O jardim do Oriente em Zhenzhou (Zhenzhou Dongyuan ji)

Por Ouyang Liu*

Zhenzhou situa-se na confluência de vários rios do sudeste e controla o transporte no Grande Rio (Yangzi), no Huai, nos dois rios Zhe e no Jinghu. O Secretário Shi Zhengchen e o Censor Xu Zichun estão aí colocados, tendo como assistente o Censor Ma Zhongtu. Os três homens, satisfeitos com as suas boas relações, passaram os seus tempos livres a transformar um local militar abandonado no Jardim Oriental que visitam todos os dias.

Neste outono, na oitava lua, Zichun veio em missão à capital. Trazia consigo um quadro que tinha feito do seu jardim, que me mostrou, dizendo: “Este jardim cobre uma superfície de cem mu (6,5 hectares). Um rio corta-o à frente, um lago de água pura irriga-o a oeste e um terraço alto ergue-se a norte. No terraço, temos um quiosque que se esgueira pelas nuvens para contemplar o céu longínquo; na margem do lago, um pavilhão aéreo onde nos podemos debruçar sobre a água límpida; no rio, um barco com dossel pintado para passear. No centro, abrimos um espaço onde construímos um salão para receber e tratar os nossos amigos, com um campo atrás para atirar setas. Onde antes havia um campo de silvas afogado numa névoa cinzenta e fria, a frescura dos lótus e da macer, o perfume das orquídeas e da angélica alternam com as sombras misturadas das belas árvores alinhadas ao lado destas flores requintadas. Onde antes havia um terreno baldio de muros em ruínas e valas alagadas, os telhados altos suportados por longas vigas reflectem a sua imagem na água iluminada pelo sol, dançando, mergulhando e subindo; a descontração e a calma ecoam os sons da distância e atraem um vento curativo. Onde outrora os gritos das doninhas e de outros animais selvagens se erguiam na escuridão das tempestades, os habitantes da cidade, homens e mulheres, passeiam em dias de sol ou de festa ao som de canções e de música.

“Não nos poupámos a esforços. Mas o que vêem neste quadro dá apenas uma ideia ténue deste jardim. Quando subimos ao terraço para contemplar o rio e as montanhas próximas ou distantes, quando nos divertimos no rio seguindo os voos e os mergulhos dos peixes e das aves, a sedução do que anima à nossa volta, a alegria de contemplar a paisagem são sentimentos que só o caminhante conhece. Tudo o que a pintura não consegue representar, já não sou capaz de exprimir por palavras. Talvez pudesse escrever algumas palavras sobre o nosso jardim”.

E acrescentou: “Zhenzhou é uma encruzilhada por onde passam viajantes dos quatro cantos do império; convidamo-los a partilhar os nossos prazeres, porque havemos de ser os únicos a desfrutá-los? O lago e o terraço são cada vez mais elegantes, as flores e as árvores são cada vez mais abundantes. Não passa um dia sem que haja visitantes de todo o lado. Não seria de partir o coração para nós os três se tivéssemos de deixar este sítio? E se não escrevermos sobre o nosso jardim, quem saberá mais tarde que é obra de nós os três? As grandes qualidades destes três homens permitiram-lhes trabalhar em conjunto e ser úteis nos seus empregos. Eles sabem o que é preciso fazer. Asseguram a prosperidade da Corte e da população do país, onde não se ouvem queixas, e só então relaxam, partilhando os seus prazeres com a boa gente de todo o império. Tudo isto é admirável e merece ser relatado.”

Trad. Miguel Lenoir

*Ouyang Xiu (1007-1072) foi um “funcionário letrado” exemplar, tão respeitado pela sua carreira (embora duas vezes desonrado) como pela sua obra literária, tão preocupado com o bem público como com o lazer refinado da reforma. O ideal de harmonia que apaga o conflito pode ser visto no jardim não muito longe de Nanjing, que ele provavelmente nunca viu.

5 Dez 2024

Junto à lagoa (Chishang pian xu)

Por Bai Juyi

A forma do terreno, a água e a vegetação contribuem para que a parte sudeste de Luoyang 1 seja a mais bela da cidade, e o bairro mais bonito é o de Caminho des Socques, cujo canto noroeste é o mais belo. A primeira casa, junto à muralha a norte do portão oeste, é o local onde o velho Bai Letian se reformou. Tem uma superfície de dezassete mu2, dos quais um terço é ocupado pela habitação, um quinto pela água e um nono pelos bambus, com um lago, ilhas, pontes e caminhos. Quando Letian se tornou seu senhor, disse para si próprio, no meio da sua alegria: “Eu tenho um jardim com um lago, mas não se pode sobreviver lá sem um abastecimento de cereais.” Por isso, construiu um celeiro a leste do lago. Depois disse para si próprio: “Tenho discípulos, mas não tenho livros para ensinar”. E construiu uma biblioteca a norte da lagoa. Depois disse para si próprio: “Tenho visitas e amigos, mas não tenho cítara nem vinho para os entreter”. E construiu um quiosque a oeste da lagoa para tocar a cítara e servir os jarros.

Quando Letian deixou o seu cargo de prefeito de Hangzhou, trouxe para Luoyang uma pedra do monte Tianzhu e dois guindastes de Huating. Foi nessa altura que construiu a ponte recta do lado oeste do lago e o passadiço à sua volta.Quando deixou o cargo de prefeito de Suzhou3 , trouxe uma pedra do Lago Taihu, lótus brancos, dois chifres de macer e um barco verde. Em seguida, construiu a ponte em arco no centro do lago que liga as três ilhas.

Quando deixou o seu cargo de Vice-Ministro da Justiça, regressou a casa com cinco mil alqueires de cereais, uma carroça cheia de livros e dez pequenos músicos. Antes disso, Chen Xiaoshan, de Yingchuan, tinha-lhe dado uma receita para destilar um vinho delicioso; Cui Huishu, de Boling, tinha-lhe dado uma cítara com um som muito puro; Jiang Fa, de Shu, tinha-lhe ensinado a melodia etérea Pensamento de outono; Yang Zhen, de Hongnong, tinha-lhe dado três pedras de granito polido e uniforme onde se sentar ou deitar. No verão do terceiro ano da era Dahe (829), Letian foi nomeado Conselheiro do Príncipe Herdeiro; este cargo, sem responsabilidades, permitia-lhe ficar em Luoyang e descansar junto ao lago.

Tudo o que adquiri durante as três funções importantes que exerci, tudo o que estes quatro amigos me deram, todas estas coisas preciosas caíram nas mãos do meu eu inepto, como se fossem para o fundo do lago.

Quer a água seja enrugada pelo vento na primavera ou reflicta a lua no outono, quer de manhã exale o perfume dos lótus que se abrem, quer à noite os grous estalem sob o orvalho puro, acaricio as pedras de Yang, bebo o vinho de Chen, pego na cítara de Cui para tocar a ária de Jiang, tão tomado de felicidade que esqueço tudo o resto. Bêbado, largo a cítara e peço aos pequenos músicos para irem ao coreto da ilha do meio tocar a ária O vestido arco-íris; a melodia flutua, levada pelo vento, ora concentrada, ora dispersa, e sobe e desce entre os bambus envoltos em névoa e a água enluarada. A canção ainda não tinha acabado quando Bai Letian, felizmente embriagado, adormece numa pedra. E quando um dia acordou, improvisou algo que rimava e não rimava, que Agui, o seu sobrinho, transcreveu com o seu pincel. Quando viu este grande pedaço de escrita, chamou-lhe À beira da lagoa :

Uma casa de dez mu, um jardim de cinco, um lago, mil bambus. Não digam que é pequena, longe de tudo. É suficiente para dormir e descansar. Há várias salas, um quiosque, uma ponte, um barco, livros, vinho, comida, canções e uma cítara. E, no meio, um velho de barbas brancas que sabe apreciar o que tem sem procurar algo melhor lá fora, como um pássaro que escolhe galhos para o seu ninho, como uma rã no fundo de um poço que desconhece o vasto mar. Grous maravilhosos, pedras raras, lótus brancos, tudo o que amo está ali diante dos meus olhos. Por vezes, levanto a minha chávena ou recito um poema. A minha mulher e os meus filhos alegram-se, os galos e os cães estão calmos. Sinto-me tão bem, é aqui que quero envelhecer!

Trad. Miguel Lenoir

1. Anteriormente conhecida como a capital “oriental”, a capital Tang era Chang’an (Xian). As cidades estavam divididas em bairros rectangulares separados por muralhas.

2. O mu, que tem variado ao longo dos tempos, equivale a cerca de um décimo quinto de um hectare. Dezassete mu são, portanto, pouco mais de um hectare.

3. Suzhou continua a ser famosa pelos seus jardins. As pedras do lago Taihu, situado nas proximidades, eram as mais procuradas em todo o lado.

5 Dez 2024

O Exílio Criativo de Mi Wanzhong

Wei Zhongxian (1588-1627), o famigerado eunuco da corte que dirigiu os destinos do Império durante o breve reino do diminuído imperador Tianqi (1620-27), tomou uma quantidade de decisões arbitrárias de consolidação do seu poder pessoal e ilegítimo que afectariam a vida de inúmeros súbditos.

Entre as centenas de prejudicados durante esse período de deterioração do poder Ming pelas acções de Wei Zhongxian, encontrou-se um funcionário oriundo de Pequim que estava destacado como inspector judicial na administração de Nanquim. Mi Wanzhong (1570-1628) viu-se obrigado a regressar à sua quinta nos arredores de Pequim.

Mas esse exílio obrigado tornar-se-ia uma oportunidade de estudo e reencontro com as raízes das artes do pincel, a caligrafia, a pintura e a poesia. Assumindo a antiga posição social do eremita retirado, que não era necessariamente um corte de relações interpessoais indo viver para as montanhas mas um estado de espírito, uma perspectiva sobre a sociedade, preservando a integridade moral e a vida simples fora das cidades.

Essa fértil via do eremita contou ao longo da História com diversos e notáveis exemplos como Sun Deng (activo entre 230-260) que desenvolveu o changxiao, o «assobio transcendental» e que era um diligente tocador do qin, o instrumento dos letrados, de onde «retirava oito notas a partir de um única corda», ou o poeta Tao Yuanming (365-427) que descreveu a utopia da Nascente das flores de pessegueiro. Assuntos, entre outros, que podiam ser debatidos em encontros desses literatos livres de compromissos oficiais, nas chamadas qingtan, as «puras conversações».

Mas para Mi Wanzhong esse reencontro fez-se logo a partir do seu próprio nome, Mi, em que reclamava uma ligação de parentesco com o egrégio pintor, poeta e calígrafo dos Song do Norte, Mi Fu (1051-1107). Tê-lo-ia em mente ao escolher Youshi, o «amigo das pedras» como um dos seus nomes de pincel.

Mi Wanzhong concebeu um desses desejados lugares de acolhimento de literatos no rolo horizontal Moradas de eremitas nas montanhas de Outono (tinta e cor sobre papel, 23,5 x 186,4 cm, no Instituto de Arte de Chicago). Na arte da caligrafia onde se pode perceber o carácter do autor, desenvolveu o seu estilo na complementaridade dos estilos de Yan Zhenqing (709-785) com a firmeza do traço que se aprecia nos textos gravados em pedras e ravinas, moya shike

. Num poema que escreveu alude à vida descontraída de um amigo que morava no Jardim para celebrar a falta de jeito, uma virtude para os eremitas eruditos que se queriam simples e não sofisticados. «Preguiçosamente deixa crescer ervas e trepadeiras no caminho para o seu portão,/ E não permite que rodas ou cascos estraguem o musgo antigo./ Porquê então esses pássaros escondidos tão agitados?/ Em cadências, através do bosque, ecoam os seus gritos: acaba de chegar um amigo para beber.»

2 Dez 2024

Construção do Grande Canal Sui

Na dinastia Han do Oeste (206 a.n.E.-23) o Rio Wei era usado para levar o arroz proveniente do Leste até à capital Chang’an (Xian), mas o trajecto com muitas curvas e cheio de altos e baixos era difícil. Por isso, em 129 a.n.E., no reinado de Wudi (140-87 a.n.E.), em três anos foi dragado entre Dongjing (Luoyang) e Chang’an (Xian) o canal Caoqu (漕渠) para facilitar o transporte. Como a dinastia Han de Leste (25-220) mudou a capital para Luoyang, o canal Cao deixou de ser usado.

Desde então, nos quatro séculos até à dinastia Sui, muitos outros canais foram rasgados e comportas construídas, criando, onde era possível, uma rede fluvial a substituir a viária, promovendo a comunicação em áreas até então separadas. Esse uso constante da água, como meio de transporte mais fácil, permitia fugir aos terrenos montanhosos e era mais seguro do que viajar por terra, levando a um contínuo labor, mas de forma pontual, até ao início do século VII. Estava por fazer uma rede fluvial integrada, ideia que ganhou força na dinastia Sui (581-618), quando foi planificado o Grande Canal aproveitando um sistema de rios, lagos, canais e comportas já de grandes dimensões e por um conjunto de dragagens ficou aberto como estrada de água.

A China, dividida desde a dinastia Han, foi reunificada pela dinastia Sui e o seu primeiro imperador, Wendi (Yang Jian, 581-604) instalou a capital em Chang’an (hoje Xian) mas como esta cidade era muito pequena e velha aditou em 582 uma nova parte, ficando assim a sua capital com o nome de Daxing. Logo em 584 mandou construiu o canal Guangtong (Guangtong qu, 广通渠), por ser necessário transportar arroz para a nova capital e daí foi usado parte do antigo canal Chao, levando a água do Rio Wei a atravessar por Noroeste a cidade de Daxing até Tongguan e assim ligá-la com o Rio Amarelo.

Este canal com 300 li no ano 604 passou a ser chamado Yongtong qu, mas logo deixou de ser usado devido ao grande assoreamento. Na dinastia Tang, o Imperador Xuanzong (Li Longji, 685-762) ordenou repará-lo e mudou-lhe o nome para Guangyun tan e após a capital deixar Dongdu (Luoyang) [para onde a Imperador Wu Zetian (684-705) ao fundar em 690 a nova dinastia Zhou aí fizera a capital] este trecho de água deixou de ser usado.

Em 587, o Imperador Wen mandou reparar o antigo canal Hangou (邗沟, construído em 486 a.n.E.) criando então o canal Shanyang (山阳渎, Shanyang du) com 300 li do Rio Huai ao Changjiang.

PROJECTOS DE YANG DI

Em 604, Yang Guang, filho do primeiro imperador da dinastia Sui Wendi (581-604), deixou a capital Daxing (Chang’an, hoje Xian) e mudou-se para Luoyang. No ano seguinte, já como segundo imperador Sui, Yangdi (605-618) ordenou a construção de dois projectos: reconstruir Luoyang [cidade a Oeste da província de Henan, nas margens do Rio Luo, fundada em 1200 a.n.E. e que tinha sido capital das dinastias, Zhou do Leste, então com o nome de Wangcheng, Han de Leste, Wei, Jin de Oeste e desde 494 do Wei do Norte] para ser a capital do Leste, Dongdu (东都). Na mesma altura, idealizou também a abertura do Grande Canal, uma extensa estrada de água com 2400 quilómetros a ligar o Norte, desde Yanjing (Beijing) ao centro Sul do país, a Yuhang (Hangzhou), ficando Dongdu a meio caminho. O projecto levou seis anos a concluir.

Entre 605 a 610, Yangdi mandou milhões de homens rasgar canais a complementar secções já existentes para ligar os cinco grandes rios que drenam a água para o Grande Canal. Assim, em 610 ficou Yuhang (Hangzhou) ligada à capital do Leste Dongdu (东都, hoje Luoyang) e durante a dinastia Tang chegava a Chang’an (Xian) usando o Rio Wei que corre até ao Rio Amarelo.

No ano de 605, o Imperador Sui Yangdi baseado no canal Honggou (construído em 360 a.n.E., no período dos Reinos Combatentes) ordenou ser rasgado o canal Tongji (Tongji qu, 通济渠) a unir o Rio Amarelo ao Huaihe com três secções, Leste, Centro e Oeste, tendo o conjunto dois mil li. A secção Oeste começava em Dongdu (东都, Luoyang) e a água proveniente do Rio Luo e do seu afluente Gushui juntava-se em Gongyie ao Huanghe (Rio Amarelo). A secção do Centro iniciava-se em Banzhu (板渚), seguindo o Rio Amarelo por Zhengzhou, Bianzhou (汴州, hoje Kaifeng), Songzhou (宋州) (Shangqiu) até Suzhou (宿州) e após Sizhou (泗州) chegava a Xuyi (盱眙), onde conectava com Huaihe. A secção Leste, usando o Rio Huai (Huaihe) por o antigo canal Hangou [dragado em 486 a.n.E. pelo rei Fuchai do reino Wu], de Shanyang (山阳, actual Huai’an) chegava a Jiangdu (江都, hoje Yangzhou). Era o canal Shanyang [Shanyang du] que do Rio Huai ia até ao Changjiang. No ano 587 foi reparado e limpo e em 605, Yangdi colocou mais de cem mil trabalhadores para alargar o Shanyang du e estender o comprimento desse canal de Shanyang (actual Huai’an) até Yangzijin (扬子津), parte Sul da cidade de Jiangdu (actual Yangzhou).

O Canal Tongji foi usado durante seiscentos anos pelas dinastias Sui, Tang, Cinco Dinastias (五代), Song, e Jin e quando a dinastia Song do Sul (1127-1279) mudou a capital para Lin’an (Hangzhou), começou a deixar de ser utilizado e os sedimentos entupiram-no.

No ano de 608, em Yuncheng, concelho de Yongji [conhecido nos antigos livros por Puban] na província Shanxi, foi rasgado o canal Yongji (Yongji qu, 永济渠), que na parte Sul ligava o Rio Qin (沁水, Qinshui) com o Rio Amarelo em Wuzhixian. A Norte, o Yongji qu ia de Tianjin à região de Beijing. Assim, ficava o Huanghe (Rio Amarelo) ligado ao Rio Hai (Haihe, com cinco afluentes), que atravessava a cidade de Tianjin e atingia o Mar de Bohai em Tanggu. O Rio Hai (海河Haihe) com 72 km de comprimento e mais de trezentos afluentes constitui um dos sete sistemas fluviais da China. Já na dinastia Han de Leste, no ano de 204 Cao Cao abrira Baigou (白沟) a Oeste do canal Weiyunhe (卫运河, sistema do Rio Wei), assim como o canal Pingluqu (平虏渠), a conectar Shahe (沙河, Rio Sha) a Tianjin.

Em 610, com a construção do canal Yongji passou a existir uma linha de transporte directa para trazer os cereais das regiões do Changjiang (Rio Yangzi) e do Huaihe até ao Norte e daí, na dinastia Sui foram levados 200 milhões de quilos de cereais para Luoyang. Na dinastia Tang (618-907) o sistema do canal foi desenvolvido e na dinastia Song do Norte (960-1125/26), quando a capital passou para Kaifeng, o canal tornou-se ainda mais importante. No século XI o volume de tráfego era provavelmente três vezes superior ao do período Tang, segundo a Britannica Enciclopédia. O canal foi abandonado no início do século XII, durante a divisão da China entre a dinastia Jin (Juchen, 1115-1234) a Norte e a Song do Sul (1127-1279) a Sul.

O Canal Jiangnan yunhe (江南运河) ligava o Changjiang ao Rio Qiantang. No Período Primavera-Outono, o reino Wu (Wuguo) fez o canal Taibo (泰伯渎, Taibo du) a ligar Suzhou a Wuxi e quando batalhava com o reino Yue, para transportar arroz estendeu o canal até ao Rio Qiantang (Qiantangjiang). No reinado do primeiro imperador da dinastia Qin, baseado nesse canal fez-se o prolongamento a Norte desde Zhenjiang, passando por Suzhou até Hangzhou chamando-o Lingshuidao (陵水道).

No Período dos Três Reinos, Sun Quan ordenara a construção do canal Jiangnan yunhe (江南运河) para ligar o Changjiang, a passar pela sua capital Jianye (actual Nanjing), ao Rio Qiantang (钱塘江). Em 610, usando o Jiangnan yunhe, Yangdi alargou-o e fê-lo passar pelo lago Tai (Taihu), conectando com os rios que no lago desaguavam, tornando o percurso mais recto, desde Jingkou (Zhenjiang) até Yuhang (Hangzhou).

O Rio Qiantang desde o Período Primavera-Outono está ligado a Shaoxing pelo canal Zhejiang Leste e no Período dos Três Reinos a Ningbo pelo rio Yong [rio formado pela convergência do Rio Fenhua e o Rio Yao (que passa por Shangyao e as montanhas Siming)] e desagua no Mar da China do Leste no distrito de Zhenhai em Ningbo. Assim, na dinastia Sui o Grande Canal ligava o Rio Qiantang a Yanjing (Beijing), atravessando o Changjiang, o Huaihe, o Huanghe e o Haihe.

29 Nov 2024

A Encarnação Feminina de Pu Songling (蒲松龄, 1640-1715): Um registo biográfico contemporâneo

Por Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

19 de novembro de 2024

Pu Songling (蒲松龄) perguntava-se como era possível ter reencarnado mulher, chamava-se agora Pu Meiling (蒲美玲). Depois de tudo o que experimentara na existência anterior enquanto homem e de ter sofrido tão grande dissabor às mãos de oficiais imperiais corruptos, viera parar ao século XXI e, ainda por cima, na figura de uma mulher como as que descrevera nos seus contos. Facilmente seria confundido com uma raposa encantada. A sua versão feminina parecia fotocópia das donzelas bonitas das suas histórias de outrora. Era inteligente, aberta, muito à frente para o seu tempo, gostando de se vestir e comportar de uma forma elegante. Além disso, amava estudar, fazia-o com tanto gosto, que se esquecia dias, meses e anos a fio de que o mundo exterior existia. Quando entrou na Universidade, deu nas vistas por todas as razões, atraindo a atenção de colegas e professores.

Já perto do final do curso de literatura, porque o essencial da mente de Pu Songling não se perdera na sua metamorfose feminina, chamou a atenção de um dos professores pelos piores motivos, não pela escorreita e imaginativa escrita, mas pelas suas belas formas. Enfim, as aproximações de um dos mentores aborreceram-na tanto que mal terminou os exames, se afastou, rumo ao sul da China. Iria até Macau (澳門Àomén), onde tinha ouvido dizer que as mulheres, devido à influência portuguesa, adquiriram um estatuto privilegiado relativamente às chinesas do continente. Portanto, Pu Meiling acreditava que assim resolvia a questão de avanços indesejados, de uma vez por todas. Os pais concordaram que fosse tirar o curso de mestrado em terra distante, desde que voltasse.

Quando chegou à nova terra, escolheu a Faculdade de Humanidades da Universidade de Macau (澳門大學Àomén dàxué), de modo a prosseguir os seus estudos de literatura. Ora ainda faltava algum tempo para as aulas de mestrado começarem, alugou então uma antiga casa de pescadores na vila de Coloane (路環Lùhuán), apesar de lhe terem dito que esta era assombrada pelo espírito de um pescador falecido ao largo da praia de Hác- Sá (黑沙海灘Hēishā Hǎitān). Não sentia qualquer receio, talvez porque se familiarizara com todo o tipo de existências na vida anterior: cadáveres, mortos-vivos, animais encantados e fantasmas. Escrevera volumes inteiros sobre eles, pelo que se preparou para regressar aos mundos paralelos sem qualquer problema. Seria até muito divertido encontrar fantasmas no século XXI. Teriam mudado com os novos tempos, ganhando por exemplo mais corpo? Estariam mais bondosos? Recordava-se de que em geral as raposas encantadas eram bem melhores do que os fantasmas, mas havia exceções de imensa generosidade e abnegação por entre os seres do limbo.

Alugou a casinha na vila de Coloane, decidida a não pregar olho logo na primeira noite. Mas a viagem tinha sido longa e Pu Meiling estava exausta. Nessa noite dormiu de um sono só e quando acordou na manhã seguinte já o sol ia alto.

Levantou-se e resolveu inspecionar a casa com toda a atenção. Não encontrou mais nada à exceção de uma foto, com uma riquíssima moldura de jade, de um sujeito bem-parecido, que talvez tivesse ficado esquecida em cima daquela mesinha a um canto da sala. Não havia dúvida o homem era muito bonito. Estava encostado a um barco-dragão (龍舟Lóngzhōu) e mais parecia um príncipe, mas devia ser o tal pescador que habitara em tempos no lugar.

Meiling, mal pousou a foto, começou a sentir um estranho apelo do mar. Disse para consigo “Tenho que ir à praia, afinal as aulas ainda não começaram, ora tempo não me falta”. Dirigiu-se ao início da vila onde passava o autocarro nº25, que a levaria até Hác-Sá. Ao longo da viagem, foi contemplando as sinuosas curvas de um caminho muito verde, que mais pareciam o dorso de um dragão (龍 lóng), estendendo-se preguiçosamente da vila até ao areal.

Quando chegou à praia, já era tarde. Em breve havia de escurecer, mas ela não se importou. Petiscou qualquer coisa numas bancadas improvisadas à beira-mar e dirigiu-se para a areia preta, onde se sentou, perdendo a noção do tempo. Já a noite ia alta quando avistou um barco-dragão a flutuar relativamente perto da praia. Num impulso atirou-se à água; umas braçadas depois, alcançava o barqueiro, que lhe pareceu tão leve como uma pena. Perguntou-lhe se podia entrar na embarcação ao que este aquiesceu. Agradecendo subiu, enquanto dizia:

– Já vi este barco, estava numa única fotografia esquecida na minha nova casa.

– Não é de Macau – respondeu o barqueiro – nota-se pela pronúncia do Norte.

– Fugi do Norte, porque não gostei do modo como fui tratada na universidade, tenho esperança que haja mais respeito pelas mulheres estudantes no Sul.

O barqueiro ouvindo estas palavras, retorquiu rindo: – o respeito não tem a ver com o Norte ou com o Sul, as mulheres da terra ainda têm um longo caminho a percorrer, sejam estudantes ou não.

– Mulheres da terra…do mar não? – atirou Meiling na expetativa de começar a desvendar o que lhe cheirava a mistério.

O barqueiro explicou que no mundo donde vinha, as mulheres não tinham qualquer problema, eram bem tratadas e, sobretudo, muito respeitadas. Em seguida, convidou-a a ir visitar o palácio do Rei Dragão (龍王 Lóng Wáng), explicando que tinha ordens para levar alguém diferente a distrair o Príncipe (龍太子Lóng tàizǐ). O Rei Dragão estava muito preocupado com o filho, que caíra numa letargia inexplicável. Tudo o aborrecia. Primeiro, o pai tinha-se zangado muito com ele, atirando-lhe em rosto que o seu comportamento era fruto de excesso de mimos, mas depois, vendo que ele não reagia, nem aos berros do governante das águas, e que era o seu filho primogénito, herdeiro da coroa, pensou em encontrar um motivo de diversão e nada melhor do que um humano com as suas peculiaridades e limitações para o fazer regressar à vida.

Meiling aceitou de imediato o repto, por que não distrair um príncipe antes de começar as aulas? Ela também andava meio chocha, podia ser que se inspirassem mutuamente.

O palácio do Rei Dragão era esplendoroso. Sobressaía o tom de verde-jade, por entre belos corais. Todo o mobiliário era transparente, feito dos mais puros cristais que emitiam sons de uma beleza invulgar. O monarca era educadíssimo, a consorte de uma beleza rara e as feições do príncipe lembravam-lhe o homem da foto. Em breve ela e o filho do Rei Dragão seriam os melhores amigos. Ele voltou a recuperar a alegria de viver e ela a confiança na vida. Passado um tempo, Meiling começou a sentir-se inquieta. Tinha que voltar para terra, a fim de prosseguir os estudos. Também não podia deixar os pais tanto tempo sem novas. Já não eram novos e ela era filha única e nunca tivera um ato impiedoso para com eles. Deixá-los sem notícias era uma maldade imperdoável, além disso, como eram idosos, podiam precisar dela num qualquer imprevisto que surgisse. Ora em Macau, saberia deles, mas no palácio do Rei Dragão seria mais difícil. Pelo que, vendo que o príncipe recuperara das suas maleitas, estando pronto a desempenhar as funções reais, despediu-se, regressando a terra na mesma embarcação que a levara ao fundo do mar. À despedida o Príncipe Dragão disse-lhe:

– Tens uma foto minha em tua casa, que ofereci a um pescador exímio nas regatas dos barcos-dragão (龍舟賽Lóngzhōu sài), se sentires saudades minhas, agarra nela e invoca o meu nome, que logo aparecerei.

Todos tiveram pena de ver partir a Meiling; ela nem se falava, ia com o coração pesado como uma pedra. Já em casa, correu à sala para verificar se a foto ainda estava no mesmo sítio e ficou muito contente por perceber que sim. Entretanto, embora tivessem começado as aulas na faculdade, optou por continuar a viver em Coloane na sua casinha da vila perto do mar. Distinguiu-se mais uma vez nos estudos e quando sentia muitas saudades do príncipe-dragão, pegava na foto e chamava-o. Ele aparecia logo, o que muito a animava. Tinham longas conversas sobre todos os assuntos do mundo humano e aquático. Apesar de gostarem muito um do outro, ele mantinha-se respeitavelmente à distância.

Já estava Meiling a escrever a tese de mestrado, quando o pai adoeceu. A mãe telefonou de Beijing (北京Běijīng) a pedir que o fosse ver antes que ele partisse definitivamente. A filha correu para o Norte, a fim de ver o pai e chegou mesmo a tempo de lhe dizer um último adeus. Entretanto, como pensava estabelecer-se em Macau, porque o clima era muito mais quente e sentia-se mais próxima do mar e do seu amigo secreto, sugeriu à mãe que fosse viver com ela para lá. A senhora concordou de imediato, o que a deixou muito feliz.

Novamente em Coloane, e na boa companhia de sua mãe, verificou que a foto tinha sido roubada. Alguém lhe entrara em casa durante a sua ausência e ao ver uma moldura de jade, pensou que havia de lhe render boa soma, pelo que a levou com a fotografia. Meiling, desesperada, perguntou aos vizinhos se tinham dado por qualquer suspeito a rondar o local, mas nada, ninguém vira movimentações estranhas, nem a foto nem a moldura.

A mãe estranhou por que motivo o desaparecimento do objeto preocupava tanto Meiling, pelo que a filha acabou por lhe contar toda a aventura que vivera no reino do Rei Dragão. Quando acabou o relato, a Senhora Pu (蒲太太), procurando consola-la da perda, apenas repetia:

– Tenho a certeza que vais encontrar a foto.

Certo dia em que a Senhora Pu foi a Macau fazer compras no Mercado de S. Domingos, resolveu passear pelas tendinhas laterais, pois aproximava-se o verão e ela precisava de um vestido fresquinho. Ao passar por uma das tendas, com muita quinquilharia, viu uma foto emoldurada a jade, com um rapaz jeitoso e de porte real encostado a um barco dragão. Ainda que fosse o objeto mais caro da tenda, resolveu adquiri-lo, guiada pela sua intuição maternal. Foi então ao banco, levantar grande parte das suas poupanças, o que não a incomodou, pois só pensava, que se tivesse certa, a sua filha ia sentir uma alegria imensa.

Quando chegou a casa, colocou a foto em cima da cama da Meiling com todo o cuidado, na esperança de não ter gastado uma fortuna em vão. Pouco depois chegava a rapariga, muito satisfeita porque o seu orientador já lhe tinha marcado as provas de mestrado. Quando entrou no quarto, ao olhar para cima de cama, viu a foto que tanto amava e imediatamente agarrou nela, invocando o Príncipe Dragão, esquecendo-se que a mãe estava por perto e podia aparecer a qualquer momento.

O Príncipe surgiu, vinha com um ar cansado, estava mais magro. Aproximou-se de Meiling, dando-lhe um grande abraço. Entretanto, a Senhora Pu entrou no quarto e passados os primeiros cumprimentos, contou que resgatara a foto nas tendas de S. Domingos. O Príncipe não quis perder mais tempo, e logo ali pediu a mão de Meiling à mãe. Esta vendo tão garboso e educado rapaz, aceitou com grande satisfação o pedido. Depois o Príncipe foi solicitar ao Rei Dragão permissão para permanecer em terra enquanto a Senhora Pu fosse viva, já que Meiling era uma boa filha e não podia abandonar a sua progenitora nos últimos anos da vida. O Rei Dragão consentiu na condição de que o filho e a nora fossem viver para o seu reino de mar, assim que a Senhora Pu partisse, o que de facto viria a suceder largos anos volvidos.

Quando a promessa foi cumprida, chegou ao Reino do Dragão em certo dia de verão uma comitiva alargada, composta por o Príncipe, a Meiling e os dois filhos, um casalinho resultante do casamento. Estes fizeram as delícias do avô, pois eram muito vivos e alegres, adoravam água e, sobretudo, nunca paravam quietos à boa maneira dos dragões.

Comentário da autora. A história só teve um final feliz porque Meiling revelou uma virtude essencial para o Rei Dragão, era muito bondosa e amiga da sua mãe, mostrando que a verdadeira piedade filial a todos comove, seja na terra ou no mar.

Bibliografia

Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.

27 Nov 2024

Os retratos de dois velhos da família de Ruan Zude

Zhang Zao, no século VIII, seguindo uma já longa tradição, resumiu numa frase a expressão de um objectivo a atingir pelos pintores que se dedicaram à chamada pintura de paisagens (shanshui): «estudar a natureza como disciplina externa, encontrar a fonte interiormente no teu coração».

Inversamente, o observador via preferencialmente a personalidade do pintor na pintura de uma paisagem como no celebrado caso da Quinta Wangchuan de Wang Wei (699-761), reconhecida como um seu retrato. Mas para executar um símile das feições de uma pessoa, necessário por exemplo para o culto familiar dos antepassados, havia regras a cumprir como a ausência de sombras no rosto, entendidas como mau presságio, que se mostravam como um de vários desafios às oficinas que, em geral, executavam tais trabalhos. E como obra colectiva, poucos desses retratos foram assinados.

No fim da dinastia Ming, porém, é notável o caso raro de dois retratos de um casal de idosos, assinados e pintados por um membro da família dos retratados, feitos quando eles ainda viviam, que podem ser observados no Metmuseum (rolos verticais, tinta e cor sobre seda, 156,8 x 96,2 cm).

No rolo do marido está uma inscrição que revela ser este retrato feito por Ruan Zude do seu tio-bisavô Yizhai com oitenta e cinco anos. A excepcional expressividade dos rostos mostrados de frente, conforme a tradição dos retratos dos antepassados, revela um invulgar domínio do desenho com uma linha para comunicar a percepção da tridimensionalidade sem modulações de cor.

O que se opõe fortemente ao modo aparentemente convencional como é representado o corpo das duas figuras sentadas em cadeiras de braços (quanyi) que fazem um contínuo com o espaldar num círculo, que contrasta com o rectângulo do supedâneo a seus pés. Envoltas em exageradas vestes de um azul de azurite com um padrão repetido de nuvens, os rostos das figuras emergem intensos e afáveis das suas vestes de aspecto artificial, abstracto. Detalhes distinguem cada um dos retratos.

Ruan Zude colocou nas vestes da senhora e não do marido, o «quadrado dos mandarins» (buzi) decorado com animais ou pássaros que, pelo menos desde a dinastia Yuan, indica o grau militar ou civil na administração imperial composta unicamente por homens.

Neste caso, dois grous da Manchúria indicam o grau civil mais elevado e porque o marido não ostenta o buzi é provável que ela o possua por herança do pai. Sobre a cabeça uma luxuosa tiara decorada a ouro e penas azuis embutidas do pássaro guarda-rios (cui niao). No retrato de Yizhai, o tecido bocado a ouro e vermelho da cadeira é um discreto sinal de luxo. Mas todos esses indícios ficam atrás da superior nobreza do rosto dos dois velhos; do seu olhar cândido, de bondade e sabedoria que o jovem familiar teve a sensibilidade de discernir na sua obra de amor filial (xiao).

26 Nov 2024

A última noite do Império III

por Luis Nestor Ribeiro (1)

Os Sentimentos da População

Nas ruas de Macau, os principais acontecimentos da transição eram atentamente seguidos por milhares de pessoas, que podiam assistir igualmente ao momento histórico difundido pela televisão, através de grandes ecrãs instalados nos principais pontos da cidade. A maioria estava em silêncio, observando fixamente o desenrolar dos eventos. Alguns choravam, outros permaneciam em estado de contemplação. Era um momento de despedida, mas também de esperança. Afinal, o futuro de Macau estava, a partir daquele momento, nas mãos da China.

Ao passar a meia-noite, os primeiros instantes do dia 20 de Dezembro de 1999 foram marcados pelo eclodir de uma nova era pós-colonial, com a retirada dos símbolos oficiais portugueses existentes nos organismos e serviços públicos, tendo sido minuciosamente substituídos por insígnias alusivas à nova Região Administrativa da R.P.C., num perfeito sincronismo em todo o território e ilhas da Taipa e Coloane, incluindo os distintivos usados em fardas, uniformes e viaturas oficiais ao serviço dos elementos das forças policiais e autoridades locais. Foi uma longa madrugada, muito fria e envolta num extenso manto de nevoeiro.

Ao raiar da aurora, havia uma sensação clara de que uma nova era tivera início. Era o cair do pano sobre a última parcela de território que pertencera ao antigo Império Colonial Português, formado a partir do séc. XV em diversas regiões de três continentes, onde a presença portuguesa se fez sentir, deixando marcas indeléveis como a cultura e a língua, em África, América e na Ásia. De notar também que se assistia ao último arrear de bandeira de uma nação ocidental que administrara um território na Ásia. A China soube reservar e outorgar esse papel histórico a Portugal, com discrição e elevação, impondo à coroa inglesa que o Handover de Hong-Kong se realizasse antes da transferência de Macau, não obstante as diligências infrutíferas protagonizadas pelos diplomatas de Sua Majestade, tentando em vão, negociar um hipotético adiamento. Era o reconhecimento tácito do cordial relacionalmente institucional luso-chinês, firmado num entendimento recíproco duradouro, em contraste com a natureza arrogante e beligerante da presença britânica em H.K., que resultou na sua ocupação pela força em 1842. Nos dias que se seguiram, as bandeiras chinesas e as da Região Administrativa e Especial de Macau tornaram-se uma presença constante, a esvoaçar nos mastros dispersos em vários locais estratégicos, incluindo as antigas fortalezas construídas pelos portugueses nas suas colinas.

Reinava a euforia por Macau ser finalmente governado pelas suas gentes. Em termos de segurança, assistiu-se a um regressar à normalidade, sendo evidente que as novas autoridades não iriam permitir que se repetissem actos semelhantes aos cometidos durante os últimos anos da década de 1990.

Consequências: Um Novo Capítulo

As Mudanças Económicas

O impacto económico da transferência de administração foi sentido quase imediatamente. O jogo era uma das principais atracções de Macau, sendo explorado nos diversos casinos pertencentes à STDM(15) em regime de concessão exclusiva. A RAEM – Região Administrativa Especial de Macau assistiu a uma verdadeira explosão no desenvolvimento desse sector nos anos seguintes. A liberalização do jogo acompanhada de enormes investimentos de consórcios internacionais, transformou Macau num dos maiores centros de entretenimento do mundo, rivalizando com Las Vegas.

A cidade, que antes era relativamente pacata, passou por um boom de progresso e crescimento económico vertiginoso. Novos hotéis de luxo e complexos de entretenimento surgiram, atraindo milhões de turistas todos os anos, principalmente da China e países asiáticos vizinhos. As receitas do jogo passaram a sustentar a economia de Macau de uma forma ainda mais vincada.

Mas esse crescimento económico trouxe consigo novos desafios. A dependência excessiva do jogo gerou preocupações sobre a sustentabilidade a longo prazo da economia. Além disso, a disparidade entre os rendimentos dos que trabalhavam nos casinos e a restante população aumentou, criando alguns focos de apreensão.

As Transformações Sociais

A influência da cultura chinesa cresceu exponencialmente, especialmente entre os jovens. O sistema educacional foi reestruturado para incluir mais aulas em mandarim bem como de educação cívica e patriótica, com a língua portuguesa a perder a projecção que conheceu, passando a ser cada vez menos utilizada no quotidiano.

As escolas e universidades passaram a integrar ainda mais os programas curriculares do sistema nacional de ensino ministrado na R.P.C., com um foco maior nas disciplinas científicas e menos ênfase nas humanidades. Para muitos jovens, isso representou uma oportunidade de crescer num ambiente mais competitivo, com acesso mais fácil a empregos na China. Contudo, para outros, significou a perda de uma parte importante da sua identidade.

A outra face do desenvolvimento tem exposto alguns desequilíbrios. Enquanto muitos dos que trabalham na indústria do jogo e sectores afectos ao turismo prosperaram, outros segmentos da população, especialmente os idosos, começaram a sentir o peso do aumento do custo de vida. A gentrificação de áreas históricas também fez com que algumas famílias fossem deslocadas, perdendo o acesso a habitação acessível.

O Governo da RAEM tem implementado diversas acções no sentido de mitigar os desequilíbrios sociais provocados pela inflação e pelo crescimento do sector do jogo, que representa uma parte significativa do PIB, com o objectivo de promover mais justiça social e equilibrar o desenvolvimento económico. Algumas iniciativas recentes incluem a diversificação da economia com incentivos para o fomento de outras indústrias, como turismo não relacionado com o jogo, tecnologia, saúde e educação. Foram lançados programas de formação para sustentar a criação e crescimento de PMEs, com atribuição de subsídios, diversificando assim a base económica e criando empregos em sectores alternativos.

Para combater a inflação têm sido implementadas iniciativas para evitar a especulação de preços, especialmente em habitação e produtos de consumo básicos. Outra medida que tem sido bem aceite é a atribuição de subsídios e benefícios directos à população, como cheques de consumo e aumentos nos apoios sociais, para abrandar o impacto do aumento dos preços, especialmente em alimentos e bens essenciais. Tem-se assistido a um aumento nos investimentos em programas de habitação pública, oferecendo mais unidades de habitação social para famílias de baixos e médios rendimentos, com o propósito de combater os custos elevados dos imóveis no mercado privado.

O sistema de saúde público de Macau também tem captado investimentos, com a expansão de serviços de saúde gratuitos ou subsidiados para garantir que toda a população tenha acesso a cuidados médicos de qualidade

Tenho conseguido acompanhar de perto a evolução de Macau, que não pára de me surpreender. Na visita mais recente realizada em meados de Setembro de 2024, dei-me conta dos avanços que tem registado, em vários domínios, como a melhoria da rede de transportes públicos, com autocarros modernos e climatizados, que cobrem praticamente todo o território.

O espaço público está particularmente bem cuidado, com uma atenção particular na harmonização dos canteiros, jardins e zonas verdes, impecavelmente tratadas e integradas nas novas áreas urbanas em expansão. A cidade está muito mais limpa, um efeito positivo pós-pandemia COVID-19, sendo bastante evidente o grau de higienização dos espaços interiores dos mercados públicos.

A rede viária foi melhorada, com novas acessibilidades e mais disciplina no controlo dos fluxos de trânsito pedonal e automóvel. A partir de Outubro a quarta ponte de ligação à Taipa permitiu um melhor escoamento do tráfego com destino às ilhas.

Os Desafios

A preservação da identidade cultural de Macau tornou-se um desafio cada vez maior, numa perspectiva de manter a especificidade que lhe conferia o segundo sistema, derivado do axioma político preconizado com grande pragmatismo pelo grande líder Deng Xiaoping, de um país, dois sistemas. Embora os macaenses ainda celebrem as suas festas tradicionais e mantenham algumas de suas práticas culturais e religiosas de inspiração cristã, a influência crescente da China continental começou a ofuscar muitas dessas tradições. A arquitectura de inspiração colonial ainda permanece visível, mas novos arranha-céus e complexos de casinos começaram a alterar a fisionomia e a dominar o horizonte da cidade, quebrando a noção de escala e rompendo alguns enquadramentos que faziam coabitar o antigo com o novo, numa pequena parcela de território. Não obstante alguns desequilíbrios provocados no tecido urbano pelo inevitável surto de desenvolvimento, é importante elogiar o empenho do governo local em concretizar o reconhecimento oficial pela UNESCO em 2005, de um vasto conjunto de monumentos e edifícios classificados do seu centro histórico, como Património Mundial da Humanidade, um legado histórico incontornável da sua herança cultural, de matriz luso-chinesa.

Reflexões Pessoais: Uma Jornada Íntima

No Papel de Protagonista

Numa perspectiva mais íntima, como realizador e observador atento da realidade que me rodeia, a transferência de Macau foi mais do que um mero evento histórico; foi o revisitar de uma epifania, uma profunda transformação pessoal. Desde a minha infância na ex-colónia de Moçambique e depois mais tarde em Portugal, sempre tive uma enorme curiosidade pela China e pelo Oriente, provocada em certa medida pela convivência desde tenra idade com colegas chineses que frequentaram as mesmas escolas, partilharam brincadeiras no recreio e competiram nos mesmos recintos desportivos, desde a escola primária até à conclusão do ensino secundário, – na cidade da Beira, – onde residia uma enorme comunidade chinesa(16). Deixei-me apaixonar pelas suas gentes, pela sua maneira de ser, pelos aromas exóticos que emanavam do bairro chinês e que me marcaram para o resto da vida. Seduzido pela sua cultura milenar, não resisti ao apelo de rumar a Macau no início da década de oitenta do século passado, correspondendo a um convite do Governo de Macau dirigido a um pequeno grupo de profissionais da RTP para colaborar no projecto de criação de uma nova estação TV em Macau e formar os futuros quadros locais. Finalmente pude concretizar esse desejo de imersão na realidade que sempre idealizei desde muito novo, fruto de um apelo que as culturas distantes exerciam em mim, inspirado pelas histórias exóticas que lia incansavelmente, mas que os livros não podiam captar completamente. Quando cheguei a Macau, ainda jovem, sedento de aventura e de emoções fortes, não fazia ideia de que iria testemunhar uma das maiores transições políticas da história moderna.

A minha jornada em Macau foi uma lição de vida, de aprendizagem contínua. Conheci pessoas incríveis — chineses, portugueses, macaenses e expatriados —, cada uma com sua própria visão do que significava viver naquela cidade singular. Muitos continuam em Macau e suscitam-me os mesmos sentimentos de afecto como os familiares mais próximos. Passaram a integrar a bagagem existencial que transporto, são parte da minha família, para além dos meus filhos nascidos em Macau. Acompanhei de perto as mudanças políticas e económicas, mas também fui sendo moldado pelo escopo das transformações humanas que a transição operou.

Marcas indeléveis de uma realidade fugidia

A principal lição que assimilei com a experiência de cobrir a transição de Macau foi a de que identidade é algo de fluido, em constante transformação. Macau, como território, sempre foi uma terra de fronteira — geográfica e cultural, — e a sua identidade é algo difícil de definir de forma precisa. Se tentarmos captar a sua essência numa fotografia, ela revelar-se-á com um não-lugar(17) de contornos fugazes. Macau é um exemplo perfeito dessa nova dimensão da modernidade, como se fosse um lugar sem lugar. Cada vez mais passamos o tempo em hubs(18), locais efémeros de transição e de passagem, como hotéis, mega-shoppings, terminais, gares e aeroportos e numa realidade plasmada em écrans e decorações cénicas construídas em pladur, reproduzindo modelos virtuais numa fantasia hiper-realista, vivida cada vez mais à frente de gadgets e terminais de computadores. Esta transfiguração do real resulta numa progressiva alteração dos comportamentos e rotinas sociais nas grandes metrópoles, apenas perceptível de forma parcial e transitória, numa dimensão cada vez mais povoada pelo excesso de bits de informação digital.

A realidade diáfana que os múltiplos écrans e néons dispersos na sua malha urbana convocam e projectam é de uma modernidade de contornos líquidos(19). Eternamente sedutora, esquiva e desconcertante. A sua essência flutuante brota das inúmeras camadas que se vão sobrepondo, numa heterotopia plasmada em contínuo, num processo em constante mutação. Descrever essa realidade fugaz numa narrativa impõe uma disciplina de reescrita constante, como se estivesse a produzir um palimpsesto, sem princípio nem fim. A transferência para a China não apagou essa complexidade intrínseca de Macau; apenas a transformou.

A experiência que vivi na régie de realização ao dirigir uma equipa numerosa e multicultural, constituiu um desafio enorme em termos profissionais. Nada podia falhar. O evento iria ser transmitido em directo para todo o mundo, pelos principais canais e cadeias televisivas. Recuo no tempo e recordo um momento único.

Há um momento sem fim, uma singularidade no tempo, o ‘instante decisivo’ como lhe chama o grande fotógrafo francês Henri Cartier-Brésson, que não se repercute nem se repete. A realização televisiva em directo cobrindo a sequência de imagens em sobreposição, com a deposição da bandeira das quinas e a ascensão da bandeira rubra da R.P.C., alternada pelos rostos dos líderes supremos das respectivas nações, num encandeado encantatório perdurará para sempre na História. Esse encadeado de imagens, a sua construção, o seu ritmo, a sua pulsação … têm um pouco de mim que se projecta na sua construção e na forma como foram reveladas ao mundo! Algo meu permanece para sempre ligado a essa sequência visual, o seu encadeado correspondeu de alguma forma ao pulsar do meu coração, ao ritmo da minha respiração enquanto realizava. Todo o mundo estava preso, em suspenso, acompanhando o bailado protocolar das guardas de honra, numa coreografia solene que ficou para sempre projectada pelos grandes planos dos líderes em alternância sincopada, sobrepostas ao esvoaçar das bandeiras impelidas pelos jactos de ar embutidos que eram propulsionados através de pequenos orifícios nos topos dos respectivos mastros metálicos.

Constitui um forte motivo de orgulho ter contribuído activamente para a criação dessa sequência visual que perdurará e que será objecto de estudo no Futuro, quando se pretender investigar a iconografia associada à Transferência de Poderes de Macau para a R.P.C., passando esse conteúdo audiovisual a estar sempre disponível nos principais arquivos, acervos e bancos de imagens internacionais. Estarei sempre ligado a esses instantes decisivos…

O Legado

O legado da transferência de Macau permanece ainda em processo de construção. Hoje, duas décadas e meia após o evento, a Região Administrativa continua a prosperar economicamente, mas enfrenta desafios sociais e culturais significativos. As questões da preservação da identidade cultural, a especificidade da cidadania dos residentes permanentes de Macau e seus direitos adquiridos no contexto da crescente influência chinesa, bem como a excessiva dependência da economia em relação ao jogo, constituem alguns temas centrais no debate sobre o Futuro.

As novas gerações de macaenses, embora mais conectadas à China do que nunca, ainda mantêm uma forte ligação à alma portuguesa da sua terra. O devir de Macau tem ainda alguns contornos pouco definidos, mas a resiliência e a capacidade de adaptação dos seus cidadãos convocam a esperança de continuar a encontrar formas de prosperar e evoluir, preservando o seu carácter essencial: a multiculturalidade.

Para as futuras gerações, o desafio será equilibrar o crescimento económico com a preservação das tradições culturais. Macau, com sua história rica e o seu papel de ponte entre o Oriente e o Ocidente, tem o potencial de ser um modelo de convivência pacífica e próspera num mundo cada vez mais globalizado.

Conclusão

Em 1999, Macau entrou numa nova era, mas os traços mais fortes da sua história e identidade não foram apagados com a Transferência de Administração. A RAEM continua a ser um exemplo vivo de como culturas diferentes podem coexistir de forma ecuménica, perante pressões políticas e económicas. Poder testemunhar esse momento de transição como realizador de TV foi uma experiência marcante. As lições de vida que aprendi em Macau continuarão a guiar os meus passos em busca de um mundo cada vez mais livre de barreiras, muros ou fronteiras.

*Autor, Consultor de media, Realizador/Produtor

Notas

5 Concessionária do jogo em Macau, fundada pelo magnata Ho Hung-Sun (Stanley Ho). Deteve em exclusivo o monopólio de exploração dos casinos durante a administração portuguesa com atribuição de subsídios, diversificando assim a base económica e criando empregos em sectores alternativos.

6 Uma comunidade muito influente no tecido social da Beira, tendo como polo principal uma agremiação desportiva, o Clube Atlético Chinês da Beira, com excelentes equipas de basquetebol e ginástica de ambos os sexos, que participavam com muito sucesso nos campeonatos, contribuindo com muitos atletas para as respectivas selecções provinciais. Para além do Atlético, as lojas do bairro chinês e o cemitério eram os locais que mais contribuíam para dar um ambiente oriental a alguns dos locais mais típicos da cidade onde nasci, em 1958

7 Augé, Marc – Non-Places: An Introduction to Supermodernity, 2023, Verso
8 Plataforma intermodal que assegura ligações
9 Bauman, Zygmunt – Liquid Modernity, 2000, Polity

25 Nov 2024

A última noite do império II

Por Luis Nestor Ribeiro (1)

O Dia a Dia em Macau

O quotidiano antes da transferência era uma mistura de rotinas tranquilas e de celebrações que enchiam de vida o território. O Mercado Vermelho, próximo da zona norte da cidade, era um dos meus lugares favoritos. Ali, o movimento começava cedo. Os pescadores, com suas bancas lotadas de frutos do mar frescos, dividiam o espaço com vendedores que traziam as suas verduras recém-colhidas do outro lado da fronteira das Portas do Cerco. Havia também especiarias exóticas, ervas medicinais chinesas e uma profusão de cores e aromas que transformavam o mercado num espectáculo visual e sonoro, como se estivesse a assistir ao recital polifónico de uma ópera sincrética.

Durante as festividades tradicionais chinesas, as ruas ganhavam ainda mais vida. O Festival do Tung Ng, um dos eventos anuais mais aguardados, era celebrado com a realização de regatas de Barcos-Dragão. O rio das Pérolas enchia-se de embarcações coloridas e ornadas com dragões esculpidos, enquanto os competidores remavam num ritmo frenético, ao som dos tambores e dos aplausos da multidão. A celebração unia a cidade, independentemente da origem étnica ou social. Todos estavam presentes — portugueses, chineses, macaenses, estrangeiros e turistas de várias proveniências.

O transporte público era limitado, mas tinha uma resposta satisfatória à escala da sua dimensão. Os pequenos autocarros serpenteavam pelas ruas estreitas. Por vezes, ainda era possível observar triciclos que se dedicavam primordialmente ao transporte de turistas para os casinos e que eram uma herança do tempo em que a cidade era percorrida num corrupio sem fim de riquexós, enquanto as águas circundantes da Baía da Praia Grande eram sulcadas pelos juncos e sampanas, com suas velas enfunadas pelo vento, à semelhança de um exótico bailado aquático de leques a flutuar sobre água. O progresso ia gradualmente tomando conta do quotidiano, tendo a ligação de Macau a Hong-Kong, outro importante centro comercial e cultural da região, passado a ser assegurada por modernos jactoplanadores. A construção do Aeroporto Internacional, uma antiga aspiração da população, tornou-se uma realidade, após diversos avanços e recuos de ordem legal e administrativa. A vida parecia seguir o seu curso normal, mas, à medida que o ano de 1999 se aproximava, havia uma sensação crescente de que uma mudança colossal iria mudar tudo de forma radical.

A Névoa da Incerteza: expectativa e esperança

Nos meses que antecederam a transferência de poderes, um aumento de tensão era perceptível nas conversas. O futuro estava rodeado de incertezas, e isso afectava profundamente o estado de espírito da população. Como realizador e produtor de TV, testemunhei essa ansiedade de perto, conversando com habitantes que, embora esperassem uma transição pacífica, não podiam evitar algum receio face ao que desconheciam.

Para muitos residentes, especialmente os que tinham raízes portuguesas ou macaenses, a preocupação de perder direitos e liberdades era real. Havia uma sensação crescente de que, com o tempo, a autonomia prometida pela R.P.C. começaria a desvanecer-se. Embora houvesse a promessa de ser respeitado o princípio de “um país, dois sistemas”, que preservaria a autonomia de Macau por 50 anos, era um tema que suscitava alguma inquietação. O meu amigo Xavier tinha-me confidenciado algumas das suas preocupações, quando nos encontrávamos no café da esquina:

– “… o sistema “um país, dois sistemas” parece promissor no papel, mas como será na prática? E, mais importante, quanto tempo realmente durará? O status quo até agora garantido sob o domínio português, será salvaguardado sob a administração chinesa?”

E a Guilhermina, mãe de uma colega dos meus filhos na escola, segredou-me enquanto aguardávamos o final das aulas:

“- Tenho medo que Beijing acabe por intervir mais cedo do que o prometido, para acabar com o clima de insegurança que vivemos agora em Macau, devido aos atentados cometidos pelas tríades.”

Esse estado de espírito reflectia-se em pequenos gestos e atitudes que contribuíam para alimentar a expectativa. Lembro-me de ver mais e mais famílias portuguesas enviando os seus filhos de regresso a Portugal, preocupadas com o futuro educacional e social de suas crianças num território sob domínio chinês. Ao mesmo tempo, muitos funcionários das repartições e serviços da administração pública, cientes de que os seus empregos não estariam garantidos após a transferência, começavam a preparar-se para abandonar a cidade e retornar aos seus locais de origem, rumo a Portugal ou outros países de língua portuguesa. Nos corredores de alguns edifícios administrativos, o clima era de apreensão e de despedida.

Nos locais de encontro e convívio mais frequentados, as conversas giravam em torno de questões relacionadas com a preservação da identidade cultural de Macau. Alguns dos meus amigos mais próximos, que eram professores e artistas locais, preocupavam-se particularmente com o impacto que o controlo chinês poderia ter sobre a expressão artística e o sistema judicial de Macau, de matriz portuguesa, cuja moldura se baseia num ramo de uma árvore sustentada pelo antigo direito de matriz romana.

A ansiedade também afectava os empresários. O sector do jogo, um dos pilares incontornáveis da economia local, vivia uma fase de estagnação. Os operadores dos casinos não sabiam se a nova administração chinesa manteria o modus operandi ou implementaria mudanças drásticas. O clima de incerteza pairava não só sobre os cidadãos, mas também sobre alguns alicerces da economia local.

No final da década de 1990, a segurança do território tinha sido fortemente colocada à prova através de uma série de atentados e incidentes com grande repercussão nos media, cometidos na sua maioria por tríades rivais que disputavam o controlo de áreas fulcrais para o exercício das suas actividades ilícitas. Recordo que nesse período as autoridades portuguesas não tiveram mãos a medir para tentar neutralizar os desacatos cometidos por alguns protagonistas mediáticos do submundo do crime, que encheram as manchetes dos jornais e revistas com notícias sensacionalistas, relatando os atentados bombistas em viaturas, homicídios perpetrados em locais públicos e incêndios colectivos de motociclos estacionados na via pública.

As Divisões Sociais

Apesar da apreensão se ter instalado em grande parte da comunidade portuguesa e macaense, havia também um grupo de considerável influência, que interpretava a transferência como uma nova janela de oportunidade que se abriria. Para os empresários e investidores chineses, a transição significava a possibilidade de Macau assumir um papel económico relevante no contexto regional do grande delta do Rio das Pérolas. A crescente abertura da China ao capitalismo, e a sua promessa de uma maior receptividade relativamente a grandes investimentos no sector do jogo, começava a atrair a atenção de novos investidores, no quadro de futura adesão da China à Organização Mundial do Comércio.(9)

Entre os jovens, as reacções também eram divididas. Alguns, nascidos e criados em Macau, não tinham receio da mudança e viam-na até como uma oportunidade de renovar as suas perspectivas de futuro. Estavam curiosos para ver como a nova administração moldaria a cidade. Outros, no entanto, temiam que a terra que conheciam desaparecesse, substituída por uma versão descaracterizada e padronizada de uma vulgar cidade sob administração chinesa.

O Dia da Cerimónia: Um Momento Histórico

A expectativa nos dias que antecederam a cerimónia de transferência era tanto de celebração quanto de apreensão. O território havia sido profusamente decorado com bandeiras chinesas e portuguesas, e as fachadas das repartições oficiais estavam iluminadas, criando um cenário sumptuoso de despedida monumental. Ao mesmo tempo, não se podia ignorar a tensão pairando no ar. Para muitos, era o fim de uma era.

Na noite de 19 de dezembro de 1999, quando teve início a sucessão de 21 eventos que constavam do programa oficial de comemorações da Cerimónia de Transferência de Administração, as ruas estavam tomadas por uma enchente de populares interligados por uma contagiante mistura de emoções. Teve lugar a despedida do Governador de Macau ao seu staff e colaboradores no Palácio de Santa Sancha (residência oficial), o render da guarda de honra no Palácio do Governo, seguido de uma série de concertos e eventos culturais que mesclavam tradições portuguesas e chinesas. Os convidados reuniram-se para assistir aos espectáculos, mas o verdadeiro protagonista era o próprio território. Cada esquina, cada beco, cada fachada colonial, cada mercado, parecia estar a despedir-se da sua própria história como peça insubstituível de uma antiga colónia.

Os Protagonistas

E, finalmente, às 24 horas de 19 de Dezembro de 1999, no local propositadamente construído para o evento (10), entraram em cena os principais líderes políticos: o presidente de Portugal, Jorge Sampaio, e o presidente da China, Jiang Zemin. Cada um representava o peso de suas respectivas nações. Para os portugueses, a cerimónia marcava o final de quase cinco séculos de presença colonial na Ásia. Para os chineses, significava a recuperação de mais uma peça do que consideravam ser uma parcela perdida da pátria. Os discursos dos líderes estavam repletos de simbolismo. Jorge Sampaio destacou os laços culturais e históricos que uniam Portugal e Macau, mas também enfatizou a necessidade de respeitar a autonomia do território no novo contexto chinês. Jiang Zemin, por sua vez, prometeu que Macau continuaria a prosperar sob o princípio de “um país, dois sistemas”, garantindo a continuidade de seu modo de vida e sistema económico.

Foi o momento crucial dos 21 eventos, assistido no local por 2500 personalidades convidadas, em representação de governos e organismos internacionais, mas que, por força daquela que então se considerou ser “a maior operação mediática da história do audiovisual português”(11), foi seguida por milhões de pessoas em vários pontos do Mundo. Pelo consórcio formado pela TDM de Macau em conjunto com a RTP (Portugal) foi cedido o sinal da cobertura televisiva que realizei a partir de um OB-Van (Carro de Exteriores e Estúdio móvel de TV) à Televisão Estatal chinesa (CCTV – China Central Television) que, após o recepcionar, o distribuiu para cerca de 300 estações afiliadas em toda a China. O colossal dispositivo técnico montado para as várias emissões via satélite, mobilizou 250 profissionais (sendo cerca de 150 da TDM, incluindo alguns contratados a produtoras do Sul da China e H.K. e 100 da RTP) ao serviço do Consórcio TDM – RTP que provisionou as várias frentes operacionais onde estavam perto de 100 câmaras TV, 10 carros de exterior OB-Van, um helicóptero de transmissões por feixes, estúdios, régies, 40 cabines para jornalistas comentadores no Press and Broadcast Center e 12 posições móveis de câmaras TV, em diferentes pontos (no exterior) onde os acontecimentos justificassem a sua presença(12).

O ‘Centro de Imprensa e Emissões TV – Press and Broadcast Center’ foi instalado pelo Consórcio em 3 andares do edifício Zhu Kuan, nas imediações do Centro Cultural de Macau. Durante três longos meses, desde o início de Novembro de 1999 até ao final de Janeiro de 2000, foi naquele preciso local que desenvolvi toda a planificação, organização do trabalho de produção e o encerramento desse complexo ciclo, com a apresentação do relatório final e o fecho de contas do orçamento. Foi necessário coordenar em várias frentes, os aspectos logísticos e técnicos de cobertura televisiva, para instalação dos equipamentos em diversos locais dispersos pela cidade, incluindo as autorizações para os planos de voo do helicóptero que iria recolher imagens aéreas dos eventos. Sucederam-se reuniões e sessões de trabalho com representantes do Palácio do Governo, Segurança, Obras Publicas, staff de Produção e Jornalistas. Entre os jornalistas destacados pela RTP, estavam dois anchors, Judite de Sousa e José Rodrigues dos Santos, antigos profissionais da TDM no início da década de oitenta e que revisitavam Macau com a distinta missão de apresentarem a emissão televisiva personalizada para a audiência portuguesa.

No constante vaivém entre reuniões e visitas prévias de vistoria aos locais de transmissão, incluindo posições de reportagem para os jornalistas, recordo que cada acesso de pessoas e viaturas ao interior do perímetro de segurança onde se localizava o nosso Centro, implicava uma inspecção meticulosa pelos elementos das Forças de Segurança. O perímetro abrangia os locais onde decorreriam as principais cerimónias, e o acesso de pessoas só era autorizado após serem atravessados os pórticos de raios X, usados com o propósito de localizar e neutralizar quaisquer armas ou objectos que pudessem constituir uma ameaça. Isso provocava imensos constrangimentos, para a circulação de pessoal técnico, equipas de reportagem e respectivos equipamentos. Imagine-se o stress causado com os atrasos, quando o material recolhido nas reportagens não podia ser editado a tempo e horas de ser emitido. Havia um excesso de zelo provocado pelo clima de insegurança que se vivia, devido aos incidentes causados pelas tríades em vários pontos do território. As viaturas que entrassem na zona de segurança tinham de se sujeitar a uma inspecção rigorosa do seu interior e do chassis, com o recurso a espelhos colocados em braços telescópicos que reflectiam os pontos inacessíveis.

Numa perspectiva mais pessoal, confesso que foi um período de trabalho intenso, de grande azáfama, em que praticamente só ia a casa para dormir, quando tinha a sorte de não ter de fazer sessões longas de trabalho sem interrupção, por imperativos de ordem profissional. No âmbito do Consórcio, fui o Coordenador de Produção e Realização de todas as equipas que fizeram a cobertura dos 21 eventos oficiais para além de responsável pela realização televisiva do evento principal, onde se procedeu à transferência de poderes.

Coordenei igualmente a realização da transmissão televisiva em directo para várias estações e canais noticiosos internacionais que o Host Broadcaster(13) assegurou de forma ininterrupta durante três dias, após a cerimónia principal. Esta solução permitiu difundir conteúdos relevantes sobre a realidade e história de Macau, para além da reprodução em diferido dos eventos oficiais mais mediáticos, numa emissão internacional disponível via satélite para todos os continentes e adaptada aos diferentes fusos horários. A ela aderiram as principais cadeias mundiais, com destaque para a CCTV China, RTP Portugal, BBC Reino Unido, CNN E.U.A., NHK Japão, ABC Austrália, Globo Brasil, entre outras.

A maior adversidade que senti naqueles momentos foi ter de coordenar uma numerosa equipa multicultural, com profissionais oriundos de várias proveniências geográficas e que não falavam a mesma língua. Esse é sem margem para dúvidas um dos maiores desafios para qualquer realizador. A improbabilidade de poderem reagir todos com o mesmo timing, às instruções que receberiam da régie (14). Como não dominavam todos a mesma linguagem, optei por razões estratégicas, por me dirigir à equipa na língua inglesa, recorrendo aos termos técnicos mais usados nos estúdios de cinema e tv para estruturar guiões e planificações. Se assim não fosse, ia ver-me incompreendido numa Torre de Babel.

Num directo, em termos de realização televisiva, não há margem para indecisões nem reflexos retardados. Ser capaz de transmitir ordens perceptíveis à equipa, sem hesitações, nem hiatos de comunicação é um must. Qualquer instante do que está a ser transmitido e a ser captado pelas câmaras num palco, numa tribuna, num cenário, etc, tem de ser exibido no preciso momento em que acontece, de forma a tornar lógico, perceptível e coerente o conteúdo que se difunde. O realizador não pode perder aquilo que chamo o ‘instante relevante’.

Se isso porventura suceder, a gramática visual de uma sequência não está a ser bem interpretada e reproduzida. Num ambiente de régie em directo, no momento da realização só pode ouvir-se uma voz de comando, a do realizador que solicita e comuta a sequência de imagens e sons, captadas pelas câmaras, microfones, sem atrasos. Todos os meios, humanos e técnicos, têm de estar perfeitamente sincronizados em resposta às instruções do realizador. Um processo criativo análogo sucede quando um maestro dirige uma orquestra sinfónica. Para o sucesso de uma realização em directo, é imprescindível que, qualquer gesto, acção ou movimento seja captado no exacto momento em que ocorre. Se houver um atraso, o que se pretende transmitir perdeu-se irremediavelmente. Em directo, não há lugar para repetições!

Notas

1-Author, Media Consultant, TV Director / Producer. Lived and worked in Macau for 25 years, between 1983 and 2008.

9 A China tornou-se oficialmente o 143º membro da O.M.C. em 11 de dezembro de 2001, após 15 anos de

negociações, completando uma etapa importante no seu processo de "reforma e abertura" iniciado em 1978 com o grande líder visionário Deng Xiaoping. Esta adesão oficial, constitui um marco incontornável no processo gradual de globalização que a economia mundial evidenciava no dealbar do novo milénio. A par e passo, os bens de consumo produzidos em massa na R.P.C. começavam a inundar os principais mercados globais.

10 A cerimónia teve lugar num edifício temporário de estrutura leve, com traços arquitectónicos inspirados numa gigantesca lanterna chinesa, construído especificamente para o evento no Jardim do Centro Cultural de Macau

11 Teves, Vasco Hogan – RTP. 50 Anos de História, Museu da RTP, 2007

https://museu.rtp.pt/livro/50Anos/Livro/DecadaDe90/MaisPaisEMaisMundoNosAnosDificeisDaRTP/Pag12/def

ault.htm

12 O Conselho de Administração da RTP reconheceu o mérito do trabalho desenvolvido (Ordem de Serviço nº 3, de 7.2.2000): “Em todas as situações inerentes ao cumprimento da missão, os trabalhadores da empresa destacados para o Consórcio evidenciaram níveis extraordinários de desempenho, ultrapassando não só as dificuldades logísticas como também os constrangimentos linguísticos e de diferença cultural dos seus parceiros de operação. Em face do referido índice de desempenho, aliado à dedicação, à competência e à atitude cívica igualmente patenteados, o Conselho de Administração deliberou aprovar um público louvor a todos os trabalhadores da empresa que integraram o Consórcio TDM/RTP, a que entende dever associar aqueles que nos serviços da Sede asseguraram o conjunto das tarefas necessárias para o referido efeito.”

13 Consórcio TDM – RTP

14 Centro de Controlo e Comando da Realização TV

22 Nov 2024

A última noite do Império I

Por Luis Nestor Ribeiro (1)

Introdução: Uma Macau Multicultural

Viver e trabalhar como profissional num meio de comunicação social em Macau, especialmente nos anos que antecederam a transferência de administração para a China em 1999, foi uma experiência imersiva e transformadora. No coração desse território pequeno e vibrante, não fui apenas um mero observador, mas também um interveniente empenhado, em experienciar na primeira pessoa, uma das mais complexas fusões culturais do mundo. No Passado, Macau não foi uma simples colónia europeia em território chinês, foi primordialmente um lugar onde o Oriente e o Ocidente não apenas coexistiram, mas também se entrelaçaram: – num diálogo constante, às vezes harmonioso, outras vezes tenso, sempre fascinante.

Desde os meus primeiros dias em Macau, fui atraído pela riqueza cultural que moldava a vida quotidiana da cidade. Nos becos e ruas estreitas, havia sinais da longa presença portuguesa, com suas igrejas barrocas e casas coloniais, enquanto os mercados fervilhavam com a energia dos vendedores chineses. O cheiro de chá acabado de preparar pairava no ar enquanto o som de sinos dos templos budistas ecoava ao longe. Essa singular fusão de culturas constituiu sempre a sua essência, e para entender a transferência de administração (2) que se aproximava, era necessário compreender primeiro o que fazia de Macau um lugar tão único.

A Fusão de Culturas

A história de Macau conheceu novos protagonistas no século XVI, quando os portugueses chegaram como navegadores e mercadores, transformando paulatinamente um pequeno lugar num importante entreposto comercial no sudeste asiático (3). Desde então, o território tornou-se num verdadeiro caldeirão de culturas. O impacto dessa colonização portuguesa nunca se limitou à política ou à economia; foi um processo que deixou marcas profundas nas tradições, na língua e no modo de vida dos seus habitantes.

Passei a residir em Macau no início da década de 1980, por motivos profissionais. Ao deambular pelas ruas da cidade no papel privilegiado de voyeur (4) sem pressa, a quem fora permitido observar um grande laboratório multicultural em plena produção no Extremo Oriente, era impossível passar despercebida a ubíqua influência portuguesa: embora o ritmo da cidade fosse marcado pela vertiginosa actividade chinesa nas lojas e negócios, o ambiente do casario e suas elegantes fachadas coloniais convocava as emoções para um distante lugar mediterrânico. As calçadas com seus padrões ondulantes configurados por pedras alvinegras, conferiam às ruas uma beleza singular, ligando-as simbolicamente a Portugal, enquanto a serenidade das igrejas católicas contrastava com o misticismo fumegante dos templos chineses, como o Templo de A-Má, reverenciado pela comunidade chinesa local, em particular pelos pescadores e população flutuante, abrigada em sampanas e juncos no Porto Interior.

Macau nessa época(5) não era mais do que um pequeno anão adormecido à sombra de um gigante. Com escassos portugueses, pouco passavam de mil os que tinham vindo directamente de Portugal. Na generalidade eram funcionários públicos, professores, advogados e alguns militares a prestar serviço nas forças de segurança. A língua portuguesa era falada por cerca de 15 mil pessoas, numa população que rondava os 450 mil habitantes, cuja língua veicular predominante era o cantonense. A maioria comprimia-se numa estreita faixa, a península de Macau, com cerca de 5,7 km2 no que constituía um recorde mundial para a mais alta densidade populacional. Em conjunto, o território de Macau(6), administrado por Portugal, incluía as ilhas de Taipa e Coloane, com uma área total aproximada 15,3 km².

Macau era uma urbe envolta numa languidez entorpecida em contraciclo com a economia dos tigres asiáticos(7). Só existia uma ligação viária entre a península e as ilhas, assegurada pela elegante ponte Nobre de Carvalho, inaugurada em 1974. Apesar de possuir apenas duas estreitas vias de circulação, foi uma obra essencial para o desenvolvimento, facilitando o transporte de pessoas e mercadorias, impulsionando o crescimento urbano. O trânsito era caótico e pouco disciplinado. As viaturas podiam circular livremente pelo Largo do Senado, no coração da cidade. Tinham ainda a possibilidade de estacionar mesmo defronte do edifício do Leal Senado. O lixo amontoava-se nas ruelas e a sua recolha pelos serviços municipais não era eficiente. Ao longo da Rua da Praia Grande, na margem do rio, ainda existiam barracas de pescadores, em forma de palafita, com redes de pesca suspensas e puxadas através de um sistema de roldanas artesanais. No emaranhado de ruas, havia inúmeras tendinhas onde era confeccionada uma profusão de petiscos e comidas, – genuína street food antes de virar moda, – servida mesmo à frente do cliente. Aromas de arroz glutinoso, massa, peixe e carne, com legumes caldeados por molhos e temperos fumegantes que emprestavam ao ar um odor característico, estimulando o apetite dos fortuitos transeuntes. Um ambiente denso e carregado de fumo, não parava de cativar o forasteiro, dia e noite. Em redor dos casinos, era permanente a azáfama.

A gastronomia reflectia esse carácter eclético de forma deliciosa. Nos restaurantes, a comida era uma celebração da diversidade cultural. Nas imensas visitas a casas de chá e restaurantes locais, provei variados pratos que misturavam ingredientes chineses e técnicas culinárias portuguesas. O minchi, um prato tradicional macaense de carne moída com batatas e ovo frito, temperado com molho de soja, era um exemplo perfeito dessa mistura, representando a cozinha do dia a dia dos macaenses. Outros pratos, como o caldo verde e o pastel de nata, conviviam lado a lado com receitas chinesas mais tradicionais, como o dim-sum e o pato laqueado.

Além da comida, havia também a música, uma presença constante em Macau. Nas festas de rua e eventos culturais, ouvia-se o som do fado, cantado em português interpolado por árias de ópera de Pequim, mesclados ao ritmo das danças chinesas e dos tambores rituais das festividades, com destaque para o Ano Novo Lunar. E, claro, o patuá — a língua crioula única de Macau, que misturava português e cantonense, falada principalmente pelos mais idosos e hoje quase em extinção.

Nesse tempo as comunicações intercontinentais eram complexas e de difícil acesso. Para um português residente em Macau o contacto regular com os familiares distantes constituía um quebra-cabeças. As redes telefónicas fixas só permitiam o acesso directo a chamadas locais. A tecnologia de suporte a ligações de longa distância pressupunha a utilização de comunicações via satélite. Para o efeito, era necessário proceder presencialmente à reserva de circuitos na sede dos Correios, para um determinado horário, sujeito a confirmação e na presença de um telefonista de serviço. Essa complexidade acentuava ainda mais a sensação de isolamento em relação ao resto do mundo. Eram também frequentes os apagões de energia eléctrica, em virtude de a central geradora de electricidade no território não ser auto-suficiente. Uma parte substancial da energia necessária era importada da China, revelando uma dependência de Macau, de forma a satisfazer os requisitos de consumo quotidiano, cuja tendência era de aumento gradual.

A Identidade Macaense

Com o tempo, fui percebendo que a identidade macaense era muito difícil de definir, pressupondo uma mescla de complexidade e fluidez. Os macaenses, descendendo primordialmente de portugueses e chineses, com o contributo genético ocasional de outros povos meridionais do continente asiático(8), eram fruto directo dessa fusão cultural. Uma comunidade híbrida que vivia entre dois mundos, com um pé na Europa e outro na Ásia. O que os unia não era uma etnia, mas uma cultura compartilhada — uma cultura que, nos últimos 450 anos, se tinha desenvolvido de forma autónoma, sob o olhar distante tanto de Portugal quanto da China.

Numa observação muito superficial, para os portugueses, os macaenses eram vistos como diferentes, como “os orientais” — assumindo em muitos casos, a face visível da administração local – graças à faculdade que detinham, de poderem comunicar nos dois idiomas principais. Já os chineses nativos de Macau, viam muitas vezes os macaenses como “ocidentais”, portadores de valores e hábitos europeus. No entanto, os próprios macaenses não se reviam exactamente como europeus nem completamente como asiáticos. A sua identidade estava profundamente enraizada na singularidade de Macau, e muitos temiam que essa identidade fosse descaracterizada com a transferência de administração para o controlo chinês.

Essa incerteza era palpável nas conversas frequentes que eu tinha no seio do meu círculo mais restrito de amigos. Alguns sentiam orgulho na dualidade da sua herança; outros receavam que o retorno de Macau à pátria chinesa pudesse significar uma perda de suas tradições e liberdades. Essa identidade complexa era, para muitos, algo que devia ser protegido com determinação.

Notas

1-Author, Media Consultant, TV Director / Producer. Lived and worked in Macau for 25 years, between 1983 and 2008.

2-Neste artigo considero que a Cerimónia de Transferência de Poderes em 20 de dezembro de 1999 foi essencialmente isso – uma passagem de testemunho entre nações que se respeitavam e que souberam manter um entendimento cordial ao longo de mais de quatro séculos e meio, não obstante haver autores que a designam como ‘Transferência de Soberania’, em linha com o que se passou em Hong-Kong em 1997, entre a R.P.C. e a coroa inglesa. No caso específico de Macau, a soberania chinesa sobre o território já tinha sido formalmente reconhecida pelas autoridades portuguesas em 1979. Quando a República Popular da China e a República Portuguesa estabeleceram formalmente relações diplomáticas, o estatuto de Macau em termos de Direito Internacional foi finalmente esclarecido. Na altura, os dois países definiram na acta de conversações por meio de acordo confidencial que “Macau é território chinês sob administração portuguesa”, o que veio a ser confirmado na Constituição da República Portuguesa e no Estatuto Orgânico de Macau.

3-Sobre o estabelecimento dos portugueses em Macau as evidências documentais são pouco claras e por vezes revelam-se ambíguas. Não existe qualquer documento da época que comprove como os portugueses se instalaram no território do Sul da China. Resta acrescentar o facto, esse indiscutível, de os portugueses se terem fixado em Macau desde a segunda metade do século XVI e de ali terem permanecido ininterruptamente, com o acordo, ou pelo menos, a tolerância dos chineses. O seu estabelecimento gradual foi pacífico, não ocorrendo qualquer emprego de força, um acto de guerra que determinasse a sua anexação territorial, em contraste com o sucedeu em meados do séc. XIX com Hong-Kong

4- Inspirado pelo flâneur de Charles Baudelaire.

5-Início da década de oitenta do século passado

6-É oportuno recordar que durante o mandato do Governador Almeida e Costa (1981 a 1986) tiveram início os Grandes Empreendimentos, como o fecho da Baía da Praia Grande e os novos aterros do Porto Exterior (NAPE). Foi possível concretizar um entendimento pragmático com a nova liderança da nação chinesa que visava uma maior abertura ao exterior, criando as condições políticas adequadas para o arranque e concretização de alguns projectos importantes para a modernização do território, como a Estação de Televisão – TDM (1984), o porto de águas profundas em Ka Ho, Coloane (1992), o Terminal Marítimo do Porto Exterior (1993), a nova travessia para a Taipa através da Ponte da Amizade (1994) e a construção numa ilha artificial do novo Aeroporto Internacional (1995), tendo esta última obra levado 10 anos a realizar. Com o passar do tempo, a área de Macau aumentou significativamente devido aos sucessivos projectos de aterro, como a faixa de Cotai (Cotai Strip), que cobre o antigo istmo que ligava Taipa a Coloane e é ocupado actualmente pela maioria dos grandes casinos e resorts.

7-Grupo constituído por quatro economias do sudeste asiático, Hong-Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan, que registou um vertiginoso crescimento do PIB entre as décadas de 1970 e 1990. Durante esse período, essas quatro economias passaram por uma rápida industrialização, altas taxas de crescimento e melhorias significativas nos padrões de vida. Essa transformação é frequentemente designada por ‘Milagre Asiático’

8-Com destaque para os antigos reinos e territórios do Sião (Tailândia), Pegu (Myanmar), Malaca (Malásia) Goa (Índia), Batávia (Indonésia) e Filipinas, entre outros.

21 Nov 2024

O Imperador Enamorado e a Nobreza Solitária do Eremita

Zhu Jianshen (1447-1487), o imperador Xianzong ou Chenghua, «A mudança bem sucedida», reinou durante vinte e três anos (1464-87) que trouxeram prosperidade e relativa paz ao Império, espelhando o seu carácter fleumático e cauteloso. Essa sua branda disposição é sublinhada pela constância da relação que manteve com Wan Zhen’er (1428-87), que foi sua ama-seca desde que ele tinha três anos e ela, vinte.

Os dezassete anos de diferença não foram obstáculo ao persistente afecto que durou até ao fim: quando soube da sua morte, o monarca passou um dia sem poder falar no fim do qual terá murmurado: «Zhen’er desapareceu, em breve serei eu».

O que de facto sucedeu sete meses depois quando ele tinha apenas trinta e nove anos. A serena e firme personalidade do soberano está patente numa excepcional pintura, feita no Inverno de 1485 por um anónimo pintor da corte. No rolo horizontal Ming Xianzong apreciando a Festa das lanternas (tinta e cor sobre seda, 690 x 36,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Pequim) onde o imperador está representado três vezes: no princípio, no meio e no fim, numa plataforma elevada diante da escada do dragão esculpido na pedra, notamos com ele o que ele observa:

Dentro dos muros púrpura da Cidade Proibida, pessoas vão usufruindo de actividades lúdicas que caracterizam os dias felizes. Como jogar, ouvir música, assistir a espectáculos de acrobacia, de ópera, magia ou ao lançamento de foguetes. Ou simplesmente passear em família na cidade decorada com as lanternas que distinguem a «festa da noite nobre» (yuanxiao jie) celebrada no décimo quinto dia da primeira lua, marcando na lua cheia o fim das festas do ano novo.

Na última aparição do monarca no final do rolo, o seu olhar é acolhedor e em retrospectiva; dir-se-ia que é para e por causa desse seu olhar permissivo que tudo acontece.

A pintura exuberantemente polícroma, narrativa, é exemplar de um dos caminhos que a arte adoptava no tempo da dinastia Ming. Uma outra via, na tradição da pintura dos letrados seguia paralela, fora dos muros da cidade imperial, exigindo a restrição própria da expressividade do traço caligráfico.

Wu Boli, (activo no fim do século XIV- início do XV), sacerdote daoísta no templo Shangqing da montanha Longhu, «Tigre – dragão» (Jiangxi) seria lembrado como autor de um rolo vertical que pintou para Zhang Yuchu (1361-1410) o quadragésimo terceiro tianshi, o «mestre celestial» da Zhengyi Dao, a seita daoísta da «Unidade ortodoxa». Do Pinheiro-dragão (tinta sobre papel, 121,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) em que figura um único pinheiro, de ritidoma escamoso como a pele do dragão, desprende-se uma sensação de energia vital correspondente à vocação do mestre daoista. Cujo olhar estava disponível para reconhecer o mundo da natureza como se este fora feito para ele, para o receber e acompanhar.

18 Nov 2024

Elizabeth Ross: “A mesa virou e o Sul Global está a crescer, com a China na vanguarda”

“A mesa virou e o Sul Global está a crescer, com a China na vanguarda em todas as áreas”

Entrevista com Elizabeth Ross, curadora do Festival de Artistas de Vídeo Chineses

 

Chama-se a si própria Yueniang, a Senhora da Lua. Elizabeth Ross, mexicana, é tão ambiciosa como o programa lunar da China. E como artista, Yueniang adora a China, tanto no seu gesto antigo como no seu gesto hipermoderno. É por isso que a curadora quer celebrar o 10º aniversário do seu festival internacional de videoarte na China. A China Edition 2025 realizar-se-á em Pequim: Gaze from The East, 《东方之眼:地标中国》

 

JO: Fale-me do seu “yuanfen” 缘分 com a China. Quando é que começou e o que é que o viciou?

ER: Mmmmh, talvez quando recebi um talismã de cerâmica como presente em 1999, e nele estava gravado o carácter chinês “yuan”. Ou talvez quando estava a ver guerreiros a voar sobre os telhados nos filmes wuxia. Os meus filhos e eu adoramo-los! A verdade é que não consigo identificar o início. É como um amor subtil que se aprofunda cada vez mais com o tempo, entrelaçado com muitas vidas do passado e do futuro. É, como disse, yuanfen, um emaranhado predestinado… Em todo o caso, decidi aprender chinês quando vivia em Espanha, por isso foi nessa altura que me lembro claramente de abraçar a sinicidade de todo o coração.

JO: O que a motivou a criar o festival? Sentiu que a China vai estar na vanguarda da cena mundial e que os artistas de vídeo chineses vão ser um fenómeno? De que forma?

ER: Lembra-se certamente dos anos 90, quando a arte contemporânea chinesa surgiu na cena mundial e se tornou o tema de conversa da cidade. Foi uma descoberta sensacional da China pelo Ocidente! Durante esse período, muitos artistas que eu conhecia foram à China para participar em exposições, programas de residência, projectos de curadoria, etc. Pensei para mim próprio: “Porque é que eu não estou lá?” Eu devia, eu vou, eu tenho de lá estar também!

Mas na altura não conhecia ninguém que me pudesse ajudar, por isso tive de esperar. No final de 2009, quando vivia em Espanha, uma das minhas ex-mulheres acolheu três jovens artistas chineses num programa de residência e uma delas contactou-me. Ela vive em Wuhan. Convidou-me para fazer parte de uma exposição que estava a organizar no ano seguinte. Foi assim que tudo começou. O resto é história.

JO: A China não é só emoção e entusiasmo. É preciso muita paciência, não é?

ER: Sempre quis fazer algo com a China, algo que me pertence e que eu criei. Quando os anos 90 acabaram, já ninguém olhava para a China. A China foi esquecida por toda a gente sem mais nem menos. Mas a China tornou-se parte de mim, não foi uma questão de tendência. A China enraizou-se no meu coração. Apercebi-me de que levar obras de arte físicas para a China é caro, por isso a videoarte tornou-se uma escolha natural para mim. Depois de falar com um amigo artista chinês, decidi mergulhar nas águas do festival. E descobri que a videoarte é um fenómeno que merece ser exposto! Descobri também que todas as universidades chinesas têm uma faculdade de artes e que existem milhares delas. A animação chinesa surpreendeu-me com os seus visuais únicos que têm raízes na tradição ancestral que alimenta os criadores e os artistas. Viver na China foi uma experiência avassaladora que tornou mais forte o meu amor pelo país e pelo seu povo.

JO: Porquê o olhar do Oriente? Porque é que é importante observar o mundo atual e as tendências culturais a partir da perspetiva oriental/chinesa?

ER: Bob Dylan, Prémio Nobel da Literatura, cantou “The times they are a’changing”. Os tempos mudaram, isso é certo. No entanto, sinto que ainda estão a chegar grandes mudanças. A mesa virou e o Sul Global está a crescer, com a China na vanguarda em todas as áreas. O Ocidente está a perder relevância em todos os sentidos. Penso que o Ocidente deveria olhar para si próprio e aprender uma ou duas coisas. A China está, sem dúvida, a tornar-se o centro do nosso mundo actual. O seu contributo tem um impacto poderoso. Sinto que nós, na América Latina, temos mais em comum com a China do que, por exemplo, com a França. Por isso, decidi levar o festival para a China e partilhar o ecrã com a América Latina e as vozes espanholas. Esta ponte artística será alucinante e emotiva.

JO: Fale-me mais sobre a China Edition 2025. Quais são os países que vão participar?

ER: Nunca consegui levar o Festival à China, vai ser um grande desafio para mim. Mas chegou a hora, não posso esperar mais. Actualmente, participarão artistas de quatro países de língua espanhola, incluindo o México, o Peru e a Costa Rica da América Latina e a Espanha da Europa e, claro, a China e os artistas de vídeo chineses, independentemente do local onde vivam. Ainda estou na fase de planeamento. Estou interessada em chegar a um público mais vasto e diversificado. Já estou a ficar louca da cabeça quando penso na quantidade de trabalho. A China é uma obrigação. Dentro da China, Pequim é uma obrigação. Tenho a sorte de ter a KiWen International Culture and Art Co. Ltd. como meu colaborador especial na China. A empresa foi fundada como resposta direta ao apelo do presidente chinês Xi Jinping para o renascimento da China. Estou muito entusiasmado com a possibilidade de criar confiança cultural juntamente com os meus colegas artistas e criadores.

12 Nov 2024

Stultifera Navis

Designar a loucura não é tarefa fácil, e muito menos está isenta de preconceito, a sua lata complexidade que ao longo do tempo também foi mudando, terá de nós humanos os tratados mais apaixonantes de que há memória. Falar dela é mencionar o parente comum que nos une, daí que toda a sua soberania que alguns ilustram, mais não seja que um alto grau da sua consciência. Parece quase um paradoxo, mas sim: a loucura tem consciência de si mesma.

Reportando-nos a exemplos simples, aqueles que sempre nos parecem os mais lúcidos, tempo houve em que os loucos varridos não tinham nem hospitais, nem prisões, e a sociedade embarcava-os para lugares remotos, mas não muito distante ele se encontra de um país que só tinha “embarcadiços”: poder-se-á afirmar que eram os que estavam junto à costa, mas a costa tem também as costas largas, e o que se viu realmente é que se foram de facto quase todos nos embarques, ficando os mais bisonhos em terra firme produzindo de forma metódica graus de loucura que somente não foram navegáveis, havendo ainda uma estranha ideia que o movimento de um barco apazigua este mal. Que por estas e outras bandas, um louco era só um louco, e não um relapso, um judeu, um mouro, um cigano…era essa outra coisa, tendo a sociedade mansamente ordenada visto em muitos deles elos sagrados. Estavam fora do baralho, que hoje semanticamente apelidamos de ” caixa”.

Todos nós temos ainda muito presente (mesmo que seja antigo) o monumental filme de Fellini – «E la nave va» – de sinopse rocambolesca, cenários eloquentes, onde o espanto de uma ópera flutuante nos segue ainda ao fundo como a mais alta instância da capacidade humana para gerar encanto, e de um romance anterior de Kaherine Anne Porter «A Nave dos Loucos», ou seja, nós reflectimos nestas capacidades artisticamente belas, seus enredos e discursos, que ninguém que não seja imensamente criativo poderá analisar, mas quando nos deparamos com Bosch, bem lá ao fundo deste tempo, conseguimos resolver de uma só vez a subliminar ofensa que a uns destrói e a muitos enaltece. A mais bonita sensação vem-nos ainda de que não falamos de uma Arca, mas de coisas mais tangíveis, como navios, composições flutuantes, barcas, com seres que enfrentam o martírio risível de se verem confinados a si mesmos. O plano de fuga só se deu através de um ostracismo caritativo que a partir do Dilúvio nos faz parecer a todos doidos.

A mudança de percepção acabará por nos influenciar de forma esmagadora «Le bateu ivre» onde Rimbaud nos dá outra perspectiva daquilo que pode ser somente um estado de consciência alterado, e mesmo assim nos convida a entrar em sua matéria poética como taumaturgos. Esta experiência parece contudo quase imperceptível, que todos entrámos nos «Paraísos Artificiais» que pouco ou nada nos dizem da loucura total que habita cada um.

Nostalgicamente nos dirá Foucault: “o barco da loucura não navega mais o rio, ficará atracado, retido e seguro, no hospital. Esta é a grande mudança: o embarque, a partir de então, será para um único lugar: o internamento. A desordem da nau dos loucos, encontrará o frio ordenamento do asilo”.

30 Out 2024

China: Uma civilização sem mitos de criação?

Por André Bueno

Introdução

Existiria alguma civilização que não teria se preocupado em criar e preservar suas narrativas míticas de origem? A pergunta parece insólita. Quaisquer coletâneas de narrativas religiosas nos mostram, após uma ampla e segura pesquisa, que praticamente todas as culturas antigas possuíram seus mitos criadores. (Eliade, 1978).

De fato, tornou-se quase natural, para nós, acreditar que todas as sociedades têm um ou mais mitos fundadores. Isso se deve a alguns fatores fundamentais: as investigações no campo da História das Religiões nos mostram que a preocupação com tradições de cosmogênese são praticamente um padrão no pensamento humano, desde os tempos mais antigos. (Eliade, 1991)

Dois elementos contribuiriam para reforçar essa preocupação: primeiramente, a Filosofia Grega, em busca das origens da natureza, dedicou-se a estudar o início de tudo (Arché ἀρχή), contrapondo-se aos mitos de origem, e defendendo, do modo geral, que o funcionamento do universo só poderia se dar por meio de uma única lógica fundamental; posteriormente, o Cristianismo defenderia também uma concepção monogônica, fundamentada na criação divina, que consolidava a ideia de uma fundação singular – e, ainda que essa concepção pudesse ser considerada como “mítica”, seu estabelecimento gradual, ao longo da história, tornou-a um ponto crucial em qualquer investigação científica até um período recente de nossa história. Assim, podemos dizer que o estudo das práticas religiosas de qualquer civilização, em seus amplos aspectos, pressupõe a existência de alguma crença de criação ou origem. E nesse caso específico, a China novamente nos apresenta problemas notáveis e de difícil solução.

Desde o século 16, quando os missionários cristãos começaram a aportar na China, notaram nas documentações historiográficas e canônicas a ausência de mitos de criação. Algumas tradições, esparsas, estavam presentes no folclore e nas práticas do Daoísmo, sem que representassem uma crença realmente consolidada de origem mítica. Além disso, o rastreio desses mesmos mitos mostrava que eles eram bastante tardios em relação ao início histórico da civilização chinesa. A literatura intelectual, contudo, não abordava esse aspecto – considerado tão fundamental para o pensamento ocidental, mas pouco relevante para os chineses.

Os letrados (Ru 儒), especialistas em história, filosofia e ciências, bocejavam quando questionados sobre essas tradições de origem, que eles mesmos consideravam irreais. De fato, as narrativas mais antigas, preservadas em documentos como o Yijing 易經 (Tratado das Mutações), o Shujing 書經 (Tratado dos Livros) e o Liji 禮記 (Memórias Culturais), que tratam das eras mais distantes da cronologia chinesa, repetem sempre uma descrição humanizada do passado chinês. O povo vivia em situação similar à que descrevemos como “pré-histórica”, sem qualquer referência a uma origem anterior. Quando demandados sobre isso, os acadêmicos chineses davam duas respostas distintas: uma de caráter prático, afirmava que nenhum ser humano estaria presente nessa origem, e por isso, não poderia saber como ela se deu; a outra, de cunho científico e especulativo, propunha não uma cosmogonia, mas sim uma cosmologia, para explicar as origens e a criação do universo.

Isso nos lançaria diante de um caso único na humanidade: seria a cultura chinesa desprovida de mitos de criação? O problema se desdobra em vários âmbitos, quer sejam: a existência de uma exceção reveladora quanto à sistematização da história das religiões; uma quebra na insistência, essencialmente Ocidental, de ler o mundo apenas por seu prisma, de forma exclusiva; por outro lado, a constatação do pouco conhecimento que temos da história chinesa, e das próprias visões que os chineses têm sobre essa questão.

O que examinaremos em nosso texto, portanto, é o debate, que ainda se desenvolve, sobre o problema da China ter ou não seus mitos de criação. Para isso, examinaremos brevemente os discursos sinológicos contra ou a favor dos mitos criadores na China antiga, e seus problemas; em seguida, analisaremos algumas passagens documentais chinesas, que ilustram esse debate; por fim, quais as considerações que os próprios chineses fazem sobre isso, através da análise de algumas produções históricas chinesas. Como contexto temporal, definiremos o período limite do século +3, quando teria surgido um primeiro mito de criação nas fontes chinesas, como veremos adiante.

Uma definição conceitual

Antes de começarmos nossa investigação, precisamos, porém, definir alguns termos básicos. Do que estamos a tratar quando falamos de mitos chineses? Podemos aceitar que os pensadores da China antiga lidavam com cosmogonias ou cosmologias? Esses dois conceitos são fundamentais, e a maneira – sutil – como eles são aplicados no contexto sinológico revelam, para nós, alguns dos problemas que precisaremos enfrentar.

Tomo como ponto de partida as definições de cosmogonia e cosmologia de Abbagnano (2007, p.226). Cosmogonia (κοσμογονία) seria o “Mito ou doutrina referente à origem do mundo”, ou seja: uma proposta de compreensão acerca das origens calcada em tradições, orais ou escritas, cujo fundamento seria essencialmente religioso. Como característica básica da cosmogonia, o critério para sua aceitação era a fé no mito, ele próprio estruturador de sua lógica interna.

Já a cosmologia (κοσμολογία) seria uma tentativa racional de compreender as origens e o funcionamento do universo, desligando-se (a princípio) da crença dogmática e religiosa. A cosmologia tentaria explicar o mundo pelo raciocínio baseado na observação dos fenômenos da natureza, buscando sistematizar suas leis e seus princípios. Isso implica dizer que a cosmologia pode negar as tradições míticas, se contesta as origens do universo; todavia, se o questionamento cosmológico se circunscreve a tentar compreender a ecologia da natureza (desligando-se da questão temporal), ela poderia aceitar a presença dos deuses na fundação do cosmo. Por fim, a abordagem cosmológica pode mesmo supor que os deuses existiriam, desde que submetidos a uma ordem natural, passível de uma explicação racional. No caso específico dos gregos pré-socráticos, a cosmologia teria sido a primeira abordagem contra as tradições míticas, construindo a perspectiva investigativa das ciências, e propondo sistemas de interpretação da natureza (Bornheim, 1998).

E como essas definições se aplicariam ao caso chinês? Como veremos, a questão é que as narrativas que consideramos como cosmogônicas estão praticamente ausentes da antiga literatura chinesa, e as evidências materiais apresentam-nos os cultos primitivos, mas não mitos de origem. Por outro lado, o mais antigo texto chinês conhecido – o Yijing – é o primeiro tratado de ciências da China antiga, caracterizando um complexo sistema de cosmologia criativa. Nele, é proposto um sistema de interpretação da natureza, codificado em símbolos e esquemas matemáticos, cujas atribuições equivaleriam a propriedades elementais da natureza. Isso poderia qualificá-lo como um texto cosmológico; mas a relutância dos sinólogos, calcada em muito em preconceitos culturais e religiosos, costumeiramente classificou o livro como “místico”, atribuindo-lhe uma imagem cosmogônica. Essa visão era corroborada pelos próprios chineses, que vulgarmente usavam o livro como oráculo; por entender que ele explicava racionalmente a natureza, então, o desenrolar dos acontecimentos e das coisas poderia ser compreendido, em suas leis e dinâmica, pela consulta ao livro! Notemos, pois, que o uso das conotações “cosmogonia” e “cosmologia” pode receber caracteres pejorativos ou deturpados, se não houver cuidado com sua utilização. Utilizaremos esses termos, aqui, buscando aproximá-los o máximo possível da interpretação que os próprios chineses dariam aos seus textos, segundo suas tradições historiográficas. Isso implica, claro, na presença de controvérsias e debates acerca dessas mesmas interpretações: no entanto, veremos que as discussões sobre a mitologia e a cosmologia chinesa continuam a ser atravessados pelos mais diversos preconceitos ou projeções, dificultando uma compreensão mais ampla sobre as possibilidades do caso chinês.

(continua)

André Bueno escreve em Português do Brasil

29 Out 2024

Huang Yuanjie, a pintora para além dos Terraços de Jade

Li Yu (1611-1680), o editor do célebre Jieziyuan Huazhuan, o «Manual do jardim do grão de mostarda» em 1679, um guia para o ensino e compreensão da pintura através de exemplos reconhecidos, foi também um dramaturgo em cujas peças se pode perceber o tempo de inquietação em que viveu, o da transição Ming-Qing.

Parecendo perdida aquela força harmoniosa que «faz mover o sol e as outras estrelas», toda a esperança era colocada nas relações interpessoais, e entre estas em especial as que ocorrem entre um homem e uma mulher, entendidas como vontade de cumprimento do princípio arquétipo do yin e yang.

Peças como O pavilhão das peónias de Tang Xianzu ou O leque das flores de pessegueiro de Kong Shangren, diziam esse encontro de modo espiritual e poético. Nas peças de Li Yu, porém, essa intenção tinha uma forma subversiva e inesperada. Como na peça Yizhong yuan, que se pode traduzir como «No limite da sinceridade», traduzida em inglês como A much desired match, ou em francês como Unions idéales.

Nela, duas mulheres pintoras com claras afinidades artísticas, falsárias do trabalho de seus maridos, também pintores, chegam numa cena, com uma delas vestida de homem, a realizar um falso casamento entre elas, seria objecto de um prefácio e um comentário elogioso, escritos por uma mulher literata e pintora cujo trajecto admirável brilharia para lá do fim dos Ming.

Huang Yuanjie (c. 1620-1669) já era falada desde os anos de 1630 por vender os seus poemas, caligrafias e pinturas, algo incomum numa mulher daquele tempo. Nascida em Jiaxing (Zhejiang) no seio de uma família de literatos, casada com um letrado que não passou o exame jinshi, a sua biografia confunde-se com a era do desassossego ao ser raptada e, conseguindo evadir-se, é albergada numa casa de família de notáveis em Zhenjiang (Jiangsu) instalando-se por fim num estúdio, onde vendia as suas caligrafias na margem do Lago do Oeste, em Hangzhou, junto da lendária Ponte partida.

Huang Yuanjie relaciona-se então com literatos como a cortesã e poeta Liu Rushi (1618-1664) ou a também antiga cortesã, poeta e pintora Xue Susu (c.1564-1650?). Desse tempo de intensas trocas de pinturas e poemas, transportados ao longo da rica região de Jiangnan por viajantes inquietos, serão exemplos dois leques com pinturas que estão no Museu do Palácio Nacional, em Pequim.

Num deles, uma Paisagem (tinta sobre papel dourado,16,2 x 51,2 cm) estão figurados dois salgueiros, duas montanhas e um casal navegando dentro de um barco coberto.

No fim da sua vida, Huang Yuanjie ainda foi perceptora, ensinando as belas letras em casas de famílias abastadas. Ela, que bem conhecia esses lugares interiores em que mulheres literatas viviam confinadas a que no séc. VI, Xu Ling chamou «terraços de jade» não se conformou, deixando-se tocar pela estranheza do lado de fora.

28 Out 2024

Conto Fantástico ao jeito de Pu Songling

Ana Cristina Alves,

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

21 de outubro de 2024

Pu Songling (蒲松齡) viveu no início da dinastia Qing 清(qīng), entre 1640 e 1715, legando à posteridade uma das obras mais notáveis da literatura chinesa, traduzida para inglês como Strange Tales from a Chinese Studio e para português como Pu Songling Contos de Fantasia Chineses. O Título original é Liaozhai Zhiyi (聊齋誌異Liáozhāi zhìyì), sendo Liaozhai “o estúdio das conversas” onde o mestre-escola compunha as seus contos fantásticos; ele, que nunca conseguiu passar nos exames imperiais a nível provincial, apenas tendo adquirido o grau distrital de xiucai (秀才xiùcái), que significa numa tradução literal “talento cultivado”, viveu longo tempo no campo, onde pôde recolher os contos fantásticos, em circulação desde as dinastias Tang (唐Táng) e Song (宋 Sòng), aos quais juntou muitos da sua lavra, tendo legado 491 contos, de acordo com a informação da Library of Congress, reunidos em 16 volumes, que inicialmente não passariam de 6. O professor do campo levou uma existência obscura e pobre, mas feliz, no que à expansão da sua criatividade diz respeito. Malquistou-se, no entanto, com o sistema de exames imperiais, que falhou ao nível provincial, o que lhe daria acesso a uma vida confortável isenta de preocupações materiais. Tal talvez o tenha despertado para a revelação da injustiça do sistema, que deixava grandes talentos de lado, sobretudo quando estes vinham de famílias menos favorecidas, sem terem o que era conhecido por “privilégio sombra”, assim como sucedia ao escritor, oriundo de uma família da classe média empobrecida. O seu talento acabou, de algum modo, por ser reconhecido ainda em vida, quando aos 71 anos lhe foi concedido um título, mais pela obra literária, do que pelos feitos eruditos, “tributo ao estudante” (贡生 gòngshēng). Meio século depois da sua morte, o seu trabalho tornou-se muito popular sendo, publicado na segunda metade do século XVIII (1766) em chinês, em Hangzhou, e nos séculos XIX a XXI traduzido para inglês por Herbert A.Giles (1880); John Minford (2006); Sidney Sondergard (2008-2014), mas também para alemão, russo e português. Nesta última língua, surge numa edição ligada à Universidade de Macau, publicada na Editora Moinhos em 2022, tendo sido traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian; contou também com tradução e revisão da docente Ana Cardoso.

Yao Jingming/ Yao Feng, na introdução à tradução intitulada Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses, resume: “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). As “raposas-humanas” encarnam um ideal de mulher pouco comum à época, já que cortam com as submissões e obediências tradicionais às hierarquias e convenções sociais para assumirem papéis capazes de revolucionar em nome de sentimentos universalmente acarinhados, como o amor, a amizade ou outras tonalidades afetivas condensadas no conceito de “sentimento” (情 qíng), que se desdobram em paixão sexual, amor abnegado até à busca de bens por todos desejados, como a felicidade. O escritor mostra grande preferência por histórias de amor entre mulheres fantasmas e/ou raposas encantadas e intelectuais pobres, talvez por estas de algum modo refletirem a sua condição existencial. Explora ainda todas as variantes do mundo sobrenatural, de seres fantasmagóricos a verdadeiros demónios. Além disso denuncia, em vários contos, a corrupção e os oficiais ímprobos daqueles tempos, muito concentrados na satisfação de interesses egoístas, alheios às dificuldades do comum dos mortais.

Um conto biográfico ao estilo de Pu Songling

Pu Songling estava muito empobrecido, o que já vinha sendo um hábito na sua família. O seu pai nunca conseguira prosperar nos negócios, sofrendo concorrência acirrada dos colegas de profissão. Na verdade, os seus negócios mal davam para sustentar a família, por isso o filho ficou louco de alegria quando chegou a casa com a notícia de que havia sido bem-sucedido no exame imperial. Era um xiucai2. Se a vida lhe continuasse a sorrir e se preparasse com afinco para os próximos exames, poderia vir a obter o grau máximo nas provas, seria então um jinshi3. A partir daí, as portas da riqueza, abrir-se-iam para ele e sua família. Talvez fosse convidado pelo imperador para a Academia Hanlin, onde estavam reunidos os melhores intelectuais de toda a China. Teria assistentes, uma ou várias mansões luxuosas, carruagens com fartura, um séquito de serviçais e, por último, mas não na ordem das emoções, uma mulher belíssima à qual seria fiel até à morte, porque casaria apenas uma vez. Se ela não conseguisse dar-lhe descendência, então tomaria uma concubina só para efeitos de procriação. Para quê dispersar o seu amor? A sua consorte havia de ser tão bonita e mágica como uma raposa encantada.

Quanto maior é o sonho, mais dura é a queda. Três anos volvidos, Pu Songling falhava o exame para jinshi. Sentiu-se miserável. Com o coração envenenado, como o de uma mosca, dirigiu-se para Taishan, onde viveria como eremita. Não tinha nem coragem, nem vontade de enfrentar a família. No caminho, passou por Qufu, prestando homenagem a Confúcio. Sentia-se terrivelmente injustiçado. Tinha consciência de que o chumbo não fora merecido. Os examinadores eram incompetentes, um deles era ignorante, como poderia ele entender a sua excelsa prosa? O outro incompetente e facilmente subornável, já que a única linguagem que entendia era a do dinheiro. E com ele haviam-se candidatado tantos nobres e rapazes de famílias ricas… Ora ele, em termos de nome, infelizmente nada tinha para mostrar. A sua ascendência não era ilustre nem poderosa e quanto a riqueza, o seu progenitor suava-a a cada dia para colocar o arroz em cima mesa. Enfim, o seu coração transbordava de tristeza e ódio à medida que se dirigia para a terra do Grande Mestre. Mas se o coração estava envenenado, o espírito continuava vivo e curioso. Assim, como que a temperar-lhe a jornada, foi escutando os relatos de histórias fantásticas, muito antigas, que remontavam à grande dinastia Tang e até a posteriores, que o povo, com a sua memória prodigiosa ia retendo e lhe fazia o favor de contar.

Quando chegou a Qufu, já ia mais animado, pois pensava em registar os relatos de fantasia, naquele que havia de ser o seu “estúdio das conversas”, bem no meio da montanha, onde certamente teria o privilégio de receber a visita de fantasmas e raposas encantadas.

No templo, prestou homenagem a Confúcio, mas ia tão cansado, que se sentou, cerrando as pálpebras. De repente, tinha o Grande Mestre a seu lado, dirigindo-lhe a palavra:

– Não estejas tão desesperado. Poderás não ser rico nem famoso nesta vida, mas serás recordado pela humanidade para todo o sempre. Deixarás uma obra notável, que servirá de inspiração e alegria a muitas gerações.

– Grande Mestre, o que me diz não me deixa nem um pouco regozijado, pois prevejo uma vida dura e cheia de trabalhos para mim. Foi tão injusta a minha reprovação nos exames! Vi os outros candidatos. Muitos deles, nem sequer tinham lidos os Quatro Livros e os Cinco Clássicos, estavam lá porque compraram os examinadores.

– Pu Songling, sabes bem como me bati por uma verdadeira nobreza intelectual. Em vida, também não fui reconhecido, mas nunca deixei que os obstáculos criados me afastassem do verdadeiro Tao. A minha conduta foi sempre irrepreensível, orientada pelas Cinco Virtudes Constantes, por isso ainda hoje me respeitam no Império do Meio.

– Mestre, tem razão, não me posso deixar abater pelas circunstâncias adversas. Farei por honrar o meu destino, agora que mo revelou, enquanto estiver em Taishan, escreverei com afinco todas as histórias que fui aprendendo no caminho.

– Como disse nos Analectos há muito tempo, um cavalheiro deve possuir conhecimento vasto, não é um utensílio4. Serás um sábio na aceção mais alargada, reunirás mundos, o material e o espiritual, o visível e o invisível: terreno, paradisíaco e subumundo. Trarás alegria e beleza à vida das pessoas; contenta-te, pois, com a tua sorte, segue o teu caminho e não olhes para trás. Ainda nesta existência serás recompensado com um título honorífico em reconhecimento aos teus dotes literários.

Pouco depois, deixou de escutar Confúcio. O templo silencioso, indicava que estava sozinho, talvez a conversa entre ambos não tivesse passado de um sonho. Porém, parecia-lhe tudo tão real. Seguia esperançado, cheio de vontade de registar as suas histórias, já que era por elas que iria ser recordado. Não teria benesses em vida, mas muitas honras depois de morto, o que era bem melhor do que nada.

Escolheu bem o seu refúgio, ocupando uma cabana deixada por um eremita que o antecedera, quem sabe não teria também ele sido uma das vítimas dos exames imperais. Dedicou-se ao trabalho com afinco e foi esquecendo as misérias por que passava, ou até purgando-se delas quando as registava em contos. Ridicularizava, sempre que podia, os examinadores imperiais, denunciava desmandos e maus tratos, descrevia as penas e humilhações por que passavam os examinandos, coitados! Nos exames, à chegada pareciam mendigos, depois seguiam-se as apresentações em que recebiam tratos de prisioneiros, dentro dos horríveis cubículos eram vespas encurraladas e dormentes. Saíam daquelas gaiolas como aves doentes. Enquanto aguardavam pelos resultados comportavam-se como orangotangos. Depois, se eram rejeitados, os seus corações enchiam-se de veneno. Eram moscas envenenadas e sofredoras a digerir os péssimos resultados, até renascerem como pombos esperançosos em busca da construção de um novo ninho. Ele encontrava-se a libertar o veneno, à procura de um renascimento, não como pombo, já que não tencionava voltar a tentar a sua sorte nos exames imperiais, mas como melodioso rouxinol. O seu esforço era visível e a obra crescia de dia para dia. Os contos eram tantos que seriam necessários vários volumes para os registar.

Numa noite de tempestade, em que o vento soprava forte e o frio se fazia sentir, muito agreste, penetrando gelado até aos ossos, sentiu uma presença aromática no quarto. Cheirava tão bem, levantou os olhos e viu uma mulher estonteantemente bonita à sua frente. Parecia uma imortal, ou pensando melhor, uma deusa. Ela assim falou:

– Perdi-me na noite escura, não sou capaz de encontrar o caminho de volta para a minha aldeia. Importava-se que ficasse aqui consigo? Tenho tanto medo, está tanto frio…

– Receio que esta choupana não seja digna da presença de uma menina tão bela e fina, no entanto tenho muito gosto em recebê-la. Permita que lhe sirva um chá – disse ele, enquanto se afastava para o fundo da cabana. Quando regressou, deu com ela debruçada sobre os seus papéis.

– Que linda história está a escrever, é sobre um letrado solitário e uma raposa encantada. Pelo modo como descreve a rapariga parece uma deusa.

– Isso foi antes de a ver a si – disse ele estendendo-lhe a chávena de chá- agora vou refazer o texto, porque a sua imensa beleza me inspirou. Com toda a sinceridade, é a primeira vez que encontro uma mulher com a sua finura, graciosidade e leveza.

– Ora, ora, fala assim, porque se encontra aqui fechado há muito tempo. Precisa de se distrair um pouco. Não quererá ajudar-me a despir as luvas e o casaco. A minha indumentária, é muito complicada e infelizmente perdi-me das empregadas, umas joias de raparigas, mas devem ter-se assustado com a tempestade, talvez estejam para aí escondidas, o certo é que já as procurei e não há meio de dar com elas.

– Pu Songling não se fez rogado. Ajudou a bela donzela a despir o casaco e tudo o resto. A seguir foram para a cama e fizeram amor. A cabana tinha-se transformado num belo palácio. A cama onde estavam deitados, possuía agora finos lençóis de linho bordados e no ar pairava um agradável aroma a flores, talvez a rosas ou seriam peónias? Foi uma noite muito divertida e bem passada. Ela contou-lhe cenas fantásticas do sítio de onde vinha. Depois adormeceram. No dia seguinte, quando o letrado abriu os olhos, a donzela já tinha desaparecido. Deixara, no entanto, um pequeno lenço vermelho bordado aos pés da cama. A casa voltou a ser uma cabana, mas parece que a misteriosa beldade o visitou noutras noites ao longo de todo o inverno e sempre que aparecia espalhava graça e magia em seu redor.


Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2005. A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias.
“論語》1994. Analects of Confucius. Tradução. para Inglês de Lai Bo (赖波) e Xia Yu He(夏玉和) e para Chinês Moderno de Cai Xiqin (蔡希勤) 北京,華語教學出版社.
Wang, Jeffrey. (2018),” The Strange Tales from Liaozhai” Library of Congress Blogs
https://blogs.loc.gov/international-collections/2018/10/the-strange-tales-from-liaozhai/, 2018, 29 de outubro.
Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.
Este conto é inspirado numa das muitas histórias de fantasia que o escritor nos legou, intitulada “O Erudito Wang Zian” e, particularmente no Comentário do Autor, no qual expõe, numa reflexão certeira, as sete facetas do calvário do xiucai.
Grau conferido pelo exame imperial de nível distrital.
Último grau atribuído pelo exame provincial.
Analectos de Confúcio, Fazer Política, II.12 論語•為政第二《子曰:君子不器》

23 Out 2024

Inundações no Huanghe e Rio Huai

A construção de embarcações na China começou por volta do ano de 9000 a.n.E. a partir de materiais existentes nas zonas de lagos e rios, sendo feitas jangadas de troncos unidos ou de canas de bambu, assim como largos cestos elaborados com caules secos entrelaçados de plantas, ou de bóias usando as peles interiores insufladas de gado ovino.

Já a aproximar-se do estilo da piroga, grossos troncos de árvores escavados como demonstra o enorme barco exposto em Yang Cheng, actual Changzhou. Na altura, as correntes das águas eram aproveitadas na locomoção. Depois começou a utilizar-se canas para, como alavanca e apoiadas no fundo do rio, mover com a força dos braços a embarcação e permitir assim orientá-la. Daí até aos remos serem concebidos foi um pequeno passo. Por volta de 5000 a.n.E. apareceram as velas a permitir aos barcos percorrerem maiores distâncias com a ajuda dos ventos.

Num estudo geográfico e geológico percebem-se as grandes mudanças ocorridas após a última glaciação, entre os vinte e dez mil anos antes da nossa Era, quando a comida oferecida pela Natureza rareava e houve necessidade de a plantar, iniciando-se assim há dez mil anos a Revolução Agrícola.

No período compreendido entre os anos 8000 e 1300 a.n.E., a China registou sete grandes inundações e as alterações climáticas acompanharam as ocorridas na placa continental euro-asiática. Com o degelo, as águas jorraram por todo o lado, tanto a Oriente como a Ocidente da placa euro-asiática e em 7600 a.n.E. formou-se em longitude um grande lago na Ásia. Desse enorme manto de água sobra hoje apenas alguns grandes reservatórios como os mares Negro, Morto, Cáspio e o Aral, assim como os lagos Baikal e Balkhash. As áreas de cultivo avançaram para Norte e famílias com rebanhos partiram para as estepes, a viver nómadas atrás dos pastos.

Na época dos Três Ancestrais Soberanos (San Huangs, 3000-2600 a.n.E.) e dos Cinco lendários Imperadores (Wu Di, 2600-2070 a.n.E.) ocorreram episódios de inundações descritas em anteriores artigos.

Segundo o livro Shui Jing Zhu [escrito por Li Dao Yuan durante a dinastia Norte no período do Reino Wei do Norte (386-534)], o Rei Yu (Da Yu, 2070-2035 a.n.E.) para resolver o problema das cheias do Rio Amarelo (Huanghe) rasgou canais a colocar a água a vazar para Sul e assim a distribuiu pelos nove rios da região afluentes do Huaihe, preparando o que mais tarde seria o Canal Honggou, a ligar esses dois rios.

No Noroeste da China, em Qinghai, na zona da Garganta Jishi ocorreu em 1920 a.n.E. uma grande inundação após um tremor de terra destruir importantes diques, dispersando muitos sedimentos pelo leito do Rio Amarelo na área de Xunhua [100 km a Oeste de Lanzhou], criando obstáculos às águas dificultando o seu percurso para a foz. Estas cheias afectaram dois mil quilómetros do leito do Huanghe, enterrando-o de sete a cinquenta metros abaixo do nível actual do rio. Ao longo dos tempos, o Rio Amarelo mudou de trajectória e provocou graves cheias, a inundar constantemente as povoações das margens. Em 138 a.n.E. registou-se inundação e fome na sua bacia baixa.

Em 1191, o Huanghe sofreu uma nova mudança de curso, dirigindo-se mais para Sul e nos 700 anos seguintes o seu trajecto mudou por diversas vezes. Em 1194, na província de Henan o Rio Amarelo abriu uma brecha no dique junto a Yuanyang, levando muita da sua água a transbordar para o Rio Huai, situado a Sul e daí a desaguar no mar.

A cidade de Kaifeng, capital de muitas dinastias com o apogeu na dinastia Song, situada a alguns quilómetros da margem Sul do Huanghe, durante a sua existência assistiu a uma série de grandes e graves inundações. Tal levou os governantes da dinastia Ming a construírem um sistema de diques para a proteger, com resultados eficazes. Mas não foi somente a vontade da natureza a provocar calamidades. Em 1642, encontrando-se há seis meses a cidade cercada por tropas de camponeses revoltados e liderados por Li Zicheng, na esperança de conseguir afastar os sitiantes o governador Ming de Kaifeng ordenou a destruição das secções dos diques que a resguardavam das cheias. Como resultado, as tumultuosas águas do Rio Amarelo rapidamente avançaram sobre Kaifeng e perto de um quarto dos 380 mil habitantes morreu. Abandonada a destruída cidade, só passados vinte anos foi mandada reconstruir pelo Imperador Kangxi. Mas este rio continuou a ser o grande problema de Kaifeng, pois em 1849 a cidade ficou enterrada aproximadamente a dez metros de profundidade e, por isso, não existem construções altas devido ao medo de destruir os vestígios dessa época e, assim, apenas dois ou três edifícios públicos, como bancos e hospital, hoje sobressaem do casario térreo, segundo informa Deng Shulin.

Entre 1851 e 1855 as inundações do Rio Amarelo de novo alteraram a sua trajectória, desviando-a para Norte e em 1852 assumiu parte do curso do Rio Ji [desaparecido desde então], voltando o Huanghe a passar por Shandong, mas trazendo muitos sedimentos.

“Em 1855, o Huanghe destruiu o dique em Tongwaxiang, na província de Henan, fazendo no distrito de Lankao mudar a trajectória do Rio Amarelo de Sul para Norte e ir desaguar no mar de Bohai, em Shandong. Desde então o Grande Canal deixou de ser navegável para Norte. Os sedimentos levados pelas enchentes assorearam o leito do rio Huai e o impacto dessas variações foi tão forte que em 1897 se produziu a última modificação do Huanghe”, refere Deng Shulin.

No ano de 1931, a maior parte dos rios na China registaram inundações provocando a morte de dois milhões de pessoas e a destruição de casas e das culturas agrícolas, a originar fome. Tal deveu-se a uma longa seca entre 1928 e 1930. O Inverno foi rigoroso nesse ano com muita neve nas montanhas, que acabou por derreter no início de 1931 e a água chegou ao curso médio do Changjiang (Yangzi), quando chuvas torrenciais contínuas na Primavera provocaram inundações nos rios Huai e Yangzi, afectando quase todo o território.

A partir de 1976, os governos das províncias construíram um paredão nas margens ao longo do Rio Amarelo para o guiar até ao mar, estabilizando assim as margens.

RIO HUAI

Localizado entre o Rio Amarelo e o Changjiang, o Huaihe é um dos sete maiores rios da China com 1110 km de comprimento. Nasce na montanha de Tongbai, em Henan, e nessa província corre pela cidade de Xinyang. Após os afluentes Hong [a Sudeste de Henan] e Yinghe [em Anhui] desaguarem no Huaihe, aparece a cidade de Huainan, seguindo o rio a banhar Bengbu [Pengpu, a Norte de Anhui]. Já em Jiangsu, com a ocupação do seu leito pelo Huanghe, o rio Huai foi obrigado a passar pelos lagos Hongze e Gaobao em Huai’an, desaguando depois no Changjiang em Yangzhou. O Huaihe entra no lago Hongze (cujo fundo está cinco a nove metros acima do nível da terra e para onde fluem outros oito rios), seguindo para a cidade de Huai’an, onde o governo da República Popular da China considerou como solução para o Huaihe a abertura de um canal rumo ao mar a fim de eliminar as inundações na zona. Em 1952, completou-se esse canal de irrigação no Norte de Jiangsu, que começa em Gaoliangjian, passando pelo distrito Huai’an e desagua no Mar Amarelo (Huanghai). Este canal de 168 quilómetros de comprimento necessitou apenas de oitenta dias para ser construído por oitocentos mil operários que removeram oitenta milhões de metros cúbicos de terra, segundo informa Deng Shulin.

Huaiyin [actual cidade de Huai’an na província de Jiangsu] está situada na zona onde passam os rios Huaihe [cujo maior afluente é Yinghe, com 557 km de comprimento e origem em Zhoukou, Henan, seguindo por Anhui onde no concelho de Shou, na cidade de Fuyang desagua no rio Huai em Zhengyang guan], o Yihe [com 333 km comprimento nasce na montanha de Lu em Yiyuan, (Zibo, Shandong), segue por Linyi e já em Jiangsu desagua no lago Luoma (a Noroeste de Suqian, lago de água doce com uma área de 375 km² e conectado com o Grande Canal)]. Em Huai’an passa ainda o Rio Shu (Shuhe) e o Sishui [com 159 km, tem origem na montanha Meng em Xintai, província de Shandong e até 1194 corria por Jiangsu, quando o Huanghe abriu uma brecha e as águas do Norte entraram no Huaihe. Essas inundações desviaram o curso do Rio Si, passando este por Qufu e Yanzhou até desaguar no lago Nanyang.

Segundo os registos históricos, de 1400 a 1900, durante quinhentos anos, no Rio Huai registaram-se 350 grandes inundações. A inundação de 1680 submergiu a cidade de Sizhou. No vale dos rios Yihe, Shuhe e Sishui, ocorreram, entre 1368 a 1948, quarenta inundações e 86 secas o que levou, em 1949, o governo a mobilizar 580 mil operários para os regular. Em sucessivas dinastias os governadores não tinham prestado nenhuma atenção à construção de obras hidráulicas e as calamidades naturais repetiam-se, ano após ano.

Para eliminar as causas das inundações em Huaiyin tiveram os rios de ser regulados, tarefa que governo popular tomou a seu cargo. A cheia de 1949 foi a maior e a mais grave, quando 9270 mil mu (15 mu = 1 hectare) entre 12600 mil mu de terras cultivadas foram submergidas pelas águas e 1950 mil habitantes das zonas afectadas tiveram de receber socorros do Governo, segundo Deng Shulin, que refere ser Huaiyin (Huai’an) designada por “Galeria de Inundações” devido a ali se reunirem as águas provenientes das províncias de Henan, Anhui e Shandong.

22 Out 2024

A carta da Imperatriz para o Papa no tempo da mudança

Li Zicheng (1606-1645), o rebelde, entrara em Pequim no dia 26 de Abril de 1644, o imperador Chongzhen percebeu que não havia saída, escolheu um árvore numa colina da Cidade proibida e terminou os seus dias e com ele a dinastia Ming (1368-1644). O princípe herdeiro é feito prisioneiro e a 6 de Maio os altos funcionários que fugiram para Nanquim, a capital do Sul, proclamam imperador Zhu Yousong, o Princípe Fu, que entra na cidade a 17 de Maio. Seria o primeiro de três reinos em desespero que, juntos, seriam conhecidos como Nan Ming, os Ming do Sul.

Além de Zhu Yousong, que reinaria durante um ano como Honguang «A grande luz», o Princípe Tang, Zhu Yujian (r.1645-46) e Zhu Youlang, o Princípe Gui (r.1646-62) procuraram recuperar o poder da família reinante durante quase trezentos anos. Desse breve tempo de resistência e inquietação emergiram factos olvidados que fizeram emergir a coragem e a perseverança de indivíduos que caracterizaram a extrema situação de aflição.

Um desses inéditos eventos ocorreu no seio da família de Zhu Youlang (Yongli), quando este estava no seu palácio temporário em Zhaoqing (Guangdong) e, com outros altos funcionários, a sua mãe honorária Wang Huiling (1600-54), a sua mãe, a imperatriz viúva Zhaosheng (1578-1669) e a sua esposa principal Xiaogangkuang (?-1662) se convertem ao Catolicismo, adoptando os nomes respectivos de Helena, Maria e Anna. Também baptizado, o filho do imperador recebeu o auspicioso nome de Constantino, o imperador romano (r.306-37) que triunfou com o símbolo de Cristo.

Em conjunto as senhoras assinaram uma carta dirigida ao papa Inocêncio X pedindo-lhe ajuda no seu combate aos invasores Manchus. A carta, escrita a tinta sobre seda, foi traduzida para latim e levada em mão própria pelo missionário jesuíta polaco Michal Boym (c.1612-1659) que, atravessando incontáveis obstáculos, só graças à pertinácia do portador conseguiu chegar ao destino seis anos depois. Entre os literatos leais aos Ming, face à traumática revolução designada bian, «transformação», a atitude foi firme.

Yang Wencong (1597-1646) de Guiyang (Guizhou) deixou na sua arte marcas dessa firmeza. Pintor e poeta, serviu no reino do Princípe Fu em redor de Nanquim. Num álbum de pinturas de 1644 (tinta sobre papel, 30,2 x 24,8 cm, no Museu de Arte de Indianápolis), notam-se casas vazias no meio da paisagem figurada em pinceladas enérgicas e facundas mostrando a natureza forte e constante como o seu carácter leal.

A mesma lealdade que o jesuíta Boym demonstrou enfrentando proibições e prisões, conseguindo finalmente entregar a carta de Helena Wang ao papa, que entretanto era já Alexandre VII. E embora a resposta fosse pouco mais que a oferta de orações ele trouxe-a e, encontrando tremendas dificuldades, atingiu Guangxi em 1659 mas era demasiado tarde, já tudo mudara.

21 Out 2024

A história triste de Liang Shanbo e Zhu Yintai

Em 1959 foi composto por He Zanbao e Chen Gang um belo concerto para violino e orquestra onde a música sinfónica ocidental se combina com os sons da ópera tradicional chinesa, obtendo-se um fabuloso efeito de suavidade e ritmo, do trinar do violino ao ressoar dos gongos, do alarido cavernoso das trompas ao martelar cadenciado das castanholas de bambu, do ímpeto galopante dos tambores ao rendilhado esfuziante do dedilhar da pipa, uma espécie de alaúde.

O concerto intitula-se Liang Shanbo e Zhu Yingtai 梁山伯 祝英台, e em língua inglesa tem o subtítulo The Butterfly Lovers. Além da espectacularidade da música, o nome inglês desperta a curiosidade de descobrir quem seriam estes amantes borboletas. Não é difícil, trata-se de uma das mais famosas lendas chinesas.

Há 1600 anos nasceu na China a história trágica de dois jovens apaixonados chamados Liang Shanbo e Zhu Yingtai cujo enredo resistiu a todas as investidas dos séculos e continua hoje — interligando o real, o maravilhoso e o fantástico –, a passar de pais para filhos, inspirando não só músicos, mas também poetas, bailarinos, dramaturgos e pintores da China moderna.

No século IV da nossa era, Zhu Yingtai, uma jovem bonita e talentosa, vivia com os seus pais, algures nas margens sul do rio Yangtsé. Zhu estava desesperada porque queria estudar, mas as dificuldades pareciam insuperáveis dado que o acesso de uma mulher a qualquer escola era, na época, rigorosamente vedado. Zhu Yingtai elabora então um plano para cuja execução obtém a concordância do pai. Irá estudar na clássica cidade de Hangzhou, disfarçada de rapaz. Durante a viagem para Hangzhou encontra Liang Shanbo, um moço simpático que se dirige para a mesma escola. Serão companheiros de estudo, ao longo de três anos e tornam-se grandes amigos. Liang Shanbo nunca suspeita que Zhu Yingtai é uma rapariga e ela não lho diz, embora esteja profundamente apaixonada por ele.

Um dia chega uma carta do pai de Zhu, pedindo-lhe que regresse imediatamente ao lar. Liang acompanha-a durante parte da viagem e a moça, através de subtis insinuações, belas metáforas e trocadilhos, tenta fazer compreender ao jovem que o ama, e sugerir-lhe qual é o seu verdadeiro sexo. Mas o ingénuo Liang acha o seu amigo (amiga!) demasiado romântico e sentimental, e não suspeita de nada.

De novo em Hangzhou, Liang Shanbo encontra a esposa de um dos mestres da escola de ambos que lhe conta, numa longa conversa, que Zhu Yingtai é afinal uma bela e inteligente rapariga que, disfarçada de rapaz para poder estudar, acabou por se apaixonar pelo seu melhor amigo. Louco de alegria, Liang Shanbo decide ir, outra vez, ao encontro de Zhu Yingtai mas, chegado à cidade onde ela vivia, tem a surpresa de saber que o pai da moça já a havia destinado a esposa de um rico comerciante local. Por isso, a mandara regressar com tanta urgência. Zhu Yingtai, lacrimosa, afundada em tristeza, pede ao pai que não pense em negócios, que respeite antes o amor e a felicidade da sua filha. Em vão! O pai não cede.

Na varanda da casa, uma varanda semelhante àquela onde Shakespeare, doze séculos mais tarde, colocaria Romeu e Julieta, os dois jovens despedem-se, jurando amor e fidelidade na vida e na morte.

Liang Shanbo adoece gravemente e morre pouco depois.

No dia aprazado para o casamento de Zhu Yingtai com o rico mercador, ela recusa o vestido de noiva, veste-se de luto e no meio de uma tempestade, dirige-se para o túmulo do seu amado Liang. Cai soluçando sobre a sua sepultura. A natureza em fúria partilha a sua dor e revolta, chove intensamente, os trovões atroam os ares, as faíscas rasgam o céu. Abre-se a tumba de Liang Shanbo que recolhe o corpo de Zhu Yingtai.

A tempestade passou. No horizonte surge um esplendoroso arco-íris e o sol começa a brilhar num céu agora azul.

Do túmulo, onde jazem para sempre os corpos dos amantes, saem duas lindas borboletas que esvoaçam alegremente entre as flores e brincam, beijando-se no ar. Liang Shanbo e Zhu Yingtai estão, por fim, unidos.

A nós portugueses, esta lenda não nos faz recordar, embora com um ainda mais tétrico desenlace, o poema O Noivado do Sepulcro, do ultra-romântico Soares de Passos que, por sua vez, foi buscar o tema à Leonore do alemão Gottfried August Burger (1747-1794)? Já no século XII, em plena Idade Média, encontramos o mesmo tipo de amores e paixões desventuradas na famosíssima história de Tristão e Isolda. É possível a extensão ou continuidade de lendas orientais para enredos medievais europeus. E existirão, com certeza, coincidências: as gentes são iguais em toda a parte, Liang Shanbo e Zhu Yingtai não nos são estranhos.

16 Out 2024

Os Barcos de Maravilhas da Dinastia Ming

Zheng He (1371-1433), no regresso da sua quarta grande viagem (1413-15) em que comandou a maior frota de navios de madeira jamais constituída para exposição do poder e grandeza do Império, trouxe, além de enviados de trinta Estados, como tributo ao imperador uma girafa.

Trouxe-a de Bengala (no actual Bangladesh), um lugar onde esse animal não existia. Tinha vindo de África, como seria de esperar, já como uma oferta do rei de Melinde (actual Quénia) para esse Estado. Depois de observada pelo imperador Yongle, habituado a receber invulgares animais exóticos, alguns olhando o estranho animal, espantados com o que viam, disseram reconhecer nele o imaginário qilin, a quimera que se dizia surgir para anunciar o advento de um sábio.

Da girafa, colocada nos jardins imperiais onde foi cuidada, foram depois feitas pinturas que guardaram o seu inusitado aspecto. Num rolo vertical conservado no Museu de Arte de Filadélfia (tinta e cor sobre seda, 80 x 40,6 cm) ela é apresentada junto do seu tratador e em cima, à esquerda, é identificada como um qilin.

Mas, se da perigosa navegação cortando ondas alterosas se podiam esperar eventos incríveis, capazes de estimular auspiciosas fantasias, a necessidade espiritual de navegar, descobrir lugares e pessoas desconhecidos, dominaria a imaginação de literatos durante a dinastia Ming.

Muitas vezes e de modo particular na arte da pintura, o antigo relato que Tao Yuanming (365-427) fizera de uma singular viagem solitária em que não eram protagonistas naves de alta proa sulcando os mares, enfrentando ondas colossais, mas um humilde esquife de madeira serpenteando na suave ondulação das águas de um rio, seria recontado e imaginado vezes sem conta.

A popularidade da história da Nascente das flores de pessegueiro (Taohua yuan) situada num lugar inacessível, alcançado por acaso com um pequeno bote, ficaria resumida no ditado (chengyu) shiwai taoyuan, «fora do Mundo há uma nascente de flores de pessegueiro».

Wang Shichang (1462- depois de 1531), um pintor literato de Jinan (Shandong) imaginou o momento em que um pescador, um «homem de Wuling que se esquecera das distâncias da rota», é recebido com afecto (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 24,4 x 190,5 cm na Galeria de arte da Universidade de Yale).

A mesma cena que, no século XVIII, seria figurada no Longo corredor do Palácio de Verão em Pequim. Ao chegar, o pescador espantara-se com o que encontrara: árvores de flores cor-de-rosa prenunciavam o encontro com uma acolhedora comunidade pacífica. O veículo feito com um tronco de árvore que o transportara, discretamente preso na margem, tão comum quanto admirável fora muitas vezes tomado como metáfora por poetas como Zhao Ju, no século III: «Move-se mas não deixa rasto, Não cria raízes mesmo parando, Não tem pressa mas é rápido, É veloz como um cavalo galopando.»

13 Out 2024

Meditando com Han Shan

Ana Cristina Alves,

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

27.09.2024

I

António Graça de Abreu possui vasta obra poética publicada, entre os títulos destaco: China de Jade (1997), China de Seda (2001); Terra de Musgo e de Alegria (2005); China de Lótus (2006); Cálice de Neblinas e Silêncios (2008); A Cor das Cerejeiras (2010).

O poeta e sinólogo é ainda tradutor de poesia clássica chinesa, tendo traduzido para português os seis maiores poetas da China: Li Bai (1990); Bai Juyi (1991); Wang Wei (1993); Han Shan (2009); Du Fu (2015) e Su Dongpo (2023).

Lançou em setembro de 2024, em segunda edição, Han Shan Poemas寒山詩 (2024) com a Editora Grão-Falar, dirigida pelo Editor, Jornalista e Escritor Carlos Morais José.

Em Han Shan Poemas寒山詩, António Graça de Abreu convida a visitar o mundo poético deste budista Chan, Zen no Japão. O poeta, cujo nome significa “Montanha Fria”, talvez tenha vivido no século VIII, durante o período áureo da dinastia Tang (618-906), tendo-nos brindado com uma meditação existencial única sobre o vazio.

O Eremita da “Montanha Fria”, se acaso viveu no século VIII, ter-se-á cruzado, como sugere António Graça de Abreu no Prefácio à obra que traduziu, com os maiores vultos poéticos da dinastia Tang, quer dizer, Wang Wei, Li Bai e Du Fu. A verdade é que, tirando a lenda a seu respeito e do filho adotivo e irmão espiritual Shi De, pouco mais se sabe sobre ele. No entanto, a lenda tem a vantagem de nos alertar para o essencial quer da vida de Han Shan quer de Shi De, já que o poeta abandonou a mulher bonita que tinha, no sopé da Montanha Tai, na aldeia de Qinfeng, na província de Shandong, por acreditar que o coração dela pendia para o filho adotivo adolescente, Shi De; e este último ao perceber a confusão gerada foi procurar por muito tempo Han Shan até o encontrar no mosteiro budista de Han Shan em Suzhou para onde entraria também como monge. A atitude de ambos denota que o traço de união entre eles era a dedicação à religião Budista, dedicação essa vivida poeticamente por Han Shan. Este legaria um estilo poético budista Chan (禪 Chán), que seria transferido no Japão de Matsuo Bashô (1644-1694) para a forma Zen.

Já antes na dinastia Song, o primeiro-ministro, poeta e letrado Wang Anshi (1021-1086) se referira à imitação necessária para os estetas crentes mas quase impossível do estilo poético de Han Shan, nas palavras apresentadas por Graça de Abreu “Procuramos a água e apenas ele encontrou a nascente” (Han Shan, Apud Abreu, 2024, 23).

II

Dos 311 poemas de Han Shan, 15 foram traduzidos por Graça de Abreu, tendo anteriormente 25 sido por Jacques Pimpaneau, adaptados na versão poética de Ana Hatherly para português. Qual é então o estilo que inspirou tantos poetas e anima os poemas de “Montanha Fria”?

O estilo filosófico de Han Shan revela, antes de mais, o amor à natureza, que permite enquanto paisagem a concentração no essencial, o coração-mente (心 xīn), seguindo-se a par do elogio do vazio, contraponto a uma existência efémera, eivada de sofrimento, doença e morte, pelo que a meditação sobre o vazio, auxilia o coração-mente a cultivar uma atitude tranquila e desprendida das paixões e prazeres terrenos, bem como a suportar, com a paciência possível, às vezes com alguns desabafos, as dificuldades, limitações e desafios de uma vida curta, repleta de pobreza e frugalidade. O sentimento da brevidade da vida e o envelhecimento, magoam-no, sobretudo por comparação aos tempos de juventude. Apesar de toda a meditação, é perpassado por forças contraditórias, que expressa poeticamente, por exemplo, em as pessoas “São flores num dia de Primavera, /abrem de manhã, murcham ao entardecer” (Abreu, 2009, 12).

Satiriza e crítica gente poderosa, rica e avarenta, apontando o tal caminho frugal, cultivado por taoistas e budistas, revelando ainda estranheza por certos monges budistas se apegarem a atitudes mundanas, denotadoras de valorização de bens materiais em lugar de se concentrarem em desenvolver a força espiritual que os poderá aproximar do Dharma, a lei de Buda.

Os grandes oficiais, os ministros de estado, a quem os portugueses chamaram mandarins, são de igual modo satirizados e denunciados pela prepotência e injustiça com que exercem os seus cargos. Para chegar à conclusão de que “Hoje compreendo melhor: riquezas, honrarias, / o nome, a fama, tudo é inútil e vazio.” (Abreu, 2009, 16).

O prefácio à obra, primorosamente organizado, encontra-se dividido em: apresentação biográfica do poeta, intitulada “Do poeta e da bruma”; “Da Poesia”; “Da Tradução” e “Conclusão”. No que respeita à tradução, a poesia de Han Shan, segundo nos informa o seu tradutor, não é das mais complicadas de traduzir, porque, por um lado, não se encontra repleta de sentidos figurativos e alusões históricas, por outro, utiliza uma linguagem simples e coloquial de modo a que possa ser entendida por todos. Os poemas, sem título, são na sua maioria Lǜshī律詩, 8 versos regulares compostos por cinco ou sete caracteres. As rimas são paralelas e tonais, com alternância entre os tons uniformes, e oblíquos, sendo na concordância tonal que o poeta terá recebido maiores críticas por parte dos letrados, com pouco fôlego poético e muita atenção às convenções. Quanto ao tradutor, confessa-se a trabalhar num registo de sombra cujo silêncio o ilumina (Abreu, 2024, 37). Considera ainda que a empatia com o poeta marca decisivamente os poemas a traduzir (Abreu, 2024,38), bem como “a busca de identidade cultural e afetiva entre o tradutor e o poeta a traduzir” (Abreu, 2024, 39). Considera-se ainda grato pelo seu trabalho não ser um percurso solitário, mas realizado em companhia da consorte, Wang Haiyuan e do velho amigo tradutor ao jeito dos letrados, Zhang Weimin, ilustre tradutor de Fernando Pessoa e Luís Vaz de Camões para Chinês.

A rematar o Prefácio recorda como são importantes as traduções para manterem vivos os diálogos poéticos entre toda a humanidade. Assim, devido à tradução de Jacques Pimpaneau, com versão poética de Ana Hatherly, em 2003, e da sua própria tradução, publicada primeiro em 2009 e agora em 2024, o poeta Han Shan torna-se cada vez mais familiar dos leitores portugueses.

III

Esmiuçando a análise temática da poesia traduzida de Han Shan por António Graça de Abreu, comecemos pelo último poema da coletânea, o 155, uma quadra chinesa jueju (绝句 juéjù) sobre e, perdoe-se o paradoxo, vazio plenamente vivido pelo eremita na sua bela montanha fria:

Habito a montanha,

  ninguém me conhece.

  Entre nuvens brancas,

  o silêncio, sempre o silêncio.

我居山

勿人識

白雲中

常寂寂

(Abreu, 2024, 158/9)

Esta é a postura meditativa que todos os monges budistas procuram alcançar. Coexistir santamente na paisagem, com uma tranquilidade de espírito só possível pela fusão com a natureza, na contemplação silenciosa das nuvens brancas, tal como se ele próprio ao habitar na montanha tivesse incorporado as suas características, ao jeito do trigrama “Montanha” (艮gěn) do Clássico das Mutações (《易经》) fazendo crescer em si, a força, a solidez e a firmeza necessárias a uma postura exteriormente imóvel, mas que desenvolve a máxima energia a partir do seu interior, porque a viagem na montanha é mental. O corpo permanece no mesmo lugar, enquanto o espírito do eremita procura o domínio que lhe pertence e o vazio iluminante, recetivo e compreensivo de todos os males que afligem os seres vivos a nadar num mar de sofrimento até que a força da mente os liberte. Como adverte no poema numerado por Graça de Abreu 154, no qual declara ter mais de 100 anos, não se deve usar o coração para alcançar a “vã glória” mundana, já que ela arrasta inúmeros desejos fatais às pessoas “Quando se usa o coração para renome e fama/ entram no corpo cem diferentes desejos” (心神用盡為名利/百种貪婪進己軀) (Abreu, 2024, 158/9).

Aconselha o monge que o coração das pessoas seja tão vazio quanto possível, mas não indiferente aos outros, eis a grande distância entre as pessoas que vivem sem pensar, nem em si nem nos outros, e os monges, como o poeta, atentos ao fluir da existência e ao auxílio e libertação de todos das amarras que mantêm, segundo a filosofia budista Chan, os seres humanos prisioneiros sem de facto estarem encarcerados numa prisão física. Estes podem até mover-se, aparentemente de uma forma livre, mas na realidade são cativos dos múltiplos desejos com que enchem e enfrenesiam as suas vidas e as alheias, pelo que o melhor é o despojamento meditativo que conduz a uma existência simples e desprendida. Esta é a via certa, a da libertação das manchas e poeira do mundo, a única que apazigua o coração, em comunhão profunda com a falésia, a névoa, o arroio e porque o faz, sabemos o que sente no poema 154 “No meu corpo nem manchas, nem poeiras, /no meu coração nem traço de inquietude.” (身上無塵垢,/心中那更憂。) (Ibidem).

O poeta não é insensível à beleza feminina das meninas, das flores e dos elementos naturais, mas a consciência da efemeridade da felicidade, que não passa de breves momentos em longas existências, às vezes mais de cem anos, como talvez a dele, condu-lo ao distanciamento dos prazeres da vida, como nos informa no poema 152 relativamente à brevidade do riso e gozo, que encaminham inexoravelmente para o choro e sofrimento. Só por meio da meditação é então possível relativizar as forças positiva e negativa em ação, equilibrando-as de uma forma tensional, onde a ponderação da vacuidade da existência fenomenal é decisiva ao bem-estar espiritual do poeta, já que as necessidades e carências corpóreas são supridas pela harmonia no coração-mente em contacto com o incenso exalado pela resina do pinheiro e pelos rebentos do cipreste, de acordo com o poema 150, “Tenho fome, uma bolinha desta panaceia,/harmonia no coração, encostado às rochas” (飢餐一粒加陀藥,/

心地調和倚石頭) (Abreu, 2024, 156-157).

Pode e deve estar silencioso e tranquilo “o coração como a lua de outono/ reflexo imaculado num lago esmeralda” (吾心似秋月/碧潭清皎洁) (Abreu, 2024, 53).

O ideal de muitos eremitas, de Han Shan em particular, é conseguir afastar-se e descansar dos males do mundo, num lugar abençoado pela beleza natural, propício, por isso, à manifestação da força espiritual, na única companhia dos elementos naturais e dos textos sagrados, incluindo os dos poetas do passado e sobre imortais, assim alcança a energia, que se esconde se transferida para a sociedade humana, impelida pelos ventos fortes das paixões individuais. Aqui fica a confissão de bem-estar de Han Shan, no poema 8:

Desejei um lugar para descansar,

  a Montanha Fria deu serenidade.

  Um vento leve sopra entre os pinheiros,

  de perto ouve-se melhor a canção da brisa.

  Sob as árvores, um homem de cabelos brancos

  recita velhos textos taoístas.

  Não deixo este lugar há já dez anos,

  esqueci o caminho por onde vim.

欲得安身處

寒山可長保

微風吹幽松

近听聲逾好

下有斑白人

喃喃讀黃老

十年歸不得

忘卻來時道

  (Abreu, 2024, 54/5)

Que melhor sítio para envelhecer do que este entre montanhas e penhascos, rios e lagos, acompanhado pela suave brisa ou pelo canto dos pássaros, aprendendo a escutar a voz da natureza em todas as estações, das mais suaves e convidativas às agrestes, estas últimas, úteis para despertar a força de vontade e a resistência a um mundo ilusório que, apesar da sua inexistência em termos da verdadeira realidade, deixa marcas, que doem e transtornam os corações, tumultuando-os como se em lugar de ventos suaves soprassem no interior impiedosos tufões.

Enquanto os contrastes e oposições naturais produzem beleza, como as negras rochas e as nuvens brancas de que nos fala o poema ou, ainda, o salto imprevisível das estações da Primavera diretamente para o Outono, o certo é que os conflitos e oposições ao nível humano causam feridas profundas, por vezes insanáveis, pelo que o eu poético confessa a sua preferência por um fluir sossegado dos dias sem confrontos dilacerantes para o seu coração. Prefere então suportar os rigores de uma montanha de que o gelo não se aparta, nem mesmo no Verão. Dada a opção, terá de seguir uma vida frugal, satisfazendo apenas as necessidades alimentares básicas, pelo que sobrevive dos frutos que a dadivosa mãe-natureza coloca ao seu dispor, por isso explicita no poema 10, “Retirado na Montanha Fria, /Alimento-me de frutos da montanha” (一自遁寒山/養命餐山果) (Ibidem). Tal não significa que o eu poético não tenha momentos de desalento e de humana solidão, isso sucede quando se deixa vencer pelo cansaço e pelo sentimento da fugacidade da existência, como confessa no final do poema 27: “O tempo foge, os cabelos brancos, tão brancos,/ o ano acaba e eu velho triste, tão triste”( 時催鬢颯颯/歲盡老颯颯) (Abreu, 2024, 70/1)

Já no tempo de Han Shan, presumivelmente o século VIII da dinastia Tang, o mais importante para muitos senhores de então era o dinheiro, como explica nos últimos verso do poema 41: “mais importante que tudo é o dinheiro (愿君似今日/錢是急事爾)(Abreu, 2024,80/1)”, a valorização dos bens materiais que o eu poético constata parece ser uma constante de todos os tempos em pessoas apenas concentradas nos interesses mundanos, que não conseguem entender que existem outras necessidades para além das físicas, tão importantes como estas e apenas alcançáveis pela via da meditação. Pois para lutar contra os vãos desejos do mundo, o conselho dado ao sábio é: “como arma, leva apenas a espada da sabedoria,”( 常持智慧剑) (Abreu, 2024, 82/3), ele sabe que tudo o que é necessário para se viver bem se encontra nos cinco elementos Wu Yin (五陰Wǔ Yīn ) do Budismo Mayahana (Grande Veículo) : a forma, a sensibilidade, a perceção, a vontade e a consciência, essenciais na compreensão da pobreza e do vazio existenciais, mas ainda de uma certa leveza de um corpo tornado quase espírito na Montanha Fria, como se lê nos últimos versos do poema 63 “Um vento cortante, a lua fria como gelo,/ o meu corpo, um grou solitário voando” (寒月冷颼颼/身似孤飛鶴) (Abreu, 2024, 94/5).

Por fim, um conselho de estética religiosa que o eu poético deixa a todos os seus leitores no poema 64, naturalmente a seguir, porque a poesia é a música das palavras que vai direta ao coração-buda:

Em casa, ter poemas de Han Shan

  é melhor do que ler sutras.

  Escrevam os poemas num biombo

  e olhem-nos, de vez em quando.

家有寒山詩

胜汝看經卷

書放屏風上

時時看一遍

  (Ibidem)

Bibliografia

Abreu, António Graça de (Org. e Trad.). 2024. Han Shan Poemas寒山詩. Lisboa: Grão-Falar.

Hatherly, Ana (Adapt.). O Vagabundo do Dharma. 25 poemas de Han-Shan. Tradução do chinês de Jacques Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly e caligrafias de Li Kwok-Wing.

10 Out 2024

As Flores Estrangeiras do Imperador Qianlong

Pierre Nicolas Le Chéron d’Incarville (1706-57,) o missionário jesuíta botânico estava em Pequim há já treze anos quando finalmente conseguiu uma audiência com o imperador Qianlong (r.1736-1795) e lhe apresentou uma pequena planta tropical, oriunda das Antilhas, tão surpreendente e sensível que, quando uma folha era tocada com um dedo imediatamente se recolhia e todas as outras em sucessão se recolhiam.

Numa carta datada de 27 de Outubro de 1753 dirigida a Bernard de Jussieu (1699-1777), eminente botânico que seria professor no Jardin des Plantes do rei de França, ele recorda esse dia em que apresentou a mimosa pudica ao imperador: «Como novidade devo dizer-lhe que dois pés de sensitiva que ofereci ao imperador lhe agradaram deveras. Ele deseja muito que elas produzam sementes (…) O monarca divertiu-se bastante, rindo com vontade. Precisamos muito delas. Tenho ordem de as ir visitar com frequência. Nessa ocasião o imperador perguntou-me se não tinha outras flores ou plantas da Europa e eu disse-lhe que há vários anos semeava mas elas não cresciam. Respondeu-me que se eu desejasse podia semear em outros lugares.»

Esse pequeno gesto de «diplomacia botânica» significava uma grande abertura para o paciente labor do botânico Francês que noutra carta escrita dois anos depois de chegar a Pequim, em 20 de Setembro de 1742, parecia queixar-se: «Herborizo num parque que temos aqui e no espaço do nosso cemitério: é aqui que colecciono algumas sementes, há poucas que sejam muito especiais, a maioria são as mesmas que temos na Europa.»

Com o tempo e a permuta de sementes de e para a Europa ele viu desabrochar, algumas só brevemente, flores estrangeiras dentro da Cidade Imperial. Cumpria assim o projecto de Matteo Ricci de fazer com que se notasse, como num espelho imperfeito, que entre os estranhos também luzia a alegria do entendimento. O imperador mostraria o seu apreço pela natureza pedindo a pintores, alguns Europeus como Catiglione, que fizessem símiles da imensa variedade da flora observável.

Guan Huai (1749-1806), em cujo nome está a palavra huai, que é a designação da árvore que Lineu denominou sophora japonica, também conhecida como «árvore dos pagodes» que foi uma das espécies que o jesuíta d’Incarville deu a conhecer à Europa em 1747, pintou para o imperador um pequeno álbum portátil com o qual Qianlong podia passear, reconhecendo as flores no jardim do seu exótico Retiro de montanha em Chengde.

Em cada uma das oito páginas de Crisântemos estrangeiros (tinta e cor sobre papel,13,6 x20,4 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) sobre cada flor o imperador escreveu no Outono de 1786, um poema louvando a beleza efémera. Então, ele já sabia por experiência o que diz o «provérbio» (chengyu) jinghua shuiyue, «flores no espelho, a lua na água»: há coisas que se podem ver mas não tocar.

9 Out 2024

Deuses da Água e do Solo

Na História da China aparecem como lendas e mitos duas grandes inundações no período de vida de Fuxi e da meia-irmã Nuwa, no início do terceiro milénio antes da nossa Era. A primeira criou um oceano e foi iniciada por uma imensa tempestade com chuvas torrenciais sem parar e uma súbita subida da água a não deixar terra à vista. Levados separadamente pela corrente, os dois meios-irmãos seriam os únicos a sobreviver desse grande dilúvio e daí ficarem considerados os pais da humanidade chinesa. A segunda grande cheia decorreu, em relato mitológico, da luta entre Gonggong (deus da Água) e Zhurong (deus do Fogo), saindo Gonggong derrotado e humilhado suicidou-se, atirando-se contra a Montanha Buzhou, quebrando um dos quatro pilares da abóbada Celeste. Um tal abalo abriu fendas na terra, de onde saíram torrentes de água a inundar as zonas baixas do mundo, precisando Nuwa de erguer uma enorme argamassa feita com a mistura de cinco seixos de diferentes cores para reparar os estragos do Céu, ficando desde então este inclinado para Noroeste.
No reinado de Zhuanxu, Taitai já trabalhava a regularizar os rios, com o Imperador Diku a promovê-lo a chefe do controlo das águas. Taitai chefiava a tribo Jintian (Jintian shi) em Shanxi, pois inicialmente ela vivia em Shandong e descendia de Shaohao [conhecido também por Jintian, ou Xuanxiao e segundo o Shu Jing – Livro da História, ou de Documentos, um dos Cinco Ancestrais Imperadores]. Shaohao (c.2597-2514 a.n.E.) era o filho mais velho de Leizu e Huangdi (Imperador Amarelo), sendo o seu irmão Changyi pai de Zhuanxu. Changyi nascera no ano 29 do reinado de Huangdi e no 77.º ano foi para Sichuan, casando-se com Changpu (Jingpu), do clã Shushan, e dessa relação nasceu o filho Gaoyang, conhecido depois por Zhuanxu, o segundo dos Cinco Ancestrais Imperadores. Bai Shouyi refere, em Shandong habitava a tribo Shaohao, com os chefes Xiu e Xi, e por serem especialistas no controlo de inundações colocaram os filhos e netos a realizar esse trabalho e assim se transformaram em Deuses da Água.
Na região de Shanxi, a tribo Jintian teve chefes como Mei e o filho Taitai, especialistas na construção de diques e no controlo das cheias dos rios. Conhecidos por geração Mei (昧), os dois foram oficiais da Água (Shuiguan, 水官), ficando Taitai (台骀) encarregue especificamente dos rios Fen (汾) e Tao (洮). Deslocando-se com muita gente para o ajudar, criou as bases onde instalou os trabalhadores enquanto dragavam o rio Fen (Fenshui), construindo uma represa a originar o lago Daze e assim, os habitantes da área de Taiyuan puderam ter uma vida mais estável, passando a designá-lo por Taisheng (deus Tai).
Zhuanxu ofereceu a Taitai a governação da área de Fenchuan (mais ou menos a actual província de Shanxi) onde existiam quatro reinos tribais: Shenguo (沈国), Yaoguo (姚国), Ruguo (蓐国), Huangguo (黄国), e em cada um deles realizou sacrifícios às quatro direcções. Daí Taitai ser o Deus do Fengshui e receber oferendas por parte desses quatro reinos governados pelos seus descendentes. As informações deste parágrafo provêem do livro (左传-昭公元年).
Durante o reinado dos dois últimos Ancestrais Imperadores, Yaodi e Shundi, a população sofria graves inundações e para resolver esse problema contrataram Gun, pai de Yu, que trabalhou em conjunto com a tribo de Gonggong. Sem conseguir resultados, foi Gun despedido por Yaodi e substituído no cargo pelo filho Yu. Yaodi registou esse período de inundações, ficando o relato transcrito no Livro de Documentos (Shu Jing).
No Norte de Henan encontrava-se a tribo Gonggong, com o chefe Houtu especialista nos trabalhos de controlo das águas, sendo a tribo a inventora do método da construção de diques para prevenir as cheias. Segundo o Clássico das Montanhas e Mares [Shanhai Jing – haineijing (山海经-海内经)] Gonggong (共工) é filho de Zhurong (祝融) e pai de Houtu (后土). No entanto, sofreram graves inundações quando alguns dos diques cederam e daí ter sido a tribo Gonggong banida por Shundi, mudando-a para a prefeitura You. Houtu tornara-se o Deus do Solo e a tribo mais tarde passou a representar o deus da Água. Os Gonggong viriam a ajudar Dayu no controlo das águas e depois usaram com bons resultados o método de Yu para evitar inundações.
Yu, o Grande, também considerado Deus do Solo, além de adquirir conhecimentos com o pai Gun, fez a aprendizagem enquanto andava por diferentes regiões a ajudar a resolver os constantes problemas. Estudou as características das águas, a topografia dos terrenos e assim abriu muitos canais para controlar as cheias, conseguindo desbloquear os leitos dos rios, ou alargando-os, e conduzi-los a um fácil desaguar.
Certa vez, Yu não estava a realizar bem o trabalho de levar as águas do rio Amarelo para o mar, pois mandara escavar o canal na direcção errada. Então Houtu, como rainha deusa da Terra fez o Mapa do Rio Amarelo (Hetu) e enviou um pássaro mensageiro com instruções específicas a Yu, dizendo-lhe dever o canal ser aberto para Leste, para permitir um correcto escoamento.
Dayu reunia-se na montanha de Kuaiji com os senhores da terra (da tribo dos Gonggong), que o ajudaram no controlo das inundações, para lhes entregar o prémio segundo o contributo dado.

YU O GRANDE

A uns cinco quilómetros do centro de Shaoxing, na província de Zhejiang, um complexo envolve a montanha Kuaiji, onde no cume uma enorme estátua de Dayu domina a cidade. Para aceder ao recinto paga-se um bilhete de 25 yuans e junto a um canal proveniente da cidade está a entrada do templo e mausoléu de Dayu, onde prestamos homenagem ao fundador da dinastia Xia.
Desde criança Yu tinha um pequeno tigre como companheiro com quem se deu pela vida fora e o protegia quando trabalhava sobre as ordens de Yaodi, acompanhando-o sempre e devido a ser grande, bravo e forte ajudava-o a guiar os outros animais e a vencer demónios.
Segundo a mitologia, Gun depois de morrer em Yushan transformou-se num Urso Amarelo e a sua alma tornou-se Huang Neng, a tartaruga de três patas, passando a viver na água. Numa noite, estava Yu sem soluções para domar as águas dos rios da montanha Huanyuan [a Sul da província de Anhui], quando viu surgir o espírito do pai na forma de urso amarelo e com a cabeça mover a montanha. [O totem do povo Qiang, antepassados de Yu, era o urso amarelo.]
Aos trinta anos Yu ainda não se tinha casado, andando atarefado no trabalho de controlar as águas dos rios turbulentos das montanhas de Tu (Tushan ou Dangtu em Anhui), quando foi visitado por uma raposa branca de nove caudas. Ao vê-la Yu pensou: “branca é a minha roupa e nove caudas significa vir a ser rei” e começou a cantar: “uma raposa branca com nove caudas apareceu ao meu lado. Como estaria contente com esta beleza para minha esposa. Quando marido e mulher trabalham juntos com um só coração, então a harmonia reina entre o Céu e o Ser Humano”. Ao acabar a canção a raposa transformou-se numa bela mulher e Yu com ela casou, chamando-lhe Nujiao. [No tempo de Wudi da dinastia Han do Oeste, a Rainha Mãe do Oeste era esposa do imperador Yu (o Imperador do Leste) e ambos presidiam à corte do Céu.]
Sima Qian refere, que pouco tempo Dayu passou com a esposa pois, logo após casarem, foi chamado para resolver inundações e durante mais de uma dezena de anos atarefado com o trabalho, por três ocasiões passou em frente a casa, mas aí não se deteve.
Devido à sua sabedoria, Yu em 2070 a.n.E. tornou-se rei e governou durante 45 anos, fundado a dinastia Xia, a primeira na China. Até aí, eram os Imperadores e chefes escolhidos pela inteligência na capacidade de resolver os piores problemas a afectar as populações e a conseguir evitar desastres.
Dando início ao período das dinastias, a dinastia Xia (2070-1554 a.n.E.) viveu no curso médio do rio Amarelo (Huang he) entre os afluentes Yishui e Luoshui e dava ao território o nome de Hua Xia. Próxima do Monte Song, entre os rios Wudu e Ying, a cidade Yangcheng foi construída por Yu e tornou-se a primeira capital da dinastia Xia, hoje a povoação de Gaocheng, em Dengfeng Henan.
Já rei, Da Yu tentava controlar as cheias do rio Longo (Changjiang, ou Yangzi) no lugar das Três Gargantas, quando da Garganta Wu começou a jorrar água. Da Yu não podendo cortar montanha dentro para controlar a inundação, realizou uma oração à deusa Yaoji, a viver em Wushan. Esta ordenou à vaca, uma das 28 constelações, para vir à Terra ajudar Da Yu e com os cornos furou a rocha, desviando assim as águas do monte de Wu(shan), conseguindo desobstruir a passagem ao rio.
O cavalo-dragão só é visto por um imperador sagaz e quando Da Yu encontrando-se em imensas dificuldades para controlar o rio Luo, afluente do Huanghe, viu emergir das águas uma tartaruga e na carapaça encontrou o Livro do Rio Luo (Luoshu) com a Teoria do materialismo dos Cinco Elementos a representar a Ordem do Universo Manifestado. Ao ler o Mapa do Rio, Da Yu entendeu-o e por fim conseguiu com sucesso estabilizar o rio Luo e controlar as águas do rio Amarelo.
Quando Dayu morreu foi sepultado na base da montanha de Kuaiji e sucedeu-lhe como segundo rei da dinastia o filho Qi, nascido de Nujiao. Iniciava-se o período das dinastias com sucessão de poder transmitido normalmente de pai para o mais velho dos filhos, perpetuando-se no trono a família reinante.
O Templo Ancestral de Yu foi construído durante a dinastia Liang (502-557), mas o local tinha sido já oferecido por o sexto rei da dinastia Xia, Shao Kang (Du Kang, 1943-1922 a.n.E.), aos descendentes de Yu, o clã Si do povo Qiang, que aqui viveram mesmo depois da dinastia ser substituída em 1600 a.n.E. por a Shang. O templo mausoléu é composto por diferentes partes: rodeado por um muro de quatro metros de altura, encontra-se dentro o pavilhão Memorial e a Porta Wu, estando a estátua de Yu no pátio central. Acima, o monte da sepultura marcado por um bei.
Partimos depois de visitar a ponte do Dragão, por onde as águas do canal correm, com embarque no bote a remos em frente ao Palácio de Yu, no parque do mausoléu, para navegar até ao centro da cidade de Shaoxing.

26 Set 2024

O nome poético de Macau em Português

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

O nome poético de Macau encontra-se ligado a grandes poetas que estiveram em Macau, como Luís Vaz de Camões (1524?-1580), com toda a certeza poética que o amor por uma Dinamene confere e confirmam os biógrafos como Eduardo Ribeiro; ou a Manuel Maria du Bocage (1765-1805), ou a Camilo Pessanha (1867-1926),ou a Manuel da Silva Mendes (1867-1931), entre outros mais recentes como António Graça de Abreu (1947-) e Carlos Morais José (1963 -). Neste espaço, gostaria de destacar os contributos para os nomes e relação com a Península de Macau de Maria Anna Acciaioli Tamagnini (1900-1933); Beatriz Basto da Silva (1944-), Manuel do Couto Viana (1923-2010); José Augusto Seabra (1937-2004); Rui Rocha (1948 -), Cecília Jorge e António Mil-Homens (1949-).

Maria Anna de Magalhães Acciaioli Tamagnini, a linda princesinha da poesia escolhida para consorte de Artur Tamagnini Barbosa, deixou-nos além de obra benemérita e socialmente empenhada, uma coletânea poética intitulada Lin Tchi Fá – Flor de Lótus, publicada em 1925, cujo tema principal são as flores, humanas e naturais e, entre estas, a rainha de Macau, a flor de lótus, lin tchi fá, que na sua perspetiva simboliza esteticamente a cidade como nos revela na segunda quadra do poema “Folhas de Lótus”

 Sobre folhas de lótus desenhei

  O mais risonho trecho da cidade;

 E esse leve desenho que tracei

  Dir-se-ia uma paisagem feita em jade

 (Tamagnini, 1991, 15)

Maria AnnaTamagnini cruza-se no tempo de vida com António Manuel Couto Viana, que nasceu em Viana do Castelo em 1923, vindo a falecer, já no século XXI em 2010. Homem multifacetado foi poeta, dramaturgo, ensaísta, memoralista e ainda se dedicou à escrita de contos para crianças. Foi também ator, encenador e empresário teatral, dirigindo a companhia especializada em espetáculos infantis, Gerifalto, bem como a Companhia Nacional de Teatro. Viveu em Macau entre 1986 e 1988, tendo exercido funções no Instituto Cultural. Entre as suas obras poéticas, gostaria de destacar Até ao Longínquo China Navegou (1991), sobretudo pelo primeiro capítulo, intitulado “Nome de Deus Deusa no Nome”, dedicado a Macau, incidindo os restantes sobre a China, a Formosa, o Sião (Tailândia) e o Reino da Malásia. Com ele, se acompanha “Um Sabor a Saudade”, que a terra lhe deixou, bem como a dedicatória ao nome central da literatura macaense, Henrique de Senna Fernandes, através do poema “A-Li a Tancareira”, que recorda as raízes piscatórias de Macau e dos seus habitantes, muitos deles, da etnia Tanga (蛋家Dànjiā), vivendo em pequenas embarcações, os tancares, oriundos das zonas ribeirinhas de Cantão, Fujian e Guangxi. O autor apresenta a tancareira “Como a descer sem pressa/ Ao túmulo impassível do passado” (Viana, 1991,21). Num outro poema, dedicado a João Sales e à Cidade, confessa-se totalmente identificado, sobretudo com a história da terra, “Na Pousada de Mong Há”, cuja derradeira quadra é deveras tocante:

 Memorial de mim em cada muro

 Grava os versos do fim em que me vês:

 - Aqui viveu enquanto foi futuro,

 O último poeta português!

 (Viana, 1991, 23)

Após um outro poema à Festividade da Lua, intitulado “Na Lua do ‘Bate-Pau’” em homenagem ao Padre Benjamim Videira Pires,S.J.(não consigo deixar de me interrogar sobre o que saberia da biografia do Padre), segue-se um soneto em honra da festividade do Ano Novo Chinês, intitulado “Kong Hei Fat Choi” (saudação à prosperidade) soprado pelos ventos de mais uma primavera. O último terceto encerra num desabafo tocante, onde se patenteia e entrelaça o seu sentir pessoal com o do inconsciente coletivo de muitos portugueses e macaenses da sua geração:

 Foi-se-me o tempo e a arte. O que me resta?

 Teu coração, Macau, pra fim de festa,

 No ano que começa e me acabou.

 (Viana, 2010,27)

Para muitos dos nossos compatriotas mais antigos, Macau tem ainda um sabor imperial de conclusão de ciclo, a par de Timor. Porém, Macau é um caso único. A Cidade do Nome de Deus, que haverá de se transformar-se na Região Administrativa Especial da China, foi entregue aos chineses de um modo exemplar, sem sobressaltos nem guerras; simultaneamente marca o fim de uma era europeia, a partir da qual já não são admissíveis colónias. Desta forma, encerra um período histórico, feliz para os que se identificavam com imaginação de que Portugal ia de Lisboa a Timor, sendo igualmente reconfortante para o eu poético que tanto se identificou com o lugar a ponto de lhe sentir o bater do “coração” em período de desfecho, por osmose.

Beatriz Basto da Silva (1944 -), casada com um macaense, historiadora, professora, poetisa portuguesa, nesta última qualidade o que diz sobre o tema da transição de Macau para a China em Silêncios (1996), no poema “Macau 99”?

 Tenho os olhos rasos de angústias futuras

 por isso me parece tudo

 paisagem de nocturno e final canto…

 infiel é o Sol

 que deixou de vir em cada dia

 aquecer-me

 como dantes fazia.

 (Silva, 1996, 59)

Ensombra este poema datado de 1991 um grande pessimismo, impregnado de sentimento desagradável frio e de fim de história, pelo menos imperial, porque, entretanto, Macau continuou o seu caminho e hoje, mesmo os mais pessimistas reconhecem que sobreviveu de novo aos imprevistos da história. Passou de mãos, mas está vivo, próspero e sempre em transformação. É mesmo um caso exemplar de encerramento feliz, ainda que deixando um travo nostálgico em muitas pessoas que na última década do século XX não podiam prever o que as esperava. Foi um mistério até deixar de o ser.

Perdeu-se o império, ficou o sagrado colado ao nome de Macau, como bem notou o professor, ensaísta e poeta José Augusto Seabra (1937- 2004), nascido em Vilarouco, São João da Pesqueira. Licenciado em Direito, conheceu o exílio em França, doutorando-se em letras na Sorbonne. Regressado a Portugal em 1974, faz o seu caminho no ensino até chegar a professor catedrático na Faculdade de Letras do Porto e diretor literário da revista portuense Nova Renascença. Também sentiu e ressentiu o passado histórico, o sonho de grandeza e a perda traumática do império, bem psicanalisada por Eduardo Lourenço em Labirinto da Saudade (1972). Poemas do Nome de Deus (《神的名字》) é uma obra bilingue de 1990, onde se lê em jeito de breve e incisiva introdução/inscrição pela boca do autor que vamos entrar na leitura de “um livro de Amor, Terceira Pessoa da Trindade. Amor com todas as letras, elevado ao infinito, em rigor indizível” (1990,13).

Desta forma, tudo o é dito na obra surge filtrado por este sentir, mesmo a saudade, o sentimento de perda e todos os outros parceiros negativos que costumam acompanhar estes dois. No poema da abertura “Do Nome” vislumbramos o movimento dos nautas pelos mares reais e imaginados até alcançar o horizonte do afeto pleno pela cidade:

 De vir chegando, ao longo de ficar

 mais perto do partir, atravessando

 o lugar infinito de não estar

 na presença a fugir do onde ou quando

 que é só pura memória de chegar,

 eis quase no horizonte o sinal pando

 a tremular ao sol de nau em nau:

 o teu nome sem nome, Ó Deus, Macau.

 (Seabra, 1990, 15)

 Aventureiros do ideal, como é dito no poema sugestivamente intitulado “Dos Nautas”, são “(…) os nautas perdidos/ dando três vezes a volta às margens do vago,/imaginando (…) (Seabra, 1990, 75). Ainda assim, para a história mundial fica uma certeza científica no meio de tanta paisagem onírica, apresentada em “Da Rota”. Esta é com todo o estudo e merecimento “a glória de sabermos/ a rota da viagem” (Seabra, 1990, 77). A relação amorosa do eu poético com a cidade é totalmente justificada no mistério do nome de Deus, afeto proporcionado não apenas pela terra como ainda pela palavra sagrada da pátria, em “Da Lealdade”:

 Ó pátria da palavra

 dada: pátria amada

 que da pátria resguarda

 a palavra sagrada.

 (Seabra, 1990, 33)

 真實

  嘔,語詞的國度

 被賦予的稱呼:可愛的國度

 從這個國度

 保護神聖的詞匯

(Tradução de Lu Ping Yi 吕平義)

Que belo elogio à “Cidade do Nome de Deus, não há outra mais leal”. O amor verdadeiro surge assim do mistério, aliado ao reconhecimento da virtude da lealdade, pois se foram os portugueses os primeiros a chegar a Macau, era justo que nenhuma outra bandeira fosse hasteada a não ser a portuguesa, mesmo quando “se mudam os tempos e as vontades”, bem como as alianças que provocam alterações no panorama político com consequências dinásticas.

Retém José Augusto Seabra os momentos mais belos e significativos da história de Macau, sem, no entanto, esquecer o papel humano dos portugueses, vagabundando num panorama onírico em que por vezes conseguiam concretizar os seus sonhos, sobretudo quando recorriam à perícia tecnológica e ao pensamento científico.

Já em pleno século XXI, transição concluída da Cidade do Nome de Deus para a Região Administrativa Especial de Macau, serão os sentires poéticos talvez outros, a par dos novos tempos, tornando-se mais concretos e laicos?

Rui Manuel de Sousa Rocha (1948 -) nasceu em Lisboa, de ascendência portuguesa e macaense. Foi habitante de Macau por três décadas, onde desempenhou o cargo de diretor do Instituto Português do Oriente, convivendo de perto e em harmonia com as culturas e poesias chinesa e japonesa, oriundas do Budismo Chan (Zen). Na obra poética A Oriente do Silêncio (2012) enquadra lucidamente Macau numa “China antiga”, imperial, na qual o governante se ligava diretamente às forças celestiais através do “mandato do céu” (Rocha, 2012, 11) até ao momento da despedida, num poema cujo título é substituído por uma data “Macau, 20 de dezembro de 1999”, em que sobressai o desejo de partir, acompanhado pelo movimento de diáspora. Aqui fica a primeira estrofe:

 para que o tempo não fuja

 como uma pérola na ponta de um fio

 para que o amor não naufrague

 nas noites escuras dos mares da china

 colarei o meu corpo a um qualquer mapa

 dos lugares por onde andares

 e elevarei o meu coração

 sobre os céus desses lugares.

 (Rocha, 2012, 101)

Ficar e acompanhar os novos tempos, pautados por uma nova administração, ou partir, encetando um outro caminho de vida, mais uma aventura? Tomar qualquer das opções implica coragem e muita energia, mas se as decisões forem realizadas em nome do amor, isso ajuda. Fique-se ou parta-se por sentimento, porque depois, haja o que o houver, que seja em nome da melhor das causas, “para que o amor não naufrague”.

Cecília Jorge, macaense, de famílias antigas da terra, foi jornalista e investigadora muito ativa na cultura de Macau, tendo partilhado com Rogério Beltrão Coelho, português com quem é casada, uma editora, a dos Livros do Oriente. Tem várias obras consagradas ao encontro de culturas, ponto essencial da identidade cultural macaense, concentrando-se em muitas delas na apresentação da matriz chinesa de Macau. De regresso a Portugal, trouxe na bagagem entre os diversos títulos publicados, um livro de poesia dedicado a Macau, Poemas para Macau (2020), no qual vai descrevendo em verso o encontro de culturas como o mais típico da identidade macaense, tantas vezes unida nos corpos e dividida nas mentes de quem transporta muitas matrizes diferentes, sendo duas mais evidentes, a portuguesa e a asiática. São muitas as interrogações de quem se sente puxado por diversos lados, como nos explica em “Mestiçagem”, de que aqui se registam alguns versos, datados de 1991:

 Quem sou?

 Donde venho? De que lado

  do mundo?

 E para onde vou?

 Quanto sangue se misturou

 até me chegar às veias confuso?

 (…)

 Corsário reinol…aventureiro

 antepassado e pai foste

  e num abraço me geraste

 no ventre de mãe asiática

 (Jorge, 2021, 31)

Há então um momento em que chega a hora da partida, justificado pela desidentificação com a cidade contemporânea, onde o eu poético, apesar das suas raízes asiáticas não consegue encontrar o conforto de um espaço idêntico ao das suas memórias de infância e de adolescência, como se lê no poema “Macau”

 Poema que (mal) escrevo

 lápis e papel virtual

 em cada noite de insónia

 memórias que se perdem

 no despertar

 desta urbe travestida que se arrasta

     que grita

 (Jorge, 2021,36)

É o sinal da partida, com a consciência de que no caminho seguirá consigo “a humana partilha/solidariedade/e amizade” (Ibidem), perto ou longe, será transportada até Macau pelo afeto macaense em torno de uma chávena de chá, pelo que afirma em “Lembra-te da cor do ‘mar’”, poema datado de 1991

 Macaenses

 nossa gente

 Ainda que em volta de

 uma só

 taça de chá.

(Jorge, 2021, 47)

Se em Maria Anna Tamagnini é-se conduzido até Macau belíssimo espaço de jardim, já com António Manuel Couto Viana se sente vibrar na sua obra a dimensão histórico-poética, não apenas do eu poético, mas do povo português, sendo este domínio aprofundado por José Augusto Seabra, que lhe confere uma aura amorosa sagrada e consagrada pela palavra, da terra e dos seus virtuosos habitantes, empenhados na sua lealdade. A complementar a zona onírica, surgem os depoimentos poéticos muito reais e saudosos de Beatriz Basto da Silva e Rui Rocha. Este último, com Cecília Jorge, acentua o momento histórico da viragem de macaenses que optaram pela diáspora. Em Cecília Jorge a partida será realizada sem nunca perder de vista a dimensão comunitária da partilha de raízes em torno dos momentos festivos, sempre acompanhados pela gastronomia, hoje património cultural da humanidade, culminando numa simples chávena de chá.

Macau espaço de convívio físico, mas também espiritual, será cantado ainda em Poemografia de Macau (2019), na obra trilingue mais recente de António Duarte Mil-Homens (1949-), com prefácio do atual embaixador Vítor Sereno, à época cônsul de Macau. Este poeta é profissional de fotografia desde 1984, cuja atividade iniciou em 1974, tendo vivido por longo tempo no território, onde exerceu a profissão e a par desta começou a desenvolver a faceta poética. Regressado de Macau, trouxe consigo a sua Poemografia da terra, na qual perpassa o sentir de muitos portugueses que fizerem deste porto abrigo temporário. Para o eu poético nos primeiros versos de “Macau é seio” a terra é a mãe dadivosa, que o alimentou e lhe permitiu a existência, em tempo de migração a que poderia sucumbir:

 Macau é seio

 Macau é ventre

 Macau é mudança,

 (Mil-Homens, 2019,26)

Ao longo da Poemografia, percebe-se o quão único é aquele pequeno espaço, com a China logo ali ao lado, mas separado, por uma ligeira fronteira, como explica em “Portas do Cerco”, o posto transfronteiriço sucessor do muro erguido pela primeira vez em 1573 a dividir Macau e a China em “A entrada noutro mundo/outra lei” (Mil-Homens, 2019,34). E, ainda hoje, depois da criação da Região Administrativa Especial de Macau, formalizada na transferência de poderes a 20 de dezembro de 1999, se verifica a existência de uma Lei Básica de Macau, que alinha em muitos pontos pelo direito português e garante um estilo de vida ocidental à população por cinquenta anos, ou seja, até dezembro de 2049.

Porém, é no encontro dos sentidos com um espaço radicalmente outro que o fotógrafo/poeta se sente desperto na certeza de que este lhe faculta o acesso a um mundo diverso. Leiam-se as suas palavras em “Nesta Macau me endoido”:

 Nesta Macau me endoido,

 Neste retiro me mereço

 Neste covil me entesoiro

 E sem querer me esqueço.

 (Mil-Homens, 2019, 84)

Porém, só por breves momentos se esquece da sua herança portuguesa, já que a memória imagética e fotográfica é constantemente avivada pela presença do património histórico e afetivo português, como se lê em “Molhada, esta calçada portuguesa” (Mil-Homens, 2019, 88). Sofre ainda fisicamente de um sintoma que o recorda da presença em terra não estranha, mas em transformação frenética, distante do seu sossegado país. Nela se mantém constantemente ativo, estimulado, vigilante, por causa “Desta Macau que me provoca/ Insónia prenhe, vontade pouca/ De desligar, de adormecer” (Mil-Homens, 2019, 92). Constata que em terra oriental chinesa e de Macau muito mais é o vivido imaginado do que o real, num mapa disperso, impressionista criado pelos sentidos no seu confronto com uma cultura distinta, que dá origem a uma esplendorosa geografia mental, como sugere “Nesta geografia/sem mapa” (Mil-Homens, 2019, 102). Assim, o seu sentir é confuso, regozijante, atento à procura de uma resposta existencial, como declara em “Exílio ou opção”:

 Mantido à tona

 Desta demanda

Em comunhão?

Aqui Macau,

Além China,

Almejo ainda salvação…

(Mil-Homens, 2019, 105)

Macau é durante parte do caminho a resposta existencial certa para o eu poético, pelo menos até ao momento da despedida: não física, mas mental. Porque se o sinal de partida foi dado e o poeta regressou Portugal:

 Não sei onde te encontrar,

 Procuro onde me rever,

 Em torno tudo a mudar,

 A velha Macau a morrer

 (Mil-Homens, 2019, 142)

isso não significa que tenha de facto abandonado aquele espaço que lhe proporcionou a vida, ou melhor, a energia para continuar a viver, já que afirma em “Irei reinventar-te no regresso” a incapacidade de esquecer a terra que o viu nascer como pessoa e agora, longe, renascer:

 Da memória já renasces,

 Como se naufragado tivesses,

 Macau

 E, à vista do que recresce,

 Me condenes ao redito,

 Da água brotando do Lilau.

 (Mil-Homens, 2019,122)

 澳門,

你從記憶裏重生,

就如曾遭遇海難。

而審視再次生成的東西,

你會逼我重新描述,

阿婆井流出的水。

(Tradução de Xu Caiyan 徐彩燕, 2019,124)

E como se diz de quem bebeu da água dessa Fonte do Lilau nunca mais esquece Macau, também António Mil-Homens, à semelhança de todos os outros poetas e poetisas aqui trazidos, ficará para sempre ligado à misteriosa e sagrada Terra do Nome de Deus.

Bibliografia

Jorge, Cecília. 2021. Poemas para Macau. Prefácio de Vera Borges. Macau: Livros do Oriente.

Mil-Homens, António Duarte. 2019. Poemografia de Macau. Macao Poemography. 《澳門詩像》.Macau: Instituto Cultural do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.

Rocha, Rui. 2012, A Oriente do Silêncio. Lisboa: Esfera do Caos Editores.

Seabra, José Augusto. 1990. Poemas do Nome de Deus. 《神的名字》Macau: Instituto Cultural de Macau.

Silva, Beatriz Basto. 1996. Silêncios. Macau: Edições Mar-Oceano.

Tamagnini, Maria Anna Acciaioli. 1991. Lin Tchi Fá. Flor de Lótus. Macau: Instituto Cultural de Macau.

Viana, António Manuel Couto. 1991. Até ao Longínquo China Navegou. Macau: Instituto Cultural de Macau.

25 Set 2024

Ancestrais Imperadores no rio Amarelo

Um dos berços da civilização chinesa encontra-se no curso médio e baixo do rio Amarelo e afluentes. Os seus férteis vales, eleitos pela abundância de alimentos e animais, foram locais privilegiados de uma rápida fixação de famílias agricultoras, assim como na sedentarização de caçadores e pescadores, tornando-se lugares densamente povoados. Nas suas margens evoluíram há oito mil anos, a cultura Peiligang, a cultura Yangshao [na parte Leste do curso médio do Huanghe e vale do rio Wei, a produzir potes de argila pintados com figuras geométricas] e na parte do curso baixo do rio Amarelo, em Shandong a cultura Longshan [onde se plantava já arroz, milho miúdo e talvez trigo, sendo os potes pretos levantados em roda de oleiro] e dois milénios mais tarde a Cultura Dawenkou (4300-2500 a.n.E.).

Foi essencialmente nas áreas do Huanghe que os Cinco Ancestrais Imperadores (Wudi) percorreram em constantes viagens vastas regiões do Norte e Centro da China, desenvolveram os territórios e situaram as capitais, estendendo-se alguns deles nas regiões até ao Changjiang, demonstrando uma mobilidade de espantar.

Huangdi (黄帝, 2550–2450 a.n.E./2704-2595 a.n.E.), o primeiro dos Cinco Ancestrais Imperadores, nasceu no monte Xuanyuan, onde hoje será Xinzheng, a fazer parte da cidade de Zhengzhou na província de Henan e tinha o apelido Ji, o nome da sua tribo, também conhecida por Xuanyuan. Antes de se tornar o Imperador Amarelo, a tribo era matriarcal e chamava-se Tian Yuan e ainda nómada vagueava por Zhuoxian, em Hebei.

Já como chefe da tribo Ji, também na província de Hebei fez a capital em Fanshan, no concelho Zhuolu e para Sudeste, em Banquan os Ji derrotaram os Jiang [provenientes do rio Wei e cujos ancestrais eram Yandi e Fuxi] e as duas tribos em aliança juntaram-se; na altura era comum as tribos guerrearem-se para tomarem terras, animais e fazerem escravos. Com Huangdi, parte das tribos a viverem no Norte e Centro do território da actual China ficaram unidas, formando o povo Huaxia, hoje conhecido como Han. O Imperador Amarelo teve mais de cem filhos. Com uma grande experiência, devido ao muito viajar, patrocinou inúmeras invenções para tornar a vida quotidiana muito mais fácil.

No monte Jing, hoje no concelho de Lingbao em Henan, Huangdi deixou a vida terrena e foi levado por um dragão divino. Enterraram-no em Qiaoshan, conhecida como “Montanha da Ponte”, mas o seu túmulo foi encontrado em outras províncias como Gansu, Hebei e Henan. No entanto, é na Montanha da Ponte em Huangling (prefeitura de Yan’na, província de Shaanxi) onde se presta oficialmente homenagem ao Imperador Amarelo no dia do Qingming.

Aí passa o rio Luo (Luohe) proveniente do Norte e a desaguar no rio Wei pouco antes deste afluir no Huanghe.
Neto de Huangdi, Zhuanxu (颛顼, 2450-2372 a.n.E.) com o nome de Gaoyang era filho de Changyi e o avô indicou-o para lhe suceder como o segundo dos Ancestrais Imperadores. Ocupou o trono durante 78 anos, começando por manter a capital em Fanshan (concelho Zhuolu, Hebei) e depois mudou-a para Shangqiu, em Henan. Daí rumou ao Norte e passou a capital para Diqiu [hoje na área de Puyang] em Henan, fronteira com Anyang, a Norte do rio Amarelo.

Zhuanxu colocou como oficiais para administrar o território dois dos netos: Zhong, responsável pelos ofícios e sacrifícios ao Céu e Li, a tomar conta das ordens administrativas na Terra. Tal incrementou a união de cada vez mais tribos ao povo Huaxia e a unificação a dar molde ao país. Zhuanxu morreu com a idade de 98 anos e tem o mausoléu junto ao de Diku (seu primo), a quilómetro e meio da aldeia de Sanyangzhuang, em Liangzhuang, 30 km a Sul da capital do distrito Neihuang, em Henan, na estrada Anyang-Puyang. Zhuanxu é festejado no 18.º dia do terceiro mês lunar.

Diku (帝喾, 2372-2297 a.n.E.), conhecido por Gaoxin, era bisneto de Huangdi e filho de Ku, primo de Zhuanxu. Foi o terceiro dos Cinco Ancestrais Imperadores da China e reinou 75 anos, continuando com a capital de Zhuanxu em Shangqiu. Ambos têm o mausoléu na mesma localidade, próximo da aldeia de Sanyangzhuang em Liangzhuang, sendo Diku celebrado no dia 14 do quarto mês lunar.

Sucedeu-lhe Yao de Tang (尧帝, 1179-1061 a.n.E. ou 2297-2179 a.n.E., Tang Yao), filho de Diku, de nome Fangxun e apelido Qi da tribo Taotang, nasceu em Yi Fangxun ou Yi Qi [Guoyou em Jiangsu, ou Tianchuang em Anhui]. Com vinte anos tornou-se o quarto dos Ancestrais Imperadores e provêm do seu reinado os primeiros registos de instituições organizadas para administrar o território. No 70.º ano de reinado, Yao passou o trono a Shun, para quem abdicou ao se aperceber não ter descendência à altura, apesar dos nove filhos. Continuou a sua existência por mais 28 anos e ficou creditado como o inventor do jogo go (weiqi).

O seu território compreendia desde o rio Amarelo ao Changjiang, tendo mais tarde ao reino de Tang conquistado Taosi [Xiangfen sob jurisdição da prefeitura de Linfen, em Shanxi, onde se desenvolvera a última fase da cultura Longshan (2300-1900 a.n.E.)] e aí fez a capital Linfen, situada nas margens do rio Fen, no Sudoeste de Shanxi fronteira com Shaanxi, próximo da viragem para Leste do Huanghe. Yao morreu com 118 anos e o seu mausoléu encontra-se na capital Linfen, sendo celebrado no Qingming (entre os dias 3 e 5 de Abril). Yao é o ancestral da dinastia Han e Liu Bang dizia-se descendente de Huangdi.

CONTROLAR AS INUNDAÇÕES

O reinado de Yao foi marcado por desordens sociais e graves inundações, relatadas pelo próprio Imperador e registadas no Livro de História (Shu Jing). Yaodi ordenou a Xihe para realizar observações astronómicas e daí fazer um calendário; a Qi, um mestre na agricultura, a ensinar às pessoas a cultivarem cereais; e a Gun (um príncipe de Chong, descendente de Huangdi) para controlar as águas e evitar as cheias, mas após nove anos de esforço nada conseguiu e Yaodi mandou-o prender, tendo morrido em Yushan, já no reinado de Shundi.

O Imperador Yao conhecera Shun com vinte anos e colocou-o ao seu serviço como Ministro das Instruções e chefe das Quatro Montanhas (siyue), dando-lhe quatro anos para organizar o país. Após três anos, Shun executara todos os trabalhos ordenados por Yao e como prova de reconhecimento este escolheu-o para seu sucessor, por ser uma pessoa íntegra e de grande inteligência. Shun tinha 30 anos quando Yao lhe deu em casamento as duas filhas, Nu Ying e É Huang e após 70 anos de governação passou a liderança a Shun. Este com a idade de 53 anos recebeu o trono e fez a capital em Yuncheng, concelho de Yongji [conhecido nos antigos livros por Puban] na província Shanxi.

O quinto dos Ancestrais Imperadores, Yu Shun, (舜帝, Shun de Yu, 2255-2207 a.n.E., data de Lu Xun, 2287-2208 a.n.E., ou 1153-1061 a.n.E.), nasceu em Yongji na prefeitura de Yuncheng, a Sudoeste de Shanxi fronteira com Shaanxi. O seu pai Gu Sou afirmava ser descendente de Zhuanxu, mas este Imperador entregara o trono a Diku, filho preferido de um segundo casamento. Shun era diligente, modesto e carinhoso e tivera uma infância madrasta, valendo-lhe a irmã, a Senhora Keshou, a salvá-lo da fúria do pai cego Sou e de Xiang, o irmão mais novo, pessoa de mau carácter, sempre a conspirar por ciúmes contra ele, tentando-o matar para ficar com o seu lugar. No entanto, nunca conseguiu os seus intentos e Shun desculpou-o sempre. Durante o seu reinado [que segundo Sima Qian durou 39 anos] viveu numa casa humilde e teve um casamento muito feliz com as duas filhas de Yao. Além de investir na educação, na música e ensinar os Ritos, foram no seu reinado divulgadas à população as máximas do comportamento humano, usadas mais tarde por Kongfuzi.

Shundi constantemente se encontrava em viagem, umas vezes para inspecções, outras para resolver problemas ocorridos com o povo Huaxia e as outras tribos, ou para conquistar mais territórios em regiões cada vez mais remotas. Estava a população e as tribos a viverem em paz e harmonia, quando com 92 anos Shundi faleceu. Encontrava-se numa viagem de inspecção ao Sul, na região de Cangwu e após a morte foi canonizado como Yu Di Shun. É comemorado no oitavo dia do nono mês lunar no seu Templo-mausoléu no monte Jiuyi, também conhecido por monte Cangwu, a Sul do concelho de Ningyuan, província de Hunan, por onde passa o Xiangjiang [o rio principal do lago Dongting, e daí a ligação ao Yangzi].

Ainda no reinado de Yaodi, após despedir Gun por este não conseguir evitar as inundações, convidou Yu, com o mesmo ofício do pai, para substituir Gun no cargo. Yu trabalhou também para Shundi e ficou conhecido por conseguir controlar as cheias através da construção de canais, alargando os leitos dos rios e desviando as águas para as fazer correr até ao mar.

Devido à sabedoria de Yu, Shundi com 83 anos colocou-o rei e como Dayu governou durante 45 anos, fundando a dinastia Xia (2070-1600 a.n.E.), a primeira da China. Até Yu, os chefes eram escolhidos pelo seu saber e capacidade de resolver os problemas.

30 Ago 2024