Segredos da Seda (9)

Seda, a rainha das fibras

 

Lei Zu estudou o ciclo de vida do bicho-da-seda, o qual hoje está classificado como pertencente à classe dos Insectos, ordem dos Lepidópteros, família dos Bombicídeos, género Bombix, sendo a espécie Bombix mori quem produz o fio de seda de melhor qualidade.

A seda é segregada quando a lagarta atinge o estado adulto e começa a expelir um filamento pela boca num movimento em 8 para construir o casulo. O longo filamento contínuo a poder atingir perto de mil metros é constituído por fibroína, o constituinte principal da seda natural, produzida por duas glândulas sericígenas tubulares, longas e voluteando, situadas nas partes laterais anteriores do abdómen da lagarta.

Esses dois canais laterais juntam-se num compartimento mais largo, na parte média do abdómen, onde os dois filamentos compostos pela fibroína são envolvidos por uma substância gomosa, a sericina, um líquido glandular. Num único filamento é expelido por um tubo situado na parte inferior da boca e quando exposto ao ar endurece, tornando-se resistente. É com esse filamento que a lagarta, ao girar, se vai envolvendo e construindo o casulo de fora para dentro, levando entre três a cinco dias, mas há locais onde fica feito entre 24 e 72 horas. Dentro, a lagarta após expelir todo o filamento fica com o corpo atrofiado e em metamorfose transforma-se em crisálida, cinco a seis dias depois de terminar a construção do casulo.

Antes de ser domesticado há cinco mil anos, o bicho-da-seda era muito mais forte e o filamento por ele expelido de qualidade superior e de maior resistência ao produzido hoje. Actualmente não se encontra no estado selvagem e por isso, tudo aqui descrito apenas corresponde à sua forma domesticada.

O ciclo de vida da Bombix mori consiste em quatro fases: ovo (também chamado semente), lagarta (sirgo, ou larva após sair do ovo), crisálida (ou pupa) e mariposa (borboleta nocturna ou imago). Vive normalmente de quarenta e cinco a setenta dias, desde que do ovo sai a minúscula larva e em períodos de crescimento vai, três ou quatro vezes mudando a capa (invólucro exterior) e já como lagarta adulta fecha-se num casulo, por si construído, para se proteger durante o período de transformações operadas no seu corpo. Tendo expelido o fio da seda para a construção do casulo, a glândula serígena, até então o órgão mais desenvolvido, atrofia e dá lugar ao aparelho reprodutor. O corpo alongado da lagarta por metamorfose transforma-se numa crisálida e depois em mariposa, quando fura o casulo para sair. Após acasalar, a mariposa fêmea Bombix mori desova e do ovo retorna à fase larvar.

SERICICULTURA

Como referido, até ao século VI a China foi o único país a praticar a sericicultura (cultura ligada à criação do bicho da seda) bem desenvolvida na província de Shandong já nos inícios do século XIV a.n.E., pois os artigos de seda tinham uma enorme procura, tanto na parte social, como económica, por ser um produto muito apetecível nas trocas. Nas dinastias Shang (1600-1046 a.n.E.) e Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.), o sistema de trabalho nas sirgarias estava já dividido em cem funções, supervisionadas por funcionários especiais.

O termo sirgaria provém de sirgo, bicho-da-seda, derivado do latim sericum, nome conhecido para a seda na Antiguidade Greco-Romana, sendo na China o animal denominado can (蚕) e a seda si chou (丝绸).

A raiz do carácter a representar a seda (si, 丝) está ligada à dos instrumentos musicais e tal como o de bicho da seda (can, 蚕), tecido de seda (bo, 帛) e amoreira (sang, 桑), foram gravados em ossos de oráculo e em carapaças de tartaruga do século XII a.n.E.. Por essa altura, a seda passou a ser apenas para uso exclusivo da corte chinesa e nas cores dos tecidos se distinguiam os cargos. Assim o amarelo estava reservado ao Imperador e à Imperatriz e o violeta para a família real. Ministros e altos dignitários vestiam de azul, os oficiais de segunda em roxo e o preto para o restante pessoal ao serviço da corte real.

Durante a dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.) começaram a plantar-se amoreiras de Norte a Sul da China. Na Dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.) foram semeadas em grande escala quando floresceu a procura de seda e se deu um enorme incremento na criação do bicho-da-seda. A indústria estava concentrada em torno do vale do Rio Amarelo, quando nos primeiros séculos do último milénio antes da nossa Era, tecidos de seda foram transportados pela Sibéria para a Ásia Central. Para se perceber a importância da seda, o processo da sua produção, desde colher as folhas de amoreira ao tecer e tingir os tecidos, aparece descrito em dois dos cinco Clássicos chineses: no Livro dos Ritos (Li Ji) e no Livro das Odes (Shi Jing).

Da dinastia Zhou do Leste (770-256 a.n.E.) um tecido brocado já tingido foi encontrado em 2007 num túmulo na província de Jiangxi, onde na aldeia Lijia, jurisdição de Jing’an, ficou a descoberto a existência de uma indústria têxtil. A produção da seda era supervisionada pelos oficiais da corte.

No Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.), começou um rápido desenvolvimento na produção de seda que, em crescente contínuo de mil anos, atingiu o apogeu durante a Dinastia Tang, por volta do ano 750. Os papagaios de seda já esvoaçavam pelo céu entre os séculos V e IV a.n.E.

No Período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.E.), ao chinês que fosse sericicultor e soubesse prevenir as doenças do bicho-da-seda era-lhe dado meio quilo de ouro e ficava isento do serviço militar. Sobretudo nos reinos Chu e Qi, a produção de seda ocupava muita gente, a do campo na criação do bicho-da-seda e muitos dos habitantes da cidade a desfiar os filamentos dos casulos até chegar à confecção do tecido. Segundo os registos da época, os oficiais vestiam-se de seda e esta era um dos presentes mais preciosos.

No livro Mengzi de Mêncio (372-289 a.n.E.) encontra-se uma passagem a referir: Quando em 139 a.n.E. o Imperador Han, Wu Di (140-87 a.n.E.) enviou Zhang Qian à Ásia Central pelos caminhos do Oeste, este aí encontrou uma série de produtos chineses de Sichuan, como laca, bambu e a seda Shu. Daí se perceber serem já utilizados os caminhos do Sudoeste para fazer chegar à Índia e Ásia Central as mercadorias chinesas. Assim, num período anterior à abertura dos caminhos do Oeste a seda percorria já os caminhos do Sudoeste da China, atravessando rios e montanhas, trocada de mão em mão até chegar à Índia e nessa dispersão ganhou existência noutros lugares como na Ásia Central, onde Zhang Qian viajando directamente para Oeste a encontrou.

Com a dinastia Han (206 a.n.E.-220) ficaram abertos e protegidos os Caminhos para Oeste, sendo o produto predilecto e o mais transportado a seda, por isso lhe deu o nome. Então, as técnicas de estampagem e os teares desenvolveram-se ainda mais.

A China tinha a seda como o seu tecido, a Índia produzia algodão, o Egipto o linho e da Babilónia provinha os tecidos de lã.
Das principais variedades de fibras naturais, conjugando com a lã e o algodão, a seda é superior em cinco de oito propriedades específicas e comparando com as fibras sintéticas, como o nylon e o poliéster, é superior em maciez, na finura da fibra e na facilidade de ser tingida. Já na retenção de humidade é só igualada à lã, tal como a seda uma fibra natural.

30 Nov 2023

Lu Wenying, as Cores da Pintura e a Intuição da Chuva

Huizong (r.1100-1126), o imperador que cultivou as artes do pincel, terá lançado uma provocação entre os pintores da sua corte que consistia na figuração em pinturas de versos que ele propunha.

Um desses versos pode ser traduzido como: «Vai o cavalo galopando pisando flores, os seus cascos exalando fragrâncias.» Houve quem respondesse pintando um cavalo galopando livre numa floresta de flores caídas. Porém o que mereceu o aplauso do monarca mostrava: indícios de tinta vermelha no centro, o perfume, e duas borboletas esvoaçando assustadas, o cavalo acabara de passar.

Essa escolha sobre como representar ideias imbuídas do ritmo da vida, o desafio próprio da pintura, foi revelando o engenho dos autores. Um pintor na dinastia Ming mostrou em dois exemplos, uma particular adequação da intenção do criador ao formato da pintura. Juntamente com Lu Ji (act. c. 1439-1510), Lu Wenying (1421-1505) encenou num rolo horizontal a celebração num jardim, como era já então um tema habitual entre eruditos, o sexagésimo aniversário de três altos funcionários.

Nesse Encontro no jardim de bambu (Zhuyuan shouji, tinta e cor sobre seda, 33,8 x 395,4 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) estão pintados, de maneira ritmada e em etapas como convém a um lento desenrolar, doze literatos sentados, alguns nas sofisticadas cadeiras portáteis de «costas de ferradura», jiaoyi. São reconhecíveis pelas suas cabeças ornadas pelo wushamao, o tipo de chapéu de tecido preto com duas asas exclusivo dos funcionários da corte, e estão acompanhados de sete jovens criados, um dos quais dança com um grou, o pássaro da longevidade. Todos estão identificados com uma espécie de filactério. Entre eles estão retratados os dois autores do rolo, vestidos cada um com uma das duas cores com que por vezes é referida a própria arte da pintura, danqing, o vermelhão do pigmento do cinabre (dansha) e o verde-azul do ciano (qinglu, azurite).

Lu Wenying, pintor de Zhejiang, que tal como Lu Ji foi chamado à corte no reinado de Hongzhi (r.1487-1505), também intuiu a vocação do rolo vertical para apreender uma visão única. Na pintura Tempestade numa vila junto do rio (Jiangcun fengyu, tinta e cor sobre seda, 170,5 x 103,4 cm, no Museu de Arte de Cleveland) o olhar, pelo enganoso processo da percepção simultânea, inunda-se com a violência da água precipitando-se, inclemente.

Mas se é certo que estão figuradas ondas alterosas, bandas oblíquas de tonalidades da tinta que sugerem bátegas e mesmo dois homens que se protegem com uma cobertura de palha e um guarda-chuva, o olhar descobrirá uma pequena figura que parece sorrir numa janela. Dentro de casa, protegido da intempérie, um rapaz observa o mesmo que nós: está dentro e fora da pintura. Como alguém que esteja diante da pintura, ele olha a chuva que cai mas que não saíu do pincel do pintor.

27 Nov 2023

Henri Michaux na China

Henri Michaux (1899-1984) nasceu em Namur (Bélgica). A sua infância solitária e rebelde, marcada por uma educação num colégio jesuíta, foi um elemento fundador da sua obra literária. As suas viagens (América do Sul, África, Ásia, Médio Oriente) foram uma grande fonte de inspiração. Michaux também experimentou a mescalina nos anos 50 e explorou o seu potencial de criação literária e visual. As suas obras exploram a angústia do ser-no-mundo, os abismos interiores, o imaginário e outros lugares.

Os textos que se seguem são extractos de Un barbare en Asie, publicado em 1933, quando do seu regresso de uma viagem à Índia, à China e ao Japão.

A habilidade dos chineses

Os chineses são artesãos natos.

O que quer que seja que se possa encontrar através de remendos, os chineses já o encontraram.

O carrinho de mão, a impressão, a gravura, a pólvora, o papagaio, o taxímetro, o moinho de água, a antropometria, a acupunctura, a circulação sanguínea, talvez a bússola e muitas outras coisas.

A escrita chinesa parece ser uma linguagem de empresários, um conjunto de sinais oficinais.

Os chineses são artesãos e artífices qualificados. Têm os dedos de um violinista.

Sem habilidade, não se pode ser chinês, é impossível.

Mesmo comer, como eles fazem com dois pauzinhos, requer uma certa habilidade. E eles procuraram essa habilidade. Os chineses podiam inventar o garfo, que cem povos descobriram, e usá-lo. Mas este instrumento, que não requer nenhuma habilidade para ser manuseado, é-lhes repugnante.

Na China, não existe o trabalhador não qualificado.

O que é que pode ser mais simples do que ser um ardina? Um ardina europeu é um miúdo impetuoso e romântico que anda por aí a gritar a plenos pulmões: “Matin! Intran! 4ª edição”, e vem atirar-se aos vossos pés.

O ardina chinês é um especialista. Examina a rua que vai percorrer, observa onde estão as pessoas e, colocando a mão sobre a boca, atira a voz, aqui em direcção a uma janela, ali num grupo, mais à esquerda, enfim, onde deve ser, calmamente.

Para que serve estragar a voz, onde não há ninguém?

Na China, não há nada que não possa ser feito com habilidade.

A “face” dos chineses

Nada ofende os chineses.

Uma criança tem um medo terrível da humilhação.

O medo da humilhação é tão chinês que domina a sua civilização. É por isso que são tão educados. Para não humilharem os outros. Eles humilham-se para não serem humilhados.

A delicadeza é uma forma de evitar a humilhação — Sorriem.

Não têm tanto medo de perder a face como de fazer com que os outros a percam. Esta sensibilidade, verdadeiramente doentia aos olhos do europeu, confere um aspecto especial a toda a sua civilização. Têm o sentido e apreensão do “diz-se que…”. Sentem-se sempre vigiados… “Quando se passeia num pomar, se houver maçãs, cuidado para não tocares nas cuecas, e se houver melões, cuidado para não tocares nos sapatos. Eles não têm consciência de si, mas da sua aparência, como se estivessem eles próprios no exterior e se observassem a partir daí. No exército chinês, houve sempre uma ordem: “E agora, façam um ar terrível!”

Até os imperadores, quando os havia, tinham medo de ser humilhados. Falando dos bárbaros, os coreanos, diziam ao seu mensageiro: “Vê se eles não se riem de nós.” Ser motivo de troça! Os chineses sabem ofender-se como ninguém e a sua literatura contém, como era de esperar de homens polidos e facilmente magoados, as mais cruéis e infernais insolências.

Un Barbare en Asie, Gallimard, Paris, 1933.

A China e o signo

O Chinês tem o génio do signo. […]

E só o teatro chinês é um teatro para o espírito.

Só os chineses sabem o que é uma representação teatral. Os europeus há muito que deixaram de representar o que quer que seja. Os europeus apresentam tudo. Tudo está lá, no palco. Tudo, não falta nada, nem sequer a vista da janela.

Os chineses, pelo contrário, colocam o que representa a planície, as árvores, a escala, à medida que são necessários. Como a cena muda de três em três minutos, não há fim para o mobiliário que tem de ser instalado. O seu teatro é extremamente rápido, como o cinema.

Eles conseguem representar muito mais objectos e exteriores do que nós.

A música indica o tipo de acção ou sentimento.

Cada actor chega ao palco com um fato e uma cara pintada que dizem imediatamente quem ele é. Não é possível fazer batota. Podem dizer o que quiserem. Nós sabemos em que acreditar.

A sua personagem está pintada no seu rosto. Se for vermelho, é corajoso; se for branco com uma risca preta, é um traidor, e nós sabemos quão traiçoeiro é; se tiver apenas um pouco de branco no nariz, é uma personagem cómica, e etc..

Se precisa de um grande espaço, simplesmente, olha a lonjura. E quem é que olharia para a distância se não houvesse um horizonte? Quando uma mulher tem de coser uma peça de roupa, começa logo a coser. Apenas ar puro passa entre os seus dedos: no entanto (pois quem quereria ar puro?) o espectador experimenta a sensação de coser, da agulha a entrar, a sair dolorosamente do outro lado, e até tem a sensação adicional de que na realidade se sente o frio, e tudo. E porquê? Porque o actor imagina a coisa. Aparece nele uma espécie de magnetismo, feito do desejo de sentir o ausente. […]

Hoje, talvez pela milésima vez, vi crianças (brancas) a brincar. O primeiro prazer que as crianças geralmente obtêm do exercício da sua inteligência está longe de ser o julgamento ou a memória.

Não, é a ideografia.

Põem uma tábua no chão e essa tábua torna-se um barco, concordam que é um barco, põem outra mais pequena, que se torna um passadiço, ou uma ponte.

Depois, quando alguns concordam com isso, uma linha irregular ou fortuita de luz e sombra torna-se a linha de costa para eles e manobram em conformidade, de acordo com os seus sinais, embarcam, desembarcam, zarpam, sem que uma pessoa desinformada possa saber do que se trata e que há aqui um barco, uma ponte ali, que a ponte foi levantada… e todas as complicações (e são consideráveis) em que vão entrando gradualmente.

Mas o signo está lá, evidente para aqueles que o aceitaram, e o facto de ser o signo e não a coisa é o que os encanta.

A maneabilidade do signo seduz a sua inteligência, porque as coisas em si são muito mais embaraçosas. Neste caso, foi bastante demonstrativo. Estas crianças brincavam no convés de um barco. É curioso que este prazer dos signos tenha sido durante séculos o grande prazer dos chineses e mesmo o cerne do seu desenvolvimento.

Un Barbare en Asie, Gallimard, Paris, 1933.

Tradução de Carlos Morais José

23 Nov 2023

Além da Grande Muralha

I Um Pouco de História

A Grande Muralha (长城 Chángchéng), estendendo-se por mais de cinco mil quilómetros entre Jieshi, Liaodong a Leste, e Lintao, atual distrito de Minxian em Gansu, a Oeste, nasceu em 214 a.C por ordem do Primeiro Imperador, Qin Shihuang (秦始皇), o unificador da China, que pôs termo ao período dos Estados Combatentes (战國, 476-221 a.C), fundando a dinastia Qin (秦, 221-206 a.C). Esta teve um propósito histórico-geográfico definido, separar os chineses, sobretudo os sedentários Han (汉), constituídos por uma população agrícola e pacífica, das tribos nómadas das estepes mongóis e da Manchúria.

Ergueu-se como uma enorme fortaleza, com tropas estacionadas em posições estratégicas. Muitos foram os chineses que pagaram com o seu sangue, a construção da muralha e por sinédoque do próprio país em cada guerreiro que caía no combate aos invasores vindos de além da Grande Muralha como os mongóis, que fundaram a dinastia Yuan (元, 1206-1368) ,e os manchus da dinastia Qing (清 1644-1911), apenas para citar os casos de invasão mais persistente.

A Grande Muralha tem o sentido figurativo imediato de inexpugnável, apesar de sabermos que não o foi. Representa ainda, pelo lado positivo, a heroicidade em louvor de todos os que contribuíram para este feito notável, que implicou a proteção da civilização e cultura chinesas por muito tempo, mas, pelo lado negativo, recorda quanto sofrimento e dor implicou a sua construção e a defesa da própria China. Por exemplo na expressão proverbial, aqui traduzida literalmente, “A Construção da Grande Muralha por Qin Shihuang será avaliada pelas gerações futuras” (秦始皇修长城-功过后人评Qínshǐhuáng xiū Chángchéng-gōngguò hòurén píng), surgindo este provérbio associado às lágrimas amargas da Menina Mengjiang (孟姜女Mèng Jiāng Nǚ), que protagoniza uma das mais belas e tristes histórias de amor da China.

Resumindo, a menina de nascimento mágico, já que vem ao mundo dentro de um melão, é partilhada por duas famílias vizinhas muito amigas, a família Meng e a Jiang, do Sul da China, de Songjiang (松江). Ostenta no próprio nome a junção das duas famílias, cresce feliz por entre carinhos e abastanças até certo dia se cruzar com um garboso rapaz, Fan Xiliang (范喜良), estudante dedicado que procurava escapar ao triste destino de recrutamento para trabalhar na construção da Grande Muralha, que já havia sacrificado muitas vidas, dadas as péssimas condições de trabalho. Foi recebido pelo casal Meng e em breve conquistava toda a gente da família, incluindo a Menina Mengjiang. Denunciado por um criado ambicioso que almejava à mão de Mengjiang, vieram os soldados que o forçaram a ir trabalhar para a Grande Muralha. Mengjiang viu-o partir inconsolável e, adiante, conseguiu convencer os pais a visitar o marido para lhe levar agasalhos, a fim de o proteger do agreste Inverno do Norte. Quando chegou à Passagem de Shanghai (山海关), contaram-lhe que o marido sucumbira aos trabalhos forçados, engrossando assim o número de mortos. O seu desgosto foi tal, que o Céu se compadeceu: “De repente, ouviu-se um enorme estrondo, a que se seguiu o desmoronamento de uma parte da muralha, numa extensão de 400 quilómetros, revelando o cadáver do noivo, entre muitos outros” (Wang, Alves, 2009:119). Enfim, o imperador ficou muito zangado com o sucedido, mas logo quis perdoar à donzela, ao ver a sua beleza, transformando-a em concubina. Ela não aceitou e acabou por se deitar ao mar, morrendo afogada.

Se a história nos fala de tanto sacrífico por amor ao país, o provérbio aponta também para uma outra dimensão, em que serão as gerações vindouras a julgar os aspetos positivos e negativos desta obra imperial, na qual os seres humanos são sacrificados à comunidade, ou melhor, ao labor em prol da colectividade. De acordo com a tradição da China, a Grande Muralha deu confiança aos chineses, sobretudo da maioria étnica Han, sentiam-se protegidos por ela, muito embora tivessem consciência do que era pedido a quem a construísse e aos que continuaram pelos séculos a defendê-la, pelo que ela se transformaria num dos símbolos fundamentais da civilização chinesa ao longo dos tempos: para os nacionais, ela representa positivamente a nação e a condição de possibilidade do próprio país; para muitos estrangeiros, figura negativamente a China como um espaço fechado, hermético, cujos habitantes são muito difíceis de entender.

2 Literatura relativa à Grande Muralha

Note-se o sentimento de muralha que nos é transmitido por Wang Wei ( 王維701-761) poeta, pintor, calígrafo, músico e eremita, traduzido por António Graça de Abreu em 1993. Na obra intitulada Poemas de Wang Wei, pode ler-se “Subindo à torre da muralha de Hebei”, um dos troços da Grande Muralha (Abreu, 1993: 46/47):

Na aldeia, sobre a falésia de Fu

o Pavilhão dos viajantes, entre bruma e nuvens.

Do alto da muralha, contemplo o sol poente,

o rio distante espelha as montanhas verdes.

Nas águas uma luz brilha em barca solitária,

anoitece, pescadores e aves de regresso.

Adormecem os espaços do céu e da terra

e meu coração em paz, como o grande rio.

登河北城樓作

井邑傅巌上

客亭雲霧間

高城眺落日

極浦映蒼山

岸火孤舟宿

漁家夕鳥遠

寂寥天地暮

心與廣川閒

A paisagem do alto da muralha transmite uma sensação de imenso bem-estar e paz ao poeta. Este sente-se bem e protegido, embora nunca utilize a primeira pessoa, como é de regra na poesia clássica chinesa, mas nós podemos intuir o seu sentir por meio dos traços que empresta à paisagem, ele é como a barca solitária deslizando suavemente pelo rio, e todo este cenário é recolhido, como que cuidado atentamente por aquele espaço fechado, onde até há lugar para os viajantes poderem descansar, eles próprios em movimento e transformação como o rio, que flui incessantemente sob o olhar fixo e vigilante das pedras que constituem a muralha.

Já Li Bai ( 李白,701-762), o grande contemporâneo de Wang Wei, também traduzido por António Graça de Abreu, prefere destacar o simbolismo guerreiro da Grande Muralha em “Lutámos a sul das muralhas” (战成南)1 (Abreu, 2021: 184/185) : a sua história de violentas batalhas, os Qin que a construíram, os Han e os imensos combates, o sangue dos soldados, os cadáveres, terminando com o pensamento, citação do capítulo 31 do Clássico da Via e da Virtude (《道德經》) obra fundante do Taoismo atribuída a Laozi (老子):

Para quê generais sem exército?

Abomináveis e cruéis as guerras!

O homem de bem só obrigado as faz.

(士卒涂草莽,将军空尔为。

乃知兵者是凶器, 圣人不得已而用之。)

Pela mesma linha vociferante contra guerras e muralhas se ergue Du Fu (杜甫, 712-770), outro dos expoentes poéticos da China, ainda traduzido por António Graça de Abreu, muito embora reconheça na Grande Muralha um dos principais marcos da civilização chinesa e por isso a refere, lingando-a a uma das grandes festividades do calendário lunar chinês, a da Pura Claridade em poema homónimo ( 清明 Qīngmíng), no qual o poeta se declara cansado, triste, velho, doente em viagem pela “Grande Muralha”, pelo “reino de Qin”, pelo “Império Han”. Neste poema, a imponente construção a simboliza a memória coletiva e a ligação aos antepassados, pelo que apresento a segunda parte do mesmo (Abreu, 2015: 464/465):

O regresso pela estrada da Grande Muralha púrpura,

Um dos meus acende o lume com ramos verdes do ácer.

Nas vilas do reino de Qin, pavilhões, pagodes entre flores e fumo,

No império Han montanhas e rios de brocado,

Chuva da Primavera, mais cheio o lago Dongting,

Claros os trevos de água, triste o coração do velho de cabelos brancos.

(旅雁上雲歸紫塞

家人鑽火用青楓

秦城耬閣烟花裏

漢主山河錦繡中

風水春來洞庭闊

白頻愁殺白頭翁

Foram rolando os tempos até chegarmos ao aforismo hoje por todos os chineses conhecido, aqui numa tradução direta: “Só é um verdeiro Han, quem foi à Grande Muralha” (不到长城非好汉Bù dào Chángchéng fēi hǎohàn). Este surge no poema de Mao Zedong (毛泽东) escrito em outubro de 1935, significando que um verdadeiro chinês, representado pela maioria étnica Han, tem espírito de luta, é herói, já que é capaz de percorrer passo a passo os cerca de cinco mil quilómetros de muralha, que se estende no Norte da China, sendo este e outros feitos de carácter sobre-humano que o distinguem, em prol de ideais maiores. Não é inocente a alusão à Grande Muralha, já que constitui historicamente o marco de uma nova era, a de uma China unificada.

《清平乐·六盘山》

天高云淡,望断南飞雁。

不到长城非好汉,屈指行程二万。

六盘山上高峰,红旗漫卷西风。

今日长缨在手,何时缚住苍龙?

Eis a minha tradução:

Serenata à Alegria Pacífica na Cordilheira Liu Pan2

No Céu claro surgem nuvens auspiciosas,

à distância, vislumbram-se gansos rumo ao Sul.

Só é herói quem percorra de lés a lés a Grande Muralha.

nos picos altaneiros da Cordilheira Liu Pan,

Bandeiras vermelhas agitam-se ao vento Oeste.

Agora que a Revolução é tecida pelo Partido comunista,

não será altura de enrolar o Partido Nacionalista?

A Grande Muralha, símbolo da defesa do país, contra forças estrangeiras e/ou nacionais aliadas a estrangeiros, teve lugar de destaque durante o Maoísmo mais exacerbado. Hoje em tempos de Reforma e Abertura, que foram inaugurados por Deng Xiaoping (邓小平,1904-1997), o presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês entre 1978 e 1983, lançou o plano de Reforma e Abertura da China (改革开放Gǎigé kāifàng), e manifestou uma vontade política muito diferente da expressa por Mao Zedong. Esta linha foi continuada por Xi Jinping (1953 -), nomeadamente no programa da Nova Rota da Seda (新丝绸之路 Xīn sīchóu zhī lù), que se viria a impor com a subida deste ao poder em 2013. É então introduzido um princípio directivo, “Uma Faixa, Uma Rota ” (一带一路Yīdài yīlù) que para se concretizar integralmente depende do sucesso de modernizações e de invenções, bem como da ligação entre a China e o resto do mundo, por onde se escoam pessoas e se comunicam conhecimentos, através de corredores terrestres e marítimos.

É neste novo tempo que o poeta Yao Jingming (姚京明, 1958 – ), cujo nome artístico é Yao Feng (姚風), nascido em Beijing, mas a viver há muitos anos em Macau, onde é professor catedrático da Universidade de Macau, se tem distinguido por uma vasta obra poética e pela ligação entre as culturas e línguas portuguesa e chinesa, o que lhe valeu prémios e distinções como a Ordem Militar de Santiago da Espada. Na sua poesia mostra-se filho de um novo tempo, porém sem esquecer a importância do peso da história para a civilização chinesa. Em 長城隨想及其他, obra traduzida para inglês em 2014 por Kit Kelen (客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞), sob o título de Great Wall and Other Poems, dedica alguns poemas inteiramente à Grande Muralha, logo no início do livro, recordando a sua importância enquanto esforço coletivo, que exigiu tanto aos chineses enquanto pessoas, conduzindo-os ao sacrifício extremo de pagaram com a sua própria vida a manutenção do país. Após lembrar repetidamente o papel deste importante símbolo nacional na história, na guerra e como monumento vivo à união nacional, e ao sofrimento causado nos que o construíram e por ele lutarem, termina com um poema muito bonito, numerado a 8, sinal de prosperidade na China e de infinito em todo o lado, onde se coloca junto aos arautos do novo tempo, que ultrapassam a Grande Muralha rumo às portas abertas, à liberdade (Yao, 2014: 25) e ao sentimento de pertença ao mundo inteiro, sem muros nem quaisquer divisões:

太陽脫掉夕陽

再次升起

我醒来了

從群山中醒来

從石頭中醒来

從一個個夢境中醒来

從一個個“我”中醒来

我再次开始行走

沿着這條起伏的大道

向著山海關

向著東方

我要走出長城

我要走向大海

走向遼闊自由的世界

Aqui fica a minha tradução para este belíssimo poema

O sol deita-se

Para de novo se erguer

Eu despertei

De cada cordilheira acordo

De cada pedra acordo

De cada sonho acordo

De todos os eus acordo

E torno a avançar

Acompanhando as voltas do caminhar

Rumo à Passagem de Shanhai3

Rumo ao Oriente

Quero ir além da Grande Muralha

Quero ir em direção ao mar

E ao vasto mundo da liberdade

Referências Bibliográficas

Graça de Abreu, António (Trad.) 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau.

__________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim.

__________________2015. Poemas de Du Fu 杜甫詩選. Macau: Instituto Cultural da R.A.E. de Macau.

Baidu. 2023. “不到长城非好汉

”https://baike.baidu.com/item/%E4%B8%8D%E5%88%B0%E9%95%BF%E5%9F%8E%E9%9D%9E%E5%A5%BD%E6%B1%89/3556008, acedido a 14 de novembro de 2023.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Contos e Lendas da Terra do Dragão: Lisboa: Caminho.

Yao Feng (姚風).2014. 《長城隨想及其他》Great Wall and Other Poems. Tradução de Kit Kelen(客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞) .

Respeita-se o registo escrito em que nos são oferecidos os poemas, de modo que este artigo apresenta poemas em chinês simplificado e tradicional, de acordo com os textos originais.

Cordilheira Liupan no Norte da China.

Passagem de Shanhai no Extremo Oriental da Grande Muralha.

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21 Nov 2023

As crianças que aguardavam por Tao Yuanming

Wang Qihan (act. 950-75), autor de uma célebre pintura de um Literato que limpava os ouvidos ao lado da qual Yongcheng, o quarto filho do imperador Qianlong, escreveu que aquela era uma obra que «circulara, deliciando muitos olhares», também concebeu outra representação que mostra uma fina sensibilidade capaz de provocar a mesma sensação de inesperado deleite.

Numa folha de álbum (tinta e cor sobre seda, 43 x 33,2 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) de Mulheres e crianças junto de um lago com lótus diante de um salgueiro (simbolizando a ausência do pai?) apresenta uma cena íntima e familiar: junto de um bebé, uma mãe que cultiva as artes e as letras, como se vê nos rolos de pinturas e caligrafias e um qin atrás dela. O que explicará o gesto leve e o olhar brando com que levanta o braço para acalmar as brincadeiras mais irrequietas de outras crianças que estão num pátio à sua frente.

Se bem que invulgar entre as obras dos literatos, esse género de figuração de mulheres e crianças, ou apenas crianças, tornar-se-ia uma característica única da pintura das seguintes dinastias Song e Yuan, depois repetida em obras impressas e artes decorativas, como espelho exemplar da harmonia familiar nas dinastias seguintes. Porém, de modo típico, nessa altura a atenção ao espaço da intimidade familiar estava ancorada na sublimidade literária das palavras de poetas como Tao Yuanming (365-427). Em Regresso a casa (Guiqu laici, poema IV) o poeta recorda com alegria os que o esperavam ao chegar ao seu refúgio campestre:

«(…) E então vi a minha casa de família,

Cheio de alegria pus-me a correr,

Um rapaz meu criado veio receber-me

Meus filhinhos esperavam-me à porta (…)

Os três caminhos quase não se distinguiam

mas os pinheiros e os crisântemos ainda lá estavam.

Segurando as crianças pela mão,

entrei na minha morada (…)»

A descrição, feita com tal detalhe inspiraria inúmeros pintores.

He Cheng (1224-depois de 1315) foi um dos autores de vários rolos horizontais que recriam essa situação como o anónimo, dos mesmos anos de 1300, que está no Museu de Arte de Cleveland ou o feito a partir de um original de Qian Xuan (1239-1301), que está no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 106,7 x 26 cm), que se tornariam um tema querido por pintores, sobretudo depois do rolo horizontal de Li Gonglin (c. 1049-1106) que está no Smithonian (tinta e cor sobre seda, 37 x 521,5 cm).

Deles faz parte a encenação desse encontro com as crianças, que torna visíveis os sentimentos do poeta ao regressar. Um pediatra da dinastia Song, Qian Yi (c.1032-1113) escreveu sobre esse olhar de ternura do poeta e da mãe, na pintura de Wang Qihan:

«Acredito que disseminar o afecto é uma responsabilidade das pessoas de bem. Cuidar dos mais novos é uma instrução que nos foi passada pelos sábios. Como poderemos não propagar essa protecção?»

20 Nov 2023

Seda (8) – Deusas e Festas

Mausoléu da deusa da Seda Lei Zu (嫘 祖)

Ainda na província de Sichuan, em Qing Long shan no lugar de Jin Ji (Galo Dourado), após a visita à escola onde existira o importante e antiquíssimo templo de Lei Xuan Gong (嫘轩宫), em honra de Lei Zu e cujo nome a conecta ao marido Xuan Yuan (Huang Di), seguimos entre campos agrícolas por um carreiro ao mesmo nível, mas para o outro lado do monte, a visitar o Mausoléu de Lei Zu. Passamos por casas agrícolas feitas de terra onde, por vezes se vê um casal de idosos. Com os filhos fora, o trabalho do campo ainda é feito, mas as forças não dão já para a produção do bicho-da-seda.

Acompanha-nos o Senhor Wang Shao Mo, zelador do mausoléu desde 2001 quando este foi reconstruído, pois ficara destruído durante o período da Revolução Cultural. Nesta nossa visita em 2009, já o pórtico estava edificado, tendo à frente um altar e para trás o cume do monte. Nele incrustado, uma pedra escurecida com os caracteres do nome de Leizu enquadrada em caixilho com o mesmo tipo de pedra a tornear a esse nível o monte que alberga a sepultura. As obras estavam paradas e inacabadas ficando duas pilhas de blocos de pedra, a mesma usada em todo o recinto, parecendo criar os limites para o projecto, que foi depois desenvolvido. Segundo informações encontra-se já realizado, com a encosta a levar ao pórtico toda terraplanada e retiradas as árvores aparece uma alameda com escadas e uma rotunda escultórica alusiva a quem ali vivera e está sepultada.

Ainda então, para chegar ao mausoléu subia-se uma ladeira a colocar-nos perante uma estrutura feita em pedra, onde se iniciavam as escadas que por duas vias conduzem a um excelente miradouro. Após a passagem de um pequeno túnel, a fazer de porta, outro lanço de escadas diverge em outras duas escadarias laterais. Por fim atingimos a plataforma empedrada, com o altar de frente para um pequeno monte de terra e conforme regista uma placa colocada no mausoléu, aí repousa Lei Zu. Está escondida pela enorme estela onde se lê Lei Zu Fen, a confirmar assim, novamente, ali ser o monte-túmulo de Lei Zu. A estela está pousada numa estranha, mas bela figura de um ‘bixi’, um dos filhos do Dragão, em forma de tartaruga e envolvido por uma ampla estrutura de pedra feita em 2001 como escultura, onde emergem grandes rostos esculpidos, qual figuração amerindia.

Segundo uma lembrança do Sr. Wang, em frente ao Mausoléu de Lei Zu em 1998 foi realizada a dança do Dragão, mas em vez de serem os homens a transportar o dragão foram as mulheres a segurá-lo, tendo a cabeça a forma de bicho-da-seda.

Colocadas as oferendas na longa mesa de pedra, acendemos os enormes paus de incenso vendidos no local pelo nosso interlocutor e que nos corrige a posição, pois “a mulher deve situar-se no lado direito do homem”. Pegando no incenso com as duas mãos, inclinamos a cabeça três vezes em homenagem à Deusa da Seda, depositando-os em seguida no incensório.

Muito do projecto do mausoléu ficou por concretizar pois o dinheiro faltou. Laterais ao mausoléu, as grandes piras de pedra para o fogo estão por completar e a possante vegetação já delas tomou conta, escondendo-as. Diz haver mais de cem templos nas redondezas dedicados a Lei Zu.

INSTITUTO DAOISTA

Já no regresso a Yanting, virado para a estrada reparamos no grande templo situado no sopé do monte, com uma enorme imagem da mãe da seda Lei Zu no muro das escadarias exteriores, tendo dois dragões a fazer de corrimão, o do lado esquerdo amarelo e azul no direito.

Era o Instituto Daoista, onde nas paredes do interior de um salão estão colados papéis narrando histórias lendárias relacionadas com o trabalho da deusa iniciadora da produção de seda. Numa lemos existir uma grande e lisa pedra onde Lei Zu costumava trabalhar, quando à mão fazia o tecido de seda. A Deusa Wang Mu Liang Liang, mãe do Imperador Celeste, ao assistir a esse árduo trabalho no confeccionar tal tecido, pediu ao filho para enviar a Deusa das Tecedeiras a ensinar a promissora rapariga a fazer o tear e com ele tecer a seda.

Outra história relata haver um lugar conhecido por “Pote de Três Pés”, onde no local existiam três pedras. Lei Zu costumava aí desfiar os casulos. No início, o trabalho era muito vagaroso, levando-a a pensar como improvisar um meio mais rápido. Um dia, muito cansada adormeceu e sonhou com um idoso a caminhar lentamente com a ajuda de uma bengala e a dirigir-se a ela dizendo para não se preocupar, pois era o Tu Di (deus local da terra) da montanha, enquanto lhe entregava três pedras para servirem de suporte ao pote onde deveria colocar água do poço antigo e aí cozer os casulos, pois desse modo os conseguiria desfiar rapidamente.

Acordando, Lei Zu dirigiu-se à montanha onde viu colocadas em triângulo as três grandes pedras e assim seguiu os conselhos transmitidos pelo protector ancião.

Muitas outras histórias pela parede se encontram e contá-las todas tornar-se-ia fastidioso, mas não resistindo deixo traduzida uma outra. Lei Zu andava aflita pois os ratos comiam-lhe as lagartas e por isso, quedava-se de guarda à entrada da gruta onde produzia já o bicho-da-seda. Certa vez apareceu um estranho animal e devido à sua presença os ratos não se aventuravam a lá entrar e assim Lei Zu colocou-o de guarda à sua produção. Essa estranha criatura não era mais do que um gato, animal que segundo a História só apareceu na China durante a Dinastia Zhou do Leste (771-256 a.n.E.). Daí o gato não pertencer ao grupo de doze animais que responderam ao chamamento do Imperador Celeste e formam o zodíaco chinês.

Estas algumas das histórias que cobrem as paredes do Templo daoista, reescritas em diferentes épocas. Na teoria do Feng-Shui, o Dragão tanto representa o Imperador, como uma invulgar montanha e por isso, não é de estranhar ser Qing Long shan (Montanha do Dragão de Jade) o local da sepultura de Lei Zu, esposa de Huang Di e Deusa da Seda.

Pela perspicácia das observações de Lei Zu (Lui-Tch’ôu em cantonense), no olhar uma lagarta a construir o casulo para nele se transmutar e renascer como borboleta, percebemos a Natureza simbólica do Ser Vivo e chegados ao humano, vestimos com seda esse estar e continuamos a viagem pela China.

A cada ano, entre o oitavo dia do primeiro mês e o décimo dia do segundo mês lunar, o Imperador e os seus súbditos celebram Xian Can, a dar início à produção de seda. O oitavo dia do primeiro mês lunar é o aniversário do bicho-da-seda e o décimo dia do segundo mês lunar o aniversário de Lei Zu. Celebrações tão grandes que se comparam às do Aniversário dos Imperadores, lembra-nos na dinastia Tang (618-907) Zhao Rui (赵蕤, c.659-742).

A Professora Ana Maria Amaro refere: “pelos antigos registos chineses realizavam-se em Shu (Sichuan) todos os anos, do primeiro ao terceiro mês do calendário lunar, feiras de Bombix mori que passavam por quinze cidades e tinham muitos compradores.”

ESPÍRITO PROTECTOR

Na viagem para Yanting, o nosso olhar cruza-se por três vezes com blocos de pedra colocados na berma da estrada e onde a população local realiza oferendas. Traz-nos à memória as alminhas espalhadas por muitas estradas do Norte de Portugal, normalmente a marcar lugares onde devido a um acidente alguém morrera. Estes blocos de pedra esculpidos com rostos algo monstruosos podem ser observados pela China em muitas povoações, normalmente a proteger as esquinas das casas.
“Pedra Transcendente e Preservativa, costuma estar colocada em lugares sujeitos a más influências”, segundo o padre Manuel Teixeira que refere, “A cabeça da pedra é habitualmente talhada à maneira da cabeça dum tigre, em cuja fronte se grava o carácter Wóng (王), Rei.

É este o transcendente tigre real, o emblema do poder do espírito protector, Sék Kôm Tóng” (石敢当, Shi Gandang em mandarim). “Data das primeiras dinastias o costume de outorgar títulos honoríficos (como marquês) às pedras e outros objectos inanimados. Crê-se que a bravura de certas pessoas corajosas pode passar para a pedra com a cabeça de tigre.”

Chegamos à vila de Yanting já de noite e pago o quarto do talvez único hotel da pequena povoação, arrumadas as bagagens logo saímos para conseguir apanhar ainda aberta alguma cozinha, das que na praça se preparam para fechar, tal o adiantado da hora. São nove da noite e num dos cantos da praça um ecrã gigante passa um filme. Celebra-se nesse dia uma festa no Templo de Guanyin e atraídos pelos foguetes para aí seguimos já com o estômago aconchegado. Estafados regressamos ao hotel após um dia pleno. Preparamo-nos para deitar quando nos batem à porta.

O recepcionista vem acompanhado por dois homens que se apresentam como da polícia e ali nos questionam da razão da visita àquele lugar tão recôndito do país. Numa vistoria rápida às bagagens, despedem-se pedindo desculpa pelo incómodo. Só mais tarde soubemos ser frequente virem estrangeiros a estes longínquos locais à procura de antiguidades e levarem peças roubadas dos túmulos para serem vendidas em Hong Kong e Macau, seguindo daí para fora da China.

17 Nov 2023

O mal

Existe o mal? Porque é que há gente má para si própria, para os amigos e para os outros em geral? Problemas como este diz-nos a filosofia pertencem ao domínio da ética. No oriente chinês os problemas éticos foram tratados com especial cuidado primeiro pelos pensadores confucionistas e numa fase posterior pelos neo-confucionistas.

Se Confúcio nunca se pronunciou abertamente sobre a origem do bem e do mal na natureza humana, já o mesmo não se pode dizer sobre os seus dois maiores discúpulos: Mengzi e Xunxi. Este último terá vivido, tal como Mâncio, durante o conturbado período dos Estados combatentes (475-221 aC), mas ainda é questão controversa as datas da sua biografia.

Estes dois filósofos são, e pela ordem exposta, o segundo e terceiro maiores filósofos confucionistas. Ambos elegeram, como não podia deixar de ser, sendo discípulos de quem eram, as questões ético-políticas para o centro das suas filosofias. Mâncio fez da benevolência o pilar da sua filosofia e, por isso, defendeu sempre que a natureza humana é boa. Nós possuímos duas virtudes universais, ou inatas, a benevolência e a rectidão ou justiça: “amar os pais é benevolência e respeitar o irmão mais velho é justo.

Só estas duas virtudes, a benevolência e a justiça, virtudes universais” (Mencius, Sinolingua, Jinxin, 1ª Parte, 11, 1999). Aliadas às duas virtudes surgem outras, quase em pé de igualdade: a propriedade ou os ritos, e a sabedoria, porque muito embora todos nós possuamos a virtude inata da benevolência, explica o filósofo, ela é como uma semente, que precisa de amadurecer para dar os seus frutos, ora o amadurecimento faz-se precisamente através dos ritos e da sabedoria (Gaozi, 1ª Parte, 19).

Muitos são aqueles que discordam desta teoria e, por isso, o filósofo vê-se forçado a defendê-la em vários passos da sua obra, como aquele onde explica o mal e compara da bondade natural do homem à natureza da água: “A natureza humana tende para o bem como a água tende para baixo. Não há natureza humana que não seja boa, assim como não há água que não corra para baixo. Claro que se batermos na água esta pode saltar até à nossa testa e se escoarmos a água ela pode correr em sentido contrário ou fluir até às montanhas. Mas até que ponto podem estes fenómenos ser atribuídos à natureza da água? A causa são as forças exteriores. O homem pode fazer mal porque a natureza, tal como a água, pode ser modificada por forças exteriores” (Gaozi, 1ª Parte, 2).

Para Mengzi, nós somos bons, não podíamos ser melhores. A bondade é, como tal, uma virtude inata, que nos acompanha desde sempre e que, correctamente desenvolvida, a saber através dos ritos e da sabedoria, prepara e fortalece o nosso ser interior, no combate que este se vê forçado a travar contra as forças exteriores: os outros, enfim, todos os menos bons, mas, especialmente, aqueles que voltaram costas ou recusaram cultivar-se, e, também, como é óbvio, contra as circunstâncias. Diz-nos o filósofo que em anos de crise estatal os jovens tendem a ser rebeldes e em períodos de bonança, preguiçosos, não por causa da sua natureza, mas sim devido a influências exteriores, agudizadas por um grande desleixo no desenvolvimento do bem, a semente que todos transportamos.

Como já tive oportunidade de referir num outro artigo, para qualquer filósofo que parta da defesa do bem inato ficará sempre por explicar a origem do mal, porque a tese das causas exteriores não justifica a entrada do mal no mundo. E a inversa também é verdadeira, quem parta da defesa de uma natureza humana má, tal como Xunzi, não conseguirá avançar com um argumento sólido para a origem e presença do bem entre nós.

Xunzi faz um ataque cerrado a Mâncio, no que respeita às características originais da natureza humana. Para este filósofo, como viria a suceder mais tarde com Hobbes, somos inatamente maus. Não há nada a fazer de início. Começamos egoístas e em estado de guerra permanente, pois só pensamos no nosso próprio umbigo ou benefício. Além disso, somos invejosos e odiamo-nos uns aos outros.

Por isso “quando cada um segue a sua natureza e liberta as suas inclinações naturais, a agressividade e a ganância desenvolvem-se. O que é acompanhado pela violação das distinções entre classes sociais e pelo lançar da ordem natural em anarquia, donde resulta uma tirania cruel” (Xunzi, Human People´s Publishing House, Foreign Languages, Press, 1999, A Natureza do Homem é má, 23.2).

São, portanto, necessários modelos, regras, leis, princípios e ritos estabelecidos pelos reis-sábios e bons professores para transformar a maldade inata em bondade adquirida ou social. Daí também que seja preciso um bom tirano, um sábio, claro, a quem todos devem obedecer incondicionalmente, para pôr ordem no mundo.

Chegamos à ordem social e política, aos princípios e valores morais pelo exercício da razão. Todos nascemos com uma matéria, que nos é dada através do corpo: os desejos e as emoções e com uma mente, ou poder formal, que tem a capacidade de criar modelos, regras ou leis tanto naturais como morais e, por isso, se define como a capacidade de distinguir entre o virtuoso e o baixo e, também, entre o certo e o errado.

Xunzi considerava que vivia num período onde reinava incondicionado o mal, porque faltavam professores sérios, ninguém seguia as boas teorias ou modelos dos reis-sábios, logo os homens portavam-se de um modo perverso, rebelde, desordenado. Poucos eram os que escapavam. Ainda assim havia alguns.

“Os homens de hoje que são transformados pelos seus professores e pelo modelo, que acumulam uma boa forma e aprendizagem e que são guiados pelo Caminho dos princípios rituais e pelo dever moral tornam-se homens de bem (junzi).” (A Natureza Humana é Má, 23.3).

O homem de bem de Xunzi é capaz de operar o milagre, com a ajuda do sábio, de transmutar uma matéria má numa obra boa, à maneira do oleiro, como adianta o filósofo, que faz do barro um bela vasilha por causa da sua arte (23.7), sem que isso signifique que possua quaisquer virtudes inatas.

O problema é essencialmente o mesmo que se coloca a Mengzi. Mas para Xunzi a pergunta é diferente: Como é que os primeiros modelos de bem surgiram no mundo? Ora esta pergunta só surge porque ambos os filósofos tentam explicar as origens daquilo que lhes interessa, a um, o bem, a outro, o mal.

Na verdade, é difícil explicar como começou o bem ou o mal na natureza humana. Pela minha experiência pessoal, posso garantir, que, ao nível meramente fenomenal, nunca lidei nem com os anjos de Mâncio, nem com os demónios de Xunzi. Somos todos mais ou menos e eu não me excluo do rol. Sem abandonar o critério da minha experiência, há pessoas com quem me dou melhor e que, por isso, tendem a desenvolver o meu lado virtuoso e há criaturas com quem me dou pior, essas provocam-me grandes alterações de humor, sabe deus, e a idade, controladas com que esforço.

Por isso, e abandonando a tentativa de explicar as origens do bem e do mal, ou refugiando-me numa perspectiva filosófica mais moderada, e mais à maneira do que sabemos que o próprio Confúcio defendeu, temos um corpo e uma mente, enfim, somos seres com faculdades, ou antes, acrescento, dotados de energia inteligente. Essa energia permite-nos, pela sua própria especificidade, desenvolver teorias, modos de ser, comportamentos quer bons, quer maus. Logo podemos sempre optar por praticar o bem ou o mal.

Se calhar, e voltando às origens – essa grande tentação metafísica – somos neutros à nascença. Daí que, em primeira e última análise, a responsabilidade seja nossa, porque acredito que temos liberdade para ser aquilo que quisermos e é essa liberdade, apesar de todos os condicionalismos, que nos dá o direito de optar, tornando-nos diferentes dos outros seres naturais.

16 Nov 2023

Wang Qihan e o Literato Que Limpava os Ouvidos

Cai Yong (132-192) o erudito calígrafo e entendido na música do qin, certo dia foi convidado para o serão em casa de um amigo que o quis obsequiar povoando o ambiente sonoro com uma melodia suave, para o que dispôs um músico tocando o qin discretamente atrás de um biombo. Subitamente porém Cai Yong levantou-se e saiu exasperado.

Quando o anfitrião perplexo quis saber a razão de tal procedimento, a resposta terá sido ainda mais assombrosa; o ilustre convidado alegou que notara na música que escutava um «sentimento assassino». Procurando uma explicação, o anfitrião interrogou o músico. Este, revendo as ideias e os sentimentos que lhe atravessaram o espírito enquanto tocava, lembrou-se que estava observando os movimentos de um louva-a-deus que se aproximava de uma cigarra, cujo chilrear o incomodava e como desejava que o primeiro acabasse com o ruído da outra.

Ao ouvir a explicação, Cai Yong respondeu bem-humorado: «Ah, então foi isso.» A anedota, contada para enaltecer a fina sensibilidade do erudito da dinastia Han Oriental, coloca também em evidência o biombo, essa peça de mobiliário que serve para separar mas também para capturar anonimamente os mais escondidos segredos, os mais leves sussurros e ardis. Na dinastia Tang do Sul (937-960) pintores como Zhou Wenju ou Gu Hongzhong usaram em pinturas esse dispositivo referido comummente como pingfeng, «guarda-ventos», para encenar visualmente vias para descobrir e encobrir verdades. Outro caso exemplar foi imaginado pelo pintor da actual Nanquim, Wang Qihan (act. c. 950-75).

Numa pintura conhecida pelo gesto inesperadamente privado da sua figura principal que, diante de três biombos, levanta a mão direita para limpar o ouvido, o imperador Song Huizong (1082-1135) que foi uma das eminentes personalidades que a possuiram, escreveu na margem direita da representação, na sua distinta e elegante caligrafia designada shoujin duas palavras, Kanshu, Examinando livros, que passaria a ser o seu nome formal.

Wang Qihan, que no catálogo de pinturas Xuanhe huapu (1120) do tempo de Huizong, é referido no capítulo IV como pintor de temas budistas e daoístas, de que será exemplo a obra que lhe é atribuída de um Imortal (presumivelmente Lu Dongbin) montado num dragão (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 40 x 37,5 cm, na Galeria de arte da Universidade de Yale) seria porém objecto de uma persistente admiração devida à figuração de um gesto íntimo.

Examinando livros, rolo horizontal guardado na Biblioteca da Universidade de Nanquim (Kanshu tu, tinta e cor sobre seda, 284 x 65,7 cm) mostra uma cena dominada por três biombos pintados com paisagens harmoniosas, em frente deles, uma cama e em cima dela, um qin. À direita, diante de uma mesa com livros o literato repousa descalço, o dedo no ouvido, confiante, numa manifestação da sua longanimidade.

13 Nov 2023

Seda (7) – Deusas e Festas

Palácio de Lei Xuan nas montanhas do Dragão de Jade

Seguindo a viagem feita pelo Imperador Amarelo para conhecer quem tecera um tão fascinante robe de seda, resolvemos ir também à procura do local de nascimento de Wang Feng na província de Sichuan. De Yanting rumamos para as montanhas do Dragão de Jade (Qing Long shan) por uma magnífica estrada de mais de quarenta quilómetros feita para as grandes celebrações de 2008 e antes de chegar ao lugar chamado Jin ji (Galo Dourado), onde está a sepultura da Deusa da Seda Can Shen Lei Zu e o Palácio de Lei Xuan, passamos pela aldeia chamada Lei Zu (Lei Zu cun).

Aí, à chegada, o Senhor Wang Shao Mo, que toma conta do mausoléu desde 2001, atento, junta-se a nós e refere terem todos os habitantes da aldeia, onde também mora, apelido Wang, o mesmo nome da família de Lei Zu.

Enquanto fala vai indicando o caminho para o mausoléu e ainda no sopé do monte chama a atenção para o bei (碑), uma estela em forma de torre feita a 29 de Outubro de 1995 onde se pode apreciar o escrito durante a Dinastia Tang (618-907) por Zhao Rui (赵蕤, c.659-742). Reproduzia a estela feita no segundo mês de 734, no 21.º ano da Era Kaiyuan (713-741), onde o letrado explicava “encontrar-se em Yanting para descansar do estudo teórico, numa casa mandada fazer pelo Imperador, quando os locais o convidaram a escrever a estela feita para celebrar a reparação do Lei Xuan Gong (嫘轩宫) na montanha Qing Long. Ao pedido insistente, onde “por três vezes me bateram à porta, acedi a escrever o prefácio”.

Começa por se referir ao porquê das iniciais recusas, já que, para os seres a quem era dirigida a missiva com eles convivia diariamente. “Vivia eu agora liberto do mundo material e passando os dias com a virtude da música, tocando qin [conhecido por guqin, é hoje um instrumento de sete cordas, apesar de ter apenas cinco quando foi inventado por Fu Xi], ou acompanhado pelo som do crane [ave pernalta mitológica que vive mil anos] a dormitar nas margens dos ribeiros com os dias a escoarem-se no prazer de uma vida ligada à Natureza. Na montanha de Qing Long terminaram de reparar o Palácio-Templo de Lei Xuan e pediram-me para escrever um prefácio.”

Zhao Rui (赵蕤) nascera em Yanting, Sichuan, aproximadamente no ano de 659 e durante a sua juventude estudou tudo o relacionado com a governação. Um dos seus antepassados, Zhao Bin (赵宾), que vivera no período da dinastia Han do Oeste, foi famoso como especialista do Yi Jing, Livro das Mutações ao qual ele também se dedicou.

Em 716 terminou de escrever o Chang Duan Jing (长短经, conhecido também por Fan Jing, 反经) com nove capítulos (juan) e 64 artigos (pian), onde discorreu sobre os escritos de Rujia (儒家, escritos confucionistas), Fajia (法家, Escola do Legalismo), Bingjia (兵家, assuntos militares), Zajia (杂家, miscelâneas), Yinyangjia (阴阳家, escritos dauistas), com interesse para a Escola da Diplomacia (纵横家, Zonghengjia). Daí ser chamado várias vezes por o sétimo Imperador Tang Xuanzong (712-755) para trabalhar na corte, escusando-se com o argumento de lhe interessar mais viver em contacto com a Natureza e dela adquirir os ensinamentos. Li Bai (701-762) com 18 anos foi estudar durante um ano com Zhao Rui.

Na parte de cima da estela, os desenhos em baixo-relevo mostram o Palácio (templo) Lei Xuan Gong (嫘轩宫) a partir do descrito por Zhao Rui.

Mas a estela escrita por Zhao Rui foi destruída em Maio de 1947 por uma tempestade e encontramos agora uma nova similar, ladeada por duas pedras gravadas, uma partida e deitada por terra e a outra, ainda de pé, erguidas em 1995. Assinalavam a estela existente da Dinastia Tang e que acompanhou uma anterior ali existente e referida por Zhao Rui, mas que, sem ninguém notar, desapareceu.

Se nos caracteres gravados da pedra tombada pode ler-se: “As pessoas continuaram com o trabalho de Lei Zu e esperam fazer ainda melhor”, na pedra em pé está um outro poema: “Lei Zu aqui nasceu e aqui resta / o galo dourado voou para o Céu”.
Nos quinhentos e oito caracteres Zhao Rui ainda refere: “a sábia Wang Feng, esposa de Huang Di, era Yuan Fei Lei Zu nascida nesta montanha e falecida quando viajava pelo Sul do país.

Em anterior desejo expresso, tinha pedido para ser sepultada no cume da Montanha Qing Long, onde encontramos o mausoléu e uma estela colocada desde então e que continua aqui a existir. Durante a sua vida, foi a primeira pessoa a ensinar a plantar amoreiras, a domesticar o bicho-da-seda, a criar o fio e com ele tecer.

Foi uma inspiradora e conselheira para Huang Di, que daí ordenou aos súbditos para plantarem amoreiras, fazerem roupas de seda, casarem-se e respeitarem os idosos. Ajudou Huang Di a estabelecer um sistema para criar um país, ordenando o território e as suas gentes, unificando assim Zhong Yuan (中原), [assim conhecida antigamente a China e significa a parte central do País do Meio (中国, Zhong Guo), nome dado por os chineses ao seu país]. Tal glorioso trabalho levou as pessoas a lembrarem-se dela para sempre. Por isso lhe chamam Xian Can, Iniciadora da Produção de Seda.”

PALÁCIO LEI XUAN

Continuando no texto de Zhao Rui: “Na parte traseira da Montanha Qing Long conseguem-se ver todas as montanhas em redor e neste local as pessoas prosperam já que os negócios, sobretudo os da seda, lhes correm bem. À noite, quando a Lua reflecte sobre Lei Xuan Gong, o lugar é muito bonito.

O templo construído em cinco patamares tem cento e vinte e seis estátuas no interior do primeiro pavilhão, Xian Can Tan. Entre elas, as mais importantes são as de Wang Mu (Rainha-Mãe do Oeste, esposa do Imperador de Jade), Xuan Yuan (Huang Di, que significa Imperador Amarelo e viveu entre 2550 e 2450 a.n.E.), Lei Zu, Fu Xi (2852-2738 a.n.E., o primeiro Ancestral da Civilização Chinesa e inventor dos trigramas, que permitiram criar o Livro das Mutações), Shen Nong (conhecido por Yan Di, que impulsionou a agricultura e viveu em 2750 a.n.E.) e Feng Hou (o principal ajudante de Huang Di).

No segundo pavilhão, denominado Lei Zu Dian, encontram-se apenas três estátuas: a de Lei Zu, Ma Tou Niang Wan Yu (马头娘菀窳) e Yu Shi Gong Zhu (寓氏公主), cujo livro Hou Han Shu refere serem antigamente estas duas últimas chamadas Can Shen, Deusas do Bicho da Seda.

Lateralmente ao Palácio-templo, corredores com divisórias, um para o amoreiral, outro onde se produz o bicho-da-seda, assim como para as estufas, onde pela acção do calor se pára o ciclo da Bombix mori quando esta já vive dentro dos casulos. Há ainda outras divisórias dedicadas à produção de fio, à tecelagem e à fabricação de roupas.

Pela História, este templo foi construído por Can Cong e ampliado mais tarde pelo Rei Wen [pai do Rei Wu, o fundador em 1046 a.n.E. da Dinastia Zhou, que usando os oito trigramas inventados por Fu Xi os montou no Zhou Yi, o Livro das Mutações da Dinastia Zhou], denotando ter um longo passado. Nesses tempos, o Imperador mandou as pessoas plantarem a terra, produzir o bicho-da-seda e assim, na Primavera ao lançar as sementes à terra tinha-se comida; no Verão, por se produzir o bicho-da-seda houve roupas e depois de comida e roupa veio a música, pois com abundância podia-se ter já uma vida abastada. Por isso, nessa altura o país era muito forte.

Devido a tal, cada ano entre o oitavo dia do primeiro mês e o décimo dia do segundo mês lunar, o Imperador e os seus súbditos celebram Xian Can. O oitavo dia do primeiro mês lunar é o aniversário do bicho-da-seda e o décimo dia do segundo mês lunar é o aniversário de Lei Zu. Tais celebrações são tão grandes que se comparam às celebrações do Aniversário dos Imperadores.

No topo da Montanha de Qing Long consegue-se ver muito longe. Ao pôr-do-sol a montanha parece a morada dos Celestiais Seres. Tanto faz olhar de cima, como a partir de baixo, é como estar a montanha protegida pelo tigre e segura pelo dragão. Um pequeno som ecoa forte como o rugido do leão e o da trovoada e é como o cantar de nove Dragões e dos oito Seres Celestes. Com tão magnífico lugar é de acreditar que Lei Zu aqui nasceu.

Escrevo isto para relembrar às pessoas continuarem o trabalho de Lei Zu, esperando que façam ainda melhor e pôr este trabalho como a luz do Sol e da Lua e com uma longa vida como a do Céu e da Terra.”
De referir ser este texto escrito no bei por Zhao Rui o segundo a fazer referência à vida de Lei Zu, depois de Shi Ji de Sima Qian (145-87 a.n.E.).

Analisando pela História o contado por Zhao Rui, este templo foi construído pelo fundador dos Antigos Shu, Can Cong, que viveu em 2800 a.n.E., no mesmo período de Lei Zu e Huang Di. Foi ampliado em c.700 a.n.E. por Wang Di, Rei dos Antigos Shu e o último do clã Duyu, que finalizou a Cultura Shierqiao pertencente ao Período de Sanxingdui, quando decorria a transição do Período Primavera-Outono para o Período dos Reinos Combatentes, denotando ter um longo passado.

O Lei Xuan Gong (嫘轩宫), em honra de Lei Zu, durante o período da Revolução Cultural foi destruído e passou a ser uma escola. Só anos mais tarde os habitantes da aldeia realizaram o quão importante era o templo e por isso, o reconstruíram. Mas perdido estava o recheio e o que hoje aí se encontra, é algo cujo interesse não é material, despido de todo um legado histórico.

10 Nov 2023

O vento nas ameixieiras de Wang Shishen

Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos:

Enquanto o vento vai soprando na Ravina Ocidental

quem permitiu que o poema se completasse sozinho?

Tanta pena da ameixieira, a solitária do frio,

que não tem companhia.

Daqui apenas se avistam os poucos ramos que sobraram,

Flores caídas enchem já o chão

e a Primavera ainda não terminou.

Um coração amargurado, apertado como uma semente,

consegue persistir em tais pensamentos constantes

A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveand) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros.

Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton).

Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal.

Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos:

«Em busca de flores de ameixieira com amigos,

Aproveitamos a frescura de um dia claro,

Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão,

Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo,

Caminho para a frente e para trás,

como se habitasse numa pintura.»

Noutro poema diz:

«O distinto badalar de um sino

rompe o silêncio nas montanhas,

Mil anos depois todos os heróis

das Seis dinastias estão esquecidos,

Sob uma janela budista

apreciamos os dias ociosos,

Ramos e flores de ameixieira

guardam para si todo o vento Leste.»

8 Nov 2023

Contos, Histórias e Ecologia

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCCM

Desde há muito nos habituámos a que a humanidade ocupa lugar de destaque na tradição cristã. Deus criou o homem (e a mulher) para que pudesse reinar sobre toda a natureza e ao sétimo dia descansou. Ao nível dos contos de fadas e populares mantém-se a mesma tradição. A estética coloca a figura humana como padrão modelar, assim através de contos como “A Cara de Boi”, “A Noiva do Corvo” ou o “Príncipe Bezerro” se transmite que os protagonistas com cara de boi ou de bezerro ou, ainda, corpo de corvo receberam castigos, foram amaldiçoados até se libertarem de um encantamento que os arrastou para uma posição degradante, negativa, mesmo má, da qual serão libertos por outras personagem cujas virtudes são inabaláveis, como a fidelidade, a bondade, etc., verdadeiros antídotos para a maldição que paira sobre as suas vidas.

Vejamos alguns exemplos. Em “A Cara de Boi” a linda menina de longa trança abandona a sua mãe, que a fechara numa casa alta e murada, sem qualquer porta, praticamente inexpugnável,- não fora a trança desta Rapunzel portuguesa, servir de acesso à mãe, mas ainda assim, quando foge com o príncipe é castigada pela velha maga, que lhe chama filha cruel e a acusa de a abandonar, enfeitiçando-a com cara de boi. Ela, depois de muito sofrer, casa com o príncipe e recupera a sua linda aparência humana, preparando-se para ser a futura rainha. Seria impensável o conto terminar com uma rainha com cara de boi.

A situação é semelhante com “A Noiva do Corvo”, aqui a menina é levada a casar com um corvo, o que lhe provoca grande tristeza. Pensou que o marido estaria encantado e, por isso, lhe chamuscou as penas, dobrando-lhe o encantamento, que apenas seria quebrado se ela rompesse sapatos de ferro, ou seja, se fosse de uma fidelidade absoluta à sua causa, que era encontrar o corvo entretanto de asa em fuga. Correu muito até romper os sapatos, finalmente conseguiu chegar a uma fonte perto da casa onde estavam muitas gaiolas com aves encantadas, ao libertar os pássaros, eles transformaram-se em príncipes. Ora entre eles encontrava-se o rei, já humano, que era o seu marido com o qual havia de viver feliz para sempre.

Em “O príncipe Bezerro” somos transportados até tempos muito remotos, onde vivem num reino poderoso um rei e uma rainha sem descendência. A situação faz com que a rainha em desespero profira o desejo de ter um filho “ainda que fosse bezerro” (Gomes, 2000: 53). Tal era a sua aflição por não cumprir as funções de mulher, de acordo com a mundividência tradicional, que já se sujeitava a ter um animal por descendência. A sua voz foi escuta e o desejo prontamente realizado. O príncipe crescia, e com ele a bondade e inteligência, mas não a formosura, já era considerado horrível por ter aparência de bezerro. Surge então em cena uma menina muito linda e boa, que não se importa de casar com o animal. Como recompensa descobriu que ele estava encantado e, na verdade, era um belo rapaz quando à noite despia a pele de bezerro. Ela seguiu então os conselhos precipitados da mãe, sendo levada a queimar na noite seguinte a pele do animal, o que viria a multiplicar o encantamento dele por muito tempo. O príncipe foi forçado a desaparecer não sem antes a advertir que ela teria de romper sete sapatos de ferro se o quisesse voltar a ver. A futura rainha, mergulhada em mágoa, correu mundo em busca do marido, até que a sua persistência e sincero arrependimento foram recompensados, colocando fim a um mau encantamento. O príncipe recuperou a figura humana, a melhor, a mais bela e digna, devido à bondade e amizade da sua igualmente humana mulher.

Situação idêntica pode ser observada em “O Príncipe Sapo”, cujos pais não tinham filhos, a mãe proferiu a heresia de ter descendência nem que fosse um sapo, pelo que foi imediatamente castigada com o nascimento de um batráquio. Este foi criado por uma menina muito boa, que viria a ser sua mulher. Também ele à noite largava a sua aparência animal, transformando-me num belo homem, pelo que os pais e a rapariga acabaram por queimar as vestes, encurtando, segundo acreditavam o tempo de feitiço, mas aumentaram-no, pelo que também a mulher teve correr mundo até chegar ao Rio Jordão, onde, após muita persistência, com um beijo, conseguiu pôr termo a um fado negativo.

Franz Kafka (1883-1924) em A Metamorfose explora o inconsciente coletivo ocidental chegando por absurdo à pior das transformações, a que sucede quando as vidas se tornam tão absolutamente desinteressantes e sem qualquer sentido lógico que conduzem à transformação das pessoas em animais repugnantes, de acordo com a narrativa, tal como sucedeu ao caixeiro-viajante, protagonista da história: “Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em rijos segmentos arqueados (…) As inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo agitavam-se desamparadamente perante os seus olhos.” (Kafka, 1975: 7)

No oriente chinês, desde os tempos mais recuados que existe uma íntima relação entre os seres humanos e os animais, digamos que assim sucedeu em muitas civilizações, incluindo o ocidental, só que a nossa cedo trocou as influências naturalistas pelas personalistas, logo acarinhando o ideal estético humano como o mais excelso, sendo todas as transformações em figuras animais, a menos que fossem animais imaginários, perspetivas como muito negativas. A tradição chinesa manteve a forte ligação à natureza, não esquecendo a sua ancestralidade totémica, na qual descendia de um dragão, ou melhor, de um imperador mítico meio humano, meio dragão. Se pensarmos no caso português, descendemos de heróis mitológicos, Ulisses, ou heróis mais próximos, o humano Viriato.

Também em muitos contos, incluindo populares e fantásticos, as mutações de humanos em animais são muito bem acolhidas, assim como os próprios animais quando penetram na esfera espiritual, revelam dons prodigiosos, inteligência, bondade e outras virtudes que raramente são concedidas a animais no mundo ocidental, se excluirmos o universo das fábulas de Esopo ou La Fontaine.

Recorde-se uma das mais belas histórias de amor do povo chinês, 梁山伯与祝英台 (Liáng Shānbó yǔ Zhù Yīngtái), conhecida no ocidente como “Os Amantes Borboleta”. Esta belo conto, a que muito chamam o Romeu e a Julieta da China, é na verdade um tratado de filosofia em versão condensada, portanto, ainda que se baseie numa relação amorosa, revela muito mais da mentalidade chinesa do que Romeu e Julieta o faz em relação ao ocidente europeu. Estes amantes contrariados mostram-nos uma protagonista extremamente decidida, Zhu Yingtai, pronta a disfarçar-se de homem por amor aos estudos, por volta do século V d.C, durante a dinastia Jin do Leste (东晋,317-420). Ela conheceria Liang Shanbo na escola, seriam companheiros de carteira, já que este último acreditava ter adquirido um grande amigo, que nunca revelou a sua verdadeira identidade, mas que se apaixonaria pelo colega. Um dia, a menina foi forçada a cumprir a palavra dada ao pai e teve de voltar à sua terra Natal para casar com um homem do seu nível social, como devia ser na China tradicional: os pais arranjavam os casamentos aos filhos procurando alianças ao mesmo nível social, ou até um pouco acima do seu estrato, de modo a receberem privilégios e a alargarem o seu património e zona de influências, como sucedeu com Zhu Yingtai que teria de casar com o filho do governador da terra, depois da interessante experiência escolar. Além disso, Liang Shanbo, de origem humilde, não era de modo algum elegível para consorte de uma filha única de uma família abastada de Zhejiang. Ele viria a morrer de desgosto quando percebeu que não podia casar com a menina e ela, a caminho do seu futuro casamento, pediu para parar na campa daquele que poderia ter sido o seu noivo se os tempos fossem outros.

É então que um fenómeno extraordinário sucedeu à beira do túmulo do amado, o céu escureceu, desencadeando uma imensa tempestade, por entre a qual se abriria o túmulo do rapaz. Ela aproveitando a ocasião, precipitou-se para dentro da terra. Logo, cessaram raios e trovões, o sol reapareceu e, antes da campa se fechar, escapavam duas borboletas, que rodopiaram livremente por entre as flores, uma branca, a força masculina yang, outra preta, Zhu Yingtai, a força feminina yin. Duas figuras libertaram-se da forma humana, numa transformação positiva em forças naturais, as borboletas, insetos que simbolizam a beleza, e muito mais, já que também indicam a transformação no sentido correto de bichos da seda em seres que voam e representam a evolução espiritual e a liberdade, além, de a partir desta história, passarem também a simbolizar o amor. “Quem eram elas? Sim, eram Liang Shanbo e Zhu Yingtai, metamorfoseados pelo amor” (Wang, Alves, 2009: 131).

É o sentido das transformações positivas que muitos animais sofrem, especialmente as raposas, enquanto espíritos encantados, que Pu Songling (蒲松齡, 1640-1715), um escritor e intelectual dos finais da dinastia Ming primórdios da Qing comunica, nos seus Contos de Fantasia Chineses (聊齊誌異), como revela Yao Feng na Introdução à obra. Esta, publicada na Editora Moinhos em 2022, foi traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian e, ainda, teve a tradução e revisão da docente Ana Cardoso.

Como explica Yao Feng na introdução ao livro “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). Estas, esclarece o estudioso, metamorfoseiam-se em “raposas-humanas”, encarnando mulheres inteligentes, avançadas, corajosas, capazes de cortar com a tradição em nome de valores universais como o amor e a felicidade.

As “raposas-humanas” são animais que morreram e se transmutaram em espíritos encantados, mantendo as suas características essenciais do mundo animal. Vêm à terra para retribuir dívidas, favores, e auxiliar os humanos, normalmente muito conservadores e limitados. Em Xiao Cui – Uma raposa encantada retribui um favor ela casa com o filho de um mestre de cerimónias de um templo local, Wang Tai Chang. Ela era “incrivelmente bela” (Yao, 2022: 244) e aceita casar com o filho do mestre de cerimónias, Yuan Feng, que tinha fortes limitações intelectuais, dizia-se até que era retardado. A verdade é que esta filha do Imperador de Jade (Yao, 2022: 250), ou seja, do Imperador Celestial, equivalente a Júpiter na cultura chinesa, devolve a inteligência ao rapaz e promove toda a família, que lhe paga com a ingratidão habitual dos humanos, mas se ela aparece milagrosamente no seio daquela gente é para retribuir um favor, como explica quando é insultada por quebrar inadvertidamente um vaso: “Por que é que não podem mostrar alguma clemência? Para ser honesta, admito que não sou humana. A razão pela qual apareci para a sua família é que o seu pai protegeu a minha mãe quando ela fugia de uma tempestade, e eu quis pagar esta dívida de gratidão por ela.” (Yao, 2022: 252). A nobreza deste espírito de raposa é de tão elevado nível ético, que merece o seguinte comentário a Pu Songling no final do conto: “Até uma raposa encantada sabe pagar uma dívida de gratidão, apesar de ter sido protegida inadvertidamente. No entanto, Wang Tai Chang, que tanto recebeu de Xiao Cui, repreendeu-a duramente só por ter partido um vaso. Que desprezível era ele.” (Yao, 2022: 255)

Os contos e histórias aqui apresentados mostram bem que o espírito ecológico chinês vem de muito longe, ou melhor, nunca se perdeu. Os chineses mantiveram, através da sua literatura, um profundo respeito por toda a natureza, que se revela na atenção à diversidade natural. O universo é um cosmos interligado e inteligente, onde cada um ocupa o seu lugar e não deve sobrepor-se aos outros. Todos os seres comunicam entre si e podem transformar-se uns nos outros, porque estão imersos num universo animado, sempre vivo, eterno, ligados à mesma raiz. Quando os seres se metamorfoseiam tudo pode suceder, não o fazem necessariamente para pior. Umas vezes assumem formas positivas, outras negativas, consoante o grau da sua evolução espiritual. As transformações das pessoas em borboletas podem ser boas se os espíritos em jogo também o forem, assim como acontece com os das raposas ao assumirem a forma humana. Estamos imersos num todo manifestando infinitas potencialidades, que muito nos pode auxiliar se o soubermos escutar e respeitar, como nos ensinam as histórias tradicionais chinesas.

Bibliografia

Braga, Teófilo. 2000. Contos tradicionais do Povo Português. Frankfurt am Main: Texto Editora; TFM, Frankfurt am Main.

Coelho, Adolfo. 1995. O Príncipe Sapo. Contos Populares Portugueses. Prefácio de Ernesto Veiga de Oliveira. Lisboa Publicações Dom Quixote.

Gomes, José António (Org.)- 2000. O Príncipe Bezerro. Fiz das Pernas Coração. Contos Tradicionais Portugueses. Ilustrações de Danuta Wojciechowska. Lisboa Caminho.

Kafka. 1975 A Metamorfose. Mem Martins: Publicações Europa-América.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Liang Sanbo e Zhu Yingtai. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.

Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.

7 Nov 2023

Cheng Xiuji, um Pintor, um Imperador e o Livro das Odes

Tang Wenzong (809-840), o monarca que percebeu o grandeza do exemplo, mandou emitir um decreto apontando como Três maravilhas do grande império dos Tang, Sanjue webian, a poesia de Li Bai, a caligrafia de Zhang Xu e a arte da espada de Pei Min.

Como que confirmando essa intuição imperial sobre o valor da poesia, Wang Yinglin (1223-96), o filósofo e ensaísta os Song do Sul, guardou em Kunxue Jiwen a memória de uma relação entre o imperador Wenzong, um pintor e o grande texto clássico Shijing, que reúne poemas e canções de várias tradições, cuja compilação é tradicionalmente atribuída a Confúcio (551-479 a. C.) e é traduzido entre outros, como Livro dos Cantares ou Clássico da Poesia.

Aí se diz que, não estando satisfeito com a figuração «da vegetação, dos animais silvestres e dos retratos de antigas dignidades» de ilustrações anteriores, Wenzong pediu que fossem refeitas as pinturas relativas aos trezentos e cinco poemas. O pintor escolhido foi Cheng Xiuji (804-63) e, se o celebrado poeta dos Tang Du Mu (803-52) o menciona num Encómio como alguém que se distinguiu pelo modo admirável como refez as pinturas que ilustram o célebre texto e que lhe valeriam a promoção a Hanlin daizhao, «talento às ordens», parte do grupo criado pelos imperadores dos Tang como conselheiros eruditos, outras fontes referem-no primeiro como um alto funcionário militar, detentor de títulos de nobreza.

É o caso, raro para um pintor, de um Epitáfio que detalha o seu percurso na hierarquia oficial desde que passou o Exame sobre a compreensão dos clássicos, em 826. Uma terceira fonte, que se interessa mais pela sua qualidade como artista, lê-se no texto de biografias de mais de cem pintores, Tangchao minghualu, que o descreve como «aluno durante vinte anos» do preclaro pintor Zhou Fang (c.730-800). Zhu Jingxuan (activo entre 806-46), o seu autor, escreve: «Desde a era Zhenyuan (785-805) ele foi o único indivíduo na capital cujo avanço [na hierarquia] se deveu apenas à sua mestria como pintor e foi continuamente agraciado pelo favor imperial.»

O caso de Cheng Xiuji, com um imperador e o Shijing repetir-se-ia. Na dinastia Song do Sul, o imperador Gaozong (r.1127-62) ordenou que a sua própria caligrafia fosse utilizada para reescrever os poemas do Shijing e solicitou ao ilustre pintor Ma Hezhi (activo entre 1131-89) que fizesse as ilustrações, de que uma parte se pode ver no Museu do Palácio, em Pequim (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 27 x 383,8 cm).

Qianlong (r.1736-95) também mandou que pintores da sua corte fizessem ilustrações para o texto, que ele próprio reescreveu. De modo característico, foi um projecto grandioso de trinta álbuns, um dos quais se pode ver no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, que demoraram seis anos a ser terminados e brilhariam como uma das maravilhas do seu reinado.

6 Nov 2023

Seda (5) – Deusas e Festas

Divindade da Seda (蚕神) Can Shen

Publicado no hojemacau a 9 de Outubro o artigo , a tratar sobre a viagem da seda de Leste para Oeste da China, a história de Ma Tou Niang (马头娘), a Senhora com Cabeça de Cavalo, ficou a meio.

Na deslocação dessa deusa da seda, Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘) na província de Zhejiang, até Sichuan onde passou a ser Ma Tou Niang, continuamos agora na versão dessa província do Período dos Três Reinos. Aí se refere, após o senhor Wu ter morto o cavalo seu salvador, pois a filha se comprometera casar com quem trouxesse de volta o pai, este sem aceitar tal destino escapelou o prometido genro e colocou a pele dependurada numa amoreira. Ao passar por baixo da árvore, a pele do cavalo caiu sobre a filha, envolvendo-a e encasulada voou até ao Sudoeste da China.

Num extenso amoreiral em Sichuan (Shu) ficou a jovem transformada num corpo de bicho-da-seda e cabeça de cavalo e todas as Primaveras aparecia a segregar longos filamentos brancos entre os ramos das amoreiras, cujas folhas são o melhor alimento para essas lagartas. Por isso, o Imperador Celeste a nomeou Deusa dos Bichos-da-seda. Procriou e começaram a aparecer nesse enorme amoreiral muitos bichos-da-seda na forma de lagartas a alimentarem-se das folhas e a expelir filamentos longos e brilhantes. Essa a razão de em muitos templos a imagem da deusa Ma Tou Niang estar coberta por uma pele de cavalo e à senhora com cabeça de cavalo ser-lhe oferecido sacrifícios para haver prosperidade de amoreiras e bichos-da-seda.

A Deusa do Bicho-da-Seda (蚕神, Can Shen), além de uma divindade estelar, pode também representar o primeiro ser a fazer criação do bicho-da-seda, Lei Zu, esposa do Imperador Amarelo, ou ainda Can Cong, o fundador do reino dos Antigos Shu (Gu Shu 古蜀) deificado Qingyi shen (青衣神), Deus das Vestes Verde-azuis.

Can Shen como divindade estelar é conhecida por Tian-si (天驷), localizada nas constelações do quadrante Leste (青, Qing), o Dragão Verde/Azul (苍龙, Cang Long), e das sete constelações existentes nesse quadrante é a número quatro, denominada Fang (房), com quatro estrelas, Beta, Delta, Pi e Nu.

Em Nanchong (南充), ainda na província de Sichuan, escutamos outra mitológica história sobre a Deusa do Bicho-da-seda. O Imperador Celeste (天皇, Tian Huang) admirava a lealdade de Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘), a Imperatriz do Bicho-da-seda, por ela se ter transformado em lagarta do bicho-da-seda e com os filamentos expelidos pela boca andar a ajudar as pessoas na Terra.

Tocado por a bondade desse coração, mas também furioso por ela o ter trocado, o Imperador Celeste [que na Dinastia Tang passou a ser o Imperador de Jade (玉皇, Yu Huang), quando muitos dos imperadores eram seguidores do Dauismo, e então se realizou a grande estruturação e sistematização do Divino. No Céu apareceu o Imperador de Jade e na Terra, o Imperador tornou-se o representante do Céu aos olhos do povo] enviou soldados para a trazerem de volta ao Paraíso. Apesar da Imperatriz aí viver sem alguma preocupação, não era feliz pois sentia a falta da família e amigos, levando-a a refugiar-se dentro do casulo, sem comer nem beber.

Apercebendo-se da tristeza de Can Hua Niang Niang, o Imperador Celeste usando o poder mágico deu-lhe um par de asas e aprovou, uma vez por ano ela rompendo o casulo regressar voando ao mundo mundano para a cerimónia das Flores do Bicho-da-seda e ir a Shu visitar a família. Quem tiver a sorte de nesse dia ver a Imperatriz voar na viagem de visita à família, terá no ano uma boa colheita de casulos.

LEI ZU (嫘 祖)

Na última década do século XX, Yanting (盐亭) em Sichuan e Yichang (宜昌) em Hubei disputaram o lugar de nascimento de Lei Zu, que introduzira o fio da seda como material de grande potencialidade para tecer. Resolvido esse pormenor a favor de Yanting, aí vamos para visitar o local de nascimento e da sepultura de Lei Zu, assim como o Instituto daoísta e outros inúmeros templos pelas redondezas a homenagear uma filha da terra.

Nos Registos Históricos (Shi Ji) escritos durante a Dinastia Han do Oeste por Sima Qian (145-95 a.n.E.), no capítulo ‘Shi Ji Wu Di Ben Ji’ respeitante aos Cinco Soberanos (Wu Di) pode ler-se: Huang Di, a viver no Monte Xuan Yuan, casou-se com uma mulher de Xi Ling Shi (nome do lugar e da matriarcal tribo).

De uma recolha oral e guardada no livro Yuan Fei Lei Zu (元 妃 嫘 祖) de Liao Zhongxuan (廖仲宣), editado em 2006 por 中国文联出版社, fica-nos a história sobre as origens de Lei Zu, nascida com o nome de Wang Feng e ao casar-se com Huang Di designada com o título de Yuan Fei, por ser a esposa principal do Imperador Amarelo (2550-2450 a.n.E.).

Há quatro mil e quinhentos anos, ainda se usava facas e machados de pedra, e no reino de Xi Ling, habitado pela tribo com o mesmo nome, na Montanha Chun vivia em felicidade um casal, que devido à sua inteligência levava uma boa vida. O trabalho era partilhado entre o marido, Yi Cheng, bom caçador e pescador e a esposa, Qi Liang, uma excelente tecedeira. Habitavam afastados dos aglomerados populacionais da tribo, quando um dia viram chegar um grupo de pessoas transtornadas, muitas já idosas, que se prostrando a chorar contaram a sua aflição. Fugiram da aldeia porque uma enorme serpente tinha comido muitos dos seus familiares.

O casal logo se prestou a acompanhar no regresso à aldeia e ajudar a resolver o problema. Quando aí chegaram, juntaram o restante da comunidade e ensinaram-lhes a usar o arco e a flecha e novos métodos de vida. A aldeia começou a tornar-se abastada, tal os avanços obtidos. Caçava-se animais e vestia-se com novas roupas, tecidas já por as mulheres da tribo, que aprenderam com aquela cândida Senhora.

Regressaram a casa e o tempo foi passando, mas o casal não era totalmente feliz pois ambos tinham já passado os quarenta anos e não conseguiam ter filhos. Uma noite de Verão, quando dormiam, à esposa apareceu uma donzela caminhando com as vestes esvoaçando, convidando-a a chegar à porta da habitação, onde enxergou o chão para fora ser de nuvens e escutou uma ondulante música criada por pássaros. Aí surgiu Wang Mu Liang Liang, sentada com outros deuses a rodeá-la, a dizer-lhe: – Vocês ajudaram caridosamente as pessoas e sempre quiseram um filho. Envio a minha filha para tomarem conta dela e ensinar as pessoas a tecer.

Passando para a mão da senhora uma pérola, esta ao vê-la mais de perto percebeu ser um casulo, de onde saiu um feng huang (凤凰, fénix, um pássaro mitológico) que, volteando por três vezes sobre a mulher, voou para dentro dela. Ao acordar, logo contou ao marido o ocorrido. No ano seguinte, no décimo dia da segunda Lua nasceu a filha e em honra da deusa deram o nome de Wang Feng à criança.

Aos catorze anos, com os pais já muito idosos, passava o tempo a ajudá-los e então a comida começou a rarear. Sem nada para lhes dar de comer, a rapariga desesperada foi a soluçar para o jardim, pois não queria apoquentá-los. Encostada a uma amoreira chorava, quando um súbito vento levou até si algumas amoras [nome do fruto da amoreira parecido com amoras silvestres e denominado em mandarim 桑椹 SangShen] e provando, descobriu terem um bom sabor.

Todos os dias ia colher frutos da árvore, quando certa vez aí vê uma lagarta e olhando-a, pareceu-lhe encontrar semelhanças na cabeça com a de um cavalo. Começou então a prestar atenção a esse animal que vivia comendo as folhas da mesma árvore que também lhe dava o alimento. Uma vez estranhou outra lagarta ter passado um dia a dormir e acordando, tirou do corpo o casaco de cera, deixando para trás essa pele.

Passaram-se dias, semanas, quando umas lagartas se empinaram, parecendo estar a chamar a atenção ao dançar com a cabeça e os anéis da parte do corpo no ar. Observou-as a procurar um lugar entre ramos e depois expelir em baba um contínuo filamento e a colocá-lo como pontos mestres a fazer uma casa. Passaram poucos dias a montar os refúgios, num movimento de boca formando um contínuo 8 e rapidamente deixou de as ver, fechadas em envolventes camadas, produto do vazar do viscoso fio.

Escondida no interior do casulo, a lagarta sofria as metamorfoses no espaço deixado vago à medida da redução do seu corpo, preparando-se assim para renascer como borboleta e após romper o casulo, sair para procriar.

3 Nov 2023

Mas porque é que os alunos chineses não falam?

Por Li Guofeng

No fim de setembro, estive numa conferência numa universidade portuguesa. Uma das comunicações falava sobre as diferenças culturais entre Portugal e a China, dois países que têm histórias, crenças, costumes, etc., tão diferentes. O orador, como tem origem chinesa, abordou a diferença cultural entre os dois países numa abordagem do pensamento, ou seja, todas as acções que explicitamente são diferentes resultam do pensamento tradicional do respectivo povo/país.

Depois de acabar a comunicação, um participante, que também é um professor que conheço, lançou uma pergunta ao orador: “Mas o Senhor Professor, podia dizer-me, afinal, porque é que os alunos chineses não falam nas aulas?”

Pois. É uma boa pergunta. Eu fui um aluno chinês naquela instituição onde se realizou a conferência (e continuo a ser um aluno chinês, mas desta vez já em Lisboa). A pergunta lançada é uma situação existente.

Nos últimos anos, o número dos estudantes chineses em Portugal tem aumentado duma forma substancial em todos os ciclos, licenciatura, mestrado e doutoramento. Entretanto, creio que a maior parte continua a ser os estudantes que vêm cá para fazer intercâmbios da licenciatura e para tirar mestrado. Como estes estudantes são principalmente do curso de Língua Portuguesa na China, os cursos que eles frequentem em Portugal também são os relacionados com a língua, por exemplo, Português Língua Estrangeira (PLE), Linguística, Literatura etc. O que acontece é que, em algum destes cursos, a maioria dos alunos é chineses (ou até, sem exagero nenhum, são todos chineses).

Muito diferentes dos alunos portugueses, ou dos ocidentais em geral, os chineses não são activos e não gostam de dar as suas opiniões/comentários (muito menos críticas) nas aulas. Já me aconteceu várias vezes que o professor português queria ouvir falar os alunos e deixavam-lhes alguns minutos para perguntas e dúvidas, mas, como não esperava, ninguém levantou a mão e a sala estava totalmente silenciosa. O professor, obviamente, sentia-se desmotivado, “triste” ou até irritado (no caso de alguns).

Yiri weishi, zhongsheng weifu/一日为师,终生为父

Os chineses têm um entendimento distinto, em comparação à cultura ocidental, dos professores. Na cultura do País do Meio, o professor não é apenas uma profissão qualquer, mas sim um papel importante para o crescimento da geração futura e, por conseguinte, para o desenvolvimento da nação. Por isso, a sociedade atribui relevância elevada aos professores.

Yiri weishi, zhongsheng weifu/一日为师,终生为父, é uma frase vinda da dinastia Tang (618-907), literalmente quer dizer “Professor por um dia, pai para sempre”, ou seja, o papel de professor tem o mesmo peso dum pai numa sociedade que era eminentemente patriarca e paternalista. Na língua chinesa tradicional, a palavra “professor” é xian sheng/先生, literalmente significa alguém nasce antes de mim, ou seja, mais velho do que eu. Na cultura chinesa, a velhice é o símbolo da saberia porque os velhos, naturalmente, têm mais experiências de vida e conhecimentos deste mundo do que os ainda jovens. Portanto, devido à sua importância e sabedoria, no entendimento chinês, o professor é símbolo de autoridade e verdade. Portanto, tudo o que o professor nos dá é válido, verdadeiro e certo, onde está o espaço de discussão? Se um aluno disser aos colegas que o professor está errado, todos vão rir dele, em vez de pensar se o professor está realmente a cometer erros.

Ren huo yizhang lian/人活一张脸

Mesmo que o professor esteja evidentemente enganado, é provável que também ninguém aponte o erro. O que está em causa aqui é a questão de face/面子. A importância da face na vida social dos chineses tem sido um tema muito quente nos trabalhos académicos. Há uma frase popular muito conhecido: Ren huo yizhang lian, shu huo yizhangpi/人活一张脸, 树活一张皮, o que significa a face é tão importante para o ser humano como a casca para uma árvore. Se o professor for criticado pelos alunos na aula, então, onde está a autoridade e face do professor?

Portanto, resumindo, mergulhando neste ambiente educativo, da escola primária até ao ensino superior, os estudantes chineses vêm o professor como uma figura paterna, à qual se deve o maior respeito e face. Desta forma, não valorizam o pensamento crítico e estão sempre tímidos nas aulas, porque o que diz o professor é, nos seus entendimentos, certíssimo.

Entretanto, isto não significa que os alunos chineses não pensam e não são inteligentes. (Muito ao contrário … vejam lá nas universidades americanas, os alunos chineses estão sempre no topo) Quer dizer, a abordagem pedagógica é uma escolha do docente. Ao contactar estudantes duma outra cultura, seria compensatório ajustar um pouco as técnicas didácticas. Um outro participante na mesma conferência ajudou a responder à dúvida daquele professor, dizendo que: Quando eu era docente, conversava normalmente com os alunos num outro sítio fora da sala de aula, por exemplo, casa de chá, café ou enquanto na durante uma refeição. Fora das aulas, os alunos chineses falam e falam muito. É verdade. Normalmente, depois de acabar a aula e o público basicamente sai, há sempre alguns alunos chineses que rodeiam o professor para conversar, em voz suave, tirando dúvidas ou partilhando acontecimentos interessantes.

Mas as coisas mudam. À medida que os jovens chineses têm mais contacto com culturas diversificadas e começaram a viver numa atmosfera mais aberta, a sua timidez reduz-se gradualmente nos últimos anos. Contudo, de qualquer maneira, ainda não chegou (e provavelmente nunca chegará) ao mesmo nível de abertura dos estudantes ocidentais na sala de aula. Posto isso, ao receber cada vez mais estudantes chineses, não seria interessante e útil conhecer também, mesmo um pouco, a cultura deles? Seja para lazer, seja para melhoria do trabalho pedagógico.

Doutorando do ISCSP/Bolseiro CCCM-FCT

1 Nov 2023

China

Por Henry Miller

Mesmo em menino, o nome China evocava em mim estranhas sensações. Significava tudo quanto era vasto, maravilhoso, mágico e incompreensível. Dizer China era virar as coisas de cabeça para baixo. Como é maravilhoso que esse mesmo nome China desperte no velho que está a escrever estas palavras os mesmos estranhos e incríveis pensamentos e sentimentos.

Uma das lembranças especiais que eu tenho da China é que ela esteve à frente do mundo em tudo. Seja em cozinha, cerâmica, pintura, teatro, arquitectura ou literatura, a China sempre foi a primeira. Impressionante e absurda ilustração disso é o facto de no Japão de hoje, segundo me contaram, os melhores restaurantes serem chineses.

Só há uma arte em que para mim os chineses nunca se desenvolveram: a música. Para meus ouvidos ocidentais, a música chinesa tem um som horroroso. (Contudo, quando vivia em Paris, um viajante que regressava deixou-me uma colecção de discos chineses. Depois de algum tempo, acostumei-me um pouco àquela música esquisita, mas nunca fiquei apaixonado por ela.) Talvez eu esteja errado, mas duvido que a China já tenha produzido um Beethoven, um Bach, um Mozart, um Debussy ou um Schumann.

Recentemente, lendo uma biografia de Gengis Cã, fiquei surpreso ao descobrir que o seu exército penetrara a muralha da China (no século XI) exactamente como os alemães circundaram a Linha Maginot. O que talvez pareça incrível aos chineses de hoje é que, de acordo com alguns eruditos, a grande Muralha foi construída em dois ou três dias! Todo homem, mulher e criança foram postos a trabalhar, de acordo com o relato.

Ouvi um dia uma história igualmente espantosa na sala egípcia do Louvre. O francês que me levou lá para ver o forro do templo de Denderah apontou para o zodíaco sobre nossas cabeças, o qual, disse ele, indicava que a história egípcia datava de 40 000 anos e não de cinco mil, como geralmente nos contam. Nós do mundo ocidental somos muito novos, meros bebés em comparação com os hindus, chineses e egípcios, para mencionar apenas alguns povos. E, com nossa juventude, vão as nossas ignorância, estupidez e arrogância. Pior ainda, a nossa intolerância, a nossa incapacidade até mesmo para tentar compreender os modos de outros povos.

Nós, nos Estados Unidos, somos talvez os piores pecadores. Pensem, por exemplo, que não foram nossos estadistas que conseguiram abrir a porta da China, mas um punhado de jovens e entusiásticos jogadores de pingue-pongue!

Quando me disseram pela primeira vez que eu poderia escrever uma matéria para uma revista chinesa — sobre o assunto que eu escolhesse — fiquei virtualmente sem fala. Depois senti-me aterrorizado. Mas finalmente o que me fez voltar a mim foi a lembrança de que aquilo que eu mais amava nos chineses era humanidade. O ditado romano aplica-se aos chineses ainda mais do que os romanos: “Nada humano está abaixo de mim.” Essa qualidade humana combinada com um belo senso de humor é o atributo salvador de um grande povo. Eu devia também acrescentar a capacidade de persistir, manter-se firme em qualquer circunstância. No famoso livro Siddartha, Hermann Hesse faz seu herói dizer: “Eu sou capaz de pensar, sou capaz de esperar e sou capaz de passar sem.” Para mim essas qualidades tornam um homem invencível, especialmente “esperar e passar sem”. Os Estados Unidos não conhecem nem uma nem outra. Talvez seja por isso que com 200 anos de idade já mostram sinais de estar a cair aos pedaços.

Quando vivi em Paris (1930-1940), meu amigo Lawrence Durrell apelidou-me de “homem com alicerce chinês”. Nunca recebi maior cumprimento. Penso sempre que é possível eu ter sangue oriental em minhas veias. Com isso, quero dizer mongol ou chinês. Muitas pessoas, quando se encontram comigo pela primeira vez, perguntam se eu não tenho sangue asiático. Isso sempre me agrada imensamente. Nunca quis ser tomado como descendente dos alemães, como sou. Mesmo nos meus escritos, noto que tenho afinidade com os chineses. Eu digo o que é, o que foi, o que está acontecendo. Não me entrego a longas análises psicológicas. Penso que o comportamento do personagem deve falar por si mesmo.

E, no entanto, o escritor que eu mais admiro é o russo Dostoievski. Certamente, ninguém poderia estar mais longe dos chineses do que Dostoievski. Pergunto a mim mesmo como será que os chineses consideram a sua obra. Será ele amado ou evitado? Para mim, sem Dostoievski haveria um fundo buraco negro na literatura mundial. A perda de Shakespeare, que também deve parecer um homem selvagem para os chineses, não seria tão grande quanto a de Dostoievski.

É estranho que eu nunca tenha visto os países que mais desejava visitar: Índia, China, Tibete, Japão, Islândia. Mas vivi com eles na minha mente. Uma vez tentei persuadir o editor de uma revista britânica a deixar-me fazer uma viagem a Lhassa, Timbuctu e Meca, sem escalas intermediárias. Mas não tive sorte. Todas as três cidades parecem lugares misteriosos e vivem em minha imaginação.

Tenho consciência de que em toda esta matéria eu não fiz distinção entre a República Popular da China e Formosa (República da China). Eu não estou interessado em ideologias ou política. Acho que pessoas são pessoas em toda parte, mesmo na região mais negra da África. Quando penso na China, penso nos chineses como um povo, não nas coisas que os dividem.

Os Estados Unidos tentam dar ao mundo uma imagem de nação unificada, “una e indivisível”. Nada poderia estar mais longe da verdade. Nós somos um povo dilacerado por conflitos, dividido de muitas maneiras e não apenas regionalmente. A nossa população contém algumas das pessoas mais pobres e mais abandonadas do mundo. Provavelmente contém também as pessoas mais ricas de qualquer país do mundo. Há preconceito de raça em alto grau e desumanidade para com o homem mesmo entre os caucasianos dominantes. Como sugeri antes, os Estados Unidos estão-se a enterrar rapidamente. Acredito que os países antigos, pobres na sua maior parte, tomarão conta em muitos poucos anos. E o povo que inventou os fogos de artifício sobreviverá àqueles que inventaram a mortal bomba atómica. Nós, americanos, talvez um dia cheguemos a todos os planetas e tragamos de cada um deles pequenas quantidades de solo, mas nunca chegaremos ao coração do universo, que reside na alma até da mais pobre e mais baixa das criaturas humanas.

Receio que o velho adágio “Irmãos sob a pele” não seja mais verdadeiro, se é que o foi algum dia. As nações ocidentais não merecem confiança, por mais democráticos que possam vir a ser seus governos. Enquanto os ricos governarem, será caos, guerras, revoluções. Os líderes para os quais nos voltarmos não estão em evidência. É preciso descobri-los. Deve-se lembrar, como disse certa vez Swami Vivekananda, que “antes de Gautama houve vinte e quatro outros Budas”.

Hoje não podemos mais contar com salvadores. Cada homem precisa de contar consigo mesmo. Como disse certa vez um grande sábio: “Não contes com milagres, tu és o milagre.”

1976

1 Nov 2023

Seda (6) – Deusas e Festas

嫘 祖 Lei Zu, deusa da Seda

Em continuação da história de Lei Zu (嫘 祖), a deusa da Seda, recolhida do livro Yuan Fei Lei Zu (元 妃 嫘 祖) de Liao Zhongxuan (廖仲宣), ficamos com as origens de Yuan Feng, cujo título de Yuan Fei passou a ter como principal esposa de Huang Di.

No amoreiral, Yang Feng após ver um bicho-da-seda e o observar, quis perceber como a lagarta edificava o casulo ao se envolver no filamento por ela expelido. Curiosa e tentada a saber o que dentro se passava, agarrando num casulo procurou a ponta daquela meada. Com os dotes da mãe Qi Liang, Wang Feng (Lei Zu) levou o casulo à boca e amoleceu o fio, que rapidamente mostrou a ponta e dai foi sendo desenovelado. Percebeu ser aquele filamento, muito fino, resistente e longo para o habitual, a dar-lhe trabalho para muitas horas.

Por fim, lá conseguiu ver não a lagarta, mas algo diferente e pouco parecido ao que ali se escondera, uma crisálida. Voltou a outro casulo e fez o mesmo e já com a mente a planear as possibilidades de voltar a ter material para tecer, desenrolou outros mais. Juntando os filamentos com as pontas dos dedos formou um fio, fazendo-o passar pela dobadoura e assim o preparou para o montar no tear. Com a experiência de tecedeira, calculou mentalmente o longo fio arranjado e usou uma parte para dar o comprimento da peça. A outra foi para a trama, perpendicularmente cruzada com os fios da urdidura então já colocados. Tecidas as vestes, o espanto foi geral por o brilho e leveza contrários às peças de roupa usadas, pesadas e baças. Logo lhe pediram para também lhes fazer roupa daquela.

Como, não se sabe, mas uma dessas peças foi parar às mãos de Huang Di (o Imperador Amarelo), que perante tão espectacular obra logo percebeu ser proveniente de uma pessoa muito inteligente. Assim resolveu ir conhecer a personagem que a produzira e rumando do Rio Amarelo (Huang he) para Sul encontrou a jovem Yang Feng a Nordeste da actual província de Sichuan, a mais de quarenta quilómetros de Yanting, nas montanhas do Dragão de Jade (Qing Long shan), num lugar chamado Jin ji (Galo Dourado).

HISTÓRIA DE HUANG DI

No período dos Cinco lendários Soberanos (Wu Di, 2550-2140 a.n.E.), o primeiro dos cinco foi o Imperador Amarelo, Huang Di (2550-2450 a.n.E. ou, 2704-2595 a.n.E.), nascido no monte Xuanyuan, onde hoje será o concelho de Xinzheng na província de Henan. Tinha o apelido de Ji, o nome da sua tribo, também conhecida por Xuanyuan. Antes do Imperador Amarelo, a tribo ainda nómada chamava-se Tian Yuan e era matriarcal e apesar de pequena apresentava-se mais evoluída que as restantes no armamento e tácticas de guerra e daí facilmente lhes tomava terras, animais e fazia escravos.

Com a herança metalúrgica da Cultura Hongshan, proveniente da actual Mongólia e territórios do Nordeste, [segundo Ana Maria Amaro, a Cultura da Montanha Vermelha (4700-2900 a.n.E.) era a “mais recuada comunidade chinesa organizada em Estado até hoje conhecida” e vivia onde hoje é a Mongólia Interior.

Os vestígios aí encontrados demonstram a “opulenta cultura e a par de objectos de cerâmica vermelha, com decoração a negro, numerosos instrumentos agrícolas em pedra lascada e polida, de grandes dimensões, e ainda ornamentos, também polidos, em pedras semipreciosas, possivelmente usados pela classe dirigente. Das peças recolhidas, são particularmente interessantes um arado e uma enxada de pedra, de enormes dimensões, o que parece apontar para a importância e para o elevado nível que havia atingido, já, a agricultura naquela região. Recentemente, foram descobertos no mesmo local cemitérios e ruínas de um templo erigido em honra de uma deusa, que se admite estar relacionada com o culto da fertilidade, além de um dragão em jade polido, verde-negro, de cerca de 26 cm, de linhas extremamente harmoniosas.

Esta representação do dragão, exumado na aldeia de Sanxingatala, na Mongólia Interior, é a mais antiga que se conhece na China, o que faz recuar a sua origem emblemática cerca de dois milénios em relação ao que, antes, se admitia”.] Huang Di, já como chefe da tribo Ji, onde hoje será a província de Hebei, envolveu-se numa série de guerras com o grupo Jiuli, o mais numeroso, proveniente da China Central. Descendente da tribo Yi, criada três séculos antes por Fu Xi e de onde mais tarde surgiria também os Dong Yi, comandados por Chi You, a tribo Jiang, chefiada por Yan Di, ou um seu descendente, ligado à Agricultura, separara-se dos Yi e foi fácil para a tribo Ji vencer a do Jiang.

Após uma breve escaramuça em Banquan, hoje a Sudeste do concelho de Zhuolu, na província de Hebei, os Ji derrotaram os Jiang e as duas tribos fizeram uma aliança, para derrotar os Dong Yi comandados por Chi You.

Em Zhuolu ocorreu essa feroz guerra e só após cinco grandes batalhas foi morto o lendário guerreiro chefe Chi You e a sua tribo desmembrada. Os que se quiseram integrar na grande tribo de Huang Di, foram viver para o Nordeste e daí seguiram para a península da Coreia. Já os que não se quiseram deixar absolver dividiram-se, seguindo o grupo Qiang para as fronteiras do Oeste e a maioria, os Miao para Sul. O corpo de Chi You despedaçado foi levado pelos seus quando fugiam, sendo sepultado em cinco lugares diferentes, sobretudo na actual província de Shandong.

Assim Huang Di, herdeiro da indústria do metal, se consolidou como Imperador, unindo a maioria das tribos a viver na parte Norte e Centro do território da actual China, formando o povo Hua Xia, hoje conhecido como Han.
Wang Feng viria a ser designada Yuan Fei ao se casou com Huang Di, a indicar ser a primeira esposa do Imperador Amarelo.

Acompanhava-o sempre nas digressões, aproveitando para divulgar os seus conhecimentos, tanto na produção do bicho-da-seda, como na preparação do fio para tecer. Tal casamento levou a tribo Xi Ling a juntar-se à de Huang Di, servindo de exemplo à integração de outras tribos, criando assim um todo como povo, o Hua Xia, num território cada vez maior e mais próspero, devido à inteligência do governante. Huang Di, considerado como um sábio, governou tão bem que muito tempo houve sem guerras, sendo possível as pessoas dedicarem-se às artes e à criação de utensílios, continuando a preparar os arquétipos para uma sociedade sedentária.

Consta ter o Imperador Amarelo mais de cem filhos e com uma grande experiência, no seu reinado fizeram-se inúmeras invenções, tornando a vida quotidiana muito mais fácil. Desde a escrita, [cujos registos eram feito desde o período de Fu Xi por nós em cordas], à construção de casas, carroças e barcos, usando já um instrumento de orientação que mais tarde levou à criação da bússola. Ficou credenciado como ligado ao inventor da Medicina, dos manuscritos, das roupas, da criação do bicho da seda e do tecer a seda. A sua principal esposa foi a primeira pessoa a criar o bicho-da-seda e a desenovelar um casulo, ensinando a transformar o filamento do casulo em fio para fazer roupa e por isso Lei Zu, Deusa da Seda (Can Shen), é apelidada Xian Can, a Iniciadora da Produção de Seda.

Luís Gonzaga Gomes (1907-76) no livro Chinesices, edição do Instituto Cultural de Macau e Leal Senado, 1994, refere-se a Lui-Tch’ôu (nome em cantonense, enquanto em mandarim é chamada Lei Zu): “Data, pois desde então a indústria da seda na China, nascida de um momento de feliz curiosidade da imperatriz Lui-Tch’ôu, enquanto o seu bom e diligente esposo, tendo conseguido a unificação do vasto império, se achava ocupado em rasgá-lo de lés-a-lés com amplas estradas e em construir barcos, para o transporte de mercadorias, entre os vários pontos do país. Havia fartura e felicidade na época da sua sábia governação; por isso, o povo desconhecendo o flagelo da fome, podia entreter-se na fabricação de frautas (flautas), olifantes (trompa curva de marfim), teorbas e alaúdes, todos inventados no seu próspero reinado, que teve lugar há mais de quatro mil e tantos anos”.

31 Out 2023

As Dez Etapas do Chan e os Cinco Bois de Han Huang

Chen Hongshou (1598/9-1652), com a linha livre e caprichosa do seu pincel, fez uma pintura representando o momento em que Laozi (571-471 a. C.) está na iminência de passar um curso de água, uma fronteira em direcção ao Ocidente, a partir da qual mais ninguém tornaria a ver aquele que o historiador Sima Qian afirma ter sido incumbido de preservar documentos históricos.

O sábio é representado na pintura (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 30,2 x 26,7 cm, no Museu de Arte de Cleveland) seguindo vagarosamente montado num boi e já cumpriu a sua missão, deixando para trás o clássico do daoísmo, o Daodejing que através dos tempos iria assegurar a sua fama e glória, como indicam as flores de híbisco que na pintura estão atrás dele.

O animal lento, paciente, confiável e obstinado que o transporta também teria um lugar na memória dos vindouros, com um vínculo particular ao budismo chan. Num dos instrumentos experimentais do chan, o gong’an, mais conhecido com o nome japonês koan, há um que conta como um monge que trabalhava na cozinha do mosteiro foi interpelado pelo mestre àcerca do que estava fazendo. «Nada de mais», respondeu o monge «apenas pastoreando o boi». O mestre perguntou-lhe então «como» o estava fazendo. O monge respondeu: «Cada vez que o boi se afasta para ir comer erva, levo-o de volta ao trabalho.»

No século XII o mestre do chan, Kuoan Shiyuan (activo c.1150) propôs uma série de dez etapas de meditação, para o que escreveu dez poemas e dez ilustrações, que o praticante devia seguir para purificar o corpo e o espírito, que tem no centro a figura do boi, antiga analogia referida no Sutra do Lótus como o «boi branco», metáfora para a transcendência do samsara, o ciclo contínuo da morte e da vida. Em Shiniu tu, o mestre começa com o poema Em busca do boi, cujo primeiro verso diz: «Na grande vastidão afastando os matos, vou procurando, perseguindo-o». Nessa dinastia Song (960-1279) a figuração da figura do boi alcançaria grande popularidade mas antes já fora objecto de uma pintura excepcional.

Han Huang (723-787), um alto funcionário da dinastia Tang (618-907), é o autor do rolo horizontal Cinco bois (Wuniu tu, tinta e cor, 101,5 x 55,3 cm, no Museu do Palácio, em Pequim), considerada a mais antiga pintura sobre papel. A representação não possuía nenhum carimbo ou palavras a acompanhá-la mas tem hoje as marcas de poemas e carimbos dos coleccionadores, como imperadores, que a possuiram.

Mas dir-se-ia que a expressividade do traço gracioso e seguro de Han Huang herdara a mestria de pintores e calígrafos que o precederam, cada boi surgindo inteiramente eloquente só no risco. No final do processo proposto por Kuoan Shiyuan, o praticante, encontrado o boi, está de Regresso ao Mundo e, acompanhando o poema, o mestre mostrou-o radiante de alegria diante do Budai, o buda que ri.

30 Out 2023

O vento nas ameixieiras de Wang Shishen

Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos:

Enquanto o vento vai soprando

na Ravina Ocidental

quem permitiu que o poema

se completasse sozinho?

Tanta pena da ameixieira,

a solitária do frio,

que não tem companhia.

Daqui apenas se avistam

os poucos ramos que sobraram,

Flores caídas enchem já o chão

e a Primavera ainda não terminou.

Um coração amargurado,

apertado como uma semente,

consegue persistir

em tais pensamentos constantes (…)

A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros.

Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton).

Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: «

Em busca de flores de ameixieira com amigos,

Aproveitamos a frescura de um dia claro,

Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão,

Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo,

Caminho para a frente e para trás,

como se habitasse numa pintura.

Noutro poema diz:

O distinto badalar de um sino

rompe o silêncio nas montanhas,

Mil anos depois todos os heróis

das Seis dinastias estão esquecidos,

Sob uma janela budista

apreciamos os dias ociosos,

Ramos e flores de ameixieira

guardam para si todo o vento Leste.

18 Out 2023

Confúcio na cultura portuguesa – 4

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

III

Em Portugal, o Visconde de Villa-Moura (1877-1935), publica na revista “A Águia”, propriedade e órgão da Renascença Portuguesa1, no Nº 99\100, de Março-Abril de 1920, o conto ‘O Boneco’2. A revista “A Águia” era uma importante publicação mensal de literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social, dirigida por António Carneiro e Álvaro Pinto. Ora, esse conto, ‘O Boneco’ é, nada mais, nada menos do que Confúcio.

O Visconde de Villa-Moura, de seu nome completo, Bento de Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho Lobo, nobilitado pelo Rei D. Carlos em 1900 com o título de Visconde, era formado em Direito pela Universidade de Coimbra, grande proprietário rural em Baião, no Douro, e autor de uma obra literária muito extensa e variada3 , esteticamente acondicionada no decadentismo e politicamente muito próximo do integralismo lusitano. João Alves4 , um dos seus primeiros estudiosos, defende que “António Nobre e Vila-Moura foram os criadores do decadentismo em Portugal”.

Por sua vez, António Cândido Franco refere que a “sua obra, quando exalta o erotismo e pugna pelo amor livre, apresenta afinidade com a de Teixeira Gomes e procura as suas fontes gradas em Fialho, no Fialho das perversões rebeldes, a quem de resto dedicou um livro-estudo, Fialho de Almeida (1917), e em Camilo, o Camilo do amor pecaminoso e dos amantes penitentes, a quem também dedicou vários trabalhos, entre eles, Camilo Inédito (1913) e Fany Owen e Camilo (1917)”5. Bem diferente é a crítica de Óscar Lopes6 que não esconde o seu ferrete ideológico, comunista, quando aponta as questões “esteticistas e fascistas” ou o “sentido monarco-fascista e católico integrista” que julga ter encontrado em alguns dos seus livros. Amigo e correspondente de Fernando Pessoa, a obra do Visconde de Villa-Moura está por descobrir, por estudar, quiçá por reeditar.

O conto de Villa-Moura, ‘O Boneco’, foi dedicado a António Cândido7, a águia do Marão, como lhe chamou Camilo Castelo Branco, e apresenta-nos a história de António Marcos, um burguês muito rico e misógino, que vivia com uma velha criada, Teresa, completamente isolado da mundanidade e que “estudava uma interpretação individualista do platonismo, que alterava num sentido mais aristocrático8”.

Em casa “mandava o espírito de Platão, de Aristóteles, de Séneca, de criaturas, em que a Teresa nem por fumos sonhava, e …. um boneco, um autêntico e precioso boneco, a figura de Confúcio, em fina porcelana9”. Com um remoque subtil aos colecionadores e a outros amantes da chinoiserie dizia que “a figura de Confúcio, que Marcos havia trazido de Saxe, e não directamente da China, era uma maravilha. Por ele tinha seguido pelo Elba até ao Báltico, para policiar o seu acondicionamento e jornada10”.

Afinal ‘O Boneco’, Confúcio, era um relógio falante : “o Dr. Kong falava, não já para expor aos seus três mil discípulos a súmula do Ta-hio, mas sobre a pressão dum botão disfarçado em flor à fímbria da túnica, para cantar, numa voz metálica, a característica e impressionante voz dos surdos, aquela legenda do fatídico relógio de Colónia : Todas as horas ferem, a derradeira mata !…11”. Percebe-se que o autor manifestava algum incómodo por se perorar com muita frequência sobre Confúcio e seus ensinamentos, sem ler as suas obras e os comentários dos seus discípulos, porque as repetições se assemelhavam a transgressões no limite das deturpações.

O relógio estava colocado numa estante e “arrumavam-se a seus pés, suas principais obras, o Ta-hio (Grande Estudo), o Tchung-yung (Fixidez do Meio) e o Lung-yu (Diálogos Morais) – flores exóticas da Filosofia, e que ali figuravam como outros tantos símbolos da alma recta e compungida do iluminado12”. Um dia, já muito doente, e sentindo a morte a aproximar-se, António Marcos chama a criada e manda queimar num braseiro todo o seu grande sistema filosófico, “uma interpretação individualista do platonismo, que alterava num sentido mais aristocrático”13, escrito em cadernos durante anos a fio, suspirando, “foi um passatempo!14”. A “Teresa, que andava como sonâmbula naquela tragédia da mais extravagante alquimia, em breve ateou fogo à papelada, que brilhava sobre os restos negros a espiguilha misteriosa e vermelha, logo morrente, da filosofia de António Marcos, e lhe levara uma vida a grafar”15.

Entrega à criada um documento assinado por si, conferindo-lhe a posse de ‘O Boneco’ : “por ele é teu o Chinês da sala grande ! É o melhor traste da casa! Nunca o vendas! E se algum dia sentires miséria, antes o partas! Chover-te-á dos seus cacos a abundância! 16”. Dito isto, morreu. Então, a velha Teresa, atormentada pela morte do patrão e apatetada pela insólita herança que lhe coube, “entrou na sala grande quase a correr, e sem dar conta da multidão de figuras, que , aquela hora, envoltas do fumo, pareciam igualmente partir, dirigiu-se ofegante, nervosamente agarrada à figura fria do Dr. Kong, para a camara torva do Morto.

Mas antes que chegasse junto do defunto, perto do qual pensara em pousá-lo, ao passar pela cruz de pau negro que, fronteira ao leito, se espalhava, a toda a altura da parede, embaraçou-se nas réguas do velho sinal, pelo que o pesado fardo lhe deslizou dos braços, desfazendo-se no chão, em cacos, por entre a chuva dos mais finos tinidos, à mistura do grito civilizado, amarelo, dalgumas centenas de esterlinas, que António Marcos havia confiado de suas entranhas para prover ao futuro da maquinal companheira de sempre17”.

O humor camiliano está presente neste desfecho inesperado, onde uma pequena fortuna em libras de ouro, guardada nas entranhas de ‘O Boneco’, parece pulverizar os remorsos da velha ética confuciana.

Esta exumação da dimensão sapiencial dos ensinamentos confucianos está em linha com uma modernidade pendurada num sistema de conceitos que mais tarde se irão alimentar de Marx, Nietzsche e Freud , na ressaca da erosão dos valores e dos poderes após o termo da primeira grande guerra.

IV

O Confúcio de Manuel da Silva Mendes e o Confúcio do Visconde de Villa-Moura, continuam a ser um e um só.

Silva Mendes valoriza a inquietação do pensador e a sinceridade dos combates que travou para colocar em prática as suas ideias, o ser contra o ter. Este idealismo , profundamente ligado a um devir emocional, constrói uma ética e uma moral de pensamento e acção, dentro de uma realidade inexoravelmente maior do que o alcance da individualidade. A liberdade é a grandiosa energia, a substância da vida em comunidade autêntica. Nas derivações históricas do confucionismo, a liberdade parece transformar-se numa espécie de exílio moral ou numa nota de rodapé da história dos povos.

O Visconde de Villa-Moura, preocupado com o excesso amplificante da razão confuciana, introduz um jogo irónico no pathos do seu auditório, misturando o vil metal, o ouro, com a angústia e a solidão existenciais, porque, reflecte de si para si, “nas letras, como afinal em tudo, os ignorantes têm em menos estima o feitio do que o peso. São para o Pensamento, para a Ideia, o que o ourives estúpido é para o oiro lavrado. Fiam da balança o que ninguém pode fiar deles, do seu juízo, naturalmente muito reduzido em poder de selecção, em critério de escolha18”.

Depois de ter lido O Mandarim, de Eça de Queiroz, encontrou na desconstrução de um símbolo da moda intelectual, Confúcio, o caminho para uma abordagem polissémica da consciência infeliz , de Hegel e de quase todo o idealismo alemão. É nesse referencial de melancolia que afirma19, “Eu leio Nietzsche como os estudantes de piano tocam escalas – por exercício”, terminando o conto sem devolver à velha criada o sentido da responsabilidade pela sua nova identidade. E é nesta incisão nietzcheana que se pode inscrever o seu erotismo misógino quando afirma, “amai o amor, não ameis exclusivamente alguém !”20 em contraponto com essa descrição com tantas estranhas referências : “a boca do Filósofo, de expressão fixa, fria como a boca da rocha, somente aberta ao fio branco e gelante da mais cristalina doutrina, jamais havia inspirado, em sua vida consciente, o perfume dum beijo ; ignorando, de igual sorte, a alma dos lírios, chagas olorosas da crosta terrena, mudável ao sabor das estações, tal qual a pele das cobras, que em seus infinitos ninhos, aquela abriga !”21.

Contudo, teremos de esperar vinte e três anos, por Agostinho da Silva que publica em 1943, uma breve e singela biografia, O Sábio Confúcio22, isto é, um Confúcio popular e acessível a todos , com uma cuidadosa aproximação a uma diferente espiritualidade.

Era o regresso do Confúcio do povo, com ideias simples e eufóricas no indefinível sagrado\profano das argumentações, disponível para ser aprisionado pela retórica negra do poder político.

ANEXO

Carta da Associação de Confúcio23

Aos Exmos. Srs. Directores em Ch’io-chao e Ch’un-chao

De há muito que a montanha da Barra (Má-chu-kók) era tida como um lugar célebre.

Os literatos compunham nela as suas odes e gravavam nas suas pedras, sem nunca isso lhes ser proibido por pessoa alguma.

Por exemplo, Sai-u, em Chit-kóng, Pak-fá-chao, em Uai-chao, e em todos os distritos, prefeituras e províncias que tenham lugares por pouco célebres que sejam, jamais se proibiu que pessoas fossem passear e disfrutar das paisagens desses lugares e gravar poesias nas suas pedras.

Isto são manifestações próprias de indivíduos de raça culta que, quando lhes vem inspiração, compõem as suas estrofes, deixando assim vestígios da sua passagem para os vindouros, e nunca ninguém lhes pôs qualquer embaraço.

Daqui se vê que em todo o mundo se procede do mesmo modo, mesmo nas regiões as mais afastadas.

Os sentimentos dos homens têm sido mesquinhos nestes últimos tempos mais próximos, resultando disso a depressão da doutrina mundial.

Se não procurarmos expandir a doutrina de Confúcio, não poderemos efectuar a regeneração da humanidade. É isso o que nos preocupa constantemente.

No ano cíclico Iam-sôt, a sede da Associação de Confúcio em Pekim, no intuito de expandir a doutrina de Confúcio, dirigiu uma carta à filial de Macau, convidando-a a que propagasse a mesma doutrina e gravasse uma lápide para esse fim, a fim de servir de recordação.

Em vista disso, reunimo-nos em sessão (cópia de cuja acta vai junta) e, considerando que a montanha da Barra (Má-chu-kók) é um dos sítios aprazíveis de Macau e onde existem blocos e pedra imponentes, cheios de inscrições poéticas, resolvemos, no ano passado, contratar operários para, num desses blocos, gravar as letras Ch’eong-meng-k’óng-kao (que a doutrina de Confúcio se torne resplandescente), esculpindo-se também neles, para servir de recordação, os motivos que nos levaram a fazer isso e os nomes dos promotores.

Esses trabalhos ficaram concluídos em dois meses.

O nosso fim único e exclusivo era ter um meio que fizesse constantemente lembrar a todos as doutrinas de Confúcio, tal qual o tambor e o sino servem para chamar a atenção dos seres viventes.

Além disso, Confúcio é o mestre arquissecular dos chineses, e o seu nome, mesmo na Europa, é venerado grandemente pelos literatos de fama.

Quando resolvemos mandar fazer a referida inscrição, não nos passou pela mente que havia de aparecer alguém que a fosse borrar. Não sabemos se esse acto foi feito com a vossa aprovação. No entanto, certos como estamos da vossa inteligência e cultura, não acreditamos, de maneira alguma que V. Exas. tivessem ordenado tal acto.

A crença nas religiões é do livre arbítrio de cada qual, conforme está decretado na constituição do País.

Não existe entre nós inimizade alguma.

Além disso, nenhuma outra religião hostiliza as doutrinas de Confúcio.

Ponhamos de parte o passado. Somos todos chineses e não devemos expor-nos ao ridículo dos estrangeiros.

O dia 18 do corrente é o 2402º aniversário do falecimento de Confúcio.

Com o fim de regularizar o nosso procedimento futuro, tencionamos restaurar a inscrição feita na pedra (da montanha da Barra) a fim de que a doutrina de Confúcio brilhe como o sol e a lua e possa incutir uma pequena parcela de rectidão no coração dos homens.

Sabendo perfeitamente que V. Exas. têm sempre muito a peito tudo o que se passa no mundo e que são modelos dos seus concidadãos, pedimos-lhes que nos auxiliem a proteger essa pedra, prestando assim culto à doutrina de Confúcio.

É-nos escusado chamar a atenção de V. Exas. , pessoas inteligentes e cultas, para o facto de que a nossa associação é uma corporação pública, constituída por todos os chineses aqui estabelecidos, e não uma corporação particular, formada apenas por dois ou três indivíduos.

É quanto temos a comunicar a V. Exas., rogando-lhes o favor duma resposta.

Desejamos-lhes saúde.

Acompanha esta uma cópia da acta da sessão.

Notas e referências:

(a.a.) Ch’oi-men-hin e Chiong-san-nông.

(selo) Filial da Associação de Confúcio de Macau.

9 da 4ª lua do ano 2475º do nascimento de Confúcio.

Idêntica carta foi enviada a cada uma das prefeituras de Ch’io-chao-Cheong-chao e Ch’un-chao.

Macau, Repartição do Expediente Sínico, 13 de Novembro de 1924.

Sobre a Renascença Portuguesa, ver Alfredo Ribeiro dos Santos, A Renascença Portuguesa : Um Movimento Cultural Portuense, prefácio de José Augusto Seabra, edição da Fundação Eng. António de Almeida, 1990, 285 pp. ; Paulo Samuel, A Renascença Portuguesa. Um Perfil Documental, ed. Fundação Eng. António de Almeida, 1990, 397 pp. .

Todas as referências a este conto remetem para a publicação na Revista ‘A Águia’.

Por exemplo : A Moral na Religião e na Arte, 1906 ; A Vida Mental Portuguesa : psicologia e arte, 1909 ; Vida Literária e Política, 1911 ; Nova Sapho, 1912 ; Doentes da Beleza, 1913 ; Camilo Inédito, 1913 ; Boémios, 1914 ; António Nobre : seu génio e sua obra, 1915 ; Fialho de Almeida, 1916 ; Grandes de Portugal, 1916 ; As Cinzas de Camilo, 1917 ; Pão Vermelho : sombras da grande guerra, 1924 ; Cristo de Alcácer, 1924 ; Irmã das Árvores, 1924 ; Entre Mortos, 1928 ; O Pintor António Carneiro, 1931 ; Novos Mitos, 1934.

“Vila-Moura e o Decadentismo Português”, in PRISMA, Revista Trimestral de Filosofia, Ciência e Arte, [direcção de Aarão de Lacerda], Nº 4, 1937, pp. 202-207.

“Visconde de Vila-Moura” , in Fernando Cabral Martins, coordenação, Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Editorial Caminho, 2008, pp. 896-897.

Entre Fialho e Nemésio. Estudos de Literatura Portuguesa Contemporânea, Vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 417-420.

António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922), natural de Amarante, formado em direito pela Universidade de Coimbra, grande orador, ministro, par do reino e presidente do parlamento. Integrou o célebre grupo dos ‘Vencidos da Vida’, com Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, entre outros. As suas obras principais são as seguintes : Princípios e Questões de Filosofia Política, 1878 ; Orações Fúnebres, 1880 ; Discursos e Conferências, 1890 ; Discursos Parlamentares, 1894.

A Águia, Nº 99\100, Abril e Maio de 1920, p, 79.

Idem, p. 82.

Idem, p. 83.

Idem, p. 84.

Idem, p. 84.

Idem, p. 79.

Idem, p. 87.

Idem, p. 87.

Idem, p. 87.

Idem, p. 88.

Vida Literária e Política, Porto, Magalhães & Moniz Editores, 1911, pp. 97-98.

“Flores de Vidro”, in Contemporânea, Revista Mensal, Ano III, Nº 10, Março de 1924, p. 11.

A Águia, Nº 99 e 100, Março e Abril de 1920, p. 80

Idem, p. 80.

Porto, Oficina de S. José, 1943, 29 pp.

Publicada pelo Padre Manuel Teixeira no Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau [do qual era Director e Editor], Ano e Volume LXXVII, Janeiro-Fevereiro de 1979, Nº 888\889, pp. 106-108. O governador Gabriel Maurício Teixeira fez publicar no Boletim Oficial da Colónia de Macau, de 8 de Janeiro de 1942, a Portaria Nº 3327, a aprovação dos novos “Estatutos da Associação Confuciana de Macau”, completamente reformulados em relação aos anteriores, que eram de 1909.

17 Out 2023

Confúcio na cultura portuguesa – 3

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

Em 1915 o professor Camilo Pessanha, poeta simbolista e sinólogo, profere uma conferência1 , em Macau, sobre a cultura chinesa e aborda inevitavelmente o legado de Confúcio deste modo : “Mas a verdade é que Foc-Sang salvando a obra de Confúcio, salvou, para transmitir à posteridade, todo o património intelectual do povo chinês. Confúcio foi principalmente um compilador. O conferente expôs, resumidamente, o objecto dos livros de Confúcio, um por um, mostrando como neles se encontram os antigos cantos, as antigas lendas, a velha história, as velhas leis, os velhos ritos e a velha moral do povo chinês.

A propósito do Livro das Transformações, anotado por Confúcio e já velho de mais de mil anos quando foi anotado, deu o conferente uma ideia da antiga concepção chinesa, dualista, do Universo, e dos dois símbolos pelos quais essa concepção é ordinariamente representada : o ma-li-u e os oito kua – de que o conferente fez o esboço no quadro preto e explicou o sentido. Concluindo esta parte da sua exposição, disse o conferente que da própria natureza da obra de Confúcio, do seu duplo carácter de enciclopédia e de monumento étnico colectivo, resulta em grande parte o alto prestígio que ela tem disfrutado sempre, e continuará a disfrutar através dos séculos, entre o povo chinês.

É e continuará a ser o livro sagrado da China, porque nela o povo chinês encontra, na sua expressão mais adequada, mais alta e mais pura, o seu próprio pensamento e o seu próprio sentimento – a própria alma chinesa”. Por estas palavras se infere o seu continuado estudo da cultura e da filosofia chinesas, que três anos antes já tinha confidenciado ao seu amigo Carlos Amaro2 : “E qual outro poderia ser aqui senão estudar a língua chinesa, os costumes chineses, a arte chinesa ? A solidão intelectual e moral nestes meios é absoluta”.

Abrindo um parêntesis para mostrar o atraso da nossa historiografia filosófica. Perto do fim dos anos trinta M. Gonçalves da Costa3 publica um estudo pioneiro em língua portuguesa sobre a filosofia chinesa antiga, lamentando “o ostracismo a que nas escolas do Ocidente se votavam as ricas fontes da sabedoria Oriental, procedendo-se como se a investigação filosófica se esgotasse nos sistemas gregos e seus comentadores escolásticos católicos”4. O autor considera Confúcio como o “mestre que se tem de ouvir para que a China volte à sua tradição e ao seu significado no mundo”5.

Mas, o confucionismo possui uma significação flutuante, vaga e imprecisa6, ora como sistema religioso, ora como padrão ético, num percurso paralelo que se confunde. Sebastião Rodolfo Dalgado7 nota que o “confucianismo é o nome que os europeus dão à religião ou, antes, ao naturalismo ético, estabelecido na China por Confúcio, Kung-fu-tze, no século VI antes de Cristo”. Essa ambiguidade, longe de se filiar numa ética da virtude, pode ser colocada ao serviço de poderosos argumentos conflituantes com as liberdades e com o sistema político de governação. Simon Leys8, que é o pseudónimo do sinólogo Pierre Rickmans, marcou o ponto fulcral dessa ambiguidade : “Com efeito, o confucionismo de Estado deformou o pensamento do Mestre para o adequar às necessidades do Príncipe ; nesta ortodoxia oficial, faz-se um uso selectivo de todas as suas afirmações que prescrevem o respeito das autoridades, ao passo que outras noções, não menos essenciais mas potencialmente subversivas, são largamente escamoteadas – é o caso da obrigação de justiça que deve moderar o exercício do poder e, sobretudo, do dever moral dos intelectuais de criticar os erros do soberano e de se oporem aos seus abusos, mesmo à custa da própria vida. Como consequência destas manipulações ideológicas, o nome de Confúcio acabou por se ver estreitamente associado ao exercício milenar da tirania feudal. No século XX, para a elite progressista, a sua doutrina tornou-se sinónimo de obscurantismo e de opressão”. Também Bertrand Russell9 no seu já clássico The Problem of China, apontava alguns desvios à antiga pureza doutrinária.

E durante a revolução cultural maoísta, outro dos extremos do totalitarismo ideológico, escreve Henry Kissinger10, os “estudantes universitários e professores revolucionários de Beijing desceram à aldeia natal de Confúcio, jurando pôr termo à influência do velho sábio na sociedade chinesa de uma vez por todas queimando livros antigos, esmagando placas comemorativas e arrasando os túmulos de Confúcio e dos seus descendentes”. Ana Cristina Alves11, sinóloga portuguesa contemporânea, actualiza essas perspectivas, advertindo que “o confucionismo perdeu força na China durante o século XX, com a implantação das primeira (1912) e segunda repúblicas (1949). Actualmente está de regresso à casa-mãe e veio incorporado no Socialismo Espiritual dos novos tempos reformistas”.

A contribuição do génio romanesco de Agustina Bessa-Luís proporciona-nos esta síntese admirável em A Quinta-Essência12 : “Ricci não podia ficar indiferente ao pensamento de Confúcio, um agnóstico desprendido de toda a metafísica, criador duma moral fundada na natureza do homem sem os recursos do mistério. Isto devia confundir Ricci, para quem as práticas religiosas pertencem ao lado secreto da mesma natureza humana.

Possivelmente há muito de verdade na aproximação jesuíta do Cristo e de Confúcio, patente na fachada da igreja de S. Paulo. Não foi um simples discurso habilidoso, mas alguma coisa mais séria. Kongzi, o Confúcio dos padres da Companhia, ensinava quatro coisas : a moral, as letras, a lealdade e a boa fé. Ele furtava-se ao erotismo que, no seu tempo, desfrutava dum prestígio poético que lhe conferia qualidade recreativa e encantadora. Era uma tertúlia de mestre e discípulos em que tanto um como os outros interrogam e respondem. A dialéctica da teoria e da praxis foi introduzida por Confúcio antes de Marx a ter introduzido como ideia nova. A técnica do mestre baseava-se na polidez, ou nos ritos ; a civilização chinesa resultou desse enorme quadro de maneiras a que Ricci acabou por anuir”.

Claro que os extremos se conciliam, como notava Benjamim Videira Pires SJ13 que também escreveu um interessante artigo, “A Face Oriental de Cristo”14 , onde observa que a “esperança que Confúcio pôs na bondade da natureza humana, encontramo-la cumprida no Deus que assumiu essa natureza humana e nos anunciou a paz como o bem essencial desta vida”.

Mas, fiquemo-nos apenas pelos anos vinte do século passado, com dois autores ainda pouco conhecidos, um em Macau, Manuel da Silva Mendes, e o outro em Portugal, o Visconde de Villa-Moura, que se debruçaram sobre a vida e o legado de Confúcio. De modos bem diferentes, é claro.

II

Em Macau, Manuel da Silva Mendes (1867-1931)15, um dos representantes mais notáveis da intelligentzia portuguesa, professor, jurista e sinólogo cujos interesses intelectuais se centravam no taoísmo filosófico e na estética , tinha uma visão larga dos problemas, “a vida, para ser vida, tem de ser activa, contrariada, inquieta, difícil, penosa, agra mais tempo do que doce, fértil em surpresas, encaminhada a um ideal de irrealização certa. Quietismo, neste mundo sub-lunar, é biologicamente falando, como dizia o outro, sonolência, não te rales, deixa correr o marfim ; moralmente, é resolução covarde de viver”16. Esta ressonância heideggeriana da vida inautêntica parece ser um caminho problemático ao conflituar com as possibilidades da liberdade, que no limite se posiciona como um ataque à formação do ethos.

Publicou no jornal ‘O Macaense’, de 10 de Outubro de 1920, um pequeno artigo sobre ‘Confúcio’17, sintético mas de grande densidade especulativa e cultural. Adverte-nos Manuel da Silva Mendes, “não se leiam, porém, as obras do Sábio sem suficiente preparação”18. Porquê, perguntará o leitor curioso. Exactamente porque, “os tempos são tão recuados, tão diferentes das antigas as modernas linhas do pensamento, os antigos costumes e instituições estão tão longe dos modernos, é tudo tão diferente hoje do que era sob as antigas dinastias chinesas, que correm risco, sem que o leitor saiba transportar-se em mente a tão distantes tempos, os seus escritos de ficarem incompreendidos. Foi por isto que o Sábio, na Europa, durante séculos passou por ser meramente fundador de uma religião, a que se chamou confucionismo ; religião que todavia, qua tali na China nunca existiu nem Confúcio jamais pregou”19.

Na opinião de Manuel da Silva Mendes, o segredo da longevidade do legado de Confúcio, registado e difundido pelos seus discípulos, residiu na simplicidade contida neste pormenor : “ora, quanto os antigos sábios chineses ensinaram, pela mudança dos tempos, dos costumes, das instituições, se foi perdendo ou tornando obsoleto e seus nomes no olvido pouco a pouco foram caindo : só o de Confúcio, porque falou do coração humano, dos mais lídimos sentimentos da alma humana, daquilo que na Natureza não tem poder os séculos de alterar, ficou. E ficará ”20. Manuel da Silva Mendes captou muito bem a essência21 da ética e da moral confucianas, mas afastou-se de uma praxis que subalternizava as liberdades.

(continua)

Notas e referências

Transcrita inicialmente no jornal O Progresso, 21.03.1915. Reproduzida em Monsenhor Manuel Teixeira, Liceu de Macau, ed. Direcção dos Serviços de Educação, Macau, 3ª edição, 1986, p. 389.

Carta enviada de Macau em 21 de Setembro de 1912, em Daniel Pires, Camilo Pessanha : Correspondência, dedicatórias e outros textos, ed. Biblioteca Nacional de Portugal\Editora Unicamp, Lisboa\Campinas, 2012, p. 186.

Filosofia Chinesa Antiga : da ética à metafísica, edição do autor, 51 pp. , 1980. Este estudo data de 1937 e foi apresentado no Instituto Beato Miguel de Carvalho como tese de licenciatura em Filosofia, tendo sido publicado na Revista Brotéria em 1939. O autor refere a amizade com Domingos Tang e o auxílio deste para elucidar algumas dúvidas. Sobre Domingos Tang, ver, Os Insondáveis Caminhos de Deus. Memórias de D. Domingos Tang SJ, Arcebispo de Cantão, 1951-1981 , Editorial A.O., Braga, 1990.

Idem, p. 5.

Idem, p. 11.

Mesmo nas línguas estrangeiras : Dicionário da Língua Galega de Isaac Alonso Estravís, Sotelo Blanco Edicións, 1995, p. 390 ; Dizionario Italiano Sabatini Coletti, Giunti, 1997, p. 557 ; Le Grand Robert de la Langue Française, Le Robert, Paris, 1992, Tome II, p. 816 ; The Oxford English Dictionary, Clarendon Press, Oxford, 1998, Vol. III, p. 719 ; The Collins Concise Dictionary of the English Language, Collins, 1989, p. 235 ; Diccionario de la Lengua Española, Real Academia Española, 1984, Tomo I, p. 358 ; Enciclopedia del Idioma de Martín Alonso, Aguilar, Madrid, 1958, Tomo I, p. 1175. Uma excepção, pode ser encontrada em Grand Usuel Larousse, Larousse-Bordas, 1997, Vol. 2, p. 1706.

Glossário Luso-Asiático, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1919, vol. I, p. 303.

Ensaios sobre a China, Livros Cotovia, 2005, p. 248.

“Apart from filial piety, confucianism was, in practice, mainly a code of civilized behavior, degenerating at times into an etiquette book”, London, George Allen & Unwin Ltd, 1922, p. 43

Da China, Quetzal Editores, 2011, pp. 216-217.

A Sabedoria Chinesa, Casa das Letras, 2005, p. 23.

Lisboa, Guimarães Editores, 1999, p. 347.

Os Extremos Conciliam-se (transculturação em Macau), Instituto Cultural de Macau, 1988.

O Clarim, Ano XXV, Nº 33, 24.08.1972.

A mais recente e completa edição da Obra Completa de Manuel da Silva Mendes : Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho,

Edição Livros do Oriente, 3 volumes [570 pp. + 539 pp. + 519 pp.], 2017\2018.

Sobre o autor, ver António Aresta, “Manuel da Silva Mendes : um intelectual português em Macau”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. I , 2017, pp. 41-112 ; Amadeu Gonçalves, “Manuel da Silva Mendes : Entre Vila Nova de Famalicão e Macau”, idem, pp. 15-39 ; Tiago Quadros, “Do charme discreto do habitar. A Vila Primavera, locus amoenus de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 113-121 ; Ana Cristina Alves, “O Tao de Manuel da Silva Mendes : do Tao Político ao Tao Poético”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. II, 2018, pp. 21-34 ; António Graça de Abreu, “Manuel da Silva Mendes e Camilo Pessanha, a inimizade inteligente”, idem, pp. 49-60 ; Aureliano Barata, “Manuel da Silva Mendes : um olhar sobre Macau e o seu ensino”, idem, pp. 61-80 ; António Conceição Júnior, “O legado artístico de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 83-100 ; Jorge Morbey, “Manuel da Silva Mendes, o homem e a sua circunstância”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. III, 2018, pp. 15-21 ; Ana Cristina Alves, “Seis fotografias aéreas sobre a vida e obra de Silva Mendes”, idem, pp. 23-28 ; Maria dos Anjos da Silva Mendes, “Memória da Bisneta”, idem, pp. 31-44 ; Erasto Santos Cruz, “Excerptos de Filosofia Taoista & Questões de Tradução”, pp. 91-127 ; Carlos Botão Alves, “O Oriente na Literatura Portuguesa : Antero de Quental e Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 129-210 ; António Aresta, “Bibliografia de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 489-499.

A Pátria, 27.07.1927. Republicado em Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho, Edição Livros do Oriente, 2018, Vol. III, pp. 330-331.

Utilizo a nova edição, Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho, Edição Livros do Oriente, 2017, Vol. I. , pp. 381-382.

Idem, p. 382.

Idem, p. 382.

Idem, p. 382.

Dentro desta abordagem, veja-se, Cheng-Tien-Hsi, China Moulded by Confucius. The chinese way in western light. Published under the áuspices of the London Institute of World Affairs, London, Stevens & Sons Limited, 1947 ; Guy S. Alitto, The Last Confucian : Liang Shu-ming and the Chinese dilemma of modernity, Berkeley, University of California Press, 1979.

16 Out 2023

Confúcio e a cultura portuguesa 2

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

Em 1762 Confúcio é um dos temas principais no “Diálogo entre um Teólogo, um Filósofo, um Ermitão e um Soldado”1, que discorrem cordata e pedagogicamente sobre a moral, a geografia política e as ideias religiosas. O que se poderia aprender sem um rasgo de polémica , sem qualquer ousadia interrogativa ou afrontamento ideológico ?

Um livro popular, reconfortante para uma vida reflexiva simples e benevolente, era justamente a Vida y Pensamientos Morales de Confucio2 que desde 1802 conhecerá larga difusão nos meios cultos e esclarecidos portugueses, encontrando-se nas livrarias conventuais e nas bibliotecas dos Seminários. O estudo filosófico e pedagógico da moral3, da formação moral, foi uma preocupação constante nas escolas e no ensino particular e doméstico.

José Ignacio de Andrade é um importante orientalista português do século XIX, hoje injustamente esquecido, e um grande divulgador das ideias de Confúcio. O seu livro, publicado em dois volumes, Cartas Escriptas da Índia e da China nos Annos de 1815 a 1835 por José Ignacio de Andrade a sua Mulher D. Maria Gertrudes de Andrade4, abre justamente com uma epístola de Francisco Martins Barros, professor de língua latina no Colégio de Nossa Senhora da Conceição :

“………………..

De CONFÚCIO, philosopho sublime

Mostras os dogmas, e a doutrina mostras,

Que tantos evos tem regido a China.

O vício não desculpas, se elle surge,

Qual entre o flavo trigo e o joio inútil,

Lá mesmo n’esse Império, que elogias.”5

Outro amigo de José Ignacio de Andrade, P. F. O. Figueiredo, insere este soneto :

“ Confúcio douto, que a moral ensina

A reis, e a povos com saber profundo,

Se hoje surgisse do sepulchro fundo,

E lesse o que has escripto sobre a China ;

Se visse como o genio teu combina,

Em philosopho, quanto abrange o mundo ;

Em ti notara com prazer jucundo

Um discípulo da sua alta doutrina !”6

As ideias e os princípios morais e políticos de Confúcio estão omnipresentes e na “Carta L” José Ignacio de Andrade faz a difusão extensiva de umas dezenas de máximas, sem esquecer o pensamento de Mêncio. E a reflexão que faz é premonitória : “A nação chinesa, para suprir as instituições liberais, hoje em voga na Europa, tem os livros sagrados, respeitados como lei fundamental do estado : acham-se neles artigos mais vigorosos contra o despotismo, do que nas instituições mais democráticas da Europa e América ; todavia, sucede na China o mesmo, que em outra qualquer parte : se o que empunha o ceptro do poder é do temperamento de Nero, só resta a opção dolorosa de morrer, ou matá-lo”7. Até onde terão chegado estas ideias de José Ignacio de Andrade ?

Folheando “O Panorama. Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis”, de 12 de Maio de 1838, podemos observar uma gravura, ‘A Criminosa Perante o Mandarim’, a encimar um artigo sobre a administração da justiça no Celeste Império. Aí , o façanhudo mandarim prelecionava sob a égide de Confúcio. Nessa mesma publicação8 foi publicada a novela “O Feitor de Cantão”, cuja leitura é muito agradável e informativa. E, abrindo a popular “Encyclopedia das Famílias. Revista de Educação e Recreio”, no Nº 999, de 1895, deparamos com uma sintética definição do confucionismo enquanto religião : “ é um naturalismo, adoração de forças physicas, de caracter moral, tendo por base a benevolência ; como regra, modelar o presente e o futuro no pretérito e a veneração pelos antepassados. Confúcio foi o seu fundador e teve por principal apóstolo o philosopho Mêncio. Domina entre os chineses”. Detectamos também a presença dos ensinamentos de Confúcio nas áreas mais díspares, desde a história de A Mulher Através dos Séculos, de Marques Gomes, publicada em 1878, até à dissertação inaugural apresentada , em 1901, à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, sob o título, O Suicídio Livre em Face da Religião, da Moral e da Sociedade, assinada por José Ferreira Viegas. Júlio Verne, com o popular romance As Atribulações de um Chinês na China10, publicado em 1879, contribuiu para o adensar do fascínio pela milenar civilização chinesa. No ano seguinte, em 1880, aparece O Mandarim , de Eça de Queiroz, cujo personagem reflecte em voz alta, “eu não compreendia a língua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis, nem os sábios daquela raça”11, sintetizando assim grotescamente a ignorância nacional, não obstante a nota de fina ironia, “sou bacharel formado ; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado !”12.

O antigo cônsul de Espanha em Macau, Enrique Gaspar y Rimbau, publica em 1887 o pioneiro romance de ficção científica El Anacronópete. Viaje a China – Metempsicosis13 , revestindo-se de especial interesse uma carta14 enviada de Macau, em 30 de Abril de 1879, onde discorre sobre o pensamento de Confúcio e de Mêncio, no contexto dos exames imperiais que conferiam a dignidade mandarínica.

Confúcio é, ainda, um nome popular e prestigiado, nas escolas e nos meios mais cultos da sociedade, tido como uma fonte de sabedoria e um símbolo da virtude. Por exemplo, Duarte Leite (1864-1950), professor, diplomata e político, iniciou-se na Maçonaria em 1892, na loja maçónica ‘União Latina’, no Porto, sob o nome simbólico de ‘Confúcio’15.

Historicamente tem sido recorrente a tentação de conciliar ou acentuar as convergências entre o cristianismo e o confucionismo, no quadro geral dos sistemas religiosos. Oliveira Martins na sua esforçada erudição16 também se debruçou sobre a moral confuciana : “Na China a reforma de Confúcio, fazendo abortar a evolução ulterior dessa mitologia pela pregação de uma moral extraída prematuramente do animismo primitivo, condenou a religião a um estado de precocidade caduca e à esterilidade consequente. Uma moral frequentemente digna do aplauso da sabedoria mais pura, veio assentar sobre uma concepção realisticamente selvagem do mundo ulterior. Dotado, pois, com uma moral prática civilizada, o chinês manteve uma mitologia primitiva, mostrando assim na esfera religiosa esse aspecto duplo de velhice e de infância, visível por tantos outros lados nas civilizações do extremo Oriente”. Em 1887, o reverendo John Ross17 lançou de novo uma vigorosa e sedutora campanha de harmonização de ideias e de princípios entre o cristianismo e o confucionismo, que parece ter sido muito bem sucedida. No Ocidente, o cristianismo parece ter absorvido e melhorado algumas ideias axiomáticas caras ao confucionismo, tais como a bondade, a amizade, a caridade, a hospitalidade ou a piedade, esvaziando e apagando o contexto ontológico original que poderia estar mais focado no refinamento, na conduta, na lealdade e na confiança. Sampaio Bruno publica O Brasil Mental em 1898 advertindo para um pormenor que parecia escapar aos mais atentos : “A religião positivista é, pois, exactamente como, na China, a doutrina religiosa de Kong-fu-tse (mestre Kong, Confúcio). É um naturalismo ético enxertado na religião política de Saint-Simon ; como ali se funda na dos Tchow, entendendo por isto, com Tièle, a ordem de coisas estabelecida, verosimilmente, pelo príncipe Tchow-Kong, assaz diferenciada do culto popular antigo. Consoante aqui, diversa da metafísica cristã (idealista, do tipo alexandrino) e só aceitando, não a dogmática, porém a disciplina católica”18.

Tem passado completamente despercebido o romance O Lobo da Madragoa19 publicado por Alberto Pimentel em 1904, onde se dá conta das venturas e desventuras de uma chinesa de Cantão em Portugal, cujo comportamento divergia dos padrões traçados pela moral confuciana. Em 1909 José da Costa Nunes, futuro Bispo de Macau, Arcebispo de Goa e Cardeal, publicará 24 Cartas da China20, onde entre outros assuntos, disseca com profundidade os pressupostos teóricos do confucionismo. Essa designação ‘Cartas da China’ estava em voga. José Gomes da Silva, médico e naturalista que deixou obra em Macau, também escreveu as suas Cartas da China no jornal ‘O Comércio do Porto’21, contemporâneas das Cartas do Japão assinadas por Wenceslau de Moraes. E é numa das suas Cartas do Japão que Wenceslau de Moraes analisa com invulgar argúcia o legado de Confúcio : “A moral de Confúcio, toda ela bonomia e singeleza, incompatível com a guerra, com a luta, poderia talvez ter feito a felicidade de toda a China em peso ; mas, para tanto, seria forçoso admitir o absurdo ou o impossível, isto é, ou que a China fosse o Mundo inteiro, ou que ela pudesse manter-se eternamente isolada dos outros povos. Confúcio não considerou os outros países, julgou-os insignificantes, acreditou no eterno isolamento da sua enorme pátria. E não teve o pressentimento, vago embora (mas quem há vinte e quatro séculos o tivera ?…), das estupendas energias de certas forças naturais – o vapor, a electricidade, a resistência do metal … – e da capacidade inventiva e irrequieta dos cérebros do Ocidente. Dormia a China ; ou pelo menos, deliciava-se na contemplação da Natureza ; nas artes e nas letras ; enquanto que as outras nações progrediam em ciência, armavam-se e mais tarde viriam afronta-la”22.

(continua)

Joaquim de Santa Rita, Academia dos Humildes e Ignorantes, Conferência XXVII, Tomo IV, Lisboa, 1762, Na Officina de Ignacio Nogueira Xistro, p. 212.

Traducidos del francês al castellano por D. Enrique Ataide y Portugal, Oficina de Aznar, Madrid, 1802.

Coleção e Escolha de Bons Ditos e Pensamentos Moraes, Politicos e Graciozos. Escriptos por *** . Lisboa, Na Officina de Francisco Borges de Souza, Anno MDCCLXXIX, 471 pp. ; Lições de Boa Moral, de Virtude e de Urbanidade. Compostas no idioma hespanhol por D. José de Urcullu e traduzidas para o portuguez da 3ª edição de Londres de 1828 por Francisco Freire de Carvalho, Lisboa, 3ª edição, Typographia Rollandiana, 1854, 246 pp. Com especial interesse para a moral confuciana, pp. 45-48 ; Outra obra importante : Pensées Morales de Confucius, recueillies et traduites du latin par M. Levesque, Paris, MDCCLXXXIII. Para além da introdução (pp. 7-62) são apresentados 230 pensamentos morais (pp. 63-175).

Lisboa, Imprensa Nacional, 1843. Conhecerá uma segunda edição em 1847. Esta obra foi reeditada sob o título Cartas Escriptas da Índia e da China, 2 volumes, introdução de Artur Teodoro de Matos, Livros do Oriente, Macau, 1998.

Idem, p. 25.

Idem, p. 29.

Idem, p. 280.

O Panorama, Vol. IX, 1852, pp. 75-76, 86-88, 91-93, 98-100, 106-107, 119-120, 125-126 e 131-132. A novela não está assinada.

Página 213. A revista, era dirigida por João Romano Torres, abre com uma “Homenagem ao Genial Poeta João de Deus” e toda a colaboração não está assinada. Contudo, grande parte dessa colaboração poderá ser associada a Lucas Evangelista Torres e aos seus filhos João Romano, Manuel Lucas e Fernando Augusto.

A edição portuguesa sob a chancela da Livraria Bertrand, Lisboa, s\d, tradução de Manuel Maria de Mendonça Balsemão

O Mandarim, 3ª edição, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1889, p. 152.

Idem, p. 90.

Biblioteca Arte y Letras, Barcelona, 1887. Escreve 11 ‘Cartas al Director de Las Provincias’, todas datadas de Macau, a primeira de 26 de Setembro de 1878 e a última de 8 de Dezembro de 1882.

Idem, pp. 269-282.

Pedro Magalhães, Duarte Leite (1864-1950), Edição do Município de Lousada, 2014, p. 22.

O Systema dos Mythos Religiosos, Lisboa, Livraria Bertrand, 1882, p. 71.

The Chinese Recorder and Missionary Journal, Nº 1, Vol. XVIII, January, 1887. No ensaio, “Our Attitude towards Confucianism”, (pp. 1-11), esforça-se por explicar “… to show that Confucianism from un enemy can be converted into a friend helpful to Christian teaching”, p. 10. Na contemporaneidade, será Henrique Rios dos Santos SJ, a trilhar esse caminho com O Rosário Com a Igreja da China, edição da Fundação AIS\Apostolado da Oração, 2008, 127 pp. Seleccionou 35 Pensamentos de Confúcio, dizendo : “Oferecemos um pensamento de Confúcio (Kong Fu Zi) para cada mistério também, como um modo de dar a conhecer as pontes que se podem estabelecer entre a tradicional cultura chinesa e o cristianismo”, p. 6.

O Brasil Mental, prefácio de António Telmo, Lello Editores, 1997, p. 155.

Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1904.

Publicadas por Tomás Bettencourt Cardoso sob o título Cartas da China, edição da Fundação Macau, 1999.

Este diário matutino da cidade do Porto publicava nas primeiras páginas, por exemplo em 1905, as Cartas : de África, da Alemanha, do Paraguai, da Índia, do Japão, da Andaluzia, do Brasil, da Inglaterra, de Itália, dos Açores, de França, de Cabo Verde, de Espanha, etc. Sempre assinadas por correspondentes portugueses locais.

Wenceslau de Moraes, Antologia, Selecção de Textos e Introdução de Armando Martins Janeira, Prefácio de Daniel Pires, Veja, 2ª edição, 1993, p. 401.

13 Out 2023

Confúcio na cultura portuguesa – Subsídios para o seu estudo

Por António Aresta

Estudar sem reflectir é inútil, reflectir sem estudar é perigoso – Confúcio

[“Ditos de Confúcio”, tradução de Daniel Carlier, edição Jornal Tribuna de Macau, 2008]

I

A sabedoria e a ética prática de Confúcio, considerado como o sábio dos sábios, estão presentes na cultura portuguesa, com uma insuspeitada transversalidade, sobretudo desde os alvores do século XVII, entradas pela mão dos jesuítas.

A sinologia portuguesa e a sinologia de língua portuguesa , enquanto alargado corpus de conhecimento, não dispõem de um roteiro bibliográfico e historiográfico minimamente actualizado, o que não é muito compreensível se tivermos em conta a sua secular antiguidade. O caso de Confúcio é paradigmático, como se observará nesta breve introdução. Mas é apenas no século XIX que a imprensa periódica, os almanaques, as enciclopédias, os dicionários, os livros escolares ou outras obras de cultura geral espalham urbi et orbi concisos aforismos, um sugestivo cerimonial parenético ou suculentas máximas do pensador chinês, sobre quase todos os assuntos que tocavam a vida humana ou a governança da sociedade e os seus inimigos.

Suspeita-se, por vezes, que tudo quanto é atribuído a Confúcio não seja realmente da sua lavra. A analogia com Sócrates , sobretudo com o Sócrates platónico estará sempre presente. Julgo que valeria a pena seguir o rasto da influência das suas ideias e dos seus ensinamentos, isto é, a recepção de Confúcio em Portugal, que continua por fazer, incluindo o inventário da multiplicidade das edições das obras9 firmadas pela multidão dos seus discípulos.

Pela literatura de viagens, mas não só, ecoa uma ressonância dos seus pensamentos, de permeio com o fascínio pelo mistério sobre tudo quanto seja oriundo da grande China, que vamos encontrar, por exemplo, em “Algumas Coisas Sabidas da China”, provavelmente de 1562, da autoria de Galiote Pereira, no “Tratado em que se contam muito por extenso as Cousas da China” de Frei Gaspar da Cruz, de 1569 ou na “Relação da Grande Monarquia da China” do jesuíta Álvaro Semedo, escrita em 1637. Sem esquecer Tomé Pires ou Fernão Mendes Pinto.

Mas, serão mesmo outras narrativas a terem o monopólio da atenção do público generalista11, sempre atento ao pormenor e às grandes sínteses culturais sobre o extremo oriente e em particular sobre a China. Para as elites, Confúcio chegava em latim mas as polémicas eram servidas na língua francesa.

Não é piedoso esconder a fragilidade do pensamento português nesta área particular. Nas querelas entre as ordens religiosas, evidenciam-se conhecimentos e informações muito interessantes e actualizadas : “Os Letrados da China, que são das suas pessoas mais nobres e estimadas, se ajuntam todos os anos nos Equinócios da Primavera e Outono, em uma Aula, que chamam Miao, dedicada ao mesmo Confúcio…”.

Até os textos doutrinários faziam questão de evocar os feitos findos, no oriente longínquo, como se pode ler no comunicado aos portugueses, de 24 de Agosto de 1820, difundido pela Junta Provisional do Governo Supremo do Reino : “…espalhando pela Europa, espantada e invejosa, as preciosidades do Oriente e as riquezas de ambos os mundos”.

Quarenta anos depois, em 1860, na Apreciação Philosophica dos Descobrimentos Portugueses18, João Félix Pereira traça um severo juízo de valor associando “a mais torpe imoralidade” e a “sede do ouro” como as causas directas para a queda do “império oriental”.

(continua)

Referências bibliográficas e notas

António Aresta, “Confúcio”, Jornal Tribuna de Macau, 22.11.2017.

Em diferentes momentos, tenho procurado fazer uma sistematização da história da sinologia portuguesa : António Aresta, “Os Estudos Sínicos no Panorama da História da Educação em Portugal”, Revista Administração,Nº 38, Vol. X, 1997, pp. 1045-1069 .Como esta publicação é bilingue, a tradução chinesa está nas páginas 1177-1192 ; António Aresta, “A Sinologia Portuguesa, um esboço breve”, RC-Revista de Cultura [Instituto Cultural de Macau], Nº 32, II Série, 1997, pp. 9-18. Este estudo foi traduzido para chinês e para inglês, nas respectivas versões da RC-Revista de Cultura ; António Aresta, “A Sinologia”, in Adalberto Dias de Carvalho (coord.), Dicionário de Filosofia da Educação, Porto Editora, 2006, pp. 347-348 ; António Aresta, “Sinologia Portuguesa : Caminhos e Veredas”, in Miguel Castelo-Branco (coord.), Portugal-China . 500 anos, ed. Biblioteca Nacional de Portugal\Babel, Lisboa 2014, pp. 275-279 .

Para o caso de Macau, veja-se, Padre Manuel Teixeira, A Imprensa Portuguesa no Extremo Oriente, ed. Notícias de Macau, 1965, 2ª edição, Instituto Cultural de Macau, 1999 ; Daniel Pires, Dicionário Cronológico da Imprensa Periódica de Macau do Século XIX (1822-1900), ed. Instituto Cultural do Governo da R.A.E.Macau, 2015. O Jornal de Bellas Artes ou Mnemósine Lusitana. Redacção Patriótica. O número XXIII, de 1816, contém abundante informação sobre Macau e a China. A Revista Popular. Semanário de Literatura, Sciencia e Industria, cuja Redacção era assegurada por Joaquim Fradesso da Silveira, José Maria Latino Coelho, Francisco Pereira de Almeida e Augusto Gonçalves Lima, publicou no Nº 12 \ 1849, o conto chinês “A Trança do Mandarim”, com evidentes ressonâncias confucianas. Na contemporaneidade, o jornal da Diocese de Macau, O Clarim, não perdia a oportunidade para marcar a sua posição doutrinária. Veja-se o interessante artigo de Tooshar Pandit, “Confúcio e Karl Marx frente a frente”, O Clarim , 14.02.1965.

Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro para 1857. Com 410 artigos e 106 gravuras, Lisboa, Typographia Universal, 1856, 391 pp..

Na Encyclopedia Portugueza Illustrada, editada por Lemos & Cª, Successor, Porto, 1900-1909, publicada sob a direcção de Maximiano Lemos, III volume, surge uma informação abrangente sobre Confúcio e o confucionismo, destacando-se a seguinte ideia : “Todo o seu systema repouza sobre os deveres recíprocos dos homens, classificados por elle em relações entre principe e vassalo, pae e filhos, e entre concidadãos. O respeito aos pais, antepassados, ao nome, é o fundamento da família, e estes mesmos princípios aplica elle ao governo”. O Museu Literário, Útil e Divertido, Nº 5, Lisboa, na Impressão Régia, 1833, traz uma “Notícia do Império da China, segundo os mais modernos conhecimentos obtidos na Europa”, pp. 132-135.

Os dicionários eram uma importante fonte difusora de cultura, em termos práticos, generalistas e simples. Mas, frequentemente, misturavam os conceitos. Sobre Confúcio e o confucionismo. No Novo Diccionario da Língua Portuguesa, de Eduardo de Faria, Typographia Lisbonense, Lisboa, 1851, 2ª edição, lemos que Confúcio “ensinou uma philosophia toda prática”. Mas no Diccionario Popular (histórico, geográfico, mythologico, biográfico, artístico, bibliográfico e litterario), dirigido por Manoel Pinheiro Chagas, Typographia do Diario Illustrado, 3º volume, Lisboa, 1878, encontramos uma informação com mais detalhe. Confúcio “fundou uma escola meio philosophica, meio política, à qual a China deve essa civilização estacionária que ainda hoje ali impera. Essa escola não tem metaphysica, ocupa-se exclusivamente de economia social e de moral. Muitos consideram Confúcio como legislador, não o foi, foi apenas um philosopho e um moralista, mas a legislação chinesa toda se deriva da escola e do ensino de Confúcio, e foi ele que lhe deu a sua originalidade e o seu caracter imóvel”.

A título de exemplo, João Felix Pereira, Compendio de Geographia, para uso da instrucção secundária, edição do autor, 10ª edição, Lisboa, 1877 : “O grande philosopho Confucius foi contemporaneo de Salomão : seos escritos encerrão verdades mais sublimes do que as da philosophia de Pythagoras, Socrates e Platão”. E continua : “Debaixo do ponto de vista moral, diz-se, que os chins possuem as virtudes e os vícios do escravo, do fabricante e do negociante : reina um systema de tyrannia e de opressão, desde o soberano até ao rústico. As várias classes de mandarins não são melhores do que escravos de graduação superior, os quaes, por sua vez, oprimem, cruelmente o povo”, pp. 245 e 247. Ainda outro exemplo : Alberto Pimentel, Album de Ensino Universal. Livro de Instrução Popular, Lisboa, Officina Typographica de J. A. de Matos, 1879. Nas páginas 177\178, encontramos esta informação : “Religião de Confúcio : consiste num panteísmo filosófico e tem por chefe o imperador da China. É a religião dos homens letrados da China, de Annam e do Japão”.

Historia Universal. Primeira Parte. História Antiga, escrita em Francez pelo Abbade Millot e traduzida em Vulgar por J. J. B., Professor no Real Collegio de Alcobaça, 2ª edição, correcta e aumentada, Tomo Primeiro, Lisboa, na Typographia Rollandiana, 1801, 383 pp.. Sobre a China, pp. 90-98. A Confúcio, para além de divulgar algumas máximas, apresenta esta síntese : “A sua Filosofia consistia menos na especulação, do que na prática ; razão porque deitou mais depressa Sábios, que Discursistas”, p. 97 ; Damião António de Lemos Faria e Castro, História Geral de Portugal e suas Conquistas, oferecida à Raínha Nossa Senhora D. Maria I, Lisboa, Na Typographia Rollandiana, Tomo XI, 1788. As informações sobre a China e sobre Confúcio, pp. 147-161.

Algumas traduções : Os Analectos, tradução de Maria de Fátima Tomás, Publicações Europa-América, 1982, 127 pp. ; Quadras de Lu e Relação Auxiliar, tradução e notas de Joaquim Guerra SJ, Edição Jesuítas Portugueses, Macau, 1981\1983, 5 volumes ; Quadrivolume de Confúcio, tradução e notas de Joaquim Guerra SJ, Edição Jesuítas Portugueses, Macau, 1990, 615 pp. ; Conversações, M. Gonçalves de Azevedo, Ed. Estampa, 1991, 196 pp. ; Ditos de Confúcio, tradução de Daniel J.L. Carlier, edição Jornal Tribuna de Macau, 2008, 119 pp. ; As Quatro Obras : Discurso e Diálogo ; Suprema Educação ; Meio Constante, tradução do chinês , introdução e notas de Luís Gonzaga Gomes, Macau, Imprensa Nacional, 1945, 248 pp.

Na edição contemporânea de 1994, anotada e traduzida do italiano por Luís Gonzaga Gomes, com prefácios de Maria Edith da Silva, António Rodrigues Júnior e António Aresta, coeditada pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude\Fundação Macau, esta referência a Confúcio é significativa: “Este homem caiu, a todos os respeitos, nos tempos subsequentes, em tanta graça e apreço dos chineses e tão grande crédito alcançaram os livros que compôs e os ditos e as sentenças por ele deixados, que não somente o tem por santo, mestre e doutor do reino com o que dele se cita é estimado como coisa sagrada, além de existir, em todas as cidades do reino, templos, públicos, onde é reverenciado, com muitas cerimónias em dias marcados e, nos anos dos exames, uma das principais cerimónias é irem os novos graduados todos juntos prestar-lhe reverência e reconhecê-lo por mestre”, p. 103.

Eduardo Fernandes (Esculapio), Dois Anos de Troça. Gazetilhas publicadas em O Século (94-95). Revistas pelo autor e prefaciadas por António Campos Júnior, Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1900, pp. 102 e 103.

Fialho d’Almeida, Pasquinadas : Jornal d’um Vagabundo, Porto, Livraria Civilização, 1890, pp. 238-244 : “O sr. Coelho de Carvalho, que enviou da China a Cesário Verde o seu retrato de mandarim…”, com a explicação minuciosa das insígnias mandarínicas ; Alberto d’Oliveira, Pombos-Correios (Notas Quotidianas), Coimbra, França Amado Editor, 1913, p. 321 : “A nova China, ainda antes de nos mostrar que tem cabeça, anuncia-nos solenemente que já tem chapéu. Mudar de fato pareceu-lhe tão urgente como mudar de regímen”. Gomes Leal , A Morte do Rei Humberto e os Críticos do ‘Fim d’um Mundo’, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1900, p. 17 : “A China, a remota pátria dos mandarins e das sedas magníficas, dos xarões raros, e das pedrarias fabulosas, como visões de ópio, não quer ceder nenhuma das suas prerrogativas, nem ceder mais território algum à cobiça do comércio europeu ?…Salafrários, chatins, safardanas, sarrafacais !… Desprezam, pois, estes letrados mariolas sábios, com uma teimosia revoltante de povos inferiores, habituados a uma hedionda rotina, herdada de Confúcio, toda a luz benéfica e imaterial dos povos civilizados do Ocidente, que tanto benefício levaram à velha Índia, que ela está hoje morrendo de fome, de peste, de anemia….e da alegria espiritual e ferruginosa da civilização !…. Não se pode ser mais bárbaro !…. Há enfim só uma frase : – é chinês !”.

Carlos José Caldeira, Apontamentos d’uma Viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa, Lisboa, Typographia de Castro & Irmão, 1852\3 ; Gregório Ribeiro, De Macau a Fuchau. Cartas a J.M. Pereira Rodrigues, Lisboa, Typographia Universal, 1866 ; Conde de Arnoso, Jornadas pelo Mundo : em caminho de Pekim, Porto, Magalhães & Moniz, 1895 ; Adolfo Loureiro, No Oriente. De Nápoles à China, Lisboa, Imprensa Nacional, 1896\7 ; José Morais Palha, Esboço Crítico da Civilização Chinesa, Macau, Typographia Mercantil, 1912 ; Alberto de Carvalho, Reminiscências do Oriente : apontamentos de viagem, Lisboa, Tipografia da Cooperativa Militar, 1914.

CONFUCIUS sinarum Philosophus sive scientia sinensis latine exposita, Ludovici Magni, Pariis, MDCLXXXVII, 563 pp. ; Ad Virum Nobilem, de cultu CONFUCII Philosophi et Progenitorum apud Sinas, Antverpiae, MDCC, 57 pp. ; Vera Sinensium Sententia de tabela Confucio &progenitoribus inscripta, cum ulteriore expositione & informatione de factis sinensibus controversis secundum PP. Societatis Jesu adversus novam allegationem textum Sinicorum factam presertim extractatibus PP. FF. Dominici Navarrette & Francisci Varo Dominicanorum, Anno MDCC, 468 pp.

Apologie des Dominicains Missionnaires de la Chine ou Reponse au livre du Père Le Tellier jesuite, intitulé, Défense des Nouveaux Chrétiens ; Et à L’éclaircissement Du P. Le Gobien de la même Compagnie, Sur des honneurs que les chinois rendent à Confucius et aux Morts. Par un Religieux Docteur et Professeur de Theologie de L’Ordre de S. Dominique. Tome Premier. À Cologne. Chez Les Heritiers de Corneille d’Egmond, MDCC, 392 pp. ; Relation du voyage fait à la Chine sur le vaisseau l’Amphitrite, en l’année 1698. Par le sieur Gio Ghirardini, peintre italien. A monseigneur le duc de Nevers, MDCC, 237 pp. Esta obra termina com uma “Lettre du Roy de Portugal au Cardinal Barberin Protecteur de cette Couronne”, datada de Lisboa, em 1699. Surpreendente é esta obra , L’Espion Chinois ou L’Envoyé Secret de la Cour de Pékin pour Examiner L’État Présent de L’Europe. Traduit du chinois, A Cologne, MDCCLXXXIII, em seis volumes. Obra sem menção de autor. O sexto volume contem abundantes referências a Portugal.

Resposta Compulsória à Carta Exhortativa, para que se retrate o seu Author das Calumnias que proferio contra os Reverendissimos Padres da Companhia de Jesus da Provincia de Portugal. E lhe dedica Francisco de Pina e de Mello, Moço Fidalgo da Casa Real e Academico da Academia Real de Historia Portugueza, Monte mor o Velho, a 26 de Junho de 1755, p. 60. No ano seguinte, este mesmo autor publica o Triumpho da Religião. Poema Épico-Polémico que À Sua Santidade do Papa Benedicto XIV dedica Francisco de Pina e de Mello, Moço Fidalgo da Casa de Sua Magestade e Academico da Academia Real da Historia Portugueza, Coimbra, na Officina de Antonio Simoens Ferreyra, Impressor da Universidade, Anno de 1756, 426 pp.

Collecção Geral e Curiosa de Todos os Documentos Officiais e Historicos Publicados por Ocasião da Regeneração de Portugal, desde 24 de Agosto, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1820.

Lisboa, 1860, Typ. de José da Costa, p. 60.

12 Out 2023

A Face Inescrutável de Meng Haoran e Wang Wei

Ding Gao (?-1761), o autor do tratado Xiezhen mijue, «A fórmula secreta para pintar retratos» tinha bem claro que o escrevia numa demonstração de xiao, «amor filial», não apenas como forma de estimar os seus antepassados mas também para servir de exemplo de comportamento moral a quem se quisesse dedicar à arte e à técnica dos retratos pintados.

Como ele explica no texto original escrito em 1766, com o título Chuanzhen xinling, «Compreensão da transmissão da verdadeira semelhança», foi o seu bisavô Ding Yuchen quem primeiro desenvolveu o interesse da pesquisa dos segredos da arte que depois foram transmitidos ao seu avô, e depois a seu pai e que ele mesmo transmite ao seu filho. O tratado só seria publicado pela primeira vez em 1818, pelo seu filho Ding Yicheng (1743-depois de 1823) que também acrescenta um apêndice, Xuxinling, com oito questões, e mostra como uma série de diferenças se foram esbatendo durante a dinastia Qing.

Entre a maneira de pintar os retratos dos vivos, comemorativos ou de dignitários, muitas vezes executados por autores famosos por vezes designados yintu, «pintura das sombras», ou os de familiares falecidos, feitos geralmente por autores anónimos, que celebravam a alma dos antepassados, também chamados fushen «representação da alma».

Mas também se tornava mais ambígua a distinção entre pintores literatos e profissionais. A linguagem utilizada pelos autores junta aspectos da fisionomia popular que via na face um espelho da ordem cósmica mas também se apropria do vocabulário erudito da pintura de paisagens. Como ao dividir o rosto em Cinco Montanhas – a testa, o queixo, o nariz, a maçã do rosto direita e a esquerda; e Cinco rios – as orelhas, os olhos, a boca e as narinas. Mas uma outra categoria, a de retratos imaginados, que possuíam o prestígio da tradição como o Retrato de Fu Sheng sentado no chão, descontraído (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 25,4 x 44,7 cm, no Museu de Belas Artes de Osaka) atribuído a Wang Wei (701-761) adquiriram grande popularidade na dinastia Qing.

Shangguan Zhou (1665-1750), na obra Wanxiaotang huazhuan onde figurou heróis de Estado e da cultura ao longo da História, não terá tido dificuldade em utilizar as feições convencionais de homens corajosos que exibem um excesso de energia ou as clássicas formas de mulheres belas (meiren) em retratos de corpo inteiro, a três quartos, numa linha clara que os torna leves e facilmente reproduziveis.

Há, porém, no seu álbum, dois retratos de poetas que são um desafio à representação do rosto. Meng Haoran (689-91-740), o poeta que despertou preocupado com as pétalas que caíram durante a tempestade, é representado sentado, de tal modo envolto nas suas vestes que do seu rosto só são visíveis os olhos, o nariz e o bigode. Wang Wei está sentado, relaxado, a cabeça voltada, dela apenas se vê a nuca.

10 Out 2023

Seda (4) – Deusas e Festas: Viagem da seda de Leste para Sichuan

Preparamo-nos para sair do recinto do Festival das Flores do Bicho da Seda (蚕花节, CanHua jie) na aldeia Hanshan quando uma placa de madeira apresenta a história de Ma Tou Niang:

“Há muito tempo, em redor da montanha Han vivia a família Wu, cuja filha era muito bonita e ainda criança, o pai educara-a em muitas e diversas matérias, da escrita, com uma excelente caligrafia, à poesia e na arte de manejar a espada. Era uma promissora rapariga.

“Um dia antes do festival Qingming, o pai Wu (武) com o seu grupo partira para combater em XinShi (新市), mas foi capturado. A filha, muito preocupada, espalhou a notícia pelas redondezas a dizer casar-se com quem conseguisse trazer o pai de volta em segurança. Escutando tal, o seu cavalo branco saindo a galope foi libertá-lo, trazendo-o salvo. Quando o senhor Wu soube da promessa da filha e vendo com quem ela teria de casar, ficou muito triste por aquele destino. Então ocorreu-lhe a ideia de substituir a filha por uma outra rapariga, Xiaoqing, para casar com o cavalo. Este, zangado magoou Xiaoqing e o senhor Wu, que vendo o comportamento do cavalo, o matou. A filha, muito triste com os acontecimentos, suicidou-se, ficando o seu corpo num túmulo no cume da montanha Han. No ano seguinte, transformada num bicho-da-seda ofereceu o fio expelido da sua boca para as pessoas tecerem panos e se protegerem do frio. Os sericicultores, em forma de agradecimento, construíram um templo no topo da montanha onde oferecem sacrifícios à rapariga e ao cavalo branco”.

Assim, todos os anos, aquando da festividade do Qingming, as pessoas da área ligadas aos trabalhos de seda juntam-se no Templo Can Hua venerando Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘). Trazendo um casulo atravessado num ramo, seguem monte acima para em frente à escultura da deusa, junto ao seu túmulo se ajoelharem a reverenciá-la. Com três vénias agradecem e colocam incenso, velas e oferendas em frente à imagem.

Despertos por este conto, associamo-lo ao encontrado no livro Chinesices de Luís Gonzaga Gomes a narrar a história ocorrida na parte Leste da China, em que uma jovem foi envolvida pela pele de um cavalo e nesse tapete voador transportada até ao Oeste da China e em Shu (hoje província de Sichuan) apareceu num amoreiral metamorfoseada na forma de bicho-da-seda. Saindo do Leste como Imperatriz do Bicho-da-seda, Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘), veio em Sichuan a ser Ma Tou Niang (马头娘), Senhora do Bicho-da-Seda, cuja tradução é Senhora com Cabeça de Cavalo, onde já Can Cong, o primeiro antepassado dos Shu Antigos, estava deificado Qingyi shen (青衣神), Deus das Vestes Verde-azuis.

Essa viagem do bicho-da-seda da parte Leste da China para Oeste, até Shu (Sichuan) remete-nos para o Neolítico, período de unificação das tribos, iniciada por Huang Di (o Imperador Amarelo), cuja esposa foi Leizu (a Imperatriz da Seda) de quem teve dois filhos, o mais velho Shao Hao e Changyi, pai de Gaoyang, depois chamado Zhuanxu, o segundo dos cinco Ancestrais Imperadores.

SEDA NO NEOLÍTICO

Na China, no sexto milénio a.n.E. (antes da nossa Era), mais provavelmente entre o século LV e L a.n.E., começou-se a olhar para as lagartas a enrolarem-se nos casulos e nasceu a curiosidade de os desfiar, encontrando os filamentos de seda. Um pote desenterrado em 1973, na povoação neolítica de Hemudu, situada em Yuyao, na província de Zhejiang, tem gravado quatro bichos-da-seda representados a bambolear, dando indicações de se prepararem para iniciar a formação do casulo e percebe-se, pela diferença com os actuais, não terem ainda sido domesticados, segundo The Story of Silk de Liu Zhijuan, editora Foreign Languages Press, 2006.

A Cultura Hemudu (5000-3300 a.n.E.), a jusante do Rio Yangtzé, ficou caracterizada por casas de madeira e bambu, cobertas a colmo, construídas sobre palafitas, sendo os habitantes pescadores e plantarem já arroz, tendo como totem um pássaro do Sol.

A sericicultura (cultura do bicho da seda) não foi inventada por uma só pessoa, mas é resultado de muitos milénios de experiência. Ao historiar tempos tão recuados, as datas muitas vezes contradizem-se, mas já a neolítica Cultura Yangshao (c.5800-3300 a.n.E.) fiava e tecia a seda. A meio curso do Rio Amarelo (Huanghe) e vale do Rio Wei originara-se um importante polo civilizacional, a Cultura Yangshao. Local privilegiado de férteis vales com abundância de alimentos e animais levou à fixação de famílias agricultoras, de caçadores e pescadores, começando rapidamente a ser densamente povoado. Contava já com instrumentos para fiar e tecer, como fusos, rocas, agulhas de osso tubulares e pentes de bater de madeira. Sabe-se hoje seguramente que se tecia com fio de seda no ano 3650 a.n.E., pois na província de Henan foi encontrado um fragmento de gaze com essa idade. Também um tear para fabricar panos de seda datado de 2500 a.n.E. foi descoberto em Fanshan, na província de Zhejiang.

Na parte Oeste da China, na actual província de Sichuan, conhecida antigamente por Shu, foi fundado em 2800 a.n.E. o reino dos Antigos Shu pelo clã Can Cong, que vivia em casas de pedra nas montanhas de Min, a Noroeste de Sichuan, hoje distrito de Maoxian, no desfiladeiro Canling guan, prefeitura de Diexi.

Can Cong, que significa um conjunto de bichos-da-seda, é considerado o primeiro rei dos Antigos Shu e foi deificado como Qingyi shen, (Deus das Vestes Verde-azuis), sendo o totem do clã muito provável o bicho-da-seda. Logo haveria também aqui quem já trabalhasse com a seda e nas árvores das amoreiras vivia o bicho-da-seda ainda em estado selvagem.

A Cultura Shu, centrada no Vale de Chengdu, foi dividida em dois períodos, sendo o primeiro entre 2800 e 800 a.n.E. conhecido por Cultura dos Antigos Shu e ocorreu durante a época dos Cinco Soberanos (Wu Di, 2500-2100 a.n.E.) e das dinastias Xia, Shang e Zhou do Oeste. Este período desenvolveu-se em quatro fases, correspondendo a primeira à Cultura Baodun (2800-1800 a.n.E.), altura em que aí viveram Can Cong e Lei Zu, que empreendeu o cultivo do bicho-da-seda e usou os filamentos retirados do casulo para tecer.
Lei Zu, considerada a primeira pessoa a dedicar-se à criação do bicho-da-seda, (começando assim a sua domesticação), desenovelou os casulos e usou os filamentos de seda para tecer. Várias são as lendas sobre Lei Zu, cuja tribo Xi Ling se situava nas terras do reino dos Antigos Shu (Gu Shu 古蜀), fundado nessa altura por Can Cong que, tal como o nome indica, está ligado à seda e a todo o processo.

O reino dos Antigos Shu criou um dos polos da civilização chinesa, a do curso superior do Rio Yangtzé (Changjiang). Segundo alguns historiadores, os Antigos Shu pertenciam à Cultura Longshan (2500-2000 a.n.E.), com dois polos a jusante, no vale do Rio Amarelo em Shandong e na área da foz do Rio Yangtzé. Esta complementava-se com o povo da Civilização do Rio Amarelo na segunda fase da Cultura Yangshao (3300-2200 a.n.E.), situada no vale médio do Rio Amarelo, actual província de Shaanxi, e originou-se do intercâmbio com a Cultura Longshan, recebendo mais influências do que deu e daí duas distintas culturas evoluíram e hoje distinguem-se pela cor dos potes de argila.

A partir de 2500 a.n.E. ocorreram grandes transformações na China, que de uma sociedade matriarcal se transformava em patriarcal, época de junção das tribos a viverem ao longo do Rio Amarelo, passando as culturas desenvolvidas das várias regiões a estar em estreito contacto pelas Planícies Centrais.

Por essa altura, o Imperador Amarelo (Huang Di, 2550-2450 a.n.E.) ao ver um robe tecido em seda admirou o espantoso trabalho e logo quis conhecer a talentosa pessoa que o confecionara. Seguiu para o território Shu e em Xi Ling Shi, onde vivia a tribo matriarcal Xi Ling, encontrou-se com Lei Zu, segundo o historiador Sima Qian chamada Wang Feng. O encontro terá agradado muito a Huang Di pois casaram-se, passando Wang Feng a ser designada por Yuan Fei, indicando ser a primeira esposa do Imperador Amarelo.

9 Out 2023