A Via do Meio chega hoje a Portugal

Hoje, dia 25 de Setembro, pelas 18,30 horas, será apresentado no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, o número 1 da nossa revista trimestral Via do Meio, uma publicação em língua portuguesa totalmente dedicada à cultura chinesa, ao que se seguirá a sua distribuição por todo o país. Também hoje, ao mesmo tempo, na RAEM, será distribuído o número 3.

Raramente de Macau algo de regular chegou a Portugal, por isso sentimo-nos também pioneiros, nesta viagem de regresso, que muito tem para contar. Nos porões desta nau, a que chamamos revista, trazemos partes de uma civilização milenar, da sua História, da sua Literatura, dos seus costumes, da língua e das suas crenças, enfim, de uma cultura cujas raízes se estendem vastamente pelo tempo e cuja diversidade ultrapassa quaisquer expectativas.

Esta viagem não começou ontem, nem surge por acaso, ao sabor de um capricho ou de uma disposição momentânea. Pelo contrário,
ela nasceu com o Hoje Macau, logo nos seus alvores, e com o nosso entendimento de que um jornal não deve apenas informar, mas também proporcionar formação aos seus leitores. Sendo um media em língua portuguesa, pareceu-nos desde o primeiro momento importante servir de intermediário entre os que se expressam em português e a cultura chinesa, dando a conhecer a esta comunidade linguística que por aqui vive, as tessituras da cultura daqueles que os rodeiam, permitindo assim um melhor entendimento do que por vezes parece obscuro, além do prazer estético que o contacto com a poesia, a pintura e o pensamento chineses proporcionam.

Sabem os nossos leitores que há duas décadas publicamos regularmente traduções, ensaios, crónicas, entrevistas, etc., no âmbito da cultura chinesa, o que nos proporcionou um excelente acervo que a editora Livros do Meio, também parte do grupo Hoje Macau, tem publicado em livros. Editámos poetas, pensadores, memórias, sobretudo, textos que não se encontravam traduzidos, mas que entendemos como fundamentais para o conhecimento da China. E, como é óbvio, o nosso trabalho não acabou, nem se fica por aqui.

Desde o ano passado que Macau já conhece a Via do Meio. Trata-se de uma revista trimestral que reúne os artigos dos sinólogos que
colaboram connosco. Alguns há mais de uma década, outros companheiros recentes desta viagem de regresso, em que, pela Via do Meio, a língua portuguesa leva os valores orientais para Ocidente, como um dia trouxe os valores ocidentais para Oriente. E, finalmente, agora que chegámos a Portugal, é a todos esses companheiros de viagem que tenho de agradecer terem embarcado nesta nau onde se fala a China em português e realizado esta aventura sem procelas.

Ao que se diz, mais do que a viagem, mais do que chegar ao destino, o que importa é quem vem connosco.

PS: Antes do Natal, começaremos a publicar livros sobre cultura chinesa em Portugal, através da editora Grão-Falar. Alguns são grandes novidades. Hão-de ouvir falar disso.

25 Set 2023

O segredo da seda (2) – Seda fora da China

Na Península da Coreia o segredo da seda estava já desvendado há pelo menos três mil e duzentos anos, o que parece contradizer a anterior afirmação dada no primeiro artigo, onde referia ser a seda ainda há 1600 anos um segredo ciosamente guardado pelos chineses.

Tal se deve ao território da Coreia estar até ao ano 57 a.n.E. integrado na China, quando passou a haver três reinos: Shilla, no Sudeste, Koguryo no Norte e Paekje no Sudoeste, mas excepto pequenos períodos de autónoma soberania, como quando a Dinastia Han do Leste (25-220) terminou e a China foi dividida em três reinos (Wu situado no Centro e Sul da parte Leste, Han-Shu a Oeste e Wei a Norte e Oeste), a Coreia só se tornou verdadeiramente independente nos finais da Dinastia Tang (618-907). Até aí o reino de Shilla, o maior e mais poderoso dos três coreanos, com a ajuda chinesa conquistou no século VII os outros, unificando toda a península. O reino de Koguryo, sob a liderança de Wang Kon em 936 estabeleceu o novo reino de Koryo, orientando-o por uma ética essencialmente confucionista.

Daí as fontes chinesas referenciarem até ao século III a.n.E. o segredo da produção da seda e sua tecnologia ainda não tinham saído do país, quando um grupo de chineses se estabeleceu no Sudeste da Península da Coreia, começando por plantar amoreiras e criar lagartas do bicho-da-seda.

No ano de 199, segundo o livro Clássico de História do Japão (Nihon Shoki), o segredo da seda passou da Coreia para o Japão, sendo levados ovos da Bombix mori, dando-se então início à sericicultura (cultura ligada à criação do bicho-da-seda), com produção de seda.

Desde 238 e nos dez anos seguintes, em ‘diplomacia da seda’ a corte japonesa enviou por quatro vezes emissários ao Reino Wu [um dos três da China, com o mar como fronteira a Leste, sendo Sun Quan o primeiro imperador do Reino Wu (229-280) e tinha como esposa a Senhora Xu (?-229), uma excelente bordadeira, pintora e calígrafa] para convencer alguns artesãos a irem para o Japão e levarem a tecelagem, a maneira de bordar e criar tinturarias. Também da Coreia continuavam a ser enviados muitos técnicos. Tal permitiu ao Japão evoluir muito rapidamente na indústria da seda, na técnica do tecer e da estampagem, conseguindo mesmo alguns pigmentos.

Em 308, quatro experientes costureiras partiram da província de Zhejiang para a corte japonesa, tal como aconteceria cento e cinquenta anos mais tarde. É das mãos destas mulheres que apareceu no Japão o wafuku, (quimono), uma veste típica do Reino Wu e conhecida por “wufu”. De salientar a forte influência da Civilização Chinesa na Coreia e Japão.

OVOS DE BOMBIX

Como a Coreia e o Japão estavam localizados para Leste da China, no Pacífico, zona de povos então isolados e fora de contactos com o mundo do comércio do Oceano Índico, o segredo aí ficou trancado. O mesmo ocorreu quando no século V uma princesa chinesa resolveu “exportá-lo” ao abandonar o país para casar com o Governador de Khotan, um reino subordinado à China. Para não renunciar ao prazer das sedas levou no penteado escondidos ovos da Bombix mori, algo que dava morte se fosse descoberta, mas não o foi e assim, o conhecimento do segredo da seda avançou pela primeira vez para Ocidente da China.

Na Passagem de Yumen, a caminho do Oeste, no ano de 414 a princesa filha de um Imperador [provavelmente de Ming Yuan Di (Tuoba Si, 409-423) dos Wei do Norte (386-534), ou de An Di (Sima Dezong, 396-418) da dinastia Jin do Leste (317-420)] deve ter sentido um calafrio quando a embaixada que a acompanhava foi revistada na fronteira pelos guardas imperiais. O enviado do rei de Khotan, que acompanhava a princesa na viagem para o seu futuro país, tinha-lhe em segredo proposto esconder ovos da Bombix mori pois, se queria continuar a vestir sedas e agradar ao futuro marido, teria de levar ovos do bicho-da-seda para o seu novo país. Devido à condição de família real, não foi revistada por os guardas e assim saíram para Oeste da China, pela primeira vez na História, ovos do bicho-da-seda, algo pretendido pelos reis de Khotan já séculos atrás, desde a dinastia Han, mas nunca tinham conseguido aprovação da parte chinesa.

Os Partos Arsácidas (170 a.n.E.-224) desfaziam os tecidos de seda chineses para ter o fio e com ele criaram as famosas sedas brocado de Damasco, a panejar as paredes dos palácios. Tal como os partos, os sassânidas (224-651), seus sucessores na governação da Pérsia, eram loucos por seda e com os tecelões trazidos da Síria, após o ataque do rei sassânida Chapur II em 360, foi criada na cidade de Susa (a Sudoeste do país, hoje Irão) a indústria de tecelagem da seda.

O reino de Khotan foi o primeiro fora da China a fazer criação de bichos-da-seda e obter o tão valioso fio, no entanto, desde 414 o segredo da seda aí se manteve sem prosseguir mais para Oeste.

DESVENDADO O SEGREDO

Em 552, no reinado bizantino do Imperador Justiniano (527-565), dois monges nestorianos persas, que viveram longo tempo na China e onde aprenderam os segredos da produção da seda, conseguiram fazer passar, dentro de dois bastões de bambu ocos, sementes de amoreira e centenas de ovos da lagarta do bicho-da-seda. O segredo foi desvendado em Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente, ficando aí a antiga serica com o nome de diaspron.

Em 622, o imperador bizantino Heráclio conseguiu uma inesperada vitória contra os persas sassânidas e atribuiu a administração dos territórios aos árabes, começando assim a sua autodeterminação. Nesse ano, Maomé trocava Meca por Medina e a 26 de Setembro de 622 dava-se início à emigração (hégira, a tradução da palavra árabe hijra, a significar exílio, ou ruptura), data do nascimento da religião do Islão criada por Maomé, sendo o ponto de partida do calendário da Era Árabe-muçulmana. Após a morte do Profeta em 632, os árabes conquistaram Damasco na Síria em 635, Jerusalém na Palestina dois anos depois e em 640 o Cairo no Egipto. Seguiu-se a Pérsia, o Afeganistão e em 698 Cartago no Norte de África (actual Tunísia), de onde passaram para a Península Ibérica em 711. Os árabes não conseguiram tomar Constantinopla nem atingir a Europa Central, pois o exército muçulmano foi derrotado em Poitiers (actual França) por Carlos Martel em 732. Já na Ásia Central, após a Batalha de Talas em 751, nas proximidades de Tashkent, os árabes expulsavam os chineses do seu protetorado no vale de Fergana e levaram muitos artesãos capturados para trabalhar na grandiosa cidade de Samarcanda. Deste modo, muitos dos segredos civilizacionais, como as técnicas de fazer o papel e a seda, foram difundidos pelo imenso mundo islâmico. Com o domínio na Ásia, desde as portas do Extremo Oriente, Norte e Leste de África e Península Ibérica, foram os árabes a espalhar a produção da seda pelo mundo. De notar, a sericicultura era já praticada na Península Ibérica muçulmana no século IX, proveniente da Arábia e do Egipto, que no século VIII estavam a par de como era feita a seda.

Apesar do Ocidente saber desde o século VI como era produzida a seda e na posse da Bombix mori, pouco interesse aí houve para a desenvolver, pois os tempos eram de guerras, tanto territoriais como religiosas, e as armaduras não davam espaço a vestes transparentes e macias.

Com a revelação do segredo da produção de seda, muitos países logo trataram de arranjar lagartas Bombix Mori para fazer criação e plantar amoreiras para as alimentar. Na produção, a maior parte dos resultados foram fracos e assim se continuou a importar seda da China.

O florescente comércio entre o Oriente e o Ocidente diminuiu substancialmente devido à falta de procura de seda que, de um misterioso e precioso produto, se tornou num tecido remetido ao esquecimento, devido ao longo período de guerras a ocupar o estar dos importadores reinos e países do Oeste. Já na China e no Leste, Coreia e Japão, a seda estava no quotidiano, tendo havido um incremento na qualidade com o aparecimento de novos tecidos de seda.

13 Set 2023

O Jardim de Qian Weicheng – Era um Retrato de Qianlong

Weize (1286-1354) o monge chan budista que assumiria o nome Tianru, criou em 1342 um jardim em Suzhou (Jiangsu) ocupando uma área vizinha a um mosteiro, em memória do seu mestre, o abade Ben Zhongfeng, a que deu o nome de Shizilin, «O bosque dos leões», leões budistas que aludiam ao poder e à virtude do Buda. Entre as várias justificações para a escolha do nome do sítio, referido como um bosque pela densidade dos bambus ali existentes, incluíam-se: o lugar onde o mestre Zhongfeng atingiu o nirvana, o Pico do leão do monte Tianmu em Lin’an (Hangzhou, Zhejiang), a caprichosa forma das porosas pedras do lago Tai, que eram parte da composição do jardim e lembravam esse animal, e o eloquente Sutra da raínha Srimala do rugido do leão.

O jardim tornar-se-ia um lugar de culto atraindo homens de cultura, entre os quais o pintor Nizan (1301-74) que o recriou numa pintura em 1373, executada na forma que ele definiu; «os traços transcendentais do meu pincel têm uma aparência rústica; não buscam a semelhança com as formas» e que faria parte das colecções imperiais. Kangxi (1654-1722) numa das suas Visitas de inspecção ao Sul, em 1703, visitou o jardim o que, como muitas outras coisas que fez, muito impressionou o seu neto Qianlong (1711-99) que repetiu a visita seis vezes, na terceira das quais em 1765, lá deixou uma placa com dois caracteres zhenqu, «deleite verdadeiro», escrito pela sua própria mão. O que foi apenas uma das inúmeras manifestações do seu imenso apreço pelo jardim.

Na sua primeira visita escreveu um poema onde se nota o olhar previamente cativado pelo rolo de Nizan: «Conheço o Bosque do leão há muito tempo,/ Diz-se que foi criado pelo mestre Nizan./ De início supus que se escondia num vale remoto,/ Depois percebi que se encontrava numa cidade buliçosa. (…) A colina artificial parece uma montanha verdadeira,/ Mortais e imortais estão separados por uma curta distância.» E Qianlong encarregaria um pintor de recriar a forte adesão espritual que sentia ao lugar.

Qian Weicheng (1720-72) que não pertenceu à Academia imperial, viajou com o imperador em duas das visitas imperiais ao Sul e delas fez várias pinturas, confirmando a sua intimidade com Qianlong. Em Vista total do Bosque dos leões (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 38,1 x 187,3 cm, na Universidade de Alberta) o jardim é reconhecível através da representação das suas feições mais proeminentes e vistas cénicas mas é sobretudo um espaço tranquilo, ao lado de Suzhou, que por metonímia funcionava como um retrato do seu dono, que nele podia passear e agir de modo privado através do olhar e do espírito. Qianlong mandaria repetir o jardim em duas propriedades suas; no Palácio de Verão e no Retiro de montanha para escapar ao calor, em Chengde (Hebei) mas com a pintura bastava desenrolá-la, estender o braço e ver.

11 Set 2023

O segredo da seda (1) – Uma cintilante preciosidade

Os tecidos de seda chegavam a Roma, mas não se sabia de que material eram feitos e ainda há mil e seiscentos anos era um segredo ciosamente guardado pelos chineses.

Havia uma mercadoria proveniente do Extremo Oriente algo “nunca vista”; – a serica, um tecido cuja sensação era a quem o usava de andar despido. Em 112 a.n.E. (antes da nossa Era), roupa delicada e cintilante feita de um tecido leve, macio, fresco, fino e maleável, vestia em Roma os imperadores. A seda, cujos caminhos para Ocidente se faziam em 106 a.n.E. pela Pérsia (actual Irão) até Roma, aí chegava conjuntamente com especiarias, peles e lacas. Em sentido inverso, para a China iam os cavalos de Fergana, assim como linho, lã, vinho e vidro.

No Egipto, uma estátua de alabastro de 1353-1336 a.n.E. representando uma filha da Rainha Nefertiti e do Faraó Akhenaton parece vestida com uma túnica de seda.

O grego historiador e geógrafo Heródoto (c.485-420 a.n.E.) [nascido na cidade grega de Halicarnasso, hoje Bodrum na Turquia] descreveu todos os povos até às Montanhas de Tian (Tianshan) na China e segundo Vitorino Magalhães Godinho, o conhecimento de Heródoto (cerca de 450 a.C.) chegava ao Indo, Mar Cáspio até ao Rio Oxus (Amu-Dária). “Paradoxalmente, à primeira vista, o Ocidente só tem do Oriente, durante longos séculos, uma visão sumária.”

Os gregos conheciam os chineses por Seres e “Serica” era o nome dado à seda, que entre o século X e o IV a.n.E. viajava da China até à Grécia. As colónias gregas vinham-se estabelecendo entre o século VII e VI a.n.E. em torno do Ponto Euxino, o Mar Negro. No ano 500 a.n.E. encontrava-se seda chinesa em Atenas, testemunhada tanto nas vestes das figuras de vasos gregos, como nas esculturas do Parténon, mas sendo o tecido de seda um material frágil não logrou chegar até aos nossos dias.

A seda apareceu como cabeça de mercadoria pela “primeira vez” na Índia e Ásia Central via Caminhos do Sudoeste da China e segundo registado em Arthasastra por Kautílya, (primeiro-ministro de Chandragupta), no século IV a.n.E. vestia a corte Maurya na Índia.

O grego Aristóteles (384-322 a.n.E.) refere-se aos casulos da Bombix e aos tecidos que deles se obtêm, na sua História dos Animais. Mas no ano 77, Plínio o Velho (27-79) escreveu Naturalis Historia, onde se lê, “a seda cresce nas folhas de uma árvore e retira-se em forma de fio ao banhar as folhas na água.” Assim, no século I os romanos pensavam crescer a seda nas árvores, quando já os chineses há trinta e cinco séculos se dedicavam à sericicultura (cultura ligada à criação do bicho da seda).

Nos finais do século III a.n.E., os romanos emergiram como principais rivais dos gregos no Mediterrâneo. Em 133 a.n.E. os territórios romanos incluíam toda a Itália, a própria Grécia, a maior parte das zonas do Norte de África e Turquia. O Império gerava enormes lucros e os cidadãos romanos iniciaram uma crescente procura dos artigos de luxo provenientes do Oriente.

O Império Romano estendia-se para Oriente quando se “começou” a ouvir falar de um povo e de uma região estranha. Era o “primeiro” conhecimento para os romanos de um país misterioso, para lá do longínquo horizonte, a que chamaram País dos Seres. Mas o acesso dos romanos ao comércio do Oriente era limitado, pois os produtos vinham através de intermediários e por isso a um preço final exorbitante.

Entre os romanos e os chineses encontravam-se os persas, mais propriamente os partos, sucessores na Pérsia dos gregos de Alexandre, que tinham o domínio sobre as rotas terrestres e o acesso às rotas das Especiarias através do Golfo Pérsico.

Os Partos Arsácidas (170 a.n.E.-224) adoravam seda e como consumidores apaixonados, já no século II a.n.E. importavam enormes quantidades desse tecido, levando no ano 105 à troca de embaixadas entre a Pártia e a China. Assim se abriu oficialmente um comércio bilateral e longas caravanas atravessavam a Ásia Central trazendo esse tão procurado produto.

A seda chegava em grandes quantidades e os panos eram quase sempre desfeitos para nas tecelagens da Síria-parta voltarem a ser tecidos ao gosto dos padrões locais e dos compradores romanos, pois o fio de seda estava proibido de sair da China. Nas balanças em Roma, a seda era mais cara que o ouro, devido aos inúmeros impostos cobrados durante a viagem para Ocidente. Como intermediários, os partos tentavam impedir os romanos de fazerem comércio diretamente com a China e já quando no ano de 97 uma delegação chinesa da dinastia Han do Leste (25-220) chefiada por Gan Ying chegou a um porto do Golfo Pérsico, querendo navegar para o Egipto, cruzando o Mar Vermelho para atingir o Mediterrâneo, foi dissuadida pelos partos como viagem longa e arriscada.

Assim, os partos continuaram a controlar o negócio da seda chinesa e daí serem para o Império Romano os seus grandes inimigos.

SEDA LEVA ROMANOS À BANCARROTA

No ano de 53 a.n.E., Marcos Licinius Crassus, governador da Síria, que conjuntamente com César e Pompeu formavam o Triunvirato e dirigiam o Império Romano, resolveu ir para Leste numa campanha contra os partos. À partida da Síria, os presságios eram maus e depois, longos dias passaram até ocorrer a batalha de Carrhes. Trinta mil soldados romanos, flagelados por setas e assustados pelo desfraldar dos amarelos estandartes de seda a brilhar ao Sol, foram estrondosamente derrotados pelos partos e Crassus morto. Uma das piores derrotas dos romanos, sendo a primeira vez que muitos romanos viram panos de seda. Em 40 a.n.E. os partos conquistaram a Síria e a Palestina, mas foram daí expulsos dois anos mais tarde. No entanto estavam sempre a meio caminho entre os romanos e os chineses. Por isso, em 31 a.n.E. o romano Imperador Augusto sem conseguir conquistar os Partos, que regulavam os preços dos produtos provenientes do Oriente, mudou de política e ocupou o Egipto, tornando-o numa província romana. Aproveitou Alexandria, na época um dos principais portos de entrada das especiarias e de outros produtos luxuosos, e mandou construir uma frota de grandes barcos, abrindo por via marítima a rota do Egipto à Índia. Os romanos passaram a ter acesso ao Oceano Índico pelo Mar Vermelho, via para fugir aos partos e receber os produtos oriundos do Extremo Oriente.

No ano 27 antes da nossa Era, o Império Romano ia da Lusitânia à Mauritânia e englobava a costa do Mediterrâneo, abarcando a Grécia, a Capadócia, a Síria, a Judeia e do Egipto até Cartago. Roma ocupava Petra no ano de 106 e para controlar os locais onde afluíam os produtos chineses adicionou ao Império em 216 Edessa e Palmira no ano 273.

As especiarias, lacas, sedas e outros produtos de luxo do Oriente chegavam como nunca antes tinha acontecido e em troca os romanos enviavam para a Ásia metais, tintas, tecidos, drogas e produtos de vidro. No entanto, Roma comprava mais do que vendia e o ouro rapidamente se esvaia dos cofres. Plínio queixava-se das fortunas gastas em produtos de luxo importados, entre os quais a seda, precioso produto mais caro que o ouro e consumido desenfreadamente, o que levou o Império Romano à bancarrota.

Devido ao afastamento no século I a.n.E. dos nómadas xiong-nu das fronteiras Norte da China, estes [conhecidos por hunos no Ocidente] empurrando para Oeste os povos seus familiares a viver na Ásia Central, criaram uma enorme agitação no que viria a ser a Europa, provocando uma interna movimentação de povos. Em 330, o Imperador Constantino transferia a capital do Império Romano para Bizâncio (Istambul), passando-se esta a denominar Constantinopla. Roma permaneceu capital do Império da parte Ocidental quando em 395 se deu a divisão do império em duas partes. Os godos, encurralados pelos hunos (os xiong-nu), tomaram Roma em 476, terminando com o Império Romano do Ocidente. Já o recheio tinha passado para Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente.

A seda era o segredo mais bem guardado da China e quem tentasse levá-lo para fora do país era punido com pena capital. A constante pergunta centrava-se: -De onde vinha a seda? Outra questão era saber o nome do país ou países que a produzia, pois os chineses desde o século IV recebiam, tanto por mar como por terra, muitos estrangeiros e dependendo do período histórico da visita das embaixadas e os caminhos que tomavam, (umas vezes dividido em diferentes reinos, outras unificado num grande país), levava os viajantes a conhecerem-no por diferentes nomes.

7 Set 2023

Etimologias médicas

Lê-se num artigo de Kan-Wen Ma, intitulado “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his earlier years and medical career” a propósito do pensamento do médico, seguidor da medicina ocidental, que foi baptizado cristão, revolucionário e fundador da República da China, vindo a ser o seu primeiro presidente (1912), a seguinte defesa a partir de uma citação de um dos Clássicos, mais exatamente do Livro da História “O maior dos médicos cura primeiro a nação e depois o povo”.

Este revolucionário, cujo papel foi decisivo para a derrocada da dinastia Qing em Outubro de 1911, assumiu o cargo de primeiro presidente provisório da recém-fundada república chinesa, sendo rapidamente afastado do poder por outros mais ambiciosos do que ele, nomeadamente Yuan Shikai (袁世凱 Yuán Shìkǎi)

Sun Wen (孫文Sūn wén) ,nome de nascimento, que o liga à cultura e à escrita, sendo o nome de criança Di Xiang (帝象Dì xiàng) , que o relaciona com o poder imperial; teve como nome oficial, Sun Deming (孫德明 Sūn Démíng), que o caracteriza como virtuoso brilhante e, ainda, entre outros, os nomes literários começaram com Ri Xin (日新Rì Xīn), evocando um sol novo; e evoluíram para Sun Yat-sen, no registo de Cantão, ou Sun Yixian (孫逸仙 Sūn Yìxiān), na pronúncia do Norte, onde se alude a um transporte até à imortalidade ou, ainda, Sun Zhongshan (孫中山 Sūn Zhōngshān), com a carga geográfica da proximidade à sua terra natal na província de Cantão. Todos estes nomes descrevem bem a personalidade de Sun Yat-sen, o letrado revolucionário em busca da virtude e da imortalidade, com o corpo bem enraizado na sua terra natal.

Daí que não surpreenda que o pensamento deste médico, ao jeito ocidental, e cristão por nascimento, seja, quando expresso, bastante conservador, em busca da tradição chinesa, para que possam ser afastados certos males cosmopolitas, a fim de curar uma nação ferida por sucessivas levas de invasões estrangeiras, dos manchus às guerras do ópio e ao pensamento da Nova Cultura, refletindo valores ocidentais. Por isso, se por um lado, adere à necessidade de unir a teoria e a prática, bem como à defesa pragmática de que o bem e o mal se podem definir pelas suas consequências práticas, por outro num documento que serviu de base ao movimento nacionalista em 1924, na forma de uma série de lições, intitulado Os três Princípios do Povo, mais exatamente na Lição 6, defende o nacionalismo e a moralidade tradicional contra os valores “intoxicantes” da Nova Cultura: “Esta característica moralidade do povo chinês ainda não foi esquecida hoje. Primeiro vêm a lealdade e a piedade filial, depois a humanidade e o amor, a lealdade e o dever, a harmonia e a paz.” (Sun Apud Baskin, 1984: 650).

Aqui se assume a perspetiva do médico que tenta libertar o país e o seu povo de valores alienígenas, que adoecem ou contaminam os chineses, já que tão ou mais graves do que as maleitas do corpo parecem ser as do espírito.

Recuando uns bons séculos, mais concretamente, até por volta dos séculos V e IV a.C, vamos encontrar um dos quatro grandes médicos da antiguidade chinesa (四大名醫 Sì dà míng yī): ele é Bian Que (扁鹊 Biǎnquè), e tem nome de planta e pássaro, concretamente, de pega, um pássaro muito auspicioso, que une o mundo natural ao espiritual, às letras, a que pertence indissoluvelmente ligado enquanto componente do caractere tradicional da palavra “escrita” (寫 xiě), e lá está o pássaro na base, onde não vislumbramos a plumagem da pega, preta, branca e azul, mas acreditamos que sim, já que só uma ave tão palavrosa e conversadora poderia estar na origem do exuberante sistema escrito chinês. Especialmente relevante é o facto de a este médico do período dos Estados Combatentes (戰國 Zhànguó) serem atribuídos quatro métodos essenciais da Medicina Tradicional Chinesa (中醫 Zhōngyī): a observação (望診 wàngzhěn), a auscultação e o recurso ao olfato para a identificação dos cheiros (聞診 wénzhěn), a interrogação (問診 wènzhěn) e a medição das pulsações (切診 qièzhěn), sendo também a interrogação essencial no diagnóstico, ou melhor, a conversa de pássaro.

Um outro aspecto que desde muito cedo se distinguiu nos médicos chineses, e em Bian Que com grande destaque, foi a relação que estabeleceu entre ética e prática médica. Diz-nos Bai Jingfeng em Episodes in Traditional Medicine (1998) que o fundador dos quatro métodos de diagnóstico tinha preceitos muito rigorosos, que ficariam conhecidos como as seis regras (Bai, 1998: 69). Primeiro, não tratava aqueles que abusavam do seu poder, oprimindo terceiros; segundo, não tratava gente gananciosa e obcecada pela riqueza; terceiro, não se dispunha a colaborar com uma certa aristocracia dissoluta que se comportava extravagantemente; quarto, não recebia quem revelasse ter os princípios yin (陰) e yang (陽) em desequilíbrio; quinto, não procurava curar quem estivesse já demasiado fraco para receber tratamento; sexto, não tratava quem acreditasse em bruxarias.

Há uma história proverbial muito conhecida ligada à sua biografia, intitulada 《諱疾忌醫》(Huìjí-jìyī), que numa tradução à letra significa “evitar a doença para evitar a cura”, podendo encontrar uma correspondência pelo sentido em Português no provérbio “não há maior cego do que aquele que não quer ver”. A história ilustra na perfeição a aplicação da quinta regra, mas também algo essencial na medicina tradicional chinesa, como veremos adiante.

Resumidamente, o Rei do Estado de Cai (蔡國) , o Marquês Huan (桓侯) convida o médico Bian Que para o seu palácio. Bastou ao experiente médico observar a cor da pele do Marquês para logo lhe detetar o início de uma doença, apressou-se a avisá-lo, acrescentado, mas não se preocupe porque a sua maleita ainda está na fase inicial. O rei levou-a mal ao médico a franqueza do diagnóstico, recusando-se a admitir a doença: “Eu estou bem, não tenho qualquer doença (我很好, 没有病)” (北京语言学院编, 1984: 128), depois mal o médico virou costas, teceu comentários desagradáveis a respeito dele e sobre os médicos em geral. Passados dez dias, Bian Que voltou a encontrar o Marquês Huan, aconselhando-o novamente a que procurasse tratar-se enquanto era tempo, já que a doença tinha evoluído e estava então ao nível dos músculos. Passados mais dez dias, Bian Que voltou a cruzar-se com o rei, dizendo-lhe com um ar consternado que a doença se entranhara, estava então já ao nível dos intestinos e estômago, tornando-se muito perigosa. O Marquês voltou a ignorar os conselhos do médico. Houve ainda oportunidade para novo encontro, mais dez dias volvidos, mas dessa vez Bian Que já nada disse ao rei, voltou-lhe as costas e foi-se embora. Perante tal comportamento, o governante estranhou, mandando emissários para obter explicações. Ao que ele declarou já nada poder fazer pelo monarca. Houve um tempo em que o poderia ter salvo, quando a doença ainda era superficial, mas já era tarde demais, porque lhe tinha atacado a medula óssea. Passados cinco dias o rei sentiu-se mal, sem quaisquer forças, mandou então chamar o médico, que, seguindo o seu quinto preceito, nem sequer tentou curá-lo, aliás já nem se encontrava nos seus domínios.

Moral da história, não vale a pena “tapar o sol com a peneira”, procurando “enganar-nos a nós próprios” quando estamos doentes, porque tão má como a doença do corpo, ou até bem pior, pode ser a mental, que, mais ou menos conscientemente, nos leva a cometer erros muito graves que podem conduzir inclusive à morte, quando não das pessoas, das relações e das oportunidades. Há um tempo certo para tudo, mas saber reconhecê-lo depende da saúde do corpo inteiro, mente incluída. É essa ligação essencial e primordial entre o lado físico e o mental que tem conduzido gerações de médicos chineses a privilegiarem aquilo a que hoje chamamos diagnósticos diferenciados, dando relevo à observação de cada caso como uma história única, apenas captável através de um diagnóstico rigoroso que inclua a observação física atenta e a interrogação/conversa não menos concentrada, seja ao nível individual, seja ao nível dos estados, como bem viu Sun Yat-sen, pois de nada adianta a cura individual, quando não há uma transformação ética coletiva a acompanhá-la, já que quando países inteiros adoecem, serão poucos aqueles que conseguirão manter a sanidade mental.

Por fim, recorde-se a etimologia de “medicina e curar” (医 yī), no chinês simplificado é apenas constituída por uma seta (矢 shǐ) que se retira da aljava (匚 fāng) para atacar o demónio da doença; no chinês tradicional (醫 yī), conta também com o componente de vinho (酒 jiǔ), essencial na sua função de elixir.

O certo é que o médico só tem o poder de desferir uma seta certeira, aquela que realmente cura, com a ajuda do paciente, ou seja, quando este está em equilíbrio e revela abertura e disponibilidade para operar a transformação necessária que o conduza ao caminho da saúde. Se a mentalidade geral for adversa, se o paciente não quiser, ou se as circunstâncias não o permitirem nem vale a pena tentar atirar a seta, porque ela nunca acertará no alvo, já que este último é animado e comunicante e só existe em diálogo.

Bibliografia

Bai Jingfeng. 1998. Episodes in Traditional Chinese Medicine. Beijing: Chinese Literature Press
Baskin, Wade (ed) 1984. Sun Yat-sen. Classics in Chinese Philosphy. New Jersey: A Helix Book.
北京语言学院(编)1984《成语故事选》.北京:外文出版社.
Kan-Wen Ma. 1996. “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his early years and medical career”. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/096777209600400309London: Journal of Medical Biography; 4, 161-170.

*Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

5 Set 2023

Sobre Buda

Crónica de Sofia Yao

O que aconteceu ao viajante? As nossas pernas já não precisam de aguentar a caminhada que nos trouxe até aqui? Os meus olhos já não são obrigados a suportar o peso de qualquer visão, a bem do futuro, é preciso calcar o passado.

Oh, Boddhisatva desta querida Terra, com tal força e ainda precisas de um protector. Choras pelos fracos que abandonaram o teu corpo? Desta vez o viajante não tinha crenças: uma jornada de vitória, uma manifestação de Canibalismo. Dentro do silêncio, afirmaste a tua narrativa. Suspenso, tu ponderas. Dizem que o pensamento é a arma mais poderosa. Quem? Quem precisa dos nossos pensamentos e são eles alguma vez transportados pelos lamentos, ou nunca podem escapar ao destino da tinta e do papel?

Só através do pensamento eu me torno o teu soldado e, no entanto, comecei a pensar porque prometeste libertar-me.

Secretismo dentro de montanhas, dentro de cavernas. O solilóquio é uma actuação; quem disse que eu queria vir a ter uma resposta? Ter companhia sem conversação, ter medo, mas também demonstrar força. Com os vapores dos cozinhados, todos regressamos ao vinho, à Terra.

Digo que existem suficientes pessoas sensatas neste Planeta! Tantas teorias, mas nenhum conteúdo. Não se pode atingir a sabedoria sem encontrar a solução para uma obsessão não resolvida. Para contemplar cada camada da nossa fixação: fascínio, paixão, limitação, co-existência. Temos de sair do nosso palácio não só para nos apercebermos de que existem outros reinos, mas para ver as pessoas, o invasor, o monge.

Lamento Boddhisatva, mas não tenho a tua força. Tenho de destruir o pedestal que distingue o corpo da mente. Sob a violência carnavalesca, o nosso corpo é destruído, sem que eu tenha possibilidade de ver a tua mente. Tenho de permanecer fiel às minhas sensações. Para deixar que o meu corpo faça voar um papagaio chamado mente.

Os comentários satíricos sobre os nossos actos de violência não justificam o acto em si. Porque é que nos sentimos confortáveis connosco próprios quando entramos na pele do “observador”? A câmara torna-se os nossos olhos renovados, sempre nítida, sem interferências da realidade permutável. Um gosto de beleza distorcido, onde um Buda na sua plenitude se torna indigno de nossa visão, porque a sua plenitude nos é incompreensível. Talvez precisemos da sua destruição para alcançar um sentimento de auto-piedade.

5 Set 2023

A versão de Shen Yuan do rolo que evoca Bianjing

Meng Yuanlao (c.1090-1150), um funcionário governamental que viveu em Bianjing (actual Kaifeng, Henan) dos treze aos vinte e sete anos, sendo depois forçado a abandonar a cidade capital dos Song do Norte, partindo para o exílio em Hangzhou, escreveu uma nostálgica recordação desse lugar. Que se lê como uma ilustração da expressão «menghua», um sonho projectado no passado de um paraíso perdido, por vezes referido como a utopia do imperador Amarelo sobre Huaxu, a terra da harmonia e felicidade perfeitas.

Em Dongjing menghua lu, «Sonho do esplendor da capital oriental», editado pela primeira vez em 1187, a cidade é descrita como um lugar onde “A paz se prolongava dia após dia: viviam lá muitas pessoas e havia de tudo em abundância, jovens com longas tranças não se entretinham senão com danças e tambores, os mais velhos com os cabelos salpicados de branco não ligavam a escudos ou lanças. As estações e os festivais seguiam-se uns aos outros cada um com as respectivas situações para apreciar. Noites iluminadas por candeeiros e madrugadas ao luar, períodos de neve e tempos de floração, clamando habilidades e subindo alturas, formando reservatórios e jardins onde se pode passear. Erga-se o olhar e lá estão pérgolas verdes e quartos pintados, entradas bordadas e sombras preciosas. Carruagens decoradas competiam pelo estacionamento na Avenida Celestial e cavalos ajaezados lutavam para passar nas ruas imperiais. (…)”

Mas a mais comum evocação de Bianjiang é uma pintura intitulada Qingming shanghe tu, que se pode traduzir como «Sobre a margens do rio durante o festival Qingming» (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 528,7 cm, no Museu do Palácio em Pequim) cuja autoria, no rolo, é atribuída a Zhang Zeduan (1085-1145) e mostra a buliçosa vida em torno do rio Bian. O seu singular fascínio originou inúmeras cópias e recriações das quais cerca de cem estão hoje em vários museus e colecções.

Shen Yuan (act. 1728-48) é autor de uma das mais intrigantes recriações (rolo horizontal, tinta sobre papel, 34,8 x 1185 cm, no Museu do Palácio, em Taipé) que se diz ter sido apenas um guia para outra versão colorida executada por cinco pintores da corte de Qianlong. No entanto ela exibe um domínio do desenho, da perspectiva e certos pormenores que a tornam ímpar. Nela está a única confirmação de que a cena decorre no festival Qingming, «o dia de varrer as sepulturas», através de três figuras que se vêem na primeira parte junto de um túmulo, num gesto evidente de quem chora, a eloquente expressão do pesar. Na parte central que representa a ponte dita «ponte arco-íris» onde no original um navio de grande porte se encontra em risco de bater ao passar criando um grande alvoroço, Shen Yuan resolve o perigo riscando linhas rectas que são os cabos que puxam o navio, guiando-o a partir das margens.

4 Set 2023

A riqueza e os seus deuses

Desde os tempos mais recuados houve quem na China desprezasse a riqueza. Podemos encontrar entre estes os seguidores mais fiéis das filosofias confucionista, daoísta e budista. O cavalheiro confucionista ou o sábio daoísta pouco ligam aos bens materiais. Para estas filosofias, mais importante do que a riqueza material, são os bens espirituais, que cada um vai desenvolvendo como pode: os valores morais, no caso confucionista, e os existenciais, impregnados de espiritualismo, no caso daoísta. Também aos budistas interessa, sobretudo, a libertação dos desejos materiais, a fim de escapar à terrível roda das reincarnações.

Mas, o certo é que, desde os tempos mais recuados muitos, muitíssimos, mesmo, têm sido os que, entre os chineses, amam devotadamente a riqueza. Estes situam-se a um nível mais popular, são a grande maioria da população. Não obstante, neles se incluem muitos dos eruditos, capazes de suspender, no dia-a-dia, com admirável facilidade, os preceitos filosóficos que vão transmitindo nas aulas, conferências e outros momentos teóricos das suas actividades.

Enfim, para a maioria, a riqueza é um bem inestimável. Há até um deus, o da riqueza, ou vários, dependendo das versões, a que as pessoas prestam culto de modo a enriquecer rápida e prolongadamente.

A riqueza, na China, tem uma dimensão religiosa e, por vezes, até mística. Este povo adora com fervor religioso certos bens materiais, como o dinheiro, o ouro, e todos os metais preciosos, as pedras, também preciosas e, em suma, todos os objectos vulgarmente catalogados como tesouros materiais.

A relação dos chineses com a riqueza abre-nos as portas ao estudo de uma religião materialista, onde este mundo e os seus bens são o verdadeiro modelo para um mundo sobrenatural, que só é superior na medida em que copiar, sem quaisquer alterações, a ordem estabelecida na terra.

Nesta mundividência, há uma mensagem bem clara a reter: não basta actuar no mundo laico para se ser rico, é preciso ter fé e procurar o auxílio e a protecção das divindades ligadas à riqueza, caso contrário a sorte não será favorável.

O deus da riqueza, Cai Shen, desdobra-se, em muitas versões, em dois: um militar, representado por Guandi, também conhecido por deus da guerra, e um civil que, não raro, aparece representado pelo ministro da antiguidade, Bi Gan. Este no livro da História é descrito como um servidor leal e justo, que sofreu martírios inenarráveis às mãos de um monarca cruel.

O deus, ou os deuses da riqueza, são adorados com fervores redobrados entre os mais desfavorecidos, como é natural. São-lhes erguidos vários templos e altares, onde abundam oferendas, como vinho, frutas e bolos. As divindades são, também, muito apreciadas em zonas e cidades comerciais, como Cantão e afins.

O deus civil é venerado por pessoas ligadas a profissões, carreiras e negócios que nada tenham a ver com o mundo militar. Já o deus militar é o protector de todos os indivíduos que, de algum modo, se relacionem com a guerra, como cutileiros, ferreiros, militares…

Estes deuses vivem, como já se disse, segundo o modelo da existência terrestre. Têm mulher, família, riquezas sem fim e uma corte poderosa. Despertam um fervor intenso nos seus fiéis tanto eles, como os seus acólitos.

Entre estes, um dos mais conhecidos é Liu Hai, habitualmente figurado por um menino com um colar de moedas à volta do pescoço. O rapaz faz-se acompanhar por uma criatura fabulosa: um sapo de três pernas, que devora moedas. Liu Hai é muito importante, do ponto de vista simbólico, pois mostra bem como, para a mentalidade chinesa, se interligam os desejos de riqueza e descendência masculina.

Outros acólitos da divindade da riqueza são os gémeos da harmonia: He He Er Xian. Estes revelam mais uma característica importante da maneira de pensar dos descendentes do dragão – o espírito familiar. A verdadeira riqueza não surge com indivíduos isolados, mas em união e, especialmente, em família.

A história do par de gémeos chega-nos através de uma lenda. Esta fala-nos de dois irmãos, nascidos de pais diferentes (nessa altura ainda não eram gémeos!), que deitaram mãos à obra, lançando-se ao negócio. Fizeram uma grande fortuna. Com a riqueza a aumentar, acabaram por se desavir. Separaram-se e só na oitava geração os descendentes se voltaram a unir, recuperando todos os bens de que os ancestrais tinham sido senhores.

A harmonia e a união trazem a riqueza e, também, a longevidade e felicidade. Esta última é, muitas vezes, simbolizada num morcego, que congrega, por homofonia, a riqueza e a felicidade.

Associada aos deuses da riqueza e seus acólitos, costuma surgir uma panela preciosa, que terá sido pescada por um homem de Nanjing, no rio Yanzi. O pescador pensou que o utensílio vindo às redes, seria útil para fazer a comida do cão, de modo que resolveu ficar com a panela. Para grande surpresa dele e da mulher, o objecto era mágico, logo tudo o que se punha lá dentro multiplicava-se indefinidamente. Assim sucedeu com a comida do cão, mas, também, com o gancho dourado da mulher, que, inadvertidamente, lhe escorregou da cabeça.

Outros símbolos ligados ao culto da riqueza são: um cavalo precioso, provavelmente de origem budista, de cuja boca se escapam jade, moedas de todos os tipos e outros bens valiosos e que, além disso, transporta um taça repleta de jóias; um dragão-moeda, já que o seu corpo é formado por um longo cordão de moedas; uma carpa, que, por homofonia, representa a abundância, além de inúmeros cestos e caixas a transbordar de tesouros.

Este mundo religioso da riqueza, repleto de seres e objectos sagrados, dá acesso ao crente a todo o tipo de bens preciosos: lingotes de ouro e prata, pedras preciosas, árvores mágicas, donde também saem moedas, e riquezas sem fim. Um grande número de frases auspiciosas, de inegável eficácia mágica, remata e coroa este cenário.

Os possuidores das belas frases caligrafadas podem estar certos de obter o que elas indicam. Para citar algumas, “longa vida, riqueza e posição social”, ou, apenas, “riqueza e posição social, ou “a visita do Deus da Riqueza”…

Na China, e um pouco à semelhança do espírito que anima certas filosofias cristãs do Norte da Europa, para se ser rico há, antes de mais, que acreditar. Em seguida, deve-se cultivar, incessantemente, as relações com os deuses, seus acólitos e nunca esquecer de ter sempre à mão a vasta gama de amuletos aqui referidos. Estes tanto produzem efeito a duas como a três dimensões.

28 Ago 2023

O que Li Shizhuo escreveu nas suas pinturas

Gao Qipei (1660-1734), o alto funcionário que se notabilizou pelas suas pinturas que dispensavam o pincel e utilizava de maneira bem-humorada as mãos e a ponta de uma unha que deixava crescer para o efeito, fez parte de uma família que, se não prolongou a sua intransmissível bizarria, enriqueceria a arte do pincel.

Um seu sobrinho, Li Shizhuo (1687-1770) mostraria um conhecimento invulgar da história da pintura reflectindo o gosto de sistematização e erudição característicos dos pintores ao serviço do imperador Qianlong (r. 1736-95) a quem serviu durante cerca de vinte anos. Filho de um alto funcionário terá sido no decurso de uma viagem com o pai à região de Jiangnan, que entrou em contacto com o eminente pintor Wang Hui (1632-1717) que teria um papel essencial no ressurgir de importância da pintura ortodoxa de paisagens no fim do século dezassete, com quem terá aprendido os fundamentos da arte. E na ausência de um manual de pintura seu, as inscrições que fez em pinturas constituem um corpo crítico revelador de um saber muitas vezes partilhado nos convívios dos literatos. Em Paisagem a partir de Wu Zhen (1289-1354) e Shen Zhou (1427-1509) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo vertical, tinta sobre papel, 65,2 x 32,8 cm) ele mostra um à vontade que não é isento de certo tom autobiográfico: «

As pessoas gostam das pinturas de Shitian (Shen Zhou) e dizem que alcançou os mistérios ocultos de Mei Daoren (Wu Zhen). No entanto elas não percebem que na realidade isso era uma tradição familiar que recebeu do seu pai, Hengji (Shen Hengji,1409-1477). Ontem passei em Guazhou (Yangzhou, Jiangsu) e sentado numa janela à chuva virada para as águas, pintei e pus os pontos (dian) nesta pintura cuja concepção está entre Wu e Shen.»

Na adopção desse «espírito dos antigos», guyi, foi consciente da síntese informada que fizera Zhao Mengfu (1254-1322) como na Paisagem no estilo desse mestre, no Smithonian (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 94,4 x 42 cm).

Li Shizhuo ao ler o tratado Bifa Ji, «Notas sobre o método do pincel», escrito em parte como um diálogo, actualizou o que nele se defende sobre a verdade do pintor. Em Paisagem a partir de Jing Hao (c.855-915) e Guan Tong (activo a meio do século X) alude a uma célebre distinção académica sobre o uso da tinta ou o domínio do pincel: «Jing Hao chamava-se a si mesmo Hongguzi.

Ele escreveu o Segredo da paisagem, e certa vez proclamou orgulhoso: “Wu Daozi poderá ser excelente com o pincel mas é deficiente com a tinta. Xiang Rong pode ser excelente com a tinta mas falta-lhe o trabalho de pincel”. E assim Honggu podia reclamar ser mestre dos dois. Como resultado Guan Tong procurou-o para seu instrutor. Ele foi realmente uma figura destacada do final da dinastia Tang. Aqui tentei mostrar o melhor de Jing Hao, escondendo os seus defeitos.»

28 Ago 2023

Dos quatro entendimentos e dos três tipos de coragem – Xunzi

Tradução Rui Cascais

Yao perguntou a Shun: “Como são as disposições inatas das pessoas?” Shun respondeu: “As disposições inatas das pessoas são verdadeiramente detestáveis! Por que razão perguntas acerca delas? Quando se tem esposa e filhos, a piedade filial para com os nossos pais diminui.

Quando os nossos apetites e desejos são satisfeitos, a nossa fidelidade para com os amigos diminui. Quando o nosso estatuto e salário sobem, a lealdade para com o nosso senhor diminui. As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas são detestáveis. Porquê perguntares acerca delas? Só a pessoa meritória não é assim”.

Existe o entendimento do sábio, existe o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar, existe o entendimento da pessoa mesquinha e existe o entendimento da pessoa servil. Algumas pessoas, mesmo quando falam muito, demonstram a forma apropriada e conformam-se à categoria apropriada das coisas; são capazes de passar todo um dia argumentando as suas posições e, através de numerosas reviravoltas e uma miríade de mudanças as suas categorias orientadoras continuam inalteradas – esse é o entendimento do sábio.

Algumas pessoas, mesmo quando falam pouco, são directas ainda que reservadas no seu uso das palavras. Quando argumentam, conformam-se ao modelo apropriado como se fossem reguladas com exactidão pela linha de tinta do carpinteiro – esse é o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar.

Algumas pessoas têm um discurso descuidado e uma conduta desordeira. Na sua forma de lidarem com as coisas muito há que pode conduzir ao arrependimento – esse é o entendimento da pessoa mesquinha.

Algumas pessoas são precipitadas e imprudentes e não seguem as categorias apropriadas. Dispõem de várias competências e vasta experiência, mas não lhes dão bom uso. São rápidas na análise e de discurso refinado e fácil, mas não se preocupam com aquilo que dizem. Não se preocupam com o que é certo e com o que é errado e não separam aquilo que é direito daquilo que é torto. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros – esse é o entendimento da pessoa servil.

Da coragem

Há o mais alto tipo de coragem, há o tipo de coragem médio e há o mais baixo tipo de coragem. Há alguns para quem existe um padrão central para todo o mundo, segundo o qual ousam estabelecer-se. Os antigos reis seguiam um certo modo de fazer as coisas e aqueles ousam aplicar o seu entendimento dele. Em cima, não seguem os senhores de uma idade caótica. Em baixo, não se conformam às gentes de uma idade caótica. Não se inquietam com o empobrecimento ou dificuldades que possam advir das coisas que envolvem ren [humanidade]. Não consideram riqueza e honra que possam de advir das coisas privadas de ren. Se o mundo os reconhece, deseja partilhar as dores e alegrias do mundo. Se o mundo não os reconhece, permanecem com independência e sós entre o Céu e a Terra e nada temem. Este é o mais alto tipo de coragem.

Há alguns que praticam os rituais com reverência e cujos pensamentos são contidos. Prezam, seguem e são fiéis a isso e dão pouca atenção aos bens materiais e à riqueza. Ousam promover e elevar aqueles que são meritórios. Ousam apontar e desvalorizar aqueles que não são meritórios. Este é o tipo de coragem médio.

Há alguns que dão pouca atenção ao seu carácter, mas muita importância aos bens materiais. Encontram consolo naquilo que conduz ao desastre e depois procuram libertar-se e escapar irresponsavelmente às consequências. Não se preocupam com a verdadeira disposição do que é certo e errado. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros. Esse é o tipo mais baixo de coragem.

Fanruo e Jushi são nomes de grandes arcos dos tempos antigos. Contudo, se não tivessem sido formados pelo torno do criador de arcos não se teriam feito certeiros por si próprios. A espada Cong, que foi do Duque Huan, a espada Jue, que foi do Grão-Duque, a espada Lu, que foi do Rei Wen, a espada Hu, que foi do Lorde Huang, as espadas Ganjiang e Moye, que foram de Helü, assim como as espadas Jujue e Pilü, foram todas grandes lâminas dos tempos antigos. Contudo, se ninguém as tivesse amolado nunca se teriam tornado afiadas. Se ninguém as tivesse empunhado, nada poderiam ter cortado. Hua Liu, Qi Ji, Xian Li e Lü’er foram grandes cavalos dos tempos antigos. Contudo, sem controlo de freio e rédea à frente e sem a ameaça do chicote e da vergasta atrás, para não falar da perícia de Zao Fu na sela, não conseguiriam percorrer mil léguas num só dia.

Quanto às pessoas, mesmo que tivessem uma natureza inata excelente e os seus corações fossem sábios e capazes de discernir com argúcia, ainda teriam de buscar mestres meritórios a quem servir e escolher amigos meritórios com quem fazer amizade. Obtendo-se um mestre meritório para servir, tudo o que ouviremos são as instruções de Yao, Shun, Yu e Tang.

Obtendo-se um amigo meritório, tudo o que veremos é uma conduta leal, fiável, respeitosa e deferente. E então se fará progresso diário na direcção de ren e de yi[justiça] sem sequer nos darmos conta. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Mas se vivermos ao lado de pessoas que não são boas, tudo o que ouviremos será trapaça, engano, desonestidade e fraude. Tudo o que veremos será uma conduta suja, arrogante, perversa, desviante e gananciosa. Além disso, sofreremos castigo e execução sem sequer nos apercebermos da sua iminência. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Há um ditado segundo o qual “Se não conheceres o teu filho, observa os seus amigos. Se não conheceres o teu senhor, observa os seus companheiros.” Tudo depende daquilo com o qual convivemos. Tudo depende daquilo com o qual convivemos.

25 Ago 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno

(continuação)

330.

Quem não consegue ainda se controlar, deve afastar-se um pouco da confusão cotidiana, de modo que sua mente não veja o que a inquieta, e não se perca; assim, ele acalmará seu corpo e seu coração.

Quem consegue se dominar, deve voltar para a agitação da vida, pois sua mente vê, mas não se sente tentada ou atraída, e isso o ajudará ainda mais a superar as coisas do mundo.

331.

Quem ama silêncio, e detesta barulho, vai acabar buscando tranqüilidade fora do mundo cotidiano. Mas, sem o contato humano, a mente retorna ao seu estado original, e ela pode se inquietar e ficar ansiosa.

A quietude está na raiz do movimento;

Como compreender que eu e os outros somos um só?

Como esquecer a diferença entre quietude e movimento?

332.

Na montanha, a mente respira, e fica cheia de bons pensamentos;

Uma nuvem que passa, o canto das garças, isso incita a mente a voar;

Um riacho que murmura nas pedras, isso banha a mente em água cristalina;

Fazer carinho num zimbro ou numa ameixeira, isso dá um sentimento de segurança e retidão;

Com aves e cervos como companhias, a mente esquece imediatamente seus problemas;

Mas ao voltar ao mundo da agitação, uma pessoa não apenas volta a relacionar-se com as coisas, mas torna-se servo delas.

333.

Feliz, ande tranquilamente pelos pastos, descalço; as aves te acompanharão, e te farão esquecer seus problemas.

Deixe sua mente se fundir com a paisagem; sente sobre as pétalas caídas, observe as nuvens no Céu, e deixe o sentido de ‘eu’ desaparecer.

334.

Na vida, felicidade e tristeza surgem na mente.

Diz o Budismo: ‘a ganância é um fogo devorador, e um abismo de sofrimento’.

Ter desejos insaciáveis é como afundar num mar de amargura;

Mas apenas um pensamento bom é capaz de mudar o fogo para água;

Apenas um pensamento correto é capaz de levá-lo, como um bote, até uma margem segura.

Assim, os pensamentos são levados, de um lado ao outro, chegando aos extremos. Devemos, portanto, ser cuidadosos com a mente.

335.

Uma serra de corda corta a madeira, uma gota d’água fura a rocha; quem estuda o Caminho, deve ser constante.

A água que flui se transforma em canal, a fruta madura cai do pé; quem busca o Caminho, deve procurar a perfeição.

336.

Ao vencer os combates da vida, chega-se a um lugar em que a lua é clara, a brisa é suave, e a vida não é mais um mar de amarguras.

Ao limpar a mente das agitações, não se escuta mais o ruído dos cavalos e carruagens, e não é necessário fugir para a montanha para conseguir sossego.

337.

Quando as árvores e plantas murcham, os brotos nascem de suas raízes;

O inverno é gelado, mas quando o vento sopra e as cinzas voam, é porque o sol está voltando;

Mesmos nas solenidades funerais, pode-se perceber os sinais da vida;

Assim, apreciamos os espíritos do Céu e da Terra.

338.

Olhe a cor da montanha, quando chove; ela ganha uma beleza diferente.

Ouve o som de um sininho no meio da noite; ele fica muito mais claro.

339.

Vá para um lugar alto, e amplie sua mente;

Contempla a água, e deixe que ela leve seus pensamentos;

Leia um livro numa noite fria de inverno, e purifique seu coração;

Suba uma montanha, declame poemas para o Céu, e vá para além desse mundo.

340.

Para um coração aberto, dez mil tigelas são como uma vasilha de barro;

Para um coração mesquinho, um cabelo é tão grande como a roda de uma carruagem.

341.

Sem chuva, vento, flores e salgueiros, não existe a natureza;

Sem sentimentos, anseios, preferências e hábitos, não existe mente.

Somente quem controla as coisas, e não é escravo delas, tem sua vontade inspirada pelo Céu, e seus pensamentos encontram a justa medida.

342.

Somente quando uma pessoa compreende a si mesma, é que pode deixar as dez mil coisas se desenrolarem, conforme suas dez mil naturezas.

Somente quando se governa corretamente pela não-ação, sem reclamar méritos, mas deixando a natureza agir, essa pessoa pode ser dita sábia.

343.

Numa vida ociosa, pensamentos estranhos chegam como ladrões.

Numa vida ocupada, a natureza humana não pode ser percebida.

Não afaste totalmente as preocupações com o corpo e a mente, mas não evite, por completo, as preocupações com a natureza.

344.

A mente se perde em meio ao caos e a confusão;

Mas em silêncio, ela se esvazia por completo;

Ascende ao Céu, voa longe com as nuvens;

Refresca-se com as gotas de chuva;

Alegra-se, e entende o canto dos pássaros;

Acalma-se, e pondera sobre a queda das pétalas das flores;

Esse não é o paraíso?

Como compreender a verdade do mundo?

345.

Quando nasce uma criança, a mãe corre risco; riquezas guardadas atraem ladrões; assim, onde há razão pra comemorar, há que se preocupar também.

A pobreza ensina a simplicidade e a diligência; a doença ensina a cuidar da saúde; assim, onde há razão para se preocupar, há aprendizado também.

O sábio olha sorte e azar como coisas iguais, e esquece a diferença entre alegria e tristeza.

346.

O Ouvido aprende escutando; ouve os ventos sibilarem nos abismos e ravinas, mas depois que passam, tudo fica em silêncio.

Os estados da mente são como a lua refletida no lago; quando o céu está vazio, não se vê nada.

Assim, se esquece a diferença entre “isso” e o “eu”.

347.

Quando o coração está enredado em honras e benefícios, tudo o que se faz ou se diz no mundo termina em tristeza;

Não se conhece as nuvens brancas, o vento puro, o rio que corre, as pedras amontoadas, o rosto das flores, a alegria dos pássaros, ou o canto do lenhador que ecoa no vale.

Mas quem as conhece, se acalma; e a tristeza vai embora, pois foi ele mesmo que sossegou sua mente.

348.

Observe as flores quando estão pra desabrochar; beba vinho somente até ficar um pouco tonto; dessa forma, aproveita-se muito mais as coisas.

Observe as flores em todo o seu esplendor; beba até ficar bêbado; dessa forma, tudo que é bom fica ruim.

Quem tem uma alta posição, deveria refletir um pouco mais sobre essas coisas.

349.

As plantas crescem nas montanhas, sem que alguém lhes dê água ou estrume, e seu sabor é delicioso;

As aves voam pelos campos, sem que alguém as crie ou lhes dê comida, e seu sabor é incomparável;

Dá-se o mesmo com quem convive com o vulgar, mas não é contaminado por ele, mantendo sua pureza original. Tal pessoa não é um exemplo?

350.

Cultivar flores, plantar bambus, brincar com as garças, observar os peixes, tudo isso deve ser feito com atenção.

Quem o faz de forma vazia e displicente, sem perceber a beleza da natureza, é aquele que os confucionistas chamam de ‘superficial’, e os budistas de ‘ pretensioso’.*

O que pode haver de bom nisso?

*no original, ‘pessoa de boca e ouvido’ (=superficial); e ‘pessoa ignorante e arrogante’ (=pretensioso). [O primeiro despreza conhecer; o segundo ‘pretende’ que conhece.]

351.

O Educado que vive nos bosques e montanhas leva uma vida austera, honesta, simples, e está sempre satisfeito;

O camponês dos prados leva uma vida simples e ignorante, mas conserva sua ingenuidade e pureza;

Quem foge do mundo das coisas pra depois voltar a ele, se transforma num mísero negociante; seria melhor ter morrido nos campos, sem contaminar seu corpo e alma.

352.

Tome cuidado quando ganhar fortunas sem razão, ou desfrutar de alegrias não-merecidas; pode ser um teste, uma tentação imposta pelo Céu.

Há gente de visão limitada, que sempre cai nessas armadilhas.

353.

A vida humana é como uma marionete:

Se as cordas estão em suas mãos, livres, desembaralhadas, e você pode movê-las como quiser;

Então, você controla sua vida, e nada pode manipulá-lo;

Só assim livra-se das cordas do mundo.

354.

Vantagens e desvantagens surgem juntas; quem sabe disso, abaixo do Céu, entende que a felicidade é a não-ação.

Um antigo provérbio diz:

‘Aconselha o soberano a deixar de lado suas conquistas, pois apenas uma vitória deixa dez mil crânios apodrecendo no campo’

E também:

‘Deixa em paz todas as dez mil coisas abaixo do Céu, e não se importe se sua espada enferrujar na bainha por mil anos’.

Quem compreende essas palavras, pode amansar um coração impulsivo e violento, como se o refrescasse debaixo do sol.

355.

Uma mulher indócil pode corrigir-se, e virar monja; um homem mesquinho pode controlar-se, e seguir o Caminho num templo.

Por isso, os templos servem para o refúgio e a correção dos perdidos.

356.

Quando as ondas chegam até o Céu, quem está no barco não se assusta, mas quem está de fora, fica amedrontado;

Quando acontece um tumulto numa festa, quem está no salão não se impressiona, mas quem vê de fora, fica apavorado;

Por isso, o sábio, quando está dentro de alguma situação, projeta sua mente para fora dela.

357.

Aja menos, erre menos;

Menos amigos, menos confusão;

Fale menos, menos equívocos;

Preocupe-se menos, menos aporrinhação;

Menos astúcia, mais integridade;

Quem mais trabalha* todo dia, sem cessar, forja grilhões para si mesmo, por toda a vida.

*[Planeja, ambiciona, executa ações em proveito próprio, busca proveito, etc. Outro sentido possível é o de não esgotar-se, mesmo sendo o trabalho digno.]

358.

Calor e frio podem ser evitados em qualquer estação, mas a inconstância das pessoas não;

A inconstância pode ser controlada, mas não cura a irascibilidade;

Quem controla a inconstância, e cura o coração irascível, alcança a paz no coração e a calma do espírito, como se lhe soprasse uma brisa primaveril.

359.

Meu chá não é o melhor, mas eu sempre tenho um bule cheio;

Meu vinho não é o mais fino, mas sempre tenho uma botija cheia;

Meu alaúde é simples, mas toca bem;

Minha flauta é pequena, mas não é desafinada, e me alegra;

Em viver a vida de modo simples, eu não sou tão bom quanto Fuxi, mas me contento em dizer que chego perto de Jikang e Ruanji.*

*Fuxi, primeiro sábio das eras primitivas chinesas; Jikang e Ruanji são integrantes do mítico grupo dos sete sábios do bosque de bambu, ascetas desapegados da vida social, e dedicados a uma vida despojada.

360.

O budismo ensina: ‘siga a natureza’;

O confucionismo ensina: ‘siga o apropriado’;

Esses ensinamentos são a bóia com que atravessamos o Mar da vida.

Os caminhos do mundo são vastos e ilimitados;

Busque o Topo, e você terá mil dificuldades;

Acostume-se com sua vida, sem pretender altas posições, e você viverá em paz de espírito.

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas.

22 Ago 2023

Zhang Ruocheng, a Viela Estreita e o Espírito Livre

Zhang Tingyu (1672-1755), o erudito e historiador que dirigiu a compilação da História dos Ming, foi também um político notável ao serviço de três sucessivos imperadores; Kangxi, Yongzheng e Qianlong, num tempo em que em que a grandeza e o poderio do império dos Qing alcançou um ponto alto. E mesmo se, no fim da sua vida as relações com Qianlong se deterioraram, ele seria o único funcionário oficial superior de etnia han durante a dinastia Manchu, a ter uma tabuleta póstuma em sua memória no Templo dos antepassados, Taimiao, junto da Cidade Proíbida.

Conhecendo a sua biografia, dir-se-ia que essa capacidade de adaptação a um tempo de grande convulsão interna, apoiada numa facilidade de comunicação pela convergência da elevação dos espíritos, era para ele uma herança familiar. Em Tongcheng (Anhui) onde nasceu e de onde era originária a sua família, é conhecida uma história sintetizada num «provérbio» em que o seu pai é o protagonista. Diz-se que Zhang Ying o seu pai, funcionário na corte, recebeu um dia uma carta dos familiares que estavam na casa de família que lhe pediam para resolver uma disputa com o vizinho do lado acerca dos limites das duas casas, que os tribunais locais não conseguiam solucionar. A resposta de Zhang Ying veio na forma de um poema que dizia: «Escrevem-me uma carta de tão longe, a grande distância só por causa de um muro, Toda uma confusão só por causa de um ou dois metros. Olho para a Grande Muralha, longa de dez mil quilómetros, Passado é já o tempo do seu construtor, o imperador Qinshihuang.»

Os familiares entenderam e num gesto de condescendência recuaram o muro, um metro. O vizinho, olhando para o gesto também percebeu e recuou igualmente o seu muro um metro, criando entre as duas propriedades uma congosta com cerca de dois metros de largura. A situação exemplar para a resolução de conflitos seria até hoje referida com os três caracteres liu chi xiang, «ruela apertada, espíritos abertos».

Zhang Tingyu teria três filhos que serviriam o imperador e que se distinguiram nas artes do pincel em que a moral e a estética eram padrões que qualificavam os literatos. Ruoting (1726-1802) na caligrafia, Ruoai (1713-46) mostrou agudeza de abservação e domínio da alegoria na pintura de pássaros e plantas, e Ruocheng (1722-70) faria pinturas de paisagens em que a proporção era indiferente à dimensão. Num longo rolo horizontal, Viajando até ao sagrado cume do Sul (34,9 x 632,6 cm, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles) os lugares figurados são identificados em pormenor, como num mapa. Noutro pequeníssimo rolo, vendido no mercado (Bonhams) com inscrição de Qianlong (tinta sobre papel, 3,8 x 16,5 cm) feito para ser colocado numa «arca de muitos tesouros», duobao ge, revela intimidade com o imperador esteta que valorizou a sua própria família como um tesouro.

21 Ago 2023

Dai Zhen, a benevolência e o desejo

Andei a ler a PESQUISA SOBRE O BEM, de Dai Zhen (戴震 Tai Chen, em Gilles-Wade), um filósofo do século XVIII (1723-77), da escola confucionista da dinastia Qing. Este pretendeu regressar às origens, afastando-se propositadamente dos neo-confucionistas dos períodos Song e Ming, cujas teorias estão impregnadas de ideias daoístas e budistas.

Dai Zhen foi um filósofo que teve a felicidade de ser reconhecido no seu tempo, apesar de ter reprovado cinco vezes nos exames imperiais. Nunca chegou a mandarim, mas contribuiu decisivamente para a cultura do seu tempo, nos campos da matemática, geografia, fonologia e, naturalmente, da filosofia.

A obra PESQUISA DO BEM, como o próprio título indica, é muito influenciada pelas teorias de Mengzi, ou, à portuguesa, de Mâncio.

Para Mengzi (372-289 a.C), o homem é bom por natureza, por isso a bondade é a virtude-fundamento da humanidade. Ora Dai Zhen, já em pleno século XVIII vem contribuir para recuperar e desenvolver esta linha de pensamento avançada no século III a. C.

Para o filósofo, o bem é uma teia composta por três virtudes: a benevolência, a justiça e a propriedade. Só o homem bom, justo e correcto vive humanamente. Por isso, deve cultivar, antes de mais, a benevolência, que é a raiz de todas as outras virtudes. Esta define-se, ao nível corpóreo, como uma força criadora, que actualiza as forças criadoras do Céu e da Terra, também elas benevolentes. Estas conjugam-se entre si e com o homem numa harmonia pré-estabelecida.

Assim, o Céu é criativo, a Terra receptiva e “quem adquire a força produtiva do Céu e da Terra é benevolente. Quem obtém os princípios de ordem e da razão, é sábio” (Tai Chen’s Inquiry into Godness, Honolulu, East-West Center Press, 1971, p. 69).

Os princípios morais advêm da sábia conjunção da razão e da sensibilidade. Com Dai Zhen, a bondade passa a ser perspectivada em termos de força produtiva, mas sem prescindir de um enquadramento racional. Este é um grande avanço para o aparecimento de uma nova filosofia chinesa, que procurará colmatar o fosso criado por posições filosóficas extremistas, defensoras de idealismos e materialismos exacerbados.

Assim, papel de destaque conferido à bondade não leva o filósofo a esquecer que os desejos, sobretudo quando absolutizados, podem ser verdadeiramente perniciosos, por isso defende sempre a acção condutora e auto-controladora da mente nos assuntos humanos.

No entanto, a razão não entra em conflito com a sensibilidade, muito pelo contrário: a bondade, enquanto força – e força de amor – é a “virtude mais elevada”(p. 70), não se limita à esfera humana, estende-se a todo o universo: “a força produtiva do Céu e da Terra assenta na benevolência” (p. 71)

Mas em que consiste exactamente esta benevolência universal que o filósofo iluminista defende?

Ela é uma força e pode ser definida como desejo. Que os homens e toda a natureza tenham desejos, nada de mais natural para Dai Zhen, com uma ressalva: estes desejos para serem realmente bons, isto é, para estarem de acordo com a ordem da natureza, não podem ser egoístas. Diz-nos o filósofo: “ Quem tenha desejos sem egoísmo, é benevolente” (p.72).

Se pensarmos bem, o que tem dado ao desejo tão mau nome, apesar de todas as tentativas de salvação, vindas nomeadamente da área psicanalítica ocidental, é o facto de ele se expressar como uma força individual, poderosa, avassaladora mesmo, com tendência a assumir-se totalitariamente naquele em que faz a sua aparição.

Alguém cegamente possuído pelo seu desejo torna-se egoísta e insuportável para os outros. No entanto, já alguém que lide sabiamente ou racionalmente com a sua sensibilidade, é um sábio, porque deixou falar em si todos os aspectos da sua natureza.

O homem só é verdadeiramente superior quando faz com que “os seus desejos se conformem aos princípios da razão e da correcção “(p.97). Mais do que recalcar os instintos, interessa controlá-los e tirar o melhor partido deles, porque, não esqueçamos, é na sua força que se manifesta a virtude da benevolência.

Esta força tão boa, tão positiva, encontra-se um pouco por toda a parte, por exemplo: “no crescimento dos troncos, das folhas, dos botões e dos frutos das árvores(…), por isso a capacidade da actividade criativa é chamada benevolência”(p.74)

Segundo o filósofo, a natureza do homem – com os seus desejos, sentimentos e poder racional – não podia ser melhor. Há até um acordo básico entre toda a natureza, uma harmonia pré-estabelecida à maneira de Leibniz, que coopera para tornar a vida fácil àquele que, não só deixa falar a sua natureza benevolente, os seus desejos, como também procura desenvolver a sua pessoa, seguindo o exemplo dos sábios e o estudo aturado dos clássicos.

“O caminho de suster e manter a vida encontra a sua chave em desejos, o caminho da simpatia e profunda compreensão encontra a sua chave em sentimentos. Isto porque os desejos e os sentimentos são os signos do natural.”(p. 75) E, um pouco adiante: “Os desejos formam o caminho do Homem, estão enraizados na natureza humana e encontram expressão no dia-a-dia”(p. 76). Nada têm de vergonhoso ou pecaminoso, traduzem-se em expressões amorosas que temos para com os amigos, os familiares e os filhos. Para este filósofo tão inovador, quando expressamos a nossa natureza em equilíbrio, estamos a cultivar o caminho do Céu.

O pior inimigo da benevolência é, como já referi, o egoísmo e o seu maior amigo a lealdade. O Céu ao dar e a Terra ao receber estão a ser benevolentes. O homem, se proceder de acordo com eles, também dá e recebe. Logo, o melhor antídoto para o egoísmo, que mata a benevolência, é justamente o altruísmo. A natureza contém em si os princípios da razão e da bondade, há que segui-los sem medo, sendo fácil e simples como ela.

O homem de Dai Zhen, este todo sensível e racional, tem que lutar contra dois inimigos. Um deles já conhecemos, situa-se ao nível da sensibilidade e é o egoísmo, que se define como satisfação exclusiva de desejos privados; o outro, é a confusão que se apodera das mentes, ao entrarem em contacto com os outros e com o mundo. Ora um homem confuso torna-se facilmente iludível e estúpido, o remédio para contornar este obstáculo mental está na educação e no estudo.

Resumindo, libertamo-nos da confusão por meio do estudo e auxiliados pela virtude da fé e libertamo-nos do egoísmo através de acções leais e compassivas, atingindo assim o núcleo da teia de virtudes formada pelo bem: “sendo leais, podemos agir com benevolência, tendo fé podemos realizar a justiça e possuindo compaixão, no que diz respeito às outras pessoas, podemos praticar a propriedade”(p. 101)

Mas não esqueçamos que, para o filósofo, o “protótipo” das virtudes é a benevolência, esta força altruísta que pode ser desenvolvida com lealdade: “um homem que tem os seus próprios desejos e que também tem em consideração os desejos dos outros, é benevolente. Um homem que tem os seus próprios sentimentos e, também, tem em consideração os sentimentos dos outros, é sábio”(p.105).

Logo, depois das máximas humanas ‘amai-vos uns aos outros’ e ‘não faças aos outros o que não queres que te façam a ti’, creio que podemos avançar com nova, desta vez inspirada neste filósofo tão original: faz aos outros aquilo que eles benevolentemente desejem.

20 Ago 2023

O Gu e o Da E

É sobejamente conhecido que os excessos da juventude acarretam, por vezes, consequências trágicas e irreparáveis. Infelizmente, a história fervilha de exemplos que vão do malogrado Ícaro a ídolos recentes do rock’n roll, ancorados em razões que ultrapassam o nosso modesto objectivo. Ora também a famosa Montanha do Sino, na parte norte da Cordilheira do Oeste, assistiu a uma história do género com repercussões na fauna que desde então ali passou a habitar.

Em tempos já esquecidos, reinava na Montanha do Sino um deus chamado Zhuyin (Dragão-Tocha), que era suposto ser responsável pela luz e pelo breu, pela chuva e pelo vento. Além dele, nesta montanha abençoada, cabriolava também o seu filho Gu (que significa Tambor), geralmente na companhia de Qinpi, seu amigo de folguedos.

Com o tempo, as brincadeiras de rapazes tornavam-se cada vez mais ousadas e distantes da protecção paterna. Os dois mancebos atreviam-se a fazer incursões noutras terras, por vezes distantes da sua montanha natal. E foi precisamente numa dessas temerárias excursões à encosta sul do Monte Kunlun que Gu e Qinpi mataram Baojiang, ele próprio um deus menor. A razão que os levou a cometer este teocídio não é relatada em nenhum documento credível. Provavelmente, nenhuma razão os movia, a não ser demonstrarem a si mesmos o seu poder: coisas de rapazes com problemas de afirmação identitária que, pelos vistos, também ocorrem entre seres divinos.

No entanto, apesar da tenríssima idade dos dois meliantes, o crime não ficaria impune. Ao saber da morte de Baojiang, o Imperador do Céu (outras fontes garantem ter sido Huangdi, o Imperador Amarelo) condenou-os à morte e ele próprio os executou sobre um abismo situado nos contrafortes da Montanha do Sino.

Sendo seres de origem divina, ao morrerem imediatamente se metamorfosearam em dois animais de singulares características. Gu adoptou a forma de uma ave com corpo de coruja, bico direito, marcas amarelas e cabeça branca que, quando resolve emitir sons, o que lhe sai da garganta é semelhante ao canto do cisne, embora no grasnar do Gu não sejam reconhecidas tendências mórbidas.

A tradição afirma que avistar um gu é sinal de que uma grande seca vai afligir aquela região. De notar ainda que, na sua primeira vida, antes de ter ocorrido a referida metamorfose, Gu possuía um corpo de dragão encimado por uma cabeça humana.

Já da antiga forma de Qinpi não existe descrição. Sabemos é que, depois de executado, se transformou numa fabulosa ave de rapina, com corpo de águia, salpicado de negro, cabeça branca, garras de tigre e bico encarnado.

Dão-lhe o nome de Da E, que significa Grande Falcão. A sua aparição, temperada por assustadores grasnidos, é augúrio da proximidade de uma guerra fratricida.

E, nestes preparos, assim andam os dois pela Montanha do Sino: duas aves de rapina, talvez inseparáveis, senhoras dos céus e das encostas escalavradas daqueles montes perdidos na imaginação da China Antiga.

18 Ago 2023

“Toda a beleza tem algo em comum: a absoluta necessidade de ser vista!”

Um ponto de situação com Michael Xincheng Du, coleccionador de arte e de antiguidades chinesas, especialista na cultura pré-histórica Hongshan, aproximadamente 10.000-5.000 aec.

 

Quando era jovem, dirigia um bem-sucedido negócio de consultoria em Shenzhen, que, na altura, era a cidade modelo da China do futuro. Por uma curiosa reviravolta do destino, Michael instalou-se no Canadá e entregou-se de corpo e alma ao ainda mais curioso mundo da arte e do coleccionismo de antiguidades, conquistando um grande número de admiradores em todo o mundo. O que é que o move? A Beleza!

A arte e cultura são tesouros através dos quais a humanidade se expressa. Por isso, na sua opinião, a Beleza é o legado derradeiro?

Beleza é poder. A Beleza espoleta a inigualável paixão humana pela criação e estimula o melhor do nosso intelecto e força espiritual, patenteados em artefactos soberbos. A beleza transcende o prazer estético: é o único instrumento humano eficaz para a auto-descoberta!

A Beleza é um assunto sério. Foi a sua auto-descoberta após três anos de hiato devido à pandemia?

Conhece Oscar Wilde… O esteta dizia que ser belo é melhor do que ser bom. Eu diria que o belo é mais inteligente do que o inteligente. Tenho dificuldade de falar da pandemia. Como sabe, tive de suspender a actividade do meu espaço de leilões de arte, que tinha inaugurado pouco antes do surto da doença. A Baozhen International Art Auction House está localizada na Península de Shandong, a província natal de Confúcio, e abrange no total uma área de aproximadamente 32.000 metros quadrados, dos quais 2.000 são dedicados a exposições permanentes. Além disso, temos espaços educativos e de entretenimento e lazer. Estava ansioso para fazer algo que verdadeiramente me apaixonasse. Temia não vir a cumprir a minha missão nesta vida.

Encontrou a sua paixão em algo mais ancestral do que antigo — a misteriosa cultura Hongshan, situada entre os anos 10.000 e 5.000 AC.

Tenho de admitir que é um assunto muito controverso. Os historiadores tradicionais não sabem como lidar com este período. Tudo na Cultura Hongshan contradiz a cronologia oficial, não só da História chinesa como da História mundial! A Cultura Hongshan parece sugerir que a história humana fez planos que não nos atrevemos a sondar. Neste momento, estou a trabalhar em conjunto com o Museu Hanjiangxue, o maior museu privado da China. O seu fundador, Qiu Jiduan, possui uma colecção impressionante que transcende a Cultura Hongshan. O museu clama por explicações que exijam o menor número de conjecturas. Estou, em conjunto com Qiu Jiduan, a planear a realização de uma série de televisão com 30 episódios que funcionará como uma janela única para audiências internacionais. Eu e minha equipa estamos a trabalhar numa proposta ousada para explanar os ciclos da civilização chinesa. É algo que nunca foi feito a uma escala tão ambiciosa e que eu simplesmente adoro!

Vai provar que a mitologia chinesa é inventada a partir de eventos reais?

A mitologia é um símbolo do sistema. Mas eu quero ver para além disso. A mitologia chinesa contém códigos cósmicos que revelam a criatividade humana na aurora da civilização, quando a humanidade experienciava o conhecimento científico do real bem como quando tentava entender a ciência da natureza de uma forma mais profunda. Ao designá-los simplesmente por mitos criamos um obstáculo que não permite tomá-los a sério. Aparentemente, são significativamente mais do que apenas histórias repletas de simbolismo e de metáforas. Há mais de 25 anos, descobri a Cultura Hongshan e senti-me muito atraído pela sua excentricidade. Os fantásticos enigmas que talvez um dia venham a rescrever toda a história da humanidade. Todos sabemos que a história é um local pouco seguro, mas agora pode tornar-se ainda mais perturbador.

Estou muito entusiasmada com a série de que falou. Pode falar um pouco mais sobre o assunto?

Os antigos egípcios tinham Nefertiti. Alguém conhece a Deusa da Criação Chinesa e a sua fulgurante e inteligente história de criação? Mas desta vez a minha abordagem é diferente. Quero fazer uma série de televisão épica: para mostrar pela primeira vez ao mundo a sua Beleza! Quanto mais me embrenho no mundo ancestral, mais me sinto inspirado e intrigado pela interrogativa que colocavam na origem da civilização! Estou empenhado em recuperar a beleza grandiosa da Deusa do Templo que representa a mais alta escala, o nível mais elevado e a expressão mais proeminente de crenças que podem mesmo não ser deste planeta.

Acredita que a Deusa do Templo da Cultura Hongshan é dedicada a visitantes extraterrestres que criaram a Humanidade com a sua tecnologia?

Tive longas trocas de ideias com o americano futurista Nova Spivack sobre este assunto. Estamos ambos convencidos que compreendemos mal o nosso passado — assim como no futuro nos irão compreender mal a nós. A série de televisão é uma boa forma de alargar a dança criativa das possibilidades. Também quero que cada vez mais pessoas adquiram conhecimentos sobre arte e cultura chinesa, que é imensamente desconhecida lá fora. Deve dizer-se mais vezes às pessoas que, apesar de tudo, o passado está vivo. O nosso passado civilizacional contém elementos secretos direccionados para o progresso e para o futuro. A energia da Beleza, que tem um poder nutritivo em todos nós.

Concordo consigo. A grandiosidade não vem de tentar alcançar o possível.

Admiro o alcance da visão de Qiu Jiduan pelas actividades que desenvolve há décadas e pela majestade da colecção exibida no seu museu privado. Tenho pena que o Museu Hanjiangxue não seja tão famoso como o British Museum ou o Louvre. Penso que é um erro. A civilização chinesa é requintada, refinada é seguramente “não aborrecida”. 30 episódios é o começo. Se eu apenas tentar trabalhar arduamente e me mantiver fiel a mim próprio, vou ser capaz de desvendar cada item do tesouro que é esta colecção de tirar o fôlego. Vou devolver o poder ilimitado do passado! Toda a beleza tem algo em comum: a absoluta necessidade de ser vista!

17 Ago 2023

Qiu Jin – Poesia e luta

Artigo de António Izidro

I

Foi um século de humilhação, bullying e de dominação agressiva do Império do Meio por potências estrangeiras a partir de 1840 até à recuperação, em 1945, do último reduto no nordeste de Shangdong ocupado por japoneses e alemães. Um período de vexames na história da China, marcado pelos conflitos armados Sino-brtiânicos por causa do ópio que a Companhia das Índias Orientais inglesa introduzia ilegalmente no território chinês, para envenenar o povo e equilibrar as contas do comércio com a China, a que se seguiram os conflitos com o Japão e a França e, claro, a ocupação da Aliança das Oito Nações em 1900 (Áustria- Hungria, Alemanha França, Itália, Japão, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América). Pelo meio, os chineses assistiram penosamente à assinatura de tratados desiguais a coberto dos quais as potências estrangeiras obrigaram a monarquia chinesa a ceder territórios, franquear portos marítimos, incorporando nesses tratados demandas indemnizatórias para reparar as guerras. Enfim, uma China humilhada, esquartejada, repartida pelas nações invasoras, o palco que o povo chinês coabitou com matanças, saques, escravização das mulheres chinesas e tudo o que as potências estrangeiras podiam fazer para consolidar a ocupação.

Qiu Jin (1875-1907) foi uma escritora defensora do feminismo e activista do movimento revolucionário de Outubro de 1911 que pôs fim ao regime monárquico. Nasceu em Fujian, filha de pai funcionário do governo e de mãe literata, pelo que Qiu Jin recebeu uma educação esmerada, especializando-se em história e literatura. Desde jovem eram já evidentes os dons de escrita e o grande patriotismo, nesse período conturbado da colonização estrangeira. Perturbava-a a incapacidade dos imperadores Qing, sofrendo derrota após derrota. Viu nascer a Rebelião dos Boxers, de 1899, movimento anti-colonislista e anti-monárquico, que foi repelido pelas tropas governamentais e a coligação das nações estrangeiras.

Com o coração magoado e desfeita em lágrimas, Qiu Jin partiu, em 1904, para o Japão e aí juntou-se às estudantes chinesas em Tóquio, pregando a salvação nacional e a defesa dos direitos da mulher. Os argumentos aduzidos iriam confirmá-la como destacada líder do movimento feminista, devido também aos seus dotes oratórios. Fundou dois periódicos, “Mulher Chinesa” e “Língua Vernácula”, como base do movimento, insistindo na emergência de quebrar as correntes do feudalismo, restituir a identidade à nação e no papel da mulher na implementação de uma nova cultura chinesa.

Os últimos anos da sua vida foram de maior envolvimento, tendo assumido a direcção escolar de Datong na província de Zhejiang, em cujas instalações montou o quartel do movimento, de onde eram enviados mandatários para promover a revolta. Ela própria percorria entre as cidades de Hangzhou e Xangai, delineando programas de acção e incitando o povo. No dia 6 de Julho de1907, Qiu Jin recebeu a notícia da malograda revolta da cidade de Anhuei. Após a prisão dos revoltosos, era iminente que o exército imperial também viesse cercar a escola. Aconselhada a abandonar, ela preferiu não fugir. “O sucesso de uma revolução oculta sangue”, dizia.

As cores do outono

Qiu é o apelido da escritora e agradava-lhe particularmente a palavra que significa outono, a estação do ano pintada pela cultura tradicional comum com as cores da desolação, dos sentimentos mórbidos. Os antigos eruditos escreviam deploravelmente que primavera era a inquietação das jovens diante do envelhecimento, vendo o tombar das flores e que no outono o sombrio tolda os olhos dos jovens, não lhes permitindo ver o fundo da estrada onde a sua heroicidade caminha. Outono esmorece a alma, e algo parecido escreveu Pessoa em Cancioneiros:

Esqueço-me das horas transviadas

o Outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros…

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…

(…)

No meu cansaço perdido entre os gelos

E a cor do outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância…

Qiu Jin foi presa no dia 10 de Julho de 1907 e decapitada no dia 15. Antes da execução, deram-lhe um folha de papel para assinar a confissão. Nela, a escritora e heroína escreveu tão só sete caracteres:

秋風秋雨秋煞人

Outono ventoso, outono chuvoso, outono fatídico

sobre mim se derrama

As obras de Qiu Jin oferecem uma visão sumamente reveladora do seu sonho e ideal em resposta ao período histórico conturbado em que vivia. São conhecidos cerca de 13 trabalhos, entre colecções de poemas, ensaios e romances produzidos. ´Sentimentos´ e ´Hora fremente´(em chinês clássico) foram compostos durante uma viajem ao Japão, onde encetaria acções de consciencialização às jovens estudantes chineses a aderirem ao movimento feminista. Notório é o estilo da escrita, cultivando ainda uma poesia muito atrelada à forma de poetizar dos antigos, não dispensando, por exemplo, evocar exemplos da antiga história análogos à situação política do seu tempo. De resto, pode-se ler nos poemas a mágoa pela pátria decadente, sem esconder um certo o sentimento de culpa de não ter contribuído mais para a causa revolucionária.

有怀

日月无光天地昏 沉沉女界有谁援?

钗环典质浮沧海 骨肉分离出玉门

放足湔除千载毒 热心唤起百花魂

可怜一幅鲛绡帕 半是血痕半泪痕

Sentimentos

Sol e lua sem luz,

céu e terra em densas trevas

quem deste abismo ajudará

a mulher a levantar-se?

Empenhei as minhas jóias

para atravessar o mar,

apartada da família,

sigo pela Porta de Jade.

Meus pés de mil venenos desenfaixo

e a alma das mulheres clama,

flores brancas em botão.

Dói-me este pobre lenço de seda fina,

metade de sangue manchado,

metade em lágrimas ensopado.

____________________

Porta de Jade – antigo posto de vigia na Grande Muralha que dava acesso às regiões do nordeste.

Panos dos pés – a nefasta tradição de as mulheres enfaixarem os pés com panos apertados para preservar a elegância feminina.

感时

莽莽神州叹陆沉,救时无计愧偷生。

搏沙有愿兴亡楚,博浪无椎击暴秦。

国破方知人种贱,义高不碍客囊贫。

经营恨未酬同志,把剑悲歌涕泪横!

A hora fremente

A pátria submersa no lamento verde de infindos prados

e como pesa nada ter para salvar o país.

Em grãos esparsos de areia desfez-se o reino de Chu,

as armas de Buó Lang surpreenderam o reino de Qin.

Pátria e povo destroçados,

ainda assim se erguerão desta infausta pobreza.

Deploro o esforço vão dos meus camaradas,

entoo a canção triste das espadas e das lágrimas.

___________________

Os ´grãos esparsos da areia´, a desagregação que levou o Reino de Chu a sucumbir no ano 223 a.C.

Buó Lang, a actual província de Henan onde Qing Shihuang, o unificador do império, foi surpreendido por um exército bem armado. A analogia que a poeta faz nestes dois episódios da antiga história com a ausência de unidade nacional da China do século XIX, feita prisioneira por nações estrangeiras manifestamente mais poderosas.

Não é difícil perceber quanto esta poetisa da revolta ansiava definir-se pela masculinidade e com ela contribuir vivamente à causa revolucionária. Aprendeu as artes de cavalgar e espada, não raras vezes surpreendendo vestida à rapaz nas actividades clandestinas, depois de aos 18 anos o pai lhe ter arranjado um casamento e em vão tentado fazê-la uma dama, enlace que, porém, não acabaria bem. Os néscios, desde logo o próprio marido, não entendem a essência da sua personalidade, dirá mais tarde num poema. Se a heroicidade cumpre por regra um trajecto, o início do seu envolvimento na libertação da pátria aconteceu numa das idas à capital, onde o movimento revolucionário em curso lhe tomou a alma. A compreensão que teve do estado do país propôs-lhe novas ideias, levando-a então a tomar a decisão de empenhar-se no movimento de salvação nacional e de libertação da classe feminina.

滿江紅 – 小住京華

小住京華 早又是中秋佳節

爲籬下黃花開遍 秋容如拭
四面歌殘終破楚 八年風味徒思浙

苦將儂 強派作蛾眉 殊未屑

身不得 男兒列 心卻比 男兒烈
算平生肝膽 因人常熱

俗子胸襟誰識我?

英雄末路當磨折 莽紅塵 何處覓知音?

青衫溼

O rio corre vermelho – uma curta estadia na capital

Estou na capital faz poucos dias,

o festival da Lua já espreita.

Flores nas cercas mostram-se amarelas,

purgam de impurezas o outono

Baladas de guerra ventam das quatro direcções

enquanto me liberto do cerco dos inimigos.

O sabor desta solidão de oito anos

traz-me saudade dos aromas da minha terra.

Forçaram-me a que donzela nobre me tornasse,

mas neste corpo de mulher,

sem poder perfilar com os homens,

bate um coração masculino

da ala dos que não se vergam,

mescla de alma e coração

por causas alheias ardia.

Hoje os néscios estranham

o espírito da minha essência.

Os heróis passam por provações

até ao fim do seu caminho

Imensidão, mundo de pó,

onde encontrarei uma alma gémea?

Pela minha veste escorrem lágrimas

_________________

«O rio corre vermelho» é um título comum a várias expressões artísticas sobretudo em poesia épica.

As baladas – referem-se aos conflitos pelo poder entre os reinos de Chu e Han ( séc. 3 a.C.). Durante o cerco, as tropas de Han entoavam baladas prenunciando a queda do Reino de Chu.

A mesma mágoa perante duas realidades: os problemas da nação e a saudade pela família, expressos neste desabafo a uma amiga em poema que, porém, transparece a pretensão da autora querer contornar a inquietação da alma, levando-a a compor em pusamán, uma versão vistosa usada em cânticos para danças da dinastia Tang, entoados por bailarinas da corte. Percebe-se a musicalidade da letra pusamán, que não é traduzível, mas a métrica são obrigatoriamente os versos pentassílabos e heptassilábicos.

菩薩蠻 – 寄女伴

寒风料峭侵窗户

垂帘懒向回廊步

月色入高楼

相思两处愁。

无边家国事

并入双蛾翠

若遇早梅开

一枝应寄来!

Mensagem para uma amiga – poema em versão pusamán

Ventos frios, janelas trespassadas,

divago pela casa, as cortinas bem fechadas.

De novo o luar ensopa este alto pavilhão,

e invade de tristeza meu saudoso coração.

No país todos os dias problemas redobrados,

duas mulheres atentas, os sobrolhos arqueados.

Se ameixeiras em flor, vires mais cedo este ano,

pensa em mim e por favor: Manda um ramo!

16 Ago 2023

Figuras femininas na mitologia chinesa

Na mitologia chinesa as deusas personificam virtudes e atributos tipicamente femininos. Retive algumas figuras, que me parecem particularmente importantes para um discurso sobre o feminino chinês.

A CRIADORA. Nu Wa , irmã ou esposa de Fuxi, o Primeiro Imperador, é a segunda na linha dos grandes imperadores míticos. Sobre esta força feminina, meia serpente, meia humana, há dois relatos famosos ligados à criação dos seres humanos. No primeiro, a deusa cria os seres a partir de um barro moldado pelas suas próprias mãos. Criou-os sozinha e porque, ao passear sobre a terra, sentia uma solidão imensa, já que apenas tinha por companhia a paisagem natural e os animais.
No segundo relato Nu Wa acasala com o irmão, depois de ter obtido licença prévia dos deuses, a fim de começar a humanidade. Em ambas as versões, e psicanálise à parte, parece-me importante frisar a ausência de um marido real. Na primeira versão, a deusa está completamente sozinha, na segunda é acompanhada por um membro da família no acto de criação, que não o seu marido de direito. Cabe exclusivamente à mulher chinesa tradicional, não só a concepção, como o acompanhamento e educação dos filhos. As criadoras solitárias sucedem-se na mitologia. Elas concebem pelo facto de comerem ovos de aves, tal como é o caso da Rapariga de Yousong que engole ovos de andorinha. Jian Di, a mais velha de duas irmãs muito belas, ficou grávida depois de ter engolido dois ovos de andorinha. E assim nasceu Xie, o patriarca do povo Yin. Ou, ainda, no mito da Criança Abandonada, Jiang Yuan, membro do clã Youtai, concebeu através do encontro com uma pegada de gigante. Deu à luz um filho, que primeiro abandonou e, depois, adoptou, após inúmeras peripécias. Este viria a ser o ilustre patriarca do povo Zhou.

A PACIFICADORA. É ainda Nu Wa quem nos apresenta uma das virtudes femininas mais apreciadas pelas “duas metades do céu”: a capacidade de harmonizar e até anular forças destrutivas. Em Nu Wa remenda o firmamento, a deusa surge a repor a ordem no mundo, após parte do céu ter desabado, muito possivelmente na sequência de um conflito entre os machos celestiais. Ela quer e consegue remendar o firmamento para que os seus filhos humanos possam voltar a viver bem.

A DUPLA. A figura da duplicidade é bem representada por Xi Wang Mu, ou seja, pela Rainha Mãe do Oeste. Esta deusa distante, que vive na Montanha de Jade, em Kunlun, é bastante masculina de aparência. Alguns investigadores chegam mesmo a levantar a hipótese de ela ter começado por ser um homem. A verdade é que, embora tenha forma humana, possui cauda de leopardo e dentes de tigre. Mas a sua duplicidade não se circunscreve ao domínio físico. Dela dependem as doenças, as calamidades e a própria morte, tanto na faceta positiva como na negativa. Assim, encontramo-la a espalhar pragas, mas também, a distribuir elixires e pêssegos da imortalidade. Recorde-se, a título de exemplo, o mito de Chang E voa para a Lua, onde a Rainha Mãe do Oeste recompensa com o elixir da imortalidade o arqueiro Hou Yi, pelo facto de ter abatido os nove sóis.

A ESTRANHA. É a figura típica da estrangeira, da mulher que não pertence ao povo chinês. As heroínas estrangeiras são sempre mais animalescas, mais bárbaras, mais selvagens, tal como aquelas fêmeas que pertencem ao Povo das Mulheres. São uma espécie de amazonas, que têm medo dos homens e morrem em contacto com os chineses. São altas e claras, possuem o corpo coberto de pêlos e ostentam uma farta cabeleira até aos pés. Não têm seios e amentam os filhos pela raiz do cabelo, que é branca. Quando dão à luz bebés masculinos, estes não conseguem ultrapassar os 3 primeiros anos de vida. Logo, estas mulheres, não podiam ser piores…

A TRABALHADORA. Também o mundo mítico se divide entre deusas que trabalham e deusas de enfeite. Nem todas as deusas trabalhadoras personificam o próprio trabalho. Há, no entanto, dois exemplos notáveis de criaturas míticas cuja função parece esgotar-se na acção laboral. O primeiro é o de Lei Zu, a mulher do Imperador Amarelo, que ensinou às chinesas a arte de fabricar a seda, o segundo é o da tecedeira. Recorde-se o trágica estória de amor do Vaqueiro e da Tecedeira. A tecedeira é filha do imperador celestial. Dela e das irmãs, mas sobretudo dela, dependem as belas cores das nuvens do céu. Numa visita à terra, a tecedeira acaba por se casar com um vaqueiro. Têm dois filhos e ela vive feliz, mas no céu, todo o panteão olímpico passou a andar muito mal vestido, porque a tecedeira deixou de trajar as nuvens com as lindas cores da manhã e do entardecer saídas dos seus dedos. Logo a deusa foi obrigada, pela sua família celestial, a regressar ao céu. O marido e os filhos foram atrás dela. No entanto, para que a tecedeira não seja distraída dos seus trabalhos, apenas se reunem uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua. O resto do tempo, ela, a estrela Vega, e ele, a estrela Altair, vivem separados pela via láctea.

A AMANTE. A figura da mulher que espera apaixonadamente o seu marido é admiravelmente representada por Nujia, a esposa de Yu, o Grande. Este foi o fundador da dinastia dos Xia. O imperador, ocupadíssimo e amantíssimo da sua terra mãe, lutou anos a fio para tornar a China um país viável. Atravessou montanhas, domou rios, e esteve tão ocupado nestas tarefas que durante treze anos não foi a casa. A mulher, ao expressar a sua dor profunda, compôs o primeiro poema de amor chinês: Ó homem que eu espero, saberás tu que o tempo é longo… ( Charles Meyer, in La FEMME CHINOISE, 4000 ans au Pouvoir, Lattes, 1986).

A MULTIFACETADA. Chang E é o melhor exemplo da deusa humana ou multifacetada. Ela é, dependendo das versões, curiosa, desobediente, insegura, ciumenta, amorosa, traída… A esposa de Hou Yi, que viria a ser a deusa da lua, a quem é dedicada a festa do Bolo Lunar, é humaníssima nos seus defeitos e qualidades. Sobre a sua história há inúmeras versões. Resumindo, tenho lido sobretudo a versão em que ela, movida pela curiosidade, descobriu o elixir que o marido havia guardado e o tomou às escondidas. Na versão de Huainanzi, compilada por Liu An, o arqueiro Hou Yi foi pedir o elixir da imortalidade à Rainha Mãe do Oeste para libertar a mulher da sua condição mortal. Mas Chang E não aguentou o tempo de austeridade e pobreza exigido para a purificação e bebeu o elixir sozinha, fugindo em seguida para a lua. No poema Tian Wen, composto por Qu Yuan, ela resolveu tomar o elixir, depois de ter descoberto que Hou Yi se havia enamorado pela mulher de He Po, divindade do rio. Num bailado mais recente, intitulado A Viagem à Lua, Chang E voou para o céu por ter sido enganada por Pang Meng, chefe de uma tribo e aprendiz de Hou yi, que para suplantar o mestre, não só lhe afastou a mulher, como acabou por o matar.

BELDADES PASSIVAS. A beleza é para os chineses um atributo essencialmente feminino. Os deuses escolhem deusas belas. Casam-se e vivem em sistema de concubinato numa harmonia perfeita. No relato das Damas de Xiang, as duas deusas do rio Xaing são de uma beleza inexcedível. As princesas da água, respectivamente Ehuang e Niuying , filhas de Yao, foram cedidas pelo pai a Shun, o quinto imperador. E foram todos muito felizes. Quanto Sun morreu as damas choraram abundantemente…

BELDADES ACTIVAS. Os chineses vivem deslumbrados e aterrorizados com beleza feminina. Abundam os relatos de perdição, por causa de belas megeras. Não têm conta as estórias de imperadores, nobres e até homens vulgares que “caíram nas garras” de damas muito sedutoras. Assim, cito dois entre os inúmeros casos famosos, Zouxin, o terceiro imperador Shang, distinguiu-se pelos seus actos malévolos. Tinha uma força extraordinária e adorava toda a espécie de prazeres. Possuía também uma concubina, Daji, a quem procurava satisfazer, através de suplícios horrorosos, que infligia aos que caíam em desgraça. Dizem que por ela se perdeu a dinastia Shang. Outro caso, este já na dinastia Zhou, é o do imperador You e da sua paixão por Baosi. Ela não ria e o imperador, que adorava a concubina, tentava que ela sorrisse. Até que um dia descobriu que o som do rasgar da seda lhe despertava um leve sorriso. Escusado será dizer que, a partir de então se rasgaram quilómetros de seda, por causa daquele sorriso. Mais tarde, You conseguiu que ela risse. Para tal mandava acender o lume numa torre tipo farol. Mas o fogo costumava chamar a atenção dos estados vassalos de Zhou para o facto do soberano necessitar de auxílio. Tantas vezes ele acendeu o lume só para ouvir o riso da sua concubina favorita quando os guerreiros acorriam em vão, que, certa vez, era mesmo preciso apoiar o imperador e ninguém se mexeu ao ver a fogueira. E assim se perdeu a dinastia Zhou.
A mais temida de todas as figuras femininas é a da bela activa, porque na China a bela não liberta o monstro, pelo contrário, revela o monstro…

14 Ago 2023

Como Zhang Ruitu viu o luxo ao entardecer

Zhu Youjiao (1605-1627), que reinaria como o imperador Tianqi (r.1620-7), foi retratado na sua pose solene, rodeado de abundantes símbolos do seu poder, o qual segundo se deduz da crónica, o jovem monarca desprezava. Literatos cultos que olhassem para o retrato, de que existem dois exemplares, um no Museu do Palácio, em Taipé (rolo vertical, 203,6 x 156,9 cm, tinta e cor sobre seda) e outro no Museu de Arte de Indianapolis, reconheceriam aquela projecção do luxo.

Mas os opulentos e sofisticados têxteis, o minucioso trabalho das vestes bordadas e de todos os outros objectos que o rodeiam, como a cadeira de dragão ou o painel por trás dela, seriam percebidos como indícios da maré luxoriante que o engoliria. Comparando com os retratos imperiais do início dos Ming, que depois Qianlong reuniria em 1748, na sua galeria Nanxun, a «fragrância do Sul» na Cidade Proibida, nota-se que a autoridade é aí projectada de maneira porventura mais humilde, mais centrada na pose e na pessoa do imperador.

O curto mandato de Tianqi seria pontuado por uma série de decisões erradas e fenómenos naturais desfavoráveis como cheias e consequentes fomes e descuidos desastrosos, lidos de maneira supersticiosa como sinais de mau agouro. E o poder que o monarca descurava, era delegado no ambicioso eunuco Wei Zhongxian (1568-1627) que, pelo modo subtil como tinha de implementar as decisões que tomava, criou uma rede imperceptível de lealdades e inimizades. Alguns letrados brilhantes próximos do poder, quando Wei cai em desgraça, seriam arrastados nessa vaga de repulsa. Para um letrado de Jinjiang (Fujian) que passara o exame imperial em 1609, essa foi uma oportunidade de exprimir o seu olhar independente.

Zhang Ruitu (1570-1641) foi identificado como fiel a Wei Zhongxian e só pagando uma multa escapou à prisão, mas teve que se retirar do serviço público e regressou à sua terra natal, em 1628. Aí, indiferente às teorias de Dong Qichang, recriou a seu modo as paisagens monumentais dos Song do Norte, como o rolo vertical Montanhas ao longo das margens do rio (tinta sobre seda, 167 x 51,4 cm, no Metmuseum) onde, com a sua expressiva caligrafia, escreveu:

Embarcações deixam a cidade

e entram na floresta,

Estando as margens do rio afastadas,

elas flutuam no céu.

Num rolo vertical da sua caligrafia (no Museu Britânico) anotou a sua versão do luxo:

“Sozinho no cume mais alto, sobre camadas de rochas, aprecio a vista do entardecer sobre pinheiros e trepadeiras sinuosas. Vejo pássaros voando ao longe na floresta, encontrando o monge que regressa ao luar. O céu atrás das árvores é baixo um metro, metro e meio; estão longe centenas, milhares de nuvens de contornos nítidos. Sento-me num supedâneo de juncos, tudo está tranquilo e em silêncio, excepto o som cadenciado do sino trazido pelo vento a partir de uma fila de cavernas.”

11 Ago 2023

O calão chinês

O calão chinês é muito interessante. O seu estudo possibilita a compreensão de algumas características psicológicas fundamentais do povo chinês.

Os elementos tradicionais na cultura chinesa têm um sentido específico nesta gíria. Assim, a madeira representa a estupidez. Uma pessoa pouco dotada ou lenta é uma cabeça, ou pedaço, de madeira: mu dou ge da. O fogo e a água têm sentidos complementares, ou opostos, diríamos nós à maneira ocidental. O fogo, huo, simboliza a inteligência, o entusiasmo e o calor. Negócios em fogo, ou como um fogo vermelho, hong huo, estão muito prósperos, se fosse à portuguesa iam de vento em popa. A água, shui, representa a frieza, o excesso, a falsificação: a do mar é usada para referir algo de muito vasto. Um falador é uma boca de mar, hai kou, e de um grande beberrão, diz-se que aguenta um mar. Logo, uma chuva miudinha, mao mao yu, só podia ser um assunto sem importância. A água em geral, shui, é utilizada para significar a falta de qualidade. Shui huo é uma mercadoria de segunda e shui fen é um produto falsificado.

Possui um vento brilhante, feng guang, quem tem fama e posição social. Lei, ou o trovão, é usado como metáfora para todo o tipo de calamidades e catástrofes. Já o raio, zhen, tem melhor destino, pois significa sensações fortes, agitação, começo.

O ferro, quando aplicado às relações, significa intimidade e estabilidade. Um amigo íntimo é de ferro, tie ci, mas uma pessoa de ferro e, sobretudo, um galo de ferro, não tem bom sentido, refere alguém de natureza má e agarrada ao dinheiro. E, ainda, uma boca de ferro, tiezui, é um falador nato. A terra, tu, é o elemento da falta de sofisticação e ignorância. Um ser telúrico é rude e pouco trabalhado.

Os vegetais nem sempre têm um sentido muito positivo na gíria chinesa. Uns planos que vegetaram, caile, deram com os burrinhos na água. E ter cor de vegetal, aquela entre o verde e o amarelado, é um péssimo sinal, pois pode revelar doença. Porém, alguém que come vegetais, chi su de, revela uma natureza maleável e de trato fácil.

Por que motivo em calão chinês despedir alguém é fritar uma lula, chao you yu, é mistério digno daquele que foi o grande Império do Meio. A comida tem os seus riscos e os medicamentos também. Diz-se de quem tem um comportamento mal-educado, ou impróprio, que tomou o medicamento errado, chi cuo yao le. Também os que comem pólvora, chi qiang yao, são malcriados.

Para falar de relações sexuais, sobretudo quando aplicadas a mulheres, nada melhor do que o dou fu. Quem come dou fu, chi dou fu, está a deleitar-se sexualmente com uma mulher que não é a sua. E, ainda, um pequeno artigo ou obra publicada num jornal é um pedaço de dou fu – dou fu kuai.

O mamar doce significa na gíria comer algo tenrinho, chi ruan fan, e aponta especialmente homens que vivem à custa de mulheres.

Os que são desconfiados comem o (próprio) coração, chi xin. A personificação do egoísmo é dada pela expressão comer sozinho, du shi. Esta refere quem não gosta de partilhar comida ou outros bens.

La mei zi é uma rapariga com picante, quer dizer, corajosa e de língua afiada. E a comida é bonita, mei shi, se for deliciosa, porque os chineses têm uma alma estética verdadeiramente gastronómica. Assim, um bom garfo não é aquele que come muito, mas o que ingere comida bela: meishijia. A namorada, a amante, ou a mulher são puro mel, mi, tal como na tradição anglo-saxónica. Já a massa, especificamente no calão, porque no dia-a-dia simboliza longevidade, é usada como metáfora para indivíduos fracos ou moles. Os massas chineses são os nossos pastéis.

O branco umas vezes representa pureza, como quando é utilizado em bai shengsheng, a fim de referir a alvura da pele de uma mulher, no entanto pode, ainda referir o que é simples, vulgar e até traiçoeiro. Neste último caso, aparece frequentemente associado ao olho branco do lobo.

Uma pessoa muito famosa é da hong da zi, ou seja, muito vermelha e muito púrpura. Mas o encarnado nem sempre tem um sentido positivo, por vezes representa ciúme e ressentimento, como na expressão : ter a doença dos olhos encarnados.

O preto possui um sentido muito pejorativo, significa a ganância, a maldade e a esperteza velhaca. Quando se quer falar de alguém ganancioso e mau diz-se ter coração preto, hei xin, ou de lobo, lang xin .

O amarelo, na gíria, nem sempre simboliza o melhor. O tio amarelo, huang bobo, fala à toa, irresponsavelmente. Mas já uma flor amarela, até no calão, é usada para sugerir uma virgem, huang hua gui nu. Também os celibatários são identificados com a cor amarela, quer no masculino quer no feminino – huang hua hou sheng e huang niu. A revista pornográfica e outro material especificamente sexual é amarelo.

As costas, em estar de costas, traduzem o azar. Nós diríamos para situações deste tipo que acordámos de rabo voltado para a lua. Os olhos são as nossas janelas para o mundo no calão chinês. Algo ou alguém que não é chamativo não faz levantar os olhos, quando o é, pelo contrário, bate nos olhos ou fere a vista.

Os pés e os sapatos têm um sentido muito especial na cultura chinesa. Ninguém ainda esqueceu os famosos lótus de oiro, ou as damas de pés deformados. A quem pretende fazer a vida num inferno a alguém, diz-se que quer (levar a) calçar sapatos de cristal, isto é, muito pequenos e apertados: chuan shui jing xie.

O sangue anda associado ao sofrimento físico e psíquico. Sair sangue, chu xie, utiliza-se para aquele que tem de pagar uma soma avultada e vomitá-lo, tu xie, significa que alguém está, ou vai, vomitar o dito, por uma acção que terá ou não cometido.

Soprar, chui, é vangloriar-se no calão e os narizes grandes, da bizi, somos nós, os estrangeiros. Por isso, não temos grande beleza. Já um nariz velho, lao bi, é empregue para falar de excesso ou grande duração. Assim, muito tempo decorrido, ou uma grande quantia gasta são narizes velhos. Ainda em relação à idade, há algumas expressões particularmente grosseiras na gíria chinesa: os mais velhos são os que não há meio de morrer – lao bu si de. Os ignorantes e as pessoas do mundo rural também são velhos, ou saloios à portuguesa: lao maor.

Moer os dentes, mo ya, é uma metáfora empregue para falar horas a fio, ou sem nexo. Ter o coração barulhento, nao xin, é estar terrivelmente irritado. Um cabeçudo, tou da, é alguém que pode ter uma dor de cabeça física ou psíquica, neste último sentido porque se vê terrivelmente atrapalhado com algo. Um cabeça ou cabecilha, tal como em português, é um chefe, no bom ou no mau sentido. E gostar de brincar à maneira yin (feminina), wanr yin de, significa apreciar esquemas e jogos baixos. Mais uma leitura favorável do elemento feminino…

Tanto na gíria chinesa como portuguesa, há quem tenha a língua comprida. Para os descendentes do dragão, parece ser da mulher este atributo, assim diz-se chang she fu, ou mulher de língua comprida. Os chineses têm, ainda, o rabo comprido, wei ba chang, quando não fecham as portas e as coisas podem ir por água abaixo, ou melhor, por mar abaixo, no País do Meio, quando não correm bem. Há tábuas rasas, cuo banr, em Portugal e na China, só que aqui sair ao pai tem os sentidos acrescidos de fraqueza e fragilidade.

O nosso emprenha pelo ouvido possui uma certa correspondência em chinês. Aos influenciáveis chamam-lhes os orelhas moles – erduo gen zi ruan. A expressão febre para referir obsessões e fanatismos também é comum na China. É a fashaoyou, ou febre dos vídeos, dos telemóveis, etc..

Há estrelas, xing, sobretudo no mundo do espectáculo, a oriente e a ocidente.

Na China, as pessoas também se atrevem a mostrar os dentes, gan ya kai, especialmente no universo do comércio, quando pedem elevadas somas por um determinado produto. A electricidade funciona como metáfora sexual, ainda, na Terra Amarela e tem-se um choque eléctrico, guo dian, quando nos cruzamos com alguém muito atraente. Às promoções em flecha, habitualmente referidas aos quadros, chamam-lhes flechas de fogo – huo jian gan bu.

Há teimosos como mulas, jue lu, em Portugal e na China. Também no País do Meio se abre os olhos, kai yan e não se tem cura, meizhi, quer em território luso, quer chinês, com uma diferença: ser um caso perdido pode significar algo extremamente positivo, como um espectáculo muito bom, no Oriente.

Na cultura chinesa, que é eminentemente rural, o galo, tanto ao natural, como de fogo, tem um sentido óptimo, mas se for artificial, a saber de ferro, como já vimos, ou de porcelana representa uma pessoa má. Alguém com voz gutural e rouca tem voz de pato, gong ya sang zi. Às galinhas, ji, é reservado o triste fado da prostituição e os gatos, sobretudo esmaltados, liuli mao, são do pior. A vaca, niu, no calão chinês, simboliza o orgulho, a arrogância e o vangloriar-se. Os cobras, renshe, são imigrantes ilegais e o chefe cobra, shetou, é um traficante de gente.

Os idiotas chapados são 205, ou er bai wu. O 2 tem um sentido muito próximo da gíria portuguesa. Existem cidadãos de segunda e, claro, mulheres de segunda. Estas são as que casam pela segunda vez, er guo tou ou er hun. Também a amante é uma segunda mulher, er nai e uma senhora, que perdeu a virgindade ou é divorciada, é uma mercadoria de segunda, er shou huo. Se juntarmos o 2 ao 5, obtemos 25, que representa uma pessoa incompetente. E há 5 vícios maus, wu du ju quan: a gula, a bebida a luxúria, o jogo e a droga.

A gordura não é formosura como há uns tempos em Portugal, mas felicidade e riqueza. Assim, quem engorda, fa fu, cria felicidade e riqueza.

Das crianças é rei, haiziwang, aquele que é naturalmente líder, ou então, pasme-se a ocidente, o professor. E atenção às madrastas, porque ser criado por uma madrasta quer dizer receber pouca atenção. Os novos imperadores são os filhos únicos e os deuses, shangdi, os consumidores. A propósito, quem tem uma conta para enterrar, maidan, ou melhor, para pagar?

9 Ago 2023

O Man-man

Ele há quem se interrogue perante determinados fenómenos naturais se estes não terão sido criados para induzir na humanidade determinados valores, incitar a certos comportamentos e evitar outros, como se a própria Natureza fosse um imenso livro de moral, quiçá de religião. E há, é claro, quem troce deste pressuposto, sublinhando que na Natureza existem exemplos capazes de satisfazer os mais opostos argumentos e nada fora do ser humano deve ser considerado na construção de uma verdadeira moral. Isto apesar do que é verdade e justo aqui nesta cidade, passa por aberração e mentira naquela, e assim por diante…

Ora tomemos o seguinte exemplo. Pelo monte Chungwu esvoaça um pássaro, cujas características já fizeram a desgraça de incontáveis pedras de tinta, dada a quantidade de textos que a sua existência estimulou. Poderia, afinal, tratar-se apenas de mais uma espécie de pato selvagem, como existem tantas outras, nos céus imensos da China. Mas não. De seu nome man-man, trata-se de uma ave que apresenta o surpreendente predicado de cada indivíduo desta espécie contar apenas com um olho e uma asa.

Esta peculiaridade acarreta ao man-man a obrigação de se juntar a outro da mesma espécie para conseguir levantar voo e cruzar os céus, ou seja, de voar em par. De uma forma geral, um man-man não consegue sobreviver ou sequer desempenhar quaisquer tarefas sem a presença de outro. Em geral, um man-man macho junta-se a uma fêmea, mas têm sido detectados casos em que duas fêmeas ou dois machos empreendem juntos o voo e a vida.

Inevitavelmente, a descrição do man-man remete-nos para o mito do andrógino, tal qual nos narra Platão. Nele se descreve um tempo arcaico em que seres completos, possuindo características femininas e masculinas, capazes de se auto-reproduzir, terão irritado os deuses, devido à sua vaidade e arrogância. Para os castigar e pôr termo a esta situação, os divinos seres cortaram os andróginos ao meio, condenando assim cada metade a desesperadamente procurar a outra, o que explicaria os desvarios do amor.

Se o andrógino do mito grego é castigado pelos deuses e tal explica a origem de seres divididos pela metade, já sobre o man-man chinês paira um turvo silêncio quanto à sua origem. Nada nos textos nos remete para um excesso de vaidade, arrogância ou pesporrência que tivesse condenado esta estranha ave a procurar a outra metade para sobreviver. Nada nos indica que, noutros tempos, as duas metades do man-man tivessem estado juntas. A necessidade do outro não deriva de um castigo, mas de um aflitivo estado natural, que nada deve a intervenções divinas.

Na mitologia chinesa antiga, avistar um man-man era considerado de mau agoiro. Contudo, a partir da dinastia Han, a sua dupla figura começou a surgir em decorações funerárias como símbolo do amor conjugal e assim se espalhou pela cultura popular até aos nossos dias e mesmo para além deles.

6 Ago 2023

Ni Yuanlu pintou uma pedra ou uma nuvem?

Mi Fu (1052-1107), o poeta e pintor dos Song, um dia ao tomar posse como magistrado no distrito de Wuwei (actualmente em Anhui), quando caminhava para a residência oficial, parou admirado diante de uma pedra. Logo envergou as vestes formais e segurando a placa do seu posto nas mãos, inclinou-se numa longa vénia de respeito perante o capricho silencioso da erosão natural e dirigiu-se ao monólito: «Pedra, minha irmã mais velha».

Noutra ocasião tomou uma decisão que iria lamentar toda a vida, ao trocar uma das pedras de moer a tinta da sua lendária colecção por uma nova casa que nomeou Retiro de Montanhas e Oceanos. Viver retirado do Mundo era uma ambição dos literatos a exemplo de Tao Qian (365-427) que explicitou em muitos poemas essa utopia, e de modo particular nos vinte que compôs «estando ébrio», de onde deriva uma caracterização que parte dessa situação: yinjiu, a «vida na solidão rural».

No fim dos Ming altos funcionários desesperados com o declinar inexorável da dinastia referiam-se a essa quimérica terceira porta, depois da inocência, do conhecimento convencional, a percepção livre e espontânea. Como o poeta e pintor de Shangyu (Zhejiang) Ni Yuanlu (1593-1644) no poema Imprevisto estando ébrio:

Não ficarei com os pés atados

à janela do Sul mas,

com eles desembaraçados,

irei dez mil li para onde

quer que me guiem.

Como ficar indiferente

a livros preciosos ou longas espadas?

Em pleno dia cantarei alto

a cada coisa maravilhosa.

Dado que o mestre Yang* só encontrou

desprezo ao escrever sobre mistérios,

terei Du Fu, que bebia muito, como guia.

E não é preciso perguntar

o que farei com a minha vida:

seguirei adiante, contemplando montanhas,

com um bastão de bambu na mão.

Ni Yuanlu, na última página de um álbum de 1640 (tinta e cor sobre seda, c.21,5 x 20,1 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton), escreveu uma nota:

Acordei cedo e como não tinha compromissos onde estar, fiz este álbum de pinturas, sinceramente, para o quinto irmão, Xianru.

Nessas dez folhas ,intituladas Amizade na Pedra (Shijiao tu), representou sucessivamente dez rochas diversas como personalidades, em que se reconhecem as quatro qualidades das pedras analisadas por Mi Fu:

Shou, a estatura elegante e erecta,

Tou, os buracos que permitem a passagem do ar e da luz,

Lou, os canais e rachas

Zhou, a superfície e textura.

Noutra pintura invulgar, Nuvem pedra (rolo vertical,tinta sobre seda, 130,8 x 45,4 cm, no Metmuseum) ele dirige-se à figura pintada como se fora um ser ciente:

Não é estúpida nem engana, Será uma nuvem, será uma pedra?

O último ano da vida de Ni é também o último da dinastia Ming e não é uma coincidência: leal aos nós da amizade, vendo que não podia seguir adiante, ele mesmo se retirou do caminho onde observava a lentidão das nuvens e a ainda maior das pedras.

* Wanli (1127-1206)

3 Ago 2023

Voos imortais

Só os pássaros imortais voam na verdadeira acepção do termo, isto é, livremente, sem quaisquer condicionalismos ou restrições naturais; os outros, os pássaros do mundo foram feitos para voar: voam segundo um plano estabelecido pela própria ordem natural. Têm uma liberdade condicionada, mesmo assim representam, para maioria das culturas – e os chineses não são excepção –, uma ordem superior, simbolizam, habitualmente, os valores mais sagrados para as sociedades humanas.

Os chineses que, como todos os orientais, mais facilmente criam empatia com os seres da natureza, identificam-se inteiramente com os pássaros. Estes são imagens vivas de homens e mulheres, de seres sábios, poderosos, autênticos, livres, imortais. Os símbolos variam ou aperfeiçoam-se consoante a filosofia que os adopta.

Assim, para os confucionistas os pássaros, especialmente as fénix masculinas, personificam o governante justo, que traz consigo o mandato do céu e o dita à terra. Para os daoístas, os pássaros são, na maioria dos casos, símbolos da liberdade, autenticidade e sabedoria imortais. É interessante notar que, tanto para os daoístas como para os confucionistas, simbolizam os vários tipos de poder.

Mas os pássaros não são escolhidos apenas pelas filosofias eruditas para representar uma ordem ética e ontológica superior: também ao nível popular é completa a identificação entre as aves e o melhor que a natureza humana tem. Os pássaros aprisionados simbolizam os próprios grilhões humanos.

Diz-se que antigamente os homens ricos da China tinham belos pássaros engaiolados que identificavam com concubinas. Tanto as aves como as concubinas estavam inteiramente à mercê destes poderosos e serviam apenas para lhes ornamentar o ego, por causa da sua bela aparência.

Entretanto, a sociedade chinesa foi-se democratizando, no sentido mais etimológico da palavra, e hoje o costume popularizou-se, por isso, já encontramos muitos homens do povo a passear as suas belas “concubinas” nas ruas e nos jardins.

A Fénix, que como vimos pode ser masculina, representa normalmente o princípio feminino. Ela é a parceira do dragão e simboliza a imperatriz. Qualquer mulher que a traga pintada, por exemplo, na roupa, é “rainha” enquanto a ostentar. O corpo da fénix representa as cinco qualidades consideradas humanas: a cabeça, a virtude; as asas, o dever; as costas, o comportamento; o peito, a humanidade; e o estômago, a confiança. Já a fénix masculina é a incarnação de uma ordem e de uma justiça sobre-humanas, como nos recorda, tanto Confúcio, como Zhuangzi, o segundo maior filósofo daoísta.

Numa fábula apresentada por este filósofo daoísta, a coruja possui uma sabedoria inteiramente mundana, luta pelos bens da terra e tritura tudo o que lhe possa dar alimento, como ratos mortos e já meio decompostos. Ela representa o homem prisioneiro do mundo que pretende governar; a fénix, pelo contrário, aparece, em contraponto, como uma ave sobrenatural, surgida do mar Meridional, em voo para o mar do Norte. Esta pousa apenas em certas árvores sagradas, come e bebe de fontes celestiais (XVII,2).

Os pássaros, como todos os outros seres, estão condicionados pela sua própria natureza, têm asas, é natural por isso a sua apetência para o voo, que personifica o gesto verdadeiramente livre. Deste modo, as aves optam pelos impulsos espontâneos que as governam, opondo-se, sempre que lhes surge oportunidade para tal, a ordens artificiais, como a humana.

Segundo a filosofia daoísta, o caminho da liberdade é preparado pela obediência à natureza de cada um. Assim, Zhuangzi relata-nos que um pequeno faisão do pântano tem pular dez vezes sobre um pé, só para comer razoavelmente e deve correr cem passos antes de beber um pouco de água. Não obstante o esforço, evita o galinheiro onde poderia sobreviver sem canseiras. (III,3)

Pássaros como os grous são símbolo, por exemplo, de figuras humanas imortais e, como tal, da própria sabedoria imortal.

Corre que Qing Wu, o pai do Feng Shui, ou Fong Soi em cantonense, terá vivido durante a dinastia Han e adquirido a sua sabedoria intuitiva de grous imortais. Estes metamorfosearam-se em homens para lhe transmitirem a sabedoria divina. Foi assim que ele aprendeu a reconhecer a energia que flui na terra e a seleccionar os locais para sepulturas, susceptíveis de transformarem em reis e sábios todos os descendentes de defuntos que nelas fossem enterrados.

Os pássaros não são apenas o símbolo da liberdade, dos poderes humanos e divinos, da sabedoria imortal, da feminilidade, nuns casos, da masculinidade, noutros; eles são também, em muitas das lendas chinesas, o porto de abrigo de almas desprotegidas e atraiçoadas. Recebem as almas, protegem a sua autenticidade e verdade mais profundas e, depois, devolvem-nas à vida, no momento oportuno, para que seja feita justiça. Após este abrigo, os ressurgidos são felizes para sempre.

Quantas raparigas chinesas, mortas à traição, não se transformaram em pássaros encantados para depois recuperarem a forma humana e a felicidade junto de familiares, amigos, ou amantes de que tinham sido afastadas?

Há muitas lendas sobre este tema. Entre elas, por exemplo, a do Homem-Cobra. Este ficou sem a mulher, depois de uma irmã mais nova a ter morto para poder ocupar o seu lugar. A rapariga transformou-se num pássaro encantado que ia contar a sua história a uma das janelas da casa do novo casal. A irmã mais nova apanhou o pássaro, comeu-o e deitou os seus ossos à terra. Passado pouco tempo, no lugar dos ossos cresceu um lindo bambu, onde se abrigou a alma da irmã mais velha. A irmã voltou a cortar o bambu e fez dele um fole, que acabou por dar a uma velha pedinte. Esta, ao cabo de várias peripécias, recuperou a rapariga, proporcionando assim um reencontro feliz entre o homem-cobra e a sua mulher. O pássaro, ou melhor os seus ossos, transformaram-se em mais um elemento do ar, a madeira do bambu, que permitiu continuar a albergar aquela alma desprotegida pela sociedade humana, mas votada, devido à protecção das aves, a regressar à vida.

Não têm conta na tradição chinesa os milagres narrados de retorno à existência que os seres do ar proporcionam aos humanos.

Os pássaros acolhedores preservam as almas, alimentam-nas e devolvem-nas tão puras como anteriormente, mas muito mais leves, porque as libertam, com o auxílio do tempo, das penas que as haviam afligido.

Há, por isso, que sabiamente seguir a via dos pássaros chineses e optar, sempre que possível, pela liberdade. Esta não é uma liberdade imortal, plena, mas uma liberdade obediente, condicionada aos ritmos da própria natureza. Tece-se na submissão ao quotidiano, é a liberdade possível.

Há, ainda, segundo a sabedoria das aves, uma espaço a evitar – o do cativeiro, o das gaiolas, o das prisões artificiais, criadas pela mente e mãos humanas, que tantas vezes se atraiçoam a si próprias e aos outros. Quando a situação de cativeiro acontece, há que seguir, mais uma vez, o exemplo das aves: suportá-la estoicamente e aproveitar para escapar ao primeiro descuido dos donos.

2 Ago 2023

A Grande Compilação – 1

Xunzi

Tradução de Rui Cascais

Se o senhor dos homens exaltar o ritual e honrar os meritórios, tornar-se-á num verdadeiro rei. Se a sua acção se basear acima de tudo na lei e se preocupar com o povo, tornar-se-á num líder hegemónico. Se a sua preocupação fundamental for com o lucro próprio e se dedicar frequentemente a enganar, então estará em perigo.

Se quisermos estar próximos de todos os quatro lados ao mesmo tempo, não há lugar melhor do que o centro absoluto. Assim, e de acordo com o ritual, o verdadeiro rei sempre habitará o centro do mundo.

Segundo o ritual, o Filho do Céu faz instalar biombos fora de portas e os senhores feudais instalam biombos dentro de portas. A razão de instalar biombos fora de portas é não querer ostentar o que está no seu exterior. A razão de instalar biombos dentro de portas é não querer ostentar o que está no seu interior.

Segundo o ritual, quando um senhor feudal chama o seu ministro, o ministro não espera que preparem a sua carruagem, mas parte a correr com a roupa em desalinho. As Odes dizem:

Lá vai ele desalinhado

Pois o chama o homem do Duque.

Segundo o ritual, quando o Filho do Céu chama um senhor feudal, este vai numa carruagem puxada por homens. As Odes dizem:

Vou agora na minha carruagem,

Lá até aos prados;

Um emissário do Filho do Céu

Vem a dizer-me “Anda cá”.

Segundo o ritual, o Filho do Céu usa uma veste com o bordado de uma montanha e um alto chapéu cerimonial. Um senhor feudal veste roupas negras e põe chapéu. Um grande oficial enverga vestes inferiores e um alto chapéu cerimonial. Um oficial regular enverga vestes de pele e um chapéu de couro.

Segundo o ritual, o Filho do Céu tem por acessório um ting, um senhor feudal tem por acessório um shue um grande oficial tem por acessório um hu.2

Segundo o ritual, o Filho do Céu usa um arco esculpido, um senhor feudal usa um arco vermelho e um grande oficial usa um arco negro.

Quando os senhores feudais se reúnem uns com os outros, devem usar os seus conselheiros como intermediários, devem fazer-se acompanhar por oficiais treinados no curso da sua viagem, devem empregar pessoas de ren para ficarem para trás a zelar pelas coisas.

Quando perguntamos por alguém, devemos usar um gui. Ao fazer perguntas a uma pessoa bem-criada, devemos usar um bi. Ao convocar alguém, devemos usar um yuan. Ao despedir alguém embora, devemos usar um huan.3

Quanto ao senhor dos homens, quando nele está estabelecido um coração de ren, o entendimento é seu servo e o ritual o completa. Assim, um verdadeiro rei sempre põe ren em primeiro lugar, pois a ordem Celestial de implementação assim o dita.

O Registo de Rituais de Averiguação diz, “Quando o dinheiro gasto é copioso, isso prejudica a virtude. Quando os recursos utilizados são opulentos, isso perturba o ritual”. Esta história de ritual, história de ritual – será somente uma história de jades e sedas? As Odes dizem:

Estas coisas são tão encantadoras

Basta só que se adequem apropriadamente.

Se não for atempada nem tiver cabimento, se não for respeitosa nem de boa forma, se não for animada nem alegre, então, mesmo que seja encantadora não se trata de propriedade ritual.

Quem atravessa as águas marca os lugares mais fundos, de modo a que ninguém caia neles. Aqueles que ordenam as pessoas marcam aquilo que é caótico, de modo a que ninguém caia em erro. Os rituais são os seus marcadores. Os antigos reis usavam rituais para marcar aquilo que lançaria o mundo inteiro no caos. Se descartarmos os rituais estaremos a jogar fora os marcadores. E assim, as pessoas ficam perdidas e confusas e encontram calamidades e sarilhos. É por isso que os castigos e penas se tornam profusos.

Shun disse, “A verdade é que sigo os meus desejos e, ainda assim, obtenho ordem”. Assim, génese dos rituais é para benefício dos meritórios até ao povo comum, não para benefício do sábio perfeito. Contudo, eles também são meios de nos tornarmos sábios. Se não os estudarmos, não o conseguiremos. Yao estudou com Jun Chou, Shun estudou com Wucheng Zhao e Yu estudou com Wangguo.

Depois dos cinquenta, não devemos realizar o ritual do luto por inteiro.4 Depois dos setenta, devemos manter só o uso de roupas de luto.

No ritual de “boas-vindas pessoais”, o pai fica de pé, voltado para sul. O filho ajoelha-se, voltado para norte. O pai realiza uma libação e ordena-lhe: “Vai acolher a tua companheira e realizar as tarefas ancestrais. Guia-a com reverência para que sirva respeitosamente como sucessora da tua mãe. Possamos, assim, ter constância”. O filho replica, “Sim. Temo apenas não ter capacidade para isto. Como ousaria esquecer as tuas ordens?”

Quanto à “conduta apropriada”, esta significa a realização de rituais. Quanto ao ritual, é através dele que quem é nobre é tratado com respeito. Através dele, os idosos são tratados filialmente. Através dele, os seniores são tratados com deferência. Através dele, os jovens são tratados com bondade. Através dele, os inferiores são tratados com generosidade.

Oferecer presentes aos membros da nossa casa é como empregar comendas e recompensas para com o estado e seus clãs. Mostrar ira aos nossos servos e concubinas é como aplicar castigos e penas à miríade do povo comum.

A pessoa exemplar trata os seus filhos com amor sem se deixar enfeitiçar por eles; dá-lhes tarefas, mas sem os rebaixar e guia-os no Caminho sem os forçar.

Na sua raiz, o ritual destina-se a tornar consensuais os corações das pessoas. Por isso, aquilo que não está prescrito no Clássico dos Rituais, mas serve para tornar consensuais os corações, também contém propriedade ritual.

As principais e mais gerais tarefas do ritual servem para ornamentar a felicidade quando se destinam aos vivos, para ornamentar o desgosto na despedida dos mortos e para ornamentar o poder que inspira temor quando envolvidos em assuntos militares.

Tratar os familiares como é apropriado para eles, tratar velhos amigos como é apropriado para eles, tratar os servos como é apropriado para eles, tratar os trabalhadores como é apropriado para eles – estas são as gradações de ren.

Tratar os nobres de modo apropriado para eles, tratar os veneráveis de modo apropriado para eles, tratar os meritórios de modo apropriado para eles, tratar os idosos de modo apropriado para eles, tratar quem tem senioridade de modo apropriado para eles – estas são as classes de yi.

Chegar à regulação apropriada na execução destas coisas é a ordenação que reside no ritual.

Ren é cuidado e por isso produz afecto. Yi é boa ordem e por isso produz a conduta apropriada. O ritual é a regulação apropriada e por isso produz o completar [destas coisas].

Para ren, há uma vizinhança apropriada. Para yi, há um portal apropriado. Se, ao tentarmos ser ren, habitarmos numa vizinhança que não lhe é apropriada, então não somos ren. Se, ao tentarmos ser yi, usarmos o portal que não lhe é apropriado, então não seremos yi.

Oferecer bondade sem boa ordem não constitui ren. Seguir a boa ordem sem a regulação apropriada não constitui yi. Seguir a regulação apropriada sem harmonia não constitui propriedade ritual. Harmonia sem expressão externa não constitui musicalidade. Por isso digo: no que respeita a ren, yi, propriedade ritual e musicalidade, o seu completar é unificado.

A pessoa exemplar habita em ren através de yi e só assim é ren. Realiza yi através do ritual e só então é yi. Na implementação do ritual, regressa às raízes e completa os ramos, e só então é ritual. Quando a mestria dos três é total, só então é o Caminho.

Os bens e dinheiros [oferecidos para um funeral] são chamados “donativos”. As carruagens e cavalos são chamados “contribuições”. As roupas e vestes são chamadas “presentes”. A parafernália é chamada “prendas”. Os jades e conchas são chamados “oferendas”. Os donativos e contribuições são usadas para assistir aos vivos. Os presentes e prendas são usados na despedida dos mortos. Se estes não chegarem enquanto o corpo ainda está em câmara ardente, ou se as nossas condolências aos vivos não chegarem enquanto ainda estão de luto e tristes, isso não é considerado propriedade ritual. Assim, avançar cinquenta léguas ao viajar para participar num evento auspicioso, avançar cem léguas num dia ao nos apressarmos para participar num funeral, e assegurarmo-nos de que as nossas contribuições e prendas chegam a tempo das cerimónias – estes são os pontos principais da propriedade ritual.

O ritual é aquilo que puxa o governo. Se não aplicarmos o ritual na actividade de governar, o governo não avançará.

Dada a grande variedade de tópicos aqui coberta, este capítulo poderá ter sido compilado pelos estudantes de Xunzi. Alguns segmentos são praticamente idênticos em capítulos anteriores.

Ting 挺, shu e hù 笏são implementos rituais feitos de diversos materiais e usados como insígnias.

Gui, bi, yuan, jue e huan eram peças de jade de diversos formatos mostradas ou oferecidas à pessoa a quem estes actos eram dirigidos.

O comentador Yang Liang, da dinastia Tang, explica que as partes do ritual a evitar são as que envolvem chorar vigorosamente e saltitar.

31 Jul 2023

Han Shan – Os poemas da Montanha Fria

Tradução de António Graça de Abreu

 141

Vivo algures numa aldeia, no campo,

não tenho pai, não tenho mãe.

Não tenho nome, nem família ilustre,

chamam-me “velho Zhang” ou “velho Wang”.

Ninguém me ensina coisa alguma,

pobre e simples, tal foi o meu destino.

No coração, gosto muito da verdade,

firme e sólida como um diamante.

 142

O tempo passou por aqui,

regresso hoje, após setenta anos.

Velhos amigos, já nenhum me visita,

foram enterrados em túmulos antigos.

Hoje, os cabelos todos brancos,

mas guardo ainda as nuvens da montanha.

Que posso ensinar aos homens do futuro?

Apenas palavras do passado.

 143

É sagaz o espírito do homem superior,

ouve, conhece a essência das coisas.

É claro o espírito do homem mediano,

pensa, entende o que é necessário.

É lento o espírito do homem inferior,

difícil penetrar num crânio entorpecido,

só quando o sangue lhe sobe às meninges,

compreende como foi demasiado longe.

Surpreendidos, todos olham o culpado,

no julgamento amontoa-se o povo da cidade.

Condenado, o cadáver é tratado como lixo,

ninguém tem mais nada a dizer.

Rapazes, gente crescida,

um golpe e cortam o corpo em dois,

Um rosto de homem, um coração de animal.

Quando terminarão estes negócios?

 144

Alcandorado nas rochas, num lugar secreto,

escondido, impossível de descrever.

Não há vento, as lianas agitam-se,

não há névoa, os bambus envoltos em bruma.

Os regatos cantam, mas para quem?

De súbito, na montanha, rolos e rolos de nuvens.

Ao meio-dia sentado na minha cabana,

para sentir o sol subindo no espaço.

 145

Vejo os homens do mundo,

perdidos, calcorreando os caminhos da poeira,

sem entender por onde vão,

nem como abandonar as rotas sem regresso.

Os dias felizes, quantos, no fim de contas?

os parentes, os amigos, tudo tão de passagem…

Mesmo diante de mil medidas de ouro

é melhor ser pobre, sob os pinheiros.

 146

O lucro, a fama, o teu coração exausto,

cem vezes envolvido pela cobiça.

O acender de um pavio, a ilusão de passagem,

em breve serás enterrado no desconforto de um túmulo.

 147

A cadeia de montanhas, as águas soberbas,

a névoa escondendo o horizonte verde.

O vento acaricia, humedece o meu chapéu,

o orvalho entra no meu casacão de palha.

Nos pés, as sandálias gastas do viandante,

na mão, um velho bastão de junco.

Ao longe, olho ainda esse mundo de poeira e ilusão,

o sonho, o que tem a ver comigo?…

 148

Recordo os dias da minha juventude,

caçando tantas vezes junto a Pingling.

Não era do meu gosto vir a ser mandarim,

buscar a imortalidade, também não me agradava.

Quase voava no meu corcel branco,

gritando atrás de lebres, soltando o meu falcão cinzento,

ignorava que um dia conheceria o exílio.

Agora, os cabelos todos brancos, quem cuidará de mim?…

 149

Nuvens, as montanhas entram pelo azul do céu,

um caminho afastado, a floresta densa, ninguém de visita.

De longe, a lua solitária, iluminada e pura,

de perto, o esvoaçar, o chilrear dos pássaros.

Velho, sentado, diante de cumes verdejantes,

nostálgico e tranquilo, no planalto entre os montes,

Os cabelos brancos, o ano passado, hoje,

o coração livre, como uma onda correndo para leste.

 150

Solitário, sentado diante da falésia,

a lua redonda ilumina todo o céu.

Dez mil coisas mostram-se ao luar,

naturais, sem nenhum disfarce.

O espírito claro, a essência do simples,

abraço o vazio, atravesso o mistério.

Um dedo aponta a lua, lá longe,

a lua, no meio do coração.

 151

Há quantos anos habito na Montanha Fria,

despreocupado, cantando, livre de todas as penas?

A cancela sempre aberta para o silêncio, o mistério,

doces, as águas do ribeiro, sussurando.

As lages da sala, no chão um caldeiro com cinábrio,

resinas de pinheiro, incenso, rebentos de cipreste.

Tenho fome, uma bolinha desta panaceia,

harmonia no coração, encostado às rochas.

 152

A falésia fria, na essência, sempre bom,

ninguém atravessa estes caminhos.

Nuvens brancas ao acaso pelos montes,

cumes azuis, guinchos dos macacos, na distância.

Não mais parentes e amigos,

sigo o curso dos dias, vou envelhecendo.

Forma e conteúdo, frio e calor, tudo muda,

imutável uma pérola no coração.

 153

Encontrei uma menina na casa do leste,

ainda não completara dezoito anos.

A oeste, todos os homens a queriam p’ra si,

combinou-se uma boda, houve um casamento.

Assaram-se carneiros, mais de mil convidados

morderam a carne, saciaram a gula.

Tão felizes, riam de alegria,

chegará um dia a colheita das lágrimas.

 154

Hoje, sentado diante da falésia,

sentado até ao levantar da névoa.

Um simples arroio frio de cristal,

a dez léguas, ainda os cumes e picos de jade.

Imóveis as sombras das nuvens ao nascer o dia,

o luar da noite ainda flutua no vazio.

No meu corpo nem manchas, nem poeiras,

no meu coração nem traço de inquietude.

 155

Velho, doente, perto do fim, mais de cem anos,

rosto amarelo, cabelos, brancos, ainda adoro a montanha!

O corpo coberto de peles, sigo o meu destino,

afastado de vez das seduções do mundo.

Quando se usa o coração para renome e fama

entram no corpo cem diferentes desejos.

Esvoaça a vida, extingue-se a candeia, dissipa-se a ilusão,

no túmulo, enterrado o corpo, temos o não ter.

 156

Habito a montanha,

ninguém me conhece.

Entre nuvens brancas,

o silêncio, sempre o silêncio.

31 Jul 2023