – yang). A 180° Wu (午) (Fogo, Sul, yang) marca a direcção Sul, tal como o gua Li (离, fogo). Já Ding (丁), (Fogo, Sul – yin) está nos 195° e Wei (未), (Terra, Centro/SulSudoeste, yin) nos 210°. Bing situa-se entre Wu e Si; Ding encontra-se entre Wu e Wei. Bing e Ding, assim colocados, significam o Fogo do Sul.

A 225°, direcção Sudoeste o gua Kun (坤, Terra); a 240° está Shen (申), (Metal, Centro/OesteSudoeste, yang); a 255° Geng (庚), (Metal, Oeste – yang); na direcção Oeste a 270° está You (酉), (Metal, Oeste, yin) e ocupando a mesma posição Dui (兑, lago) do bagua; a 285° encontra-se Xin (辛), (Metal, Oeste – yin); e a 300° Xu (戌), (Terra, Centro/OesteNoroeste, yang). Estando Geng colocado entre You e Shen e Xin entre You e Xu indicam o Metal do Oeste.

A direcção Noroeste marcada nos 315° é conhecida por o gua Xun (巽, vento). Na seguinte posição, a 330° aparece Hai (亥), (Água, Norte/Nortenoroeste, yin); a 345° Ren (壬), (Água, Norte – yang); a 360° Zi (子) (Água, Norte, yang), que marca a posição Norte (0/360°); segue a 15° Gui (癸), (Água, Norte – yin) e a 30° Chou (丑), (Terra, Centro/NorteNordeste, yin). Ren colocado entre Zi e Hai, Gui, entre Zi e Chou, indicam a Água do Norte.

Este tipo de bússola, embora denominada de 24 direcções, na prática tinha 48 direcções, pois divididos a meio os 15° tinha-se as direcções nos 7,5°. Utilizada para estabelecer “os rumos, se estes coincidissem com uma das 24 direcções da bússola, dava-se-lhes o nome de ‘rumo exacto’ ou ‘directo’. Se o rumo fosse definido numa posição não coincidente com uma das 24 direcções dava-se o nome de ‘rumos remendados’, significando uma direcção entre duas das 24.”

A importância da bússola marítima ser lida com precisão e correctamente para manter inalterada a rota definida, exigia para as bússolas um quarto especial, denominado Zhen Fang, e um experiente marinheiro, o Huo Zhang, com a específica função de as observar e ver o rumo a seguir.

Na dinastia Song, segundo Yan Dunjie, já as cartas de navegação indicavam as direcções da bússola marítima para levar a vários lugares, e daí chamadas Guias de Agulha, a significar ser um guia de navegação feito a partir da agulha magnética da bússola. Tinham registadas as direcções a tomar desde a saída do porto chinês até ao destino final e seu retorno, os tempos de navegação em cada direcção e quando na rota mudar de direcção.

Assim, com céu limpo ou nevoeiro se conseguia ter sempre o posicionamento dos barcos através das cartas náuticas e a ajuda da bússola marítima ligada a um relógio de água.

28 Abr 2023

Eurásia, o universo do Pacífico e os anglófonos: do passado ao presente

(continuação)

IV. China, Eurásia e a geo-política americana

A China, é claro, não gosta dos recentes desenvolvimentos. Antigamente, o Governo de Pequim estabelecia as suas metas em termos de política externa com base no princípio de uma só China. Naturalmente, este propósito incluía o desejo de reintegrar Taiwan. Originalmente, os governantes do Kuomintang em Taipé tinham expressado ideias semelhantes. Sonhavam conquistar o continente, e também usavam como arma de propaganda o princípio “uma só China”, mas, claro, de uma perspectiva diferente. Hoje em dia, quase todos os dirigentes a nível mundial reconhecem Pequim como o único legítimo governante da China.

Além disso, Pequim declarou repetidas vezes, desde o início, que as ilhas no Mar da China Meridional são parte da China. Inúmeros estudos confirmam que os pescadores e marinheiros chineses iam para lá desde tempos imemoriais. Os registos pré-coloniais que mencionam estas regiões são todos chineses.

Não existem fontes escritas em malaio, tailandês ou noutras línguas, o que pode apontar para uma presença contínua de habitantes do Sudeste Asiático nestes arquipélagos. Igualmente digno de nota, é o facto de as obras publicadas durante o Governo do Kuomintang afirmarem que as ilhas de Nanhai 南海 devem pertencer à China. Não só isso: mapas do período republicano mostram que nessa altura a China também reclamava muitas zonas que ficavam muito para lá das suas fronteiras, especialmente a Norte.

O Governo de Pequim, podemos acrescentar, é modesto; já não faz exigências tão excessivas. Os académicos do universo anglófono raramente mencionam isto. Nem “culpam” Taiwan por controlar as Ilhas Dongsha 東沙群島, que constituem um dos arquipélagos do Mar da China Meridional. No entanto, criticam severamente as actividades de Pequim no Mar da China Meridional sempre que acham que isso faz sentido. Esta unilateralidade expõe claramente as atitudes imperialistas americanas e a duplicidade de critérios.

O chamado “Ocidente” também criticou as acções da China em Hong Kong, no Estreito de Taiwan e noutras partes da Ásia. A matriz destes comentários críticos é feita na América do Norte e os aliados de Washington seguem o protótipo. Quando Pequim iniciou o programa “Uma Faixa, Uma Rota” (Nova Rota da Seda)一帶一路, os investidores e os homens de negócio de muitos países, incluindo alguns Estados europeus, ficaram bastante satisfeitos. Contudo, com o passar do tempo, as impressões positivas desapareceram. Opiniões extremamente negativas começaram a substituir o entusiasmo inicial. Poucos destes críticos entenderam que Pequim, ao iniciar o programa, teve uma visão a longo prazo: a ideia não era apenas trazer riqueza para outros países, mas também ajudar a estabilizar o ambiente político em grande parte da Ásia Central e Ocidental.

Certamente, a estabilização dessas macro-regiões não era necessariamente do interesse Washington a longo prazo. Um sistema eurasiático forte e pacífico era incompatível com a ideia de supremacia anglófona. Os laços económicos que cresciam gradualmente entre certas partes da UE (especialmente a Alemanha) por um lado, e a Rússia, por outro, bem como entre a Europa e a China e a China e a Rússia causaram muita preocupação em Washington. Este pressuposto permite-nos chegar a uma conclusão muito desagradável.

A guerra na Ucrânia é um acontecimento trágico que nunca deveria ter sido iniciado mas, paradoxalmente, Washington parece lucrar com as perdas de vidas e com a destruição diária. As razões são óbvias: em termos territoriais, a iniciativa chinesa “Uma Faixa, uma Rota” está agora um pouco limitada. Partes das ligações continentais estão interrompidas.

A Europa ficou mais próxima da órbita de Washington. Parece provável que Washington ganhe dinheiro com a venda de armas e de matérias-primas à UE. A União Europeia tem de receber refugiados ucranianos. Além disso, do ponto de vista político, Washington poderá reforçar a sua posição na Polónia e na fronteira oriental da NATO. Deste modo, pode desvalorizar o papel da Europa Central e da França e pode encorajar Varsóvia a tornar-se um protagonista na política regional contra/com a Bielorrússia e a Ucrânia.

Além disso, Washington não precisa de intervir directamente na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Envia armas, dinheiro, e isso faz com que Kiev fique dependente da “benevolência” americana durante as próximas décadas. Finalmente, fica à vontade para iniciar “exercícios militares” noutras regiões, especialmente no Extremo Oriente. Provocações contínuas e uma retórica agreste promovem a tensão no Estreito de Taiwan e no Mar da China Meridional, como podemos ler diariamente. Mas não só: as declarações oficiais de Washington dão a entender que os Estados Unidos podem ir para lá das acusações verbais e das sanções económicas.

Como foi mencionado, a guerra na Ucrânia parece ser um elemento importante na constelação actual. O raciocínio implícito é simples: Algumas pessoas consideram Zelensky uma marioneta da Casa Branca. A Rússia precisará de mobilizar mais homens e mais armas contra as suas tropas. Uma longa duração do conflito pode enfraquecer gravemente o Kremlin e é isso que Washington espera. No entanto, recentemente vários políticos do “Ocidente” argumentaram que é improvável que a Ucrânia vença a guerra, mesmo com o apoio continuado dos Estados Unidos e dos seus aliados. Afinal, a Rússia tem amigos e enormes recursos, e também tem armas nucleares.

Embora isto seja um facto indiscutível, alguns políticos “ocidentais”, entre eles, vários do leste europeu e muitos líderes ucranianos defendem que se deve continuar a guerra a qualquer preço para manter a Rússia “ocupada” e para impedir a sua recuperação. Temem que, a longo prazo, a Rússia possa vir a ameaçar os Estados Bálticos e outras regiões da Europa de Leste. Por isso, várias pessoas desejam que a Rússia se desmorone. Propõem aumentar a pressão económica, acreditando que isso provocará um esgotamento gradual dos recursos militares russos. Em termos mais simples, estes políticos pensam que uma “revolução” interna em Moscovo poderá pôr fim ao Governo de Putin.

Algumas pessoas até sonham com uma desintegração abrupta, esperando que líderes militares influentes e/ou grupos locais possam voltar s costas a Moscovo. No entanto, se uma situação tão extrema realmente ocorresse, novas questões se levantariam: Quem iria controlar o arsenal nuclear do Kremlin? Quem iria comandar os submarinos russos e outros navios que transportam ogivas nucleares?

Agora regressamos ao reino do “e se”. No caso de se estabelecer o caos em Moscovo, alguns dos estados da Ásia Central poderiam deixar de aceitar a autoridade da Rússia como uma espécie de garante de segurança. Isto poderia encorajar alguns líderes do antigo Xiyu a desencadear rebeliões e guerras regionais, o que se tornaria uma situação desconfortável para a China.

A China quer manter a paz, como ficou recentemente demonstrado pelo seu recente papel no processo diplomático entre o Irão e a Arábia Saudita. Existem muitos instrumentos institucionais que também servem para manter o equilíbrio regional na Ásia Central e nas áreas adjacentes, e um desses instrumentos é o grupo de Xangai.

Mas nada disto é do interesse de Washington. Em contrapartida, o caos na Rússia e o caos na Ásia Central seriam bons para Washington. Os refugiados deslocavam-se para o Irão, para a Turquia, para a UE e talvez para o Extremo Oriente; os países que os recebessem iam precisaram de despender mais verbas e de construir mais infra-estruturas para todos estes migrantes. Washington fica muito longe; em termos de discurso, iria continuar a insistir na defesa dos direitos humanos e a “aconselhar” todos a implementarem estruturas democráticas, mas manteria as suas portas fechadas (as políticas WASP* em relação ao universo latino-americano mostram-nos bem como é que isto funciona). Basicamente, acolheria apenas indivíduos ricos, qualificados e instruídos. E secretamente alegrava-se, ao ver os outros em apuros.

V. De volta à fronteira americana do Pacífico

Uma desintegração da Rússia ou uma perda da autoridade de Moscovo sobre algumas das suas regiões asiáticas poderiam provocar muitas mais mudanças: o Japão poderia sentir-se tentado a ocupar as Ilhas Curilas e talvez alguns americanos propusessem a ocupação da Península de Kamchatka e dos postos avançados da Rússia perto do estreito de Bering.

Além disso, há muita concorrência na região do Ártico. Poucas pessoas falam sobre isso, mas sabemos que a Rússia é um actor importante no gélido Norte. Se a Rússia deixar de poder desempenhar esse papel, Washington será o grande vencedor na região do Ártico. O Canadá, a Noruega e outros países poderiam ficar descontentes com a situação, mas não teriam forma de travar o processo. Aqui podemos recordar a proposta ridícula do antigo Governo dos EUA para comprar a Gronelândia. Revela a atitude arrogante de alguns líderes políticos em Washington.

Sem dúvida que uma situação caótica ou imprevisível dentro da Rússia levaria a China a aumentar os seus esforços diplomáticos em certas partes da Ásia Central, com ou sem a ajuda do Irão e/ou da Turquia. No entanto, num cenário confuso, podemos ter a certeza de que estes últimos iriam dar as mãos? O panorama da Ásia Central poderia tornar-se extremamente complicado. Como foi dito, a História tende a repetir-se. Pior ainda, se a atenção de Pequim fosse absorvida pelos acontecimentos na Ásia Central, então Washington poderia sentir-se à vontade para desafiar as posições marítimas da China. Actualmente, Washington tenta regressar às Filipinas. Uma das suas ideias neste sentido é trazer mais equipamento militar para este arquipélago. Também pode deslocar mais militares para as Ilhas Ryukyu e para a Coreia do Sul. É claro que não existe uma base legal para o envio de tropas para Taiwan, mas poderemos ter a certeza de que Washington vai respeitar essa regra?

Um confronto militar no Estreito de Taiwan, intencional ou involuntário, provocado pelas acções de Washington, poderia levar a uma forte reacção chinesa. Isto, por sua vez, poderia levar os Estados Unidos a atrair os seus principais aliados locais, nomeadamente o Japão e a Coreia do Sul, para o conflito. Instalações navais e outras em Okinawa e noutras zonas tornar-se-iam áreas-chave. É claro que não sabemos como é que Tóquio e Seul iriam responder, mas se seguissem as directrizes de Washington, poderia criar-se um estranho cenário.

A questão que se coloca é: Isto pode ser evitado? Será que os grupos dentro da Coreia do Sul e do Japão, que desejam manter a paz, teriam influência suficiente para impedir que seus Governos se subordinassem ao sabre agitador dos Estados Unidos? Actualmente, ainda há espaço para manobras diplomáticas e económicas, mas é claro que não se pode aumentar e acelerar a tensão ad infinitum. Então, até que ponto é que Washington pode ir?

No contexto da guerra na Ucrânia, os americanos retratam a Rússia como uma entidade maligna que poderia levar o mundo a uma “batalha final”. (Armagedão). Certamente, não podemos excluir totalmente um cenário nuclear, o uso de ogivas tácticas com componentes nucleares ou “simplesmente” o uso de munições com urânio empobrecido. No entanto, quando pensamos no Extremo Oriente, o mesmo não se aplica aos Estados Unidos? Não nos devemos esquecer, que os “anjos inocentes” da Califórnia usaram bastantes armas terríveis em várias guerras.

Infelizmente, as superpotências seguem as suas próprias regras. Procuram maximizar os ganhos e querem controlar tudo. Quando guiados por algum tipo de ideologia estranha, como o “destino manifesto” (e seus derivados), os altos dirigentes facilmente ficam cegos e prontos a correr grandes riscos. A política divide et impera é um fenómeno de longue durée nos Negócios Estrangeiros americanos. Muita dessa estratégica é puramente calculista. A ideologia “América em primeiro lugar” ajuda-nos a explicar dezenas de intervenções militares americanas do passado, e a retórica que acompanhava essas intervenções. No entanto, ao mesmo tempo, a percepção de Washington sobre o mundo não americano é limitada. Existem obstáculos mentais. Estas deficiências têm algo a ver com a “filosofia” subjacente ao sistema. a estrutura da liderança dos EUA, e a incapacidade de aceitar diferentes pontos de vista e tradições. Isto levou e erros de cálculo e a más decisões. A intervenção de Washington no Vietname foi um fracasso.

A segunda guerra do Iraque não conduziu a uma democracia florescente em Bagdade, mas sim ao caos. O Afeganistão foi o mais recente desastre dos Estados Unidos. Então, qual seria o resultado de um confronto no Estreito de Taiwan? Claro que ninguém consegue prever. Tudo o que podemos dizer neste momento é que Washington age como um adolescente teimoso. Ofuscado pelos seus próprios “valores”, não aprendeu a procurar soluções razoáveis. Isso deixa em muitos de nós uma sensação extremamente desconfortável.

VI. Observação final: a Europa e a China

O mundo atingiu uma fase de maturidade que proporciona uma grande mudança. Porque é que o orgulho nacionalista e a ganância devem continuar a ser as forças dominantes? Será que estamos mesmo a observar a competição entre sistemas? Até que ponto esta “teoria” é verdadeira? Não existem muitas notícias falsas dentro desta retórica? As pessoas em todo o mundo têm muito em comum. Podemos afirmar, que partilham “valores” essenciais.

Mas, em contrapartida, provavelmente existem poucas características (se é que existe alguma) que realmente justifiquem uma competição aguerrida ou debates acalorados entre “identidades” diferentes. Já em tempos remotos, encontrávamos frequentemente homens e mulheres inteligentes que encaravam o mundo de uma forma descontraída e que se manifestavam a favor da manutenção da paz. A ideia de adaptação promovida pelos Jesuítas na Índia e na China é um exemplo que se aproxima do “modelo” de tolerância. Houve um tempo em que filósofos europeus expressaram opiniões muito positivas sobre a cultura e a governação chinesa e sobre a ética confucionista.

Vários textos europeus do final do séc. XVI chegavam a sugerir que os monarcas europeus deveriam seguir o exemplo da China. A América do Norte, governada pelos descendentes dos beligerantes Vikings, não experienciou um nível comparável de consciencialização. Será que isso tem importância? Pode ajudar a explicar, pelo menos em parte, a imagem do “adolescente imaturo” que anteriormente citámos?

Quando o expansionismo americano começou no séc. XIX, a economia e a estrutura política chinesa eram frágeis. Sem dúvida, este facto desencadeou sentimentos de superioridade entre as elites comerciais dos Estados Unidos. A arrogância desse “sistema” sobreviveu e encontra-se muito vivida nos nossos dias. No entanto, muitas pessoas e muitos estados alimentam os seus comportamentos contraditórios desse sentimento, com um enorme aparato de mentiras e de avaliações unilaterais. Daí, num parágrafo anterior, ter defendido que podemos ver o sistema como a causa de muitos problemas globais.

Infelizmente, durante os últimos anos, alguns dirigentes da UE convenceram-se que deveriam aceitar a retórica missionária difundida pelos anglófonos. Mas, no mundo existem pessoas mais prudentes; sugerem que se deve procurar caminhos alternativos e adoptar visões mais equilibradas. Não gostam de ameaças e insistem numa diplomacia da paz. O Governo de Pequim está a par do problema e é muito paciente. Respeita a iniciativa da UE para ultrapassar os egoísmos nacionalistas dentro da Europa e deseja sinceramente que esse processo continue.

Os esforços americanos para enfraquecer o velho continente não são do interesse da China. Como foi afirmado, os livros de História estão cheios de exemplos de métodos divide et impera. A cooperação no mundo lusófono e entre alguns países de língua espanhola, tal como a cooperação dentro da UE, têm dado exemplos de como, pelo menos em teoria, podemos ultrapassar dificuldades. São as acções de protagonistas com maturidade e tolerância que Pequim respeita; não importante que venham da Europa, do Médio Oriente, ou de outro lado qualquer. As trocas comerciais ao longo do eixo da Nova Rota da Seda são dificultadas pelos desenvolvimentos actuais, mas a troca de ideias de quem sonha com a paz está a aumentar. A China, esperamos, há-de encontrar forma de serenar as mentes em ebulição dos líderes radicais. Claro que, os propagandistas da “América em primeiro lugar”, ofuscados pelo seu próprio sistema, hão-de ter dificuldade em aceitá-lo.

27 Abr 2023

O Preto e o Negro Chineses

No Ano do Coelho de Água, que dominará em 2023 e afectará particularmente nativos deste signo entre 22 de Janeiro de 2023 e 10 de Fevereiro de 2024, estamos sob o domínio do Coelho Yin ( 陰/阴兔Yīntù) do elemento Água, cuja cor é o preto.

Começando pelo sítio certo. Há uma ligação ao princípio feminino Yin (陰/阴 Yīn), que se sabe ser complementar do princípio masculino Yang (陽/阳 Yáng), representando o masculino, do ponto de vista caligráfico, o lado solar da encosta, e o feminino, a sua parte nebulosa ou sombria. O Yin, enquanto propiciador de uma tabela de categorias, é receptivo, pesado, escuro, opaco e lunar, sendo complementar do Yang Criativo, leve, claro, transparente e solar.

No Clássico das Mutações, se pensarmos em termos de cor, surge ligado ao hexagrama 2 do feminino e receptivo, à mãe Terra (坤 kūn), que tem como representante cromático o preto, mas uma vez que este animal se associa também à Água (水 shuǐ), carrega consigo as características do abissal e perigoso, que nos são transmitidas no hexagrama 29 (坎卦Kǎn Guà), numa conjugação dos dois trigramas da Água, na qual duas linhas Yin receptivas têm ao centro uma linha Yang criativa ou, numa outra leitura possível, são atravessadas por uma linha Yang, o que implica um mergulho nas profundezas escuras do oceano para nele conseguir captar a luz. Ou ainda, numa leitura antropológica, a linha Yang será a alma no interior do corpo, indicando o Juízo deste hexagrama: “O Abissal repetido. Se fores sincero, alcançarás o sucesso com o teu coração. E tudo o que fizeres, será bem-sucedido”/ 習坎,有孚,維心亨。行有尚。 (Wilhelm, 1989:115; 張 84: 127).

Neste hexagrama confronta-se o perigo com o bom exemplo da água, que flui encontrando o melhor caminho sem desafiar os obstáculos, por envolvimento, penetração e diluição. Quanto ao Coelho, regente deste ano, de acordo com a astrologia chinesa, é um animal sensível, pacífico, familiar, diplomático e, neste ciclo, sábio, advindo-lhe esta última virtude da ligação ao elemento Água. Ao indagar-se pelas características da Água, de acordo com a divisão dos cinco elementos, realizada na Medicina Tradicional Chinesa, obtemos que pertence à Noite; ao Inverno, enquanto estação do ano; ao Frio, como categoria climatérica; à Saliva, a título de fluído; aos Ossos, para os tecidos; aos Genitais, como orifício; aos Rins, na categoria de órgão; e ao Salgado na qualidade de sabor. É da água, portanto, o domínio da noite, das profundezas, da escuridão, intimamente ligadas, por um lado, ao preto, por outro, ao negro. Preto e negro não significam o mesmo, embora apontem para a mesma referência cromática.

Preto, diz-se em chinês hei (黑hēi), opõe-se à cor branca, bai ( 白bái). Do ponto de vista caligráfico, o preto é uma chama (炎 yán) sob uma janela ou chaminé, à qual vai escurecendo com o seu fumo ou fuligem. O preto é então o traço complementar do fogo, os vestígios e as marcas da chama nas paredes, a sua sombra. Está intimamente associado à existência concreta. Na língua chinesa, é empregue a título de oposto do branco em heibai (黑白 hēibái), “preto e branco” no sentido de contraste, do certo e errado, onde o positivo surge do lado do branco e o negativo do lado do preto, mas também para caracterizar as cores concretas, incluindo de pessoas e etnias, sendo os africanos apelidados heiren (黑人hēirén), tal como aos americanos e ingleses lhes chamam Black people.

O preto é, ainda, empregue para definir o lado sombrio e marginal da existência, por exemplo, em black market, aquele ao qual os portugueses catalogam de “mercado negro”, em chinês, heishi (黑市hēishì), sendo também pretas as sociedades criminosas, as heishehui (黑社会hēishèhuì), bem como pessoas extremamente ambiciosas, engenhosas e até maliciosas, dessas afirma-se no calão chinês que possuem “coração preto”黑 (心) (李、顏1998:90). Pelo que também as palavras enganosas se dizem “palavras pretas” ou heihua (黑話/话), seguindo a mesma lógica, há um “humor preto”, ao qual os portugueses chamariam “humor negro”, quer dizer, heise youmo (黑色幽默hēisè yōumò ).

No que se refere ao dia-a-dia da língua chinesa, vê-se então que o preto está frequentemente associado ao mundo marginal, o das seitas, da economia paralela, das pessoas extremamente ávidas, que não olham a meios para atingir os fins, desregradas e até das que manifestam as forças do mal heishili (黑势力 hēishìlì); mas não se pode esquecer o lado positivo, no qual surge a terra preta, denominada heitu (黑土hēitǔ) e a noite negra, em chinês, heiye (黑夜 hēiyè).

Chegou a altura de analisar a distinção entre o preto e o negro. Este último assume uma dimensão filosófica que não é atribuída à cor preta, telúrica e basilar. O negro, do ponto de vista elemental, projecta para uma zona misteriosa das profundezas oceânicas, ou ainda das alturas celestiais, quando se visualiza uma luminosa noite negra ou, em máxima complementaridade, um imenso e misterioso buraco negro.

A pérola negra é uma das metáforas preferidas dos taoistas, nomeadamente Zhuangzi (莊子/庄子), o segundo maior filósofo desta linha, que viveu durante o Período dos Reinos Combatentes entre c. 396-286 a.C. Na obra homónima, 《庄子》 procurou transmitir o núcleo dos seus princípios filosóficos recorrendo a metáforas e parábolas de grande valor artístico, da melhor literatura de todos os tempos. O filósofo emprega no Livro 12 a imagem da Pérola Perdida para se referir ao Tao (道 Dào) , sendo este descrito como uma pérola misteriosa, caso se prefira, mágica, que tudo pode transformar sem se perceba nem o seu saber, nem como o realiza e muito menos porque razão o faz tão espontaneamente, deixando todos surpreendidos, a começar pelo Imperador Amarelo (黄帝 Huángdì), o símbolo da sabedoria discursiva, clara, luminosa e disciplinada, a complementar, portanto, a mais enaltecida pelos taoistas, a lunar, difusa, aquática e intuitiva, enfim a verdadeira sabedoria que se encontra a um nível numenal e, por isso, escapa por completo ao entendimento humano. Conta Zhuangzi:

O Imperador Amarelo quando se dirigia para o Norte das Águas Vermelhas, subiu à Montanha Kunlun e olhou na direção Sul. Ao regressar a casa, percebeu que tinha perdido a sua pérola negra (玄珠 xuánzhū). Enviou então o conhecimento à procura dela, mas ele não a conseguiu descobrir; mandou de seguida a visão em seu encalço, que não a encontrou; ao que se seguiu o discurso que também não a achou. Por fim, encarregou o Nada desta missão, que a encontrou. Ao que o Imperador Amarelo exclamou: “Que estranho! Só o Nada descobriu a pérola cor-da-noite”.

(黄帝游乎赤水之北,登乎昆仑之丘而南望。还归,遺其玄珠。使知索之而不得,使离朱索之而不得,使喫诟索之而不得也;乃使象罔,象罔得之。黄帝曰:“异哉!象罔乃可以得之乎!“ ) (Zhuangzi, 1999, XII: 4)

Concluindo, o preto assume, tanto em chinês como em português, um sentido filosófico importante quando é elevado a negro, desapegando-se assim da realidade imediata, concreta e material. Adquire então uma forma profunda, misteriosa e mágica que o colocam em ligação espontânea e directa com o mundo numenal.

Liberta-se de toda a carga fenomenal de que é investido no mundo que nos rodeia, também conhecido em algumas filosofias como mundo das ilusões e da aparência. Há portanto para o preto duas dimensões distintas, uma em que é uma cor vulgar ao mesmo nível das outras, partilhando das acepções positivas e negativas que lhe são atribuídas no mundo chinês, e não só; outra misteriosa, abissal em que tudo pode, como representante duma dimensão transcendente, na qual é portador das energias primordiais, sendo uma espécie de “cinturão negro” marcial, uma prodigiosa manifestação energética na vida, que se eleva aos céus ou mergulha nas profundezas misteriosas, para resolver dificuldades e transpor os obstáculos de um modo aparentemente fácil, munido da simplicidade modelar que lhe advém da sua ligação ao princípio Yin e à sabedoria da Água.

 

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2005. Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias.
Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa. Em Busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macau/ Ciclo dos Leitores.
Li Shujuan, Yan Ligang . Ed. (李淑娟, 颜力鋼). 1998. Chinese-English Dictionary of Modern Slang of China. 《漢英中國新俚語》. 香港:海峰出版社.
Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes.
Shi Zhengyu. 1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origens of Chinese Characters. Beijing: New World Press
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes, versão inglesa de Cary F. Baynes, Prefácio de C.G Jung, 4ª ed. London: Arkana Penguin Books.
張中鐸(編)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.
Zhuangzi (《庄子》). 1999. Vol. I e II Tradução para Inglês de Wang Rongpei (汪榕培) e para Chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. (秦旭卿、孙雍长) .Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press

27 Abr 2023

Eurásia, o universo do Pacífico e os anglófonos: do passado ao presente

I. Notícias falsas e visões tendenciosas na história e nos textos modernos

Os historiadores escrevem sobre a História. A comunicação social apresenta-nos os acontecimentos recentes. Antigamente, os acontecimentos não eram registados pela imprensa. Nessa altura, a informação circulava oralmente, ou através de manuscritos, lidos por um reduzido número de pessoas que tinham aprendido a ler e a escrever.

Já não podemos avaliar a fiabilidade destes documentos, intencionalmente postos a circular por pessoas influentes e por organizações governamentais, portanto não sabemos até que ponto são fiéis à “verdade”. O trabalho dos historiadores depende destes documentos e das “fontes” que neles se baseiam. Analisam os documentos e, por vezes, percebem que existe alguma coisa de errado, porque os factos não correspondem, ou porque faltam informações importantes, ou porque são exacerbadas ou distorcidas.

Por regra, os historiadores querem descobrir o que aconteceu no passado. No entanto e, não raras vezes, são desonestos; mentem, intencionalmente ou involuntariamente. Em casos extremos, estão em causa fontes “primárias” totalmente questionáveis – e obras “secundárias” duvidosas e mesmo interpretações defeituosas de pesquisas anteriores. Pior ainda, ´por vezes, académicos “informados” alegam produzir relatos credenciados que resumem pesquisas anteriores, a partir de uma visão generalista. Publicações deste género podem aparecer em periódicos de renome, ou sob a forma de livros importantes distribuídos por editoras de prestígio, em suporte digital ou em papel.

Se o universo académico ou grandes audiências considerarem que os autores destas obras são famosos nas suas áreas de investigação, então existem boas hipóteses de visões falsas e tendenciosas passarem a ser factos aceites. Este é um dos principais aspectos da arte de “lavagem cerebral”.

Aqui chegados, podemos colocar uma questão interessante: Irão as coisas de mal a pior? O coeficiente “matemático” entre informação errada e falsa e informação correcta e verdadeira muda de um período para o período seguinte?

Será que o peso e a percentagem da parte falsa está a crescer? A impressão geral é que, sim, está a crescer. Este parece especialmente ser o caso dos “media” modernos. Existem várias explicações possíveis para essa suposição.:

Estamos a entrar, ou já entrámos mesmo, numa nova era caracterizada pela concorrência implacável entre nações e alianças políticas – uma era de encontros pouco amigáveis ou mesmo hostis. Quando tentamos entender a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, bem como outros conflitos, torna-se praticamente impossível confiar na informação que nos chega diariamente através dos “media” que lideram este sector a nível global. As imagens que nos apresentam são unilaterais. Muito daquilo que nos dizem constantemente não passa de propaganda. O mesmo se aplica ao sector financeiro, ao comércio internacional e a outros fenómenos. Mentir implica desacreditar alguém ou alguma coisa. Há mentiras por todo o lado e dados imprecisos em toda a parte.

Sendo assim, então em quem podemos confiar, se quisermos compreender os acontecimentos que ocorrem à nossa volta? Infelizmente, parece haver muito poucas coisas dignas de confiança. Os factos essenciais permanecem obscuros. O papel dos decisores e as suas intenções não são claros. Há camuflagem, contra-camuflagem, há teorias sobre quem se opõe a quem, sobre redes, planos secretos, truques, estratégias, atividades secretas, et cetera et cetera.

Os seres humanos, assim parece, entraram numa era de mentiras. É certo, que os Governos do passado e os seus dirigentes sempre mentiram, mas possivelmente a situação nunca terá sido tão má como agora. De facto, faz parte da cultura actual embrulhar elementos falsos em papéis coloridos para que possam ser bem vendidos.

Aqui poderíamos continuar a discutir o papel extraordinário das avaliações feitas pelos pares, os rankings, os chamados grupos de reflexão, as teorias, os sistemas de valores, etc. Fingem ser “objectivos”, ou, em alternativa, dizem-nos umas coisas sobre o caminho “certo” e sobre a “exatidão” das coisas. Ao fazê-lo, mostram uma característica comum: Distorcem a verdade de uma maneira ou de outra, involuntária ou deliberadamente.

No entanto, e muito estranhamente, os seres humanos continuam a inventar novos mecanismos e métodos para melhorar o grau de “objectividade”, esperando vir a distinguir as suposições falsas das verdadeiras, ou insistem abertamente num determinado método e ponto de vista, dizendo aos outros que o seu sistema é o melhor e como se deve agir para difundir as ideias que importam. Este tipo de honestidade é “lucrativa”: Há sempre multidões que se deixam levar pela propaganda.

De facto, os homens não se apercebem de um perigo bem simples: Quanto mais acreditam na propaganda, ou na chamada “verdade” e na capacidade de superar notícias falsas, quanto mais se afundam num universo de visões tendenciosas e de mentiras. Afinal de contas, não existe “objectividade” total; a questão do bem e do mal está sempre ligada a algum tipo de medida exterior. É certo que se trata de um problema filosófico. Aqueles, que insistem em compreender as coisas, e que estão convencidos de que seguem o caminho certo, são muitas vezes apanhados num estranho dilema: querem compreender a verdade das coisas, mas enganam-se a si próprios.

Existe alguma maneira de escapar à unilateralidade das notícias, das ondas de propaganda intermináveis e do carácter falso dos dados que consumimos? Nem por isso, mas talvez exista uma forma de, pelo menos, tentar evitar algumas das armadilhas escondidas no fluxo diário de informações falsas. Como foi mencionado, as interpretações actuais das turbulências políticas que nos rodeiam parecem basear-se numa mistura de factos exacerbados ou de factos desvalorizados.

Às vezes, quando consideramos tendências de longo prazo, por exemplo, os chamados elementos de longue durée, podemos ver através da actual selva de notícias políticas e das discussões em curso, e também podemos decifrar as possíveis intenções escondidas por trás de certas coisas que inundam os noticiários.

É claro que se pode dizer, que usar os elementos longue durée para entender o que está a acontecer, é mais uma forma de nos enganarmos a nós próprios, especialmente porque a definição destes elementos depende da percepção selectiva do passado, por exemplo, depende de algo que não podemos classificar como objectivo. No entanto, também podemos considerar o uso de elementos de longue durée como uma espécie de “contra-programa” – ou, uma simples achega que pode polo menos ajudar-nos a estabelecer uma segunda, e talvez diferente, opinião acerca dos assuntos acuais.

Um outro passo que pode ser útil em tais situações é o recurso à história “contra-factual”. Podemos fazer uma pergunta simples: O que teria ocorrido, se um ou outro evento não tivesse ocorrido, ou tivesse tomado um caminho diferente? Se virmos a história como uma cadeia complexa de eventos conectados entre si de várias maneiras, então ao colocarmos a questão “e se”, podemos de repente perceber que um determinado elemento numa longa sequência de actividades humanas foi muito importante, uma vez que constituiu a base de desenvolvimentos futuros – ou, em alternativa, que apenas desempenhou um papel de pouca importância.

Além disso, ao dissecar o passado, podemos ter uma palavra a dizer sobre o futuro. Existe uma razão muito simples para esta suposição: Geralmente, os fenómenos long durée não desaparecem de repente; podem manifestar-se num novo formato, agora e no futuro. Assim, ao tentar identificar fenómenos-chave do passado e ao perguntarmos “e se”, podemos evitar entrar no labirinto das notícias falsas.

II. Da Europa de Leste à Ásia Central: alteração de fronteiras e o papel da Grã-Bretanha

Comecemos pela Europa de Leste. Durante muitos séculos, senão milénios, as estepes intermináveis, as planícies e as zonas florestais que se estendiam desde o norte da Alemanha através da Polónia, Bielorrússia, Ucrânia, Rússia e por zonas da Ásia Central até à Mongólia e Vladivostok foram alvo de agitação política. Facções políticas subiam ao poder e eram destituídas numa rápida sucessão, as fronteiras entre as diferentes entidades políticas nunca foram estáveis.

A União Soviética durou cerca de setenta anos e depois desmoronou-se. Os habitantes da Estónia e da Letónia têm dependido geralmente de outros povos, apenas por poucas décadas desfrutaram de “independência”. A Polónia-Lituânia chegou a controlar uma enorme área que compreendia grande parte da Bielorrússia e da Ucrânia, estendendo-se a Sul até ao Mar Negro. Posteriormente, a Polónia foi dividida e desapareceu como Estado independente; depois voltou a erguer-se. A Bielorrússia, com o seu traçado actual, era um fenómeno raro.

As diferentes políticas da Ásia Central têm uma história igualmente “confusa”. Além disso, embora toda a região tenha registado crescimento económico, especialmente após o fim da Guerra Fria, podemos identificar muitos “pontos problemáticos”. O conflito fronteiriço entre o Quirguizistão e o Tajiquistão é disso um exemplo. Os problemas étnicos na parte ocidental do Usbequistão causam também muita preocupação.

Fontes históricas e arqueológicas dizem-nos que existiram ondas migratórias de um lado para o outro ao longo destes territórios. Entre as obras escritas, os anais dinásticos chineses são bastante importantes. Nestas obras, a Ásia Central e a Ásia Ocidental são designadas pelo nome de Xiyu 西域, ou “Regiões Ocidentais”. Claro que também existem muitas fontes escritas noutras línguas. No seu conjunto, estes textos fornecem imagens vívidas dos desenvolvimentos políticos e culturais na vasta região para lá da moderna Xinjiang.

Mas voltemos à nossa época. Já nos anos 70 do séc. XX, académicos perspicazes pensavam que um dia a União Soviética desapareceria como tal e que as fronteiras iam mudar. Tinham razão. Após a consolidação do poder em Moscovo, em Minsk e Kiev, tornou-se claro que os três, mais cedo ou mais tarde, tentariam formar uma nova união, ou, em alternativa, entrar em conflito. Sem dúvida, a rápida sucessão de políticas e a rápida mudança das fronteiras são elementos recorrentes na História da Europa de Leste. A Suécia, a Prússia, a Áustria-Hungria, a Polónia, o Império Otomano, e outros “protagonistas” estiveram frequentemente envolvidos nesse processo. Hoje em dia, assim parece, somos confrontados com mais uma variação do mesmo. A História repete-se, mas não podemos realmente prever os resultados precisos desse processo, nem num futuro próximo, nem a longo prazo.

Curiosamente, neste contexto, a comunicação social actual tende a ignorar dois aspectos: O foco está na guerra na Ucrânia. Raramente são tentados a levantar a questão sobre o que é provável que venha a acontecer na Bielorrússia, digamos, depois de Lukashenko. Irá a Rússia avançar? Será que um novo Governo manterá o actual rumo político?

Haverá uma revolução e um grande conflito interno? Como é que a Polónia vai reagir? Bruxelas não está satisfeita com algumas das características administrativas e estruturais do Estado polaco. Alguns órgãos de comunicação dizem-nos que o actual Governo da Polónia é muito nacionalista. A Polónia também anunciou que planeia expandir a sua força militar. Irá intervir na Bielorrússia e/ou na Ucrânia, se se tornar necessário? Quais seriam as consequências de tal medida para a UE e para a NATO? Será que isso agradaria à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos?

Aqui entramos no domínio do “e se”. Poderíamos continuar a especular, por exemplo, sobre os Balcãs. Mas esse é um cenário muito complexo, e conduziria a debates intermináveis. Basta dizer que a segmentação política desta parte da Europa num conjunto de pequenos países complicou a situação desta zona enormemente e que a instabilidade regional pode vir a ocorrer num novo formato.

A segmentação destas e de outras zonas foi um dos resultados da Primeira Guerra Mundial. Serviu interesses britânicos e não só. Anteriormente, a Grã-Bretanha tinha confrontado a Rússia na Guerra da Crimeia: navios e tropas britânicas entraram em acção na região do Mar Negro e ao longo de algumas costas do norte da Europa. As tropas britânicas chegaram a integrar as forças que atacaram o principal colonato russo na península de Kamchatka, o que, no entanto, não foi bem-sucedido. Tudo isto aconteceu na década de 50 do séc. XIX.

Nessa altura, a Grã-Bretanha era a potência imperial mais agressiva. Planeava expandir-se até ao Sul da Ásia, ao Próximo Oriente, e a outros territórios. Assim, do ponto de vista de Londres, tornou-se necessário impedir que a Rússia tivesse mais possessões no Extremo Oriente, que se tornasse activa no Norte do Pacífico e que se expandisse através da Ásia Central em direcção ao actual Afeganistão e à Índia. Para atingir estes objectivos, a Grã-Bretanha adoptou uma espécie de política divide et impera, o que pode ajudar a explicar porque é que, no início do séc. XX, optou por dividir o universo turco, e porque é que defendia a redução do território russo.

Actualmente, a Grã-Bretanha, como parceiro júnior dos Estados Unidos, voltou a ter um forte discurso anti-Rússia. Ao que parece, as velhas atitudes não desapareceram. Claramente, a Grã-Bretanha já não tem poder para intervir militarmente, mas sentimo-nos tentados a argumentar que anseia a desintegração do império de Putin, na sequência das antigas políticas de Londres.

III. O Pacífico e os anglófonos

Agora voltemo-nos para o Extremo Oriente. A expansão dos Estados Unidos no Pacífico começou no século XIX. A cruel anexação do Havai, a aquisição do Alasca, a abertura forçada do Japão e os esforços bem-sucedidos de Washington para direccionar a atenção dos japoneses para a Coreia e para outras regiões próximas – tudo isso serviu, pelo menos, em parte, para construir um contrapeso à expansão da Rússia.

Naquela época, os Estados Unidos eram os parceiros juniores da Grã-Bretanha. Posições religiosas radicais, a crença na sua própria superioridade e a ideia de “destino manifesto” foram algumas das forças motrizes da expansão da América. Outro aspecto desse processo foi o racismo (que podemos comparar ao dos britânicos e ao seu comportamento). A diplomacia americana e as aventuras militares iam contra as populações indígenas. Também iam contra a esfera de influência hispânica. Enormes territórios ao Norte do que hoje é o México bem como as possessões de Espanha no Pacífico, incluindo as Filipinas, caíram nas mãos de Washington.

A ingerência de Washington também se manifestou na costa da China. Os americanos envolveram-se no negócio do ópio. Apoiaram a Grã-Bretanha em Hong Kong e estiveram intimamente envolvidos no chamado “tráfico de cules”. Milhares de migrantes chineses, tratados como escravos, eram enviados em navios através do Pacífico. Muitos morreram no caminho. Os sobreviventes tiveram de trabalhar na Califórnia e noutras regiões, onde eram continuamente explorados. Migrantes brancos, especialmente os descendentes dos que vieram das zonas “reformistas” do Noroeste europeu, tratavam os seus “colegas” chineses como seres inferiores.

Neste aspecto, Londres e Washington eram aliados. A Grã-Bretanha enviou milhares de chineses para as suas possessões do Sudeste Asiático e da África. Pode acrescentar-se, que as vítimas nunca receberam uma indemnização adequada. Os vencedores fazem o que querem, os vencedores escrevem a História à sua maneira.

Poderíamos encontrar alguns paralelismos com a nossa época, mas vamos continuar com o passado recente. A expansão americana através do Pacífico atingiu o seu clímax no século XX. A derrota do Japão levou a que as Ilhas Ryukyu, outrora um reino independente e um parceiro comercial pacífico da China, caíssem sob o controlo dos Estados Unidos. Na década de 50 do século passado, tropas americanas desembarcaram na península da Coreia. Esta foi a primeira grande intervenção americana no continente asiático. Seguiram-se o Vietname, algumas partes do Laos e do Camboja. No entanto, o Vietname tornou-se algo como um ponto de viragem na política americana no Pacífico.

Embora a força aérea dos EUA tenha lançado enormes quantidades de napalm e de bombas químicas, Washington perdeu esta guerra. Desde então, a sua “linha da frente do Pacífico” recuou, mas não para muito longe. A Coreia, Okinawa e outras zonas ainda fazem parte da cintura militar de Washington. Além disso, a ideia de “A América em primeiro lugar” está muito viva. Washington não integra algumas instituições das Nações Unidas, mas de tempos a tempos pressiona a ONU e insiste no princípio do “Excepcionalismo Americano”.

A duplicidade de critérios é mais um sintoma deste mal-estar: os líderes americanos pregam tolerância e democracia, mas as forças dos EUA intervêm, sempre que factores de ordem económica sugerem que a intervenção vai ser vantajosa para o capitalismo americano. Washington também apoiou vários Governos não democráticos e indivíduos duvidosos em todo o mundo. Parece que Washington aprendeu com Londres a manipular as coisas.

As superpotências não podem correr o risco de se retirar dos territórios conquistados. Não podem abrir mão da sua posição financeira, nem de outras posições. Se o fizerem, os outros podem vê-lo como um sinal de fraqueza. Washington sabe disso e mantem a sua dureza. No entanto, alguns especialistas continuam a dizer-nos que podemos estar muito perto de um acentuado movimento descendente do poder norte-americano, mas é claro que se deve ter cuidado com tais avaliações. Seguindo o exemplo britânico, os Estados Unidos investiram fortemente na construção de escolas, igrejas e de outras instituições culturais para lá das suas fronteiras. O uso alargado da língua inglesa cria ilusões nas mentes de muitos não-americanos, especialmente nalgumas partes da orla asiática do Pacífico, mas também entre as elites do Sul da Ásia. A classificação das instituições e os processos de avaliação servem como ferramenta adicional para realçar a “superioridade” cultural anglo-americana e a “exactidão” dos seus padrões. O império da mentira tem muitas facetas…

Para fortalecer a posição dos anglófonos, Washington promoveu o aparecimento de novas alianças, como a liga AUKUS. Esta parte da história está muito presente nos meios de comunicação modernos e dispensa mais comentários. Basta dizer que o sistema AUKUS não é uma parceria entre iguais. É um dos muitos instrumentos inventados por uma superpotência para defender a sua posição. Por outras palavras, a Austrália foi uma colónia britânica. Psicologicamente, pode agora transformar-se num satélite dos EUA.

Não há dúvida que o processo de pacificação global está em risco, talvez chegue ao fim num futuro fácil de prever. Actualmente, estamos a assistir à possível globalização das acções militares e, claro está, das notícias falsas e das mentiras. A globalização destas últimas funciona, pelo menos em parte, como um substituto dos confrontos militares. Este movimento acompanha o terror electrónico. Um aspecto destes tristes desenvolvimentos diz respeito à relação entre os Estados Unidos e a Rússia, após a desintegração da União Soviética.

Dito isto, podemos brevemente regressar à região da Eurásia. Inicialmente, o chamado “Ocidente” alimentou esperanças de que a Rússia se viesse a tornar uma democracia e que se juntasse à sua esfera de influência. Simultaneamente, vários pequenos países da Europa Oriental tornaram-se membros da NATO. Durante o período da Guerra Fria, a NATO era diferente do que é hoje em dia. Agora, transformou-se numa das muitas alianças, ou melhor, instrumentos, que servem principalmente as necessidades de Washington.

Claramente, dada a longa História da Rússia e as diferentes expectativas, Moscovo teve de reagir. De acordo com certa opinião, Washington sabia perfeitamente que a Rússia não iria apreciar as propostas sugeridas pela Casa Branca e que não estaria disposta a subordinar-se às suas regras e regulamentos (como muitos outros países, que têm as suas próprias tradições e não estão propriamente desejosos de aceitar a duplicidade de critérios associados à missão civilizacional de estilo britânico e americano).

No entanto, os actuais meios de comunicação “ocidentais” não partilham desta opinião; encaram-na como uma fabricação dos rivais dos americanos. Aparentemente, muitos destes media “esclarecidos” estão alinhados com as expectativas americanas. Na verdade, actualmente, muitos dos jornais europeus, que antigamente davam voz a diferentes opiniões, aderiram aos pontos de vista postos a circular pelos anglófilos.

Aqui podemos acrescentar uma última nota de rodapé, não totalmente fora de contexto. O chamado Brexit foi uma jogada inteligente. A Grã-Bretanha pode sofrer a nível económico mas, a nível diplomático, já não precisa de aceitar soluções de compromisso. Pode opor-se abertamente à Rússia, à China e a outros países que objectivamente se encontram entre os seus rivais. Podemos ir ainda mais longe: retrospectivamente, o Brexit parece ter servido para apoiar a hegemonia americana. Coincidência ou um plano bem arquitectado? Seja como for, Washington apreciou certamente a decisão do seu antigo professor. A Grã-Bretanha sublinhou a sua posição anti-continental. Pôde voltar a sonhar com os velhos tempos em que era uma grande potência no Mediterrâneo, nas Caraíbas, no Oceano Índico, no Sudeste Asiático e ao longo da costa da China. A História, como podemos ver, repete-se com um formato diferente.

(continua)

26 Abr 2023

Analectos – as conversas de Confúcio

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO IV

里仁 – (Li Ren)

ESCOLHER A BENEVOLÊNCIA

4.1. O Mestre disse: “Ao fixar residência num local, a maior atracção deverá ser a presença de pessoas benevolentes. Como se pode chamar sábio a alguém que, tendo essa escolha, não faz questão de habitar entre pessoas benevolentes?”58
4.2. O Mestre disse: “Quem não é benevolente é incapaz de suportar as adversidades, nem a própria felicidade, por muito tempo. As pessoas benevolentes contentam-se em ser benevolentes: assim lucra o sábio.”59
4.3. O Mestre disse: “Só a pessoa benevolente – e apenas ela – sabe amar e sabe odiar.”60
4.4. O Mestre disse: “Se os objectivos de alguém forem baseados numa conduta benevolente, não incorrerá em erro.”

4.5. O Mestre disse: “Riqueza e honra são o que as pessoas desejam, mas se forem uma consequência de desvios da Via, não quero parte nelas. A pobreza e a desgraça são o que as pessoas deploram, mas se forem consequência de seguir a Via, não as evitarei. De onde obteriam o seu nome as pessoas exemplares (君子 junzi) se abandonassem a benevolência? As pessoas exemplares não a deixam de lado nem pela duração de uma refeição. Quaisquer que sejam as suas preocupações ou dificuldades, nunca deixam de agir de forma benevolente.”61

4.6. O Mestre disse: “Ainda não conheci ninguém que verdadeiramente ame a conduta benevolente e verdadeiramente deteste qualquer comportamento que se lhe oponha. Quem ama a benevolência, nada considera superior. A quem horrorizam os comportamentos contrários à benevolência, jamais permitirá que tal conduta desumana contamine a sua prática do bem. Haverá alguém capaz de se dedicar, pelo espaço de um só dia, a aplicar uma conduta benevolente? Eu, por exemplo, nunca conheci alguém sem força para o fazer! Quanto aos que não têm força para tal, suponho que existam tais pessoas – eu, por exemplo, também ainda não as conheci!”62
4.7. O Mestre disse: “Os erros das pessoas diferem de grupo para grupo. Através da observação destes erros, poder-se-á compreender a benevolência.”63
4.8. O Mestre disse: “Tendo pela manhã conhecido a Via, poderei morrer à noite.”64
4.9. O Mestre disse: “Os letrados (士shi) que, tendo estabelecido o objectivo de percorrer a Via, se envergonham das roupas e das comidas simples, não merecem que se lhes dirija a palavra.”
4.10. O Mestre disse: “As pessoas exemplares, caminhando pelo mundo, não são nem a favor nem contra nada, outrossim seguem o que é justo (義 yi).”
4.11. O Mestre disse: “As pessoas exemplares prezam a sua excelência; as pessoas menores prezam as suas terras. As pessoas exemplares prezam a justiça; as pessoas menores prezam o pensamento do lucro.”
4.12. O Mestre disse: “Agir com vista a ganho pessoal conduzirá a muito ressentimento.”
4.13. 子曰:「能以禮讓為國乎?何有?不能以禮讓為國,如禮何?」
4.13. O Mestre disse: “Se o soberano for capaz de ordenar o Estado através dos ritos e da deferência para com os outros, que mais será preciso? Mas, se não for capaz disto, de que servirá cumprir os ritos?”65
4.14. O Mestre disse: “Não te preocupes em não ter uma posição oficial, preocupa-te em ter as qualidades necessárias para a obter. Não te preocupes se ninguém te conhece, esforça-te para te tornares numa pessoa digna de ser conhecida.”
4.15. O Mestre disse: “Sheng, meu amigo! A minha Via é, do princípio ao fim, ligada por um único fio (貫guan).” Mestre Zeng replicou: “Assim é.” Quando o Mestre partiu, os discípulos perguntaram: “A que se referia ele?” E Mestre Zeng respondeu: “A via do nosso Mestre consiste unicamente em lealdade (忠zhong) e indulgência (恕shu).”66
4.16. O Mestre disse: “A pessoa exemplar compreendem aquilo que é justo; a pessoa menor compreende aquilo que lhes traz lucros.”
4.17. O Mestre disse: “Quando encontras pessoas de carácter excepcional deves tentar caminhar a seu lado; ao encontrar pessoas de baixo carácter, deves olhar para dentro e examinar-te.”67
4.18. O Mestre disse: “Ao servirem vossos pais e mães, falem gentilmente. Ao verem que não seguem as vossas sugestões, permaneçam em respeito e nada façam em contrário. Por mais que eles estejam errados, não exprimam qualquer ressentimento.”
4.19. O Mestre disse: “Enquanto o vosso pai e mãe viverem, evitem as viagens longínquas e, se o fizerem, assegurem-se de que o vosso destino é conhecido.”
4.20. O Mestre disse: “Uma pessoa que, por três anos, se abstém de alterar os modos de seu pai pode ser chamado filial.”
4.21. O Mestre disse: “Os filhos devem saber a idade do seu pai e sua mãe. Por um lado, trata-se de uma fonte de alegria, por outro de inquietude.” 68
4.22. O Mestre disse: “Os antigos detestavam falar por vergonha de não poderem pessoalmente honrar a sua palavra.”69
4.23. O Mestre disse: “É deveras muito raro que alguém cometa erros se mantiver sempre o controlo de si .”
4.24. O Mestre disse: “A pessoa exemplar deseja ser lenta a falar e rápida a agir.”70
4.25. O Mestre disse: “As pessoas virtuosas (德 de) não vivem sós: têm sempre vizinhos.”
26. Ziyou disse: “Se, no serviço do teu senhor, fores zeloso em demasia atrairás a desgraça; se, na tua amizade, fores zeloso em demasia serás ostracizado.”71

Notas
58. Encontrámos duas interpretações para esta passagem. A primeira em Xunzi: “ A raiz da planta lan huai cheira a doce angélica, mas se a mergulhares em água fedorenta nem a pessoa exemplar se acercará dela, nem o vulgo a usará. Isto não acontece pela falta de fragrância do material original, mas por causa daquilo em que se encontra mergulhado. Como tal, a pessoa exemplar assegura-se de escolher cuidadosamente a povoação em que habita, assegurando-se também de que se associa a homens bem-criados ao viajar. Deste modo, evita a corrupção e se acerca do que é correcto.” A segunda em Mêncio, que explicitamente comenta esta passagem dos Analectos: “Será o fabricante de flechas menos benevolente do que o fabricante de armaduras? E, no entanto, o único medo do fabricante de flechas é que os homens não sejam feridos pelas suas flechas, e o único medo do fabricante de armaduras é que os homens não sejam protegidos pelas suas armaduras. (…) A escolha de uma profissão, portanto, é uma coisa em que é necessário ter muita cautela. A benevolência é a dignidade mais honrosa conferida pelo Céu e o lar tranquilo em que o homem se deve sentir bem. Uma vez que ninguém nos pode impedir de o ser, se ainda não somos benevolentes – isto não é ser sábio. Da falta de benevolência e da falta de sabedoria resultará toda a ausência de correcção e rectidão”. Embora aqui o “lugar de residência” seja a esfera de actividade, a ideia geral é semelhante: é preciso ter cuidado ao escolher o seu ambiente.
59. Kong Anguo comenta: “Alguns não podem permanecer constantes na adversidade porque a adversidade constante os motiva a fazer o mal, e não podem gozar de felicidade duradoura porque caem inevitavelmente na arrogância e preguiça”. A sentença de Confúcio parece querer dizer que a pessoa benevolente, tanto na adversidade como na felicidade, tem a sabedoria de se manter benevolente, ou seja, não se deixa tomar pela maldade nem pela indulgência, mantendo sempre um equilíbrio. Há um certo estoicismo nesta ideia que nos remete, por exemplo, para Marco Aurélio, quando afirma que deve a sua mãe “a piedade, a liberalidade, o hábito de me abster não apenas de fazer mal, mas de me ater a um mau pensamento. E ainda: a simplicidade de um regime de vida e a aversão pelo tipo de existência que levam os ricos” (Marco Aurélio, I.2).
60. A benevolência não é um “amor incondicional”, também porque na sua vertente de “humanidade” terá sempre de ter em conta o bem comum e não apenas o indivíduo. Por isso, a pessoa benevolente detesta o que ou quem é ou age contra a humanidade. Alguém que simplesmente tudo amasse seria certamente prejudicial e, de certo modo, egoísta pois, pelo seu amor, não teria em conta o mal que daí poderia advir contra os outros, ainda que para ele fosse suportável ou admissível se tomado por um amor a todos os seres e a todos os comportamentos. Como veremos, “a benevolência mata”.
Jiao Xun 焦循 (1763-1820) comenta: “A pessoa benevolente ama o que é realmente digno de admiração nos outros e odeia o que é genuinamente odiável neles. É por isso que se diz que uma tal pessoa é “capaz de amar outros e odiar os outros”. ” Apenas a pessoa benevolente é um juiz preciso e imparcial de carácter, capaz de amar a virtude nos outros sem inveja e odiar o vício nos outros sem malícia.”
61. Ser rico ou ser pobre, não implica ou impede uma conduta benevolente. A pessoa exemplar preocupa-se com o seu comportamento e a obtenção de riqueza não a deve fazer tergiversar. Do mesmo modo, se uma conduta benevolente, implicar cair na pobreza, uma pessoa exemplar não deve evitá-la. Xunzi vai mais longe: “Onde há benevolência não há pobreza ou dificuldades; onde falta a benevolência não há riqueza ou honra” (Xunzi, 23)
62. Zhu Xi comenta, sublinhando a importância da vontade:
“O Mestre admite que nunca viu alguém que verdadeiramente amasse a benevolência ou alguém que verdadeiramente odiasse o que não é benevolente. Parece que alguém que verdadeiramente amasse a benevolência apreciaria genuinamente o que é para ser verdadeiramente amado na benevolência e, assim, nada sob o céu punha à sua frente. Aquele que odiasse o que não é verdadeiramente benevolente genuinamente compreenderia o que é odioso no que não é verdadeiramente benevolente e, assim, ao sempre praticar a verdadeira benevolência seria capaz de se afastar do não é verdadeiramente benevolente, impedindo assim que sequer uma pequena quantidade alcançasse a sua própria pessoa. Ambos são assuntos de virtude perfeita e, por essa razão, difíceis de encontrar.
‘Haverá alguém capaz de se dedicar, pelo espaço de um só dia, a aplicar uma conduta benevolente? Eu, por exemplo, nunca conheci alguém sem força para o fazer!’
“Isto quer dizer que, enquanto aqueles que amam a verdadeira benevolência e odeiam o que não é verdadeiramente benevolente não podem ser encontrados, mesmo assim pode haver pessoas que são realmente capazes de se dedicar vigorosamente por um único dia ao verdadeiramente benevolente – porque ele próprio nunca viu uma pessoa cuja força não seja capaz de o fazer. Parece que fazer a verdadeira benevolência existe em cada um: deseja-a, e aí está ela, porque para onde a vontade vai o coração também vai [Mêncio 2A.2]. Assim, enquanto que é difícil ser verdadeiramente benevolente, chegar a este ponto é bastante fácil.
‘Quanto aos que não têm força para tal, suponho que existam tais pessoas – eu, por exemplo, também ainda não as conheci!’
“Suponho (蓋 gai)” expressa uma dúvida. “Existam tais pessoas” refere-se aos que a isso se devotam, mas cuja força não é capaz de o realizar. Na verdade, as capacidades do coração de cada pessoa variam. Por esta razão, ele suspeita que, de facto, podem ocasionalmente existir os que desejam seguir em frente, mas que, por confusão e fraqueza, não conseguem; e que apenas por acaso ele nunca conheceu tais pessoas. E parece que, embora não se atreva a considerar isso fácil, ao mesmo tempo que lamenta que as pessoas não estejam dispostas a dedicar-se à verdadeira benevolência.
“Aqui também se diz que embora a verdadeira benevolência, como virtude perfeita, é difícil para os homens, se um aprendiz for realmente capaz de se dedicar a ela, não existe razão para que não possa alcançá-la. Quanto aos que a ela se dedicam, mas não conseguem alcançá-la, nunca conheceu tais pessoas.”
63. Todos somos passíveis de errar, de exercer comportamentos reprováveis, aliás, é muito provável que erros sejam por todos nós cometidos. A frase de Confúcio parece querer dizer que os erros variam, mas não variam infinitamente e podem ser agrupados, quiçá atribuídos a um grupo, como se não se tratassem de erros individuais, mas decorrentes de uma pertença a um conjunto no qual se está inserido. Daí que se possa compreender melhor a benevolência, porque a análise de cada tipo de erro (e não serão assim tantos), dar-nos-á uma ideia do que os homens são capazes e compreender do que os homens são capazes ajudar-nos-á a escapar a esses erros e, portanto, exercer a benevolência. Kong Anguo comenta: “O facto das pessoas menores (xiaoren) não serem capazes de agir como pessoas exemplares (junzi) não é culpa delas, pelo que se deve ser compreensivo e não culpabilizá-las. Se observarmos os seus erros, podemos colocar tanto os dignitários como os tolos nos seus devidos lugares, e isto é o que significa ser benevolente”.
64. Apresentamos aqui a tradução mais literal possível. Contudo, os comentadores, com as suas explicações, complexificaram esta famosa frase, atribuindo-lhe diversos sentidos. Um deles é: “Tendo sabido pela manhã que a Via está a ser praticada, poderei morrer à noite sem remorsos”. Partindo desta leitura, Luan Zhao 欒肇 (act. 266– 285) comenta: “A Via é usada para salvar as pessoas. O sábio preserva-se para pôr a Via em prática. O objectivo é salvar as pessoas com a Via e não salvar-se a si mesmo com a Via. É por isso que lemos que se a Via fosse genuinamente ouvida pelo mundo de manhã, mesmo que se morresse nessa noite, estaria tudo bem. [Confúcio] sente-se magoado pela Via não estar a ser posta em prática, e além disso, deixa claro que está mais preocupado com o mundo do que com ele próprio.
Já para Zhu Xi a leitura deveria ser a seguinte: “Tendo pela manhã aprendido a Via, poderei morrer à noite sem remorsos.” E comenta: “Se alguém for capaz de ouvir a Via, a sua vida fluirá fácil e a sua morte chegará pacificamente, e não sentirá remorsos”.
65. No Comentário de Zuo é dito: “A deferência governa os ritos. (…) Numa época ordenada, a pessoa exemplar estima o talento e é deferente com os seus inferiores, enquanto as pessoas comuns cuidam dos trabalhos agrícolas para servir os seus superiores. Desta forma, o ritual prevalece, tanto em cima como em baixo; caluniadores e mal-intencionados são ostracizados e não há conflitos. A isto chama-se uma virtude excelente. Quando uma época declina em desordem, os senhores pavoneiam as suas realizações a fim de dominar o povo comum e as pessoas comuns gabam-se das suas aptidões a fim de usurparem os senhores. Assim, tanto os de cima como os de baixo, não cumprem a propriedade ritual, originando simultaneamente desordem e crueldade, porque surgem conflitos a propósito do que é bom. A isto chama-se virtude obscurecida. É um princípio constante que, desta situação, resulta inevitavelmente o colapso dos reinos.” (Duque Xiang, Ano XIII) Zhu Xi comenta: “A deferência é a substância do ritual. Esta passagem diz que se a própria substância do ritual for utilizada para governar o estado, então como poderá haver qualquer dificuldade? Mas se não for, então, embora o ritual possa ser ornamentalmente perfeito, de que serve para governar o estado?” Na governação, distingue-se entre a forma do ritual e a sua substância, a deferência (讓rang). Portanto, se o governante não for deferente para com os governados, qualquer ritual perderá a sua eficácia. Para Confúcio, ritualmente, ou seja, no seu comportamento, pois este é explanado no ritual, o governante terá de ser condescendente e ouvir os outros, as suas queixas e exigências, mostrando assim que lhes tem respeito. Não basta percorrer formalmente apenas os vários passos dos rituais, é preciso fazê-lo imbuído do seu espírito (substância), isto é, a deferência implícita nas suas regras. Se o Mestre insiste continuamente na relação entre governo e ritual, também percebe perfeitamente que o segundo não poderá ser algo destituído de autenticidade (誠 cheng), um mero teatro do poder, sem um conteúdo real e sincero, originário de um coração rectificado e íntegro. Só assim poderá estabelecer uma relação eficaz entre governante e governados.
66. Sheng é o nome próprio de Mestre Zeng (Zengzi). Lealdade (忠 zhong) e indulgência (恕 shu) aqui significam “exigência em relação a si mesmo” e “indulgência em relação aos outros”. O caracter zhong é composto de um “meio” (中 zhong) sobre um “coração” (心) e, por isso, remete para própria rectificação de si mesmo e para a prática do meio (中庸 zhongyong), ou seja, um comportamento justo e constante, uma procura incessante do equilíbrio nas suas acções e pensamentos, como um funâmbulo, nas palavras de Anne Cheng, que procura equilibrar-se e avançar no arame da rectidão. Este equilíbrio só existe num movimento em relação aos outros: é aqui que surge a necessidade de indulgência. Mais à frente (XV,24), Confúcio explica que shu se desdobra na famosa regra de ouro: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Esta palavra poderia igualmente ser traduzida por “consideração”, “compaixão” ou “compreensão”. Os comentadores sujeitaram a palavra 忠 zhong a diversas leituras. Wang Bi 王弼 (226-249), por exemplo, define zhong como “esgotar totalmente as próprias emoções”. Zhu Xi pertence a esta linha de pensamento que define zhong como “esgotar-se” ou “fazer o máximo”. Outros entendem que zhong envolve uma espécie de atenção aos deveres rituais de cada um, particularmente como subordinado político. Entendido desta forma, ser “leal” (忠 zhong) envolve o cumprimento dos deveres e obrigações próprios de um papel ritualmente definido. Esta virtude deve ser temperada pela virtude da “indulgência” (恕 shu): a capacidade de se colocar imaginariamente no lugar de outro. Resta saber, no caso de zhong, a quem ou a quê se deve lealdade pois poderá implicar opor-se a um governante que exerça o poder de forma imprópria, na medida em que a lealdade é devida a uma ideia e a uma prática e não a uma pessoa.
67. Ou seja, imitar as virtudes e evitar os vícios observados nos outros. A ênfase aqui é na acção: não só ver as qualidades dos outros, mas também usar esta percepção como uma oportunidade de auto-aperfeiçoamento. Como Jiao Yuanxi 焦袁熹 (1660-1725) explica, “O olhar mencionado nesta passagem refere-se àquilo que qualquer pessoa pode facilmente perceber… a dificuldade reside inteiramente em começar realmente a fazer algo a esse respeito. A intenção do Sábio ao estabelecer este ensino não era meramente criticar as pessoas por não terem um conhecimento verdadeiro, mas antes repreendê-las por falta de sinceridade de compromisso ou coragem para pôr em prática a sua vontade”.
68. De 4.18 a 4.21, trata-se de sentenças sobre a piedade filial em que se prescreve, entre outros aspectos, que o dever para com os seus pais ultrapassa qualquer outro e a tudo se sobrepõe.
69. Wang Yangming 王阳明 (1472-1529) comenta: “Os antigos valorizavam a acção e eram, portanto, tímidos com as suas palavras. Não se atreviam a falar de ânimo leve. Hoje em dia, as pessoas valorizam as palavras e, por isso, falam alto e tagarelam sem sentido à mais leve instigação”.
70. Wang Fuzhi 王夫之 (1619-1692) comenta: “Em relação às falhas que podem afligir o aluno, nenhuma é mais preocupante do que o descuido, e poucas tarefas são iniciadas ou completadas por aqueles que são casuais no seu comportamento. O descuido revela-se em linguagem que corre como água, que é tagarelado em todo o lado sem que se repare no que se diz. Comprovação de excesso de casualidade é encontrado no próprio comportamento – em comportamentos excessivamente avançados ou excessivamente retirado, que é errático e desrespeitoso, que é tímido e cobarde sem sequer um a realizá-lo. Só esta falta de propensão para ser lento a falar e rápido a agir é que impede a ambição estabelecida da pessoa exemplar de florescer.”
71. Não deverás, portanto, estar sempre a chamar atenção para as faltas e os erros, quer do teu superior, quer dos teus amigos. Algo que pode ser a tentação de um seguidor de Confúcio. De acordo com os pontos anteriores, é mais importante agir do que falar.

24 Abr 2023

Luo Qilan, a vida e a arte nos aposentos interiores

Cao Zhenxiu (1762-c.1822) recordou de modo admirável num conjunto de dezasseis poemas, que coligiu com a sua elegante caligrafia num álbum, acompanhados de pinturas de Gai Qi (tinta sobre papel, 24,8 x 16,8 cm, no Metmuseum), exemplos de mulheres inspiradoras.

Num desses poemas ela lembrou a extraordinária calígrafa Wu Cailuan (activa em 830-845) que cuidadosamente executou cópias do famoso Dicionário de Rimas, e cujo deslumbrante talento só poderia ser explicado pelo facto de ela ser uma imortal exilada na terra para ajudar um jovem estudante pobre, com quem partiria para um mundo frio onde passariam a habitar no orvalho.

O exemplo de Wu Cailuan era singularmente adequado ao tempo em que Cao Zhenxiu viveu e em que nos aposentos interiores dos palácios outras mulheres se descobriam, apesar das contrariedades do mundo dominado por homens, parte de uma insigne tradição. Uma dessas mulheres iluminadas pela arte no interior do gineceu descreveria com precisão esses obstáculos. Luo Qilan (1755-1813?), a poeta e pintora de Jiangnan, interrogou-se:

«Por que é assim? Escondidas nos seus aposentos, são muito poucas as pessoas que elas vêem e escutam. Não têm amigos com quem falar ou estudar para desenvolver os seus conhecimentos. Nem têm oportunidade de explorar as montanhas e os rios para observar a paisagem e assim inspirar o seu talento literário e virtuosidade. Sem um pai valoroso ou irmãos que as ajudem a encontrar as origens e a distinguir o verdadeiro do falso, elas não conseguem cumprir a sua vocação na vida. Depois de casadas, o tempo gasto em cuidar dos pais do marido e a tratar das insignificantes questões da lida da casa, deixam-nas tantas vezes sem oportunidades de escrever poesias.»

Luo Qilan, também conhecida pelo nome literário Qiu Ting (Um pavilhão no Outono», iria contrariar esse fado, tal como as carpas nadando contra a corrente até saltar a Porta de Jade e alcançando a promessa do Imperador de Jade, tornando-se ela mesma assinalável no seu mistério, como um dragão.

Viúva quando tinha cerca de trinta anos, editou em 1797 a antologia Tingqiuxuan guizhongtongren ji (Poemas para o Estúdio onde se escutam os sons do Outono das minhas companheiras nos aposentos das mulheres), que recolhe poemas de dezassete autoras. Cinco pinturas como Peónia lactifora (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 87, 5 x 39 cm) e um álbum feitos por ela estão no Museu do Palácio, em Pequim. Entre os retratos dela, feitos por quem a conheceu, nota-se o rolo horizontal de Ding Yicheng, Olhando o monte Ping na Primavera, onde ela está de pé, solícita ao gesto de uma jovem à sua frente, a mão direita pousada numa grande rocha de literatos, ela observa para ser vista:

«Não é fácil que os talentos
dos aposentos interiores sejam conhecidos,
Jogar com a tinta à luz das velas
é diversão suficiente.»

24 Abr 2023

Monções e instrumentos de navegação (XII)

A armada de Zheng He, ao atravessar os oceanos com a ajuda dos ventos das monções, conjugava Astronomia e o uso da bússola marítima combinando-as com as cartas de navegação aprimoradas ao longo das viagens. Deste modo conseguia-se definir com rigor a posição das embarcações e as direcções a seguir, e evitar os naturais obstáculos dos percursos.

Os mapas e cartas utilizados por Zheng He partiam de Nanjing e registavam também a Geografia Física de 56 rotas distintas, com instruções sobre profundidade das águas, correntes, localização de bancos de areia, penedos e ilhas recifes e a linha de costa desenhada com povoações, portos, rios e silhuetas das montanhas, paisagens reconhecidas em milénios de visualizações. Assim, com céu limpo ou em nevoeiro se conseguia ter o posicionamento dos barcos através das cartas náuticas e a ajuda da bússola marítima ligada a uma esfera armilar com o mapa do Céu a ser movido por um relógio de água. No entendimento das correntes e dos ventos sazonais específicos a cada zona dos mares e oceanos encontrava-se as melhores rotas marítimas para circular em cada época do ano.

Os ventos sazonais no hemisfério Norte, durante a monção de Verão sopram de Sudoeste entre Abril e Outubro, a permitir navegar desde os países do Sudeste Asiático para o subcontinente indiano, levando no Mar Arábico os barcos para Leste e no Mar Vermelho, para Sul.

Para se apanhar esses ventos da monção, partia-se da China nos finais de Outubro e navegando no Pacífico para Sul, chegava-se em cinco, seis semanas ao Sudeste Asiático, mais propriamente a Sumatra (actual Indonésia), quando aí terminava a monção, ou a Malaca (Tailândia), onde as duas monções se encontram. Nos portos do Estreito de Malaca esperava-se a Primavera para retomar a navegação para Oeste. Já na monção de Inverno, entre Outubro e Abril, os ventos trazem a direcção de Nordeste e retorna-se da Índia para o Sudeste Asiático, ou leva-se os juncos à costa africana, possibilitando também a subida do Mar Vermelho.

Na navegação usava-se relógios de água, ampulhetas com areia, ou a queima de paus de incenso, para medir o tempo e o dia estava dividido em 10 geng, conseguindo os barcos viajar 40 a 60 li [1 li ±. 0,5 km] por geng, isto é, 20 a 30 km em duas horas. Usual era medir-se o percorrido usando uma pessoa do barco e deitando à água uma fileira de tábuas, se a pessoa chegava primeiro era conhecido por ‘bu shang geng’, mas se o pedaço de madeira ganhava avanço era ‘guo geng’. A distância navegada podia ser determinada calculando a diferença entre essas medições e a estimativa do geng, segundo nos explica Zheng Yi Jun.

A direcção da navegação da armada era na viagem guiada por a bússola e o geng (instrumento e unidade de medida de tempo e distância de viagem). Com céu limpo usava-se também a técnica da observação das estrelas ao longo do oceano para discernir melhor a posição do barco. As Cartas de Navegação de Zheng He continham compreensivas informações sobre Astronomia Náutica e registavam um amplo conhecimento do Céu.

MEDIR ALTURA DOS ASTROS

Fundamental para a navegação era o estudo do Céu e aliando o conhecimento dos astros ganhava-se uma orientação para quem cruzava os oceanos. De uma maneira primária e útil, o Sol ergue-se de Leste ao fazer nascer o dia e seguindo a abóboda celeste poe-se a Oeste, terminando assim o dia solar. À noite media-se pela altura das estrelas as distâncias, conjugando-as com os rumos registados nas cartas e nessa navegação astronómica a armada de Zheng He viajou entre continentes.

O Mapa do Céu estava já bem desenvolvido no século IV a.n.E., quando Shi Shen (石申), que fixara 138 constelações e contara 810 estrelas e Gan De (甘德), que observara e fixara 118 estrelas e contara 511 estrelas em todo o Céu, registaram no livro Tianwen (天文, Astronomia, ou Modelo do Céu) a posição de 121 estrelas e as localizaram num anel armilar. Este foi aprimorado com outro anel no ano 84 por o astrónomo Jia Kui (贾逵, 30-101), a mostrar o movimento do Sol (a eclíptica) no Céu.

A esfera armilar apareceu após o astrónomo Zhang Heng (张衡, 78-140) em 117 ter construído em bronze o Globo Celeste para mostrar os fenómenos astronómicos e nele gravou com precisão e nas proporções o Equador, os polos Norte e Sul e as estrelas, segundo as suas observações astronómicas e o ligou a um relógio de água, num mecanismo conduzido de forma ao globo rodar à medida do correr da água contra ele. No ano 125 acrescentou um terceiro anel à esfera armilar (浑天仪, Hun Tian yi) e o movimento interligado de cada, relacionado com os outros anéis, dava a posição esperada das estrelas a aparecer nos locais do Céu por onde se ia navegando.

Assim se foram reconhecendo em diferentes localizações as estrelas e constelações, tal como as suas posições. A Estrela Polar guiava no hemisfério Norte, descendo no horizonte à medida da aproximação à linha do Equador e já no outro lado apareciam novas estrelas e constelações, onde dominava o Cruzeiro do Sul, a orientar os barcos no hemisfério Sul.

O método mais utilizado na navegação oceânica da armada capitaneada por Zheng He era a orientação pelos astros e consistia no observar a altura da Estrela Polar para definir a posição das embarcações. Segundo Zheng Yi Jun, “A técnica de orientação pelas estrelas realizava-se através dum instrumento de observação chamado ‘Tábua de levar as estrelas’. Composto por 12 peças de tamanhos diferentes e de pau-preto, eram quadradas, sendo a maior [chamada de 12 Zhi] com 24 cm de lado, tendo a seguinte 22 cm, decrescendo sucessivamente dois centímetros até à peça menor que media 2 cm, [denominada 1 Zhi], havendo ainda uma peça de marfim com 6,66 cm de lado a que faltavam os quatro cantos.” (…) “Para usar a tábua, a mão esquerda segurava-a a meio de um dos lados, com o braço estendido, de modo a ficar num plano perpendicular em relação à superfície da água. O bordo superior da tábua colocava-se virado para a estrela em observação e o bordo inferior paralelo à linha de superfície do mar.

Desta maneira, media-se a altura entre o astro e a superfície do mar. Conforme a altura do astro, escolhia-se de entre as tábuas até que uma delas tangesse o astro pelo bordo superior enquanto o inferior coincidia com a linha de superfície do mar. O número de Zhi da tábua utilizada equivalia à altura do astro. Se com uma tábua não se conseguisse a tangência, escolhia-se uma tábua maior. Observando-se através do seu bordo gravado em combinação com a utilização da peça de marfim [cujo comprimento dos seus lados era respectivamente ½, ⅛, ¼, ¾ do comprimento da peça com 1 Zhi do lado da ‘Tábua de levar da estrelas’] obtinha-se a medida angular (Jiao). Deste modo, conseguia-se o número Zhi e Jiao da altura do astro. [Um Zhi era dividido em 4 Jiao]. A utilização combinada das tábuas e da peça de marfim permitia a medição angular com precisão, até meio grau. Se o astro observado fosse a Estrela Polar, obtinha-se primeiro o número de Zhi que se convertia na medida angular. Deste modo se achava a latitude do lugar.”

Já a técnica para calcular a profundidade do oceano era designada por ‘da shui’ e existiam dois métodos: o ‘xia gou’ e ‘yi sheng jie zhi’. O equipamento de medição não só calculava a profundidade como as condições à superfície, a determinar se era propício ancorar num determinado lugar, assim como avaliar as condições do chão do oceano.

21 Abr 2023

Os Pictogramas e o Espelho da Natureza

Durante longo tempo houve animada esgrima nos campos da sinologia linguística. Uns defendiam que a escrita chinesa não deveria ser considerada essencialmente imagética, pois era tão convencional e arbitrária como qualquer outro sistema linguístico, outros como Bernhard Karlgren (1889-1978) em Sound and Symbol in Chinese (1990) procuravam realçar o carácter pictórico desta escrita.

Uma leitura atenta da referida obra de Karlgren é o suficiente para se compreender que o sinólogo não teve qualquer intenção de reduzir a escrita chinesa a pictogramas. Ele reconhece claramente que os pictogramas constituem um décimo deste tipo tão original de caligrafia, sendo a maioria dos caracteres compostos por uma parte ideográfica, e uma outra fonética. Diz-nos o autor que:

“os chineses descobriram um meio simples e conveniente de criar novos caracteres ad libitum no método de compor novos caracteres, por meio dum indicador de sentido, o radical, e um indicador de som, o elemento fonético: a esmagadora maioria dos caracteres chineses – cerca de nove décimos- é composta desta forma.” (Karlgren, 1990: 44)

O sinólogo defende que a escrita chinesa começou por ser imagética, procurando desenhar e reproduzir a natureza duma forma realista, tentava imitá-la para a referir, mas aos poucos foi evoluindo para um sistema linguístico bem mais abstracto e complexo, aproximando-se com os seus compostos dos tipos fonéticos de escrita. Veja-se como resume a evolução da escrita chinesa:

“a primeira fase foi a da escrita imagética, que continuou por longo tempo, até que o stock de caracteres foi alargado, primeiramente por compostos lógicos, mais tarde por compostos fonéticos.” (Karlgren, 1990: 47)

Como devemos denominar os caracteres chineses é, sem dúvida, uma questão pertinente no âmbito da Sinologia. Há quem lhes chame ideogramas, uma vez que cada caracter transmite uma ou várias ideias, há quem os considere, na esteira de Bussmann (Apud Peixoto, 2014: 19), semeogramas, pretendendo com o termo derivado da semiologia de Saussurre, enfatizar o aspecto semântico-visual da escrita como refere Bruna Peixoto no seu trabalho Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural (Ibidem).

No que me diz respeito prefiro a nomenclatura escolhida por Alexandre Li Ching, o autor de A Estrutura da Língua Chinesa (Li 1994: 34), que, denomina as palavras chinesas caracteres ou ideogramas, dividindo-os em seis categorias:

• Pictogramas, que o autor define como tendo por origem objetos desenhados: sol(日 rì); cavalo(马mǎ); fogo(火huǒ); água(水 shuǐ), há cerca de seiscentos na língua chinesa;
• Ideogramas, ou seja, os compostos lógicos de Karlgren, que indicam esquematicamente as ideias: um (一 yī); dois(二èr); três(三sān); cima (上shàng); baixo (下xià), sendo cerca de 100;
• Ideogramas compostos, em que o sentido é obtido pela relação ou associação dos componentes claro (明míng), paz(安ān); bom(好 hǎo); homem(男nán), são cerca de 750;
• Ideofonogramas, caracteres constituídos por um elemento que transmite a ideia, o ideoclassificador, surgindo habitualmente associado ao radical, e um outro componente, a parte fonética, que indica a pronúncia, como: açúcar( 糖táng),machado(斧 fǔ), mãe (妈mā), pai(爸bà), estes constituem a maioria dos caracteres.
• Símbolos transferidos, caracteres em que se procede a uma extensão ou alargamento do sentido primitivo, sendo um dos caracteres mais utilizados para exemplificar esta classe, 网wǎng, que de rede para apanhar peixes alargou o seu sentido até à internet (网络wǎngluò、网上wǎngshàng、网站wǎngzhàn)
• Falsos empréstimos, caracteres utilizados pelo seu valor fonético, que representam na origem uma palavra apenas homófona, por exemplo 来lái, que era espiga duma espécie de grão, tendo passado a significar o verbo vir.

Entre os seis tipos de caracteres chineses, vamos então encontrar os pictogramas, aqueles caracteres que traduzem o espírito essencial, no sentido de primevo da escrita chinesa. Esta procurou na sua génese mimetizar a realidade, proporcionando à comunidade chinesa desenhos ou imagens fidedignas da mesma. Se não pretendessem sê-lo, o valor utilitário da comunicação teria diminuído. Porém, não é intenção com o afirmado reduzir a primeira escrita chinesa a um conjnto de símbolos utilitários, já que o ser humano revela, desde o seu aparecimento, uma forte tendência lúdica e artística.

A principal questão que se coloca a este tipo de escrita do ramo sino-tibetano, definida como ideográfica ou semântico-visual, é: se os pictogramas se podem definir exclusivamente como desenhos da realidade e o que tal significa?

Será que um desenho da realidade implica apenas uma cópia da mesma, realista, ou até segundo algumas tendências contemporâneas, hiper-realista, e, portanto, um olhar e um traço dominado pelo objeto? Ou desde o primeiro momento encontramos uma postura ativa do comunicador, do artista e do ser religioso que apresenta, oferece e nomeia a realidade que o interpela?

Defendo que os pictogramas já poderiam ser introduzidos na classificação de ideogramas, uma vez que tendem a ser esquemas da realidade, ou seja, interpretações do criador linguístico.

A este respeito, um exemplo notável é a introdução da escrita do Pequeno Selo (小篆Xiǎozhuàn), pelo primeiro-ministro de Qin Shihuang (秦始皇Qínshǐhuáng), Li Si (李斯Lǐsī), que, conforme relata Karlgren, se distinguiu na caligrafia, criando “um novo catálogo oficial de caracteres para orientação dos escribas. Ele fez o possível para preservar os antigos caracteres, mas simplificou-os, tendo substituído com frequência os velhos desenhos por algumas linhas sumárias.” (Kalgren, 1990:48)

A meu ver, desde cedo encontramos uma postura extremamente ativa da parte daquele que regista e nomeia a natureza circundante. A comunidade linguística chinesa revelou a tendência de fixar e preservar a realidade duma determinada maneira, mais próxima da natureza, menos abstracta, manifestando um notável espírito realista e atenção ao pormenor. Talvez estas características não sejam exclusivas da mente chinesa, já que encontramos na escrita hieroglífica, por exemplo, na egípcia, o mesmo tipo de tendência.

O que parece ser específico da mente chinesa é a incorporação e preservação dos seus pictogramas até à atualidade. Estes caracterizam-se por serem cópias deliberadas da natureza circundante, considerada perfeita para a transmissão das mensagens quotidianas, religiosas e artísticas.

Para exemplificar o tipo de espírito que creio ter estado na base dos registos pictóricos, perpetuados até à atualidade, relato a história proverbial conhecida pela grande maioria dos chineses: O Peito Transformou-se em Bambu, atribuída ao registo poético de Chao Buzhi (晁补之, 1053-1110) da Colectânea Costela de Galinha (鸡肋集 Jīlèi JÍ), um título humilde, indicando coisas sem valor. E, no entanto, daqui é extraída uma das mais interessantes histórias proverbiais chinesas, Xiōngyǒu-chéngzhú (胸有成竹)que pode ser traduzida por “O peito transformou-se em Bambu”

O Peito Transformou-se em Bambu

Nos tempos da dinastia Song, viveu Wen Yuke na província de Sichuan, ele pintava muito bem. Gostava especialmente de pintar bambu, por isso plantou um bambual nas traseiras de casa que podia observar com todo o rigor da sua janela na Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno, de manhã ao anoitecer, fizesse chuva ou sol.

Seguia minuciosamente as mudanças e as formas dos ramos e das folhas do bambu ao longo das quatro estações, após o que procurava ser o mais fiel possível ao bambu nas suas pinturas.

Ao tempo vivia também um letrado chamado Chao Buzhi, que muito admirava o talento de Wen Yuke para pintar o bambu, tendo escrito um poema em seu louvor, onde se podia ler: “Wuke ao desenhar, já tem o peito transformado em bambu.” Tal significa que Wen Yuke ao pintar já possuía a imagem completa do bambu.

(胸有成竹)
宋朝的时候,四川有一个叫文与可的人,他很会做诗画画儿,特别喜欢画竹子。在他的窗前房后,种了很多竹子。从春夏到秋冬,从早晨到晚上,不论晴天雨天,他总是仔细地观察那些竹子。竹子的枝叶在不同的季节,不同的时间,不同的气候下是什么样子,有什么变化,他都观察得很仔细,他画的竹子跟真的一样。
那时候有一个文学家叫晁补之,非常佩服文与可画竹子的才能,而且写了一首诗来称赞他。其中有两句说: “与可画竹时,胸中有成竹。”意思是文与可画竹子的时候,胸中已经有了完整的竹子形象。) (北京语言学院,1984, 75-77).

Também a escrita e a caligrafia chinesas possuem imagens completas e profundas da realidade que pretendem retratar, esquematizar, idealizar ou recriar, gerando-se entre o que escreve a escrita uma identificação profunda, por osmose, porque de tanto contemplar se transforma o contemplador na coisa contemplada ou, como diria Luís de Camões, o amador na coisa amada.

Bibliografia

北京语言学院编(Instituto de Línguas de Beijing, ed.) 1984《基础汉语课本》阅读材料。Proverbes Chinois Annotes成语故事选.北京:外文出版社
Karlgren, Bernhard. 1990 [1962] Sound and Symbol in Chinese. Hong Kong: Hong Kong University Press.
Lai, T.C (赖恬昌)1980 Chinese Characters. Hong Kong: Swindon Book Company
Li Ching, Alexandre. 1994. A Estrutura da Língua Chinesa《汉语结构》Lisboa: Fundação Oriente.
Peixoto, Bruna. 2014. Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural. Famalicão: Instituto Confúcio da Universidade do Minho, Húmus

20 Abr 2023

Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho

Da Nomeação Correcta, Parte VII

E, assim, os ensinamentos do sábio são tais que, se neles ponderarmos, é fácil compreendê-los. Se os pusermos em prática, será fácil encontrar segurança. Se os afirmarmos será fácil manter a nossa posição. Se os seguirmos completamente, obteremos aquilo que desejamos e evitaremos aquilo que detestamos. Os ensinamentos do insensato são o oposto disto. As Odes dizem:

Se fosses um fantasma ou um yu
Seria impossível derrotar-te.
Mas tu tens infames rosto e olhos humanos
E mostras-te incorrecto com os outros.
Por isso criei esta canção que agora canto
Para te corrigir as maneiras impias e falsas.

Isto exprime o que quero dizer.

Todos aqueles que dizem que a boa ordem só se seguirá à eliminação dos desejos são pessoas a quem faltam os meios para conduzir o desejo e que são incapazes de lidar com o simples facto de terem desejos. Todos aqueles que dizem que a boa ordem deve aguardar a diminuição dos desejos são pessoas a quem faltam os meios para refrear o desejo e que são incapazes de lidar com a abundância de desejos. Ter desejos, ou não ter desejos, são coisas de dois tipos, tais como estar vivo ou estar morto, e nada tem a haver com ordem ou desordem. Ter muitos desejos, ou ter poucos desejos, também são coisas de tipo diferente e referem-se ao número de disposições das pessoas, mas nada tem a haver com ordem e desordem.

A ocorrência de desejos não aguarda permissão para que sejam satisfeitos, mas aqueles que os procuram satisfazer seguem aquilo que lhes parece adequado. O facto de a ocorrência de desejos não aguardar permissão para a sua satisfação é algo recebido do Céu. O facto de aqueles que os procuram satisfazer seguirem o que lhes parece adequado é algo recebido do coração. Quando um só desejo recebido do Céu é controlado por inúmeras coias recebidas do coração, será decerto difícil classificá-lo como algo verdadeiramente recebido do Céu.

Nota

Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.

18 Abr 2023

O rolo de You Qiu onde vai a bagagem de um imortal

Ge Hong, também conhecido como Ge Zhichuan (283-343), autor do dicionário Ziyuan “Jardim de caracteres”, é também autor de um conjunto de textos designados Baopuzi “Mestre que abraça a simplicidade”, divididos em duas partes que recolhem: de um lado, Capítulos exteriores, Weipian – entre outros os fundamentos do humanismo confuciano que designou como «o ramo» (mo); e do outro Capítulos interiores, Neipian – a filosofia e a incontida imaginação no relato de ocultas práticas daoístas que designou «o tronco» ou «origem» (ben) tal como circulavam no seu tempo, na região de Jiangnan. De si mesmo escreveu (Capítulos exteriores, 50):

«Sou uma pessoa simples, aborrecido por natureza e gaguejo. Minha aparência física é desagradável e nem sou suficientemente competente para me gabar ou polir os meus defeitos. Meus chapéus e sapatos andam sujos; e as roupas, por vezes ainda piores, nem podem ser remendadas. Mas isto nem sempre me incomoda. Estilos de roupas mudam muito depressa e muitas vezes. Num momento são largas no pescoço e o cinto é largo; noutra altura são ajustadas e com mangas largas; mas de novo compridas, varrem o chão ou tão curtas que nem cobrem os pés. Sendo um homem simples, o meu plano é preservar a regularidade e não seguir as modas do dia. O meu discurso é franco e sincero, não me entrego à galhofa. Se não encontrar o interlocutor certo, sou capaz de ficar o dia todo em silêncio. Esta é a razão por que os meus vizinhos me chamam ‘o que abraça a simplicidade’, Baopu, nome que uso como pseudónimo naquilo que escrevo.»

Demonstrava assim que os antigos imperadores, Qin Shihuang ou Han Wudi na sua aspiração à imortalidade – xian, se iludiam ao não cultivarem o Dao.

Wang Meng (1308-85) figurou-o a caminho de atingir esse objectivo (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 139 x 58 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Diante de densas e agitadas montanhas, ele vai sobre uma ponte, ao lado mas ainda não sentado sobre um veado, conhecida montada de deuses. Também a sua esposa com um filho ao colo, vem sentada numa vaca e outros criados em redor transportam objectos da sua casa em mudança.

Mas a constante republicação do Cânone Daoísta (Daozang) de que os seus escritos faziam parte, inspiraram outros como You Qiu (c. 1525-80) que no rolo horizontal (tinta sobre papel, 533,4 x29,5 cm, no Museu Britânico) o mostra sentado numa mula, nesse trânsito a caminho do Monte Luofu (Guangdong), onde terá alcançado a imortalidade.

Seis criados acompaham-no, carregados de toda a espécie de objectos associados a um erudito funcionário, cujas vestes enverga sob um casaco de pêlo aos ombros. Como mestre do Dao é identificado por objectos como ceptros ruyi ou bastões em crú. De modo subtil toda a natureza se parece inclinar para trás à passagem da caravana que mostrava doméstica a vida do imortal.

18 Abr 2023

Bai Juyi – A Canção do Alaúde

Tradução de António Graça de Abreu

Esta Canção do Alaúde é um dos mais famosos poemas de toda a vastíssima poesia chinesa. Escrito por 白居易Bai Juyi (772-846), quando seu exílio em Jiujiang, no ano de 816, permanece como uma das obras-primas saída da pena, do entendimento, da sensibilidade e do engenho do grande Bai Juyi. Eis uma possível tradução do poema.

琵琶行并序

元和十年,予左遷九江郡司馬。明年秋,送客 湓浦口,聞船中夜彈琵琶者,聽其音,錚錚然 有京都聲;問其人,本長安倡女,嘗學琵琶於 穆曹二善才。年長色衰,委身為賈人婦。遂命酒,使快彈數曲,曲罷憫然。自敘少小時歡樂事,今漂淪憔悴,轉徙於江湖間。予出官二年恬然自安,感斯人言,是夕,始覺有遷謫意,因為長句歌以贈之,凡六百一十六言,命曰琵琶行。

潯言江頭夜送客
楓葉荻花秋瑟瑟
主人下馬客在船
舉酒欲飲無管絃
醉不成歡慘將別
別時茫茫江浸月
忽聞水上琵琶聲
主人忘歸客不發
尋聲暗問彈者誰
琵琶聲停欲語遲
移船相近邀相見
添酒回燈重開宴
千呼萬喚始出來
猶抱琵琶半遮面
轉軸撥絃三兩聲
未成曲調先有情
絃絃掩抑聲聲思
似訴平生不得志
低眉信手續續彈
說盡心中無限事
輕攏慢撚抹復挑
初為霓裳後六么
大絃嘈嘈如急雨
小絃切切如私語
嘈嘈切切錯雜彈
大珠小珠落玉盤
間官鶯語花底滑
幽咽泉流水下灘
水泉冷澀絃凝絕
凝絕不通聲漸歇
別有幽愁暗恨生
此時無聲勝有聲
銀瓶乍破水漿迸
鐵騎突出刀鎗鳴
曲終收撥當心畫
四絃一聲如裂帛
東船西舫悄無言
唯見江心秋月白
沈吟放撥插絃中
整頓衣裳起斂容
自言本是京城女
家在蝦蟆陵下住
十三學得琵琶成
名屬教坊第一部
曲罷曾教善才服
妝成每被秋娘妒
五陵年少爭纏頭
一曲紅綃不知數
鈿頭銀篦擊節碎
血色羅裙翻酒汙
今年歡笑復明年
秋月春風等閑度
弟走從軍阿姨死
暮去朝來顏色故
門前冷落車馬稀
老大嫁作商人婦
商人重利輕別離
前月浮梁買茶去
去來江口守空船
繞船月明江水寒
夜深忽夢少年事
夢啼妝淚紅闌干
我聞琵琶已嘆息
又聞此語重唧唧
同是天涯淪落人
相逢何必曾相識
我從去年辭帝京
謫居臥病潯陽城
潯陽地僻無音樂
終歲不聞絲竹聲
住近湓江地低濕
黃蘆苦竹繞宅生
其間旦暮聞何物
杜鵑啼血猿哀鳴
春江花朝秋月夜
往往取酒還獨傾
豈無山歌與村笛
嘔啞嘲哳難為聽
今夜聞君琵琶語
如聽仙樂耳暫明
莫辭更坐彈一曲
為君翻作琵琶行
感我此言良久立
卻坐促絃絃轉急
淒淒不似向前聲
滿座重聞皆掩泣
座中泣下誰最多
江州司馬青衫濕

Canção do alaúde1

No décimo ano do período Yuanhe 2 fui despromovido e afastado da corte, com o cargo de intendente militar em Jiujiang. No Outono do ano seguinte, em Penpu, quando me despedia de um amigo, ouvi ao longe o tanger de um alaúde, tocado da maneira utilizada na capital. Procurei a pessoa que descuidadamente dedilhava as cordas e encontrei uma antiga cantora de Chang’an que, esgotada a sua beleza, era agora companheira de um mercador. Mandei vir vinho e pedi à antiga cortesã que tocasse um pouco mais. Depois, ela falou-nos do tempo feliz da sua juventude e de como agora era obrigada a viajar, em terras distantes, por rios e lagos. Desde a minha partida da capital jamais me sentira tão triste e infeliz. Compreendi nessa noite o real significado da palavra exílio. Escrevi então este longo poema, com 616 caracteres3 e ofereci-o a essa mulher.

À noite, um adeus ao amigo nas margens do rio,
as folhas do ácer, o vento de Outono sussurrando nos juncais.
Desmontei do cavalo, meu amigo já na barca, prestes a partir,
bebemos taças de vinho, sem música para nos acompanhar.
Brindámos tristes, por cada taça, mais próxima a separação,
adeus, as águas do rio já humedecendo a lua.
Eis, de súbito, o som de um alaúde sobre as águas,
esqueço o regresso, meu amigo esquece a partida.
Ambos seguimos a música, em busca de quem toca,
a melodia extingue-se, diante de nós uma mulher em silêncio.
Aproximamos da sua a nossa barca, convidamo-la a mostrar-se,
vamos buscar mais vinho, avivamos a luz das lanternas, recomeçamos o banquete.
Mil vezes pedimos que venha até nós,
aparece por fim, o rosto meio escondido atrás do alaúde.
Afina a guitarra, dedilha as cordas ao acaso,
não toca ainda, eis-nos mergulhados em enlevo e magia.
Um repassar de emoções em cada som, em cada nota,
acordes manchados de tristeza e nostalgia.
De olhos baixos, os dedos acariciando as cordas de seda
transmitem a amargura que lhe vai no coração.
Melodias suaves, um canto vibrante, uma súbita paragem,
ouvimos o “Vestido de Arco-Íris”, a “Ronda dos Seis Tambores”.
As notas altas ressoam como chuva em noite de tempestade,
as notas baixas como um ciciar segredado de amantes.
Tons graves e agudos entrechocando-se, mesclando-se,
como pérolas grandes e pequenas tombando num prato de jade.
A música saltitante como um pintassilgo entre as flores,
gotejante como água das fontes caindo sobre areia.
Depois, acordes como cristais de gelo, as cordas parecem romper,
a música fria, sussurrante, extinguindo-se pouco a pouco.
Agora um silêncio mais eloquente que todos os arpejos,
melancolia, a água correndo após o quebrar do jarro de prata.
Outra vez o tinir de espadas e lanças, uma zoada de armaduras,
os acordes finais brotando do coração do alaúde,
quatro cordas emitindo um único som, o do rasgar da seda.
As barcas, a leste, a oeste, mergulhadas em silêncio,
apenas a lua de Outono prateando o leito do rio.
Suspirando, ela prende a varinha nas cordas do alaúde,
alisa o vestido, ajeita o rosto, levanta-se e fala.

“Nasci na capital, cresci junto à Colina das Rãs,
aos treze anos meus dedos brincavam sabiamente com o alaúde.
Era a aluna mais distinta na escola de música,
professores, mestres aplaudiam meu engenho e destreza.
As mais belas da cidade invejavam meu porte, minha formosura.
Os jovens de Wuling disputavam a honra de me ver,
depois de uma canção ofereciam-me incontáveis peças de seda.
Alfinetes, pentes de prata quebrados descuidadamente,
o vinho caindo ao acaso sobre minha saia cor de sangue.
Escoavam-se os anos entre festas, risos, alegria,
sucediam-se brisas de Primavera, luares de Outono.
Um dia meu irmão partiu para a guerra, minha mãe morreu,
mês após mês, ano após ano desvanecendo-se minha beleza,
diante da porta, carruagens e cavaleiros cada vez mais raros.
Para sempre perdida a mocidade, casei com um mercador,
que, em busca do lucro e do negócio, me deixa abandonada.
Partiu o mês passado para comprar chá em Fuliang,
desde então permaneço nesta barca vazia, na foz do rio,
vogando ao luar sobre águas geladas.
A meio da noite, em sonhos, recordo minha juventude,
vejam como as lágrimas avermelham meu rosto pintado.”

Ao ouvir esta mulher tocar o alaúde,
já os soluços se me prendiam na garganta.
Agora, escutando sua história, em mim uma emoção imensa,
nós dois, destroços encalhados nas margens do céu,
finalmente próximos através de um encontro fortuito.
O ano passado fui obrigado a abandonar a capital,
a viver exilado nesta cidade de Xunyang.
Doente por terras estranhas, sem guitarras nem flautas,
minha casa em Penjiang, ao lado do rio pantanoso,
rodeada de canaviais amarelecidos, de bambus amargos.
Nesse lugar, ao nascer o dia, ao entardecer, à noite
ouve-se apenas o guincho dos macacos, o piar triste dos cucos.
Em tempo de Primavera e de flores, de Outono e de luar,
ergo muitas vezes a minha taça e bebo solitário.
Sim, há cânticos camponeses e flautas aldeãs,
mas as notas estridentes magoam meus ouvidos.
Esta noite chegou até mim o harmonioso tanger de um alaúde,
música celestial retocada por mãos de fada.
Silenciosa, sentada, a mulher ouve minhas palavras,
digo-lhe que vou escrever um poema, a “Canção do Alaúde”.
Ela pega, de novo, na guitarra, acaricia tristemente as cordas
e vai arrancando notas intensa, saudosamente magoadas.
Eu escondo os olhos, o pranto mancha nossas faces.
Quem mais chorou?
A cabaia azul do intendente de Jiujiang inundada de lágrimas.

17 Abr 2023

Giorgio Sinedino: “O domínio do idioma e a experiência de vida na China são indispensáveis”

Por Alessandra S. Brites, da agência Xinhua

 

Nos últimos tempos, as relações entre China e Brasil têm sido desenvolvidas com foco na aproximação e entendimento mais aprofundado de ambas as partes, em diversas áreas. Mas, no que diz respeito ao sector cultural e, especificamente, o literário, muito ainda necessita ser explorado, melhorado e consolidado. O sinólogo, professor e tradutor brasileiro residente em Macau, Giorgio Sinedino, responsável pela tradução de clássicos directamente do chinês clássico para o português, como “Analectos” de Confúcio, “Dao De Jing” de Laozi e o “Imortal do Sul da China” de Zhuangzi, em entrevista exclusiva para a Xinhua, abordou alguns dos desafios que a literatura chinesa ainda enfrenta para ser mais conhecida no Brasil.

“Acredito que existe um mercado, de nicho, que cresce em função do aumento da influência chinesa e de sua paulatinamente maior visibilidade. No entanto, tal como em outros países ocidentais, o nosso interesse pela literatura chinesa ainda é motivado pelo quadro político e geopolítico. Julgo importante tentarmos dar um valor autónomo para a literatura chinesa, deixando de lado outros problemas que não sejam o de simplesmente compreender a China e a sua civilização em si”, afirmou.

Sinedino, que neste ano vai lançar uma tradução de “Grito”, de Lu Xun, pela Editora 34, e planeia uma tradução comentada da “Arte da Guerra” de Sunzi para o ano vindouro, pela Editora da Unesp, diz ainda que entre os empecilhos para a cooperação no sector literário está a tradição intelectual e artística da China que se destaca fundamentalmente do mundo ocidental, local onde também é incluída a literatura brasileira.

“Alguns dos obstáculos são estruturais, difíceis de ultrapassar. Por exemplo, o facto de que a língua chinesa pertence a uma outra família, a sino-tibetana, sem parentesco algum com o nosso português. Na realidade, o chinês é uma colecção de dialectos. É uma família linguística que cresceu milenarmente para dentro, sem estar relacionada a qualquer outro idioma de qualquer outro país vizinho no mundo moderno”, argumentou o professor que enfatiza ser a tradução de obras clássicas chinesas, ainda que com os desafios apresentados, uma boa aposta para o mercado no Brasil.

Uma lição da literatura coreana e japonesa

Actualmente uma série de obras japonesas e sul-coreanas estão disponíveis em maior número no mercado literário brasileiro do que títulos de obras chinesas. Para o sinólogo Giorgio Sinedino esta questão ocorre não apenas em razão da presença de um maior número de imigrantes, no caso do Japão, mas também porque as culturas japonesa e coreana utilizaram meios de massa, a criação de estilos e de modas, para dar mais visibilidade ao que têm de característico em termos literários.

“Ambos aproveitaram um mercado cultural internacional, mediado pelas indústrias dos EUA, para se enraizarem globalmente no sector cultural. Quanto à literatura, esta beneficia-se e cresce no empuxo da vanguarda da cultura de massa. Hoje em dia, o meio literário tem forças limitadas para se projetar independentemente das artes multimidiáticas, pelo menos no que se refere ao grande público”, salientou.

A capacitação de futuros tradutores no Brasil

De acordo com Sinedino, o Brasil necessita constituir uma base sólida na capacitação de profissionais que venham a trabalhar com literatura e artes chinesas. “O domínio do idioma chinês e a experiência de vida na China são indispensáveis, o que infelizmente se constitui numa barreira económica proibitiva para muitos. Esses profissionais de ponta teriam os meios para desenvolver o ‘nicho chinês’, não só oferecendo traduções de qualidade produzidas sem intermediários, mas, sobretudo, sendo qualificados para educar o público leitor.”

Segundo o professor, antes de julgar as obras escritas em chinês antigo, é preciso conhecê-las e fazer as referências adequadas à língua e cultura das quais originaram-se, o que presume um certo conhecimento sistemático da literatura chinesa e das regras e padrões que segue.

“À medida que aliviamos a influência desses gargalos, podemos pensar em como organizar equipes de tradutores. É preciso também destacar pontos de apoio em instituições de ensino ou associações civis para mantermos o momento dessas obras, quem sabe através de departamentos académicos especializados, de instituições de fomento, de iniciativas como prémios”, diz o académico.

“Esse é o ponto de partida para falarmos sobre os desafios do tradutor de língua portuguesa. Ele não pode, não deveria, começar a trabalhar antes de enfrentar certas questões sobre a natureza do texto que tem diante de si. Por exemplo, o que é literatura, na trajectória do pensamento chinês? Qual a sua função social? Quais os critérios que separaram esta obra que está traduzindo das outras, como representativa do que há de melhor na tradição chinesa? O que os leitores originais apreciaram e apreciam nesse texto e como esses valores literários podem (se for o caso) ser reproduzidos numa tradução? A partir de um tal diagnóstico, o tradutor é capaz de planejar melhor o seu esforço de mediação cultural, demanda tão mais exigente, quanto mais antigo for o texto”, conclui.

Quanto aos desafios de traduzir obras da literatura chinesa moderna, Sinedino acredita que a falta de experiência por parte do leitor de língua portuguesa sobre o que significa ser chinês, viver na China e escrever sobre ela é um obstáculo difícil ainda de ser superado. Porém, à medida que o conhecimento aprofundado sobre China vai sendo mais difundido ao longo dos anos no Brasil, tais dificuldades começam a ser menos preponderantes.

Primeira parte do século XX: o encontro possível entre a literatura brasileira e chinesa

Como explica Sinedino, a história literária de ambos os países diferencia-se e muito, pois a literatura brasileira é uma ramificação das literaturas em línguas românicas, provenientes da literatura em Latim, a qual conta cerca de 1500 anos de desenvolvimento. “Já a literatura chinesa cresceu em torno de um conjunto de obras, os ‘Jing’ – Clássicos Ortodoxos relacionados ao Confucionismo, escritos em chinês antigo, uma língua artificial muito diferente do idioma falado”, explicou.

Contudo, a política de Abertura e Reforma impulsionou na China um grande movimento de tradução de literatura estrangeira, principalmente durante os anos 1990 e 2000, relatou Sinedino. “É possível encontrarmos pontos em comum desde as referências mútuas que os autores e leitores contemporâneos, brasileiros e chineses, fazem de suas influências. Falando um pouco mais especificamente sobre estilo e forma literária, a prosa chinesa do século XX é predominantemente de esquerda. Por tal motivo, aos nossos olhos, é uma contínua reiteração do realismo social. Não vejo erro em afirmarmos que há alguma margem de comparação entre essa literatura chinesa, crítica, sobre a vida no campo e a situação do campesinato, e a nossa literatura modernista regionalista de 1930-1945. No entanto, é sempre importante estarmos atentos para as diferenças, porque são elas que ensinam melhor sobre o que é a China e o que é a sua cultura. Creio que a leitura mais interessante de uma obra literária é a que dá destaque às diferentes experiências culturais e diferentes formas de pensar.”

14 Abr 2023

A princesa que admirou pinturas de Liu Songnian

Xiangge Ciji (c. 1283-1331), a princesa, neta e irmã de imperadores da dinastia Yuan deu, de forma inédita para uma mulher, uma festa literária no dia vinte e oito de Abril de 1323 no templo Tianqing, nos arredores da capital, Dadu. Como era habitual nessas reuniões, pessoas educadas na já então milenar cultura poética e visual dos Han, liam, escreviam e examinavam caligrafias e pinturas, reconhecendo-se nessa memória, descobrindo-se eles mesmos parte desse desenrolar significante do tempo.

A partir do mítico Encontro do Pavilhão das orquídeas promovido pelo preclaro calígrafo Wang Xizhi, outros encontros seriam evocados na imaginação, um deles, seria tipificado com o nome de Reunião elegante no jardim do Oeste, Xiyuan Yaji. Uma festa que teria ocorrido no período Yuanyou (1066-93) do imperador Zhezong, à qual compareceram dezasseis ilustres figuras da literatura e da pintura como Mi Fu (1052-1107), que a terá registado por escrito, ou Li Gonglin (1049-1106), que a teria reconstituído numa pintura.

Uma dessas recrições da famosa reunião elegante, possivelmente feita na dinastia Ming, é atribuída de maneira espúria, ao pintor da corte dos Song do Sul, Liu Songnian (1174-1224). Desenrolando esse rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 24,5 x 203 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) desvelam-se uma série de emoções ligadas a cada uma das personagens retratadas, desde Su Shi, com o seu distintivo chapéu preto alto (Dongpo jin) escrevendo, passando por Mi Fu escrevendo sobre uma pedra até, no fim do rolo, o grande monge Fayun Faxiu, também conhecido como Yuantong (1027-1090) conversando sobre Wushenglun, o conceito budista de «não ter nascido». A plausibilidade da atribuição resulta de certas impressivas pinturas do mesmo autor.

Liu Songnian, o pintor da corte de Hangzhou onde se encontrava a Academia imperial a que pertenceu, primeiro como estudante e depois como «pintor às ordens» daizhao, seria por essa razão intérprete priviligiado da cultura dos Song do Sul, a quem seriam atribuídas tantas outras pinturas que correspondem a esse gosto. Entre elas, os três retratos de luohans (sânscrito; arhat) datados de 1207 em formato de rolo vertical a tinta e cor sobre seda, que se encontram no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, e que revelam como estava a ser acolhido o Budismo na pintura.

Num deles, diante de grandes folhas de bananeira que quando o vento passa produzem um som que torna sensível o seu sopro, e de um biombo, a figura nimbada de um luohan sentado, de dimensão exagerada em relação à pessoa que à sua frente desenrola um escrito, que por não ser identificado sugere o indizível. O olhar da princesa Xiangge que queria pertencer a essa herança deteve-se diante dessa pintura, compreendeu, e apôs o seu carimbo Huangjietushu, «Da biblioteca da irmã mais velha do imperador».

13 Abr 2023

Eunucos e Grandes Eunucos

No reinado de Hongwu (1368-1398), o primeiro Imperador da dinastia Ming, os eunucos (Huan Guan, 宦官) a viver na corte apenas faziam o serviço de criados e tratavam do harém pois, castrados sem pénis e testículos, não podiam ter descendência, dando ao Imperador confiança para lhes permitir circular por todo o Palácio Imperial.

No entanto, eram proibidos de estudar e ocupar lugares na Administração devido o Imperador conhecer a História ocorrida no passado, quando os eunucos detiveram grande poder e foram responsáveis pela queda de muitas das anteriores dinastias, como no caso do colapso da dinastia Song do Norte.

Assim, o Imperador não deu nenhum estatuto aos eunucos, enquanto os oficiais civis e militares dominavam nos assuntos administrativos do país. Perante isso, desde 1382, com a queda dos mongóis no Yunnan, os inúmeros jovens novos eunucos foram para Beiping ao serviço de Zhu Di, então príncipe de Yan e aí, além de o ajudar nas lutas contra os mongóis, estudaram em conjunto com as crianças filhos desse príncipe e aprenderam sobre os principais assuntos da civilização chinesa.

Após a morte de Hongwu, a situação dos eunucos na corte de Nanjing não mudou pois o novo Imperador Jianwen (1398-1402) continuou com a política do seu avô e então, estes uniram-se em torno de Zhu Di para o ajudar a conquistar o trono do Celeste Império. Com a vitória na guerra civil de quatro anos, Zhu Di tornou-se o Imperador Yongle e atribuiu-lhes lugares na Administração, o que irritou os mandarins.

Elevou-os também a comandantes navais, dando aos que mais contribuíram para a sua vitória militar a posição de Grande Eunuco (太监, Tai Jian) e colocou-os a capitanear os grandes barcos do Tesouro que pretendeu enviar aos países e reinos do oceano Pacífico e Índico. Entre eles estavam Ma He (马和), que em 1404 tomou o nome de Zheng He (郑和), Wang Jinghong (王景弘), Hou Xian (侯显), Hong Bao (洪保), Li Xing (李兴), Zhou Wen (周文), Yang Qing (杨庆) e Fei Xin (费信). Hoje pouco se sabe sobre a maioria destes, pois os documentos desapareceram, tal como foram destruídos os das sete viagens marítimas capitaneadas por Zheng He.

GRANDES EUNUCOS (太监, Tai Jian)

Ma He nasceu no ano de 1371 na aldeia Hedai em Baoshen, prefeitura de Kunyang (actual Jinning), a 30 km a Sul de Kunming, capital da província de Yunnan. A história da sua família está escrita na pedra tumular que mandou erigir em 1411, após o regresso da sua terceira viagem marítima, quando com a alta patente de Grande Eunuco voltou à terra natal.

A família de apelido Ma emigrara para a China em 1070 durante a Dinastia Song e o seu antepassado Sayid Ajall Shams al-Din Omar (1211-1279), descendente de uma família nobre muçulmana de Bucara (Bukhara, actual Uzebequistão), tornou-se oficial de alta patente do exército mongol durante a dinastia Yuan, sendo a sua participação importante para capturar Xianyang, o que levou Kublai Khan em 1274 a enviá-lo como Governador para Yunnan.

Tal como os antepassados, o avô e pai de Ma He professavam a religião islâmica e realizaram a peregrinação a Meca (Tianfang), ficando por isso com o título honorífico de Hazhi e daí o seu pai Milijin ter mudado o nome para Ma Haji, sendo então um oficial rural Yuan na província de Yunnan.

Ma He (mais tarde Zheng He/Cheng Ho em cantonense) nascera já na dinastia Ming e pertencia à sexta geração descendente de Sayid Edjell. A sua experiência de navegação ocorreu ainda na cidade de Kunyang, situada na margem Sul do lago Dianchi, cujo perímetro de 250 km proporcionou desde tenra idade a San Bao (nome por que era conhecido) um contacto com os barcos pois aí havia um porto de pesca e de mercadorias.

Em 1382, o exército Ming conquistou a província de Yunnan aos mongóis e os homens muçulmanos com eles ligados foram mortos, enquanto as crianças e jovens foram castrados, sendo levados para servir como eunucos na corte imperial.

Tal ocorreu a Ma He quando tinha 12 anos, seguindo para Beiping onde ficou ao serviço do príncipe de Yan, quarto filho do Imperador Hongwu. Devido às qualidades e inteligência estratégica, Ma He prestou grande apoio militar na guerra a Norte contra os mongóis e na invasão e conquista ao Imperador Jianwen de Nanjing em 1402. Bem-sucedido, Zhu Di já como Imperador Yongle, mudou em 1404 o nome do amigo para Zheng He e promoveu-o a chefe dos eunucos, entregando-lhe a gestão dos assuntos gerais do Palácio Imperial e pouco depois, nomeou-o Almirante da armada para realizar as viagens ao Mar do Ocidente.

Outro eunuco com a posição de Tai Jian foi Wang Jinghong (王景弘, 1356?-c.1434), nascido na aldeia de Xiang Liao, distrito de Chi Shui, prefeitura de Zhang Ping na província de Fujian. Entrou ao serviço da corte Ming no reinado do Imperador Hongwu e entre 1399-1402 também ajudou Zhu Di a chegar ao trono, sendo um bom comandante militar e por isso o Imperador Yongle, mostrando grande agradecimento nomeou-o em 1405 subcomandante de Zheng He na primeira expedição.

Na segunda viagem, no Sri Lanka ofereceu sacrifícios no Templo Li Fo, onde deixou um bei (estela). Já no regresso da terceira viagem, em 1409 esteve em Malaca onde construiu a muralha e a feitoria. Para além de participar nas sete viagens marítimas da armada de Zheng He entre 1405-33 [há quem refira ter apenas feito a 1.º 2.º 3.º 4.º e 7.º] realizou em 1434 uma outra viagem a Sumatra, mas no caminho, num naufrágio faleceu com 78 anos, sendo sepultado em Semarang na ilha de Java.

Já Hou Xian (侯显, 1365-c.1438) nascido em Taozhou (hoje Lintan, província de Gansu) pertencia ao grupo tibetano Zang (藏) e tinha treze anos quando em 1378 o exército Ming foi enviado para reconquistar a zona e capturado foi castrado, seguindo como eunuco para servir na corte Ming.

Em 1403, com a posição de shaojian (少监) o Imperador escolheu-o como emissário para ir à área de Tufan (吐蕃) habitada por o povo Zang e na zona de WuSiZang (乌思藏) convidou HaLiMa (哈立麻), Deshin Shekpa (1340-1415), Quinto Lama Karmapa Gyalwa, líder espiritual da Escola Kagyu do Budismo Tibetano, para ir à capital. Chegaram a Nanjing no 12.º mês de 1406, quarto ano do reinado do Imperador Yongle, e no segundo mês de 1407 foi realizada uma grande festa onde o Imperador deu a HaLiMa o título DaBaoFaWang (大宝法王), ficando na posição de Grande Rei do Tesouro dos Ensinamentos do Budismo Tibetano em toda a China.

Devido ao bom trabalho realizado, o Imperador elevou Hou Xian ao posto de Tai Jian (Grande Eunuco), posição com que participou na 2.ª viagem marítima de Zheng He e na 3.ª expedição foi nomeado por Yongle como um dos três comandantes da armada, a par com Zheng He e Wang Jinghong.

Os Registos Históricos da dinastia Ming compilado na dinastia Qing falam dele na secção Hou Xian Zhuan, sendo com Zheng He os dois únicos eunucos aí referidos.

Após regressar da terceira viagem marítima, o Imperador ordenou a Hou Xian na Primavera de 1413 ir a Di Yong Ta (地涌塔) e a Ni Bala (尼八剌, Nepal), cujo Rei ShaDeXinGe (沙的新葛) enviou um emissário à corte Ming com prendas, sendo reconhecido e aceite por o Imperador como Rei tributário.

Já no décimo terceiro ano de Yongle, ano Yi Wei (乙未), no sétimo mês lunar de 1415 foi Hou Xian enviado a Bengala (Bang Ge la), tendo o Rei (赛佛丁, SaiFoDing) ficado muito contente e enviado muitas prendas e uma girafa como tributo. Em 1420 voltou a Bengala para tentar terminar com a guerra que o Sultanato de Delhi aí travava, conseguindo estabelecer a paz.

Em 1427, o Imperador Xuande (1426-1435) enviou-o a WeiZang (卫藏, Tibete antigo) para fortalecer as relações políticas, económicas e comerciais dessa área com a dinastia Ming. Em 1430, Hou Xian apelou ao Imperador para ir à terra natal Taozhou e construir um templo aos antepassados da família Hou (Hou Jia si). Aí se encontra sepultado.

Outro Grande Eunuco comandante de esquadras foi o muçulmano Hong Bao (洪保 1369-?), e tal como a maioria, também a sua vida não aparece referida nos livros de História da China.

30 Mar 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno
(continuação)

 

181.
Tramar intrigas, ter hábitos inconvenientes, fazer coisas estranhas, essas são as causas dos problemas do mundo.
Somente por meio da virtude, no cotidiano, se pode preservar a natureza original, e se conseguir a paz harmoniosa.

182.
Diz um provérbio: ‘ao escalar uma montanha, deve-se suportar a subida, ao caminhar pelo gelo deve-se suportar a ponte perigosa’.*
A palavra ‘suportar’ tem um significado muito importante.
Ao ver corações inclinados ao mal, e uma vida cheia de frustrações, pensamos: ‘quantas pessoas, por não terem a habilidade de ‘suportar’, caem em desgraça, e encontram infortúnios?’
*Gelo quebradiço que ocorre na superfície dos lagos congelado.

183.
Aquele que exagera em seus sucessos, e se gaba de suas criações literárias, depende de coisas externas para agradar a si mesmo.
Não se dá conta de que aquele que preserva a pureza original de seu coração, sem ter grandes sucessos, ou escrever grandes coisas, se realiza como uma pessoa magnânima.

184.
Se em meio às ocupações e dificuldades, alguém deseja um momento de descanso, deve ter autoridade para tomá-lo; se em meio ao ruído e a confusão, alguém deseja silêncio e calma, deve dominar a arte da tranqüilidade;
Do contrário, esse alguém estará sempre sujeito a modificar-se, uma constante vítima das circunstâncias.

185.
Não vá contra o que diz seu coração, não leve suas emoções ao extremo, não esgote suas forças e recursos.
Siga esses três conselhos, e alcançará uma virtude apreciada pelo mundo, a continuidade da vida, e a felicidade para os descendentes.

186.
O serviço público tem dois preceitos: ‘A imparcialidade dá o exemplo, a retidão confere autoridade’.
O cuidado de uma casa tem dois preceitos: ‘Tolerância gera harmonia, simplicidade gera a fartura’.

187.
Quando desfrutar da riqueza, esteja consciente das adversidades, e do risco de cair na pobreza.
Quando aproveitar a juventude, esteja consciente das dificuldades da velhice.

188.
Ao se conduzir de modo apropriado no mundo, não seja moralista demais, e prepare-se para ser insultado e caluniado.
Ao tratar com as pessoas no mundo, não seja exigente demais com elas, e compreenda que são uma mescla de virtude e vício.

189.
Não provoque inimizade com pessoas de baixo caráter, elas já têm seus próprios rancores;
Não louve pessoas já realizadas e superiores, elas não concedem favores de forma ordinária.

190.
Os males causados pelos desejos irrefreados podem ser curados, mas os males causados por uma percepção equivocada das coisas são muito difíceis de curar.
As barreiras formadas pelo materialismo podem ser facilmente eliminadas, mas as barreiras do entendimento são muito difíceis de eliminar.

192.
É preferível a perfídia e a zombaria dos néscios, do que suas louvações e elogios.
É preferível a censura dos sábios, ao invés de sua tolerância e perdão.

193.
Quem é materialista, e prejudica a sua conduta moral; o dano é óbvio e superficial.
Quem persegue a reputação moral, disfarçando sua maldade de virtude; o dano é oculto e profundo.

194.
Receber bondade, sem retribuir;
Pensar em vingança, mesmo diante de uma pequena ofensa;
Dar ouvidos e acreditar em mexericos;
Ver a bondade em plena luz do dia, e não acreditar nela;
Essas são as características de uma pessoa de baixo caráter moral; corte-a de suas amizades.

195.
Quando uma pessoa pequena calunia um Educado, é como uma nuvem que obscurece o sol; em pouco tempo, ele volta a brilhar.
Mas aquele que busca benefícios, em troca de favores, é como um vento ruim; ele invade o corpo, e causa uma doença invisível.

196.
Nas ladeiras altas e inclinadas nas montanhas não crescem árvores, mas os vales com rios e lagos estão cheios de vegetação florescente.
Nas cachoeiras não se encontram peixes, mas os tanques tranqüilos e profundos estão cheios de peixes e tartarugas.
Uma conduta muito severa e rígida, uma mente fechada e um coração estreito são coisas com as quais um sábio cuida.

197.
O Educado é sempre modesto e compreensivo; quem fracassa, em geral, é obstinado e inflexível.

198.
Na vida cotidiana, não se envolva demais com gente pequena, para não cair nas suas vulgaridades.
Ao realizar ações meritórias, não se afaste da gente vulgar, mas também não espere sua aprovação.

199.
O sol está se pondo, as nuvens e o Céu são magníficos ao entardecer;
O ano está terminando, e as folhas de laranjeira desprendem um aroma sublime;
Nos últimos anos de seu Caminho, o sábio já refinou seu espírito cem vezes.

200.
A águia, de pé, parece estar dormindo; o tigre, quando avança, parece cansado; por meio desses disfarces, eles apanham suas presas.
Assim, o Educado não revela sua inteligência, nem faz alarde de seus talentos, e desse modo leva a cabo suas difíceis tarefas.

201.
A simplicidade é uma qualidade virtuosa; mas, levada ao extremo, se transforma em sovinice, mesquinharia vulgar, e atrapalha o Caminho.
A modéstia também é uma boa qualidade; mas levada ao extremo, se transforma em leniência, complacência vulgar, e hipocrisia.

202.
Não se angustie quando as coisas não vão como o desejado, nem se regozije com qualquer prazer;
Não espere que a tranqüilidade dure muito tempo, nem tema as dificuldades para começar uma tarefa.

203.
Uma família que gosta muito de festas e bebidas não é uma boa família;
Um mestre que busca os prazeres da carne não é um bom mestre;
Um oficial que pensa demais na sua carreira não é um bom oficial.

204.
As pessoas tomam por prazeroso aquilo que as satisfaz; mas, quando seus corações estão cheios de prazeres, elas ficam amarguradas.
Por isso, o sábio se compraz com aquilo que contraria seus desejos, e no fim, sua amargura se transforma em alegria.

205.
Quem vive satisfeito e na abundância é como água, a ponto de transbordar: não se pode aumentar uma só gota.
Quem vive em crise e perigo constante, é como madeira a ponto de quebrar: não se pode aumentar nem um pouco a pressão.

206.
Com olhos tranqüilos, observa as pessoas;
Com ouvidos sóbrios, escute as palavras;
Com o coração tranqüilo, perceba os problemas;
Com a mente serena, encontre a razão das coisas.

207.
Um Educado é aberto e generoso, goza de bondade e prosperidade, e faz tudo com verdadeira alegria.
Uma pessoa pequena vive miseravelmente, sua visão é estreita, suas ações são estéreis, e tudo o que faz é com o espírito de avareza.

208.
Ao escutar que alguém fez o mal, não se apresse em condená-lo; podem ser apenas calúnias.
Ao escutar que alguém fez o bem, não se apresse em elogiá-lo; pode ser apenas uma artimanha.

209.
Uma pessoa rude e impetuosa não termina nada;
Uma pessoa tranqüila é abençoada em tudo o que faz.

210.
Ao tratar com as pessoas, não seja seletivo ou exigente demais, ou poderá afastar pessoas que poderiam ser úteis.
Ao fazer amizades, não seja seletivo ou exigente de menos, ou atrairá apenas os bajuladores.

211.
Em meio aos ventos cortantes e chuvas violentas, firme seus pés;
Em meio ao mato alto e campos de flores, olhe para cima;
Em meio a um Caminho perigoso e difícil, olhe para a trilha.

212.
Uma pessoa casta e íntegra cultiva sua amabilidade, e assim, não abre portas para o desentendimento.
Uma pessoas que busca honra e posição deve cultivar a virtude da modéstia, e assim, não abrirá portas para a intriga.

213.
Ao ocupar um cargo oficial, não envie cartas sem selo; seja difícil de ver, evitando oportunistas e bajuladores.
Ao visitar sua aldeia, não seja orgulhoso nem mal humorado; seja fácil de ver, fortalecendo as antigas e verdadeiras amizades.

214.
A uma pessoa de posto alto se mostra respeito, e assim, evita-se a baixeza;
A uma pessoa comum se mostra respeito, e assim, evita-se a arrogância.

215.
Quando as coisas vão contra sua vontade, pense naqueles cuja situação não é boa como a sua; seu sofrimento desaparecerá.
Quando seu coração estiver desalentado, pensa naqueles cujos sucessos superam aos seus; você se sentirá renovado.

216.
Não faça promessas impensadas, com a desculpa de que estava feliz;
Não fique encolerizado, com a desculpa de que estava bêbado;
Não discuta por nada, abusando da vontade alheia;
Não abandone uma tarefa, com a desculpa de que está cansado.

217.
Quem compreende perfeitamente um livro, alcança o ponto em que suas mãos e pés bailam juntos, e ele não cai nem na rede nem no anzol.*
Quem observa as coisas com perfeição, chega ao ponto em que seu coração se funde com o espírito das coisas, e ele não deixa pegadas no chão.**
* Não se atrapalha com as palavras ou pensamentos.
**Agir natural e isento.

218.
O Céu torna alguém sábio para ensinar o povo ignorante, mas no mundo, há quem se vanglorie de seus conhecimentos somente para mostrar aos outros seus defeitos.
O Céu torna alguém rico para que alivie o sofrimento das multidões, mas há quem use da riqueza para abusar e maltratar os pobres.
Ah, essas pessoas ofendem a vontade do Céu!

219.
O sábio não tem preocupações, o parvo não tem entendimento; com ambos, se pode estudar e construir.
As pessoas com propensões destacadas, mas sem um guia, desenvolvem apenas um aspecto da percepção e do entendimento; isso as torna introspectivas e desconfiadas, e é difícil ajudá-las.

220.
A boca é a porta da mente; vigie-a com cuidado, ou deixará escapar suas intenções ocultas.
Os pensamentos são os pés da mente; controle-os firmemente, ou será levado para o Caminho da perdição.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

29 Mar 2023

A missão diplomática aos Jin recriada por Yang Bangji

Wang Hui (1632-1717), que foi convocado para a capital para dirigir uma das maiores e mais complexas pinturas feitas sobre um rolo de seda (67,8 x 2227, cm, tinta e cor, no Museu do Palácio Nacional, em Pequim) para ilustrar o alardo da corte na primeira Viagem ao Sul do imperador Kangxi realizada em 1689, imprimiu o seu prestigiante carimbo numa outra antiga pintura cuja não menor complexidade é de outra natureza.

Esta pintura onde também figura, entre outros, o ilustre carimbo do mestre de Suzhou Wen Zhengming (1470-1559) é um objecto raro da pintura narrativa de paisagens, resultado de um tempo e uma conjuntura histórica invulgar. O rolo a que, na ausência de qualquer inscrição contemporânea, é conferido o título Missão diplomática ao território dos Jin (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 26,7 x 142,2 cm, no Metmuseum) mostrando um lugar aprazível entre montanhas envoltas em névoas, num estilo que suaviza as monumentais paisagens dos Song do Norte, ilustra afinal uma situação trágica. Que o coleccionador Chen Rentao (1906-1968) esclarece, num comentário colado no rolo:

«Estendendo esta pintura sente-se vivamente a humilhação do derrotado regime dos Song e a arrogância dos Jin, através do silêncio da tinta e do pincel.»

A sua autoria, na ausência de assinatura ou carimbo do autor, é atribuída a Yang Bangji (c.1110-1181), o filho de um alto funcionário de origem Han da dinastia Song que quando ela foi derrotada em 1127, e a corte foi de Kaifeng para o Sul estabelecendo a nova capital em Hangzhou, e a sua família executada, escapou escondido num mosteiro budista. Nascido em Huayin (Shaanxi) foi também funcionário, agora ao serviço dos Jin (Jurchens) e beneficiou como se percebe na pintura, do acesso a colecções privadas e às que ficaram guardadas em palácios imperiais, deixadas atrás pela dinastia em fuga.

Yang Bangji retrata um breve evento num posto de descanso no caminho que os diplomatas da dinastia Song do Sul faziam até à corte dos Jin, além da fronteira constituída pelo rio Huai, entre os dois grandes rios Huanghe e Changjiang.

Três altos pinheiros crescem ao lado de uma construção com uma mesa no meio, já vazia, diante da qual quatro homens a cavalo, com as vestes e as cores que distinguem os graus que possuem os funcionários dos Song, como o púrpura do mais graduado ao verde ou branco, preparam-se para partir.

Um homem de pé levanta o braço em despedida. À sua frente, do lado esquerdo dois cavaleiros com chapéus dos Jin vão enérgicos, um deles com um rolo às costas; do lado direito, músicos cujos instrumentos como as flautas típicas dos Jurchen mas também o qin dos Han, o que faz datar a pintura dos anos de 1141-61 quando os soberanos Xizong e Hailing que reinaram entre 1135 e 1161 adoptaram a complexa e fascinante cultura dos Song que Wang Hui continuou.

27 Mar 2023

Sobre as tradições Chan e Terra Pura no budismo chinês

Do século V ao século X a China presenciou a formação do que é hoje categorizado, historiograficamente, como as “oito escolas” do budismo setentrional. A esse conjunto pertencem as escolas Três Tratados, Tiantai, Mente Apenas, Guirlanda de Flores, Vinaya, Tântrica, Chan e Terra Pura. Muito resumidamente podemos dizer que as escolas Três Tratados e Mente Apenas são, diferente das outras, tradições indianas recebidas pelo budismo chinês. A escola dos Três Tratados é derivada diretamente da escola indiana Madhyamika, do monge Nagarjuna — considerado um santo, um “segundo Buda”. Tal escola foi levada à China pelo monge tradutor Kumarajiva.

A escola Mente Apenas, também de origem indiana, deve sua origem aos escritos dos irmãos Asanga e Vasubandhu (sécs. IV ou V). Na Índia tal escola é denominada Yogachara, que significa “aplicação do yoga”. Como seu nome deixa entrever, a escola Mente Apenas tem seu foco na noção de que todos os fenômenos são produtos da mente.

Essas duas escolas indianas constituem o que se pode chamar de totalidade da tradição budista do norte — tradição que se difundiu do norte da Índia para a Ásia Central, China, Japão, Coreia, Vietname, Tibete e Mongólia.

As demais escolas, todas de origem chinesa, acabaram por ser absorvidas pelas únicas tradições com alguma constância institucional ao longo da história. Essa absorção significa que, no seio das escolas ainda institucionalizadas, algumas de suas práticas e literaturas permanecem importante material de estudo. As escolas ainda existentes, como já é possível imaginar, são justamente as que nomeiam este texto: Chan e Terra Pura.

Entretanto, embora mestre Hsing-Yün diga textualmente que “actualmente na China, somente as escolas Ch’an e Terra Pura ainda dispõem de componentes institucionais”, devemos relativizar tal afirmação. Embora as duas tradições tenham, de fato, presença marcada no contexto chinês atual, há debates indicando que Terra Pura nunca se consolidou enquanto escola institucional autônoma, sendo antes uma prática difundida e disseminada por muito do universo budista chinês.

Contrapondo tal problemática ao claro cenário budista japonês — em que há instituições Terra Pura fundadas por Honen (1133-1212, fundador da Escola da Terra Pura) e Shinran (1173–1263, fundador da Verdadeira Escola da Terra Pura) —, Mestre Sheng Yen é categórico: “não existe Escola da Terra Pura.” E isso porque, no contexto chinês, o que se evidenciava era um fato muito diverso do caso institucional japonês, em que templos são filiados a mosteiros cuja denominação responde diretamente às escolas da Terra Pura mencionadas.

Na China, pelo contrário, templos e mosteiros não mantinham tais filiações estritas, e um templo era considerado “Terra Pura” quando seu abade orientava a prática da recitação do nome do Buda Amitabha. Tal recitação, esta sim, é a prática Terra Pura mais característica, que visa — soteriologicamente falando — fazer o devoto renascer na Terra Pura do Buda Amitabha, um reino criado pela compaixão desse buda, onde as condições para atingir a iluminação seriam consideravelmente facilitadas.

Tal recitação do nome — comumente escrita nien fo (ou nian fo, 念佛) — associava determinado templo à Terra Pura, se tal prática fosse nele difundida. Entretanto, por faltar o elemento institucional que caracterizaria uma escola, a prática de nian fo nem sempre sobrevivia a seu próprio incentivador, e após a morte do abade o templo passava a ser centro de outras práticas budistas, usualmente Chan.

Uma suposta fusão entre escolas, portanto, não faria sentido nesse contexto fluido e não-institucional do budismo chinês. Por isso a revisão historiográfica de Robert Sharf questionou sobremaneira tal definição acadêmica, mostrando extensamente que no período medieval a China não possuía uma escola Terra Pura e outra Chan, mas ambas as formas de prática se apresentavam em conjuntamente, com maior ou menor prevalência a depender das circunstâncias.

Referências:

1. HSING-YÜN, Venerável Mestre. Conceitos fundamentais do budismo. Sintra: Zéfiro, 2010, p. 161.
2. HSING-YÜN. Op cit. 2010, p. 159.
3. HSING-YÜN. Op cit. 2010, p. 169.
4. SHENG YEN. Master. The Dharma Drum Lineage of Chan Buddhism: Inheriting the Past and Inspiring the Future. Taipei: The Sheng Yen Education Foundation, 2010, p. 60.
5. SHENG YEN. Idem.
6. SHARF, Robert. On Pure Land Buddhism and Ch’an/Pure Land Syncretism in Medieval China. In: T’oung Pao 88, no. 4-5, June, 2003, pp. 282-331.
7. Ainda hoje, tanto na China como em Taiwan, perguntar a um monge algo como “a que escola este templo pertence?” não parece fazer sentido. A resposta quase sempre evidencia que tais escolas e tradições budistas bem podem ter existido, historicamente, mas não é algo a que devamos nos apegar. O Reverendo Joaquim Monteiro também relata esse tipo de reação, que já pudemos presenciar tanto no Brasil quanto em Portugal ou Taiwan, em uma palestra disponível em vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=a7w_OV2yOjo&feature=youtu.be

27 Mar 2023

Budismo Chinês: Mentalismo com Características Chinesas

Numa breve contextualização histórica do Budismo com características chinesas, acredita-se que este, fundado por Gautama Shakyamuni (c. 560-c. 480 a.C.) príncipe indiano, afastado do poder real para nutrir a via espiritual, terá entrado na China na versão do Grande Veículo, Mahāyāna (大乘Dà Chéng ), aquela que se desenvolveu a partir do século III a.C., surgindo como um alargamento de via, já que floresceu a partir do Pequeno Veículo, Hīnāyāna (小乘Xiǎo Chéng), na crença de ser possível renunciar à iluminação total em prol do benefício da humanidade, a favor da qual Budas cederiam o seu lugar a Bodhisattvas (菩萨/薩Púsà), seres que voltavam propositadamente as costas à dimensão transcendente para se manterem ao nível imanente a auxiliar todos aqueles que necessitam de apoio.

Acredita-se ainda na versão popular que o Budismo terá chegado à China no século I, no reinado do Imperador Han Mingdi (汉/漢明帝, 28-75), na sequência de um sonho com um ser voador dourado, talvez uma visão de Buda, que o terá impulsionado a enviar emissários à Índia em busca das escrituras budistas.

Mas segundo eminentes estudiosos do Budismo como o mestre budista Nan Huai-Chin defende em Basic Buddhism (1997), ou o pensador Daisaku Ikeda em The Flower of Chinese Buddhism(1986), esta filosofia religiosa ter-se-á consolidado na China com o estabelecimento da Escola da Terra Pura (净土 Jìngtǔ) pelo patriarca Hui Yuan (惠远遠, 334-416).

Mas este não é ainda o budismo que se considera com características tipicamente chinesas, por várias razões, entre as quais a defesa de mentalismo parcial, em que a humanidade renasceria num paraíso buda, a Terra Pura, a terra do Buda Amitabha. Este é popularmente retratado com pele vermelha e uma tigela mendicante, que contém o elixir da longevidade/imortalidade (Alves, 2007: 92). Ele é o da infinita luz, que preside ao paraíso ocidental, onde os seres renascem, apenas na condição masculina, para atingirem o estado de iluminação perfeita.

Este tipo de Budismo, que pressupõe a unidade mental, mas que na prática implica uma visão parcial da existência onde o princípio masculino Yang (阳/陽), concretamente encarnado em homens, é privilegiado, bem como os métodos concretos de acesso à Terra Pura, nos quais se enfatiza a repetição do nome do Buda, as escrituras e seus mantras e a contemplação de várias imagens mentais, que vêm a distanciar a escola, bem como uma outra, a da Plataforma Celestial (天台Tiāntái), fundada por Huiwen (惠文) no século VI, daquela que se considera a linha budista mais representativa da mentalidade chinesa – o Budismo da Meditação ou Chan (禅 Chán), fundado por Bodhidharma (菩提达達摩) no séc. VI, tendo chegado à China durante a dinastia Liang (梁), vindo do Sul da Índia para a maioria dos estudiosos, mas há também quem lhe atribua nacionalidade iraniana e o suponha a entrar na China a partir da Ásia Central via a Rota da Seda.

De acordo com Fung Yu-lan/ Feng Youlan (馮友蘭冯友兰) no seu segundo volume de History of Chinese Philosophy (1983:390) todas as escolas da Meditação/Chan concordam em cinco pontos fundamentais: 1) a verdade última é inexprimível; 2) a via espiritual não pode ser ensinada; 3) nada se ganha, mas pode-perder se muito na e com a vida; 4) os ensinamentos budistas não contêm nada de especial; 5) o tao cultiva-se diariamente, transportando a água e cortando a lenha.

Se atentarmos bem, nestes cinco pontos que tornam tão característico este Budismo da Meditação chinesa, verificamos que ele ganha toda a sua especificidade no encontro com o Taoismo, já que também para os grandes filósofos taoistas a verdade última não é conceptualizável nem, portanto, nomeável. Também o Mestre taoista, o Santo (圣聖 n人Shèngrén) não ensina através de palavras, teorias ou doutrinas, mas com a sua postura silenciosa e modelar.

Os taoistas não esperam que a vida lhes acrescente algo, mas temem sinceramente que lhe seja roubada a visão espontânea, natural, que lhes confere as melhores características, a virtude do Recém-nascido (婴儿/嬰兒Yīng’ér), manifestando uma imensa suavidade e flexibilidade. Além disso, também para os taoistas o melhor do mundo reside em -se ser simples, cumprir com todas as pequenas acções quotidianas que nos colocam no caminho da vida, afastando a morte.

O Budismo que cultiva a perspetiva mentalista e, simultaneamente, se oferece como um hino à vida simples do comum dos mortais, que rejeita escrituras e dogmas, bem como aforismos de grandes mestres e, em última análise todos os ensinamentos escritos, é, a meu ver, o verdadeiro Budismo Chinês, aquele que no século XXI tem através das suas escolas, sugestivamente denominadas montanhas, beneficiado a sociedade, ao levar os seus membros a prolongarem a atuaçãos dos Bodhisattvas, empenhando-se ativamente em beneficiá-la através da criação e desenvolvimento de instituições sociais tão necessárias como escolas, hospitais, lares, etc.

Mas voltemos ao ponto de partida de mentalismo chinês. A mente exercita-se por se desprender de todas as formas físicas e intelectuais, de modo a oferecer-se ao meditador como pura energia. Para trás ficou o ego, o senhor bélico que na caligrafia chinesa é re-apresentado como uma espada contra outra, o Eu (我 Wǒ) . Este só traz problemas por estar sempre pronto para uma boa luta, como a etimologia indica sem falhar.

Como se adquire então a concentração no poder mental? É seguindo mais uma vez os antigos ensinamentos taoistas, tranquilizando a mente, silenciando-a, bem como ao corpo, já que um e outro são inseparáveis, transformando a nossa forma física numa montanha, quieta, silenciosa e pacífica, de modo a polir com calma e tranquilidade a mente, que de tijolo tosco se há-de transformar em espelho brilhante. O objectivo final é, recordemo-lo, unir a nossa energia mental à universal, através da postura correcta, do cultivo do Sopro Vital (气/氣).

Os patriarcas da Escola Chan conheciam muito bem, por um lado, O Clássico das Mutações (易经/經 Yì jīng), por outro, os princípios básicos da filosofia taoista. Sabemos que entre os oito trigramas do Clássico das Mutações se encontra o Criativo/ Céu (乾Qián), o Receptivo, a Terra (坤Kūn) , a Montanha (艮Gèn) e o Fogo (离離 Lí), sendo estes os trigramas, que no seu jogo de composição hexagramático, nos levam ao entendimento dos princípios essenciais do Budismo Chinês.

O corpo necessita de se imobilizar como uma montanha, de modo a dar origem ao poder mental, descrito como, fogo, lanterna, lâmpada a arder num monte escuro de mistério, que medeia entres dois princípios fundamentais, o Criativo celestial, figurado como um manto branco gelado, brilhante, cujo brilho a mente humana partilha como pérola, e uma terra negra, recetiva, palco passivo onde todas as transformações da energia celestial ocorrem.

Assim se oferece o 56º hexagrama, o do Viajante (旅 lǚ) no Clássico das Mutações, constituído pelo trigrama na base Montanha tranquila (艮Gèn) e no topo pelo Fogo ( 离離Lí) aderente, brilhante, activo e inteligente. O Fogo na Montanha, a fogueira a arder sob um solo tranquilo e pacificado será assim uma figuração adequada para o verdadeiro budista, um viajante tão impermanente como o mundo onde nasceu, que busca activamente a permanência através do seu poder mental.

É assim que julgo dever compreender-se a tese do sexto patriarca Huineng (慧能, 638-713), retirada do Registo dos seus Diálogos (《六祖慧能語錄》) “uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos ”(一燈能除千年暗Yī dēng néng chú qiānnián àn) (Jiang 1997: 36), sendo que a lanterna é naturalmente a mente iluminada.

E Huineng completa a passagem com a seguinte afirmação: “Tal como uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos, assim a sabedoria pode extinguir centenas de milhares de anos de ignorância e estupidez.” (一燈能除千年暗, 一知惠能滅)(Ibidem), ou seja, a sabedoria é o fogo que arde sem se ver, pedindo emprestado o verso a Luís Vaz de Camões, mas que é justamente figurada por ele.

Ora este fogoso saber vai permitir “derreter” todas as divisões, fronteiras e oposições, favorecendo a criação de uma energia mental una e pronta a fundir-se com unidade essencial e espiritual do coração-mente (心 xīn)que comanda o universo budista, em que Buda e o coração significam a mesma coisa, como nos ensina o quarto patriarca dos Chan, Daoxin (道信, 580-651) , nos Registo dos Diálogos do Quarto Patriarca (《四祖道信語錄》) aquele cuja leitura etimológica do nome aponta para a “Confiança no Caminho ”, e esse tem de ser o Caminho do coração-mente (Jiang, 1997:12-15).

Um dos textos que considero mais emblemáticos da filosofia Chan é aquele em que o monge da dinastia Song Jingxuan (警玄, 943-1027) se refere a Um Pássaro Negro na Neve na Noite Escura (夜放鳥雞帶雪飛) do Registo dos Diálogos de Jingxuan (《警玄語錄》) do Vol. 14 da Fusão das Fontes das Cinco Lanternas (《五燈會元》), também da dinastia Song, por reunir os opostos num jogo complementar, onde facilmente visualizamos uma espécie de Supremo Último (太极Tàijí), no qual um pássaro negro voa sobre a neve na noite escura, logo as únicas formas que permanecem são a máxima criatividade, aqui representada pela neve, já que o princípio celestial é branco em complementaridade com a telúrica e misteriosa escuridão.

Procura-se reter o dinamismo perdendo as formas, sendo o poder mental como um espelho, um diamante, a neve, pérola branca, esta contém o conjunto das cores sem refectir especificamente qualquer delas, ou podendo fazê-lo a todas, e joga com um outro dinamismo, o do chão da noite e do pássaro negro. Este oferece-se como a ausência de forma e de cor, traduzindo a condição adequada ao coração-mente refletor, como de resto termina a passagem na qual Jingxuan agradece ao Mestre por lhe mostrar como era o coração dele, um pássaro negro onde sobressai a neve na noite escura (Jiang, 1997: 345).

Um pouco antes dos primeiros patriarcas Chan viveu Santo Agostinho, o Bispo de Hipona e um dos nossos maiores patriarcas cristãos (354-430). Nasceu em África na atual Souk Aras da Argélia. Era de uma grande sensibilidade, intuição e afecto, valorizando a amor cristão acima de tudo. É dele o famoso aforismo ama e faz o que quiseres. Mas o amor ao qual ele se referia era altruísta, universal, capaz de ligar toda a humanidade, porque vindo diretamente de Deus.

O autor de grandes obras religiosas como Confissões, Cidade de Deus e A Trindade, foi também um grande pensador filosófico da linha platónica, tendo-nos deixado nove diálogos, entre os quais aqui se distingue o último que nos ofereceu, O Mestre . Neste diálogo, esbatem-se as fronteiras entre a transcendência e a imanência, aproximando-o, por isso, da tradição oriental e, especificamente, chinesa.

Há um mestre que ensina, Jesus, alcançável pela mente, explica Santo Agostinho ao filho Adeodato: “nessa luz interior da Verdade, de que é iluminado e goza aquele que se denomina homem interior” (1984: 71). A divindade habita no interior da pessoa e dá-se a conhecer diretamente através da mente, poder racional, coração ou buda.

Afinal que diferença há entre Buda, o Homem Interior e o coração-mente? O certo é que todos estes nomes se deixam figurar por uma luz iluminante que permite contemplar diretamente a verdade, à maneira ocidental, ou a sabedoria através “ dessa visão íntima e pura, que conhece pela sua contemplação o que eu digo, e não pelas minhas palavras” (Santo Agostinho, 1984: 71).

Assente fica que a verdadeira sabedoria habita no interior, na mente e que em ambas as linhas filosóficas se desconfia e muito das palavras. Assim, também no pensamento cristão agostiniano se privilegia a intuição, muito acima do discurso, para o conhecimento da realidade ou, como o filósofo lhe chama, das coisas: “Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade.” (Santo Agostinho, 1984: 72).

Se a vida venturosa do cristão agostiniano, implica o conhecimento intuitivo e amor a este Mestre interior, não é menos verdade que a natureza é digna da melhor das contemplações enquanto belíssimo sinal de Deus. É evidente que há grandes diferenças entre ambas as tradições e não chegamos com Santo Agostinho a uma visão imanentista e panteísta, mas sim ao método contemplativo que rejeita as palavras enquanto instrumento privilegiado da verdade, favorecendo, à maneira taoista e budista, a ligação direta à realidade sem interferências intelectuais, ou pelo menos tão poucas quando possível.

Por último, e num regresso ao nosso ponto de partida, reafirma-se que o budismo mais caracteristicamente chinês é o Chan, que habilmente equilibra e doseia os rigores mentalistas com um louvor incessante à natureza e a à vida, sendo por isso que o Mestre Chan Huiji (慧寂,807-883) defende estar a via de Buda no quotidiano ao qual somos ligados na sua expressão , “pelos olhos, ouvidos e nariz (眼裏耳裏鼻裏)” (Jiang, 1997:250 ).

Bibliografia

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______________. 2007. A Mulher na China. Lisboa Tágide.
Ikeda, Daisaku. Le Boudhisme en Chine. Monaco: Éditions du Rocher, 1986.
Nan Huai-Chin. 1997. Basic Buddhism. Exploring Buddhism and Zen. York Beach, Maine: Samuel Weiser, Inc.
Jiang Lansheng. 1997. 100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 《禪宗語錄一百則》Hong Kong: 商務印書館有限公司.
S. Agostinho. 1984. O Mestre. Braga: Faculdade de Filosofia.
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.

27 Mar 2023

Sexta Viagem Marítima de Zheng He (IX)

Zhu Di (1360-1424), como príncipe de Yan, governara Beiping desde 1380, quando as fronteiras do Norte se encontravam ameaçadas por constantes investidas dos mongóis, tendo-os vencido em 1390, após dez anos de duros combates. Conquistando ao seu sobrinho, o imperador Jianwen (1398-1402), Nanjing, a então capital da dinastia Ming, em 1402, Zhu Di tornou-se imperador e logo começou a pensar mudar-se para o Norte, devido à estratégica posição.

Em 4 de Fevereiro de 1403, já como Imperador Yongle, proclamou passar Beiping a chamar-se Beijing (Capital do Norte), mobilizando mais de 136 mil famílias de Shanxi para aí irem viver. A construção da nova capital começou em 1406, usando partes de Dadu, a capital da anterior dinastia mongol Yuan, e foi planeada com três partes: a Cidade Proibida onde se situava o Palácio Imperial, a Cidade Imperial, local desde a Porta Wumen até à Porta Qianmen e a Cidade Interior.

Beijing originariamente tinha vinte portas, nove das quais para a cidade interior, sete nas muralhas da cidade exterior e quatro para a Cidade Proibida. Cada porta tinha a sua função, sendo a Desheng para receber as tropas que regressavam vitoriosas e a Anding de onde partiam as expedições militares.

Em 1407 iniciou-se a edificação do Palácio Imperial, com a ajuda de 230 mil trabalhadores especializados, entre habitantes locais e de todas as zonas do país. A Cidade Proibida tinha um perímetro de três quilómetros com um diâmetro no eixo Norte-Sul de 760 metros e de Oeste para Leste de 766 metros.

Rodeada por muros com 7,9 metros de altura e um fosso na parte exterior a toda a volta, na parte Sul situavam-se os pavilhões onde o Imperador trabalharia nos assuntos do Estado e realizaria as cerimónias e na parte Norte, a zona da residência do Imperador, da esposa e concubinas.

Na Cidade Interior foi na altura edificado o Templo do Céu, Tiantan, onde inicialmente eram venerados o Céu e a Terra.

Enquanto prosseguiam as construções na cidade de Beijing, o Imperador Yongle mandou reparar e dragar o Grande Canal para o tornar mais largo à navegação e facilitar o transporte dos cereais da zona de Jiangnan, o celeiro da China, de Hangzhou até à nova capital, ficando essa obra terminada em 1415. Também a Grande Muralha foi reforçada para proteger o território Ming dos mongóis, que tinham retornado às suas estepes.

A transferência da capital de Nanjing para Beijing realizou-se no primeiro dia da primeira lua de 1421, mas no dia 8 da 4.ª lua desse mesmo ano Xin Chou (辛丑), 19.º ano do reinado de Yongle, devido a uma trovoada três pavilhões da Cidade Proibida arderam, tinha já a armada partido para a sexta viagem marítima de Zheng He. Alguns oficiais criticaram junto do Imperador as expedições considerando ser o incêndio um sinal divino.

VIAGEM de 1421 a 1422

Na quinta viagem marítima vieram dezasseis embaixadas da Ásia e África que chegaram a Nanjing no 7.º mês lunar do ano 17.º de Yongle (ano Ji Hai 己亥), 8 ou 17 de Agosto de 1419, mas como desde 1417 o Imperador aí não voltou, foram pelo Grande Canal levados até Beijing por Zheng He.

Sem fazer trasfega, os tributos prosseguiram no segundo maior junco da armada, o barco cavalo, assim chamado por ser muito rápido devido aos oito mastros e dez velas, que não entrou no Rio Yangtzé, mas por mar foi até Tianjin, passando só aí a navegar no Grande Canal para percorrer a última etapa até à capital.

No oitavo mês lunar os enviados de Ormuz (Hulumosi), Zufar (Zufa’er em Omã), Adem, Mogadíscio, Zheila (Ra’s), Brava (Bu-la-wa), Cambaia (Khanbayat), Calicute (Guli), Cochim (Kezhi), Jiayile (Kayal no Sul da Índia), Ganbali (Sudoeste da Índia), Ceilão (Xilanshan), Lambri, Aru (Haru), Semudera e Malaca (Manlajia) foram recebidos por o Imperador em Beijing.

No 18.º ano de governação de Yongle, ano Geng Zi (庚子), em 1420 o Imperador mandou o Grande Eunuco (Tai Jian) Hou Xian (侯显, 1365-c.1438) ao Golfo de Bengala para tentar terminar com o conflito e estabelecer a paz entre o Sultanato de Delhi e o reino tributário da China de Bengala (Bang Ge la), assim como levar de volta os enviados do Sudeste Asiático, onde se encontrava o Sultão de Malaca Megat Iskandar Shah e família.

Já os embaixadores provenientes dos reinos do Mar Arábico e África de Leste esperaram quase dois anos para serem enviados aos seus países, pois a ordem imperial para a sexta viagem marítima de Zheng He só foi dada na Primavera do ano 19.º de Yongle (ano Xin Chou, 辛丑, 1421), 3 de Março de 1421, após a inauguração da nova capital. O Grande Almirante foi então despachado com cartas imperiais e prendas para os governantes desses países.

Zheng He navegando pela costa do Sudeste da China chegou ao porto de Vijaya no Zhancheng, de onde enviou uma pequena frota ao Sião (Xian lu) com o recado para o Rei tai deixar em paz o reino de Malaca, enquanto a armada seguiu com destino a Malaca, e daí para a ilha de Sumatra, visitando os reinos de Lambri, Aru e Semudera. Em Semudera a armada foi dividida em quatro esquadrões, sendo o de Zheng He (郑和) o mais diminuto, enquanto os outros três, um comandado por o Grande Eunuco Hong Bao (洪保), o outro por o Grande Eunuco Zhou Man (周满), a liderar a frota com três juncos do tesouro a Adem, onde seguia Li Xing e o terceiro, comandado por um outro Grande Eunuco, Zhou Wen (周文), do qual na China não há já nenhuma referência, terá ido a Cambaia (Khanbayat). Todos estavam incumbidos de transportar os embaixadores de retorno às suas terras.

No Ceilão (hoje Sri Lanka) os esquadrões separaram-se, seguindo Zheng He para o Sul da Índia, Jiayile, Cochim, Ganbali e Calicute. Hong Bao viajou por Liushan (ilhas Laquedivas e Maldivas, esta governada por um sultão somali da dinastia Hilaalee conectado a Mogadíscio) para chegar ao Golfo Pérsico e deixar em Ormuz o enviado, dirigindo-se depois a Mogadíscio, onde se encontrou com o esquadrão de Zhou Man que vinha de Jedá, seguindo depois para Brava, Melinde e Mombaça, na costa Oriental de África.

O Grande Eunuco Zhou Man, que liderou o esquadrão com três juncos do tesouro, foi à Arábia, passando por Dhofar (Zufa’er) em Omã e pela costa de Hadramaut no actual Iémen foi a LaSa, dirigindo-se depois ao porto de Adem, onde ofereceu ao Rei vestes e barrete de Oficial chinês. Tal visita ficou registada no livro Yingya Shenglan (瀛涯胜览) [Visão em Triunfo no Ilimitado Mar] escrito por Ma Huan (1380-1460). Daí foi a Jedá e no regresso passou por Socotra, por Zheila (Saylac), já na costa Somali, seguindo até Mogadíscio, onde se encontrou com o esquadrão comandado por Hong Bao.

No regresso, atravessando o Oceano Índico vários esquadrões agruparam-se em Calicute e a armada reuniu-se toda em Semudera, visitando depois o Sião e em Palembang (Jiugang) Zheng He decretou que Shi Erjie, segunda filha de Shi Jinjin e neta de Jinqing, sucedesse na posição de administrador de Jiugang a representar o Imperador Ming.

Esta foi a mais curta de todas as viagens marítimas de Zheng He, tendo feito o mesmo percurso do da quinta viagem. A armada chegou a Nanjing no 8.º mês lunar do ano 20.º de Yongle (ano Ren Yin 壬寅, 1422) [3 de Setembro de 1422], trazendo enviados do Sião, Semudera, Adem e outros países que mandaram produtos locais como tributo. Os enviados estrangeiros foram via terra ou por o Grande Canal até à corte de Beijing em 1423.

23 Mar 2023

Os tesouros do letrado – Tradição e valorização dos objetos de escritório na cultura chinesa

Os objetos de escritório destinados à pintura e à caligrafia constituem uma tradição valorizada na China, sendo comum em residências de letrados profissionais e amadores. Desde o final da dinastia Zhou (c. 500 a.C.), a escrita na China é realizada com pincéis feitos de pelos de mamíferos, um elemento central do conjunto de instrumentos utilizados para essa atividade. Outro artefato importante é a “pedra de tinta”, geralmente uma placa de pedra colocada em uma caixa, com ou sem tampa, frequentemente elaborada com uma pedra específica usada para triturar a tinta produzida em bastonetes sólidos.

A pedra de tinta mais utilizada para essa finalidade foi a “duanshi”, de origem vulcânica, encontrada na província de Cantão, caracterizada por sua alta densidade e textura suave, permitindo a perfeita trituração e dissolução em água do bastão de tinta.

Além da pedra “duanshi”, outros três tipos de materiais eram empregados para a produção das pedras de tinta, sendo eles a pedra “She”, da região de Anhui, também de origem vulcânica, a pedra do rio Tao, de Gansu, uma pedra cristalina extraída do fundo de um rio, hoje inexistente, e a pedra “cerâmica” da região de Luoyang em Henan. (RIBEIRO, 2002, p. 368-369). Outros objetos frequentes no conjunto de instrumentos de escrita na tradição chinesa incluem pesos de papel, porta-pincéis para armazenar pincéis secos, descansos para pincéis, onde pincéis molhados são colocados, pequenas vasilhas feitas de cerâmica ou madeira, utilizadas para misturar tinta com água, além do descansa punho, um artefato feito de marfim, madeira ou cerâmica.

O selo é outro objeto comum nessa tradição, embora tenha sido desviado de seu objetivo original para atuar como um identificador de status e propriedade entre colecionadores. Caracteres tipicamente gravados em estilo arcaico são usados nos selos, que enriquecem e enfatizam o valor das pinturas.

O uso de selos é uma tradição elaborada e consistente que atingiu seu apogeu durante a dinastia Qing (1636–1912 d.C.). Sua origem remonta ao período da dinastia Song (960-1279 d.C.), quando as marcas produzidas por esses objetos – impressões realizadas na superfície das pinturas com um pigmento vermelho à base de óleo – começaram a ser utilizadas como precaução contra falsificações (XIN, 1997).

Na cultura chinesa, existem dois tipos de selos: um que faz referência ao nome pessoal do artista e outro contendo caracteres de reflexão filosófica. No entanto, é importante destacar que alguns selos de colecionadores e inscrições de caligrafia, com poemas, apreciações estilísticas, dedicatórias ou interpretações da obra, são posteriores à execução da pintura.

Em suma, a China é conhecida por sua rica cultura, que abrange uma ampla variedade de áreas, incluindo a escrita, a caligrafia e a pintura. Os aristocratas chineses com responsabilidades públicas não eram apenas versados em leis e administração. Eles eram verdadeiros “connaisseurs d’art”. A tradição dos objetos de escritório é um testemunho da valorização das artes e da intelectualidade na cultura chinesa. Neste texto, examinamos mais de perto essa tradição e seus elementos centrais.

Por fim, é possível afirmar que a tradição da escrita na China demonstra a alta intelectualidade do povo chinês durante as duas últimas dinastias. Segundo Julian Bell (2008, p. 106), foi nessa sociedade, considerada a mais letrada do mundo, que a arte “concebida não apenas para a elite, mas pela elite, ganhou forma”:

“A caligrafia era uma prática que unia o refinamento da sensibilidade ao refinamento da técnica. Os deslizamentos, arremetidas e saltos pulsantes do pincel cheio de tinta davam aos bem-educados uma chance de ostentar sua superioridade de espírito em corteses trocas de rolos de seda contendo poemas ou letras. O que hoje consideramos ‘pintura chinesa’ surgiu mais ou menos como um adjunto dessa arte suprema”. (BELL, 2008, p. 106).

 

Referências:

RIBEIRO, José Diogo Henriques Sêco. “A Colecção de Arte Chinesa do Poeta Camilo Pessanha”, Arquivo Coimbrão – Boletim da Biblioteca Municipal 35, 2002, pp. 368, 369.
XIN, Y., “Approaches to Chinese painting – Part I”, in “Three Thousand Years of Chinese Painting”, ed. Y. Xin, N. Chongzheng R. M. Barnhart et al., Yale University Press, Londres, 1997.
BELL, Julian. Uma nova história da arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p.106.

23 Mar 2023

As Deslumbrantes Montanhas de Verão de Qu Ding

Hongli, que reinaria como o imperador Qianlong (r.1736-95), estudioso atento da cultura que desejava preservar e restaurar, sabia de um outro imperador coleccionador e apreciador das artes cujos traços, em pinturas, caligrafias ou em carimbos, que testemunhavam o seu olhar arrebatado diante de rolos de pinturas, reconhecia e anotava como inolvidáveis.

Fê-lo, por exemplo, numa minuciosa e deslumbrante pintura que pertencera à sua colecção e à qual se quis vivamente associar, escrevendo sobre ela no ano de 1748 numa rara grelha de linhas brancas, o texto:

«Elegante antiguidade cujo fragrante perfume
ainda se sente, tantos anos depois.
Os carimbos Xuanhe, do imperador Huizong,
fazem-na ainda mais preciosa.
As figuras nela aparecem cheias de vida,
Como se as árvores e as pedras
fossem retiradas da própria natureza,
Sente-se a humidade da luxuriante vegetação
das montanhas de Verão;
Dos desfiladeiros vem o murmúrio
do ritmo repetitivo das ondas ao sol.
Empoleirados lá nas alturas, surgem amplos pavilhões.
Como nos sentiriamos debruçados na vedação
apreciando semelhante panorama?»

Essa pintura, Montanhas de Verão (Xia Shan tu, rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 45,4 x 115,3 cm, no Metmuseum), que não tem nenhuma inscrição, carimbo ou assinatura do seu autor é atribuída a Qu Ding (c. 1023-c. 1056), um discípulo de Yan Wengui (c.967-1044) cujo nome consta do rolo, e será uma de três com o mesmo título no Catálogo de pinturas da era Xuanhe, «Afirmação da harmonia», de Huizong (Xuanhe Huapu), de 1120, que regista cerca de 6396 pinturas de 231 artistas.

E nela se pode observar aquela atenção ao aspecto mutante das montanhas ao longo do ano que os tratados da dinastia Song do Norte recomendavam, «para perceber o misterioso sopro dos próprios princípios da Criação» (Han Zhuo em 1121).

Qu Ding vai pacientemente figurando, sob altivas montanhas de «árvores luxuriantes, abundantes e cheias de sombras», um dia de Verão, com a sua «coloração azul-verde que parece derramar-se por todo o lado» e as «nuvens e vapores ricos e densos» como Guo Xi (1020?-1090?) descreve no Linquan Gaozhi, a Grande Mensagem sobre Florestas e Nascentes.

Da direita para a esquerda, numa progressão em que o observador se vai apercebendo de detalhes, há pássaros voando em bandos, pescadores com as suas armadilhas, aldeias, palácios e mosteiros surgindo das brumas. E ligando tudo, pontes, em número de cinco que no Yijing corresponde a Esperando, «é favorável atravessar um grande rio».

Sobre uma dessas pontes, sentado numa mula, a reconhecível figura de um homem de cultura disponível para se deixar assombrar pelas mutações da natureza, tão exuberante e assertiva no Verão, como fizeram poetas como Su Shi que notou: «É bem verdade que estas montanhas são encantadoras, e como nos agradam ao mudar a sua face.»

23 Mar 2023

“Geografia Mundial” de Giulio Aleni (1623)

Aleni: Vida e nome chinês

Giulio Aleni foi um académico e um dos mais notáveis missionários Jesuítas sediados na China no início do século XVII. Publicou vários textos em chinês e veio a tornar-se um autor frequentemente citado e deixou uma marca inconfundível em trabalhos posteriores.

O seu livro mais significativo foi, provavelmente, Zhifang waiji 職方外紀, geralmente datado de 1623. Neste artigo, vamos fazer uma breve visita ao texto publicado há quatrocentos anos. A maioria das edições de Zhifang waiji contêm vários mapas, também eles desenhados por Aleni (e por alguns dos seus colegas). São exemplares úteis, mas menos detalhados do que certos mapas elaborados por outros Jesuítas que estiveram na China e só podem ser considerados ocasionalmente.

O nome chinês de Aleni era Ai Rulüe 艾儒略; e em latim, Julius Alenius. Ambas as versões, em latim e em italiano, estão foneticamente relacionadas com o nome chinês. O significado contido nos caracteres chineses parece ser bastante complexo. Habitualmente, ru identifica os académicos Confucionistas e os seus ensinamentos.

Ai é muito usado em botânica e frequentemente designa a planta artemísia, mas ai também quer dizer “belo”, “gaguejar”, “cultivar”, “alimentar”, “proteger”, etc. Lüe é ainda mais ambíguo. Quando usado de uma forma positiva, pode significar “estratégia”, “plano”, “resumo” e “descrever”. As conotações negativas tornam-se evidentes na associação aos verbos “apreender” e “pilhar”.

Como é óbvio, Aleni tinha aprendido chinês e aparentemente conseguia ler sem dificuldades textos clássicos, mas não sabemos dizer se ele estaria a par de todas as subtilezas contidas nos três caracteres do seu nome chinês.

Presumivelmente, a escolha da sequência “Ai Rulüe” revelava respeito pelas ideias centrais do Confucionismo e, como tal, pela cultura chinesa em sentido amplo. Se esta interpretação for aceitável, então podemos afirmar que o nome chinês de Aleni era um símbolo de sua “carreira” pessoal.

Aleni admirava muitos dos aspectos da sociedade chinesa, mas também exprimiu algumas críticas. Podemos ainda acrescentar que, nessa época, os Jesuítas tentavam encontrar paralelismos entre os aspectos essenciais da sua própria religião e os princípios fundadores do Confucionismo. Sem qualquer dúvida, esta tarefa requeria uma mente e uma alma firme, habilidade retórica e muito conhecimento.

Aleni veio da região de Brescia, no norte da Itália. Nascido em 1582, ingressou na Ordem dos Jesuítas em 1600 e estudou em Roma. Depois de ter sido escolhido para ir para a China como missionário, chegou a Macau em 1610, ainda jovem, com vinte e muitos anos. Embora estivesse interessado principalmente em astronomia, matemática e outras matérias relacionadas, ficámos a saber por confrades e amigos, que tinha uma mente viva e curiosidade por muitas coisas diferentes. Evidentemente, estas características renderam-lhe o respeito dos seus colegas chineses, com quem manteve boas relações ao longo da vida.

Em 1613, Aleni chegou a Pequim, apenas alguns anos após a morte de Matteo Ricci (Li Madou 利瑪竇) em 1610. Mais tarde viajou até às Províncias de Shaanxi e de Shanxi e às regiões de Xangai e de Yangzhou. Em 1620, chegou a Hangzhou, em Zhejiang, e em 1625 fundou a missão Jesuíta em Fujian.

Enquanto esteve em Fujian tinha contacto com muitos altos funcionários, especialmente com os de Fuzhou, e debatia com eles questões religiosas e outros assuntos de interesse mútuo. Embora tenha sido capaz de conquistar um número respeitável de estudiosos para a fé cristã, nem todos aprovaram as suas acções e, por algum tempo, tornou-se alvo de críticas severas. Por conseguinte, passou algum tempo em Macau no final da década de 1630, mas regressou a Fujian em 1639.

Em 1641 tornou-se Vice-Ministro Provincial Jesuíta para o Sul da China. Quando as tropas Manchu invadiram Fujian na segunda metade da década de 1640, causando destruição e desordem em muitas partes desta Província, Aleni retirou-se para a área montanhosa de Yenping 延平 (Nanping 南平) no interior de Fujian, onde morreu em 1649.

O texto e sua estrutura

Num período inicial, Aleni esteve em contacto com Li Zhizao 李之藻 (1565–1630) e com Yang Tingyun 楊廷筠 (1557–1627), ambos de Hangzhou. Em 1623, hospedou-se em casa de Yang e ajudou-o a terminar a sua obra Zhifang waiji, que ainda foi impressa no mesmo ano.

Hoje existem várias edições deste livro, mas não diferem muito umas das outras. Actualmente, os académicos citam principalmente a versão pontuada impressa pela editora Zhonghua shuju em 1996. Esta versão tem o título Zhifang waijiao jiaoshi 職方外紀校釋 e traz muitas anotações úteis de Xie Fang 謝方 (1932–2021), um editor actual. O presente artigo baseia-se em grande parte na edição de Xie.

O texto anotado de Xie Fang contem cinco capítulos ou juan 卷. Os capítulos debruçam-se respectivamente sobre a Ásia (juan 1); a Europa (j. 2); a África (na altura chamada Liweiya 利未亞, ou Libya; j. 3); a América do Norte e do Sul, a Antártida (então chamada Mowalanijia 墨瓦蠟尼加, ou Magellani(c)a; j. 4) e os “Quatro Mares” (si hai 四海, j. 5). Numa das primeiras edições do texto de Aleni, existe um capítulo dedicado apenas a Magellania, o que significa que essa edição tinha seis juan, mas isso não é relevante neste contexto. Os mapas publicados no Zhifang waiji, apareciam antes do primeiro capítulo. No total existiam sete, um de cada continente, mais um que mostrava a Magellania ou “as terras do sul” (Nanyu ditu 南輿地圖), um outro representando a esfera setentrional (Beiyu ditu 北輿地圖) e um mapa mundo chamado Wanguo quantu 萬國全圖.

Do Juan 1 ao 4, o texto descreve segmentos de vários países e o último juan tem sub-divisões com os nomes dos oceanos, de ilhas, de criaturas marinhas, produtos do mar, características dos oceanos, navios e rotas marítimas. De um modo mais geral, o Zhifang waiji é uma ampla descrição que sumariza as características essenciais do mundo então conhecido, do ponto de vista marítimo.

Nestas características encontram-se incluídas a vertente cultural, a etnológica, a económica, a social, entre outros temas. Muitas secções fornecem informação detalhada sobre a flora e a fauna de uma determinada região. Outras partes mencionam os nomes de cidades importantes, descrevem os monumentos locais e falam de personagens famosas. Por poucas palavras, podemos classificar o trabalho de Aleni como uma espécie de “geografia mundial”, ou como um relato etnográfico.

Os académicos chineses provavelmente considerariam que este livro pertencia a uma categoria chamada lishi dili 歷史地理 (geografia histórica). De facto, existem muitos trabalhos semelhantes na antiga China, e estes são frequentemente divididos em segmentos por país, mas os conceitos geográficos subjacentes são diferentes e normalmente não têm secções separadas sobre os oceanos. Algumas destas obras surgiram no final do período Ming. Podemos citar como exemplos Shuyu zhou ci lu 殊域周咨錄 (1574), Xian bin lu 咸賓錄 (1591) e Siyi guangji 四夷廣記 (início do século XVII). Recentemente, Elke Papelitzky chamou-lhes “Histórias do Mundo”, o que parece ser uma classificação adequada, porque esses relatos também se referem a eventos passados.

As Fontes do Texto de Aleni

O Zhifang waiji não está totalmente despojado de elementos fictícios e de fenómenos a que podemos chamar mirabilia. O mesmo pode dizer-se dos textos lishi dili . Além disso, podemos afirmar que diversos registos lishi dili se focam em questões marítimas, à semelhança do livro de Aleni, mas claro que os autores chineses nunca se fizeram ao mar, ao passo que Aleni viajou de Lisboa, passando pela India, até Macau. Não há dúvida, que algumas das coisas que menciona, são fruto da sua experiência pessoal.

Nesta altura, podemos também pensar nos primeiros relatos portugueses, como por exemplo, a Suma Oriental de Tomé Pires e O livro de Duarte Barbosa. De certa forma, ambas as obras são visões do mundo exterior a partir de uma perspectiva marítima e não de uma perspectiva continental. No entanto, enquanto Pires recolhia a informação a partir de informadores locais, Aleni ia sobretudo buscá-la a textos antigos.

As “histórias do mundo” escritas por autores dos finais do período Ming baseavam-se também na informação contida em textos arcaicos. Tal como Zhifang waiji, eram criações complexas de carácter académico. Muitas partes destas obras lembram ao leitor as expedições de Zheng He 鄭和 (1405–1433), ou lançam mão de elementos descritivos que se encontram em fontes das Dinastias Song e Yuan, e nas histórias oficiais de tempos antigos.

Quando Aleni estava a trabalhar no seu livro, consultou mapas europeus e relatos escritos do século XVI, além de utilizar fontes manuscritas, mas, por vezes, também mencionava o passado Greco-Romano. Assim, do ponto de vista dos chineses seus contemporâneos, o que ele tinha para dizer era bastante inovador para a elite intelectual Ming.

Outra característica de Zhifang waiji é a sua dimensão religiosa. Vários segmentos falam das instituições da Igreja, das ideias cristã e da bíblia. De facto, uma leitura mais atenta do texto revela que certas partes estão totalmente enquadradas numa moldura cristã. Naturalmente, outras religiões são por vezes menosprezadas.

Os registos chineses lishi dili e as “histórias do mundo” também mencionam brevemente tradições locais, mas a apresentação desses detalhes raramente é orientada por intenções religiosas. Há apenas uma ou duas excepções à regra. Por exemplo, pode dizer-se que o Yingya shenglan 瀛涯勝覽 do início do século XV tem uma marca islâmica, porque o seu autor era muçulmano. Não obstante, também é óbvio que a maioria dos autores chineses via o mundo exterior através de olhos Confucionistas.

Segundo Paolo De Troia, que traduziu Zhifang waiji para italiano, uma das fontes chave de Aleni foi o “atlas” de Giovanni Antonio Magini (1555–1617), intitulado Moderne tavola di geografia. Não sabemos ao certo como Aleni procedeu quando concebeu o texto, nem como seleccionou a informação que lhe interessava a partir das suas fontes, mas presumivelmente recebeu muito apoio de Yang Tingyun.

É sabido que este homem aperfeiçoou o chinês do texto de Aleni. Provavelmente também o aconselhou sobre a forma de organizar certos detalhes narrativos de forma a facilitar aos leitores chineses a compreensão da sua importância e significado. É muito provável que nesta parte do trabalho tenha havido muitas discussões Aleni e Yang Tingyun.

Informação adicional sobre a preparação do texto pode ser obtida nos prefácios (xu 序) a Zhifang waiji. Existem três destes prefácios, um escrito pelo próprio Aleni (datado de 1623), o de Yang Tingyun e o de Li Zhizao (também datados de 1623). Estes prefácios confirmam que Aleni não foi o único autor de Zhifang waiji.

Recorreu a alguns manuscritos incompletos de Diogo de Pantoja (Pang Diwo 龐迪我, 1571–1618) e de Sabatino De Ursis (Xiong Sanba 熊三拔, 1575–1620), além de também consultar outras fontes, nas quais se inclui o relato de Magini. No seu próprio prefácio, também menciona Wanguo tuzhi 萬國圖志. Esta deve ser uma referência ao Kunyu wanguo quantu 坤輿萬國全圖, i.e., o famoso mapa mundo de Ricci, ou a uma das suas versões preliminares. Várias cópias do mapa de Ricci sobreviveram e, embora difiram umas das outras em certos aspectos, em todos eles, os nomes chineses e outras referências são praticamente iguais. Claramente, Aleni usou estas referências no seu próprio relato, mas, muitas vezes, modificou a sua redacção. Provavelmente Yang Tingyun teve qualquer coisa a ver com isso.

A actual edição anotada de Xie Fang de Zhifang waiji contém um quarto prefácio – de Ye Xianggao 葉向高 (1559–1627) –, duas pequenas notas (xiaoyan 小言), um posfácio (ba 跋) e um memorial (zoushu 奏疏). Os sinólogos europeus raramente consideram estes textos, mas eles têm algum interesse, porque mencionam os ensinamentos de Zou Yan 鄒衍 (século II AC). Zou Yan foi um dos principais estudiosos do período pré-Han e os seus escritos perderam-se.

A partir de alguns fragmentos de textos que sobreviveram das Shi ji 史記, crónicas chinesas oficiais, sabemos que ele via o mundo como uma entidade dividida em nove continentes, cada um deles rodeado por oceanos e mares. A segmentação adicional destas esferas obedece a uma numeração. Estes conceitos tiveram um grande impacto na escrita geográfica posterior, mesmo no período Ming. Naturalmente, Aleni refutou-os. No entanto, tal como Ricci, foi prudente a esse respeito, o que provocou discussões entre os seus colegas chineses, alguns dos quais tentavam olhar para o texto de Aleni através dos olhos de Zou Yan.

Zou Yan foi um dos principais estudiosos do período pré-Han, mas os seus escritos perderam-se. A partir de alguns fragmentos de textos que sobreviveram no Shi ji 史記, primeira crônica oficial da China, sabemos que ele via o mundo como uma entidade dividida em nove continentes, cada um deles rodeado por oceanos e mares. A segmentação adicional dessas esferas obedece a um arranjo numérico.

O Mapa de Ricci e o Texto de Aleni: Empreendimentos Sino-Europeus

Este título diz-nos que podemos considerar Zhifang waiji como o produto final de um “empreendimento conjunto”, que envolveu académicos chineses e europeus e múltiplas fontes. Contudo, a bem da simplicidade, e seguindo as tradições sinológicas, continuaremos a designá-lo apenas por “o trabalho de Aleni”.

Podemos argumentar, que o mapa de Ricci, é outra criação híbrida e, portanto, um caso semelhante. O seu enquadramento metodológico, a disposição geográfica e a informação que contém sobre o Novo Mundo, Europa e África provêm na totalidade de fontes europeias. O segmento asiático é diferente: fornece muitos nomes geográficos então usados na China, seguindo assim as convenções chinesas.

Também estão incluídas referências a locais fictícios, por exemplo, o “País dos Cães” (Gou guo 狗國) e o “País das Mulheres” (Nüren guo 女人國). Estes elementos ficticios eram usados pelos académicos chineses e já aparecem em textos muitos antigos como Shanhai jing 山海經, i.e., o famoso “Livro das Montanhas e Mares”, que tem raízes ancestrais. Ricci tinha bons motivos para marcar estes locais no seu mapa. Primeiro, ao fazê-lo, expressava o seu respeito pelas tradições chinesas. Segundo, agradava aos seus amigos chineses que ficariam com a impressão de que ele próprio não refutava completamente os seus pontos de vista e as suas tradições. Terceiro, presumivelmente estes elementos eram fonte de algum entretenimento.

De facto, sentimo-nos tentados a afirmar que tanto Ricci como os seus amigos chineses tiveram a sua dose de divertimento quando adicionaram estes elementos fictícios ao mapa.

Kunyu wanguo quantu tem claramente uma dimensão diplomática. A China, enquanto País Central, e o Oceano Pacífico são representados a meio do mapa. A distribuição dos mares e dos seus nomes é quase simétrica. O oceano junto à China tem o nome de Da Ming hai 大明海, o “Mar do Grande Ming”. Perto das margens externas do mapa, encontram-se várias caixas com textos relacionados com astronomia. Estas descrições não são desprovidas de conceitos e termos tradicionais chineses, certamente para agradar aos amigos locais de Ricci.

Aleni seguiu os métodos de Ricci. Usou alguns topónimos chineses, tal como Ricci tinha feito. Tianzhu 天竺 (India), Sama’erhan 撒馬爾罕 (Samarcanda), Hulumosi 忽魯謨斯 (Órmuz), Sumendala 蘇門答剌 (Sumatra / Samudra-Pasai), Zhaowa 爪哇 (Java), Boni 浡泥 (Brunei / Bornéu), and Lüsong 呂宋 (Luzon), são disso bons exemplos. Podemos realmente encontrar estes nomes em Kunyu wanguo quantu. No entanto, Aleni modificou determinados topónimos. Assim, Dada(n) 韃靼 aparece no seu livro como Da’erda(n) 韃而靼 (Ta[r]tar). É possível que Yang Tingyun lhe tenha sugerido algumas destas alterações e transcrições ou que tenham sido tiradas das notas deixadas por Diogo de Pantoja e por Sabatino De Ursis.

Noutros casos, os Jesuítas inventaram novas designações para locais que já apareciam com um nome diferente em materiais mais antigos. Existe uma explicação simples para estas invenções: Nem os académicos chineses que assistiam os Jesuítas, nem os próprios Jesuíutas tinham conhecimento das primeiras designações. Podemos citar como exemplo as Ilhas Molucas. Ricci e Aleni chamavam-lhes Malugu 馬路古 (Ilhas Molucas), embora já tivessem sido “baptizadas” por Wang Dayuan 汪大淵 (a partir da primeira metade do século XIV) com o nome de Wenlaogu 文老古.

Regressemos à dimensão diplomática do trabalho de Aleni. Esta dimensão manifesta-se de diversas formas. Como já foi mencionado, o primeiro juan ou capítulo é sobre a Ásia, e claro que o primeiro país a ser falado é a China.

Embora a descrição não seja muito alongada, contém muitos elementos elogiosos e brevemente fala sobre a grandeza do Império Ming. Além disso, termina com uma lista de locais importantes que sistematicamente prestam tributo à Corte Ming. Neste ponto, o autor refere a geografia oficial do período Ming, Da Ming yitong zhi 大明一統志 (1461). É uma forma evidente de se proteger de críticas. Também justifica a sua observação final, nomeadamente que os segmentos que se seguem à curta parte sobre a China, tratarão exclusivamente de locais fora da jurisdição do Zhifang 職方.

O termo zhifang revela uma escolha cuidadosa. É uma referência a um serviço responsável pelos assuntos externos. Na verdade, é um termo muito antigo que transporta o leitor à antiguidade chinesa. o uso de termos antigos é um sinal de conhecimento e de respeito pelo passado distante. Metaforicamente, abre portas, e legitima o autor para expressar os seus pontos de vista. Sob esta perspectiva, o título do livro de Aleni torna-se muito claro. Zhifang waiji fala sobre “no mundo não chinês”, i.e., sobre as esferas fora do controlo da China. Portanto, em ensaios ingleses, por vezes, o título é traduzido por Records of Lands outside the Jurisdiction of the Imperial Geographer. Paolo De Troia traduz por Geografia dei paesi stranieri della Cina.

Mais algumas características de Zhifang waiji

No entanto, a apresentação de Aleni não é totalmente consistente. A parte da China inclui as zonas tártaras como dependências no Império Ming, mas o segmento seguinte faz uma descrição do local. Talvez se possa desculpar a inclusão desta entrada no waiji Zhifang considerando o seguinte: Segundo Aleni, o território tártaro era enorme.

Estendia-se desde as extremidades orientais da Europa até ao norte da China. Esta questão recorda-nos um problema que aflora em vários dos primeiros textos portugueses: os geógrafos da Europa do Sul sabiam muito pouco sobre a divisão política do Norte asiático. Circulavam mesmo rumores que o Sacro Império Romano se tinha estendido até a leste a ponto de ter tido acesso directo à orla ocidental da China.

O trecho de Aleni sobre Da’erda(n) também tem uma breve descrição do “País das Mulheres”, acima mencionado, e de Debaide 得白得 (Tibete). Outro nome, que aparece neste trecho, é Dagangguo 大剛國 (o “País do Grande Khan”).

A descrição destes locais contém certos elementos que parecem derivar do relato de Magini e, indirectamente, até da obra de Marco Polo. No entanto, ninguém se interroga porque é que o Tibete, na altura, uma parte conhecida da China, aparece com um nome estrangeiro no texto de Aleni. Ao agrupar os territórios tártaros (uma dependência do Estado Ming), o País das Mulheres (um local fictício que recorrentemente surge no folclore chinês e europeu), e as terras altas do Himalaias – significa que pretendia passar uma mensagem política oculta nesta miscelânea geográfica?

Aqui podemos saltar para o segmento final do juan sobre a Ásia: Este segmento tem o título Dizhonghai zhudao 地中海諸島 (Ilhas do Mediterrâneo), mas só descreve Ge’a (Ge’e) 哥阿 (Quio), Luodedao 羅得島 (Rodes) e Jibolidao 際波里島 (Chipre). No tempo de Aleni, estas ilhas encontravam-se sob o domínio Otomano; o que certamente explica o seu aparecimento no juan da Ásia. Existe um segundo segmento sobre as ilhas do Mediterrâneo. Aleni colocou-o no final do juan sobre a Europa. Além disso, o juan sobre a África e o juan da América também terminam com uma parte sobre ilhas. Isto reforça a nossa impressão inicial, quando considerámos que Zhifang waiji é uma obra com uma forte componente marítima. Actualmente, os académicos chineses falam muito sobre haiyang wenxue 海洋文學 (literatura marítima) e sobre haiyang wenhua 海洋文化 (cultura marítima); encarado deste ponto de vista, talvez Zhifang waiji possa ser incluído uma destas categorias.

No entanto, não nos podemos ficar por aqui. O juan da Europa começa com uma longa descrição deste continente e das suas características culturais. É dada muita ênfase ao sistema educativo. Refere que existem muitas escolas onde os alunos estudam shishu 史書 (História / textos históricos) e shiwen 詩文 (poesia e prosa, ou obras literárias), e onde aprendem a escrever ensaios. Também refere que existem exames frequentes. Aqui é usado o termo rushi 儒試.

Pode traduzir-se por “Exame confucionista”, ou talvez por “exame abrangente”. Aleni diz-nos, que os estudantes bem-sucedidos são admitidos em instituições de ensino superior. Os alunos mais brilhantes tornam-se professores.

Estes trechos vão claramente ao encontro das expectativas chinesas. A ideia é mostrar que a Europa, tal como a China, valoriza a aprendizagem, especialmente na área das humanidades, or wenke 文科, e que ambas as zonas desenvolveram sistemas eficientes para promover as questões culturais. Por outras palavras: a Europa e a China estão ao mesmo nível, ao contrário das regiões selvagens dos tártaros, de África e de outras partes do globo.

De longe, a secção mais alargada e mais elogiosa do juan europeu é sobre a Itália. Como seria de esperar, Aleni fala do seu próprio país com orgulho e com uma argumentação sólida. Itália é apresentada como o crème de la crème do continente europeu. As descrições da França e da Alemanha são muito mais breves. Relativamente a esta última, encontra-se uma observação interessante: Os soberanos de Yalemaniya 亞勒瑪尼亞 (Alemanha), quando são coroados, ficam dependentes do Papa de Roma.

Ao ler estas passagens, os académicos chineses pensavam certamente no período Zhou, durante o qual o Império do Meio foi fragmentado em vários feudos. Provavelmente também se recordariam do sistema de tributos implementado pela Corte Ming: Com alguma frequência, o Imperador Ming reconhecia um Rei estrangeiro como o legítimo governante do seu país. Existem muitas referências a estes actos formais no Ming shilu 明實錄. Contudo, a dimensão do segmento sobre a Alemanha sugere que o Sacro Império era pequeno em comparação à China Imperial. Aleni tinha claramente de desvalorizar o Norte pouco hospitaleiro em favor do mundo mediterrânico.

Aleni continua dizendo que a Alemanha é um país frio. Diz ainda que os alemães são bons a aquecer as suas casas com poucos recursos e que são pessoas práticas. Uma visão do futuro? Uma previsão a longo prazo das atitudes infantis que podemos associar ao actual Governo de Berlim e ao Movimento dos Verdes?

Seja como for, Aleni é um homem do Sul. Colocou o segmento da Yixibaniya 以西把尼亞 (Hispania), simbolicamente, no primo loco do juan da Europa e, ao mesmo tempo, este segmento é o segundo maior do capítulo. Curiosamente também, termina com a observação de que a Espanha teria muitas colónias: mais de vinte países grandes e mais de cem pequenos e médios (以西把尼亞屬國大者二十餘,中下共百餘。). O termo para colónias/dependências é shuguo 屬國, uma antiga expressão técnica encontrada em fontes chinesas tradicionais.

Uma mensagem oculta que se poderia encontrar neste trecho seria a de que a Espanha é mais influente e tem mais poder do que a China, porque o segmento sobre as dependências desta última só lista oito estados tributários.

Portugal, os Açores, a Madeira e as Canárias

Sim, Aleni parecia jogar com os factos e com as palavras. O seu segmento sobre a Hispania continua com a seguinte observação: “O território mais ocidental chama-se Portugal” (其在最西者曰波爾杜瓦爾). A formulação chinesa parece vaga. Gramaticalmente, o primeiro caracter poderia querer dizer que Portugal é a parte mais ocidental de Espanha, uma dependência (de pequenas a médias dimensões). É certo que Aleni não criou um segmento separado para Portugal. Pode haver uma razão simples para esta disposição inesperada: O seu livro foi publicado quando Portugal estava sob o domínio da coroa espanhola; Aleni menciona-o. No entanto, também podemos perguntar, se ele favorecia Castela, a nação beligerante da Península Ibérica?

Aleni evita deliberadamente o uso do antigo e controverso nome Folangji 佛郎機, assinalando que os muçulmanos (Huihui 回回) o haviam usado para todos os “Ocidentais” (xituren 西土人). Ele também parece justo quando afirma que Lisboa é a porta da Europa para o Extremo Oriente. De Lisboa, os barcos navegavamm via Dalangshan 大浪山 (Cabo das Tormentas) até à India e Macau. Mas, ainda mais importante, Portugal tem muitas igrejas e uma excelente infra-estrutura educacional. No entanto, pode haver algo mais a acrescentar.

Aleni passou muito tempo em Zhejiang e em Fujian. Fujian estava em contacto directo com Manila. Espanha era forte, Macau um pequeno enclave português que tinha acabado de sobreviver ao ataque holandês (1622). Aos olhos de alguns Jesuítas, Macau era certamente mais fraco do que Manila. Será que isso importava? Desejaria Aleni dizer à sua clientela chinesa que a Espanha poderia oferecer protecção, que o apoio das Filipinas era uma opção a longo prazo para a missão da China?

Espanha era um dos principais actores da cena global. Entre as suas muitas dependências encontravam-se as Ilhas Canárias. Tanto Ricci como Aleni referem-se-lhes sob o nome de Fudao 福島, literalmente Insulae fortunatae – um nome com ligações aos tempos Greco-Romanos e a lendas antigas. Naqueles tempos, Hierro, uma das ilhas das Canárias, foi importante porque os cartógrafos geralmente desenhavam o meridiano zero sobre ela. Os italianos chamavam a este meridiano Meridiano di Ferro ou Meridiano dell’Isola del Ferro. Daí o nome chinês da ilha: Tiedao 鐵島 (literalmente “Ilha de Ferro”).

Não muito longe das Canárias, situa-se a Madeira. Kunyu wanguo quantu, uma brochura ilustrada com um mapa, que atribuía a este belo local o nome chinês de Mudao 木島, literalmente “Ilha das Árvores”. Entre outras coisas, o texto elogia a rica vegetação da ilha.

O Mapa de Ricci também regista os Açores. Aparecem dois nomes: Hedao 鶴島 (Ilha do Corvo) e Disanqidao 第三起島 (Terceira). A sequência disan(qi)dao, “terceira ilha”, transcreve o significado do nome português; ao mesmo tempo, foneticamente as duas as versões estão relacionadas entre si. O caracter he no primeiro nome normalmente designa o grou, uma ave que simboliza vida longa no folclore chinês.

Em contrapartida, o corvo, or wu 烏 em chinês, tem conotações negativas, muito diferente da tradição europeia, onde este pássaro simboliza a sagacidade. Em relação à ilha do “Corvo” – este nome já se encontra numa antiga carta náutica de meados do século XIV, que regista a Insula Corvi Marini (Ilha do Corvo Marinho). Evidentemente, Ricci conhecia o nome da ilha, mas não estava disposto a usá-lo, porque os leitores chineses o considerariam como um símbolo negativo. Consequentemente, criou a “Ilha dos Grous” e aumentou muito seu tamanho no mapa.

Possivelmente podemos associar uma outra conotação a esta mesma ilha.: Hedao aparece na margem direita de Kunyu wanguo quantu. Assim, num certo sentido, pertence ao “extremo oriente”. Na China, o Oriente está sempre ligado a elementos positivos; o grou estava apto a ser associado a essa imagem. No entanto, é preciso ter cuidado.

Noutro lugar do seu mapa, Ricci descreve uma localização com o nome Airenguo 矮人國, o “País dos Anões”. O texto diz que os grous muitas vezes devoravam esses pigmeus. É uma narrativa que também se encontra em Plinius’ Naturalis Historiae. A conclusão poderia então ser a seguinte: o grou tem duas representações, uma positiva e, simultaneamente, outra perigosa.

Nada disto aparece no texto de Aleni. As imagens são diferentes. Na verdade, o Zhifang waiji não regista os Açores nem menciona a Madeira. Estas ilhas são apenas vagamente exibidas nos mapas associados ao texto de Aleni. No entanto, Aleni dá uma descrição das Ilhas Canárias, e esta descrição é ligeiramente mais alargada do que a que consta no mapa de Ricci. Podemos perguntar mais uma vez: Existe alguma razão para tal disposição?

Aleni e os Animais Marinhos

Como já foi mencionado, Aleni joga com vários elementos narrativos. Podemos encontrar bons exemplos na secção sobre animais marinhos, que fazem parte do último juan. Aqui encontramos diversos monstros perigosos, mas também algumas criaturas benignas. Um peixe estranho é a baleya 把勒亞, uma transcrição fonética de baleia. Quando ameaça um navio, deve atirar-se ao mar vários barris de madeira com álcool. A baleia vai engoli-los, baixa a cabeça e desaparece.

Existe uma outra história relacionada com renyu 仁魚, literalmente “peixes benevolentes”. Ren 仁 é uma das virtudes centrais da filosofia confucionista. O conceito de ren é bastante complexo e encontram-se-lhe muitas referências em Mengzi 孟子, o livro de Mêncio, e noutros textos. O renyu, assim conta a história, uma vez levou uma criança pequena para a costa, mas não prestou atenção e o pobre rapaz morreu de um ferimento. O peixe sentiu-se muito mal com esta tragédia, por isso atirou-se contra uma rocha e também perdeu a vida. Então Aleni insere esta história num outro contexto: No “país do Ocidente” (xiguo 西國) o renyu ajudava os pescadores a capturar golfinhos. Qual é a intenção subjacente a este breve relato? Será que Aleni quer dizer aos seus leitores que ren é um conceito e um fenómeno real muito importante – algo que não se encontra apenas na China, mas até mesmo no mundo animal?

Há também breves descrições do crocodilo, com referências às lágrimas de crocodilo, e ao yigouman 乙狗滿, i.e., o ichneumon, ou mangusto. Embora estes não sejam animais marinhos, entraram no texto de Aleni, provavelmente porque o autor tinha lido as secções que lhes diziam respeito na Naturalis Historiae. De facto, diversas partes da secção dos animais marinhos têm origem nesta obra clássica.

Para além destes e de outros animais, encontramos peixes voadores, o bolibo 薄里波 (pólipo), e a hainü 海女 (sereia). Os ossos desta última podem ser transformados em nianzhu 念珠 (rosários) e também podem ser usados para estancar sangramentos. Diz-se também de outas criaturas, meio humanas, meio peixes, que podem perceber as pessoas, mas que não conseguem falar. Esta quimera marítima também aparece em textos chineses antigos, nomeadamente em Shanhai jing. Recebem nomes diferentes: jiaoren 鮫人, quanxian 泉先, quanke 泉客, etc. Hoje em dia a internet está cheia de histórias e de imagens relacionadas com estas fantasias. Na antiguidade, sem dúvida que também despertavam muita curiosidade. Daí, que ao dissertar sobre a “fauna” marinha, Aleni tenha tido a certeza de vir a prender a atenção dos leitores.

Para completar a nossa imagem do mundo animal, podemos dizer que muitos segmentos encontrados no juan 5 de Zhifang waiji vieram mais tarde a ser integrados no Kunyu tushuo 坤輿圖説 (1674), um texto escrito por Ferdinand Verbiest (Nan Huairen 南懷仁; 1623–1688). Também podemos encontrar alguns dos nomes em Aomen jilüe 澳門記略 (prefácios 1751), uma das mais importantes obras chinesas sobre os primórdios de Macau, e noutros textos do período Qing. Como foi dito, Aleni deixou muitas marcas no Oriente.

Rumo a uma Dimensão Superior: O Vinho

Não seria justo descrever os missionários Jesuítas, instalados na China no período Ming, como seres supra-humanos exclusivamente interessados em pregar a sua religião e em desenvolver um trabalho académico sério. Não, de forma alguma. Através de Macau, os padres recebiam chocolate das Américas e também algum vinho. Para eles, aparentemente, o vinho era um tesouro. Durante as Dinastias Tang e Yuan, bebidas alcoólicas produzidas a partir de uvas estavam disponíveis em abundância no Norte da China, mas a Dinastia Ming seguiu por outro caminho; preferiram licores fortes e chá, enquanto noutras alturas o Governo tentava controlar, ou mesmo reduzir o consumo de bebidas espirituosas.

No entanto, os padres vindos do mundo mediterrânico, tinham crescido a beber vinho e precisavam dele. De facto, o vinho, nessa altura, era muito consumido na maior parte da Europa, possivelmente ainda mais do que hoje é. Não sabemos em que quantidades é que Aleni o conseguia obter, enquanto esteve em Zhejiang e em Fujian, a uma certa distância de Macau, mas pelo menos sabemos que ele não esqueceu as boas e velhas tradições do mundo latino.

Assim, não devemos ficar surpreendidos por ele se referir ao vinho no seu livro. Aqui, de novo, parece seguir o exemplo de Ricci. Este último, registou no seu mapa a excelência do vinho da Madeira. Aleni também menciona o vinho nas Insulae fortunatae, e claro que estas ilhas eram descritas como pequenos paraísos, tal como o seu nome sugere. Assim, aí tudo crescia por si só, o trabalho do campo era desnecessário, as pessoas viviam uma vida confortável – com vinho.

O vinho está disponível em muitos outros lugares. Sobre o vinho português dizia que não lhe conseguia resistir, que era “soberbo” (zui jia 最佳). Elejiya 厄勒祭亞 (Ellas, Grécia) também produz vinho, especialmente na ilha de Ge’erfu 哥而府 (Corfu). O vinho de Chipre é belíssimo” (ji mei 極美). Até mesmo em Yalemaniya 亞勒瑪尼亞 (Alemanha) podem encontrar-se uvas e vinho, como podemos ler na obra de Magini. Na verdade, toda a Europa tem vinho e, embora as pessoas estejam acostumadas a beber muito, não encorajam os outros a fazer o mesmo. De facto, ficar bêbado envergonha uma pessoa para o resto da vida – Aleni ajoelha-se perante a sua clientela.

O vinho pode ser conservado durante várias décadas; o vinho velho é maravilhoso e pode ser servido em ocasiões especiais, por exemplo, em bodas. Vinho, cerimónias e cortesia – estão de acordo com o conceito de li 禮, os ritos confucionistas. E também parecem estar de acordo com o que alguns académicos modernos dizem de Confúcio:

Acreditam que o grande mestre consumia regularmente jiu 酒, possivelmente vinho de uva (embora jiu seja um termo muito genérico). Claramente, pôr os princípios confucionistas em acção exige uma boa disposição espiritual.

A China foi, e ainda é, a principal cultura jiu, do mundo inteiro. Sem dúvida, vindo de Itália, Aleni foi bem-vindo no outro extremo do continente Euroasiático. O eixo espiritual tinha um lado muito prático. No entanto, havia uma pequena diferença: Ele também elogiava as azeitonas e o azeite, ambos desconhecidos na China….

As referências ao vinho no livro de Aleni e no mapa de Ricci parecem abrir mais portas. As Insulae fortunatae ficam no extremo ocidental. Tinham vinho, como já foi dito. As ilhas chinesas paradisíacas, as Penglai 蓬萊, ficam perto da costa de Shandong, a leste. Lendas antigos mencionam outras ilhas, lugares divinos cheios de maravilhas, localizados na mesma direcção. Nesta altura, a “Ilha dos Grous” vêm-nos à ideia. As direcções celestiais tiveram sempre importância no pensamento chinês. Por vezes, o Ocidente está associado ao metal. Assim, vista da China, Hierro / Tiedao perto da costa de Marrocos, fica no extremo ocidentalt; e isso também faz sentido.

No entanto, algumas coisas não se encaixam. Mu 木, para Madeira, deveria designar o leste, mas a Madeira fica perto das Canárias, no ocidente. Esse nome vem da palavra latina canis, que quer dizer cão. Ricci situou Gouguo, o “País do Cão”, perto do Estreito de Bering. Existe uma espécie de paralelismo intencional?? Cães no ocidente, cães no oriente? Pior ainda, do ponto de vista fonético, o nome chinês “Gouguo” lembra-nos o “Gog” Satanico (e Magog).

Mapas europeus registaram essas tribos no leste da Sibéria. Ricci tê-las-á colocado – juntamente com os nomes de outras tribos inspiradoras – perto do Estreito de Bering para simbolicamente impedir a Espanha de expandir a sua esfera de influência através do Pacifico para a China? Nos últimos anos do século XVI, Manila propôs-se realmente a atacar o Império do Meio! Os Jesuítas do Padroado sabiam disso. A Espanha nem sempre foi bem-vinda.

Mas, e Aleni? Ele não menciona Gouguo. Sente-se “em casa” em Zhejiang e em Fujian, não muito longe do domínio espanhol. Isso implica que existiam diferenças subtis entre o seu pensamento geo-político e os pontos de vista de Ricci?

Como podemos ver, o campo está aberto para investigações posteriores. Se tivesse nascido um pouco mais tarde, Confúcio teria provavelmente citado a biblía de forma descontraída: In principio erat vinum, et vinum erat apud Deum, et Deus semper erat felix. Aleni deixou pégadas gigantes, o seu Zhifang waiji, publicado há quatrocentos anos, é uma caixa de tesouros.

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20 Mar 2023

Analectos – as conversas de Confúcio

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO II

為政 (Weizheng)

GOVERNAR

2.1. O Mestre disse: “Governar um país com virtude é ser como a Estrela Polar: permanecer no seu lugar, enquanto as outras estrelas volteiam em seu redor.”19

2.2. O Mestre disse: “Os trezentos poemas podem ser resumidos numa fase: ‘Pensar a direito’.”20

2.3. O Mestre disse: “Se o povo for guiado por regulamentos e mantido na ordem através de castigos, para se subtrair à severidade das leis o povo perderá toda a vergonha; mas se for guiado pela virtude e disciplinado pelos ritos, desenvolverá um sentido de honra e comportar-se-á de forma correcta.21

2.4. O Mestre disse: “Aos quinze anos, o meu coração só desejava o estudo. Aos trinta anos, estabeleci-me. Aos quarenta anos, não tinha dúvidas. Aos cinquenta anos, conhecia os mandatos que o Céu me destinara. Aos sessenta anos, os meus ouvidos estavam afinados. Aos setenta anos, podia seguir o que o meu coração desejava, sem transgredir o que é correcto.”22

2.5. Interpelado por Meng Yizi sobre a piedade filial, o Mestre respondeu: “Não a contraries”. Mais tarde, enquanto Fan Chi segurava as rédeas da sua carruagem, o Mestre contou-lhe: “Meng Yizi perguntou-me sobre a piedade filial e eu respondi-lhe: ‘Não a contraries’.” Fan Chi perguntou: “O que queres dizer com isso?” O Mestre retorquiu: “Enquanto vivos, serve os teus pais segundo os ritos; quando mortos, enterra-os segundo os ritos; depois, presta-lhes sacrifícios segundo os ritos.”23

2.6. 孟武伯問孝。子曰:「父母唯其疾之憂。」
2.6. Doutra vez, à mesma pergunta, o Mestre respondeu ao filho de Meng Yizi, Wubo: “Não lhes causar qualquer preocupação, para além da tua saúde”.

2.7. Ziyou24 perguntou sobre a piedade filial. O Mestre respondeu: “Hoje considera-se terem piedade filial os que nutrem os seus pais. Mas isso até aos cães e aos cavalos se proporciona. Se não lhes devotares respeito, qual será a diferença?”

2.8. Zixia perguntou sobre a piedade filial. O Mestre respondeu: “O que mais custa é mostrar-lhes boa cara (conter a expressão facial). Libertá-los de tarefas e servi-los em primeiro lugar comidas e bebidas, será que meramente isso pode ser considerado piedade filial?

2.9. O Mestre disse: “Posso falar um dia inteiro com Yan Hui sem que ele faça a menor objecção, como se fosse um idiota. Mas quando ele fica só, examina o que foi dito e tira as suas próprias conclusões. Yan Hui está longe de ser um idiota.”25

2.10. O Mestre disse: “Observa as suas acções, repara nos seus motivos, examina o que os satisfaz. (Se assim fizeres) quem poderá esconder-te qualquer coisa? Quem poderá esconder-te qualquer coisa?”26

2.11. O Mestre disse: “Pondera o antigo como meio de compreender o novo — tal pessoa pode ser considerada um mestre.”

2.12. A pessoa exemplar não é um mero utensílio.27

2.13. Zigong inquiriu acerca das pessoas exemplares. O Mestre respondeu: “Primeiro praticam aquilo que vão dizer, só depois o dizem.” 28

2.14. O Mestre disse: “As pessoas exemplares, ao associarem-se abertamente com outros, não seguem facções; as pessoas menores, as que seguem facções, não se associam abertamente com os outros.”29

2.15. O Mestre disse: “Estudar sem reflectir é inútil; reflectir sem estudar é pernicioso.”

2.16. O Mestre disse: “Tornar-se exímio numa qualquer doutrina heterodoxa não traz senão desgraça.”30

2.17. O Mestre disse: “Zilu31, será que te posso ensinar o significado de sabedoria? Saber aquilo que se sabe e saber aquilo que não se sabe – isto é a sabedoria.”

2.18. Zizhang estudava para os exames oficiais. O Mestre disse: “Se puderes escutar abertamente, deixa de lado aquilo de que não estás certo e fala cautelosamente do resto de modo a cometeres poucos erros; se puderes olhar abertamente, deixa de lado o que é perigoso e age cautelosamente em relação ao resto de modo a que, assim, tenhas poucos remorsos. Poucos erros nas tuas palavras, poucos remorsos das tuas acções — terás uma brilhante carreira.”32

2.19. O Duque Ai de Lu inquiriu Confúcio, perguntando: “O que se pode fazer para obter a lealdade do povo?” Confúcio respondeu: “Eleva aqueles que são verdadeiros acima dos que são corruptos e será tua a lealdade do povo; eleva os corruptos acima dos que são verdadeiros e o povo não será teu.”33

2.20. Ji Kangzi perguntou: “O que fazer para que o povo seja respeitoso, leal e zeloso? O Mestre respondeu: “Supervisiona o povo com dignidade e este será respeitoso; sê filial para com os teus maiores e bondoso com os teus mais novos e o povo será leal; eleva aqueles que têm talento e instrui os que não têm e o povo mostrará zelo.”

2.21. Alguém perguntou a Confúcio: “Por que não tens emprego no governo?” O Mestre respondeu: “Quando o Livro dos Documentos diz: ‘Tudo está na piedade filial! Ser filial para com os pais e amigável com os irmãos fará florir essas virtudes no governo’ – será que isto não é falar do exercício do governo? Será que não se pode governar sem fazer parte do governo?”34

2.22. O Mestre disse: “Não estou certo de que alguém que não cumpra a sua palavra seja viável enquanto pessoa. Se uma carruagem de grande porte não tiver uma barra para o seu jugo ou se uma pequena carruagem não tiver uma barra na sua cruzeta, como poderão ser conduzidas seja onde for?”

2.23. Zizhang perguntou: “Será possível saber o que se passou sob o Céu (天下 tianxia) daqui a dez gerações?”35
O Mestre respondeu: “A dinastia Yin adaptou a observação da propriedade ritual a partir da dinastia Xia e modo como o fez é conhecido. Os Zhou adaptaram a observação dos ritos a partir dos Yin e o modo como a alteraram é conhecido. Se houver uma dinastia que suceda aos Zhou, mesmo que tal ocorra daqui a cem gerações, a continuidade e a mudança poderão ser conhecidas.”

2.24. O Mestre disse: “Sacrificar a espíritos de antepassados que não os seus é bajulação. Não agir naquilo que é entendido como justo (義 yi) é cobardia.”

Notas

19. Um dos objectivos últimos do pensamento de Confúcio é a formação de homens capazes de governar com virtude. Alguns comentadores consideram que neste ponto estamos perto do conceito taoísta de não-acção (無為 wu wei), ou seja, que o governante deve unicamente exibir um comportamento virtuoso e exemplar, tornando-se num modelo para os outros homens que à sua volta giram como as estrelas volteiam em redor da fixa Estrela Polar. Assim, o governante ideal intervirá o menos possível no socius, ou seja, na vida das linhagens que, considerando o comportamento benevolente e recto do soberano, por ele pautarão igualmente as suas acções. De algum modo, aqui está descrita a utopia confucionista.
20. Referência de Confúcio ao livro que, segundo a tradição, ele próprio editou, o Livro das Odes (詩經 Shi Jing), que contém, na realidade, 305 poemas. É aqui citado, como súmula do próprio livro, um verso de uma dessas odes que fala poderosos cavalos de guerra criados para puxar carruagens e avançar a direito sem se desviarem do caminho desejado — tal como o pensamento e o comportamento devem avançar sem se desviarem dos seus fins virtuosos.
21. Neste ponto, estabelece-se uma oposição entre a prática de governar através de leis coercivas e de castigos e a prática de governar através de exemplos de virtude e do cumprimento dos ritos. Zhu Xi comenta: “Embora provavelmente não se atrevam a fazer nada de mal, a tendência para fazer o mal nunca os deixará”. Para o confucionismo, as meras leis ou as punições delas decorrentes não são o caminho para a governação. O governante deve, sobretudo, ser um exemplo de virtude, o que levará ao seu reconhecimento pelo povo e este deve conformar o seu comportamento aos ritos. A menorização das leis e dos castigos tornará o pensamento de Confúcio inimigo dos sábios legistas, como Han Fei Zi, por exemplo, que enformam o pensamento e a acção de Qin Huandi, o imperador que unificou o País do Meio em 221 a.E.C e fundou a dinastia Qin.
22. Aqui temos aquelas que muitos consideram as últimas palavras de Confúcio. Segundo a tradição, o Mestre terá morrido aos 72 anos. Este número levanta algumas suspeitas nas mentes mais cépticas, na medida em que se trata de um número extremamente correcto porque é um múltiplo de 9, a expressão numerológica da totalidade. Por exemplo, na mitologia chinesa, a invenção das armas e da forja é atribuída a Chiyou (蚩尤), um ser maléfico que morreu em batalha contra o Imperador Amarelo (黃帝 Huangdi), num combate mítico cuja reprodução ritual tem atravessado a história da China. Chiyou, cuja natureza aparece por vezes repartida em 72 (9×8) ou 81 (9×9) irmãos, tem um aspecto temível: cabeça de cobre com a testa em ferro e semelhanças bovinas. A tremenda batalha em que defrontou Huangdi surge recheada de contornos mitológicos, em que cada um arregimentou para o seu lado diferentes seres mitológicos: a sua legião de demónios espalha uma misteriosa neblina, no seio da qual Huangdi para se orientar inventa a bússola; depois o monarca derrota o seu inimigo graças a uma trompa mágica que imitava o grito do Dragão. Chiyou terá mesmo sido morto pelo Dragão Yin, o dragão da Chuva que, juntamente com Niu-pa, a deusa da Seca, secundava Huangdi. Duzentos anos antes da nossa era, esta figura terrível foi recuperada pelo primeiro imperador dos Han, Liu Bang (劉邦), que era suposto ostentar 72 sinais numa perna e lhe dedicou um sacrifício .
É por isso muito possível que estejamos aqui perante uma espécie de divinização de Confúcio, estabelecida por um percurso (dao) ascensional que começa pelo estudo até, aos 30 anos, compreender qual o seu lugar de excelência onde deve permanecer; para depois, aos 40 anos, adquirir certezas sobre o mundo e as coisas, não sendo já surpreendido e, aos 50 anos, entender qual o destino que o Céu (tian) lhe impusera. Aos 60 anos, de “ouvidos afinados”, distinguia imediatamente as palavras certas das erradas e, finalmente, aos 70 anos, era suficientemente sábio para agir com toda a liberdade sem que com isso causasse qualquer desarmonia. Assim, pelo menos para os neo-confucionistas, liderados por Zhu Xi, Confúcio era o Grande Sábio, um Santo, que imolava os “iluminados” do budismo.
23. Falando da governação, emerge inevitavelmente o tema da piedade filial, na medida em que o confucionismo estabelece uma relação entre a hierarquia e os deveres no seio da família e a hierarquia e os deveres na sociedade. O soberano ou o superior hierárquico deverão ser respeitados como respeitados são o pai ou o irmão mais velho. Os pontos seguintes elaboram de modos diversos esta questão. Meng Yizi 孟懿子 (531-481 a.E.C.) pertencia a um dos mais importantes clãs do reino de Lu (parte da actual província de Shandong), onde vivia Confúcio. Fan Chi (樊迟) era um discípulo menor que aparece por vezes nos Analectos.
24. Ziyou 子游 (nascido circa 506 a.E.C.), nome de cortesia de Yan Yan 言偃, foi um dos dez discípulos sábios de Confúcio (Kong men shi zhe 孔門十哲). Ziyou é frequentemente mencionado juntamente com Zixia 子夏. Era muito mais novo que Confúcio e só se tornou um seguidor do Mestre quando este já era idoso. Confúcio estimava-o especialmente pela sua educação literária. Na sua juventude, Ziyou ocupou o cargo de magistrado de Wucheng 武城 (hoje Feixian費縣, em Shandong). A sua administração era orientada pelo princípio confuciano de “amar o povo”. Quando o Mestre passou pela cidade de Wucheng, ficou muito satisfeito com a música que ali tocava. Ziyou também criticou os discípulos de Zixia, dizendo que estavam “suficientemente realizados em aspergir e varrer o chão, em responder e retorquir, em avançar e recuar, mas estes são apenas os ramos da aprendizagem, e foram deixados na ignorância do que era essencial”. Ziyou sublinhou também a importância da contenção na aplicação da moral. Por exemplo, segundo Ziyou, não era apropriado exagerar o luto. Após a morte de Confúcio, Ziyou tornou-se num professor algo desviado do caminho do Mestre. Mais tarde, foi duramente criticado por Xunzi 荀子 e nunca teve a mesma importância de outros discípulos de Confúcio.
25. Yan Hui 顏回 (521-481 a.E.C.) foi o discípulo mais importante e preferido. Nascido em Lu 魯, tal como Confúcio, o seu pai Yan Wuyao 顏無繇, foi um dos primeiros seguidores do Mestre. Trinta anos mais novo que Confúcio deve ter morrido em tenra idade. Yan Hui cresceu numa família pobre, mas tinha um amor imenso pelo estudo. Por isso, nunca aceitou um cargo e preferiu ser discípulo de Confúcio. O Mestre estimava desmesuradamente Yan Hui e elogiava-o pelo seu comportamento nobre e benevolente. Para Confúcio, era um modelo de virtude e um igual a si próprio, progredindo a cada dia no caminho da benevolência. Outros discípulos invejavam Yan Hui pela sua capacidade de saber tudo sobre um assunto. A morte prematura de Yan Hui comoveu profundamente o Mestre que terá gritado: “o Céu destrói-me!”. “Se não chorasse amargamente por este homem, por quem haveria de chorar?”, terá perguntado. Yan Hui parecia, por vezes, desesperado na sua esperança de compreender os ensinamentos do Mestre. “Olhei-os e pareciam estar mais altos; tentei penetrá-los e pareciam estar mais firmes; olhei para eles à minha frente e de repente pareciam estar atrás. O Mestre, com o seu método ordenado, conduz habilmente os homens. Ele ampliou a minha mente com o estudo e ensinou-me as restrições da propriedade ritual. Quando desejo aceder ao estudo das suas doutrinas, não o posso fazer, e tendo exercido toda a minha capacidade, parece haver sempre algo que se ergue à minha frente e, embora deseje segui-los e agarrá-los, não encontro realmente maneira de o fazer”. O Mestre instruiu-o nas quatro evasivas (não olhar, não ouvir, não falar, nada fazer contrário à benevolência), e Yan Hui prometeu seguir esta directriz embora fosse “deficiente em inteligência e vigor”. Foi exactamente por causa desta obediência obstinada que Confúcio também criticou Yan Hui como não sendo de grande ajuda para ele, porque nada havia que o Mestre dissesse que não o deleitasse.
26. Interessante esta deriva psicologista de Confúcio que a considera como parte da arte de governar. O governante terá de desenvolver a sua própria capacidade de ler o carácter alheio, além das aparências, de modo a entender as motivações mais profundas dos que o rodeiam e usá-las a seu favor no estabelecimento de uma administração recta e benevolente, aceitando uns e rejeitando outros.
27. Este famoso adágio foi sujeito a diversas interpretações. Por exemplo, a pessoa exemplar (junzi)não deverá ser entendido como alguém capaz de desempenhar uma função particular (como um utensílio/ferramenta), como por exemplo, um carpinteiro que se especializa no trabalho da madeira; pelo contrário, terá uma visão mais abrangente do mundo e das coisas. Neste sentido, poder-se-á argumentar que nele o cultivo de si não passa unicamente pela aquisição de conhecimentos específicos, mas primordialmente pela formação ética, sendo capaz da Prática do Meio (Zhong Yong). Confúcio parece assim aconselhar o governante a não desperdiçar os talentos de um junzi, utilizando-o apenas para uma função, sem aproveitar todo o seu potencial, sobretudo a sua capacidade de produzir moral e assim ser um exemplo para os outros. André Levy, contudo, traduz esta frase de modo diferente. Para ele, deve-se ler: “O homem de qualidade (junzi) não trata ninguém como um utensílio” e questiona: “não concederia (esta exegese) a Confúcio um pensamento mais elevado, conforme à sua concepção de altruísmo, amor e respeito pelo homem enquanto tal?”
28. Esta fórmula pode ser interpretada de diferentes modos. A pessoa exemplar só ensina o que já comprovou pela prática ou que assim estimula os outros a pôr em prática o que pretendem afirmar antes de o fazerem.
29. A existência de várias facções no seio dos reinos era, para Confúcio, um dos grandes problemas da sua época.
30. Por doutrinas heterodoxas, refere-se outras escolas de pensamento, nomeadamente o taoísmo e o moísmo, a quem pouco importava a tradição ritual e política que vinha de Yao e Shun e dos fundadores da dinastia Zhou, que Confúcio procurava emular. A desgraça seria o esfarelamento do frágil império Zhou em diversos reinos que, constantemente, combatiam entre si. O facto de assentar as ideias na tradição, numa espécie de Idade do Ouro, garantia ao Mestre a sua rectidão.
31. Zilu 子路 (542-480 a.E.C.), nome de cortesia de Zhong You 仲由, foi um dos dez discípulos. Nasceu em Bian 卞 (hoje Sishui 泗水, em Shandong) no reino de Lu 魯 e cresceu pobre. Era o mais velho dos discípulos de Confúcio, sendo apenas nove anos anos mais novo que o Mestre. Zilu tinha um carácter simples, corajoso e decidido, mas era também grosseiro, inculto, ousado e guerreiro; e não gostava particularmente de discussões académicas. Venerava muito Confúcio e protegia-o onde quer que fossem. Confúcio gostava do discurso directo de Zilu, que nada ocultava. Zilu seria, disse o Mestre, o único a segui-lo sobre uma jangada e a flutuar sobre o mar. Morreu cruelmente durante uma revolta no reino de Wei. Mêncio considerou-o igual aos sábios governantes do passado.
32. Zizhang é um dos 72 discípulos mais importantes de Confúcio, criticado pelos seus pares pela pressa que revelava em adquirir um posto oficial. O mais importante é cultivar as virtudes interiores, que segundo o ruismo advêm do Céu, como a benevolência, a rectidão, a autenticidade, etc. Se o fizerem, em princípio, as recompensas, como tornar-se ministro ou conselheiro, serão alcançadas, embora tal não seja certo. Mêncio diz: “Os antigos cultivavam as honras celestes e as honras humanas seguiam-se naturalmente. Hoje as pessoas cultivam as honras celestes apenas como um meio para obter honras humanas, e uma vez que recebem as segundas, abandonam as primeiras. Isto é uma ilusão e, no final, só pode levar ao desastre.”
33. Jiang Xi 江熙 comenta: “O Duque Ai foi presenteado com uma oportunidade única na vida quando o seu reino se encheu de dignos sábios. Se ele os tivesse simplesmente tratado e empregado, poder-se-ia ter tornado no verdadeiro rei de Lu. Infelizmente, preocupava-se apenas com os prazeres sensuais e deixou o controlo da administração a um bando de malfeitores. Como resultado, o coração do povo encheu-se de ressentimentos. O Duque Ai estava perturbado com este estado de coisas, e por isso fez esta pergunta a Confúcio.”
4. Esta resposta de Confúcio sublinha a contribuição de cada um para o governo, ou seja, do dever cívico, independentemente do facto de fazer ou não parte da administração do reino. Assim, a governação não está apenas nas mãos dos poderosos mas disseminada entre o povo, na medida em que o exemplo de cada um pode produzir resultados concretos ao nível de toda a sociedade. Resumindo, ninguém, rico ou pobre, governante ou governado, se pode eximir ao dever de viver com benevolência, cumprir a piedade filial e os ritos, contribuindo assim para a harmonia social e a boa governação.
35. Eis uma passagem que provoca sérias dissensões entre exegetas e comentadores. Segundo alguns, a pergunta de Zizhang refere-se ao futuro: será possível saber o que acontecerá sob o Céu daqui a dez gerações? Contudo, lida assim a pergunta, a resposta de Confúcio seria de uma atroz banalidade e, de certo modo, transviada. Pelo contrário, a ser uma questão sobre o que seria conhecido do passado daqui a dez gerações, a resposta do Mestre enquadra-se na sua crença de que algo do passado sempre permanece no futuro, ou seja, há sempre continuidade apesar das mudanças. Além disso, inscreve-se na importância que o confucionismo outorga ao conhecimento das instituições do passado. Um sintoma de mudança significativa aparece nos ritos e nas alterações que vão sofrendo com as mudanças histórico-sociais.

16 Mar 2023

Quinta viagem de Zheng He (VIII)

Quando Zheng He regressou a Nanjing da quarta viagem marítima, o que ocorreu na 7.ª lua do 13.º ano de Yongle (ano Yi Wei, 乙未), 12 de Agosto de 1415, trouxe consigo muitos enviados dos países visitados, para além de Sekandar, o usurpador do poder no Sultanato Pasai de Samudera. Mas o Imperador Yongle encontrava-se fora, pois tinha ido ao Norte, à Mongólia, combater pela segunda vez no seu reinado os mongóis e apesar de ter saído vitorioso ainda não regressara à capital, chegando apenas a 14 de Novembro de 1416.

À sua espera encontrou embaixadores de 18 ou 19 países e reinos, da Ásia [Champa, Pahang, Java, Palembang (Jiugang ou Jugang), Malaca, Samudera, Lambri, Ceilão, ilhas Maldivas, Cochim, Calicute, Shaliwanni (local indeterminado)], da Península Arábica [Ormuz, Ash-Shiher (La Sa ou Las’ã) na costa de Hadramaut no Iémen, Adem] e de África [Mogadíscio, então no seu apogeu económico e Brava (Bu-la-wa, ou Barawa, cidade na costa da Somália com bom porto e muita actividade comercial, antiga capital do Sultanato de Tunni (século IX-XIII), e pertencia então, a par com Mogadíscio, ao Império Somali de Ajuran) e Melinde (actual Quénia, que na quarta viagem quando a frota chinesa aí passou em 1414, o governante enviara uma girafa)].

Na corte Ming foram recebidos com uma grande cerimónia realizada a 19 de Novembro de 1416, oferecendo o Imperador prendas a cada um. O enviado do Raja de Cochim (Kezhi) teve um tratamento especial por ser esse reino tributário desde 1411 da China e o Raja requeria ao Imperador que o nomeasse ministro seu subordinado e o investisse como Rei, pedindo o selo oficial como representante de Yongle. O Imperador concedeu-lhe tais desejos e enviou-lhe uma carta onde atribuiu a Cochim o título .

Também Megat Iskandar Shah (母干撒于的儿沙, Mu-Gan Sa-Yu-De-Er Sha ou Xá Muhammad) aqui viera para comunicar ao Imperador ter o seu pai, o Rei de Malaca Parameswara, conhecido em chinês por Bai-Li-Mi-Su-La (拜里迷苏剌), falecido em 1414. Nesse mesmo ano de Jia Wu (甲午), 12.º ano do reinado de Yongle, embarcara para a China, segundo refere o Registo Histórico da dinastia Ming compilado na dinastia Qing, mas Fei Xin (费信) no seu livro Xingcha Shenglan (星槎 胜览) diz ter o Xá (Shah) ido à China no 13.º ano de Yongle. Quando foi recebido, o Imperador nomeou-o Rei de Malaca.

A despedida aos enviados realizou-se na corte Ming a 28 de Dezembro de 1416 onde receberam de Yongle túnicas de seda. No mesmo dia, Inverno do 14.º ano de Yongle (1416, ano Bing Shen, 丙申), o Imperador ordenou a realização da quinta viagem, instruindo Zheng He a escoltar os enviados dos 18 estados asiáticos e africanos no regresso às suas terras. Tinham vindo à corte Ming apresentar tributos e aqui estavam há quase ano e meio. O Imperador entregou ao Almirante cartas imperiais e prendas para levar aos governantes por onde a viagem iria passar.

VIAGEM entre 1417 e 1419

No 15.º ano de Yongle (ano Ding You, 丁酉, 1417) saiu do porto de Liujia, em Taicang, a armada capitaneada por Zheng He com a missão de se dirigir ao Oeste. Primeiro passou por Quanzhou, onde o Almirante visitou a cidade fundada em 711 no reinado da dinastia Tang.

Fora um notável porto na costa de Fujian, ponto de partida da Rota Marítima da Seda e rapidamente se tornara na China um dos quatro mais florescentes no comércio com o estrangeiro. Atingira o apogeu na dinastia Song, mantendo-se como principal porto durante a dinastia Yuan e contou com uma grande comunidade muçulmana até perder em dez anos toda a sua influência devido à rebelião muçulmana Ispah (1357-1366). O porto entrou em declínio e na dinastia Ming estava ligado exclusivamente às trocas com as Filipinas.

No 16.º dia do 5.º mês do 15.º ano de Yongle (31 de Maio de 1417) Zheng He em Quanzhou foi ao Templo da deusa Mazu, naquele tempo chamado Tian Fei Gong e hoje com o nome de Tian Hou, no monte Jiuri e queimando incenso pediu à divindade protecção para lhe conceder uma viagem segura. No monte Ling no Cemitério Islâmico (ShengMu) encontra-se a estela XingXiang mandada erigir por Pu Heri (蒲和日), oficial que viajava na armada e onde está referido ter o Imperador enviado Zheng He em missão diplomática a Ormuz e a outros países.

Com a mesma narrativa, outra estela (bei) ligada à quinta viagem marítima e agora desaparecida, encontrava-se na ponte Wuwei (无尾), onde se situava o porto Xunmei (浔美) junto ao monte Longtou e nela estava referido no 17.º dia do 5.º mês o Tai Jian [Grande Eunuco] Zheng He ter aqui permanecido para segurança da armada devido aos ventos fortes. Nos anos 70 do século XX, o local do porto desapareceu devido aos aterros, tal como o bei, que também fora mandado fazer por Pu Heri. Zheng He em Quanzhou embarcou muita porcelana para as trocas e prendas e seguiu viagem.

Em Vijaya (Qui Nhon) a armada dividiu-se, uma frota foi à ilha de Java e a Palembang, em Sumatra, e o grosso da armada seguiu para Malaca. Daí passou ao Ceilão onde novamente se separou, indo uma frota directamente para a costa africana, passando ao Sul das ilhas Maldivas e chegou à costa da Somália (no Corno de África).

Já a armada navegou ao longo da costa indiana, passando por o importante porto de Cambaia (Khanbayat, actual Guzerate no Noroeste da Índia, cujos mercadores tinham então relações privilegiadas tanto com Adém como com Malaca) e na Península Arábica foi a Ormuz, atingindo Oman. Aí a armada voltou a dividir-se, rumando uma frota para o Mar Vermelho e ainda na costa Arábica visitou Las’ã [Ash-Shiher, um dos portos mais antigos e importantes do Iémen, ao qual Duarte Barbosa se referiu:

“uma vila de mouros que chamam Xaer e pertence ao reino de Fartaque. Lugar em que há grandes quantidades de mercadorias, (…) muito bons cavalos que na terra há, os quais cavalos são muito maiores e melhores que os que vêm de Ormuz. Também na terra nasce muito incenso e há muito trigo, carnes, tâmaras e uvas. É este porto de mui grande escala de muitas naus e nasce aqui tanto incenso que se leva para todo o mundo.”

Shiher era a capital de um pequeno sultanato e o principal porto da costa de Hadramaut, a meia distância entre Adem e o cabo Fartaque, (actual Oman).] No Sultanato do Iémen reinava Al-Malik al Nasir da dinastia Rasulid e talvez tenha sido Zheng He quem entre 30 de Dezembro de 1418 e 27 de Janeiro de 1419 esteve em Las’ã (La Sa) para trazer de volta o enviado iemenita Kadi Waqif ad-Abdur Rahman bin Zumeirem. A frota chegou nos últimos dias de Janeiro a Adem e foi a Ta’izz [capital do Sultanato do Iémen na dinastia Rasulid] de onde saiu depois de 19 de Março e seguiu para Jedá, na costa do Mar Vermelho [actual Arábia Saudita].

De Oman a armada continuou para Mogadíscio, para se juntar à que tinha navegado directamente do Ceilão, passando primeiro por a ilha de Socotorá (à entrada do Mar Vermelho). Em Mogadíscio, nessa altura no apogeu económico e comercial, reinava então a dinastia Ajuran, uma monarquia islâmica cujo íman enviou como embaixador à China Sa’id para estabelecer relações diplomáticas e como tributo levou ouro, incenso e tecidos, assim como um leão, hipopótamos, girafas e gazelas, estes três talvez tenham seguido na viagem seguinte. De Mogadíscio chegaram a Mombaça, depois de ir a Melinde levar o embaixador.

A viagem terminou em Nanjing no 7.º mês lunar do ano 17.º de Yongle (ano Ji Hai 己亥, 8 ou 17 de Agosto de 1419) e trouxe dezasseis embaixadas cheias de prendas e um grande número de animais enviados tanto da Ásia como da África, sendo recebidos um mês depois por o Imperador, mas não em Nanjing pois este desde 1417 aí não voltou.

Entre eles estava o Sultão de Malaca Megat Iskandar Shah, sua esposa e filho, que voltava pela segunda vez à corte Ming para pessoalmente apresentar tributo a Yongle e queixar-se da invasão de Malaca por o Reino do Sião.
Esta fora a maior de todas as viagens feitas por Zheng He e em sinal de gratidão, por o envio dos seus representantes, os governantes ofereceram como tributos um grande número de animais exóticos. Ormuz deu um leão, um leopardo e rinocerontes, tendo Brava oferecido camelos dromedários e avestruzes e Adem uma girafa. Vieram também zebras e antílopes, além de outros animais de Java e Calicute como tributo ao Celeste Império.

15 Mar 2023