José Simões Morais Via do MeioRio Amarelo Conhecido em chinês por Huanghe (黄河), o segundo maior rio da China com 5464 km de comprimento atravessa nove províncias, tendo em Qinghai a nascente, a Oeste do rio Jinsha (outro dos nomes do Changjiang). A Oeste da China, no planalto tibetano nasce o rio Amarelo na cordilheira Kunlun, nas montanhas Bayan Har (Bayankhar, na língua mongol) no planalto Yekulonglie em Chenduo, prefeitura Yushu, província de Qinghai, de onde parte para Leste com o nome mongol de Yekulongliechu. Os tibetanos chamam-no Maqu, pois segundo eles o início do rio parece a cauda de um pavão devido ao leque formado por inúmeros lagos e rios que convergindo são a sua fonte. Essas provêm de três lagos (Gyaring, Ngoring e Xingxiuhai), que se juntam no cruzamento de um pequeno rio proveniente do Norte denominado Chacu e outro do Sul, mais longo chamado Karichu. Após serpentear pelas montanhas de Qinghai, o Rio Amarelo segue brevemente por Sichuan e regressando para Noroeste, passa para Gansu, onde banha a capital Lanzhou. Daí vai para Ningxia, onde subindo atravessa a capital Yinchuan e continuando para Norte entra na Mongólia Interior, passando por Baotou, a maior cidade dessa província e segue até Hekou (sob jurisdição de Togtoh), onde terminam os 3472 km do curso superior do Huanghe. O rio Amarelo inicia o curso médio em Hekou e descendo para Sul em linha recta pela borda da província de Shanxi, fronteira com Shaanxi, quase no final recebe as águas do rio Fen. Mais adiante, na área de Yuncheng (no Sul de Shanxi) o rio Amarelo deixa de correr para Sul e vira para Leste, fazendo de linha limite ao Norte de Henan. Onde o Huanghe faz a viragem para Leste desagua o rio Wei [proveniente das montanhas Qinling ainda em Shaanxi], que em Xianyang [capital da dinastia Qin, a 25 km a Norte de Xian] recebera o afluente Jing e mais à frente o rio Luo, parecendo ser esse balanço de enxurrada a desviar o rio Amarelo para a fronteira entre a província de Shaanxi e Shanxi, levando-o a entrar em Henan. Aí, em Jixian (prefeitura de Linfen, Shanxi) a queda de água de Hukou, catarata com 15 m de altura e 20 m de largura, é a maior do rio Amarelo e a segunda maior da China. É devida à fluição das águas provenientes do Grande Canhão de Jinxia, estando o rio Amarelo emparedado por montanhas a reduzir a sua largura, logo a correr mais veloz, ao encontrar-se com a montanha de Hukou, sem possibilidade de passar essa barreira, esgueira-se por uma estreita abertura e submerge numa queda de 15 a 20 metros de altura. Sanmenxia é a prefeitura mais Oeste de Henan, fronteira com Shaanxi, e a cidade encontra-se no lado Sul do Rio Amarelo, havendo duas ilhas que dividem em três partes o rio, na altura de entrar na sua viagem para Norte pelo planalto de loesse, formado pelo depositar dos sedimentos férteis amarelados transportado pelas águas do rio. Nos anos 60 foi construída a barragem Sanmenxia (Garganta das Três Portas), local ligado com um dos trabalhos de Da Yu, quando usou o machado divino para cortar a montanha em três partes, criando as Gargantas de Sanmenxia a prevenir inundações. Atravessando o Norte de Henan, o Huanghe banha em Taohuayu a capital Zhengzhou, à frente da qual o rio Qin desagua e finaliza os 1206,4 km do Curso Médio de Huanghe, iniciado em Hekou na Mongólia Interior. A setenta quilómetros a Leste da capital Zhengzhou, aparece Kaifeng na margem Sul do Huanghe e o rio corre depois na província de Shandong pela capital Jinan e no distrito Kenli, em Dongying, desagua no mar de Bohai. PASSEAR NO HUANGHE A cor amarela a dar o nome ao rio deve-se à grande densidade de sedimentos transportados nas suas águas a provocar o empobrecimento dos solos nos planaltos de loess situados no Noroeste da China. Esses sedimentos vão-se depositando no médio e baixo curso do rio, provocando uma mudança do curso deste de dez em dez anos e as margens tornam-se muito férteis. No período das chuvas e do degelo, entre Maio e Agosto, o rio corre com um vigor inacreditável para quem o conhece no resto do ano, quando parece adormecido e parado. Por ano, 50 mil milhões de metros cúbicos de água são drenadas por este rio no mar e irriga 750 mil quilómetros quadrados de terrenos. O Curso Alto do Huanghe passa por Lanzhou, a primeira grande cidade e capital da província de Gansu. De Lanzhou ficou na memória de viajante o navegar sobre uma boia no rio Amarelo, as obras por toda a cidade, a construção de novas avenidas e a abertura de centros comerciais, cujas inaugurações eram feitas com a dança do leão e espectáculos coreografados por crianças das escolas, havendo ainda danças praticadas por diferentes etnias. No público, depreendidos pelas vestes e feições dos rostos estavam tibetanos, uigures, huis e dongxiang. Essas minorias trajando de cores aguerridas vinham à cidade e nas grandes avenidas contrastavam com as vestes cinzentas da população local muçulmana que se dirigia às inúmeras mesquitas. Durante muitos séculos, os caminhos do comércio fizeram passar por esta cidade as caravanas de uma rota conhecida como a da Seda do Oeste. Parece estar esse tempo a ser apagado dos registos de Lanzhou e os habitantes, resignados, assistiam à destruição das antigas estruturas da cidade, provenientes do tempo de bastião avançado do País do Meio. Agora, com um novo planeamento urbanístico a merecer o acordo dos habitantes, a cidade está de novo a ser construída. Contentes, referem chegar a hora de com novas casas melhorar as condições de vida. Numa esquina do largo espaço da praça principal, protegidos do Sol, jogadores de xadrez ali se refugiam às dezenas. Refrescam-se de um calor seco, cobertos pela sombra de frondosas árvores e com uma pequena aragem a correr. Verdadeiras finais são ali disputadas entre tabuleiros. A mesquita, que ao centro divide a avenida, dos altifalantes difunde o sermão para a rua e muita gente sentada à sombra de pequenas árvores escuta-o, enquanto vai preparando o cenário do seu trabalho, pois ali estão os que lêem as mãos, os que usam o Yi Jing e outros a trabalhar com o “Fengshui”. O rio Amarelo corre em Lanzhou mansamente com uma cor barrenta, já sem a fúria característica depois das fortes chuvadas, que aparecem normalmente na altura do degelo das montanhas durante o Verão e provocam inundações por todo o vale. A paisagem mostra ainda campos de cereais calcados por recentes enxurradas de incontroláveis águas. A areia fina das dunas de um amarelo acastanhado, trazida por o vento do deserto, escorre até ao Huanghe. Na borda do rio, jangadas feitas com boias da pele interior e inteira de carneiro, atadas na parte extrema de cada uma das quatro pernas e cosidas no lugar onde falta a cabeça e na pele da barriga, após desmanchado o animal. Cheia com ar serve de flutuador e levando em cima canas de bambu a fazer de estrado permite transportar famílias. Por vezes essas jangadas usam mais do que uma boia, atadas umas às outras. O passeio proporciona algo raro para o rio Amarelo, o embarcar numa travessia do rio, ou uma descida por pequenos rápidos. Do outro lado, devido ao carácter pedregoso das montanhas uma fraca vegetação e no vale uma pequena aldeia junto ao rio, envolta por um verde agrícola onde se destaca uma enorme mesquita. Querendo visitar uns velhos moinhos de água, referenciados em antigos guias como monumentos da dinastia Han, é-me dito terem já sido desmantelados, talvez para reparar. O rio Amarelo, subindo de Sul para Norte pela província de Ningxia, a meio passa pela capital Yinchuan [conhecida Xingqing quando foi capital da dinastia Xia do Oeste (Xixia, 1034-1227)] sendo as suas águas desviadas por inúmeros canais para irrigar os campos. Milho, arroz e trigo crescem em quantidades a ultrapassar as necessidades da região, fazendo de Ningxia uma província maioritariamente agrícola. A província de Henan, situada na parte média do Rio Amarelo, é um dos berços da civilização chinesa, onde desde a antiguidade viveram ilustres personagens, como Fu Xi, o primeiro Ancestral da Civilização Chinesa e Nu Wa, ambos considerados o pai e mãe do povo chinês, assim como Sui Renshi, o primeiro a fazer fogo. Aí nasceu o Imperador Amarelo, Huang Di que, unindo as tribos, criou o povo chinês. Albergou ainda as capitais dos Soberanos Zhuan Xu e Di Ku e das três primeiras dinastias chinesas, a Xia, a Shang e a Zhou. Lao Zi, filósofo do Dao aqui viveu tal como Zhuang Zi, Hua Mulan – heroína do tempo da dinastia do Norte (386-581) e tantas outras personagens famosas da História da China. Seguimos para Zhengzhou, a capital da província de Henan, onde termina o Curso Médio do Huanghe em Taohuayu. Situada na parte média do rio Amarelo foi no período Neolítico um local privilegiado, pois aí floresceu a cultura Peiligang há 8 mil anos, a cultura Yangshao um milénio depois e a cultura Longshan (3000-1900 a.n.E.). Ligada à cultura Erlitou (1900-1500 a.n.E.), a dinastia Xia (2070-1600 a.n.E.) em Zhengzhou fez a capital com o nome Yangcheng, sendo também depois a primeira capital da dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.), relacionada no início com a Cultura Erligang (1600-1400 a.n.E.). Por Zhengzhou passavam os barcos de transporte a navegar pelo rio Amarelo entre as capitais das dinastias situadas a nascente e o celeiro da China, a Leste.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs olhos do dragão oculto no traje da Imperatriz Zhang Xuanren, mais conhecida como a imperatriz Gao (1032-1093), sendo regente entre 1085-93, tornar-se-ia um exemplo da flexibilidade do silente exercício do poder, tendo um papel decisivo e discreto no regresso do poeta Su Shi (1037-1101) do seu exílio em 1086. O que seria recordado de modo elucidativo numa pintura atribuída ao pintor Zhang Lu (1464-1538) quando reinava uma outra formidável imperatriz. Nesse rolo horizontal, O regresso à corte de Su Shi (tinta e cor sobre papel,32,4 x 629,9 cm, no Museu de Arte de Berkeley, Universidade da Califórnia), o poeta é figurado a caminhar, rodeado de senhoras mas onde a imperatriz está significativamente ausente. E, se todos naquele tempo poderiam reconhecer essa ausência, a todos seria igualmente patente a coincidência do que então ocorria com a imperatriz viúva Xiaochengjing, mais conhecida pelo nome do seu clã, como imperatriz Zhang (1470-1541). Num retrato póstumo (tinta e cor, 64,2 x 52 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) como era usual, feito antes de 1505 quando se dá a transição para o novo imperador seu filho, Zhu Houzhao (1491-1521) que reinaria como Zhengde, ela é mostrada com a sua imponente fengguan, a «coroa de fénix», no sebasto do seu vestido como era habitual, dois comuns e decorativos dragões bordados. Porém do decote, nas vestes interiores notam-se como espreitando, oblíquos, dois grandes olhos de dragão que na sua assimetria denunciam o movimento, a poderosa e inquietante força do dragão. O nascimento desse seu filho fez parte da sua inédita trajectória de aquisição de poder, manifestada logo no facto singular de ser a esposa do único imperador adulto (Hongzhi, r. 1488-1505) que não teve outras esposas ou concubinas. Tendo casado em 1487, o filho de ambos só nasceria quatro anos depois, após ela ter participado em 1490 em elaboradas cerimónias propiciatórias dirigidas pelo quinquagésimo Mestre do Céu do Daoísmo, Zhang Guoxiang (c.1577-1612). Zhang, a imperatriz, faria parte em 1493, de outro ritual em que como outros imperadores, foi ordenada sacerdotiza na Escola daoísta Zhengyi, do Tianshidao. A excepção será porventura, tê-lo feito seis anos antes do imperador seu marido. Essa cerimónia de legitimação ficaria registada num longo rolo horizontal (tinta e cor sobre papel dourado, 54,6 x 2743 cm, no Museu de Arte de San Diego) que mostra, entre nuvens, uma procissão de seres celestiais, deuses, Zhang Guoxiang visto de frente e a figura da imperatriz vestida com as vestes adequadas mas estranhamente pintada sobre um papel diferente colado no rolo. Numa longa inscrição refere-se Jiutian Xuannu, a «misteriosa Senhora dos nove céus», com quem se identifica a imperatriz e sobre quem uma fonte daoísta comenta; «De modo a sufocar o mal e fazer regressar a rectidão, foi preciso aprender a tornar-se invisível.»
Hoje Macau Via do MeioPoesia chinesa e psicanálise – Lacan em Pequim Por M. Ângela Andrade O que há de peculiar na forma na poesia chinesa, que leva Demiéville a comparar a sua tessitura com a arte de “fritar peixinhos sem destroçá-los”? Há uma alusão à sua leveza e subtileza. Mas esse savoir-faire implica ainda exercitar-se pela repetição, pois os chineses imitam e repetem sempre os códigos poéticos, os mitos e os ritos ancestrais. Para além do saber fazer, da habilidade, o que confere à poesia charme irresistível é o estilo e a singularidade, tal como o demonstra a caligrafia chinesa. O que se apreende é que a repetição chama o novo. Na tessitura de uma poesia provisória, a apreensão do ser sempre escapa. Daí ser “poesia ténue, sempre prestes a se desfazer na via do apagamento, sempre capaz de evitar o desaparecimento, ameaçada de extinção e, no entanto, sempre renascendo. Afinal inextinguível, por tocar nos contrastes da língua em si, da qual se desprende a linguagem.” Antes de prosseguir lendo como Albert Nguyen articula as relações entre poesia chinesa e psicanálise, cumpre notar dados historiográficos da relação de Lacan com a China, sua língua e pensamento: Jacques Lacan sempre fora atraído pelo Extremo Oriente e sabe-se que, durante a Ocupação, havia aprendido o chinês na Escola de Línguas Orientais. Em 1969, quando elaborava sua teoria do discurso a partir da divisão wittgensteiniana do dizer e do mostrar, voltou a mergulhar com paixão no estudo da língua e da filosofia chinesa. Em outra ocasião procurei tratar aqui das referências sobre a língua chinesa nos seminários de Lacan, principalmente as do seminário XVIII. No presente trabalho busco apresentar aspectos das indicações de Lacan a respeito de poesia chinesa: “Se vocês são psicanalistas, verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outras coisas, outra coisa que o sentido. (….) O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética podem ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. É absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É aliás completamente surpreendente que os poetas chineses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia… seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever…” A poesia chinesa, porém, só pode ser lida conhecendo o contexto em que brota, ou seja, os fundamentos filosóficos, particularmente daoístas em que está alicerçada. Ainda sobre o contexto: o solo em que florescem essas tradições gerou uma combinação particular de vertentes filosóficas heterogéneas que, no entanto, se revelam bastante assimiladas na cultura chinesa. Nguyen indica ainda os trabalhos de Isabelle Robinet e François Julien que demonstram indiscutivelmente a incidência e força destas doutrinas, tanto na poesia como na estratégia e política da China. O artigo em questão destaca três grandes poetas chineses para ilustrar cada tradição: Wang Wei (budista), Li Po (taoísta) e Du Fu (confucionista). Escolhi para ilustrar a presente exposição, a poesia de Wang Wei. Atalho pela velha floresta; nenhum vestígio No coração do monte, um som de sino; vindo de onde? À tarde, sobre o lago deserto, meditando, Alguém aprisiona o dragão venenoso. Em Televisão, Lacan fala do estatuto provisório da poesia, fazendo dela uma arte do desprendimento, como aquela que o poeta Wang Wei pratica. No encontro de poesia chinesa e psicanálise surgem interferências e diferenças. Nguyen destaca a ressonância, termo que equivale à interferência, como o alvo da interpretação psicanalítica. As interferências ou ressonâncias são: 1. A natureza, que na poesia chinesa indica o lugar do vazio, o furo. “Lugar de ressonância, lugar de interferência: nada pode ressoar sem um furo: aquilo que no saber constitui o sintoma analítico, aquilo que deixa o poema e o livro inacabados, aquilo da ruptura da tradição que provoca a rã de Bashô, que se lança no poço, plof! e tantas outras indicações desta interferência da ressonância.” 2. A relação com o real. Essa segunda interferência assenta-se no lugar concedido ao real. A relação ao real é distinta na psicanálise. Na poesia chinesa, o real surge como realidade derradeira, sinónimo de Dao. Já a psicanálise confere ao sujeito o estatuto de separado, cortado definitivamente de todo o mundo e de toda cosmologia. Assim, separação, exclusão do sujeito, em oposição à integração daoísta. Poderíamos, talvez, aproximar essa relação ao real no taoísmo com a música tonal, enquanto que a relação ao real na psicanálise com a música atonal. Ou ainda com Badiou: “O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender bem, é que ausência de sentido para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma função de sentido do real, enquanto ausência de sentido. Há uma ausência no sentido, uma subtracção ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a diferença entre ausência de sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).” 3. A mistura, mestiçagem (métis) da linguagem ou do real com a linguagem do simbólico. É a que se contrapõe à linguagem unívoca do Um fálico; a mestiçagem favorece a maleabilidade de espírito. Efeito de sujeito, afânise, ou o estatuto provisório, evanescente do ser? O sentido de “poesia provisória” diz respeito ao caminho no qual a apreensão do ser sempre escapa. O analisante e o poeta seriam, nesta perspectiva, um efeito poético. Nguyen conclui seu trabalho com o que nomeia de Lacan chinês. Diz ele, “Como situar esta possibilidade do passo suplementar que Lacan realiza sobre o taoísmo e a poesia? A resposta é dupla. Por um lado, Lacan, ao formular a estrutura, não deixa de examinar o registo da consequência (desenvolvida nesse mesmo seminário). A causa não porta somente efeito, mas consequências. E por outro lado, esse passo suplementar é autorizado pelo que nomeio de “Lacan chinês” para designar o lugar sempre marcado de referências chinesas em seu ensino, do início ao fim. Lacan começa seu ensino com o Zen e todos conhecem a referência à Índia de Prajapati e o Deus Trovão dos Escritos, mas é principalmente a partir do seminário “A Angústia”, seminário sobre o afeto certeiro da angústia, central em sua elaboração da teoria da causa, que Lacan, a partir do vazio e do feminino – pois é também este um seminário sobre a abordagem do feminino juntamente a uma tentativa de visualizar um para além da rocha freudiana da castração para o final de análise – com Kuan Yin, a fêmea misteriosa da qual ele extrai o olhar como causa, olhar faltante, olhar vazio, começa a marcar aquilo que será uma insistência sobre as referências chinesas.”
José Simões Morais Via do MeioCultura do Rio Azul A maioria das culturas e civilizações começaram nas imediações de cursos de água e devido a ser este Elemento essencial, tanto para a vida biológica como ao quotidiano estar, aprendeu o Ser Humano a usá-lo como via de comunicação. Na China, nas margens dos seus dois mais importantes rios, começou uma gloriosa História de Civilização, a legar grandes e bons inventos ao Mundo, assim como a perpetuar uma acausal maneira de pensar. Dividida em três diferentes zonas geográficas, as culturas nelas germinadas desenvolveram-se paralelamente e ao serem absorvidas formaram um orgânico corpo cultural, cujos avanços no reconhecimento dos povos entre si, tanto da Planície Central, como do Vale de Sichuan e na Região de Lingnan, tornaram-se pólos irradiadores da Civilização Chinesa. Estava-se no período Neolítico, entre 8 mil a 2 mil a.n.E., quando se deu início à Agricultura e nas férteis áreas entre os rios Amarelo e o Yangzi a civilização chinesa rapidamente se desenvolveu. A Norte, a cultura do milho desenrolou-se à volta do Rio Amarelo e no centro-Sul a do arroz, cultivado em torno do Changjiang (rio Azul, ou Yangzi), num período de grande avanço nas técnicas agrícolas e métodos de cultivo. Segundo a História, ainda a mim contada, a Civilização da China nascera no rio Amarelo e afluentes, e nas margens do seu curso médio e baixo ocorreu, devido ao saber e conhecimento do Imperador Amarelo (2704-2595 a.n.E.), a união de muitas das tribos, englobadas inicialmente nos Huaxia. Huangdi (Imperador Amarelo) foi o primeiro chefe patriarcal, pois do social retirou o domínio matriarcal a reinar havia 45 mil anos. Os Huaxia mais tarde passaram a ser o povo Han. As tribos que se recusaram a integrar esse povo, como parte dos Dongyi, migraram e vamos encontrá-los noutras paragens, divididos entre Miao, Qiang e Yi. Nas margens do rio Amarelo e seus afluentes muitas das primeiras dinastias fizeram as capitais. Agora, ao longo dos anos foram-se descobrindo as culturas neolíticas do Changjiang (rio Longo, ou Yangtzé), a permitir perceber no vale desse rio a herança de há 5 mil anos iniciada por intercâmbios das culturas Majiabang e Liangzhu e da mesma altura com a cultura Shu (2800-800 a.n.E.), proveniente da província de Sichuan a abarcar os povos Ba e Qiao. Abria-se assim um azul estar a escoar o espírito da cultura Wu Zhu (巫祝) do povo Shu pelo Changjiang até à foz. Nesse longo curso de água, também conhecido por rio Azul, Laozi em contemplação banhou-se no Dao de onde respira a energia do Universo e em alta avaliação do momento teorizou a Filosofia do Dao, ligada ao animismo da una idade Celeste (天, Tian), deixando-nos escrito o Dao De Jing (道德经, A Via da Virtude do Universo). Sichuan era também a porta para os caminhos do Sudoeste, de montanhas e rios até à Ásia Central e Índia, de onde provinham muitas novidades e novos produtos das outras Civilizações, a indiana e a egípcia. Para a trindade de consciência, simbolizada nas três cores primárias, se o rio Amarelo tem a cor imperial do Soberano, o rio Azul conecta a contemplação no momento do estar e existe ainda a complementar o rio Vermelho (红河, Honghe), com 1150 km de comprimento. Nasce nas montanhas Hengduan, em Yunnan na China, e já no Vietname segue por Hanói para desaguar no Golfo de Tongkin, enquanto o Lancangjiang (澜沧江, rio Mekong, com 4350 km), proveniente do planalto Qinghai-Tibete, passa a Oeste da nascente do rio Vermelho em Yunnan e tem a foz a Sul do Vietname. Devido à expansão para Sul da dinastia Qin, o Changjing tornou-se o rio a dividir Zhongguo (中国, País do Meio, China), ficando a via fluvial do centro, pois o território chinês passou a estender-se para Sul até meio do Vietname. Nessa zona corre o rio Vermelho habitada por nómadas tribos, conhecidas por as Cem Tribos Yue (BaiYue, 百越), descendentes da migração saída do Corno de África há 100 mil anos, e apareceu na China como Homo sapiens Denisovans, os Neandertalensis da Ásia, já com feições do homem moderno chinês. Na caminhada desses grupos para Norte, em Yunnan foram os primeiros a desviar por o rio Vermelho para Leste até ao mar. Os últimos dessa peregrinação, antes de chegar ao gelo das estepes do Norte, seguiram por o curso do rio Amarelo, no actual Gansu, de onde há cinco mil anos os saberes de Fuxi, o primeiro Ancestral da Civilização Chinesa, se transmitiram para Leste. Na província de Jiangsu, situada a Sul do rio Yangzi está a zona de Jiangnan, densamente povoada devido a ser privilegiada em lugares bafejados de Vento e Água (Fengshui) e por isso, favoravelmente escolhida por a riqueza do viver. INUNDAÇÕES DO VALE DO YANGZI As águas do Changjiang, das nascentes descem abruptamente cinco mil metros em altitude e correndo entre estreitas e altas paredes montanhosas durante milhares de quilómetros, encontram-se em Hukou (Jiujiang) no início dos 938 km do Curso Baixo do Changjiang (长江下游). De zonas planas com um sem número de lagos, conhecida por as “Infindáveis Terras Alagadiças”, aí as águas do rio amansam e tornam-se mais lentas, mas na altura dos degelos, em finais da Primavera e durante o Verão, com as imensas chuvas da monção a ajudar, as cheias são uma constante, varrendo tudo à frente. No historial das inundações do vale do Yangzi regista-se as maiores de sempre há 4 mil anos. Entre 7000 e 2000 a.n.E., a cada quinhentos anos havia uma grande inundação e catastróficas foram sete entre 8000 e 1300 a.n.E.. Da Yu, fundador em 2070 a.n.E. da dinastia Xia, já como rei veio ao vale do Changjiang tentar controlar as cheias do rio no lugar das Três Gargantas, conseguindo, com ajuda das divindades, desobstruir as águas ao abrir um furo no monte de Wu(shan), voltando elas a escoar até ao mar. Desde a dinastia Han até à Qing, durante dois mil anos houve à volta de duzentas inundações na bacia do Yangzi, ocorrendo uma a cada dez anos, ficando registada a de 160 a.n.E., mas especialmente grandes foram duas, em 1860 e 1870. No século seguinte, devido às cheias, em 1931 morreram 145 mil pessoas, em 1935 sucumbiram 142 mil e em 1954 faleceram 33 mil. Quando por aí viajamos, assistimos em 1991 a uma grande cheia. ATÉ SHANGHAI Regressados a Nanjing, daí embarcamos para a última parte do percurso a levar-nos até Shanghai, numa viagem de 18 horas, tendo o ponto de interesse focado no cruzamento do Grande Canal com o rio cujo nome junto a Yangzhou é Jiang Yangzi. Estamos na província de Jiangsu e pouco tempo depois de deixar Nanjing aparece na mesma margem esquerda Yangzhou e no lado oposto do rio está Zhenjiang, cidades onde as águas do Grande Canal se misturam às do Changjiang, conectando-as. De barco fizera a viagem por o Grande Canal, de Sul para Norte, de Hangzhou a Suzhou, mas por ser já noite pouco deu para perceber como as suas águas se cruzavam com as do rio. Sentiu-se uma maior ondulação e a mudança de direcção ao navegar um pouco num estreito canal junto à margem paralelo ao Yangzi, até verdadeiramente ser confrontado na travessia com a corrente de Oeste para Leste a baloiçar o barco. A calma voltou ao chegar à margem esquerda do rio e retomar o Grande Canal a Leste de Shiqiao, a Sul da cidade de Yangzhou. Na parte final do Curso Baixo do Changjiang encontra-se na margem direita Jianbi, cidade ligada à metalurgia pesada pertencente à prefeitura de Zhenjiang, por onde passam os barcos no Grande Canal a caminho de Hangzhou. Segue-se, ainda em Jiangsu, já no delta do Changjiang a ilha ocupada por a cidade de Yangzhong, aparecendo para Leste, na outra margem, Binjiang em Taixing, administrada por Taizhou. Continuando rio abaixo, na margem esquerda Jingjiang e no outro lado Jiangyin, cidade administrada por Wuxi e muito importante como porto de mercadorias. Por fim Nantong, na margem esquerda quase no final de um dos ramos do Yangzi, pois este rio termina em delta. A embarcação navegou durante uma hora no mar da China, entrando depois no rio Huangpu, que banha Shanghai, até atracar no cais em frente ao Peace Hotel. Olhando para o outro lado, terrenos áridos a serem terraplanados onde está planeado construir Pudong, o pólo financeiro de Shanghai. Há quatro anos ocupados por velhas fábricas a cair, prepara-se agora para aí nascer uma nova e dinâmica cidade. Dois prédios de uns vinte andares ali vão sendo construídos e no lugar ainda sobrevivem dois casebres, com horta em frente. Tão longe estamos de imaginar o que virá a acontecer àqueles vastos terrenos naquela ilha. De Shanghai, a embarcação essencialmente de mercadorias, tinha duas cabines de dois beliches abertas para turistas, fazendo a viagem duas vezes por semana por mar, passando por Xiamen e chegou ao porto de Guangzhou após navegar à noite no Zhujiang. Regressamos a Macau também de barco e no rio Xi aportamos no Porto Interior, alvorecia o dia.
Amélia Vieira Via do MeioOlímpicos E entramos numa musculada semana de força e beleza, treino e competição, um momento muito afeito a marcas de perfeito domínio, mas já desfeito daquelas singularidades por onde os deuses expressam a sua confiança na humanidade. Estamos expectantes, atentos, e até com alguma preocupação, que o seio da Europa não é uma competência com que possamos contar, e o momento bastante difuso, instável, e França um palco mundial para o Ólympos (grego romanizado) mostrar grandiosidade. Vamos então para a cidade Luz que o inferno também ilumina os que transgridem para a direção do fogo, e pensar no Monte das distantes colinas onde o ponto mais alto dava pelo nome de Miticas. Já vimos aquela animação exemplarmente bem-feita onde os arquétipos funcionam na medida grande num florescente panteão na esperança de que ” esse assento etéreo” nos inspire e acalente no tempo inqualificável do mundo. «Os deuses tiram quanto dão. Ter é tardar.» Olímpia já não mora aqui, e todo o nosso jogo é um plasma a ser visto sem altar, que o mundo não altera nada à sua natureza de vórtice em busca de diversão em escalada, que ao passar para Delfos mais nenhum mistério acrescentou aos desígnios singulares dos heróis. Eles começaram em Olímpia no ano 776 a.C., tendo por designação Olimpíada – que um monte, é só um monte, e Olimpo uma morada. Agora Páris volta para o seu jogo de Tróia, onde Paris por estas horas já é uma cidade sitiada. Vamos assistir. É Verão e os corpos transluzem, tornam-se formidáveis, e mostram que os deuses habitam ainda dentro deles e a chama já está acesa para o momento. Outra vez a velhice a cobrar danos entre as Nações ocidentais, que um Papa veio há um ano a Portugal, velho e feliz, para uma jornada de juventude onde ninguém reparou na idade e com tal pugilismo que remetemos até para a face apolínea da era estival. Em nossa escala foi apoteótico, podendo ser designada como uma Olimpíada inesperada tão súbita quanto os milagres. Todos gostaríamos muito de estar em Paris vestidos de branco com coroas de flores e ramos de oliveira assistindo a tão memorável evento, que Paris, por pior que esteja o mundo, é a Cidade. As vilas deram os vilões, as aldeias, os aldeões, mas agora de tão unidos que estamos, sabemos que não nos poderemos esconder no Olimpo que fora outrora forte cidadela, e que em Paris estarão como na primeira festa em Olímpia a mesma humanidade dando um espectáculo para que as tochas sejam distribuídas como fogo sagrado. – Parísios, esse povo gaulês que nunca deixou jamais de mostrar o que neles sempre ardeu de intempestivo e cruente… mas estamos mais com Píndaro de Tebas, o maior poeta grego, o das Odes Olímpicas: (…) nem trovaremos torneio mais nobre que Olímpia… ele estará presente em espírito em todas as Olimpíadas do mundo pois acreditava na sua glória eterna. Aquilo de que um corpo é capaz, a alma não espelha, mas ele, animado, total e grandiloquente qual poema helénico, nos vai ainda maravilhar pelo espírito. É um distintivo da nossa inteligência, e veículo de dança que só mesmo os deuses concedem. A literatura amante dos jogos tinha certa predileção pela água, e todos pareceram fiéis ao mote de Píndaro. “O que me encanta é a linha alada das tuas espáduas, e a curva que descreves… tua fina, ágil cintura…pássaro de água” Cecília Meireles
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs estranhos penhascos e colinas de Jiang Shen Mi Fu (1051-1107), pintor, calígrafo e coleccionador de arte e de pedras caprichosamente formadas pela natureza, foi elogiado pelo modo como escrevia, concentrado no movimento elevado do cotovelo e não do pulso que segura o pincel, na expressão e não na perfeição dos caracteres. As suas sugestivas pinturas de aspecto enevoado também não ficavam marcadas pelo curso do pincel na superfície pintada (wubiji). Em tudo parecia responder ao que está escrito no Zhuangzi sobre «esquecer as palavras depois de entender o seu significado». Na originalidade do seu estilo porém, se não havia explícitas marcas das obras do passado, muitas delas da sua própria coleção particular, reconhecia-se nelas um honesto estudo. Um modo de proceder próprio dos pintores da dinastia Song, cujas pinturas são o resultado singular de uma informada combinação de elementos aparentemente fortuitos e contrastantes, cujo espelho era a própria natureza. E como ela, com trechos coincidentes e aspectos dissonantes, dependendo da experiência individual do homem que caminha consciente da riqueza de tudo o que o rodeia. De modo elucidativo isso está manifesto na famosa pintura de Fan Kuan (c. 960-c.1030) Viajantes através de rios e montanhas (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 206,3 x 103,3 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé). A grandiosa majestade do espaço natural, contrastando vivamente com a minuciosa delineação dos pequenos vajantes e mulas carregadas, é parte desse vocabulário. Outras especifidades resultam de uma cuidadosa atenção às possibilidades expressivas da mutável paisagem ao longo das estações do ano e estão presentes na impressionante pintura de Guo Xi (1020-90) conhecida como Árvores velhas, distância plana (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 35,6 x 104,4 cm, no Metmuseum). Aí se notam os ramos retorcidos como «pinças de caranguejo», que traduzem a emoção que desperta a queda das folhas das árvores no Outono. Jiang Shen (c.1090-1138), um pintor que nasceu em Xinan (Zhejiang) e que frequentava a casa de família de Mi Fu quando este vivia em Wuxing, cerca de 1136, e adoptando embora algumas das inovações do mestre, como os célebres pontos de tinta de Mi Fu (Mi dian), acabou criando algo novo e estranho. Em dois rolos horizontais que lhe são atribuídos; Montanhas verdejantes (tinta sobre seda, 33,6 x264, 1cm, no Museu Nelson-Atkins, Kansas) e Espaço Infindável de rios e montanhas (tinta sobre seda, 46,3 x 546,5 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) também são visíveis características associadas aos pintores do século X, Juran e Dong Yuan, parte da sua síntese. Muitos anos depois, quando o influente Dong Qichang (1555-1636) expôs a sua própria grande síntese (dacheng) escreveu: «Para pintar colinas em contínuo e cordilheiras penhascosas há que aprender com Jiang Guandao (Jiang Shen)».
José Simões Morais Via do MeioCurso Médio do Changjiang (长江中游) Nos 6363 km, o rio Longo (Changjiang), também conhecido por Yangtzé ou Yangzi, está dividido em três secções, o Curso Superior do Changjiang (长江上游) com 4504 km de comprimento, desce das nascentes da montanha de Tanggula (唐古拉山) nos planaltos de Qinghai-Tibete e termina em Yichang (宜昌), província de Hubei. Aí se inicia o Curso Médio do Changjiang (长江中游), com 955 km de comprimento até Hukou (Jiujiang, no Jiangxi), tomando o rio o nome Jingjiang entre Yichang e Yueyang. A viagem de barco de Yichang a Wuhan leva 22 horas e passa por Yidu, onde o rio Qing desagua no Jingjiang, depois aparece na margem esquerda Jingzhou, cidade antiga muralhada, centro militar com muita história e na mesma margem está Shashi, directamente controlada por o governo provincial de Hubei. Servira já no Período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.E.) de porto ao reino Chu e foi um dos quatro portos abertos aos japoneses em 1895. Navegando para Sul em Hubei chegamos a Yueyang, na parte Leste do Norte da província de Hunan, onde o rio toma a direcção Nordeste e de novo por Hubei vai à capital Wuhan, a meio da parte navegável do Changjiang. Daí, até chegar à pequena cidade industrial de Jiujiang, são treze horas. Desde Wuhan, o curso das águas desce para Sudeste, passa por Huanggang, Huangshi e ainda em Hubei por Wuxue (武穴市, até 1987 Guangji), tendo na margem oposta, já na província de Jiangxi, Niuguanji (牛关矶), em frente às quais o Changjiang regista a sua maior profundidade natural com 103m, considerada como as águas mais profundas de um rio no mundo. De novo a Norte da província de Jiangxi, agora em Jiujiang, localizada na margem direita do rio, onde pouco depois se encontra a boca do lago Poyang [este, com 3585 km² de superfície é o terceiro maior da China, sendo de água doce]. Na península em frente à de Jiujiang fica Hukou, considerado um bairro nos arredores da cidade, onde se iniciam os 938 km do Curso do Baixo Changjiang (长江下游) até desaguar no Mar do Leste da China, Oceano Pacífico. DE BARCO ATÉ NANJING Numa viagem de cerca de vinte horas, na continuação da descida feita de barco desde Chongqing, em Jiujiang rumámos para Nanjing. O navio de grande calado está dividido por andares e zonas, mediante o número de camas por cabine. Assim a segunda classe, a corresponder à primeira devido à não existência dessa categoria, é de cabines para duas pessoas com todo o tipo de conforto, alcatifa, televisão, quarto de banho privativo, mesa, poltronas e varanda com as melhores vistas para o exterior. Mediante o tamanho do barco, nessa classe podem existir duas, quatro, ou seis cabines, mas então raramente ocupadas pois o preço dobra em relação à classe seguinte. Já na terceira classe, o número também varia, podendo dispor de cabines de seis, oito, ou doze camas em beliches. Um lavabo e uma televisão juntam-se a uma mesa e à garrafa termos, constituindo o mobiliário de cada um desses cubículos, onde uma pequena janela redonda dá acesso a uma das margens. A quarta classe é de cabines sob a forma de corredores entre dezasseis a trinta e duas camas em beliche, tendo além do lençol, uma toalha, almofada e um cobertor. A quinta classe dá simplesmente acesso ao barco, com bancos corridos num amplo compartimento, mas sem cama as pessoas dispersam-se pelos corredores e locais de mercadorias, ou ainda no convés, quando o clima permite. Os vários quartos de banho e retretes compartimentadas por paredes baixas são constantemente limpos à mangueirada. Existem dois restaurantes de classes distintas, embora ambos com preços acessíveis, sendo o de melhor qualidade transformado à noite em sala de karaoke e discoteca. Pouco tempo depois, apareceram os paquetes de luxo a fazer cruzeiros, elevando a qualidade às excursões turísticas. Arrumadas as malas, vamos à varanda e percebendo poder ter outra vista, subimos as escadas até ao andar superior. Do outro lado do rio, um imenso número de grandes batelões passa e é quando na margem nos apercebemos de um porto de carga. Os estaleiros mais à frente, assim como o porto da marinha chinesa só verdadeiramente os vemos já o barco navega Rio Longo acima. Comboios de barcos cruzam vagarosamente, pois mais de uma dezena de barcos atrelados são puxados por um rebocador com o mesmo tamanho, deixando-os livres para o transporte de carga. Após Jiujiang, o Wanjiang [assim chamado o rio entre Jiujiang e Wuhu] vira agora para Nordeste e já na província de Anhui, na margem esquerda os lagos vão até Anqing. Na margem direita aparece Guichi e no lado esquerdo Tongling, seguindo-se Wuhu e por fim Ma’anshan, na fronteira entre Anhui e Jiangsu. Chegados a Nanjing ao cabo de vinte horas, atracamos junto à ponte rodoviária e de comboios construída em 1968. Está Nanjing (a Capital do Sul) em total remodelação, com as grandes avenidas, anteriormente cobertas por árvores, escavadas para a construção de modernos viadutos e mais tarde, de novo para o metro. As pessoas mais velhas olham tristes a demolição das casas, sentindo-se órfãs da cidade que lembra os 50 anos da invasão japonesa. Prepara-se agora afincadamente para o século XXI. Sem atenção prestada ao trajecto desde Jiujiang, após visitar Nanjing, com vontade de sentir a experiência do lento navegar rio acima, rumamos de volta, para ter o deslumbre do sulcar as águas numa lassidão sem relógio. Saindo de um dos cais a jusante da ponte rodoviária e de comboios de Nanjing, o barco passa primeiro por uma povoação da qual não sabemos o nome e alguém depois informou ser Ma’anshan, já a Leste da província de Anhui, pois ali termina Jiangsu. Após 90 km de viagem aparece a povoação de Wuhu, seguindo-se Tongling na margem esquerda e Guichi [desde 2000 Chizhou], onde o barco atraca. Dão-nos meia hora para visitar terra, o tempo necessário para descarregar a mercadoria trazida a abastecer a região. Do cais, subindo as escadarias de pedra a levar à pequena povoação, somos atraídos por um som de altifalante. Em cantata, sem nenhum instrumento musical a tocar senão a voz, a atenção é chamada para uma ruela em frente ao muro do porto. Seguimos atrás daquela música estranha e encontramos um aglomerado de pessoas concentradas em torno de uma figura tauísta, personagem de aspecto descuidadamente rural, com um gravador. Virado para um pano colocado no muro canta enquanto aponta com uma vara os caracteres escritos. Traz um acto de ópera teatralizado pela dicção dada, sonoridade cuja língua de uma melodia fora da do mandarim vibra ao coração, apesar de nada ter de terno. No chão, um plástico retira da lama o gravador e as cassetes vendidas a 5 yuan. Gostamos da música e a cena fica-nos na mente. Daí comprar a k7 e sem pedirmos desconto cobra-nos 4 yuan. Anos mais tarde ouvimos este músico na rádio, cujo nome não sabemos, pois a caixa da cassete nem capa traz. De novo no barco, as pessoas sem dele saírem compram laranjas a uma pequena embarcação nele encostado. Seguimos viagem e após Anqing, deixando Anhui entramos na província de Jiangxi. No cruzamento destas duas com Hubei e pouco antes de chegar a Jiujiang, o Changjiang toma o nome de rio Xunyang. Em Jiujiang, à saída do porto encontramos as ruas transformadas em feiras, sendo o número de restaurantes elevado. Por estar perto a cidade da porcelana, Jingdezhen, resolvemos voltar a visitá-la e de autocarro partimos para percorrer os 150 km feitos em seis horas de estrada. A viagem é interrompida a meio, pois temos de mudar para uma barcaça afim de atravessar o lago Poyang, próximo da foz com o rio Yangtzé. Um cabo aéreo conduz o barco, mais parecido com um grande contentor sem tampa, permitindo a travessia a pessoas e carros. Na outra margem, um autocarro espera para nos levar a Jingdezhen. Daí, a porcelana era escoada pelo rio Chang em pequenos barcos até ao Yangzi, de onde entrando pelo Grande Canal desde o século XV seguia para a capital Beijing. Agora [imagem de 1991 a 1995] o rio Chang serve de refúgio aos barcos-casa onde famílias inteiras habitam, alguns abrigados por a ponte. Falta agora percorrer o Curso do Baixo Changjiang (长江下游) até Xangai.
Hoje Macau Via do MeioSobre a pintura mil quilómetros de rios e montanhas de Wang Ximeng Xi Chuan, China (1963) trad. Jorge Sousa Braga As cores verdes e as cores azuis fluem juntas e formam montanhas vazias. Embora algumas pessoas caminham por elas, continuam a ser montanhas vazias, como se as pessoas que caminham por lá não tivessem rostos. Mesmo assim são pessoas. Ninguém deveria tentar reconhecer-se nessas figuras ou tentar ver as verdadeiras montanhas e águas deste mundo, nem deveria pensar em tentar obter elogios casuais de Wang Ximeng. Wang Ximeng conhece essas pequenas figuras e nenhuma delas é ele mesmo. Estas não são as suas figuras e ele não pode citar nenhuma delas pelo nome. As figuras adquirem as montanhas e as águas, assim como as montanhas adquirem a esmeralda e o lápis-lazúli, assim como as águas adquirem vastidão e barcos. O imperador Huizong contratou Wang Ximeng aos dezoito anos, sem saber que Wang morreria logo após terminar estes milhares de quilômetros de rios e montanhas. As montanhas e as águas não têm nome. Wang Ximing percebe que as pessoas sem nome são apenas figuras decorativas nas montanhas e nas águas, assim como os pássaros que voam sabem que são insignificantes para os jogos dos homens. Os pássaros encontram-se no céu. Entretanto, as pessoas que caminham nas montanhas têm os seus próprios itinerários e os seus próprios planos. Essas pequenas figuras de branco caminham, sentam-se à vontade, vão pescar, negociar, rodeadas de cores verdes e azuis, assim como hoje as pessoas de preto vão a banquetes, concertos e funerais, rodeadas de cores douradas e mais cores douradas. Estas pequenas figuras vestidas de branco nunca nasceram e, portanto, nunca morreram; tal como a utopia paisagística de Wang Ximeng, são imunes à poluição e à invasão e isso merece uma consideração cuidadosa. Assim, as pessoas que estão longe dos controlos sociais não têm necessidade de ansiar pela liberdade e as pessoas que não foram destruídas pela experiência não estão preocupadas com o esquecimento. Wang Ximeng permitiu que os pescadores tivessem um número infinito de peixes para pescar, permitiu que águas ilimitadas corressem das montanhas. Segundo ele, felicidade significa a quantidade exata de bênção para que, imersas no silêncio entre montanhas e águas, as pessoas possam construir pontes, azenhas, estradas, casas e viver tranquilamente, como as árvores que crescem nas montanhas, ao longo das margens dos rios ou ao redor de uma aldeia e das pessoas que a habitam. Ao longe as árvores parecem flores. Quando elas se agitam é o momento em que se intensifica o vento claro. Quando o vento claro se intensifica é a altura de as pessoas cantarem. Quando as pessoas cantarem é a altura de uma montanha vazia se tornar numa montanha vazia.
Hoje Macau Via do MeioApresentando Yu Xuanji, poeta chinesa da dinastia Tang Por Ricardo Primo Portugal Traduzimos a obra completa da poeta chinesa, da Dinastia Tang, Yu Xuanji, nascida em 844 e falecida, provavelmente, em 869. São 50 poemas, mais 5 fragmentos que restaram de uma obra que terá sido mais extensa. A produção poética da Dinastia Tang (618-915), considerada o ápice da poesia clássica chinesa, surpreende pela quantidade e qualidade, com formas fixas altamente codificadas. A popular antologia Poemas completos da Dinastia Tang, compilada posteriormente, no século XVII (Dinastia Qing), por ordem imperial, contém aproximadamente 50 mil poemas, escritos por 2200 autores. Terá havido mais escritores importantes e muitos textos se perderam. Há 190 mulheres entre esses autores, dentre as quais Yu Xuanji é um dos nomes de proeminência. Seus poemas foram publicados em vida em uma coleção chamada Fragmentos de uma Terra de Sonhos ao Norte, que se perdeu. Os 50 poemas que sobreviveram para nossa época foram recompilados na Dinastia Song (960-1279). Há uma extensa linhagem de poetas mulheres na China, a qual percorre as diferentes fases de uma literatura milenar quase sempre como corrente paralela ou específica em relação ao tronco principal. Na Dinastia Tang, período histórico de intensa vida urbana culta, a situação da mulher era bastante mais favorável que em outros momentos da história da China. A elas era atribuída uma posição social mais livre e igualitária em relação aos homens. Ainda que excluídas do sistema dos exames imperiais que selecionavam a elite dominante e impedidas de exercerem funções relevantes, muitas filhas de famílias abastadas podiam adquirir educação e conhecimento literário. As cortesãs e as monjas taoístas, como Yu Xuanji, formavam grupos sociais intercambiáveis (cortesãs tornavam-se monjas e vice-versa), com uma inserção particular nessa sociedade. As mais talentosas eram versadas nas artes clássicas (música, poesia, caligrafia, pintura) e eram tratadas como iguais em discussões e concursos de poesia. A vida, a obra e a lenda Yu Xuanji é uma das poetas mulheres chinesas mais afamadas, inclusive por sua biografia, não obstante pouco se conheça de fidedigno de sua história pessoal, além da obra considerada emblemática de uma consciência feminista precursora em relação à modernidade. De grande beleza, culta e dotada de uma inteligência viva, casou-se como concubina aos 16 anos, com Li Yi – jovem funcionário provincial e, como ocorria aos membros da elite confuciana selecionada pelos exames públicos, também poeta, a quem dedica diversos poemas pelo nome Li Zi’An, com quem teve uma relação intensa, alternando momentos de relativa separação e união. Separou-se definitivamente ou foi abandonada pelo marido, por exigência da “primeira esposa” três anos mais tarde, convertendo-se em monja taoísta e cortesã. A propósito, Yu Xuanji é seu nome de monja, tomado no mosteiro; “Xuanji” significa “mistério profundo”. Seu nome original era Youwei; “Yu” (Peixe) é o sobrenome, que, em chinês, precede o nome atribuído. Desde criança, era conhecida como talento poético precoce em Chang’An (hoje Xi’An), então a capital imperial. Aos 12 anos, foi tomada como discípula por Wen Tingyun (a quem chamava Feiqing), um dos mais importantes poetas da Dinastia Tang, de quem, em algum momento, poderá ter sido também amante. A ele dirigiu e dedicou vários de seus poemas. Morreu cedo, entre os 26 e os 28 anos de idade, executada por assassinato, em um caso polêmico e duvidoso. Ficou não apenas uma obra notável, mas também a lenda de uma mulher rebelde, irridenta, de vida livre para os padrões de sua sociedade e crítica da condição feminina. Por sua história de vida, Yu Xuanji acabou sendo assimilada à literatura, também, como personagem em obras de outros autores chineses e estrangeiros, em romances, contos, teatro e cinema; porém, nem sempre com apreciação valorativa. De fato, a lenda acompanhou os séculos seguintes, através de períodos, muitas vezes, mais conservadores da sociedade chinesa. Dos episódios que se contam de sua vida, há fabricações moralistas e difamatórias, retratando-a, amiúde, como personagem libertina, mesmo em produções mais recentes por exemplo, nos anos 80, foi lançado em Hong Kong um filme sobre sua vida; não o vimos, mas os comentários são de que se trata de um filme erótico ruim. Também há quem a apresente como uma “típica poetisa” da China, que, como todas, falariam sobretudo do amor e da solidão, temas então considerados “femininos por excelência”. Essa visão quanto ao que possa ser uma característica voz feminina na literatura não procede quanto a Yu Xuanji, nem às tantas outras poetas mulheres chinesas ou brasileiras. A leitura de sua obra completa apresenta uma poeta elegante, mas capaz de ousadias e provocações; corajosa e desafiadora das convenções sociais, na afirmação franca da sensualidade e do desejo; que demonstrava consciência da tradição e do público a que dirigia sua poesia; bastante crítica da condição feminina. É certamente uma voz feminina, e fala também, sim, da solidão, do amor e do desejo de um ponto de vista de mulher (como se os homens não falassem também disso). Mas gostaríamos de ressaltar em sua obra, mais simplesmente ou antes de qualquer consideração de gênero, a poeta refinada, que dominava os recursos e modelos requeridos à poesia clássica chinesa, nada devendo a outros poetas de seu tempo em técnica, domínio formal e diálogo com a tradição literária. Yu Xuanji, monja-poeta taoísta Quanto à inserção na tradição, um aspecto importante que ressalta em muitos de seus poemas é a referência à filosofia taoísta. A monja Yu Xuanji tinha, como modelo, os filósofos e poetas dessa confissão religiosa, como Li Bai (Li Tai-Po). Não é nosso objetivo aqui tentar apresentar a filosofia e o modo de vida dos mestres taoístas, nem descrever a enorme influência que exerce no imaginário dos chineses esta que é uma das correntes fundamentais de pensamento daquela civilização e que, na época em que vivia a poeta, era a religião oficial do Estado. Em linhas gerais, assinalemos, apenas para situar uma importante referência da obra da poeta correndo o risco de uma boa dose de simplismo que os mestres taoístas atribuíam ao vinho a inspiração para o exercício da poesia e dedicavam-se a uma vida não necessariamente de reclusão, mas, sobretudo, de meditação, contemplação da natureza e dissolução na experiência do “Tao”, na vivência de uma espiritualidade intensa, panteísta, que se colocava em busca da imortalidade. Relativa a esse objetivo de transcendência, há a busca do “elixir da imortalidade”, em certas histórias associado com o vinho. Na poesia de Yu Xuanji, há, entre outros temas taoístas, a exaltação do vinho e da festa; a ideia recorrente de que “tudo na vida acontece como sucessão de pares opostos” alegria e tristeza, prazer e dor…; a referência à imortalidade. Uma comparação – pouco acurada, mas não desprovida de pertinência – da opção de vida daqueles mestres com a tradição ocidental estaria, por exemplo, na proposta da “dissolução de todos os sentidos para fazer-se vidente”, de Rimbaud, ou na entrega a experiências com drogas, jazz, viagens e uma relação inconvencional com a sociedade “instituída”, da geração beatnik. O monge taoísta fazia uma espécie de “drop-out” à chinesa (a comparação é aproximativa, adequada só até certo ponto: o monge é um “marginal- instituído”; seu lugar social é reconhecido). Há boas traduções do Dao De Jing, de Lao Zi, em português, além de muitos livros sobre a filosofia taoísta em línguas ocidentais. Sobre a relação entre taoísmo, confucionismo, budismo e poesia, vale a leitura do mestre franco-chinês François Cheng.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioTrês Procissões Pintadas Durante a Dinastia Tang Wu Daozi (c.680-759) foi um pintor da dinastia Tang cujo nome evoca a habilidade de criar em pinturas murais cenários tão credíveis, «ousados e livres como as ondas que se desenrolam no mar» num dos quais ele, na presença de um imperador, entrou e desapareceu por entre volutas de nuvens. Se é certo que hoje originais das suas obras ainda se não encontraram e, como ele, há muito tempo desapareceram, aqueles que as viram não esqueceram. Zhang Yanyuan escrevendo em 847, exclamou com admiração que «os deuses devem ter-lhe dado uma mão; porque a sua obra sondou a criação até ao extremo» (Lidai Minghua ji). Para além de Wu Daozi, outros executaram pinturas murais ou para serem penduradas nas paredes de templos e são hoje testemunho do espanto e do valor que tiveram naquele tempo e para diferentes religiões, certas atitudes e práticas. Alguns fizeram-no agindo para a corte da dinastia Tang e por isso reflectiram o sofisticado gosto dos soberanos e aristocratas. Um tema, no entanto, parece ser comum a vários delas. Para o Daoísmo, que mais do que em textos se exprime numa ortopraxia, olhar essas figuras entendíveis no contexto da prática religiosa é ao mesmo tempo deslumbrante e misterioso. Como se vê no rolo vertical Divindade daoísta da terra (tinta, cor e ouro sobre seda, 125,5 x 55,9 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) que já foi atribuído a Wu Daozi representando Diguan, o que perdoa os pecados numa procissão, possui a gravidade com que os soberanos impressionavam os súbditos quando passavam, ocupando e dignificando o espaço que percorriam. Como também faz o Buda das luzes resplandecentes (tinta e cor sobre seda, 80,4 x 55, 4 cm, no Museu Britânico) que mostra a figura do Buda Tejaprabha deslocando-se num carro acompanhado de cinco planetas e que tem o mesmo efeito de sacralizar os lugares por onde transitavam. Zhang Huaiqing o discípulo que doou a pintura em 897, colocou nela o seu nome mostrando assim a eminência dos doadores e encomendadores no complexo de Dunhuang (Gansu) de onde provém esta invulgar representação. Pintores de outras religiões figuraram um mesmo desfile sagrado com o sentido próprio da sua tradição. Raras pinturas murais datadas dos séculos VII-IX, descobertas no início do século XX nas ruínas da antiga cidade de Qocho (Gaochang, Xinjiang) nas fronteiras do deserto de Taklamakan revelaram a antiguidade ali da presença da religião de Cristo. Uma delas mostra a procissão de Domingo de ramos (no Museu de Arte Asiática de Berlim) como se deduz por três personagens empunhando ramos de palmeira que se viram para uma figura maior (um sacerdote?) que traz na mãos um recipiente para a água e um turíbulo de onde se soltam volutas de incenso evocando o espírito, esse real invisível a que o pincel do poeta ou do pintor é capaz de dar um nome e uma aparência local.
Hoje Macau Via do MeioNotas poéticas de uma visita ao Templo de A-Má Por Cheong Kin Man Chio Tong I (falecido antes de 1777) foi um homem de letras confucianista natural de Macau, descendente de Zhao Yanfang (Chio In Fong), que tomou posse como Mandarim de Hèong-Sán (hoje Zhongshan) em 1386. Argumenta-se que o imperador Taizong (939-997) da dinastia Song (960-1279) é um seu antepassado. Passou uma vida modesta e deixou vários poemas em chinês clássico. Apelidado respeitosamente como “Senhor do Rio do Espelho”, o poeta só foi reconhecido quase um meio século depois da sua morte. No fim de 1828, o seu neto Chio Wan Sin, que exerceu funções na administração provincial, mandou gravar numa pedra do Templo de A-Má um dos poemas deixados pelo seu avô. Eis mais uma tentativa de transpor um poema clássico chinês, desta vez com versos heptassilábicos, num texto dodecassílabo em português: A terra vê a água, fim do sudeste À procura do Zen, vi gemas no portal Portas-Tigre, mil velas, um branco veste, Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal Nas vias sinuosas, sapatos tiveste. Colina esculpida, nome imortal. Flores de ameixeiras, sob rochedo, A primavera r’vem, sem saber mais cedo. O título do poema é “Ascender ao Templo da Percepção do Mar no Mês do Sacrifício às Divindades” (臘月登海覺寺). Pondo-o numa tradução menos literal, aqui falamos de uma “Visita ao Templo de A-Má no Último Mês do Ano (Lunar)”. “Ascender”, porque não se trata de uma visita desierarquizada. É uma ida com respeito, provavelmente também com a intenção de homenagear as divindades. É, sobretudo, uma caminhada à Colina da Barra. Neste artigo estudamos este relato poético cantonense com traduções literais de cada verso, a fim de mais aprofundadamente apreciar uma pitoresca paisagem de Macau do século XVIII. Revelamos algumas curiosidades, da toponímia cantonense analógica sobre os animais, ao uso metafórico da língua clássica chinesa, e daremos um salto a um género de sapatos antigos “flexíveis” feitos para as caminhadas. Percepção do “mar” Os dois grandes caracteres vermelhos “海覺” (Hoi-K’ok), que o Monsenhor Manuel Teixeira se referia como “Percepção do Mar” em português, estão gravados numa grande rocha dentro do templo. O Templo de A-Má não é o único que tem a referência a “Hoi-K’ok” ou “Percepção do Mar”. Um templo com o mesmo nome, mas fundado quase um milénio mais cedo do que o ex-líbris de Macau, na capital histórica da China, Chang’an, onde o mar não se vê, desperta em mim um outro significado ao ler estes dois ideogramas: “o estado de ficar infinitamente iluminado”. Por sua vez, nos primeiros versos do poema que aqui lemos, está destacado um mar de Macau que o templo contempla: 地盡東南水一灣 嵌寶奇石向禪關 A terra vê a água, fim no sudeste À procura do Zen, vi gemas no portal [As terras terminam com uma baía de águas do sudeste O tesouro inserido (no Templo), as (suas) extraordinárias pedras indicam a casa de guarda que acede à iluminação budista (Zen)] O primeiro verso refere-se à localidade do templo. “Sudeste” é uma referência geográfica face a Hèong-Sán, sede do governo imperial (e provincial) chinês que tutelou Macau: a península é sita na direcção sudeste desta cidade chinesa. O segundo verso tem referências mais metafóricas. Compreendemos, aqui neste verso, que os dois caracteres 禪關 (sim kuan em cantonense ou chán guān em mandarim) são uma referência metafórica ao “acesso” ou “passagem fortificada” à “iluminação” religiosa ou espiritual. Nada tem isto a ver com uma fortificação, mas com o facto que a essência do Zen não é algo fácil de aceder. Os mesmos ideogramas, parece-me que, podem indicar igualmente a entrada do templo. Enquanto a magnificência do Templo de A-Má é constatável nos desenhos do quase contemporâneo do poeta em questão, George Chinnery (1774-1852), as rochas, muitíssimo referidas nos documentos sínicos e que ainda hoje vemos, verificam a autenticidade do segundo verso como uma descrição poética da vista e da arquitectura desse templo. Topónimos e animais 虎門雪送千帆白 Portas-Tigre, mil velas, um branco veste (Fu-Mun despede o tão branco de mil velas como neve) Luís Gonzaga Gomes traduz, na primeira versão portuguesa da “Monografia de Macau” de 1950, que o topónimo Fu-Mun (ou Humen em mandarim, a 70 km de Macau) significa “Porta do Tigre” ou, como se constata ao ler os documentos históricos, é também conhecido em português “Boca do Tigre”. “門” (pronunciado “mun” em cantonense) significa não apenas porta(s), mas também, como vemos na toponímia clássica chinesa, uma hidrovia estratégica. O nome “Porta do Tigre” é algo abreviado de “Passagem da Cabeça do Tigre” (traduzida igualmente pelo grande sinólogo macaense). Ainda segundo a mencionada “Monografia de Macau”, as duas Montanhas do Pequeno Tigre (Xiǎohǔ Shān) e do Grande Tigre (Dàhǔ Shān), “parecem-se com duas pérolas incrustadas no seio do mar”. A tradição cantonense diz que estas duas elevações foram imaginadas como um tigre sentado, daí os nomes. Ambas as montanhas, que são igualmente os cúmulos de duas ilhas, testemunham, na observação poética do natural de Macau, a muita circulação de transporte fluvial do século XVIII. Roda veicular: alusão ao sol e à lua 雞頸輪升萬壑殷 Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal [Em Pescoço-de-Galo, a roda (o sol) leve (e faz com que) vermelha uma miríade de vales] No quarto verso, destacamos o caracter 輪 (lon em cantonense ou lún em mandarim), que significa efectivamente roda(s) de um veículo. Para além de ter o significado de sol no chinês clássico, este ideograma designa igualmente a lua (cheia). Isso tem a ver, justamente, com a forma de uma roda “desenhada” na escrita mais antiga chinesa e vê-se mesmo no componente à esquerda do caracter: o radical 車 representa uma tal roda, embora esta, na escrita impressa moderna, tenha a forma de um quadrado. É de notar que, quanto este ideograma visualizador foi inventado, o mais tardar no século XI a.C., a palavra tinha pelo menos duas rodas (redondas) nas suas diversas variantes, 䡛. Não foi até no Século VIII a.C., o mais tardar, que o caracter se foi simplificando, de com duas rodas a uma só roda. O chinês moderno tem, apenas com algumas excepções, símbolos redondos. Entretanto, como a escrita chinesa evoluiu para uma escritura quadrilátera, o caracter 車, representando originalmente uma roda, naturalmente redonda, foi ganhando a forma de quadrângulo igualmente o mais tarde no Século VIII a.C. Onde fica o Pescoço de Galo? Continuamos o tema de nomes de animais na toponímia clássica cantonense. Aqui na tradução do poema, “Pescoço-de-Galo” é um antigo nome cantonense menos conhecido na língua portuguesa. Gonzaga Gomes explica literalmente o termo “雞頸”, Kài-Kèang como “Pescoço da Galinha” ou Kâi-Kêang como “Pescoço do Galo, ou da Taipa” – Sabemos que o ideograma 雞 (kai) não manifesta o género gramatical. “Pescoço-de-Galo” é mais um exemplo de como os cantonenses denominam as localidades ao comparar as suas formas com as imagens de animais. É, segundo a tradição de Macau, uma elevação da ilha da Taipa que se localiza a este, ou melhor a desaparecida ilha que se integrou na Grande Taipa. Originalmente uma ilha à parte, “Pescoço-de-Galo” está ainda hoje nos nomes cantonenses de vários locais na Taipa. A cena das “velas (vistas) de Pescoço-de-Galo” era conhecida, entre a comunidade cantonense, como uma das “dez paisagens” nomeadas pelo co-autor da “Monografia de Macau”, Iân-Kuông-Iâm (1691-1758). Aqui, nos terceiro e quarto versos do poema em causa, o autor Chio Tong I evoca o hoje desaparecido cenário de muitíssimos juncos que passavam pelas águas de Macau, num vermelho do amanhecer. Numa Macau do século XVIII 迴磴人拖單齒屐, 摩崖徑勒有名山。 此來不覺春歸早, 笑指梅花試一攀。 Nas vias sinuosas, sapatos tiveste. Colina esculpida, nome imortal. Flores de ameixeiras, sob rochedo, A primavera r’vem, sem saber mais cedo. [Sinuosos caminhos de pedra! O homem usa sapatos de um só dente Penhascos com (textos de) estudos gravados, vias com inscrições, a famosa colina tem Assim, sem se reparar que a primeira cedo volta Rindo, aponto às flores de ameixeiras, prova-se uma caminhada] Cheong Mei I, vice-presidente da Associação da Literatura Moderna de Macau, e Tang Chon Chit, especialista local de mérito em matéria de poesia clássica cantonense, publicaram em 2020 um livreto em mandarim, “Inscrições em Pedra no Templo de A-Má de Macau” (título português constante na capa). A estudiosa, juntamente com o professor da Universidade de Macau, interpreta que Chio Tong I expressa uma certa identificação com a terra ao relatar o templo e os seus arredores com precisão. No quinto verso, parece que o poeta sobe à colina com um tipo de calçado em madeira, possivelmente tamancos, com dois “dentes” – isto é – dois pedaços de madeira para manter os pés acima do solo. Referidos como chinelos de um só dente no poema, julgo que se trata de antigos calçados com estes dois “dentes” de colocar e retirar: ao subir, sem o pedaço de suporte de frente; ao descer, com a peça de atrás retirada. Explicando-o à minha companheira polaca Marta, ela diz, “eine tragbare Treppe (que uma escada portátil)!” Relativamente ao sexto verso, sabe-se que o mero ideograma 山 (san em cantonense ou shān em mandarim) não diferencia entre colina(s) e montanha(s). Assim, este verso evoca em mim uma vastíssima paisagem. O poema, que parece até agora inédito na língua lusa, é concluído pelos últimos dois versos cuja ordem inverti na tradução poetizada. Ao imaginar o muito apreciado passeio numa primavera simbolizada pelas flores de ameixeiras, fico perdido entre mil vales e num reino de signos, gravados nas pedras da deusa A-Má. * Artista de desconstrução linguística, têxtil e vídeo em colaboração com Marta Stanisława Sala
José Simões Morais Via do MeioSecção do curso Superior do Changjiang (长江上游) O rio Longo, em chinês Changjiang (长江), conhecido também por rio Yangtzé, ou Yangzi (扬子), é o terceiro maior do mundo, depois do rio Nilo com 6690 km e o Amazonas de 6570 km. Designado por rio Azul, é o maior dos três grandes rios a atravessar a China, tendo 6363 km de comprimento, sendo ainda um dos cinco rios a cruzar o curso do Grande Canal. As fontes de água do Changjiang encontram-se no planalto tibetano e nas montanhas Kunlun [a Leste da cordilheira dos Pamir e para Oeste do Vale de Sichuan marca o final Norte do Planalto Qinghai-Tibetano] de onde nascem os dois rios, Dangqu (当曲) e o Tuotuo he (沱沱河), que ao se juntarem formam o rio Tongtian (通天河), um dos muitos nomes do Changjiang ao longo do seu percurso. As duas nascentes estão na montanha de Tanggula (唐古拉山, Serra Dangla): no lado da província de Qinghai, o rio Dangqu tem a fonte a 5170 m de altitude na montanha Xiasheriaba (霞舍日阿巴山, de 5395 metros); e na província do Tibete, o rio Tuotuo (ou Ulan Moron em tibetano) é formado na geleira a Oeste dessa mesma montanha de Tanggula, a Sudoeste do planalto tibetano, no seu mais alto pico Geladaindong. O Dongqu após 234 km e o rio Tuotuo depois de 336 km, juntam-se e formam o rio Tongtian (通天), que ainda na província de Qinghai percorre 828 km antes de seguir para Sudeste e juntar-se em Yushu (quarta maior cidade de Qinghai) ao afluente rio Batang (巴塘河). Aí, de Yushu Zhimenda (玉树直门达) até Yibin (宜宾) em Sichuan percorre 2308 km e passa a ser conhecido por Jinshajiang (金沙江, rio das Areias Douradas), outro dos nomes do Changjiang. Como rio Jinsha atravessa as províncias de Qinghai, Tibete, Sichuan, Yunnan e volta a Sichuan, onde termina. Na sua trajectória para Sul, alimentado por múltiplos afluentes, o rio Jinsha ao atingir a província de Yunnan envolve a cidade de Lijiang [localizada no planalto Yungui, ainda pertencente ao planalto Qinghai-Tibete] e pouco depois em Panzhihua, no extremo Sul de Sichuan, recebe as águas do rio Yalong (雅砻江), o mais comprido com 1637 km e principal afluente do Changjiang, proveniente das montanhas Hengduan [junção do planalto Qinghai-Tibete com o planalto Yunnan-Guizhou]. O rio Jinsha (金沙江) passa a correr para Nordeste por a província de Sichuan até Yibin (宜宾), onde termina a uma altitude de 305 metros. Após o afluente Minjiang desaguar em Yibin no Changjiang, este por atravessar Sichuan fica com o nome de Chuanjiang (川江) nos 1040 km até Yichang (宜昌), província de Hubei. Nos 410 km de Yibin a Chongqing, em Luzhou desagua o rio Tuo proveniente de Leshan e já no extremo Leste da península colina onde o centro de Chongqing se encontra, o afluente rio Jialing junta-se ao Chuanjiang, encontrando-se próximo daí as docas Chaotianmen, onde vamos para embarcar. Após Chongqing, a altitude do Chuanjiang passa a ser de 40 metros, percorrendo 630 km até Yichang (宜昌), onde termina o Curso Superior do Changjiang (长江上游) com 4504 km desde as suas duas nascentes. PERCURSO DAS TRÊS GARGANTAS Em 1991 chegamos à segunda cidade mais importante de Sichuan, Chongqing com a intenção de realizar de barco a descida do Rio Longo até Wuhan, passando por o famoso cenário turístico das Três Gargantas, numa viagem de três dias. Na compra do bilhete de barco havia a possibilidade de escolha para desembarcar nos portos fluviais de uma série de cidades existentes a jusante do Yangtzé [assim chamado o rio por os estrangeiros]. Em Chongqing inicia-se a parte navegável do rio para navios de grande porte e a viagem até Shanghai (Xangai) dura cinco dias e em sentido inverso, para percorrer os 2400 quilómetros contra a corrente, leva sete dias. Chongqing desde 1983 tinha já a parte financeira e económica sob o controlo do Governo Central, mas administrativamente os seus treze milhões de residentes pertenciam à província de Sichuan, então com 100 milhões, a mais populosa da China. Em 1997, devido à necessidade de construir a Barragem de Sanxia [三峡壩, das Três Gargantas] deixou de pertencer a Sichuan e tornou-se o Município Administrativo de Chongqing. Aquando da nossa primeira viagem por o Changjiang em 1991 ainda não havia referência alguma à Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), cuja decisão governamental ocorreu no ano seguinte, ficando a obra pronta em 2008, tornando-se a maior barragem do mundo. Quando possível, o barco é um bom meio para viajar no centro e Sul (a parte mais populosa da China), sobretudo nas deslocações feitas por o interior. Apesar de vagarosas, são agradáveis viagens. Por água, [lembrar estarmos em 1991], conseguimos fugir às enchentes dos comboios e às más estradas do interior do país. Devido à lentidão deste transporte, a permitir repousadamente saborear a paisagem e a possibilidade de conviver com os chineses, faz dele um meio privilegiado. Esta vez o rio sofre uma cheia a inundar os campos, aumentando bastante a largura entre as margens. O barco partiu de Chongqing às 7 horas da manhã e após parar em Fuling e Fengdu, ancorou na margem esquerda do rio às 18 h em Wanxian, um dos dez importantes portos do rio. [Chamado agora Wanzhou, devido à construção da barragem perdeu quase metade da sua área urbana.] De Wanxian saímos às 4 horas para a partir das 8 da manhã navegar na zona das Três Gargantas e chegar a Yichang às 16 horas. Pouco depois de Wanxian, na mesma margem aparece Yunyang, onde atravessando o rio, na margem direita se encontra o Templo de Zhang Fei. Segue-se Fenhjie (Yong’an), antiga cidade capital do reino Kui durante a dinastia Zhou de Leste (771-256 a.n.E.), e para Leste após oito quilómetros inicia-se a Garganta Qutang. À sua entrada, na margem esquerda aparece a povoação-fortaleza de Baidi (Cidade do Imperador Branco, ou Celeste Dragão Branco). Aí, há mais de dois mil anos teve origem o antigo reino Bashu [a cultura Bashu tardia terá começado nos finais do Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.) e com doze gerações de governantes durou até 316 a.n.E., quando o reino Qin eliminou os Ba]. Já no Período dos Três Reinos, Baidicheng foi o local para o governante do reino Shu, Liu Bei (161-223) se retirar após derrotado por o reino Wu e ao sentir-se muito doente, entregou o filho Liu Chan a Zhuge Liang, o seu primeiro-ministro, para o orientar na governação; episódio conhecido por “Confiar o órfão em Baidi”. Navegando oito quilómetros entre altas falésias na Garganta Qutang, dizem-nos poder aí ver incrustados a meio da montanha caixões suspensos do povo Ba. A seguir aparece a Garganta Wu com 45 km de comprimentos e falésias em ambos os lados, onde no ano de 208 terá sido firmada a aliança entre os reinos Shu e Wu contra o Wei. Esta segunda garganta termina em Badong, na margem direita do rio e onde vive a minoria Miao e Tujia, que no passado desde as margens puxavam com cordas os barcos rio acima. Pouco depois, na margem esquerda do rio encontra-se Zigui (Maoping), o início da última das três famosas gargantas, Xilingxia, a mais comprida delas com 76 km. [No percurso desta garganta encontra-se construída em Sandouping, no distrito de Yiling, desde 2008 a Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), onde a profundidade não natural, mas criada das águas do rio é de 320 metros.] Por fim, após 38 km está a comporta Gezhouba a deixar a embarcação numa cota cinco metros mais abaixo. Nos 200 km entre Fengjie e Yichang a largura do Chuanjiang varia entre os 300 e menos de 100 metros, dependendo da estação do ano. Em Yichang termina o Curso Superior do Changjiang e o barco faz a primeira grande paragem. DE BARCO ATÉ WUHAN De Yichang, a viagem de barco já no curso médio do Changjiang (长江中游) levou 22 horas até Wuhan. Ainda na margem do lado esquerdo do rio, agora chamado Jingjiang, apareceu pouco depois Jingzhou (província de Hubei). Seguiu-se Yueyang (o único porto internacional de Hunan) situada na margem direita e onde o lago Dongting a Nordeste se liga às águas provenientes do rio Longo. A localização do lago criou o nome das duas províncias, Hubei (a Norte do lago) e Hunan (a Sul do lago). De Yueyang, o Changjiang corre para Nordeste e por a província de Hubei vai até à sua capital Wuhan, onde o rio Han após percorrer 1532 km se torna seu afluente. O Hanshui (汉水) nasce na parte Sul das montanhas Qin (秦岭, Qinling) e percorrendo-as em longitude por o vale criado com a parte Norte das montanhas Daba [a separar Sichuan e Chongqing], passa na cidade de Hanzhong e do Sudoeste de Shaanxi flui para Leste, entrando na província de Hubei. Em Wuhan o Hanshui desagua no Changjiang, dividindo a cidade em três cidades: Wuchang (no lado direito do rio Longo, situa-se à frente da foz do rio Han); na margem Norte do rio Han está Hankou e a Sul, Hanyang, banhando o Changjiang as margens destas três cidades, que formam a capital da província de Hubei. De registar o enorme crescimento de Wuhan, quer populacional, quer em termos da criação de novas indústrias joint-venture com famosas marcas Ocidentais. A meio caminho entre Beijing (Pequim), Guangzhou (Cantão) e Shanghai, está Wuhan como centro do País do Meio, não sendo alheio o incremento dado por o governo central a esta zona especial. O desenvolvimento das vias rodoviárias ficou complementado em 1957 por a nova ponte de Wuhan, ainda então o orgulho dos chineses. Atracado o barco em Hanyang, vamos à cabine de seis camas em beliches que nos coube no bilhete de terceira classe e recolhemos a bagagem. A espreitar do postigo, termina a primeira deambulação no rio Longo, por onde iremos navegar até à foz, entre novas zonas e outras cidades.
Amélia Vieira Via do MeioEstilhaços « …uma das suas cabeças parecia ferida de morte; mas a ferida de morte tinha sido curada. E maravilhados, todos os habitantes da terra foram atrás da Besta» Apocalipse, 13 Um livro do fantástico encerrará sempre muitas casualidades adicionais e outras que vamos acrescentando, porém, e ressalvadas as devidas comparações, ainda se admitia que a segunda quinzena de Julho traria coisas assim como as relacionadas com a temível estrela Algol fazendo conjunção com Marte e Úrano numa área reservada a partir do pescoço, inclusive. Mas se é certo que a sorte protege os audazes, já o azar nos bate à porta com os fragmentos dos impactos balísticos, que as balas, vá-se lá saber porquê, atingem mais os idólatras, que esses sim, em horas descomunais dão lições de grande abnegação e pura valentia. Acontece sempre a mesma estupefacção dianta da «Alice no País das Maravilhas» e do monumental livro do Apocalipse, faltando-lhes ali qualquer coisa de sustentabilidade humana, graça, leveza, e algum secreto amor. Mas nem por isso se deixam de revisitar como se fossem tratados das nossas próprias incompetências interpretativas, e não há que iludir a pouca capacidade e desconhecimento que a humanidade tem perante universos que escapam ao dom da sua própria sobrevivência. São dois livros brutais. Mas o que aqui nos traz é o arrojo do não baleado tendendo a um reino bem mais protegido que aquele de uma rainha de Espadas, um reino trevoso, que tem certamente os seus guardiões e precisa dele para um grande ataque final ao reino dos adormecidos. Aliás, todo aquele reino é já uma derrocada, o amigo, o inimigo, figuras patéticas: exemplos terminais de um estado civilizacional num espectáculo moribundo e senil que não lembra ao diabo. No entanto, a mal fadada estrela Algol preside à mais temível estrela de Perseus com cabeça de Medusa, essa Górgone que ele decapita com espada certeira tornando-se um semideus benigno e de grande coragem com referência mais tarde na Revolução Francesa – cortando tudo aquilo que ao corpo não pertencia. E as datas são as mesmas. Para os chineses ela foi considerada muito simplesmente como a esposa do diabo, mas a China parece muito distante destes confrontos mediterrânicos que galgaram o Atlântico até ao outro lado. Seja como for, estávamos já a festejar a Revolução Moderna da nossa civilização, mas eis senão quando interrompemos a Marselhesa. Hoje 15 de Julho, era Júlio César a nascer – e é claro que ninguém faz Revoluções no Inverno – e pensar que nada de profundamente significativo mudou nas trincheiras da nossa humanidade causa em todos nós reflexão e desespero. Ele nasce da primeira cesariana – daí, o nome César – que nesta Algol transcendente, capciosa e total, vislumbramos essa injustiça que os homens não podem esquecer. Há grandes terrores subterrâneos, supremacias tresloucadas, jovens efebos atirando contra velhos decrépitos e malsãos, e punhados de homens amantes esquartejando-se. Que Trump fosse ferido é sem dúvida de lamentar, mas isso não nos deve interessar; afinal, ele está aí para o que der e vier em todo este imbróglio, e que o outro esteja neurologicamente afectado pouco interesse também transmite, que a velhice se tornou uma constante com a qual todo o Ocidente tem de lidar, mas onde outros bem mais velhos parecem ainda muito mais respeitáveis, isso é um facto. «Quem semelhante à Besta? Foi-lhe dada uma boca para proferir palavras eloquentes, e deram-lhe também o poder de agir durante quarenta e dois meses»
António Graça de Abreu Via do MeioCidade de Xiamen厦门 (Amoy) mais a excelente ilha de Gulangyu鼓浪屿 No recuado ano de 1981, na Biblioteca Central de Xangai, onde não havia ainda ficheiros organizados numa língua estrangeira e os computadores estavam em absoluta gestação, pedi ao funcionário de serviço que me trouxesse livros e documentos em inglês ou em português sobre Aomen澳门, o nome chinês da nossa Macau. O pressuroso empregado apareceu-me uns dez minutos depois sobraçando uma resma enorme de livros, todos referentes a Xiamen厦门, a cidade costeira no sul da província de Fujian. Na altura, na China Popular pouco ou nada se sabia sobre Macau, e quem ouvia o nome associava-o frequentemente a um bairro de Hong Kong. O topónimo Aomen 澳门, que significa “porta da baía”, prestava-se a alguma confusão com Xiamen 厦门que se pode traduzir por “porta da mansão” dado que ambas as cidades são portos de mar situados no sul do império chinês. Na altura, ainda com tanta China por conhecer, parecia-me improvável um dia desembarcar de comboio, barco ou avião em Xiamen, a velha cidade de Amoy. Aconteceu no ano de graça de 2013, tendo chegado de avião exactamente desde Taipé, Taiwan, logo ali do outro lado do estreito da Formosa, coisa impensável há uma dúzia de anos. Mas hoje tudo são facilidades, com as ligações aéreas entre a capital de Taiwan e as principais cidades da China Popular. Xiamen ou Amoy – assim se leêm os dois caracteres厦门, primeiro em mandarim e depois no dialecto hokkien de Xiamen, variante do min do sul falado em Fujian –, é a segunda maior cidade da província de Fujian com 1,8 milhões de habitantes. Cresceu sobretudo a partir do século XVI quando as duas grandes cidades portuárias de Zhangzhou e Quangzhou que lhe estão próximas começaram a diminuir de importância devido ao assoreamento dos rios que lhes davam acesso marítimo. Por volta de 1545, o porto, ou portos de Xiamen dado que a ilha engloba vários embarcadouros ou cais, chegou a ser usado pelos navegadores e mercadores portugueses nas suas deambulações ao longo da recortada costa chinesa, nesta região polvilhada por mil ilhas, baías, embocaduras de rios, mares amarelos e terras de todas as cores. No século XIX, Xiamen era o grande porto por onde se escoava o chá, até então unicamente produzido na China. Após, a Guerra do Ópio (1839-1842), a sua importância cresceu dado ser um dos “Cinco Portos” abertos ao comércio internacional após a derrota chinesa na guerra às mãos dos ingleses e a assinatura do humilhante, para a China, tratado de Nanquim, em 1842. Os outros portos abertos foram Cantão, Fuzhou, Ningbo e Xangai. Hoje Xiamem é uma cidade airosa, desempoeirada, acho que quase livre de poluição. A proximidade do mar, o clima subtropical com chuvas frequentes, a própria abertura do centro urbano para o litoral, a natureza da terra fazem de Xiamen um dos lugares com melhor qualidade de vida em toda a China. E a cidade mantém um interessantíssimo centro histórico, com ruas e construções coloniais europeias que datam de finais do século XIX. Visita ao templo budista de Nanputuo. Inicialmente construído durante a dinastia Tang (618-907), o templo foi várias vezes arrasado e os pavilhões que tenho diante de mim são todos dos séculos XVIII e XIX. Resta a originalidade de terem sido construídos neste estilo chinês do sul da província de Fujian, com as extremidades dos telhados, às vezes sobrepostos, muito reviradas, os templos intensamente decorados e coloridos por fora e por dentro. Nanputou estende-se para o céu, ascendendo pela montanha que lhe fica por detrás o que, em termos de feng shui 風水favorece a sua localização, um monte atrás, o mar em frente, o céu por cima. Vale a pena subir algumas centenas largas de degraus para, do alto, em plataformas aqui e acolá com motivos budistas, se ter uma desafogada vista sobre esta parte da cidade e sobre o mar. Logo abaixo, encontramos o vasto campus da Universidade de Fujian, uma das mais famosas da China. Depois do templo, atravessei a pé todo o complexo universitário em direcção à praia que fica do outro lado. Últimos dias de Junho de 2013, as aulas e os exames estão a acabar, há novos doutores e doutoras que, academicamente paramentados à inglesa ou à americana tiram retratos e retratos junto ao lago central da sua Universidade. Nas janelas e varandas dos dormitórios dos estudantes há verdadeiros festivais de roupa a secar, mas a Universidade parece funcional, com departamentos e faculdades a ocuparem ora edifícios modernos, ora complexos dos anos vinte do século passado, bem conservados, tudo aparentemente bem equipado. As praias de Xiamen são um extenso sufoco por causa da quantidade de porcaria e dejectos que se acumulam na areia grossa e que bóiam nas águas mansas do Oceano Pacífico. Ali nem deu para molhar os pés. Em 1949, quando dos derradeiros combates entre comunistas e nacionalistas, antes da fuga definitiva destes últimos para Taiwan, os soldados de Chiang Kai-shek conseguiram segurar a pequena ilha de Jinmen金門, Kinmen ou Quemoy, no dialecto local, que se situa apenas três quilómetros a leste de Xiamen. Contra todas as expectativas ainda mantêm a ilha na sua posse, o que é motivo de interessada visita por parte dos turistas da República Popular da China que têm logo ali, ao alcance da mão ou de duas ou três braçadas, um território capitalista para comparar com a sua China de Mao Zedong e de Xi Jinping. Acabado de chegar de Taiwan, não fui à pequena ilha nacionalista de Jinmen. O melhor de Xiamen, para turista ver, espairecer e se surpreender é a ilha de Gulangyu, 鼓浪屿 mesmo em frente do centro da cidade, a menos de um quilómetro de distância que se percorre em sete minutos numa espécie de cacilheiro, sempre apinhado de chineses. A partir de meados do século XIX, depois da abertura do porto de Xiamen ao mundo, os estrangeiros começaram a chegar e fixaram-se sobretudo nesta bonita ilha de Gulangyu, com cerca de dois quilómetros de comprimento por um de largura. A ilha tem água doce, praias, imensa vegetação, tudo o que é necessário para a vida. Treze países, incluindo a França, a Grã-Bretanha e o Japão aqui estabeleceram os seus consulados e em 1903 Gulangyu passou a ser designada Território Internacional, tendo governo e polícia própria, a segurança era feita pelos shiks que, tal como aconteceu com os indianos que funcionaram como polícia em Xangai, os ingleses foram buscar ao norte da Índia. Curiosíssima é a arquitectura colonial dos cerca de 500 edifícios que foram construídos em Gulangyu, sobretudo entre 1890 e 1920 e que, restaurados, ainda se conservam. Trata-se de mais um museu a céu aberto, um conglomerado de casas e grandes mansões, de igrejas e jardins, de palácios e hospitais, tudo numa mais do que heterogénea mescla de estilos, nada sínicos, de talhe e arquitectura ocidental, ao modo do que se construía na Europa no início do século XX. Felizmente, e para satisfazer a multidão de turistas chineses — são tantos que diariamente chegam a atravancar o trânsito pedonal numa ilha que não autoriza veículos motorizados –, Gulanyu tem praias (também não muito limpas) e recantos sossegados onde se pode fruir a natureza, ou a nostalgia do encanto perdido do passado. E tem hotéis e pensões onde apetece ficar, sobretudo a partir de meio da tarde, após a saída da avalanche de turistas chineses. Então Gulangyu fica por nossa conta e que prazer ouvir um piano — a ilha conta com um estupendo museu com mais de cem pianos e órgãos de várias épocas –, olhar o pôr-do-sol, imaginar, mui ao de leve, as fantásticas histórias dos velhos habitantes de Gulangyu quando chineses abastados se passeavam de riquexó, homens de negócios europeus, de colete, casaco e gravata caminhavam pelas ruelas junto ao mar, e damas chinesas, mais do que formosas nas suas cabaias de brocado e seda, inebriavam a brisa da tarde. Numa das lojas de rua em Gulangyu, província de Fujian, República Popular da China, fiz uma compra absolutamente inédita em 36 anos de viagens e estadias no mundo chinês, uma peça em massa dura e pesada de plástico, com duas figurinhas, Mao Zedong e Chiang Kai-shek, ambos sentados num banco de jardim, abraçados e ternurentos, sorrindo para as gerações futuras. Malhas que o império tece…
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAlopen e Yuchi Yiseng: Estrangeiros em Chang’an Li Shimin (598-649), que reinou como o imperador Tang Taizong, (r.626-649) numa magnimidade disponível, recebeu na sua capital Chang’an as mais exóticas personalidades, com quem partilhou a elevação do seu espírito. Nessa cordialidade para com os estranhos, que correspondia a uma calculada opção estratégica e cultural de posicionar o seu reino como guanzhong, uma terra «entre desfiladeiros», recebeu um dia um missionário oriundo de uma terra longínqua que veio caminhando ao longo da grande via continental hoje conhecida como a «Rota da Seda». De acordo com a inscrição numa estela encontrada no século XVII em Xian (Shaanxi), a antiga Chang’an, ele vinha de Daqin (o Império Bizantino) «descobrindo por entre o azul e as nuvens, trazendo os verdadeiros e sagrados livros; contemplando a direcção dos ventos, enfrentando dificuldades e perigos», e lá chegou no ano 635. Diz nessa inscrição que se chamava Alopen (Aluoben) e enunciava a religião de Jesus de Nazaré. Ouvindo falar o estrangeiro, Taizong não só o acolheu como permitiu que criasse uma igreja e continuasse a sua missão, que não viu muito diferente dos seus já conhecidos heróis daoístas ou sábios confucionistas, promovendo o convívio de todos. Até quase ao fim da dinastia Tang foi permitido aos missionários, os que vieram com o cristão assírio Alopen e depois deles, a estadia no Império. Até que foram expulsos, só regressando trezentos anos depois. É possível que o carácter «portátil» da religião de Alopen, necessitando de escassos meios para se mostrar; palavras, uma cruz, pequenas figuras pintadas ou esculpidas, facilitasse o procedimento de fazer esquecer a nova religião. Algo diferente sucedeu com a religião de Buda Sakyamuni, para a qual a existência de pinturas murais é parte integral do espaço construído dos seus templos para elucidação dos crentes e perplexidade dos visitantes. Na era de Taizong também chegou a Chang’an um artista budista cuja memória permaneceria nos tratados da pintura. Yuchi Yisang (Visa Irasanga, activo no século VII) veio do Reino de Khotan, na Ásia central (actual Xinjiang) para servir como guarda do palácio imperial, mas logo se notabilizou na decoração de templos budistas e daoístas nas regiões de Chang’an e depois de Luoyang. Sobre ele Zhu Jingxuan, escrevendo no fim dos Tang, a meio do século IX disse: «Os temas estrangeiros na pintura, figuras de fantasmas e formas exóticas, todos praticados por Yuchi Yiseng, foram quase completamente descontinuados.» (em Tangchao Mighua lu, «Sobre pinturas famosas do período Tang»). Da sua obra restam escassos exemplos e de difícil autenticação, entre eles, as figuras de duas mulheres do reino de Kusha, pintadas a tinta e cor sobre seda (Villa I Tatti, Florença). O seu corpo, a primeira fronteira da expressão do espírito, move-se em harmonia numa dança.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioYu Sheng e os Compêndios de Pássaros e Animais Ferdinand Verbiest (Nan Huairen, 1623-88) o missionário jesuíta flamengo que mostrou ao imperador Kangxi (r. 1661-1722) o vasto alcance da ciência desenvolvida no Ocidente, tem os nomes de duas das suas obras traduzidas como atestado de autoridade num dos extraordinários compêndios em que a arte e o conhecimento científico, unidos, fizeram a justa fama do admirável reino do imperador Qianlong (r.1735-96). Esse ambicioso albúm descritivo, escrito em duas línguas com caracteres manchus e sinográficos e meticulosamente ilustrado é também ele, não só testemunho do modo como o labor de pintores Europeus na corte imperial alterou certas percepções da representação dos volumes, como do sempre afirmado respeito pelos antigos, e até do sentimento de deferência e estima (xiao), traduzido habitualmente como «piedade filial» sentido por Qianlong em relação ao seu avô. No minucioso Niaopu, «Compêndio das aves» (tinta e cor sobre seda, 41,2 x 43,9 cm, nos Museus do Palácio de Pequim e Taipé) de 1751, onde se encontram aves reais e mitológicas, nativas e estrangeiras e que é entendido como um tributo ao imperador em reconhecimento do poder do seu reino de múltiplos mundos, as obras de Verbiest asseguram a origem do perú como ave originária do México, conhecimento adquirido pelas navegações europeias. Logo no início é afirmado que esta se trata de uma cópia de um original pintado por Jiang Tingxi (1669-1732) com poemas de Wang Tubing cerca de 1721 no tempo do imperador Kangxi e que nele se encontram os «trezentos e sessenta animais de penas» identificados no Liji, o Livro dos Ritos atribuído a Confúcio, e de que o fenghuang é «entre todos, o líder». Que é o primeiro pássaro representado, seguindo uma longa tradição, nomeado já na dinastia Shang (1600-1946 a. C.) e aqui pintado com o mesmo cuidado que os outros, que denotam uma atenta observação das aves na natureza, por dois pintores da corte, um dos quais se distinguiria no género huaniaohua, a «pintura de pássaros e flores» que inclui também a figuração de peixes ou insectos. Yu Sheng (também escrito Yu Xing, 1692-depois de 1767) fez o álbum das aves com Zhang Weibang (c.1725-c.1775) com quem continuou a inquirição taxonómica através de um Compêndio de animais, Shou pu (tinta e cor sobre seda, 40,1 x 42,5 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Nele, a mesma atenção aos detalhes das figuras e dos textos escritos em duas línguas por oito altos funcionários, baseados em descrições em primeira mão de quem os observou, muitos deles emissários enviados pela corte ou por autoridades locais. Para além destes ambiciosos projectos,Yu Sheng dedicou uma particular atenção às flores, silenciosas manifestações de contínua renovação cujo perfume é capaz de evocar outros tempos, outros lugares, despertando nostálgicos sentimentos até dos confins do Império.
Hoje Macau Via do Meio元稹Yuan Zhen – Poeta e cavalheiro Editado por Miguel Lenoir Yuan Zhen (779-831) foi um poeta e académico chinês, e funcionário do governo durante a dinastia Tang. É conhecido pelas suas obras literárias, nomeadamente nos domínios da poesia e da prosa. Como poeta, político e académico de renome, desempenhou um papel crucial na formação da paisagem literária do seu tempo. As obras de Yuan Zhen são altamente consideradas pela sua profundidade emocional, beleza lírica e significado cultural, reflectindo as realidades sociais e políticas da época. A sua poesia continua a ser estudada e admirada pela sua influência duradoura na tradição literária chinesa. A poesia de Yuan Zhen caracteriza-se pela sua riqueza emocional e beleza lírica, reflectindo os tempos turbulentos da dinastia Tang. Os seus versos exploram frequentemente temas como o amor, a amizade, a perda e a transitoriedade da vida, captando a essência da experiência humana com eloquência e profundidade. Através da sua observação atenta do mundo que o rodeava, Yuan Zhen criou poemas que não só deliciavam os sentidos, como também ofereciam reflexões pungentes sobre verdades universais. Para além da poesia, as contribuições de Yuan Zhen para a literatura chinesa estenderam-se ao domínio da prosa, onde os seus escritos revelaram uma notável mistura de inteligência e criatividade. As suas obras foram célebres pela sua clareza de expressão, imagens vívidas e narração com nuances, revelando um profundo conhecimento da natureza humana e da sociedade. Para além dos seus esforços literários, Yuan Zhen foi também académico e político, defendendo reformas sociais e valores morais na sua capacidade oficial. O seu empenho na integridade, justiça e compaixão granjeou-lhe respeito e admiração entre os seus contemporâneos, solidificando ainda mais o seu legado como uma figura venerada da história chinesa. De um modo geral, a poesia e os escritos de Yuan Zhen continuam a encantar os leitores com a sua beleza intemporal e profunda percepção. Através da sua arte e intelecto, garantiu um lugar duradouro no panteão dos gigantes da literatura chinesa, inspirando gerações de poetas e académicos. Há várias traduções para inglês dos poemas de Yuan Zhen disponíveis em diversas colecções de poesia chinesa. Alguns tradutores que traduziram a obra de Yuan Zhen incluem Stephen Owen, Witter Bynner e Arthur Waley. Poderá encontrar os seus poemas em antologias de poesia da Dinastia Tang ou em colecções especificamente dedicadas à sua obra. As fontes online e as bibliotecas também podem ter traduções em inglês dos seus poemas para explorar e apreciar. Em português encontrámos unicamente o que transcrevemos, mais abaixo, neste texto. Como poeta, Yuan Zhen foi influente na formação do estilo literário do seu tempo e na inspiração de futuras gerações de poetas. O seu trabalho reflectiu o espírito da Dinastia Tang, conhecida como a idade de ouro da poesia chinesa, e foi considerado um dos “Oito Imortais da Taça de Vinho”, um grupo de poetas de renome que eram celebrados pelo seu talento e criatividade. A sua relação com a poetisa Xue Tao foi imortalizada em vários poemas, histórias e obras literárias. Eis alguns exemplos: A “História de Xue Tao”: Esta é uma lenda popular chinesa que conta a história da vida de Xue Tao e a sua relação com Yuan Zhen. Destaca a sua ligação emocional, os desafios que enfrentaram e o impacto duradouro do seu amor na cultura chinesa. Tanto Yuan Zhen como Xue Tao são referidos em várias obras literárias chinesas, incluindo romances, peças de teatro e ensaios. A sua história é frequentemente utilizada como símbolo do amor, da paixão e das complexidades das relações humanas. Ao longo do tempo, a história de Yuan Zhen e Xue Tao tornou-se parte do folclore e da mitologia chineses, com adaptações e recontagens que enfatizam diferentes aspectos da sua relação. Estes exemplos mostram a influência duradoura e o significado de Yuan Zhen e Xue Tao na literatura e cultura chinesas, tornando-os símbolos duradouros do amor e da expressão artística. Poemas de Yuan Zhen Palácio temporário➀ Desolado palácio dos imperadores, Florescem, no silêncio, vermelhas flores. Aias de cabelos brancos sentadas no lazer, Falando do Tang Xuanzong➁ e do seu viver. Nota: ➀Refere a residência provisória de um soberano em viagem. Aqui refere-se ao Palácio de Lian Chang, um dos palácios temporários mais grande da dinastia Tang, agora situado no atual condado de Yiyang, província de Henan. ➁Imperador da dinastia Tang (712-756), nasceu em Luoyang (685-762). Amanhece a Primavera Aos primeiros alvores do amanhecer, oiço um trovão, respiro o perfume das flores. Uma criança puxa a corda, faz soar um sino. No templo, há vinte anos, de madrugada, meu amor. tradução António Graça de Abreu Prosa A História de Yingying ou Yingying zhuan (莺莺传), composta pelo ilustre poeta Yuan Zhen (779-831) teve enorme impacto literário. Aqui o “extraordinário” não reside no sobrenatural, mas na feminilidade da heroína que afasta com altivez o namorado para se juntar a ele, um pouco mais tarde, por uma noite e só reaparece passados dez dias, comovida pelo longo poema que o seu amante decidiu dedicar-lhe. Desde então, ela regressa todas as noites para tornar a partir antes da alvorada, respondendo invariavelmente às suas perguntas com “Não consigo que seja de outra maneira.” Quando o amante lhe anuncia a sua partida iminente para a capital, ela não levanta nenhuma objecção. Repetidos insucessos nos exames fazem prolongar a separação e suscitam cartas de amor acaloradas que o herói se orgulha de compartilhar com as pessoas da sua intimidade. Porém, assustado por uma tal paixão, ele renuncia a revê-la e a desposá-la, justificando assim a sua atitude: “Entre os amigos de Zhang (张) que estavam ao corrente [dos factos] não houve nenhum que deixasse de o encorajar e que não se espantasse com a sua estranha conduta, mas a decisão de Zhang estava tomada. Como o nosso relacionamento era particularmente amigável, acabei por lhe conseguir arrancar estas palavras: “Regra geral, as criaturas excepcionais que devem o seu destino ao céu trazem infelicidade aos outros e, eventualmente, a eles próprias. Se ela tivesse encontrado alguém mais nobre e rico, teria aproveitado os seus encantos para se tornar favorita imperial e, chovesse ou fizesse bom tempo, transformar-se-ia num monstro inimaginável […] Sendo dotado de uma virtude fraca demais para triunfar sobre os seus males, considero que é mais razoável conter a minha paixão.” Um ano depois Yingying desposou um outro e Zhang casou-se longe dali. Porém, procurou voltar a vê-la, mas ela recusou recebê-lo, fazendo-lhe chegar secretamente este poema: Por ter perdido o brilho da minha beleza, ao ter emagrecido imensamente, mil remorsos deixam-me prostrada impedindo-me sair da cama. Sinto vergonha de ficar deitada, de modo algum por causa do outro. Mas sobretudo diante de ti por ter definhado tanto por tua causa. Tradução de Raúl Pissarra A dor da separação Depois de ver o vasto mar, nenhum veio d’água pode se comparar Dispersas, perto do topo do Monte Wu, não há iguais nuvens Muitas vezes passei pelas flores e não lhes poupei um olhar Pois metade do meu destino está no cultivo e, a outra metade, em você. Tradução de um blogger anónimo brasileiro
José Simões Morais Via do MeioO Grande Canal I | As montanhas Sagradas na China A Água é o Elemento do tema a abordar, “O Grande Canal”, logo os rios seriam os primeiros a serem introduzidos, mas então, qual a razão de começar por falar de Orografia (parte da geografia física que trata da descrição das montanhas)? Se a Índia tem rios e cidades sagradas, na China são sagradas as montanhas, sendo a mais alta do mundo com 8844,43 metros o Monte Qomolangma, nome proveniente da deusa tibetana da mãe Terra e conhecido por Evereste devido ao general George Everest nos anos 40 do século XIX por ali ter andado. Este monte pertence à Cordilheira dos Himalaias, formada há pouco mais de 10 milhões de anos, na Era Cenozoica, quando o continente indiano chocou com a placa euro-asiática continental provocando na zona do choque uma deformação, criando-se assim planaltos com 2 mil até 2,5 mil metros de altura, atingindo alguns cumes os 3 mil metros. Há três milhões de anos, os picos das montanhas dos planaltos tibetanos já atingiam os 4,5 a 5 mil metros de altitude. As altas montanhas na China situam-se sobretudo a Oeste, onde as faldas dos Himalaias chegam a Qinghai, Sichuan e Yunnan, tendo a cordilheira dos Pamir a Oeste de Xinjiang e a Norte, Tianshan. Importante para o nosso tema é a província de Qinghai onde no planalto Qinghai-Tibete nascem os rios mais importantes da China: o Huanghe (rio Amarelo), o Changjiang (Yangzi) e o Lancangjiang (rio Mekong, com 4350 km), que desagua no Vietname. Na província de Shaanxi, o rio Amarelo corre a Norte da cordilheira montanhosa Qinling e o rio Yangzi a Sul. Estendendo-se esta de Leste para Oeste, varia a altura dos montes dos 2000 aos 3600 metros e é considerada a divisão natural entre o Norte e o Sul da China, fazendo de barreira ao frio proveniente do Norte e à chuva do Sul. CRÓNICAS DAS MONTANHAS “No seu culto pela natureza, os primitivos habitantes da China não puderam deixar de ficar impressionados com as vertiginosas altitudes, que, só de longe em longe, surgem no seu vastíssimo solo, plano na sua maior extensão. Como todas as coisas deste mundo que, quanto mais raras, mais estimadas são, essas escassas montanhas, de admiradas, passaram a ser veneradas e, ainda mais respeito infundiram no ânimo dos seus adoradores, no dia, em que, nas suas vertentes, principiaram a enterrar os seus mortos”, escreve Luís Gonzaga Gomes no Chinesices Vol. VII e continuando com ele, “achando que os deuses-montanhas não podiam como os simples mortais, prescindir da companhia do elemento feminino, passaram a conceder-lhes esposas, a inventar-lhes aniversários e a erigir-lhes templos, para a celebração do seu culto. Entretanto, o espírito de hierarquia levou-os a ordenar estes deuses, em diversas categorias, conforme a altitude e a imponência das montanhas por eles personificados. Uma vez criado o culto pelas montanhas, cinco das mais majestosas elevações foram escolhidas para serem veneradas como divindades de maior categoria.” “Conjunto conhecido pelo nome de Ung-Ngók-San [Wuyue shan, 五岳山, As Cinco Montanhas Sagradas] que, pela sua situação geográfica, representavam os cinco pontos cardiais – os chineses consideram também o centro como um dos principais pontos no seu sistema de orientação – bem como, as Cinco Cores, os Cinco Elementos e as Cinco Estações, outras montanhas de somenos importância foram mais tarde e em épocas diversas também incluídas, na sua extensa lista de divindades. Os nomes dessas montanhas, a sua orografia e a sua orogenia, bem como as lendas que se teceram em volta delas, encontram-se registadas no “Sán-Kei” (Crónicas das Montanhas).” Será este o San Oi Keng, (山海经), em mandarim Shan Hai Jing, Clássico das Montanhas e dos Mares escrito por Liu Xiang e o filho Liu Xin entre 206 a.n.E. e o ano 23. É considerado o primeiro livro da literatura chinesa a falar sobre geologia e geografia. Com 31 mil caracteres, nos 18 volumes estão informações sobre montanhas, rios, jazigos de minerais e minas, assim como descreve costumes folclóricos, lendas e antigas histórias, medicina, tecnologia e ciência. “Quanto às ‘Cinco Montanhas Sagradas’, a sua festividade costuma ser celebrada no sexto dia da décima lua e tanto o budismo chinês como o tauismo não duvidaram em homologá-las para o seu culto. É por este motivo que existem crentes chineses que adoram o Imperador Amarelo, ou o Espírito do Centro, representado pelo Sông-Sán [嵩山, Song shan, a montanha sagrada do Centro], ou o Pico Central, e situado na província de Honám (Henan), estando cometido a esta divindade o encargo de presidir à vida dos lagos, rios, canais e florestas; o Imperador Encarnado, isto é, o Espírito de Hâng Sán, [衡山, Heng shan a montanha sagrada do Sul], ou o Pico Meridional, situado na província de U-Nám (Hunan), deus dos astros e de todas as criaturas aquáticas, incluindo os dragões; o Imperador Branco, personificação do Fá-Sán [华山, Hua shan a montanha sagrada do Oeste], ou o Pico Ocidental da província de Sán-Sâi [Shaanxi], divindade esta a quem está incumbida a protecção do reino mineral e avicular; o Imperador Negro, incarnação de Hang-Sán [恒山, Heng shan, a montanha sagrada do Norte, província de Shanxi] ou o Pico Setentrional da província de Tchit-Lei, senhor dos rios e do reino animal; e o Imperador Verde, personificação do T’ái-Sán [泰山, Tai shan a montanha sagrada do Leste em Shandong], ou o Pico Oriental da província sagrada de Sán-Tông, a quem estão entregues os destinos da humanidade, tanto neste como no outro mundo”, escreve Luís Gonzaga Gomes. MONTANHAS SAGRADAS DO BUDISMO As quatro montanhas sagradas do budismo na China são, Jiuhua shan na província de Anhui; Putuo shan em Zhejiang; Emei shan em Sichuan; e Wutai shan na província de Shanxi. Shanxi significa “a Oeste das montanhas” e fazia parte do território limite entre a civilização chinesa e as tribos nómadas do Norte, tendo por isso a Grande Muralha muita importância estratégica. Nessa província se encontram, a montanha Wutai a poucos quilómetros da montanha sagrada do Norte, Hengshan, e ainda a 75 km Sudeste de Datong, no concelho de Jiaocheng o Templo de Xuanzhong, construído no século V e onde nasceu a seita budista da Terra Pura. Na montanha Wutai formada por cinco colinas encimadas por planaltos existem 47 templos budistas de arquitectura tradicional chinesa. O Budismo aqui chegou na dinastia Han do Leste (25-220), sendo Xiantong, o segundo templo budista a ser construído na China. Conta a lenda, o bodhisattva (pusa) Wenshu ao passar por Wutai, sentindo-se inspirado por boas vibrações passou a divulgar os ensinamentos de Buda. O clima era de extremos, as colheitas sempre fracas e perante a vida de miséria do povo resolveu em viagem ir pedir emprestada ao Rei do Dragão do Mar do Leste (东海龙王Donghai Longwang) a pedra preciosa mágica conhecida por Xielongshi (歇龙石, Pedra do Dragão Descansado), comprometendo-se a devolver num prazo de trinta anos. Perante a grande prosperidade ocorrida desde então em torno da montanha Wutai, os habitantes, conseguindo grandes colheitas, foram erguendo templos para agradecer aos deuses, mas esqueceram-se de devolver a pedra mágica e passados os trinta anos, zangado o Rei do Dragão (龙王, Longwang) enviou o Dragão Preto (黑龙, Heilong) a Wutai para a recuperar. Este, sem a conseguir encontrar, circulou como um louco por entre as colinas e descontrolado deitou abaixo os seus cinco picos e daí o nome de Wutai, a significar Cinco Colinas Planas. Essa pedra Xielongshi encontra-se no pátio do Templo Qingliang construído em 472. Já o templo Xiantong, seguindo o modelo de palácio imperial, é o maior de Wutai com uma área de oitenta mil metros quadrados, tendo para ver, o pesado sino de bronze, duas das cinco torres octogonais em bronze de treze andares com sete metros de altura e a sala de bronze mandada construir por o Imperador Wangli (1572-1620) em memória da mãe Imperatriz Xiaoding (1545-1614), concubina do Imperador Longqing que em 1563 lhe deu o herdeiro da coroa. Nas paredes dessa sala foram esculpidos dez mil budas em alto relevo. CINCO MONTANHAS SAGRADAS DO TAOISMO As montanhas sagradas da China, passaram nos finais do século VI a ser as cinco montanhas sagradas para os taoistas. Ainda na província de Shanxi, após passar pela vila de Hunyuan, já na montanha sagrada do Norte Hengshan (恒山) descobrimos na ravina de Jinlong o templo Xuankong (mosteiro de Hanging). Uma barragem encontra-se oculta por trás da montanha de onde um enorme buraco jorra a água em cascata alimentando um pequeno ribeiro a correr por baixo do longo edifício construído nos finais da dinastia Wei do Norte (386-534), quando o nome de Datong era Pingcheng e capital dessa dinastia. No interior de um dos pavilhões soubemos ter muitas vezes sido destruído pela corrente do rio Heng e o actual edifício ser da dinastia Qing. A 25 e 50 metros do solo, numa concavidade da encosta, o complexo é todo em madeira e está suspenso por altas estacas. Composto por diversos pavilhões ligados por estreitos corredores e escadas, alberga uma quantidade de quartos onde se encontram mais de 80 estátuas, tanto de bronze, como de ferro, de pedra e de argila, esculpidas em diferentes períodos. Num dos salões encontrámos juntas as estátuas de Lao Zi (Lao Tzé), Kong Zi (Confúcio) e Buda (Sidarta). O templo Xuankong, incrustado e resguardado no monte Cuiping (翠屏), tem um ar frágil e não fosse estar há mais de 1400 anos naquele suspenso equilíbrio, não nos teríamos aventurado a nele entrar. De camioneta, nos anos 90 demoramos três horas para da montanha sagrada do Norte voltar à cidade de Datong. Na província de Henan, a montanha sagrada do Centro, Song shan (嵩山), situa-se na margem Sul do rio Amarelo e é um parque geológico onde se encontra o Templo de Shaolin. Como cadeia montanhosa está dividida em duas partes, a Oeste a montanha Shaoshi, situada a Noroeste da cidade de Dengfeng, conta com 36 cumes numa extensão de 64 km, de Luoyang a Zhengzhou, e dos sete picos tem um com mais de 1512 metros. Na encosta Oeste de Song shan encontra-se o mosteiro de Shaolin onde no ano de 527 chegou o monge Bodhidharma, o primeiro Patriarca do Budismo Chan e aí criou o wushu (kungfu) de Shaolin. Já na parte Leste, a montanha Taishi tem também 36 montes, totalizando assim a montanha sagrada do Centro 72 montes numa área de 450 km². Na província de Shaanxi, no concelho de Huayin, a cerca de 120 km a Leste de Xian a montanha sagrada do Oeste, Hua shan (华山) conhecida pela sua magnificência e ser muito íngreme e difícil de percorrer. Nos tempos antigos apenas tinha um caminho para a escalar e segundo a lenda o mestre tauísta Chen Tuan no século X aqui viveu em plena reclusão. Na dinastia Tang, a montanha Hua estava a meio caminho entre as capitais Chang‘an e Luoyang e o Imperador Xuanzong designou-a como montanha sagrada da família real Tang. No topo da montanha Hua, uma gigantesca pedra faz lembrar um machado cujo mito refere ser esse o mágico machado usado por Chenxiang [filho da deusa Huayue Sanniang e do marido, o mortal Liu Yanchang, ou Liu Xiang] para cortar a montanha e libertar a mãe, aí encarcerada como punição de violar as regras do Céu. O castigo dado a Huayue por o seu irmão mais velho Erlang Shen devia-se a ser ela uma imortal e por amor se juntar a um mortal. Na província de Shandong, a montanha sagrada do Leste, Tai shan (泰山) tem a reputação de ser o primeiro monte do mundo. Diz-se ser o Grande Imperador da Montanha do Leste, o Deus da Montanha Tai (Dongyue Dadi, descendente de Pangu) a governar sobre a vida das pessoas, dos mortos e das fortunas e a sua filha a princesa Aurora proteger as mulheres e crianças. Situada a Sul da cidade de Jinan, estende-se por mais de 200 km na direcção Leste-Oeste numa área de 426 km² e tem o pico mais alto a 1545 metros. Com duas entradas, a do Norte mais longa e pela porta Sul, na cidade de Tai’an inicia-se a subida de uma ingreme e longa escadaria até ao Céu dividida em dois lanços de quatro quilómetros cada para se chegar ao Palácio das Dádivas do Céu no Templo do Deus da Montanha Tai. Em Hunan, a montanha sagrada do Sul, Heng shan (衡山) tem 150 km de comprimento e 72 picos, situando-se no extremo Sul o pico Huiyan e oposto, a montanha Yuelu no lado Norte, num dos seis distritos urbanos da prefeitura de Changsha. O pico mais alto de Heng shan é o Zhurong (deus do Fogo) com 1300 metros. Foi a única não visitada das cinco montanhas sagradas e por isso a escassez da informação.
Hoje Macau Via do MeioA Rota das Especiarias e a história do Oriente e do Ocidente – Parte I Texto de Ritchie Lek Chi, Chan Primeiro contacto com a colheita de especiarias As especiarias fazem parte da vida das pessoas do Sudeste Asiático. Na Indonésia, famosa pela produção de especiarias desde os tempos antigos, tornaram-se numa necessidade para a população. Lembro-me do meu primeiro contacto com o processo de fabricação do cravo na Indonésia, quando era criança. Essa experiência levou ao meu interesse posterior pela história das especiarias. Mais tarde, através da exploração em várias línguas, descobri que existe muita informação sobre o comércio de especiarias e as suas rotas desde a antiguidade até à Idade Média. Mais tarde, após décadas de viagens ao redor do mundo, descobri muitas informações ocultas sobre o comércio de especiarias e as suas rotas desde os tempos antigos até a Idade Média. Após o século XVI, com a chegada dos portugueses, Macau teve também uma importante relação com o comércio de especiarias. Para compartilhar essas informações com os leitores, aqui fica este artigo. A colheita Quando eu morava em Jacarta, sempre que havia feriados prolongados na escola, o meu pai costumava “exilar-me” em casa da minha tia, por vezes durante mais de dez dias. A família da minha tia morava na cidade de Bogor. O clima nesta cidade é confortável e agradável. Podia ter contacto com a natureza e gostava de lá ficar. Bogor é uma cidade antiga cercada por quatro vulcões que abraçam esta povoação numa bacia a mais de 260 metros acima do nível do mar. Foi a capital do Reino de Sunda entre os séculos XII e XVI. Quando os holandeses governaram a Indonésia, a cidade tornou-se na sua capital. Embora a cidade esteja a apenas 66 quilómetros de Jacarta, o clima e o ambiente das duas cidades são muito diferentes. Bogor tem um clima fresco e húmido com chuvas abundantes. É o local com mais trovoadas do mundo e por isso é conhecida como a “Capital Mundial do Trovão”. O clima único e o solo vulcânico fértil tornam a vegetação local rica, e os tipos e quantidades de produtos agrícolas também são extremamente ricos. O nome chinês da cidade é “Mou”, que também pode significar “plantas luxuriantes”. Bogor tem um pouco de tudo isso. O mundialmente famoso Jardim Botânico Tropical e a Estação Experimental Agrícola também aqui estão localizados. A residência do Presidente da Indonésia foi construída ao lado do jardim botânico. Cada vez que passo por este lugar, vejo o cervo sika comendo pacificamente a relva verde no pasto verdejante (foto 1), como uma cena mágica do filme “The Wizard of Oz”. Voltando ao dormitório da escola onde moravam a minha tia e a sua família, atrás da casa havia uma pequena encosta coberta de mata do outro lado de um riacho. O riacho no sopé da encosta estava coberto de arbustos. Ao princípio, eu não sabia que tipo de planta eram esses arbustos. Só um dia obtive a resposta. Numa manhã clara, o meu primo levou-me até um arbusto cheio de botões de flores (foto 2). O cenário era muito lindo! Todos amarraram um saco de pano atrás da cintura e subiram a uma pequena árvore para colher os botões de flores que depois colocaram no pequeno saco. A tarefa repetiu-se durante alguns dias até que o trabalho de colheita dos botões ficou concluído. Com o tempo bom, todas as manhãs, dezenas de sacos de botões eram atirados no campo para aproveitar o sol. Cerca de três a quatro dias depois, os botões florais secos emitem gradualmente uma fragrância especial, que flutua sobre o enorme espaço. Esta fragrância familiar revela ser uma das famosas especiarias, o cravo (foto 3 ). Antiga rota das especiarias Quando se trata de intercâmbio cultural ou de comércio entre a China e o Ocidente nos tempos antigos, as pessoas geralmente pensam apenas na “Rota da Seda”, “Rota da Porcelana” ou “Rota do Chá”, etc., e raramente mencionam a “Rota das Especiarias”. Na verdade, o comércio de especiarias existe desde os tempos antigos. Podemos citar alguns artigos chineses e estrangeiros para confirmar esses dados históricos. Em 2021, o Arquivo Nacional da Indonésia publicou o livro “Arquivos Originais das Ilhas das Especiarias do século XVII ao XVIII” (Nota 1). O Arquivo Nacional da Indonésia colecciona materiais manuscritos sobre as Ilhas das Especiarias dos séculos XVII ao XVIII. Foi publicado em livro e anotado (Foto 4) para mostrar ao público a situação do comércio de especiarias nas ilhas naquela época. A introdução do livro descreve: “A Indonésia tornou-se um factor importante no desenvolvimento do comércio global nos séculos XVII e XVIII devido à sua produção de especiarias. Embora até agora não seja claro quando é que o comércio de especiarias atravessou os mares e chegou à Ásia, África e Europa. No entanto, as evidências existentes mostram que um dos materiais usados para preservar as múmias no antigo Egipto é o cravo. Várias evidências da Europa também mostram que os antigos gregos e romanos estavam familiarizados com o cravo, sobretudo na Mesopotâmia. Escavações arqueológicas na Ásia encontraram cravos na cozinha de residentes comuns.” Outro livro, “The Lands Beneath the Winds”, foi co–editado por vários estudiosos, historiadores, professores universitários, escritores e jornalistas indonésios conhecidos. O prefácio do livro contém um parágrafo sobre a “misteriosa rota das especiarias” e o conteúdo afirma claramente que “a Rota das Especiarias remonta a três mil anos”. Para escrever uma crónica completa e abrangente das rotas das especiarias, seria necessário viajar ao redor do mundo. John Keay (Nota 2) usou mapas antigos, relatos e histórias de viajantes, antigos diários de navegação e listas de navios para reconstruir as rotas de navegação dos egípcios, que foram os pioneiros do comércio marítimo de especiarias. “Marinheiros romanos e gregos vindos do Oeste, passando pela Península Arábica e encontrando rotas para a Índia e as ilhas indonésias, colhiam pimentas e gengibre. “(Nota 3) Comércio externo de especiarias de Macau Ao apresentar uma das especiarias, a “cânfora”, a versão em inglês da Wikipedia afirma: “A cânfora também é usada como substância anti-bacteriana. Em termos de anti-sepsia, o óleo de cânfora era um dos ingredientes usados pelos antigos egípcios na fabricação de múmias” (Foto 5). Lembro-me de ter assistido a um documentário que apresentava várias ilhas da Indonésia há alguns anos, mas infelizmente esqueci o título do filme. O conteúdo do filme é consistente com os fatos históricos declarados na Wikipedia. O vídeo apresenta Barus, uma pequena cidade no norte de Sumatra. O terceiro milénio a.C., era conhecido por ser rico em “cânfora”. De 1567 a.C. a 1339 a.C., durante a Décima Oitava Dinastia do Egipto, os egípcios viajaram por mar até Sumatra para obter cânfora como matéria-prima para fazer óleo de cânfora. A curta-metragem indica ainda que os antigos egípcios seguiram a rota marítima das especiarias até ao arquipélago indonésio para obter especiarias. Na verdade, o tempo pode ser adiado ainda mais. De 1938 a.C. a 1756 a.C., o rei da Décima Segunda Dinastia ordenou aos seus homens que cruzassem o oceano até as Ilhas Moluku, Molucas (Ilhas das Especiarias) na Indonésia para obter cravo, porque o cravo também era usado na preservação de múmias. Nesta época, a primeira dinastia apareceu na história chinesa – a “Dinastia Xia”. Esta dinastia inaugurou quatro mil anos de trono hereditário na China. Recentemente, visitei o Museu Marítimo de Macau e descobri que a história do comércio das especiarias também está exposta na sala de exposições. Embora as exposições sejam relativamente simples, raramente conseguem mostrar ao público que o comércio de especiarias tem uma relação histórica importante no mundo e em Macau (Foto 6). Além disso, os folhetos promocionais colocados nesta área expositiva apenas contam que a rota das especiarias existe desde a antiguidade. Parte do conteúdo é extraído da seguinte forma: “A maioria das especiarias é produzida em áreas tropicais da Ásia. Além de melhorar o sabor dos alimentos, civilizações antigas como Egipto, Índia e China sabem há muito tempo que as especiarias têm funções medicinais, anti-sépticas e de remoção de odores. A história mais antiga do uso humano das especiarias pode ser rastreada há 5.000 anos, embora o comércio de especiarias tenha começado por terra, o seu rápido desenvolvimento e impacto económico dependiam do transporte marítimo…”. (continua) Notas: 1-“A História das Especiarias”, Lucien Guyot (França), traduzido por Liu Deng. Primeira edição, 2006. Sociedade Yushan de Taiwan, página 44. 2-John Keay, historiador britânico, jornalista, apresentador de rádio e conferencista especializado em história popular indiana. 3-“Tales of The Lands Beneath the Winds”, Yanuardi Syukur, Dewi Kumoratih, Irfan Nugraha, etc. Negeri Rempah Foundation Publishing House, 2020. Página 8, parágrafo 2.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Pincel Simpatico e o Carimbo Fiel de Wen Peng Wen Zhengming (1470-1559) regressou a Suzhou em 1527 depois de três desanimadores anos na corte para cumprir um antigo ideal dos literatos, materializado no relato do poeta Tao Yuanming (365-427), em que se entende o lugar do exílio como uma oportunidade para reconhecer e partilhar com alegria, e ao mesmo tempo, a vida interior, a natureza moral do indivíduo e a beleza do local que o acolhe. E aí se fala de Jiangnan, a «Sul do Grande rio Changjiang», em cujo espaço se encontra a grande cidade de Suzhou. Nela Wen Zhengming viveu, como convidado, num estúdio do famoso Zhuozheng yuan, o «Jardim do inábil administrador» que lhe inspiraria um ensaio e muitas pinturas e poemas. Nesse jardim que tem recantos com designações poéticas como Baixio das imensas fragrâncias, Horto que atrai os pássaros ou o Pavilhão dos pensamentos de grande alcance, o pintor reflectiu entre outras coisas, no modo como se poderiam transmitir as artes do pincel. Numa pintura recordou as palavras do seu mestre Shen Zhou (1427-1509) ao observar uma obra que ele fizera usando os estilos de dois antigos e venerados mestres: «Não se pode simplesmente tomar Jing Hao e Guan Tong e dizer que se tem um estilo de pintura. Só quando a arte vem de dentro é que se possui rios e montanhas.» E ele faria essa aproximação interior, notada noutras obras em que o seu pincel se confundiu de propósito com outros, como no rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 31,5 x 541,6 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) A última ode do penhasco vermelho, imitando Zhao Bosu (c. 1123-82), onde também copia o texto de Su Shi que está na sua origem. Doutro modo, o seu nome apagou-se para que aparecesse o de Shen Zhou, numa prática reconhecida como daibi, «pincel emprestado». Wen Peng (1498-1573), o filho mais velho de Wen Zhengming, viria por sua vez a assumir essa discreta adesão ao modo de fazer do seu pai. Uma vontade de partilhar presente nas duas odes de Su Shi que os dois admiravam. Numa passagem da primeira, que o seu pai ilustrou e que se vê no Instituto das Artes de Detroit (rolo vertical, tinta sobre papel, 143 x 33,5 cm), lê-se: «A brisa clara sobre o rio, o luar resplandecente entre as montanhas; o ouvido recebe primeiro criando um som, o olhar encontra o objecto e surge a cor. São coisas que podemos receber de graça e nunca se gastarão. Porque estes são os infindos tesouros da Natureza, que estão aqui para tu e eu desfrutarmos juntos.» No álbum de pinturas Panoramas de Yixing (tinta e cor sobre seda, 31, 7 x 24, 2 cm, cada uma das dez folhas duplas, vendido na Christies) em cada cenário estão sempre dois amigos animados na partilha da beleza à sua frente. Wen Peng distinguir-se-ia também e sobretudo no entalhe de carimbos que, se é certo que atestam com autoridade o indivíduo, são uma marca a ser reconhecida pelos outros.
Hoje Macau Via do MeioUm olhar poético para Macau que atravessa séculos Cheong Kin Man * Antropólogo visual e artista de desconstrução etimológica. Os poemas de Macau, escritos em chinês clássico pelos poetas cantonenses, são pouco conhecidos mesmo entre a comunidade falante do idioma na RAEM. Passados vários meses de procrastinação depois de ouvir palavras de estímulo de Carlos Morais José, peguei aleatoriamente um poema com “versos regulamentados pentassílabos”, isto é, cada verso é composto de cinco caracteres sino-asiáticos. Trata-se de “Olhar para o Mar em Macau” (澳門覽海) com 24 versos e cada verso tem cinco ideogramas, com pontuação posteriormente adicionada. Neste poema, os versos com números ordinais ímpares terminam com uma vírgula, ao passo que os com números pares acabam com um ponto final. O poeta em causa é Zhang Mu (Cheong Mok em cantonense, 1607-1683), poeta, grande pintor de cavalos, viajante de toda a China. Traduz-se, ao ler uma biografia sua, certa melancolia menos bem escondida e provocada por uma dinastia morta, pois viveu num período no qual a China de maioria étnica Han foi conquistada pelos Manchus. Sabemos que o nome cantonense da Guia é Tong Mong Ieong, como também anotava Ana Maria Amaro. O topónimo cantonense significa, literalmente, “Oriente-Olhar-Oceano”. Foi justamente ali que Zhang escreveu esta obra prima. Ao traduzir – isto é, ler o mais intensamente – não cessei de ficar surpreendido como através da leitura de um tal texto, fico com uma mistura de muitas imagens não apenas da China mais clássica, mas também de uma Macau da grande actualidade. É, enfim, um poema escrito no meio do século XVII! Aqui apresentamos a minha modestíssima tentativa de transpor o poema pentassílabo num texto poetizado decassílabo, com algumas notas a fim de mais aprofundadamente apreciarmos o original. Autobiografia como preâmbulo Nascendo no mar, país possante, Maduro, encontro na tormenta, Com nobre aspiração constante, Ondas quebradas, mui água venta. Estandarte foi erguida guante, Navio “ganso-e-grou” ostenta. Apreciada a maravilha, As terras findam com a barquilha. 生處在海國, 中歲逢喪亂。 豪懷數十年, 破浪已汗漫。 故人建高纛, 樓船若鵝鸛。 因之慰奇觀, 地方盡海岸。 Natural de Liuzhou na província de Guangxi de hoje, Zhang Mu foi um dos grandes pintores do Lingnan (uma região cultural do sul da China) da era pós-Ming. Aqui o termo bissilábico, ou dois caracteres, “喪亂” (mortes e turbulências, ou “tormenta” na tradução poetizada) indica justamente o doloroso tempo de transição entre duas dinastias chinesas Ming e Qing, no meio do século XVII. Esta autobiografia do artista está concluída nos meros primeiros 20 caracteres chineses do poema. No quinto verso do texto asiático lê-se o termo “故人”, que está omitida na tradução. Literalmente, a palavra chinesa clássica signfica “gentes do passado” e pode ser igualmente traduzido “amigo/s”. Associando-me à atemporalidade chinesa clássica, tenho impressão que é mais apropriado traduzir literalmente “gentes do passado”: Foram os conhecidos que ergueram o estandarte. Quanto à formação de batalha “ganso-e-grou”, a expressão, que fica no sexto verso, deriva do antiquíssimo registo no clássico “Comentário de Zuo” (Zuo Zhuan, ou Cho Chün em cantonense) publicado no final do século IV antes da nossa era. O termo “ganso-e-grou” visualiza duas formas de batalhas na origem da palavra. O género de navio, que está referido no mesmo sexto verso do texto original, é uma embarcação guerreira com uma “torre” de três níveis, quer dizer, uma construção em cima da superfície deste navio militar da China clássica. Interessante seria uma associação deste poema à cartografia europeia e chinesa dos primeiros tempos da fundação de Macau. Os cartógrafos da época, como sabemos, sem poderem ver as realidades geográficas nos seus próprios olhos e dependendo inteiramente das descrições textuais, podem ter feito os mapas pictóricos de uma Macau sem diferenciar, ou pouco diferenciando as arquitecturas cantonense e europeia. Assim sendo, já imagino as caracas e outros navios portugueses, inseridos entre os juncos. Metrópole mundial do século XVII Bárbaros no este – o sol banha – Traduzindo, a China exaltam, Jades e pérolas se apanha, Feiras destas, luzes se ressaltam. No sonho, a sagrada montanha, Palácios de ouro, nuvens saltam, Céus cortados pelos pagodes, Cadeia de telhados, as odes. 西夷近咸池, 重譯慕大漢。 寶玉與夜珠, 結市異光燦。 若夢游仙瀛, 金宮赤霞爛。 危樓切高雲, 連甍展屏翰。 Primeira referência directa à presença europeia e à muito próspera cena comercial de Macau neste poema, o “banho do sol” é aqui uma tradução livre substituindo o nome do local mitológico chines, Xian Chi (Ham Chi em cantonense) onde, segundo a mitologia sínica, o sol banha durante o dia. Interpreto que é uma metáfora da chegada dos “bárbaros ocidentais” no “oriente”. No texto original em chinês, o nome, ou melhor, a expressão 夜珠, “luminosa pérola”, ou da forma mais literal, “pérola da noite” evoca em mim uma associação às luzes da noite de Macau de hoje. Com a expressão do “Grande Han”, trocada na tradução pela mera palavra China, não sei se o poema seria considerado, na época da sua escrita, politicamente correcto de ser circulado. Pergunto-me mesmo se uma tal simples denominação do país despertando a grandeza dos Han como a maioria étnica não causaria a pena de morte. Ao ler esta passagem, já estão visualizados, na minha cabeça, templos antigos que serviam igualmente como residências temporárias dos mandarins, mas não só: a arquitectura barroca cuja terminologia técnica a China clássica ainda não inventou. Até mesmo uns “arranha-céus” do século XVII – os altos pagodes que tocam os céus – estão em frente de mim. Fim da autobiografia, fim do relato Sobre águas, colinas divinas, Verdes, acidentadas, ligadas, Ondas transparentes, cristalinas, Um só barco, farras agradas. Volto com lufadas heroínas, De repente, as almas trocadas, Ondas raivosas! Sem fim aboio, Milhas d’rota, gemo sem apoio. 水上多神山, 青削屢續斷。 澄波或如鏡, 一葉亦足玩。 及爾長風迴, 氣色忽已換。 狂瀾渺何窮, 萬里生浩歎。 Esta passagem final, cujos últimos oito versos aqui agrupamos, relata mais uma cena que já não tem nada a ver com a Macau de hoje. Penso nos vários riachos na península de Macau que foram desaparecendo ao longo do tempo e que permanecem apenas nos nomes das ruas antigas. Está visualizado, sobretudo, no meu imaginário, uma China imperial dos grandes literatos, a qual espelha a vida frustrante de Zhang Mu, e concluída por ele próprio com “um longuíssimo suspiro” (traduzido aqui como “gemo sem apoio”), como se constata ao ler o original.
Hoje Macau Via do MeioAo som de Rumeng Ling 如梦令: Tradução comentada do poema “Como num sonho”, de Li Qingzhao Li Qingzhao 李清照 (1084-1155) é um nome que atrai geral aclamação. Mesmo dentro de um ambiente literário pouco favorável para a prática literária feminina1, ela conseguiu afirmar-se sempre como letrista, além de poeta. Nos nossos dias, Li recebe a reputação de “poeta primeira”; “a maior poeta da China”, “a mais talentosa de todos os tempos”, ou uma das “Quatro Maiores Compositoras da poesia da Dinastia Song”2, justificada por uma recepção crítica que reconhece sua obra poética como uma das mais importantes da poesia chinesa clássica. A poesia foi para ela uma tarefa dotada de alto sentido autobiográfico imanente à identidade feminina; e também um exercício de ontologia sobre a própria poesia lírica chinesa, que se encontrava em forte diálogo com a música, durante a Dinastia Song. O processo desta tradução comentada envolveu pesquisar em profundidade o poema “Como num sonho”, baseando-se em algumas coletâneas em língua chinesa dedicadas exclusivamente a poesia de Li Qingzhao. Ademais, foram consultadas algumas traduções em língua inglesa, que me servem de contraponto para expandir a leitura do poema e melhor sustentar as escolhas de tradução adoptadas. Assim, decidi apresentar o poema original, acompanhado da sua romanização em sistema pinyin e tradução caractere por caractere, com texto no horizontal, lido da esquerda para direita. No original também não é usado os sinais de pontuação. Após a apresentação do poema original, segue a tradução em língua portuguesa e os comentários de tradução, que visam comentar as particularidades estruturais do poema; apresentar a combinação rítmica utilizada; realçar seus aspectos semânticos e sonoros; comentar alguns traços distintivos do poema; fazer uma leitura comparada com outras traduções, revelando, verso por verso, seu conteúdo mais profundo. O poema original: 如梦令 《昨夜雨疏风骤》 昨 夜 雨 疏 风 骤 zuó yè yǔ shū fēng zhòu ontem noite chuva esparsa vento brusco 浓 睡 不 消 残 酒 nóng shuì bù xiāo cán jiǔ denso dormir não eliminar fragmento álcool 试 问 卷 帘 人 shì wèn juǎn lián rén tentar perguntar enrolar cortina pessoa 却 道 海 棠 依 旧 què dào hǎi táng yī jiù mas dizer haitang como antes 知 否 知 否 zhī fǒu zhī fǒu saber não saber não 应 是 绿 肥 红 瘦 yīng shì lǜ féi hóng shòu dever estar verde gordo vermelho magro Na tradução: Ao som de Rumeng ling Como num sonho: chuva e vento na noite passada Ontem à noite: vento bravo e chuva fina leve ebriez após sono profundo se preserva Pergunto à donzela que ergue a cortina disse: a mesma é macieira-brava Sabes? Não, não sabes estão gordas as folhas e magras as flores O poema acima, assim como a maioria escrito por Li Qingzhao, é um poema lírico chinês (词 cí). Esta forma poética caracteriza-se por ter dois títulos: o da melodia (词牌 cí pái), e título do poema (词题 cí tí). O uso de dois títulos na poesia lírica chinesa revela-se uma das principais características deste género, difundido na dinastia Song (960-1279). No original esta particularidade serve para diferenciar o padrão melódico para qual o poema foi escrito do poema em si, dado que podemos encontrar poemas diferentes com o mesmo título melódico. Essa discrepância entre o título da melodia e o título do poema é observada com muita atenção na tradução. Em exemplo, nas traduções em língua inglesa, é, muitas vezes, destacado com “ao som de”, como na de Ronald Egan: “To the tune ‘As If in a Dream”. A tradução em língua inglesa de Xu Yuanchong também se utiliza da palavra “som”: “Tune – ‘Like a dream’”. Em português, o título da melodia aparece em caracteres romanizados, destacado com “ao som de”, como simplesmente “Ao som de Rumeng ling”. O caractere 令lìng sugere a particularidade estrutural desta obra, que se define por ser uma canção curta (小令 xiǎo lìng). Segundo Ronald Egan (2013:327), este poema foi inspirado no último quarteto do poema “懒起” (lanqi)3 (“Lânguido para se levantar”, tradução minha), do poeta do período final da Dinastia Tang, Han Wo (韩偓, 842-923). O mesmo autor aponta adaptar “adapt” ou reescrever “rewrite” versos de poetas anteriores, de acordo com a sua identidade feminina, como uma das práticas preferidas de Li Qingzhao. Contudo, esta forma de escrever poesia não foi apenas usada por Li Qingzhao. Ainda Egan nos informa que poetas como Zhou Bangyan (1056-1121) e Su Shi (1037-1101) também eram conhecidos por adaptar versos de seus antecessores de acordo com seus estilos e identidades. Por outro lado, o poema original abriga-se ao esquema de rimas toantes, identificados no exterior de cada verso, com exceção ao terceiro verso (tendo em vista a apresentação do poema aqui disposta). É visível a repetição do vocábulo “u” no final dos versos: /zhou/, /jiu/, (…) /jiu/, /fou/, /shou/. A tradução portuguesa introduz o esquema de rima ABABCC: /fina/, /preserva/, /cortina/, /brava/, /sabes/, /flores/. Agora, partimos para a leitura dos versos do poema: 昨夜雨疏风骤 Ontem à noite: vento bravo e chuva fina O verso de abertura do poema enuncia os fenómenos naturais que ocorreram na noite de ontem. Nele, há ausência de elementos verbais. A tradução inglesa de Xu Yuanchong adiciona os verbos “soprar” e “ser/estar”: “Last night the wind blew hard and rain was fine”, como forma de explicitar a experiência da chuva e vento. Em português, faz o acréscimo do sinal gráfico (:), de forma a enunciar e descrever os eventos naturais ocorridos na noite anterior. O termo 雨疏 yǔ shū caracteriza uma chuva esparsa, que caiu de forma intermitente, como é entendido na tradução inglesa de Jiaosheng Wang: “Last night there was intermittent rain, a gusty wind”. Ainda, os elementos lexicais em 雨疏风骤 yǔ shū fēng zhòu (literalmente: chuva esparsa vento brusco) criam o efeito de paralelismo que podem ser lidos em horizontal: chuva-vento, esparsa-brusco. Na tradução, foi preservado este efeito semântico, ao incluir a palavra “bravo” em vez de “brusco”, e “fina” em vez de “esparsa”, de forma a criar não só o efeito de rima, mas também um verso mais conciso possível. 浓睡不消残酒 leve ebriez após sono profundo se preserva Li Qingzhao começa o poema caracterizando as forças da natureza para, neste verso, revelar o seu estado de embriaguez, mesmo depois de uma noite de sono profundo. O verso pode ser lido como “embora dormida uma noite de sono, ainda não matei a embriaguez” da noite anterior. A definição da palavra 残 cán, pode ser entendida como equivalente aos adjetivos portugueses “incompleto”, “fragmentado”, ou mesmo “deficiente”, é usada no original para descrever uma embriaguez fraca, ou ainda leve, como é entendida na presente tradução portuguesa. O elemento lexical chinês 酒 jiǔ é, muitas vezes, traduzido por “vinho” nas traduções em língua inglesa, como na de Xu Yuanchong: “Sound sleep did not dispel the after taste of wine”. A tradução de Ronald Egan para o inglês também se utiliza da palavra vinho: “Deep sleep did not dispel the lingering wine”. Como explica o professor, poeta e tradutor Yao Jingming: “para os chineses, jiu indica um álcool feito de trigo, arroz ou sorgo. Para os portugueses, vinho significa álcool feito de uvas. Mesmo que as palavras sejam correspondentes, carregam significados diferentes”. Na tradução para o português, no lugar do termo 残酒 cán jiǔ, lemos “leve ebriez”, procurando reproduzir o estado em que a poetisa se encontra logo ao acordar, assim como no original. Por outro lado, o verbo 消 xiāo, que significa “eliminar”, “matar”, “dissipar”, está acompanhado da partícula negativa 不 bù “não”, juntos podem ser lidos como “não eliminado”, isto é, o efeito do álcool que preservou mesmo depois do sono profundo. Dessa forma, na tradução portuguesa, utilizou-se o verbo “preservar”, de forma a reproduzir este sentido. Foi acrescentado, ainda, o termo “após”, procurando trazer para a tradução o momento a seguir a noite de sono, implícito no verso original. 试问卷帘人 Pergunto à donzela que ergue a cortina Este verso começa com o termo 试问 shì wèn, que pode ser entendido tanto como “tentar perguntar”, quanto “cabe perguntar”, e termina com 卷帘人 juàn lián rén, que, segundo as notas de Hou Jian e Lü Zhiming, “refere-se à criada que enrola a cortina”. A tradução inglesa de Ronald Egan reproduz o termo 试问 como uma ação que estava em andamento no passado: “I tried asking the maid raising the blinds”. A escolha de Jiaosheng Wang, por outro lado, introduz o verbo “perguntar” simplesmente no presente: “I ask the maid rolling up the blinds”, aparenta com a tradução inglesa de Xu Yuanchong: “I ask the maid rolling up the screen” (1982), que está mais de acordo com a presente proposta em português. É evidente que a “pessoa” (人) que ergue a cortina está interpretada nas traduções inglesas como “criada”, concordando com a explicação de Hou Jian e Lü Zhiming. Em português, utilizamos a palavra “donzela”, de forma a criar um efeito mais poético. 却道海棠依旧 disse: a mesma é macieira-brava Aqui é o momento da fala da “donzela”, a personagem do verso anterior. Segundo Li Qingzhao, a “donzela” disse que “haitang (está) como antes”, o que indica que nada mudou depois da chuva e vento. Esta resposta, por um lado, é muito prosaica, reflete a visão comum da “donzela”; por outro lado, reflete a experiência e preferência distinta em relação às coisas do mundo exterior das duas personagens. O elemento da flora chinesa, 海棠 hǎitáng, é entendido como “flor da macieira-brava” ou “árvore da macieira-brava”, nas traduções inglesas de Xu Yuanchong: “The same crab-apple tree,’ she says, ‘is seen’”; de Jiaosheng Wang: “But she replies: ‘The crab-apple is lovely as before”; e de Ronald Egan: “What said the crab-apple blossoms were as before”, o que parece estar de acordo com a tradução portuguesa aqui apresentada. 知否 知否 Sabes? Não, não sabes… Neste penúltimo verso, há uso de reduplicação: 知否 知否 zhī fǒu zhī fǒu, o caractere 否 fǒu “não”, ao final do verso, é usado nos textos literários para indicar pergunta. Embora formulado como uma interrogação, este verso não pretende questionar, mas sim manifestar uma resposta negativa, uma recusa em relação à fala da “donzela”, construída no verso anterior, parecendo não estar sensível ao cenário real, que a autora irá descrever no último verso. O verso é, muitas vezes, interpretado como a fala da “donzela”, por exemplo, na proposta de Xu, ao usar aspas para realçá-la: “‘But don’t you know, / O don’t you know’” (2016). A interpretação está em consonância com a de Ronald Egan (2019): “‘Don’t you know?/ Don’t you know?’”. Em português, é entendido como a fala de Li Qingzhao, o que traduz uma reação contrária à da “donzela”. 应是绿肥红瘦 estão gordas as folhas e magras as flores O último verso é o mais apreciado pela sua capacidade expressiva de linguagem. Aqui, Li Qingzhao dá vida à “macieira-brava”, ao construir a expressão 绿肥红瘦 lǜ féi hóng shòu (literalmente: verde gordo vermelho magro), o que indica, “a macieira está verdejante e de vermelho murcho, fraco”. As cores verde-vermelho, como explicam os comentaristas, simbolizam o par de substantivos folha-flor. É visível o uso da personificação, na medida em que as características de seres animados gordo-magro são atribuídas às folhas e flores de haitang. Há também o uso de paralelismo: verde-vermelho, gordo-magro. Para alguns estudiosos, esta combinação de efeitos semânticos é uma inovação realizada por Li Qingzhao. Ela constrói o verso de acordo com a sua identidade, ao utilizar o caractere 瘦 (magra, frágil, débil), que pode subentender característica feminina. Na tradução inglesa de Xu o adjetivo magro é entendido como “lânguido”, o que não deixa de personificar a cor vermelha (flor): “‘The red should languish and the green must grow?’”. A escolha de Egan: “The green must be plump and the reds spindly”, buscou reproduzir o efeito da personificação com os adjetivos “forte” (plump) e “fininho” (spindly). Em portuguȇs, optamos por incluir “folha” e “flor” em vez de “verde” e “vermelho” e manter os adjectivos “gordo” e “magro”, como forma de reproduzir os efeitos usados no original. Ao que tudo indica, o poema retrata a transição do cenário primaveril. Começa com chuva e vento, o que nos oferece informações meteorológicas da noite anterior. Em seguida, reflete o estado psicológico da autora após o sono profundo, o diálogo com a “donzela”, e a forma diferente de sentir as mudanças do seu mundo exterior. No final do poema, a “macieira-brava” é personificada como “gorda” e “magra, o que reflete a relação entre Li Qingzhao e os seres inanimados. Neste momento, ela manifesta o seu lamento diante do cenário que marca a passagem da primavera, marcada pela chuva esparsa e vento bravo. Referências bibliográficas: Egan, Ronald (2013). The Burden of Female Talent: Li Qingzhao and Her History in China. Cambridge & London: Harvard University Asia Center. Egan, Ronald (2019). The Works of Li Qingzhao. Boston & Berlim: Walter de Gruyter Inc. Freire, Zerbo (2022). Li Qingzhao: Do amor à mais profunda solidão. Hoje Macau, outubro, 24, Via do Meio. Hou, Jian & Lü, Zhiming (1999). 李清照诗词评注 (Poesia de Li Qingzhao: Notas e comentários). Shanxi: Education Press. Wang, Jiaosheng (1989). The Complete Ci-poems of Li Qingzhao: A New English Translation. Philadelphia: Sino-Platonic Papers. Xu, Yuanchong (1982). 谈李清照词英译 (Comentário sobre a tradução inglesa da Poesia Lírica de Li Qingzhao). In Xu Yuanchong (2016), 文学与翻译: Literature and Translation, 399-497. Peking: Peking University Press. Yao, Jingming (2001). A poesia clássica chinesa: uma leitura de traduções portuguesas. Macau: Coleção Estudos de Macau, Centro de Publicação Universidade de Macau. Como nos conta o critico literário Ronald Egan: “Há pouca ou nenhuma evidência da emergência de comunidades de escritoras durante a dinastia Song, como sabemos que aconteceu no final da era Ming e Qing. No período Song, mulheres que eram alfabetizadas e escolheram escrever o fizeram quase inteiramente por conta própria, sem o conforto e encorajamento de outras mulheres e homens simpatizantes, que deram seu suporte à mulheres alfabetizadas nos séculos posteriores. Tudo o que sabemos sobre Li Qingzhao aponta para esse ser o caso dela. Ela não era membro de um grupo de mulheres literatas.” Contudo vale ressaltar: a educação que Li Qingzhao teve no seio familiar e, mais tarde, o suporte do seu primeiro esposo Zhao Mingcheng, as poetas do seu tempo não tiveram. Em chinês: 宋朝四大女词人 sòng cháo sì dà nǚ cí rén. Poema original: “昨夜三更雨,/今朝一阵寒。/海棠花在否?/侧卧卷帘看。” Na tradução: /ontem à noite, três chuvas plenas/ hoje, uma onda de frio/ a flor da macieira-brava está ou não?/ inclina na cortina para ver/.
Ana Cristina Alves Via do MeioA simplificação do mundo A linguagem tem muitas funções, salta à vista a de instrumento essencialmente social. Por meio da palavra, tanto oral como escrita, participamos no mundo, moldamo-lo à nossa imagem e semelhança e os mais inventivos chegam mesmo a recriá-lo. Tradicionalmente, os chineses atribuem a invenção da linguagem a Canjie, um dos ministros de Huangdi, o Grande Imperador Amarelo. Note-se que antes do aparecimento da linguagem social propriamente dita, já a religiosa tinha surgido pela mão de Fuxi, o Primeiro dos Cinco Imperadores Augustos. A linguagem na sua faceta social terá sido fruto, em algumas versões, da observação das pegadas dos pássaros, noutras da leitura atenta das carapaças das tartarugas. Diz-nos o quarto maior filósofo daoísta, naquela que ficou conhecida pela obra de Huainanzi, que “Canjie inventou a escrita, a fim de poder governar todos os oficiais e dirigir todos os assuntos. Os tolos utilizam-na para anotar o que não devem esquecer, os sábios servem-se dela para transmitir pensamentos profundos antes de desaparecerem. Os perversos utilizam-na para deixar registadas mentiras que os desculpem da morte de muitos inocentes.” (Huainanzi, cap. 8, in Anthologie des Mythes et Légends de la Chine Annciene, org. de Rémie Mathieu, Gallimard, 1989) Interessa-nos reter a justificação socio-política chinesa para o aparecimento da escrita. Na versão mais positiva, surgiu para organizar e governar os homens, na mais negativa, acrescentamos nós, é um excelente instrumento de domínio. Pensamos com a linguagem e não antes dela, comunicamos e impomos, quanto temos força para tal, também através dela. Sabia bem esta lição o Primeiro Imperador Ying Zheng, que subiu ao trono com o nome de Qin Shihuang, à letra o Primeiro Imperador dos Qin. Este conseguiu impor o reino Qin a todos os outros Estados Combatentes, entre 230 e 221 a.C. O Primeiro Imperador unificou o país, centralizou o poder económico, político e administrativo. Impôs uma só moeda e padronizou a linguagem, com base na escrita do pequeno Selo ou Xiaozhuan, isto é, na grafia utilizada no reino de Qin. Contra a ânsia uniformizadora e redutora do Imperador, reagiu, como é fácil de perceber, a maioria dos intelectuais à época, muitos deles filiados na tradição confucionista, completamente avessa a modelos padronizadores e a simplificações. Começaram a correr históricas satíricas sobre o Imperador e ele respondeu previsivelmente: mandou queimar todos os livros, à excepção dos cientificamente úteis, aqueles relativos à medicina, agricultura e outros domínios directamente relacionados com a sobrevivência das gentes. Mas deixemos o construtor da Grande Muralha e do Exército de terracota repousar o sono dos grandes… A reter, a simplificação da escrita utilizada como arma política centralizadora. Mais tarde, durante as dinastias Han, tanto do Oeste como do Leste, a linguagem escrita voltaria a sofrer novos processos de simplificação, o primeiro, com a adopção da Escrita Oficial, ou Lishu, por volta do século 3 a.C. e o segundo, entre o século 2 e 3 d.C, com a adopção da Escrita Regular, ou Kaishu, também denominada de Escrita Verdadeira ou Zhenshu – o estilo predominantemente quadrado que ainda hoje vigora entre os chineses, quando utilizam os caracteres, sobretudo, para funções sociais. Os séculos foram correndo e as simplificações no domínio da escrita abrandaram, até que a chegada de missionários ocidentais à China, nomeadamente a de Mateus Ricci, volta a trazer a questão da linguagem chinesa para primeiro plano. Novamente as necessidades comunicativas falaram mais alto. Como colocar a mundividência chinesa ao dispor dos ocidentais? Ricci optou, no início do século XVII, pela utilização do alfabeto latino para transcrever os caracteres chineses. Após a sua tentativa, outras se seguiram, sendo de destacar as do francês Nicolas Trigault, que publicaria em 1625 um livro intilulado: UM GUIA PARA INTELECTUAIS OCIDENTAIS e, sobretudo, a do inglês Thomas Francis Wade, que, após as Guerras do Ópio, em 1867, publicaria um alfabeto fonético para a linguagem chinesa, conhecido por sistema Wade, que, não só perdurou até aos nossos dias, como é bastante semelhante ao próprio Pinyin, isto é ao alfabeto latino chinês, reconhecido oficialmente no presente pelos chineses. Às tentativas ocidentais para transcrever foneticamente a linguagem chinesa, com recurso ao alfabeto latino, vieram juntar-se os esforços chineses, nascidos da nova mentalidade que, em 1911 transformou, com Sun Yat-sen, o Império do Meio em República do Meio. Os republicanos criam um sistema fonético, o Zhu Yin Zi Mu, que deveria vigorar em todo o país. Neste tipo de transcrição, recorria-se a 37 símbolos para registar todas as palavras no dialecto de Pequim. Como já anteriormente sucedera, houve a necessidade de mexer na linguagem para a tornar uniforme, isto é, extensível ao maior número possível. Não obstante, a linguagem escrita e os vários dialectos locais foram preservados. Por isso, aos olhos dos que tomaram o poder em 1949, este sistema possuía dois grandes defeitos: não era capaz de funcionar como base comum para unir todas as minorias nacionais, nem de promover o intercâmbio internacional, por não recorrer a um alfabeto latino, que pela sua simplicidade pudesse ser entendido tanto por estrangeiros, como servir de fundamento à criação de uma escrita, ausente de muitos dos dialectos nacionais. A transcrição fonética dos nacionalistas não implicava uma mudança radical na escrita, era uma uniformização ao nível oral e para consumo interno, entenda-se, para divulgação da mensagem e ideais republicanos. Em 1949 os comunistas tomaram o poder. Traziam consigo um mundo ideológico radicalmente novo. Eles não queriam pontes com a tradição, pelo contrário, a palavra de ordem era revolucionar e em todos os campos. Por um lado, necessitavam, para espalhar a “sua boa nova” de uma linguagem, que funcionasse como um instrumento social eficaz. Por outro, debatiam-se com um problema, como espalhar a nova mensagem se a maioria era iletrada? Havia que cultivar as pessoas sem demora, para tal precisavam de uma arma simples, eficaz, que chegasse rapidamente às massas. Ainda no ano de 1949 é criada em Pequim a Associação para a Reforma da Linguagem Escrita Chinesa e em 1952 é estabelecido, com carácter oficial, o Comité de Pesquisa para a Reforma da Linguagem Chinesa. Este Comité, como esclareceria Zhou Enlai, no discurso proferido, em 1958, aquando da aprovação final do Novo Alfabeto Fonético Chinês, tinha tido como principais objectivos: a simplificação dos caracteres chineses; a popularização de um discurso comum (Putonghua) e a criação de um alfabeto fonético chinês. Em 1956, o Conselho de Estado estabelecia o primeiro esquema para a simplificação dos caracteres chineses, como meio de erradicar iliteracia. Para a nova mentalidade, era necessária uma escrita com menos traços, que poupasse energia e tempo a professores e aprendizes, que permitisse, a um cada vez maior número de chineses, aprender e colocar o país no caminho do progresso científico. Também era fundamental para a propagação do novo mundo ideológico, um discurso comum, que tivesse como padrão o dialecto de Pequim. Este, com a ajuda de um alfabeto fonético passaria a facultar não só o intercâmbio nacional, pela criação de um sem-número de materiais linguísticos e de catalogação simplificados, como também o intercâmbio internacional. Foi então aprovado o Plano para o Alfabeto Fonético pelo Congresso Nacional Popular em 1958, que adoptou, como seu modelo, o alfabeto latino. A simplificação da linguagem chinesa possui características manifestamente chinesas. Aos olhos ocidentais, este sistema linguístico continua a ser tremendamente complicado. A nossa tendência é para simplificar a simplificação, por assim dizer. Por isso, nas transcrições fonéticas, esquecemos os acentos, que povoam individualmente as palavras e não existem por acaso, mas sim para evitar as homofonias, pródigas neste sistema linguístico. Esquecemos e seja o que Deus quiser. Mas esse esquecimento levanta um grande obstáculo para aqueles que sonham em transformar o chinês numa língua romanizada, pois embora seja possível olvidar os acentos em palavras soltas e frases curtas, uma transcrição fonética de um escrito chinês sem os tais grafismos, que marcam os tons, torna qualquer texto absolutamente incompreensível. No entanto, um escrito romanizado pejado de acentos, transforma a leitura, sobretudo se for de grande porte, num martírio. Por enquanto, o alfabeto fonético chinês é um instrumento de leitura e nada mais. Também não pretendia ser, pelo menos aos olhos das gentes do dragão, qualquer outra coisa. Não obstante, a simplificação da linguagem chinesa para consumo interno, funcionou. Esta estendeu-se a um maior número de pessoas e pagou um preço – leia-se, desejado – por isso. Cortou com a tradição. Hoje, a nova geração é incapaz de entender os textos clássicos nas suas versões originais. Assim, só para nós, estrangeiros, as simplificações linguísticas são reformas, para os chineses do continente foram uma verdadeira revolução que os pôs a olhar para um mundo novo, simplificado, sem raízes, onde o progresso e a ciência, mais do que palavras, são verdadeiros programas de vida, que doravante poderão, como religiosamente se acredita, ser concretizados por meio da escrita simplificada.
Hoje Macau Via do MeioPalavras de Zhu Xi aleatoriamente traduzidas Por Miguel Lenoir 1) Perguntou-se: “Será que primeiro existiu o padrão (li) e depois o sopro vital (qi)?” Zhu Xi respondeu: “O li e o qi não podem, fundamentalmente, ser falados em termos de antes e depois. Mas quando começamos a fazer inferências [sobre as coisas], então parece que primeiro existe o li e depois existe o qi…” Perguntaram-lhe sobre a Via e a sua operação (yong 用). Zhu Xi respondeu: “Se imaginarmos os ouvidos como a coisa em si, então a audição é a sua operação; se considerarmos os olhos como a coisa em si, então a visão é a sua operação.” 2) Foi perguntado: “As naturezas dos seres humanos e das coisas têm uma única fonte, então por que existem diferenças entre elas?” Zhu Xi respondeu: “No que diz respeito à natureza dos seres humanos, falamos de brilho e escuridão; no que diz respeito à natureza das coisas, há apenas desigualdade e bloqueio. O que é escuro pode tornar-se claro, mas o que já é irregular e bloqueado não pode tornar-se claro e penetrante.” 3 – Aquilo pelo qual os seres humanos passam a existir não é outra coisa senão a união do li e do qi. O li do Céu é de facto vasto e inesgotável, mas se não fosse o qi, então mesmo que houvesse li, não haveria nada para juntar à sua volta. Assim, é necessário que os dois tipos de qi (yin e yang) se misturem e interajam um com o outro para que se juntem; depois disso, o li tem algo a que se ligar. O facto de todos os seres humanos serem capazes de falar, agir, pensar e realizar projectos é tudo qi, mas o li está presente no seu interior. . . . [A substância daqueles que têm a inteligência mais elevada e daqueles que nascem sábios é o qi que é claro e não adulterado, sem um traço de escuridão ou turbidez. É por isso que nascer seabio e conduzir-se com facilidade não são capacidades que se adquirem através da aprendizagem. Foi o caso de Yao e Shun [reis míticos]. O nível seguinte, secundário, é quando só se pode alcançar a sabedoria através da aprendizagem, e só se pode chegar a ela pondo-a em prática. Ainda o nível seguinte é quando a dotação material é desequilibrada e também é obscurecida. Neste caso, é preciso fazer um esforço considerável: “O que os outros fazem uma vez, faz cem vezes; o que os outros fazem dez vezes, faz mil vezes. ” Só então se pode atingir o nível segundo a nascer sábio. Se prosseguirmos sem parar, então as nossas realizações serão as mesmas (que as daqueles que nasceram sábios). . . . 4 – A natureza em si não pode ser descrita. A razão pela qual podemos falar da natureza como sendo boa é que, olhando para a bondade do alarme e preocupação, deferência e cedência, e as outras [virtudes] entre os quatro inícios, podemos ver que a natureza é boa. É como quando se vê a clareza da água corrente: sabe-se que a fonte da água deve ser clara. Os quatro princípios são os sentimentos e a natureza é o li. Quando se manifestam, são sentimentos, mas na sua raiz são a natureza. É como quando se olha para uma sombra e se vê a forma. (ZZYL, capítulo 5, p. 89) 5 – O objeto da consciência é o li da mente (xin). A capacidade de consciencialização é a eficácia maravilhosa (ling 靈) do qi. “6 – A mente é o mestre (zhu 主) da natureza e opera através dos sentimentos. Portanto, é dito: “Antes que a felicidade e a raiva, a tristeza e o prazer se manifestem, é chamado de ‘equilibrado’ (zhong 中) e quando todos eles se manifestam e atingem sua medida adequada, é chamado de ‘harmonioso’ (he 和). A mente é o reino em que esse esforço ocorre. 7 Explicando a palavra “mente (xin)”, ele disse: “Uma palavra dirá tudo – ‘produção de vida’. O comentário do do Clássico das Mutações diz: ‘A grande potência (de 德) do Céu e da Terra é produzir.’ Os seres humanos nascem tendo recebido o qi do Céu e da Terra. Portanto, a mente deve ser humana, e se for humana, então ela produz.” 8. A mente é o qi refinado e luminoso. 9. A mente refere-se a um mestre. No movimento e na quietude há sempre um mestre; não é o caso que ele não opere num estado de quietude, e que apenas num estado de movimento haja um mestre. Quando falo de um mestre, quero dizer que existe uma ordem contínua que está naturalmente presente no interior. A mente une e junta a natureza e os sentimentos. Mas isso não significa que seja uma massa bruta, indiferenciada, junto com a natureza e os sentimentos, sem distinções. 10. Como já discuti anteriormente, a luminosidade e a consciência da mente são uma e a mesma coisa. Mas se pudermos distinguir entre a mente humana e a mente da Via , a primeira surge do egocentrismo do qi do corpo físico, enquanto a segunda se origina da correcção da natureza e do mandato (ming), e é por isso que, em termos da sua consciência, não são a mesma coisa. Por isso, enquanto o primeiro é precário e instável, o segundo é misterioso e difícil de perceber. No entanto, entre os seres humanos, nenhum deixa de possuir uma forma física e, portanto, mesmo os de maior sabedoria não podem deixar de possuir uma mente humana; além disso, nenhum deixa de possuir uma natureza e, portanto, mesmo os de menor inteligência não podem deixar de possuir a mente da Via. Os dois estão misturados na mente, e se não se sabe qual é o que o governa, então o que é precário será ainda mais precário, e o que é misterioso será ainda mais misterioso. Então, a orientação pública do li Celestial acabará por não ter forma de ultrapassar o egocentrismo do desejo humano. Se estiveres concentrado e refinado, então examinarás cuidadosamente os dois e não os misturarás. Se tiverem uma mente única, então protegerão a correcção da vossa mente original do coração e não se afastarão dela. Se conduzirem os vossos assuntos a partir desta perspectiva, e não desistirem nem por um momento, então, inevitavelmente, a mente da Via tornar-se-á o mestre da vossa pessoa, e a vossa mente humana obedecerá em todos os casos ao mandato. Então, o que é precário tornar-se-á estável, e o que é misterioso tornar-se-á manifesto. E na actividade e tranquilidade (dong jing 動靜), e no discurso e conduta, evitaremos naturalmente errar por excesso ou por deficiência. 11. “A brilhante luminosidade é originalmente como a mente é em si mesma; não é que eu seja capaz de torná-la brilhante. Quanto ao ver e ouvir dos olhos e ouvidos, aquilo pelo qual eles vêem e ouvem é a mente. Como pode haver formas e imagens [preexistentes] dentro dela? No entanto, quando os olhos e os ouvidos as vêem e ouvem, então também há formas e imagens nelas. Quanto à ampla luminosidade da mente, como pode haver coisas preexistentes nela? 12.Ele foi questionado sobre a afirmação [na Prática do Meio (Zhongyong)], “O estado antes que os sentimentos de felicidade, raiva, tristeza e prazer se manifestem é chamado de ‘equilíbrio’ (zhong 中).” Zhu Xi respondeu: “A felicidade, a raiva, a tristeza e o prazer podem ser comparados ao leste, oeste, sul e norte: quando não se inclinam numa determinada direcção, estão num estado de equilíbrio.”