O Jardim do Ribeiro dos Sonhos

(Mengxi ji)

Shen Kuo

Quando o velho que hoje sou tinha cerca de trinta anos, sonhou que subia a uma colina, com as encostas cobertas por um brocado de verdura e flores, um sopé banhado por uma água infinitamente transparente e um cume escondido por árvores altas. Este sonho encheu-o de uma alegria que o fez querer viver ali.

Voltou lá, ainda em sonhos, três ou quatro vezes depois, e tornou-se tão familiar para ele como se por ali andara toda a sua vida. Dez anos mais tarde, quando foi despromovido para um posto em Xuancheng, o venerável monge Wuwai disse-lhe que em Jingkou (Zhenjiang), onde a paisagem era admirável, estava à venda um terreno cultivado e ele comprou-o por trezentos mil sapecas sem saber onde ficava.

Seis anos mais tarde, destituído de um posto estratégico na fronteira, instala-se na Gruta de Ferro em Xunyang (Jiujiang) e pensa acabar os seus dias a caminhar no Monte Lu. No primeiro ano da era Yuanyou (1086), quando passava por Jingkou2, chegou finalmente ao jardim adquirido graças ao monge. Para grande surpresa sua, era o local por onde andara em sonhos, Logo exclamou: “É aqui que estou predestinado a viver!”

Assim, deixou a sua casa em Xunyang e construiu a sua habitação perto de Jingkou. Uma água profunda, calma ou saltitante, emerge de um desfiladeiro entre folhagens altas e rodeia uma parte do terreno; é a isto que ele chamou o Ribeiro dos Sonhos.

Nas margens do ribeiro, a meio da encosta de um monte coberto de mil flores, a Colina das Flores, ergue-se uma cabana de colmo que é o seu eremitério. A oeste, à sombra das flores e dos bambus, encontra-se o Miradouro da Pele das Árvores, onde ele relaxa e de onde a vista desce até ao Pavilhão da Colina das Flores que, num cruzamento de caminhos, surge enquistado num bosque antigo.

O monte é encimado por um abrigo de juncos, a Sala do Velho da Margem com, a norte, o Quiosque da Granganta Verde, de onde se pode ver abaixo a inscrição “Ribeiro dos Sonhos”. A oeste, a Colina das Flores está rodeada por milhares de bambus ondulantes, a Muralha de Bambus; ao atravessá-la para sul, segue-se um caminho cercado entre o riacho e uma muralha com ameias, a Boca de Pêssego. Pode aterrar, como uma andorinha, na Sala do Vento Frio, a meio dos bambus. A sul desta zona sombria, há um pavilhão à beira da água, o Gabinete Secreto, e, sobre um montículo, o Quiosque do Longínquo, com a sua vista desimpedida.

O Velho vive numa cidade, mas no meio de terrenos baldios e árvores velhas, veados e porcos. Se as visitas chegam, vão-se embora com um gesto de desagrado. Por isso, ele fica sozinho a desfrutar do seu jardim. Pesca numa nascente, passeia de barco a remos num lago, passeia o olhar entre a vegetação luminosa e a sua sombra harmoniosa.

É a isto que Tao Qian, Bai Juyi e Li Yue3, os anciãos que admira, chamam “os três prazeres”. Frequenta aqueles que se adequam ao seu coração e ao seu estado de espírito, a quem chama os seus “nove familiares”: a cítara, o xadrez, o chan (zen), a caligrafia, a alquimia, o chá, o canto, a conversa e o vinho. Depois de quatro anos aqui, o Velho adoeceu; recuperou ao fim de um ano, muito fraco e magro como uma árvore morta. Onde ficarão um dia os seus restos mortais?

Shen Kuo (1031-1095) ocupou um cargo muito elevado até à sua desgraça na sequência de um caso de fronteira. Grande estudioso, deixou a obra Propósitos do Ribeiro dos Sonhos, uma coleção de episódios, informações históricas e científicas. O seu jardim situava-se a sudeste das muralhas de Runzhou (ou Jingkou), a actual cidade de Zhenjiang, perto de Nanjing.

Notas

1. Aproximadamente o salário mensal de um ministro, uma grande soma comparada com os quarenta mil do quiosque Blue Waves (ver p. 42).

2. Segundo a sua biografia, parece que estava a caminho de um novo posto, suficientemente próximo para lhe permitir viver aí (foi “amnistiado” em 1088).

3. Tao Qian (Yuanming, 363-427), um grande poeta bucólico. Bai Juyi, famoso poeta da dinastia Tang. Li Yue, membro da família imperial Tang, conhecido pelo seu gosto pela simplicidade.

7 Fev 2025

Em Quanzhou 泉州, Zaiton, a Chincheo dos portugueses de quinhentos

“Jorge Mazcarenhas foy ter a huma cidade chamada Chincheo, em que lhe pareceo que avia mais rica gente que em Cantão.”

Fernão Lopes de Castanheda, História da Conquista da Índia, Livro IV, capítulo XLI.

“Chegados nós ao porto de Chinchéu, achámos aí três naus de portugueses que havia já um mês que eram chegadas (de Liampó) dos quais fomos muito bem recebidos e agasalhados com muita festa e contentamento e depois nos deram novas da terra, e da mercancia, e da paz e quietação do porto.”

Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, cap.57

“When the Portuguese, in the 16th century, recovered China to European knowledge, Zayton was no longer the great haven of foreign trade.”

Henry Yule, The Book of Marco Polo the Venetian, London, John Murray, 1874, capítulo LXXXII, II vol., pag 221, nota 2.

Entre os relatos dos nossos cronistas e aventureiros quinhentistas existe alguma confusão quanto à localização exacta do lugar que denominávamos Chincheo. O topónimo aparece associado ora a dois espaços diferentes mas próximos, as cidades de Quangzhou泉州 e Zhangzhou漳州 ou, por extensão, os chincheos serão os habitantes da actual província de Fujian, podendo Chincheo ser ainda o nome da própria província. Ora para Quangzhou, os dois caracteres 泉州– que soam como “chuanchou” em mandarim –, têm a leitura aproximada de “chinchew” na pronúncia local, no dialecto hokkien ou fulaohua福佬话, (a língua antiga de Fujian), um subgrupo do grande dialecto min do sul falado na província de Fujian. Do “Chinchew” ao Chincheo dos portugueses na China vai um curtíssimo passo. De resto, é curioso que, para além do mandarim, o dialecto mais falado em Taiwan, a Formosa, é exactamente o hokkien dado que parte da população da ilha é originária da região de Quangzhou, emigrada para Taiwan nos séculos XVIII e XIX.

Sem querer entrar em qualquer outra discussão, acredito que a cidade de Quangzhou, tal como a Liampó ou Ningbo宁波, na vizinha província de Zhejiang,[1] serão os grandes portos de comércio e abrigo dos portugueses da primeira metade do século XVI, ainda antes da fundação e fixação em Macau, que só acontecerá a partir de 1553/55, após os nossos marinheiros, mercadores e aventureiros terem sido expulsos destas duas cidades pelos chineses devido ao facto de serem estrangeiros e de haverem assumido comportamentos de verdadeiros haitao海偷, os “piratas do mar” como os chineses nos chamavam. Basta ler a saga de António de Faria na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto para entender como comerciar mas também saquear, roubar, viver extremadamente fizeram parte dos quotidianos quinhentistas dos portugueses por terras da China. Tal e qual como entravam no dia a dia de outros povos, incluindo chineses.

Quangzhou ou Chincheo, ou se quisermos a Zaiton de Marco Polo que no seu livro a considera “hum dos dous melhores e mayores (portos de comércio) que som no mundo” foi um dos primeiros lugares das costas da China abertos à navegação, ponto de escala e muitas vezes de início do que se convencionou chamar a “rota da seda marítima”. Daqui partiu Marco Polo na sua longa viagem de regresso a Itália. Acredita-se que Zaiton, o nome em árabe de Quangzhou, – também associado a “azeitona” – deu origem às palavras “satin” em inglês e “cetim” em português, tudo relacionado com as muitas toneladas de seda que se exportaram pelo porto de Quangzhou.[1]

Nas dinastias Song e Yuan (de 960 a 1368), a cidade atingiu o zénite do seu desenvolvimento como o grande entreposto dos mares da Ásia. Foram mercadores muçulmanos, sobretudo persas – que desde o século IX davam corpo à expansão do Islão para o vasto Sudeste Asiático –, que se fixaram em Quangzhou onde se calcula terem chegado a atingir as 150 mil almas. Era tão forte o seu poder económico na cidade que, entre 1345 e 1365 foram objecto de uma brutal perseguição por parte dos poderes chineses, tendo havido milhares e milhares de mortos. No século XIV, Zaiton era também habitada por judeus, hinduístas e católicos, tendo o franciscano italiano Andrea da Perugia sido o primeiro bispo na cidade em 1332. O quarto bispo de Zaiton, o também franciscano Giacomo da Firenze, foi martirizado em 1363. Existiam então dezenas de mesquitas e três igrejas, tudo arrasado nas perseguições ocorridas nesses anos.

No Verão de 2013, eis-me em busca da cidade de Zaiton, Quangzhou, Chinchew ou Chincheo.

Setenta quilómetros de autocarro desde Xiamen e chego à cidade que me parece harmoniosa, bem distribuída pelo vale e pelas colinas que a circundam. Onde está o rio, onde fica o porto? Pergunto e vão-me dizendo que Quangzhou não tem porto de mar, apenas na foz do rio, diante das ilhas, existe um pequeno porto para barcos de pesca. Caminho quilómetros ao longo do rio Jinhe em direcção ao mar. O rio dificilmente é navegável, está tudo assoreado, a areia e a lama depositaram-se no leito outrora de águas profundas, a cidade actual vive quase de costas voltadas para o rio Jinhe e para o oceano. O grande porto de Zaiton, a mais que provável Chincheo dos portugueses na China, foi engolido pela lama, pelas areias depositadas no rio e, antes da sua embocadura, as águas quase desapareceram com o rolar dos séculos.

Apanho um táxi e digo à mulher motorista, uma senhora afável e simpática, que quero ir, sempre pela margem do rio, até à foz. São mais quatro ou cinco quilómetros, mas a condutora assevera-me que não existe nenhum grande porto, só uma aldeia de pescadores e barcos de pesca. Avançamos na estrada. Adivinho umas centenas de traineiras, todas azuis, made in China, atracadas lá mais à frente. Há mesmo um porto na foz do rio, igualmente com bancos e restingas, com muita areia e lama, é, porém, um porto diante do mar.

Saio do táxi e avanço para o cais, para os barcos de pesca alinhados junto ao molhe, entro na confusão de quem chega com peixe para descarregar e para vender. Mulheres carregam ao ombro baldes pesados de peixe suspensos na extremidade de varas de bambu, outras sentadas em banquinhos limpam caranguejos e ostras, outras ainda, de cabelo entrançado que dá a volta no alto da cabeça num puxo seguro por uma espécie de pauzinhos, acondicionam peixe solto e marisco que vendem em pequenos lotes. Há homens jogando weiqi, o xadrez chinês, e jogadores batendo sonoramente cartas no tampo de mesas improvisadas. Alguns pescadores, por certo cansados do mar, assistem sossegadamente ao bulício misturado com a calma desta gente da beira-mar.

Atravesso a rua, caminho para a aldeia ao lado que parece manter a traça de séculos passados. Casas baixas de madeira, algumas de um só sobrado, decrépitas e pobres. Ruas estreitas, bastante imundície, lojas pequenas, uma ou outra casa de comidas, quase só peixe e marisco, velhos plantados na soleira das casas, meninos saltitando alegres por vielas e becos. Estou na Quangzhou, na Chincheo de quinhentos. O porto e a cidade deveriam ser assim no século XVI e, ao regressar, comprovo, que não estou numa aldeia mas no prolongamento do próprio tecido urbano da velha Quangzhou. Quase adivinho Fernão Mendes Pinto à conversa com António de Faria, talvez o seu alter ego, num junco, ancorado na foz do rio Jinhe, aqui, cidade de Chincheo, ano de 1545.

No dia seguinte, visita ao Museu Marítimo de Quangzhou, ao encontro da história e das muitas navegações por estes mares de Fujian, sul da China.

Nas fundamentais fontes chinesas não existe quase nenhuma referência a Portugal e aos portugueses. Se fomos os primeiros a arribar a estas paragens, na ligação marítima entre a Europa e o Império do Meio concretizada em 1513 com a chegada de Jorge Álvares a Toumen, na actual Hong Kong, província de Guangdong, não fomos os pioneiros nas navegações ao longo das costas e na estadia na China. Nos séculos XIII e XIV, Marco Polo, os muçulmanos e os missionários franciscanos, todos jornadeando pela velha Zaiton, merecem as honras da exposição museológica, com a exposição de pedras e lápides recentemente descobertas com textos extensos em árabe e pedras tumulares com cruzes cristãs.

É interessante a mostra dos diferentes tipos de barcos que no passado se aventuraram por estes mares, desde os juncos de alto mar do almirante Zheng He (1377-1433) que com estes navios navegou até Mombaça em 1433, até às fustas e naus, estas sim ligadas a uma presença portuguesa. Destaque também para a figura patriótica de Zheng Chenggong (1624-1662) ou Koxinga, que de pirata passou a herói nacional após haver expulsado em 1661 os holandeses sedeados há 38 anos no Forte Zeelandia, em Taiwan, de onde controlavam a ilha Formosa.

Mesmo ao lado do Museu Marítimo situa-se um outro edifício de três andares, que funciona igualmente como uma espécie de museu, o Centro Cultural Islâmico onde se homenageia a comunidade muçulmana outrora residente em Zaiton/Quangzhou. À entrada deparamo-nos com uma estátua de Ibn Battuta (1304-1377), o grande viajante árabe natural de Tânger, logo ali abaixo do nosso Algarve, que no século XIV empreendeu uma longuíssima jornada até à China e nos deixou um fabuloso relato das suas viagens, algo semelhante ao “Livro de Marco Polo”. Battuta viveu durante um ano em Zaiton, exactamente em 1346. No jardim do Centro Cultural encontramos um cemitério destinado aos muçulmanos ilustres falecidos na cidade e vale também a pena visitar a grande mesquita de Qingjing, originalmente construída em 1009 pelos primeiros prosélitos do Islão e de que restam apenas ruínas restauradas, e um pórtico. Aproveitando o espaço adjacente a Qingjing, acabou de ser construída uma nova mesquita com dinheiros provenientes da Arábia Saudita, não muito grande, mas a testemunhar um longo passado de ligação e relacionamento, nem sempre afectuoso e pacífico, entre o Islão e a China.

Regressando aos nossos marinheiros de quinhentos será de recordar que os portugueses de então não eram muito dados a visitar mesquitas, pagodes, templos budistas ou taoistas. Mas em Quangzhou/Chincheo existia já, desde o ano 686, um magnífico conjunto de pavilhões e pagodes dedicados à veneração de Buda, o templo de Kaiyuan. Por volta do ano 1100, na dinastia Song (960-1279) chegou a ser habitado por mais de um milhar de monges. Hoje, no templo de Kaiyuan, destacam-se os dois lindíssimos pagodes de pedra, iguais, não muito altos, apenas cinco andares com as paredes revestidas por originais baixos-relevos, tudo datado do século XIII quando Zaiton ou Quangzhou era uma das grandes cidades da China.

Pouca gente a visitar Kaiyuan. O desdobrar do olhar, uma pequena reverência aos budas, recordar Portugal e os portugueses de antanho, e diluir-me na serenidade do dia.

6 Fev 2025

Na falta de palavras Wan Shouqi retratou a sua morada

Fei Zhangfang, uma personalidade semi-lendária que terá vivido na dinastia Han Oriental (25-220), foi um guarda no mercado da sua cidade que se tornou num imperfeito discípulo de um velho que lá vendia poções chamado Hugong, que ele logo percebeu ser um imortal que terminava o seu exílio na terra. Dele recebeu um bastão que de modo surpreendente lhe permitia viajar, como voando, incríveis distâncias.

Fei tentou aprender do mestre os seus segredos, mas falhou ao terceiro teste. Quando Hugong o enviou para casa, disse-lhe para deitar o bastão num lago ali próximo chamado Gebei. Ao atirá-lo, Fei Zhangfang notou como este se transformava num dragão azul. A lenda que, nos seus múltiplos sentidos, aludia à capacidade daoísta do espírito efectuar espantosas mudanças e inéditas deslocações no espaço, seria um tema recorrente em pinturas figurativas no fim da dinastia Ming.

Um pintor de Xuzhou (Jiangsu) chamado Wan Shouqi (1603-1652), que viveu na transição dinástica Ming-Qing, terá acrescentado ainda um outro sentido à figuração ao fazer, em 1650, uma representação de Fei Zhangfang maravilhado na margem do lago presenciando a emergência do dragão azul, sobre um leque (tinta e cor sobre papel, 20,9 x 46,6 cm, no Instituto de Arte de Minneapolis).

O leque, o adereço de Zhongli Quan, um dos Ba Xian (os Oito imortais), que quando o abanava tinha, entre outros segundo a sua vontade, o poder de ressuscitar mortos. Percebe-se a vontade de Wan Shouqi de fazer regressar a antiga dinastia num dos «nomes de pincel», hao, que ele escolheu: Mingzhi daoren, que de maneira característica pode ter várias leituras, como por exemplo «o daoísta com um brilhante ideal» ou «o daoísta que recorda os Ming». Da sua biografia ressalta o facto de em 1628, quando ainda não tinha obtido o grau jinsi, ter participado num grande banquete oferecido pelo imperador Chongzhen (r.1627-1644) aos mais ilustres letrados do Império.

Wan Shouqi aderiu em 1632 à literária e política «Sociedade da Renovação», Fushe, que se opunha ao poder dos eunucos do Palácio e se propunha eliminar os estéreis estilos literários dos exames imperiais, fazendo reviver as lições dos antigos com temas mais úteis.

No período de desordem que se seguiu à queda dos Ming, Wan vagueou no território até se fixar numa quinta, perto da sua cidade natal. Aí, em 1651, num rolo de pintura em que é claro o seu conhecimento dos grandes mestres (tinta sobre papel, 20 x 289 cm, no Museu Guimet), pintou a sua residência em resposta ao pedido de um amigo, como se fora um convite. Nele escreveu: «Eis a minha Xixi caotang. Mestre Jin fez-me prometer que lhe dedicaria um poema, mas o poema não aparece; então, pintei este rolo para meu próprio prazer. Os antigos diziam: “em todas as pinturas há um poema”. Mestre Jin estará no interior ou no exterior da pintura?»

5 Fev 2025

Histórias da Serpente

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM 2025

29 de janeiro de 2025

Para conhecer mais a fundo a natureza de serpente de Madeira Yin (乙巳蛇Yǐ Sì Shé ), será conveniente analisar as histórias relativas a este réptil do sexto ramo terrestre em estreita associação com o princípio feminino.

A ela surge intimamente associada a divindade matriarcal Nϋwa (女娲Nǚwā) nos seguintes mitos “Nϋwa cria os Seres Humanos” (女娲造人Nǚwā zào rén) e “Nϋwa remenda o Céu” (女娲补天Nǚwā bǔ tiān). Nos mitos a divindade surge sozinha, completa em si mesma, como uma força criativa, no primeiro mito, e como uma força regeneradora e construtiva, no segundo, ao remendar o céu.

Enquanto mãe da humanidade, Nϋwa lembrou-se de o ser na sequência de uma visita à terra, tendo primeiro criado os animais, mas como ainda sentisse uma profunda solidão, decidiu gerar ainda os seres humanos: pôde fazê-lo por conter uma poderosa energia anímica, manifestada na sua qualidade de ser celestial, cuja aparência física se distinguia, porque embora tivesse cabeça humana, possuía corpo de serpente. Gerou espontaneamente com a ajuda do barro, ou seja, da terra, elemento ao qual se encontra indissoluvelmente ligada, seja no mundo subterrâneo, em poços, seja na água, seja na sua ágil escalada pelas montanhas e árvores numa busca instintiva da ascensão celestial.

É ainda esta mesma figura com corpo de serpente que vai repor a ordem na terra, quando ela mergulha no caos, na sequência de forças titânicas digladiantes, pois nalgumas versões se afirma que Nϋwa remendou o Céu após o Deus da Água do Norte, Gonggong ter atirado a cabeça contra Buzhoushan (共工怒触不周山 Gònggōng nù chù Bùzhōushān), num ataque de fúria contra o Imperador Celestial do Norte, Zhuanxu (颛顼 Zhuānxū), na sequência da derrota infligida por este.

O modo como Nϋwa remendou o Céu, o cuidado que colocou em reerguer os seus pilares, firmando-os com o auxílio de pedras, cujas cores (verdes, amarelas, brancas, azuis escuras e vermelhas) indicam a presença dos cinco elementos, essenciais à vida, bem como a fundamentação dos mesmos erguidos sobre as patas de uma tartaruga negra, a fim de garantir a sua longevidade senão mesmo a eternidade; o precioso auxílio que concedeu à humanidade no combate às feras que na barafunda do desabamento pululavam, as obras de drenagem que então efetuou, transformaram esta divindade com corpo de serpente num dos fundamentos da cultura religiosa e civilização chinesas.

De notar é a poderosa ambivalência deste réptil, já que se Nϋwa ostentava corpo de serpente, Gonggong, o furibundo Deus da Água, é descrito com idêntico corpo de serpente, senão veja-se como surge retratado em “Gonggong atira a cabeça contra Buzhoushan: “Gonggong era descendente de Yandi. Tinha corpo de serpente, rosto e membros humanos, além de cabelos ruivos, que indicavam o seu carácter fogoso, enérgico e inflexível” (Wang, Alves, 2009: 54).

As serpentes possuem veneno, que tanto cura como mata, podendo transformar-se, pela sua imensa capacidade de mutação, em excelentes humanos como no caso da Serpente Branga (白娘子 Bái Niángzi ), até em Pequenos Dragões (小龙 Xiǎolóng),ao desenvolverem a faceta generosa e meditativa, quando se ligam e defendem valores superiores, como o amor, na famosa lenda que nos chegou, por exemplo, através de Zhao Qingge (赵清阁) em 《白蛇传》(Bái Shé Zhuàn) .

Porém, pela sua força, capacidade e inteligência podem entrar em conflito como na história da literatura popular “Discussão entre a Serpente e o Sol”, que talvez pudesse encontrar equivalente cultural na competição da fábula de Esopo “O vento e o Sol”. Em “A Serpente discute com o Sol” (蛇与太阳的争吵) há uma óbvia rivalidade entre o sol, representante do elemento masculino Yang, belo, brilhante, quente e poderoso e a serpente, que igualmente portentosa, se considera o máximo poder da terra.

Esta desafia o sol, começando um conflito entre o poder das forças misteriosas e ocultas lunares, representadas pela serpente, e o esplendoroso brilho irradiante da energia solar. Por fim a fábula termina não com a vitória do sol, à maneira de Esopo, mas com a necessidade do reconhecimento da complementaridade, pois sem a alternância da noite e do dia, do sol e da sombra, do calor e do frio o mundo, como os chineses o entendem (baseado nesta harmonia tensional) não seria nem estaria completo. Moral da história: se não houvesse sol, seria a morte da terra, pois mergulharia numa noite infinita, se não existissem serpentes, seria igualmente o fim do mundo, porque não haveria nem agilidade, nem capacidade de transformação, mergulhando “tudo aquilo que existe debaixo do Céu” (天下 tiānxià) numa imensa rigidez e monotonia.

A serpente, enquanto sexto ramo terrestre do zodíaco chinês (十二生肖蛇 shí´èr shēngxiào) simboliza ainda o animal engenhoso, que, devido à sua poderosa inteligência, é capaz de arquitetar e realizar um plano bem calculado. Tal é provado pela sua biografia ao entrar na corrida celestial promovida pelo Imperador de Jade (玉皇大帝Yù Huáng Dàdì).

A serpente e o dragão costumavam ser bons companheiros e partilhar os mesmos espaços aquáticos, quando se soube da intenção do imperador de organizar uma competição a fim de que doze animais pudessem comandar as estrelas e os destinos dos humanos. Dada a poderosa inteligência do réptil, este percebeu que não tinha hipótese nem rapidez para superar o dragão, mas como sabia fazer bons cálculos e melhores planos, trepou discretamente para as costas do cavalo, sem que este notasse que estava a transportar um rival, perto da meta saltou de modo a posicionar-se à frente do equídeo, e assim foi, mantendo-se ambos bons amigos até aos nossos dias, já que o cavalo, sempre generoso, nunca lhe cobrou a boleia. Para os chineses, a serpente simboliza “um potente e vitorioso engenho” (以巧胜力 yǐ qiǎo shènglì).

Uma outra história chama a atenção para a importância do perdão no processo ascético da serpente rumo à transformação em Pequeno Dragão: “A Serpente e o Agricultor”(蛇与农夫 Shé yǔ nóngfū). Num inverno rigoroso, certo agricultor foi dar com uma serpente enregelada. Apiedando-se dela, levou-o para casa, colocando-a num lugar aquecido. Quando esta recuperou as forças, em lugar de agradecer pelo facto de ter sido salva, atacou o pobre homem desprevenido, com o objetivo de o ferir. Este, evitando a tempo ser mordido e reprimindo a fúria, chamou o réptil à razão com toda a calma, perguntando-lhe se era assim que ele tratava um amigo que lhe tinha salvado a vida. A serpente, tocada pela comprovada bondade do agricultor, nunca mais o atacou. Moral da história que os chineses contam às suas crianças: a bondade compensa, podendo salvar não apenas corpos como almas.

A serpente simboliza a divindade “guardiã dos tesouros da terra” em 蛇守护宝藏 (Shé shŏuhù bǎozàng), encontrando-se na entrada de grutas a velar pelas infinitas riquezas. As guardiãs são gigantescas, dotadas de uma força prodigiosa, mas também de uma sabedoria profunda e misteriosa. Quem tente penetrar numa dessas grutas, não o conseguirá por mais força que tenha. Apenas alguém muito especial, de espírito heroico e munido de sabedoria virtuosa passará a prova, sendo-lhe proporcionado o acesso aos tesouros da terra, não para usufruto próprio, mas para benefício da comunidade e/ou humanidade.

Termino com a minha tradução de uma outra história popular, intitulada “Serpente Branca, Serpente Negra”( 白蛇与黑蛇 Bái Shé Yǔ Hēi Shé), que apresenta e resume e necessidade de os dois princípios, o Yin e o Yang, operarem sempre em equilíbrio, sendo a serpente negra, representante Yin da força misteriosa e lunar e a branca, simbolizando a irradiante força energia Yang, seu contraponto.

很久以前,在一座隐秘的山中,有两条神蛇——白蛇与黑蛇。白蛇象征纯洁与善良,生活在阳光明媚的山顶,守护着清澈的溪流与花草;黑蛇则代表力量与神秘,栖息在幽暗的山谷,掌控着风暴与黑夜。

一天,一场大旱袭击了山谷,水源枯竭。白蛇认为,只有靠善行和祈愿才能带来水,而黑蛇则主张用力量召唤风暴来解决问题。两蛇因此争执不休,各自施展法力,山中风暴与烈阳交替,导致自然失衡,生灵涂炭。在看到生灵的痛苦后,白蛇与黑蛇意识到,单靠善良或力量都无法真正拯救山林。它们最终联手,白蛇用其善念唤来生命的春雨,黑蛇用其力量引导水流重回山谷,山林恢复生机,两蛇也化作山中的守护灵。 (https://www.lingoace.com/zh/blog/story-for-the-year-of-snake/)

Certa vez, abateu-se uma grande seca sobre o vale, esgotando todas as fontes e reservas de água que aí existiam. A Serpente Branca acreditava bastar o poder da sua boa ação e orações para que a água regressasse, enquanto que a Serpente Negra defendia que só pela invocação da força das tempestades se resolveria a questão. As duas serpentes discutiam sem parar, cada qual exibindo e exercendo as suas capacidades, ora com violentas tempestades, ora com sois escaldantes. Tal situação conduzia à perda do equilíbrio na natureza e ao miserável sofrimento dos seres vivos. Quando ambas viram o que eles estavam a padecer, perceberam que se apenas dependessem da força benfazeja do sol ou da das borrascas, não teriam como salvar aquela região montanhosa. Por fim, conjugaram esforços. A Serpente Branca invocou a energia vital da chuva primaveril e a Serpente Negra empregou a sua força para deixar fluir as águas pelos vales e montanhas de modo a recuperar a vida. E foi assim que as duas serpentes se transformaram nos espíritos guardiões da montanha.

Referências Bibliográficas

LingoAce新媒体团队.2024. 蛇年文化故事:给孩子讲述的10个有趣传说.Disponível em:

https://www.lingoace.com/zh/blog/story-for-the-year-of-snake/ , acedido a 17 de janeiro de 2025.

“O Vento e o Sol” Antologia Porventura, com World press. Disonível em: https://antologiaporventura.wordpress.com/2013/09/02/o-vento-e-o-sol-fabula-de-esopo/, 9 de fevereiro de 2013, acedido a 30 de janeiro de 2025.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. “A História da Serpente Branca”, in Mitos e Lendas da Terra do Dragão, Lisboa: Caminho.

Zhao Qingge (赵清阁) .1998. The Legend of White Snake. Beijing (北京): New World Press (新世界出版社).

4 Fev 2025

2025 YiSi (乙巳) Ano da Serpente Verde

A China, com existência há setenta e oito ciclos, cada um de 60 anos, em 2025 apresenta o número 42 a corresponder a Yisi (乙巳), Serpente Verde. O ano lunar começa a 29 de Janeiro e terminará a 16 de Fevereiro de 2026 e para o Feng Shui inicia-se às 22h10m13s do dia 3 de Fevereiro, quando se celebra o Princípio da Primavera (Lichun). Ao contrário do ano anterior, sem nenhum Lichun, neste comemoram-se dois, sendo o segundo devido ao duplo sexto mês lunar, contando o ano com 384 dias.

No Caule Celeste (Tian Gan, 天干) o Elemento Yi (乙), Madeira yin, e no Ramo Terrestre (Di Zhi, 地支) Si (巳, serpente) Elemento Fogo yin, direcção Sul. Encontrando-se em cima Yi (乙) Madeira yin tem o Elemento Fogo (Si, 巳) por baixo e como Madeira faz crescer o Fogo, o Fogo vai ser alimentado e ficar muito forte, e ainda mais nutrido ao juntar-se o gua Li (离, Fogo) do período 9 [de vinte anos iniciado em 2024 e a terminar em 2043].

Com início no Lichun de 2025 entra-se num período de três anos cujo Elemento dominante é o Fogo. Em 2026, ano Bingwu (丙午), tanto no Caule Celeste como no Ramo Terrestre tem o Elemento Fogo yang e por isso chamado Ano do Cavalo Vermelho. Já em 2027, Dingwei (丁未) é Fogo yin e daí denominado por Carneiro Vermelho.

Fogo representa guerra, vulcões, terramotos, tempestades e ligações ao Elemento Metal, [derretido pelo Fogo], acidentes de aviação e de viação. Para a saúde, o Fogo provoca ataques de coração (pois este é Elemento Fogo) e problemas de pulmões (Elemento Metal), sendo estes os principais órgãos afectados este ano.

Como Fogo derrete o Metal, a Europa (situada na direcção Oeste, Elemento Metal) irá sofrer mais, mas Portugal envolto por Água consegue equilibrar e controlar a intensidade do Fogo.

Já quanto ao Ramo Terrestre (Di Zhi, 地支) Si (巳), Elemento Fogo yin e direcção Sul, reconhecido pelo ano da Serpente, simbólico animal cujo nome comum é shé (tsz, 蛇), representa para este ano, o desviar-se do caminho normal. Não segue as regras. É também muito flexível e tem a sensibilidade para esperar para agir no momento correcto.

O ano Yisi (乙巳), Madeira yin, Fogo yin, será financeiramente bom pois as ondas provocadas levam a grandes negócios, sobretudo os relacionados com produtos de madeira, farmacêuticos, culturais e de agricultura. As pessoas gostam de fazer investimentos como num jogo e rapidamente ganham ou perdem tudo.

ROTAÇÃO DOS CINCO PLANETAS

Para 2025, o gua Fogo Li (离) do período 9, iniciado no ano passado por vinte anos, significa separação e com uma forte ligação ao planeta Mu Xing (木星, Júpiter) vai continuar a actuar na Terra, activando sismos, erupções vulcânicas e tempestades.

Será um ano anormal devido à mudança de sentido na rotação de sete planetas, que num certo período giram em sentido oposto ao normal, num movimento retrógrado aparente, pois do “ponto de vista da Terra parecem parar brevemente e reverter o sentido do movimento em determinados momentos, embora na realidade eles orbitem no mesmo sentido em torno do Sol”, segundo informação na Wikipédia explicado no artigo .

Assim Huo Xing (火星, Marte, a estrela do Fogo, direcção Sul) já começou a rodar no sentido oposto (num movimento retrógrado aparente) no dia 7 de Janeiro de 2025 e assim continuará até 18 de Abril. Será um período de enormes problemas com incêndios e outras calamidades naturais, ligadas ao Elemento Fogo. Essa rotação invertida ocorre também a Jin Xing (金星, Vénus, a estrela do Metal, direcção Oeste) entre 28 de Março a 30 de Abril.

O planeta Vénus está ligado às Finanças e quando no período entre 28 de Março a 18 de Abril, Huo Xing e Jin Xing, se sobrepõe ambos com a rotação invertida, ocorrerão grandes ondas na Economia mundial e os mercados financeiros [Bolsa de Valores e o câmbio de moedas] sofrerão com grande turbulência, num prenúncio de Crise Financeira.

Todos os restantes cinco planetas que se seguem mudam o sentido do rodar no segundo semestre do ano: Tu Xing (土星, Saturno a estrela da Terra, direcção Centro), ligado com a geologia e agricultura, no período de 1 de Setembro de 2025 até meados de Fevereiro de 2026 irá afectar os terrenos e criar novas morfologias, provocadas por tsunamis. Muita terra ficará inundada e em outras partes sofrerá severas secas.

Na meteorologia, quando é necessário frio, está calor, quando é preciso chuva, o Sol intenso brilha, a afectar a agricultura, a levar à falta de comida. Já os restantes planetas que de um movimento progressivo passam a circular no outro sentido, num movimento retrógrado aparente, oposto ao até então, são Shui Xing (水星, Mercúrio, estrela da Água, direcção Norte); Tian Wang Xing (天王星 Urano); Hai Wang Xing (海王星, Nepturno); Ming Wang Xing (冥王, Plutão). Estas mudanças colocam as pessoas a tomar decisões com a cabeça quente, sem pensarem nos problemas que podem criar. Outubro será um mês negro devido ao que poderá ocorrer, esperemos não ser o início de uma nova guerra.

ALERTA PARA O DEVIR

Para este ano se pode ser espectador, não seja actor. O Elemento Madeira representa cultura, sendo o único tema para relaxar o coração.

Com as mudanças climáticas a elevarem os poderes dos Elementos, tudo chega com grande intensidade levando a grandes desastres. Após o clima, a guerra mundial espera apenas um estalar de dedos para aparecer, tornar-se realidade e explodir. As pandemias espreitam e estão prontas a atacar. Tudo está sobre grande pressão e em extremos, a economia ajudará alguns e muitos ficarão de fora, devido ao preço inflacionado ou desvalorizado do trabalho.

Só agora se chega à consciência de já estarmos no terceiro milénio. O ano de 2025 colocará medo nas pessoas e com essa tensão as loucuras da alma do Fogo surgirão, elemento que será perpetuado nos dois anos seguintes. Na visão geral para 2025 este será um ano difícil, mas é apenas um aviso do que virá em 2026.

No Yi Jing corresponde ao hexagrama 49, Ge (hua) antigamente a pele dos animais já sem pêlos e o actual significa e aparece a edificar um novo sistema possivelmente através de uma Revolução (a significar remoção daquilo que se tornou antiquado). Água e Fogo extinguem-se mutuamente.

Tai Sui

O Deus do Ano (Tai Sui) de 2025 é o General Wu Sui. Nascido na província de Anhui foi magistrado da dinastia Song e ficou conhecido pela sua inteligência, compaixão e capacidade de resolver com a agudeza das suas análises casos muito complexos. Tal levou a ser promovido em 1240 a Governador do concelho de Xiuning em Anhui. Devido a uma seca extrema na região, passou três dias e noites no templo Seng Vong (Cheng Huang) a orar por chuva, sendo os seus pedidos atendidos.

A chuva apareceu, mas apenas na sua região pois à volta a seca era devastadora havendo muita fome e enormes incêndios, levando o caos a essas zonas e apenas o território onde governava tinha paz e estabilidade. Era uma ilha e tendo o general organizado tudo, a região não caiu no caos havendo harmonia na população ao contrário dos outros lugares onde dominavam as pilhagens e só da área do Huaihe para ali fugiram 400 mil pessoas.

Com o General Wu Sui como Tai Sui de 2025, este ano traz mudanças relacionadas com as fontes de conflito potencializados por desastres naturais e por violentas discussões, hostilidades e tensões intensificadas pela estrela voadora 3 Jade (San Bi) a poderem terminar em tribunal.

3 Fev 2025

Previsões dos signos para o ano de Serpente

Sob influência da cobra

As previsões aqui expressas são a nossa interpretação das ideias escritas por Edward Li.
Este ano de 2025 os quatro animais em Fan Tai Sui são: Serpente em Zhi Tai Sui por ser o animal do ano e em Xing Tai Sui, a ser julgado pelo Deus do Ano; Porco em Chong Tai Sui em oposição, a colidir com o Deus do Ano; Tigre em Hai Tai Sui magoado pelo Tai Sui; e Macaco em Po Tai Sui. Para o ano de Madeira Serpente, os nativos de Cão serão os mais bafejados pela boa sorte.
As pessoas que nasceram antes do Lichun (Princípio da Primavera, que em 2025 ocorre a 3 de Fevereiro) são nativas do animal do zodíaco respeitante ao ano anterior. Assim, os nascidos antes de 3 de Fevereiro de 2024 são do ano do Dragão.
O dia propício para ir ao templo oferecer sacrifícios ao Deus do Ano é 5 de Fevereiro, isto é, dia 8 do primeiro mês lunar.

Serpente
Ano de Fan Tai Sui para os nativos de Serpente, mas não se preocupe pois conta com a ajuda de muitas estrelas da sorte. Tem nas mãos o poder, logo apenas necessita de seguir em frente para atingir o topo da carreira. No início do ano deverá oferecer sacrifícios ao Deus do Ano.

Carreira: A poderosa estrela da sorte Ba Zuo (八座) relacionada com a carreira representa ser promovido e ficar em posição de comando. As estrelas da sorte Tian Jie (天解) e Jie Shen (解神) ajudam a solucionar os problemas causados por desastres, sem crises de maior. Quanto ao dinheiro, a estrela da sorte Jin Yu Lu (金舆禄, grande fortuna) permite receber recompensas pelo seu trabalho árduo.
A má estrela Zhi Bei (指背) significa falar mal de si pelas costas e devido à má estrela Fu Chen (浮沉) será afectado por instabilidade emocional.
Os nativos de serpente devem lembrar-se ser este um ano em que a segurança é o mais importante e deve evitar qualquer tipo de acções perigosas, não apenas consigo, mas também com os seus progenitores. A flexibilidade com que rapidamente reage aos problemas cria mais oportunidades para si.

Amor: Sem estrelas da sorte conectadas com o amor, os nativos masculinos encontrarão alguns problemas emocionais, mas para este ano a carreira é o principal aspecto. Assim, nas relações com os outros o mais importante é serem pacíficas e calmas e é de evitar quaisquer discussões e desentendimentos, ou irá encontrar-se em situações que não consegue controlar.

Saúde: Os nativos de Serpente encontrando-se em Fan Tai Sui e com as más estrelas Jian Feng (剑锋, ponta da espada) e Xue Ren (血刃, fio da lâmina com sangue) a representarem operações e acidentes, significa que este ano os problemas estão relacionados com a saúde. Por isso, no início do ano deverá fazer exames clínicos. As nativas de Serpente grávidas devem ter mais atenção, devido à má estrela Fu Shi (伏尸, Corpo Morto), a representar morte que pode ocorrer por desastre.
Como este ano está numa posição superior, qualquer acção poderá desencadear alguém contra si, ou a apontar-lhe o dedo, provocando-lhe uma grande tensão, por isso precisa de se manter calmo e estável.

Nativos de Serpente nascidos em:
1965 – Atingindo os 60 anos é expectável ter alguns problemas de saúde e daí a importância de realizar festas, como a de aniversário, ou uma segunda lua de mel. Será bafejado na carreira e com dinheiro.

1977 – Bom ano para estudar negócios de comida ou investir nessa área, pois tem a ajuda da estrela da sorte Tian Chu (天厨, Cozinha do Céu), a poder trazer-lhe vantagens inesperadas.

1989 – Não se coloque de baixo dos holofotes e evite chamar a atenção sobre si pois atrairá inveja e pode levar ao aparecimento de rumores, especialmente sobre dinheiro ganho, que deverá guardar segredo.

2001 – Terá como apoio alguém com um grande poder e todos os seus projectos realizar-se-ão com grande sucesso, mas a vida emocional poderá trazer-lhe problemas e acidentes.

1953 – Continua a ser criativo na carreira e a merecer apoio e respeito a elevá-lo a um novo patamar. Tenha cuidado com a saúde e pratique uma vida mais natural, coma com mais qualidade e pratique desporto.

Cavalo
Ano para sociabilizar e criar um novo ambiente. No período 9, o Ramo Terrestre (Di Zhi, 地支) Wu (cavalo) cujo Elemento é Fogo, sendo este um ano de Fogo coloca os nativos de Cavalo com asas e num constante galopar, muito activo e sem nunca parar, com interesse por tudo. Assim, se encontrar algo que lhe interesse foque-se pois conseguirá ter sucesso.

Carreira: A poderosa estrela da sorte Tai Yang (太阳, Sol) é boa para tudo e não só para a carreira, mas também para o casamento e com a estrela Wen Chang (文昌, deus dos Letrados) confere-lhe dignidade, poder e posicionamento social. Representa poder desenvolver com sucesso qualquer área e coloca os nativos mais inteligentes e flexíveis. As estrelas da sorte Tai Ji Gui Ren (太极贵人, alguém a ajudá-lo) e Tian Chu (天厨, Cozinha do Céu) permite avançar na área cultural e artística ou gastronómica, sendo o melhor ano para criar ou estender essas competências.
As más estrelas Tian Kong (天空, Vazio Céu) e Hui Qi (晦气, Energia Suja) criam dificuldades em tomar decisões e poder facilmente ser enganado. A má estrela Xian Chi (咸池, relações fora do casamento) representa relações complicadas a poderem afectar os negócios e a provocar perdas financeiras.

Amor: Com a poderosa estrela da sorte Tai Yang (太阳, Sol) o charme dos nativos de Cavalo atrai a atenção e para as nativas conseguem-no quando viajam e havendo um duplo Lichun é um bom ano para casar. Os casais devem preparar-se para a chegada de um filho e para os casais idosos é bom realizar uma viagem de segunda lua de mel. A má estrela Xian Chi (咸池) avisa para ter cuidado com as relações fora do matrimónio.

Saúde: A má estrela Bing Fu (病符, sinaliza doença) representa ter cuidado durante todo o ano, em especial para os nativos nascidos no Verão. Faça um exame de saúde com o foco no sangue e no coração. Não trabalhe em demasia e não fique muito tempo em casa, relaxe pois a estrela voadora Er Hei (2 Preto) duplica a doença.

Nativos de Cavalo nascidos em:
1978 – É o melhor dos nativos de Cavalo quanto à carreira e dinheiro. Uma festa de aniversário ajuda a melhorar as relações. Já entre os casais, precisam de tomar cuidado e temperar as emoções.

1966 – A sua posição é estável, ou conseguirá ser promovido. A estrela da sorte Lu Shen (禄神), coloca os nativos com um bom rendimento e boas relações públicas. Precisa de ter cuidado com a saúde, devendo equilibrar o trabalho com o descanso.

1990 – Conseguirá colocar os seus planos em acção, especialmente com os negócios da palavra dada. O rendimento auferido é satisfatório e só precisa de ter cuidado com a quantidade de relações amorosas que lhe tiram tempo e energias, levando à perda de dinheiro.

2002 – Terá oportunidade de criar o seu próprio negócio e comprar casa. Poderá tentar diferentes vias a preparar uma futura base e só precisa de evitar noitadas excessivas, que podem destruir a sua saúde.

1954 – Ano para aproveitar e experimentar boa comida, mas também a má estrela Bing Fu (病符, Sinaliza doença) espreita e daí ser preciso no início do ano fazer um exame de saúde e oferecer sacrifício ao Deus do Ano.

Cabra
Duas palavras importantes para este ano, mudança e acção. Tem de ter receptividade à mudança, aceitando as novidades e colocar os olhos no mundo. Acção, pois este ano a competição não é somente mental, mas será necessário trabalhar arduamente. Na mudança crie o seu espaço. Perder dinheiro não será negativo, pois pode evitar um desastre.

Carreira: A estrela da sorte Tian Yi Gui Ren, (天乙贵人) significa ter um novo desenvolvimento com uma poderosa ajuda, pois os nativos de Cabra estão ligados à criatividade e ao espectáculo, sendo este um ano para mostrar totalmente o seu talento e argúcia no captar o que é especial. O brilho da luz provem da estrela da sorte Jin Yu Lu (金舆禄, grande fortuna), que em tempos antigos significava uma carroça puxada por cavalos a chegar a sua casa cheia de ouro, assim como representa muitas oportunidades para ganhar dinheiro. A estrela da sorte Yi Ma (驿马) representa mudança na sua vida, o que inclui emigrar, estudar ou trabalhar fora do país, uma longa viagem, trocar de casa ou de emprego e isso será numa boa direcção. As más estrelas Tian Gou, (天狗, Cão do Céu) e Bao Wei (豹尾, fraude) levam as relações entre amigos ou parceiros de negócios a sofrerem mudanças devido a conflitos, mas se os resolver a bem não lhe trazem problemas. As más estrelas Diao Ke (吊客, relaciona-se com a morte de um familiar) e Sang Men (丧门, porta da morte) poderão lançar as emoções em ondas de tristeza e ficar com baixas energias.

Amor: O nativo de Cabra solteiro poderá encontrar o parceiro numa viagem e num ano de duplo Lichun é bom para casar e ter filhos. Mas o ano é propício para os nativos serem usados e enganados, por isso precisa de muito atenção para evitar ser magoado.

Saúde: Como será um ano de muitas viagens é importante ter cuidado com os transportes que escolhe e quando conduz tome precauções e muita atenção ao que tem pela frente. Evite os desportos de alto risco. Os nativos de Cabra nascidos no Verão facilmente terão problemas de saúde, de cabeça, coração e sangue. Quanto ao Feng Shui coloque um copo com água junto à cama para equilibrar com o fogo e terá menos problemas pois ficará com a mente clara.

Nativos de Cabra nascidos em:
1955 – Parabéns pois tem uma dupla estrela da sorte Jin Yu Lu (金舆禄, grande fortuna), significando duplicar os ganhos, mas evite dar garantias e emprestar dinheiro, pois poderá não o receber e perdê-lo pode levá-lo a tribunal.

1967 – Ano com muitos e múltiplos interesses, especialmente nos estudos gastronómicos.

1979 – Acalme a pressão no trabalho, evite discussões e se tiver sorte, não escutará os mal dizeres sobre si.

1991 – Com a estrela da sorte Guo Yin Gui Ren (国印贵人, Carimbo do país de poderosa ajuda) o seu poder e posição serão reforçados, encontrando-se no topo da carreira. Poderá fazer bons investimentos pois irão trazer-lhe um bom retorno.

2003 – Conseguirá um forte poder quanto à carreira em especial no sector cultural e na saúde. Consuma comida saudável.

Macaco
No ano de Serpente, os nativos de Macaco encontram-se em Po Tai Sui, sendo fácil ocorrer-lhes danos, mas ao mesmo tempo ambos os animais se combinam e assim o mal e o bom estão equilibrados. Contam com a ajuda de muitas estrelas da sorte e daí ser um dos três animais a ocupar uma das posições de topo. De certeza que é um ano de muito trabalho pois será de preparação para criar uma boa base para o futuro.

Carreira: Este ano os nativos de Macaco conseguem encontrar um bom parceiro para cooperar, mas as relações com as pessoas tornam-se muito complicadas pois, apesar de falarem bem, sem se aperceberem muitas vezes magoam os outros. Daí, mesmo quem os ajuda foge deles devido à única má estrela deste ano, Juan She (卷舌, alguém a falar mal de si) e se os nativos se aperceberem disso, conseguirão tornar o ano perfeito.
As estrelas da sorte Tian De (天德) e Fu Xing (福星) limpam o caminho e a Fu De (福德, a trazer riqueza material e protecção pela virtude) conseguirão resolver quase todos os problemas e mesmo encontrando-se em situações difíceis conseguem mudar para uma situação positiva.
A estrela da sorte, Tian Yi Gui Ren, (天乙贵人, poderosa ajuda ligada com a criatividade) é muito boa para a carreira.
A super estrela da sorte Tai Yin (太阴, Lua) é excelente para as nativas consolidarem ou criarem negócios ligados com o feminino, como o de joalheria, maquilhagem e perfumes, ou ginástica e ioga, não fosse o poder feminino estar na mó de cima. Ano para aprender como transformar os inimigos em amigos, a levar a prolongar a sorte e ficar mais duradora.

Amor: Os nativos de Macaco contam com a estrela Hong Yan (红艳, emoção e amor) boa para os solteiros devido a permitir ter muitas hipóteses, mas se não a controlar bem pode causar problemas, representando no período 9 relações ambíguas. Para os casais, devem focar-se nos negócios para não cair nas tentações a destruir a boa sorte e mesmo a família.

Saúde: Num ano de Fan Tai Sui pode facilmente ter um acidente, como uma queda, ou um desastre com os transportes e mesmo com as inúmeras estrelas da sorte, o melhor é no início do ano ir ao templo pedir protecção ao Deus do Ano, especialmente os idosos nascidos no Inverno; vista roupa de cor vermelha para conseguir ajuda.

Os nativos de Macaco nascidos em:
1968 – Tanto na profissão como nas finanças encontra-se no topo dos nativos de Macaco, mas seja modesto para evitar ciúmes e tenha cuidado com as relações amorosas fora da família.

1980 – Ano muito criativo a poder desenvolver muito a carreira. Tanto nos investimentos como no dinheiro da sorte terá muitos proveitos.

1992 – As suas ideias serão aceites pelos seus sócios e pode cooperar para criar novos negócios. Invista numa casa para si.

1956 – Terá um proveito monetário regular, contando com muita saúde e energia para gozar uma vida social tranquila a trazer-lhe felicidade.

2004 – Os estudos correrão muito bem e se escolher arte e cultura, ou gastronomia terá um espaço muito maior para o futuro. Tome cuidado ao conduzir o seu veículo.

Galo
No ano de Serpente, os nativos de Galo combinam-se com Búfalo e Serpente, San He (三合, três animais que se combinam), devendo ser entre estes signos o parceiro da sua escolha. É ano para os nativos de Galo como capitão levarem o exército a combater. Se por um lado tem o poder nas mãos, por outro necessita de arranjar tudo, o que não será nada fácil.

Carreira: Os nativos de Galo contam com a estrela da sorte San Tai (三台, quem tem o Carimbo) boa para conseguir ser promovido e se trabalhar na Administração conquistará uma posição de relevo. A estrela da sorte Jiang Xing (将星, do General, ligada à carreira, autoridade e ao poder) se for patrão conseguirá uma boa ajuda e como empregado pode ser promovido a um lugar superior de comando. Os nativos de Galo são trabalhadores árduos e não falham se tiverem motivação, nunca atirando a toalha ao chão, o que lhes pode dar uma carreira de sucesso.
A estrela da sorte Jin Kui (金柜, Cofre para guardar preciosidades) traz sorte em assuntos financeiros, pois arrecada os ganhos e acumula-os, especialmente o ser feminino. Conta com uma das fortes más estrelas, Bai Hu (白虎, Tigre Branco) significando problemas criados aos homens por mulheres sobretudo as sentadas no lado direito. Deve ter muito cuidado com a má estrela Guan Fu (官符) e não dar como garantia a sua palavra. Já as más estrelas Wu Gui (五鬼, cinco fantasmas) e Zhi Bei (指背) representam pessoas a fazer maldades nas suas costas. Assim, com estas más estrelas, não há dúvida que precisa logo no início do ano de oferecer sacrifícios ao Deus do Ano. Lembre-se de não colocar dentro de casa na direcção Noroeste gaiolas vazias, o que poderá trazer sérios problemas que podem levar à prisão.

Amor: Ano complicado, pois, se por um lado tem uma vida social activa com muitos e novos amigos poderosos, por outro, atrai um mundo de emoções não muito claras. Este ano deverá ter a mente limpa para evitar ser enganado e cair em mal-entendidos.

Saúde: As nativas de Galo, em especial as grávidas, devem ter muito cuidado pois os problemas provêm do útero. Já os seres masculinos, devem ter em atenção a próstata e evitarem o excesso de relações sexuais. Tal deve-se à muita turbulência criada por as várias más estrelas, sobretudo aos nascidos no Outono e Inverno. Adoptar um gato poderá resolver o problema.

Nativos de Galo nascidos em:
1993 – Ano propício para criar a sua própria empresa, pois o seu talento e criatividade trazem-lhe muitos e bons negócios. Para as nativas de Galo devem ter cuidado com o nascimento de um filho, a poder levar a ter de fazer uma operação.

1981 – Irá ter um bom chefe a dar-lhe muita liberdade para se desenvolver na sua área e os investimentos terão um bom retorno. Uma festa de aniversário ajuda a conseguir boas relações.

1969 – Os nativos de Galo trabalharão arduamente e sobre grande pressão, mas apenas recebem maus comentários. Coloque nas costas da cadeira uma roupa de cor vermelha para haver menos discussões no emprego.

1957 – Ano em que é bafejado com a boa estrela Tian Chu (天厨, Cozinha do Céu) a trazer o interesse de cozinhar boa comida e mesmo mostrar em vídeo as suas experiências, podendo ganhar dinheiro com o que gosta de fazer e usufruir gustativamente dos seus pratos, logo um ano de grande prazer.

Cão
Após vários anos de preparação, finalmente no ano de Serpente os nativos de Cão encontram-se no primeiro lugar, com imensas oportunidades. É tempo de colocar em acção os seus planos pois conseguirá realizar os seus sonhos. Conseguirá uma sólida e estável posição de poder que o podem tornar famoso. É ano para casar, pois com um parceiro perfeito tudo se torna mais fácil; o elemento masculino conseguirá riqueza e o feminino verá a carreira evoluirá bastante.

Carreira: As superpoderosas estrelas da sorte Zi Wei (紫微) e Long De (龙德, virtude do dragão) que representam conquistar poder e ser promovido na carreira, permitem facilmente que tenha sucesso com os seus projectos. Já os negócios, trazem-lhe fama. Se trabalhar na Administração, conseguirá uma posição de topo e ser respeitado por todos. A estrela da sorte An Lu (暗禄, Dinheiro Sombra, ou da Sorte) leva a conseguir dinheiro fora do que era expectável sem que ninguém saiba que o tem. Este ano conseguirá conquistar posição, fama, dinheiro e amor; uma combinação perfeita. Mas como sempre, há uma parte negativa pois estará sob a influência das más estrelas Bao Bai (暴败, perder, falhar) e Tian E (天厄, Catástrofes provenientes do Céu), a significar mudanças repentinas que não consegue controlar e fora do previsto.
As más estrelas Fei Ren (飞刃, fio da lâmina) e Shi Fu (死符) sinal de morte) representam acidentes e avisam que deve ter cuidado. A má estrela Xiao Hao (小耗, pequenos gastos) poderá significar boas notícias pois esses gastos poderão ser por uma boa causa, como patrocinar uma festa de casamento ou de nascimento.

Amor: Parabéns aos solteiros nativos de Cão pois a estrela da sorte Hong Luan (红鸾, Sorte no Amor) representa encontrar o seu parceiro e para os casais, voltar a realizar uma nova lua de mel, ou dar as boas vindas a uma nova vida. Sem dúvida, será um ano bom para o amor e só a má estrela Liu Xia (流霞, atraente mas com rápido terminar do relacionamento) o poderá afectar, o que dependerá apenas da sua atitude.

Saúde: Ano para ter cuidado com os acidentes ligados com facas. Os nativos nascidos no Verão, poderão ter problemas de coração e de sangue, mantenha-se atento. Não seja ansioso, fique calmo e relaxe.

Nativos de Cão nascidos em:
1970 – Estará no topo da fortuna entre os nativos de Cão. Inúmeras ideias vêm ter consigo e trazem-lhe boas relações e poder. Se trabalha em assuntos culturais encontrará novas áreas para progredir.

1982 – Devido ao seu bom trabalho, este ano aparecerá repentinamente aos outros e com estrondo revelar-se-á, captando a atenção de quem o rodeia. Faça o que pretende pois este ano é seu.

1994 – Boas chances para criar um negócio, em especial na área da restauração.

1958 – A sua posição está firme e sem dúvida a fortuna vem ter consigo. Realize umas férias de lua de mel para contrariar a energia da má estrela Liu Xia (流霞).

Porco
O ano passado, de Dragão, trouxe-lhe riqueza e amor, mas ao entrar no ano de Serpente vai ser o oposto e a diferença será muita, pois encontra-se no mais forte Fan Tai Sui, Chong Tai Sui em oposição, a colidir com o Deus do Ano. Servirá para deitar fora o antigo e ganhar espaço para o que aí vem. Assim, será um ano de grandes mudanças por isso precisa de se preparar bem.

Carreira: Não contará com ajudas de boas estrelas da sorte e por isso, será um ano para trabalhar arduamente, mas sem ser recompensado.
As estrelas da sorte Guo Yin Gui Ren (国印贵人, Carimbo do país) e Ci Guan (词馆) permitem ser criativo e rapidamente responder com palavras perfeitas. A estrela da sorte Yi Ma (驿马, viagem) ligada com Chong Tai Sui leva a uma grande mudança na sua vida, pois pode emigrar, mudar de emprego, de casa, ou de companheiro e encontrando-se num cruzamento terá dificuldade em tomar decisões.
A má estrela Da Hao (大耗, gastar dinheiro) leva a dificuldades financeiras.
A má estrela Lan Gan (阑干, barreira, vedação) representa uma série de problemas na carreira, mas felizmente os nativos de Porco tem uma capacidade para tornear as dificuldades e agarrar as oportunidades criadas pelas mudanças.

Amor: Os casais nativos de Porco necessitam de ser mais pacientes e calmos e terem cuidado com a maneira como falam. Silêncio é o melhor, pois falar em demasia poderá causar divergências a levar à separação.

Saúde: Chong Tai Sui poderá significar muitas coisas: acidentes, quedas, operações clínicas e muito mais e por isso deve oferecer sacrifícios ao Deus do Ano e evitar situações perigosas.

Nativos de Porco nascidos em:
1983 – Os nativos de Porco terão muitas novas acções que poderão ser desenvolvidas fora do seu espaço normal. Ano de muitas viagens e por isso precisa de ter cuidado para as realizar com segurança. Poderá ter de ser operado e por isso no início do ano faça um exame geral à saúde.

1971 – No geral, não será um ano mau. Conseguirá ajuda, pois fala muito bem e é um ano para poder abriu uma nova área na carreira, conseguindo dinheiro proveniente do estrangeiro.

1959 – A má estrela Qi Sha (七煞) pode provocar más relações e por isso não se comprometa a dar garantias aos outros, pois poderá ser levado a tribunal. Tome cuidado com tudo, em especial com a saúde.

1995 – Enfrentará inúmeras competições na sua área e por isso, o melhor é desenvolvê-las fora do país, o que tornará a sua vida mais fácil. Os ganhos que terá não serão maus, apenas terá de ter cuidado com amigos que poderão trazer-lhe problemas.

1947 – Será respeitado e a sua família tomará conta bem de si. Experimentará boa comida e deve realizar mais viagens a trazer-lhe boa sorte.

Rato
Este ano os nativos de Rato são os campeões das boas relações e onde estiverem serão o foco da atenção. Não necessitam de ser os primeiros, mas os únicos. Precisam de aprender a não fazer da vida uma competição, nem necessitar de estar em grandes trabalhos para atingir a perfeição, pois há muito mais para fazer como gozar a existência.

Carreira: A estrela da sorte Tian Yi Gui Ren, (天乙贵人, poderosa ajuda ligada à criatividade) é boa para criar um negócio e representa ser promovido. Já a Tai Ji Gui Ren, (太极贵人, ter alguém a ajudar) representa estudar bem e facilmente ter um novo conhecimento. Os nativos de Rato são talentosos na área dos negócios da saúde mental e física, como comida saudável e ioga.
A simpática estrela da sorte Yue De (月德, Virtude da Lua) coloca os nativos a serem respeitados pelas suas virtudes, logo com uma boa relação com os outros a trazer oportunidades de negócios e a resolver todos os problemas.
As más estrelas, Bao Bai (暴败, Perdedor, falhar) e Tian E (天厄, Catástrofes provenientes do Céu) representam o aparecimento de situações fora de controlo e poder sofrer com desastres naturais. A má estrela Xiao Hao (小耗, pequenos gastos) leva a maus negócios, mas de pequena magnitude. Todas estas más estrelas apenas servem de alerta, sem nunca o colocar em perigo.

Amor: Com a estrela da sorte Yue De (月德, Virtude da Lua) terá uma vida social activa. Os solteiros terão oportunidade para casar ou ter filhos e os casais devem refazer o casamento, comemorando-o com a família. Será um ano activo e com muito amor.

Saúde: A má estrela Shi Fu (死符, sinal de morte) leva a precisar de ter cuidado com problemas antigos já manifestados. Durante todo o ano, precisa de equilibrar o que come e bebe e fazer exercício físico ao ar livre para melhorar a saúde. Relaxado, ninguém o consegue pressionar.

Nativos de Rato nascidos em:
1972 – Ano para expor o talento e a criatividade, podendo também abrir novos espaços de negócio. Apenas precisa de ter cuidado com o excesso de vida social que o pode deixar extremamente cansado.

1984 – Tem a estrela da sorte Tian Chu (天厨, Cozinha do Céu) ligado com o negócio de comida e seguindo esse caminho poderá criar o seu próprio estabelecimento. Faça mais festas com os amigos e familiares a trazer mais sorte e felicidade.

1996 – Contará com muitas ajudas, o patrão gosta do seu trabalho e pode ser promovido. Não importa a área em que trabalha, irá atingir um patamar mais alto e entrar numa nova etapa da vida.

1960 – Conseguirá muito dinheiro tanto do trabalho, nos investimentos, como do jogo. Seja como fôr, ele chegará facilmente até si. Apenas precisa de ter cuidado com a saúde e não cuide de tudo sozinho, dê espaço aos outros.

Búfalo
Os nativos de Búfalo no ano de Serpente estão em San He (三合) pois combina-se com Serpente e Galo. Excelente ano para mostrar aos outros o seu talento, trabalho e qualificações e encontrar o parceiro para preparar o que aí vem. Consigo combinam-se bem os nativos de Rato, Serpente e Galo.

Carreira: Com a estrela da sorte San Tai (三台, nos três primeiros) finalmente este ano começará a ter a posição de comando e de tomar decisões, ordenando aos outros o que devem fazer. Assim, poderá mostrar a qualidade do seu trabalho e receber aplausos. A estrela da sorte Fu Xing (福星, protectora a limpar-lhe o caminho) pode resolver problemas e conseguir a ajuda de mais pessoas. A forte má estrela Bai Hu (白虎, Tigre Branco) e as más estrelas Wu Gui (五鬼, cinco fantasmas) e Zhi Bei (指背), representam todas pessoas à sua volta a criar problemas, a falar mal de si pelas costas. Claro que a inveja se deve a encontrar-se na posição de comando e por isso, mostra apenas que está no bom caminho. Deve ter muito cuidado com a má estrela Guan Fu (官符), e não dar como garantia a sua palavra, pois a sua honestidade leva a que outros tentem aproveitar-se de si, em especial nos assuntos financeiros.

Amor: San He (三合, os três que se combinam) coloca-o com hipóteses de conhecer muita gente e assim, os solteiros podem conseguir encontrar um parceiro, mas com a má estrela Bai Hu (白虎, Tigre Branco) essas novas relações não serão fáceis. Os casais terão de lidar com discussões e cairão facilmente em relações fora do casamento.

Saúde: Não será um bom ano para as nativas de Búfalo pois os acidentes estarão à espreita e facilmente poderão ocorrer acidentes em que terão de se confrontar com uma operação cirúrgica. Os nascidos no Outono e Inverno podem sofrer com facilidade uma queda e partir um membro superior ou inferior, assim como ter problemas de fígado e vesícula biliar.

Nativos de Búfalo nascidos em:
1961 – Conseguirão colocar a carreira num novo patamar e o dinheiro irá aparecer facilmente, retirando a pressão da escassez, libertando-o para novos investimentos.

1973 – Bom ano para criar o seu próprio negócio, em especial nas áreas culturais. É fácil entrar em más relações, pois a inveja traz muitos problemas.

1985 – Carreira e dinheiro tornam-se fáceis pois o caminho é plano e sem grandes obstáculos. Precisa de criar mais relações de amizade, o que lhe resolverá os problemas. Celebre a sua festa de aniversário.

1997 – Com apoio da família conseguirá comprar casa e os seus investimentos trazem rendimentos satisfatórios. Apenas precisa de ter cuidado com o trânsito e com a condução durante as suas viagens.

Tigre
Tigre no ano de Serpente está em Hai Tai Sui, isto é magoado pelo Tai Sui. Os nativos de Tigre gostam de competição e de certeza que trazem relações tensas com os outros. Este ano necessitam de aprender a criar novos relacionamentos e a manter boas relações, já que não precisam de se preocupar com o lado material, pois dinheiro não vai faltar.

Carreira: A super estrela da sorte Tai Yin (太阴, Lua) coloca os nativos de Tigre mais simpáticos, pois estes nunca gostam de ouvir as opiniões dos outros e por isso rejeitam muitas ajudas. No entanto, esta ajuda é um investimento de longa duração.
As estrelas da sorte Di Wang (帝旺, a levar os nativos a atingirem o topo) e Ci Guan (词馆, perfeitas palavras) permitem criar negócios apenas através do diálogo.
As estrelas da sorte Fu Xing (福星, protectora a limpar o caminho) e Tai Ji Gui Ren (太极贵人, ter alguém a ajudar) permitem resolver e acalmar as tensões criadas pelos nativos de Tigre.
As más estrelas Gu Chen (孤辰, sozinho com o pensar) e Juan She (卷舌, alguém a falar mal de si) colocam os nativos zangados e com discussões intermináveis, sendo que esse problema só se resolve quando atingir a maturidade e estabilizar a inteligência emocional.

Amor: A super estrela da sorte Tai Yin (太阴, Lua) a representar boas relações sociais e a transformar o negativo em situações positivas, traz oportunidades para conhecer os outros e criar amizades, mas a má estrela Gu Chen (孤辰, a representar estar sozinho) pressiona em especial os nativos masculinos e tal afecta as relações entre os casais. Por isso, organizar festas é uma solução para resolver problemas emocionais.

Saúde: Em Fan Tai Sui, no início do ano deve fazer um exame à saúde. O problema principal é emocional e por isso deve fazer um curso para aprender a sociabilizar. Ofereça sacrifícios ao Deus do Ano.

Nativos de Tigre nascidos em:

1986 – Quanto à carreira e dinheiro é o número um dos nativos de Tigre. Terá apoio da família e também ajuda de uma pessoa poderosa, parecendo este ano ser um tigre com asas.

1974 – Bom ano para estudar e incrementar o seu valor de conhecimento. Passe mais tempo com a família. Pode criar um novo foco de desenvolvimento, mas a competição é tão forte que os gastos de tempo e de dinheiro não recompensam, o melhor é investir na sua área de interesse.

1998 – Irá ser promovido e ficar na chefia de um grupo, podendo também chegar a patrão, mas primeiro precisa de aprender a cooperar e a compreender os outros escutando-os. Ano harmonioso no amor. Realize mais festas para se abrir aos outros e revelar a sua simpatia e cavalheirismo.

1962 – Continua a ter energia e um forte desejo para criar um novo negócio. A boa nova é continuar a usufruir das bases de apoio anteriormente criadas.

Coelho
Ano para relaxar e fazer mais viagens, a usufruir e tirar proveito da vida. Deve entender que um passo atrás permite abranger um maior espaço e ficar com uma melhor visão do que o rodeia.

Carreira: A estrela da sorte Yi Ma (驿马) representa tudo estar em mudança e tendo de viajar muito, será um ano trabalhoso, algo que os nativos de Coelho são especialistas pois sabem usufruir do poder das grandes ondas para se moverem.
Com a estrela da sorte Fu Xing (福星, protectora a limpar o caminho) todos os projectos já preparados podem avançar e concretizarem-se. Com uma mente criativa e cheio de energia pode abrir uma nova área de trabalho. A estrela da sorte Lu Shen (禄神) traz um bom rendimento e boas relações públicas.
A má estrela Tian Gou, (天狗, Cão do Céu) fácil criar conflitos, representa acidentes, gastos monetários imprevisíveis, alguém que o engana, ou casa assaltada, mas se os nativos tiverem controlo sobre as suas emoções e mantiverem a mente limpa, todos estes problemas podem ser facilmente resolvidos.

Amor: Devido aos efeitos da má estrela Gu Chen (孤辰, ficar sozinho) os casais terão muitas discussões e por isso procure fugir rapidamente desses confrontos. Os solteiros conseguirão o que pretendem ao viajarem.

Saúde: As más estrelas Diao Ke (吊客, relaciona-se com a morte de um familiar) e Sang Men (丧门, porta da morte) colocam as energias dos nativos de Coelho muito em baixo, e esse enfraquecimento é devido também ao cansaço das muitas viagens e do muito trabalho. Por isso é importante dar tempo ao descanso tanto da cabeça como do corpo, pois se não conseguir relaxar, poderá evoluir para um problema mais sério.

Nativos de Coelho nascidos em:
1963 – Contará com a ajuda de mais duas estrelas da sorte, a Tian Yi Gui Ren, (天乙贵人, poderosa ajuda ligada à criatividade) e a Tai Ji Gui Ren, (太极贵人, ter alguém a ajudar), a permitir que a carreira atinja uma nova etapa. Investir fora do país trará bons rendimentos.

1975 – Não precisa de se preocupar com a carreira e dinheiro, mas deverá ter atenção com a saúde, especialmente os nativos masculinos, pois poderá precisar de realizar uma operação.

1987 – A carreira desenvolve-se bem e se tiver ajuda de alguém conseguirá evoluir e criar uma nova área de trabalho. Os casais deverão manter-se mais calmos e pacientes para evitarem criar problemas menores que podem trazer mal-estar.

1999 – Ano activo e se tiver prazer em participar nas mudanças terá grande sucesso, mas precisará de realizar o trabalho em silêncio para não atrair invejas.

Dragão
No ano de Serpente, os nativos de Dragão poderão rir mais alto, devido a uma boa carreira, dinheiro e amor. Aproveite!

Carreira: Com a super estrela da sorte Tai Yang (太阳, o Sol) o seu poder é como o Sol, pode chegar onde quiser. Os nativos de Dragão devotam com prazer toda a sua vida ao trabalho e são um exemplo para quem está à sua volta, dando uma base firme para quem segue a sua direcção. A estrela da sorte Tian Guan (天官, oficial do Céu) permite conseguir uma promoção, especialmente para quem trabalha na Administração.
As más estrelas Tian Kong (天空, Vazio Céu) e Mo Yue (陌越) estão ligadas à emoção e se os nativos estiverem com muito trabalho, ou em tensão, por vezes poderão sentir-se perdidos. Assim, os problemas provêm do interior e não são provocados por forças exteriores. Para resolver esse problema, necessita de olhar para os outros e aprender com o exterior, afastando a percepção de serem os melhores.

Amor: A auspiciosa super estrela da sorte Tian Xi (天喜, Alegria Celeste) transforma pequenos infortúnios em bons acontecimentos e é propícia para o casamento e para a boa relação com todas as pessoas. Representa que os nativos de Dragão solteiros poderão casar-se e abrir uma nova página de vida. Mas para os casais, facilita a entrada em novas relações e por isso é importante realizar festas ou viagens em família.

Saúde: Devido às más estrelas Bing Fu (病符, Sinaliza doença) e Yang Ren (羊刃, operação cirúrgica) no início do ano os nativos de Dragão deverão realizar um exame clínico. Os homens devem ter cuidado com a próstata e as mulheres devem ter atenção a problemas com o útero. Mas se não entrarem em depressão, os nativos de Dragão conseguem resolver tudo automaticamente, sem precisarem de medicamentos.

Nativos de Dragão nascidos em:

1988 – São os primeiros dos nativos de Dragão tanto quanto à carreira como ao dinheiro. Precisam apenas de ter cuidado com o excesso de amantes na sua activa vida social.

2000 – Ano em que será líder da sua especialidade e conseguirá ganhar uma grande fortuna para ter uma boa base para o devir. Espera-o um grande futuro.

1976 – Os nativos de Dragão se trabalharem na Administração conseguirão ser promovidos para atingirem uma posição de chefia. Deve tomar atenção para não trabalhar em demasia, o que poderá afectar a sua saúde.

1964 – Quanto à carreira terá quem tome conta dela e por isso, pode relaxar e usufruir de uma vida familiar, estudando como cozinhar para dar prazer aos que o rodeiam.

Votos de muito Boa Saúde – (身体健康, Sun Tan Kin Hong, em mandarim Shen Ti Jian Kang).

30 Jan 2025

Da China e dos Chineses – 2

(continuação do número anterior)

Goethe, que sempre foi um apaixonado pela civilização chinesa, glosou o antigo princípio de Sócrates, o grego, o “quanto mais sei, mais sei que nada sei” e escreveu “O homem só sabe quando sabe que pouco sabe. Com o conhecimento cresce a dúvida”. E Confúcio 孔夫子, que também muito sabia das coisas da vida e do seu povo, disse, seis séculos antes de Cristo: “Se conheces, actua como homem que conhece. Se não conheces, reconhece que não conheces; isso é conhecer!”

São sábios os velhos Chineses, uma sabedoria alicerçada em cinco mil anos de História e de histórias. São inteligentes os velhos Chineses, uma inteligência adquirida ao longo de muitos e muitos séculos dura e intensamente vividos.

Lao Zi, 老子 (600 a. C. ? – 510 a.C, ?) o patriarca do taoismo filosófico, escrevia no capítulo 2 do seu Tao Te Ching:

Debaixo do Céu,[1] todos vemos que o belo é belo

porque o feio existe.

Todos sabemos que o bom é bom

porque o mau existe.

Coexistem o ser e o não-ser,

completam-se o difícil e o fácil,

aproximam-se o alto e o baixo,

harmonizam-se a voz e o som,

sucedem-se o da frente e o de trás.

Por isso, o sábio avança e nada faz,[2]

ensina sem nada dizer

e os dez mil seres desenvolvem-se, sem cessar.

Ele trabalha e nada possui,

ele cria e de nada se apropria.

Tudo feito, tudo esquece,

assim, para sempre, a obra permanece.[3]

O espantoso Lie Zi 列子 (450 a.C.-376 a. C.) que, segundo a tradição taoista era capaz de cavalgar ventos e nuvens, diz, no seu Livro, cap. II, 11:

“Dois meninos viviam junto ao mar e amavam as gaivotas. Todas as manhãs brincavam no meio dos pássaros e muitas outras gaivotas, às centenas, poisavam junto deles. Um dia o pai disse-lhes:

‘Sei que brincam com as gaivotas. Apanhem algumas e tragam-mas. Também me quero divertir.’

No dia seguinte, os meninos chegaram à orla do mar, as gaivotas pairaram no ar e não pousaram na praia.

Em conclusão, o melhor de todos os discursos é o que não utiliza palavras, a actuação perfeita é actuar sem agir, a sabedoria do mais sábio dos sábios é sempre pouco profunda ”

Outra história do Livro de Lie Zi, no capítulo VII, 32:

“Um camponês não sabia onde estava o seu machado. Suspeitou então que o filho do vizinho lho havia roubado e começou a observar o rapaz, com atenção. Tinha exactamente os modos de um ladrão de machados, as palavras que pronunciava soavam a ladrão de machados, todo o seu comportamento e atitudes eram as de alguém que tinha roubado um machado.

Mas, de repente, ao cavar a terra, o camponês encontrou o seu machado.

No dia seguinte, o homem olhou de novo para o filho do vizinho. Reparou então que os modos, as palavras, o comportamento e as atitudes do rapaz não eram, de modo algum, as de um ladrão de machados.”

A sabedoria chinesa tem, quase sempre, escapado à inteligência ocidental. Ocidente e Oriente dificilmente se interpenetram, olham-se ora com sobranceria, ora com desconfiança, e sobretudo ignoram-se.

Vou citar um curioso exemplo recente:

Em 1970, no seu “Testamento Final”, o russo Nikita Kruchtchev escrevia, a propósito de Mao Zedong: “Eu nunca tinha a certeza de entender o que ele queria dizer. Pensava, nessa altura, que isso se relacionava com certos aspectos da mentalidade chinesa e com a maneira de pensar dos Chineses. Algumas declarações de Mao chocavam-me pela sua simplicidade, outras pela sua complexidade. Nunca soube com segurança qual a posição de Mao. É impossível, com os Chineses, saber em que lei se vive.”

É verdade que pensamento russo e pensamento chinês não se entendem, desde sempre. O conflito sino-soviético, iniciado em finais dos anos cinquenta, foi, para além das divergências políticas, um confronto de culturas e, por estranho que pareça em dois países comunistas, um conflito entre diversas, diferenciadas concepções do mundo.

Há uns bons anos atrás, em Pequim, o meu amigo Li Shunbao, companheiro de trabalho nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, contou-me um pequeno diálogo que terá sido travado, em 1961, entre exactamente Kruchtchev e Zhou Enlai, então primeiro-ministro da China. As relações entre os dois países eram já bastante más e, depois de uma discussão azeda sobre questões de natureza política, Kruchtchev resolveu ser “simpático” para Zhou Enlai e disse-lhe:

“Apesar das divergências, nós temos muita coisa em comum. Acreditamos ambos no marxismo, você é primeiro-ministro, eu também, e você e eu somos responsáveis pelo Governo de duas das maiores nações do mundo. Mas existe uma grande diferença entre nós, eu sou filho de camponeses e você é filho de mandarins.”

Zhou Enlai, que, de facto, não era filho mas neto de um mandarim, sorriu e respondeu: “Desculpe, isso não é uma diferença, é mais uma semelhança. Significa que somos ambos traidores.” “Traidores?!…Como?…”, perguntou Kruchtchev. “Bem, ambos traidores porque o senhor traiu os camponeses e eu traí os mandarins.”

A propósito de política e de políticos, o filósofo Han Feizi 韓非子escreveu 240 anos antes do nascimento de Cristo:

“Podeis esperar, em geral, encontrar cerca de dez homens honestos em cada reino, o que é uma média excelente. Mas o Estado deve contar uma centena de cargos. Daí resultar que tendes mais postos oficiais do que homens de bem para ocupá-los, o que dá dez homens honestos e noventa patifes para preencher todos esses lugares. Pode-se, portanto, apostar que o resultado será a desordem generalizada, mais do que um governo organizado. Eis porque o soberano sensato acredita num sistema e não nas capacidades individuais, tem fé num método e desconfia da probidade pessoal.”

Han Feizi foi o maior teórico da escola Fa Jia 法 家, conhecida no Ocidente como o Legismo. Morreria envenenado numa prisão, talvez por ter esquecido uma das exemplares citações de Confúcio “o homem honesto diz a verdade, o tolo diz a verdade toda.” De qualquer modo, os seus princípios exerceriam grande influência na China moderna e no próprio Mao Zedong.

Zhuang Zi庄 子(369-286 A. C.), o maior dos pensadores taoistas, um dos grandes poetas da liberdade, conta-nos esta história:

“Estava Zhuang Zi pescando na margem do rio quando chegaram junto dele dois mandarins enviados pelo príncipe de Zhou.

— O nosso príncipe deseja ver-vos e nomear-vos primeiro-ministro de reino de Zhou.

Zhuang Zi continuou a pescar e, sem voltar a cabeça, respondeu:

— Ouvi dizer que no reino de Zhou existe uma tartaruga sagrada que foi morta há muitos, muitos anos. O príncipe conserva essa tartaruga fechada no templo dos antepassados e venera a sua carapaça. Ora a tartaruga preferiria estar morta e ter os seus restos venerados, ou preferiria estar viva, abanando o rabo na lama dos pântanos?

— Preferiria estar viva, abanando o rabo na lama dos pântanos, responderam os mandarins.

— Podem ir embora, disse Zhuang Zi. Eu também prefiro abanar o rabo na lama dos pântanos.”

Na China, mais do que em qualquer outro país do mundo, vemos como se manifesta, século após século, a continuidade de ideias, tradições, usos e costumes.

Mao Zedong, que conhecia bem o alicerce cultural da sua pátria, citava por vezes os velhos filósofos e as histórias da tradição popular, em proveito da ideologia que defendia. Eis como, em 1945, Mao fala de uma dessas histórias:

“Na China Antiga havia uma fábula intitulada ‘Como Yukong removeu as Montanhas’. Essa fábula conta que, em tempos que já lá vão, vivia no norte da China um velho chamado Yukong. Do lado sul, em frente da sua casa, encontravam-se duas grandes montanhas, Taihang e Wangwu, que lhe impediam a passagem. Dirigindo os seus filhos, Yukong decidiu arrasar as montanhas a golpes de picareta. Vendo-os em tal trabalho, um outro velho chamado Chezou, desatou a rir e disse-lhes: ‘Que tolice! Sozinhos, vocês nunca conseguirão arrasar essas duas montanhas’. Yukong respondeu:

‘Quando eu morrer ficarão os meus filhos; quando, por sua vez, eles morrerem, ficarão os meus netos, e assim se sucederão ininterruptamente as gerações. Quanto a essas duas montanhas, por muito altas que sejam, já não podem crescer mais e, a cada golpe de picareta, vão-se tornando mais pequenas. Porque razão não poderemos arrasá-las?’ E Yukong continuou, inabalável, a cortar a pedra, dia após dia, o que comoveu o deus do céu que enviou dois anjos à Terra que carregaram e levaram as duas montanhas. Hoje há também duas montanhas que pesam sobre o povo chinês: o imperialismo e o feudalismo. Desde há muito que o Partido Comunista da China decidiu arrasá-las. Nós devemos ser perseverantes e trabalhar sem descanso, pois também podemos comover o deus do céu. Para nós, o deus do céu não é outro senão a massa do povo chinês.”

Uma das características do pensamento chinês é a unidade dos contrários, a complementaridade e permanente transformação dos opostos, o movimento e a dialéctica, o anular das contradições e o imediato aparecimento de renovadas contradições sempre insolúveis porque, ao serem solucionadas, dão origem a outras novas contradições.

Nos anos vinte do século XX, o filósofo Chen Lifu 陳立夫 escrevia coisas como estas:

“Como os homens não se parecem, as suas analogias caracterizam-se por sete períodos. No primeiro, o forte tolera o fraco; no segundo, o forte despreza o fraco; no terceiro, o forte escraviza o fraco; no quarto, o forte tem piedade do fraco; no quinto, o forte torna-se fraco; no sexto, o fraco protege o forte; no sétimo, o fraco e o forte confundem-se. ”

Regressando a Zhuang Zi e ao seu edifício da sabedoria taoista, velho de vinte e três séculos, lemos:

“O universo com tal não é expressão do absoluto. Tudo muda, ao longo dos tempos, no decurso da evolução, de acordo com o que começa e o que acaba. A ciência ensina que as coisas mudam de aspecto e que o absoluto se transforma em relativo. Por isso, esbate-se a distância entre grande e pequeno, entre o que vem antes e o que vem depois numa cadeia que não tem fim”.

E mais adiante, no seu Livro de Zhuang Zi, o mestre diz:

“Aqueles que afirmam existir o correcto e o justo sem o seu correlativo, o incorrecto e o injusto, ou o bom governo sem o seu correlativo, o mau governo, não compreendem os grandes princípios do universo nem a essência de toda a criação. Como se pode falar da existência do Céu sem se referir a existência da Terra, ou do princípio negativo sem se referir o princípio positivo?

No entanto, ainda há pessoas que continuam estas intermináveis discussões. Essas pessoas ou são loucas ou são ingénuas. ”

O aparente estatismo das civilizações orientais tem muito a ver com o carácter cíclico do seu pensamento. Também com a sua sabedoria, bem diferente da nossa ocidental, tão ligada à velha lógica grega e ao aparente dinamismo judaico-cristão.

Eis mais uma antiquíssima história do taoismo chinês, agora retirada do Huainanzi 淮南子, um clássico da filosofia chinesa que data do século II a.C.:

“Um velho e pobre camponês possuía um cavalo e o animal fugiu. À noite, os vizinhos vieram manifestar o seu pesar, dizendo-lhe que ele tivera muito pouca sorte. O camponês respondeu simplesmente: ‘Talvez’. No dia seguinte, o cavalo regressou acompanhado de seis éguas selvagens. A noite, os vizinhos vieram felicitar o camponês, dizendo-lhe que afinal ele tivera muita sorte. O homem respondeu simplesmente: ‘Talvez’. No dia seguinte, o filho do camponês montou uma das éguas selvagens, mas caiu e partiu uma perna. À noite, os vizinhos vieram lamentar a pouca sorte do camponês que respondeu simplesmente: ‘Talvez’. No dia seguinte, chegaram à aldeia os funcionários do governo responsáveis pelo recrutamento de jovens para o exército, encontrando-se o império em tempo de guerra. O filho do camponês não seguiu para os campos de batalha porque tinha uma perna partida. À noite, os vizinhos vieram felicitá-lo uma vez mais pela sua boa sorte e o velho respondeu simplesmente: ‘Talvez.’

Agora um velho apólogo, de Pe Yu king, que ninguém sabe quem é mas que terá sido escrito há catorze séculos:

“Uma vez viajavam juntos um monge, um bandido, um pintor, um avarento e um sábio. Caiu a noite e albergaram-se numa gruta.

— Não se encontraria melhor lugar para um eremitério, exclamou o monge.

— Que óptimo refúgio para salteadores, disse o bandido.

— A luz dos archotes, estes jogos de sombras, que extraordinários motivos para o pincel!, murmurou por sua vez o pintor.

— Mas que local excelente para se esconder um tesouro!, observou o avarento.

O sábio escutou em silêncio e, por fim, disse:

— Que gruta maravilhosa!”.

Na China nunca nada é exactamente o que parece. Pode ser, pode não ser, tudo depende de subtis ou canhestros entendimentos de cada pessoa, da perspectiva, do olhar. No século XVI, em plena dinastia Ming, o letrado Yuan Jing袁 晶 contava a interessante história de um gato. Assim:

Um mandarim da corte, de nome Ji, possuía um gato magnífico. Tinha tanto orgulho no felino que resolveu chamar-lhe Tigre. Um dia, num serão em sua casa com vários amigos, todos começaram a falar sobre o gato. Um deles disse:

–É verdade que o Tigre é um animal poderoso, mas o Dragão tem ainda mais poder. Porque não chamar Dragão ao gato?

Um outro interveio:

–Admito que o Dragão é mais poderoso do que o Tigre, mas ele tem de se elevar nos ares para atingir as nuvens. Parece-me pois evidente que as nuvens são mais fortes do que o dragão. Porque não chamar Nuvem ao gato?

Um terceiro disse então:

–As nuvens podem cobrir toda a terra, mas não resistem ao vento que as dispersa rapidamente. Porque não chamar Vento ao gato?

Um quarto conviva acrescentou:

— O que pode o vento diante de um muro de pedra. Porque não chamar Muro ao gato?

Um quinto amigo argumentou depois:

— Um muro é capaz de resistir ao vento, mas os ratos sabem como esburacar um muro. Porque não chamar Rato ao gato?

Um velho da aldeia de Dongli ouviu toda a conversa em silêncio. Por fim, perguntou:

— Como se chama o animal que caça ratos?

O nosso João de Barros (1496-1570), excelente cronista quinhentista, na sua Ásia, Terceira Década, onde entram mais de cem páginas que dedicou à China e ao mundo chinês, escreveu por volta de 1550:

“Os chins dizem que êles têm dois olhos de entendimento àcerca de tôdalas as cousas, nós, os da Europa, depois de nos comunicarem, têmos um olho, e tôdalas as outras nações são cegas.”

Referências:

[1] 天下 tian xia significa “debaixo do céu”, mas traduz-se normalmente pelo mundo em que vivemos.

[2] 无为 wu wei é um conceito fundamental do taoismo. Significa “ausência de acção” mas não é inacção, corresponde a actuar não agindo. O sábio parece não produzir, não laborar. Nada faz, no entanto nada fica por fazer. O wu wei é difícil de entender para as nossas mentes ocidentais.

[3] Tao Te Ching, (trad. António Graça de Abreu), Lisboa, Vega Ed., 2013, pag.31.

24 Jan 2025

Da China e dos Chineses (1)

São mais de mil e quatrocentos milhões de seres humanos, desequilibradamente espalhados por um imenso território com o tamanho da Europa. Constituem a mais paradoxal de todas as nações, igual a si própria há quatro mil anos, uma civilização única, coerente, apaixonante.

São os últimos sobreviventes das grandes civilizações agrárias da Idade Antiga. O Egipto, a Mesopotâmia, os impérios da América Central, tudo se esfumou na voragem dos séculos. A China permaneceu, preservou sua identidade e cultura, continuou a sua História, seus costumes e tradições populares, sua arte, sua poesia.

Tal como os egípcios, os Chineses inventaram uma escrita complexa que utiliza símbolos pictográficos e ideográficos. Mas se os hieróglifos do tempo dos faraós são relíquias de museu, os caracteres chineses formam, ainda hoje, a mais surpreendente e espantosa representação gráfica de uma língua. Também o elemento aglutinador fundamental do monolito cultural chinês.

Os Chineses são mais numerosos do que norte-americanos, soviéticos e europeus todos juntos; no entanto o seu produto interno per capita ainda está longe do das nações mais avançadas do globo. Irão dentro de algum tempo ultrapassar a economia norte-americana, mas será de considerar que a população da China é cinco vezes superior, o que desequilibra quaisquer estatísticas. Há quase duzentos anos Napoleão lançou o grito: “Quando a China despertar, o mundo tremerá!” Em 1974, o diplomata francês Alain Peyrefitte aproveitou a frase para título de um seu livro, best-seller no hemisfério ocidental. Mas é verdade que a China, o grande Império do Meio, apesar de tantos alvoroços, sofrimentos e vigílias, mais do que acordou e começa a tomar em mãos o futuro, abana a roda da História, produz tudo e polui quase tudo. A China faz estremecer o mundo.

É um país paradoxal, repito. Com muitos milhões de habitantes a viverem com menos de dois dólares por dia, conta com algumas das metrópoles mais modernas do globo, lança e recupera satélites, envia homens para o espaço e sondas para a lua e para Marte, possui bombas atómicas desde 1961.

Orgulha-se de possuir a mais vasta e volumosa literatura jamais escrita por qualquer povo e, no entanto, no século XX apenas terá produzido um admirável e grande escritor, de seu nome Lu Xun 鲁迅. A Quan Tang Shi 全唐詩, Poesia Completa da Dinastia Tang — época de ouro da poesia chinesa, de 618 a 907 –, é uma antologia composta por 48. 900 poemas de 2. 300 autores diferentes; contudo na China actual o analfabetismo atinge ainda cerca de 5% da população.

Os Chineses que nunca foram um povo religioso — pese embora os vinte séculos de confucionismo como doutrina oficial do Estado —, endeusaram Mao Zedong durante os dez anos da catastrófica Revolução Cultural Proletária e logo depois distanciaram-se, sem grande mágoa, da majestosa figura do velho “timoneiro”, mas hoje continuam a respeitá-lo como “pai da Nova China.”

Os Chineses que sempre gostaram do sossego, do conforto pessoal, da boa comida, dos prazeres da vida, continuam a ser capazes de se submeter aos trabalhos mais árduos e às mais duras privações. “Sofrem a sorrir”, observava Ferreira de Castro, há setenta anos, na sua “A Volta ao Mundo”.

A China, que tem algumas das mais belas mulheres do mundo, tentou, até há umas três dezenas de anos atrás, por via de uma radical moralidade, apresentá-las deliberadamente como as mais feias.

A China é um oceano de contradições no qual nós, ocidentais, navegamos sempre com perigo de naufrágio. Por isso é tão difícil a viagem, eivada contudo de todos os fascínios, por dentro deste país e deste povo, e também por isso são comuns tremendos erros de análise em relação às realidades chinesas.

Na China diz-se: “O estrangeiro que vem ao nosso país durante quinze dias escreve um livro, o que fica uns meses escreve alguns artigos para os jornais, o que permanece mais tempo parte a caneta e nunca mais escreve nada.”

Sei, por experiência própria, que conhecer a China ao longo dos anos, vivê-la por dentro quase até à exaustão, produz um adormecimento da vontade, um torpor suave que martiriza e dá prazer. A China, terra de gente diferente de todos os outros povos, entra em nós, invade-nos e começa a ser difícil falar ou escrever sobre os Chineses, porque os conhecemos melhor, ou seja, ignoramos muito mais acerca deles.

23 Jan 2025

A proximidade afectiva de Pan Simu com o ímpar Mi Fu

Mi Fu (1051-1107), o singular calígrafo, poeta e pintor da dinastia Song que cultivou a estranheza na sua vida pessoal para se abster da contaminação dos assuntos mundanos, de pinturas antigas ou modernas que observava, escreveu que essas «coisas não me tocam nem me agitam quando me sento de pernas cruzadas como um monge, esquecendo todos os problemas e colocando-me em harmonia com o vazio vasto e azul» (Huashi), seria no futuro objecto de uma imensa admiração.

Em Dantu, um dos três distritos de Zhenjiang (Jiangsu) onde ele viveu mais de quatro décadas, a sua memória é celebrada num parque único no país onde se podem observar mil e trezentas cópias de gravações de caligrafias em pedra. Aludindo à sua fonte de inspiração, foi adequadamente concebido diante da Colina dos dez li, com aspectos próprios da pintura de paisagens.

A admirável novidade da sua arte fora elogiada pelo imperador Huizong (r.1100-1125), que o conheceu e que no seu rolo vertical Pavilhão do despertar das nuvens (tinta sobre seda, 150 x 78,8 cm, no Smithonian) transcreveu a frase de Confúcio que sublinha o que se notará em pinturas ditas shanshui, «rios e as montanhas» em contínua mutação: «Antes do céu enviar as chuvas da estação, montanhas e rios apresentaram as nuvens.»

Nas pinturas de Mi Fu nota-se esse olhar para as mutantes formas fluidas onde se podia revelar o espírito, ao contrário do desenho de animais ou pessoas que possuem formas estabilizadas (youdingxing).

O seu legado foi também e sobretudo cultivado por pintores ao longo do tempo. Pan Simu (1756-1839) já na última dinastia setecentos anos depois foi um dos que utilizou os pontos horizontais aplicados com precisão pelo pincel sobre papel, figurando sucessivas montanhas retrocedendo que caracterizava o método de Mi Fu.

Pan Simu como Zhang Yin ou Pan Gongshou, pintores da cidade de Zhenjiang, procurou estabelecer uma «escola» (pai) de pintura baseada na tradição da cidade. Nessa inquirição à memória, Pan Simu apercebeu-se da sua afinidade com Mi Fu. Fê-lo, por exemplo, em dois rolos verticais: A floresta do Grou (Helin) enevoada à chuva (tinta sobre papel, 128,9 x 31,4 cm, no Instituto de Arte de Minneapolis); e em Chuva e neblina em Helin (tinta sobre papel, 109,9 x 31,8 cm, no Metmuseum).

Neste último refere uma visita ao templo onde estava o túmulo de Mi Fu na Montanha do Grou Amarelo (Huanghe shan) escrevendo um poema em que a expressão «velho tolo», laodian, é uma característica manifestação da familiaridade afectuosa um pouco agreste com que se tratavam os adeptos do Dao; «A grande fama da floresta do grou estende-se por anos e anos,/ Lá pernoitei uma vez na Primavera e lá fiz esta pintura lembrando o velho tolo./ Se o velho tolo regressasse agora, daria uma gargalhada dizendo;/ Quem se atreveu a vir roubar a minha meditação no Chan?»

20 Jan 2025

Serpente, o animal astral chinês de 2025

Ana Cristina Alves,
Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM
10.1.2025

 

O Ano de 2025 será comandado pela Serpente de Madeira Yin (乙巳蛇Yǐ sì shé), quer dizer, do sexto ramo terrestre, do elemento Madeira ligado ao princípio feminino, portanto à força lunar, misteriosa e intuitiva. Começa, em termos oficiais do calendário lunissolar, a 29 de janeiro de 2025 e termina a 16 de fevereiro de 2026, mas para a geomancia ou fengshui (风水 fēngshuǐ) o ano só inaugura a 3 de fevereiro na primeira primavera, lichun (立春lìchūn). Este ano, do ponto de vista das bênçãos telúricas, será particularmente agraciado porque terá duas primaveras, contando com uma segunda lichun a 4 de fevereiro de 2026.

E como para os Descendentes do Dragão “as coisas boas vêm aos pares” (好事成双 hǎo shì chéng shuāng), promete boa agricultura e fertilidade, sendo igualmente propício à meditação e ao contacto com a natureza, mas também aos contactos sociais, porque a Serpente de Madeira, dado o seu elemento, é a mais comunicativa, criativa, amigável e favorável aos relacionamentos entre estes répteis. Além disso, este tipo de Madeira define-se por ser trabalhador, honesto e popular, nem sempre é logo reconhecido, pelo que traz como aliada a virtude da perseverança, que lhe dá o reconhecimento dos seus esforços ao longo do tempo.

Ela é “a serpente que sai do buraco” (Kwok, 1997, 67). Pertence-lhe o período horário entre as 9h e as 11h da manhã. Embora o seu elemento fixo seja o fogo, como por exemplo, a madeira o é do tigre, e a sua cor constante seja, de acordo com o elemento, o vermelho, em 2025 predominará o verde, associado à Madeira.

A serpente é o símbolo sexual mais forte e, por isso, nas filosofias yóguicas indianas da linha tântrica, que se estendem por toda a Ásia e, em particular pelo sudeste asiático, ela é kundalini, como bem chamou a atenção C.G. Jung em The Psychology of Kundalini Yoga. Notes to a Seminar Given in 1932.

Como se relacionam os chineses com a força vital da serpente? De início eram bastante espontâneos, tinham uma filosofia animista que evoluiu para o taoismo popular, mas é preciso não esquecer que também desde muito cedo, a partir de Confúcio e do estabelecimento do Confucionismo, e de uma maneira sistemática desde os tempos Han, tem havido nesta cultura uma grande determinação para se controlarem as energias naturais. Esta tendência redobrou com a aceitação da filosofia budista, inicialmente muito distante das vivências naturais e tântricas.

Durante os tempos da última dinastia Qing, as vivências religiosas ligadas ao Budismo intensificaram-se e, como tal, o conflito entre as forças naturais e espirituais tornou-se manifesto, abrindo uma guerra semelhante à que assistimos no Cristianismo, com Eva e Adão a serem expulsos do Paraíso por causa de uma supostamente famigerada serpente.

A guerra aberta entre as forças naturais e da religião formal ficaria registada ainda na literatura chinesa, numa das histórias de amor mais pungentes, intitulada A Serpente Branca (《白蛇传》Bái Shé Zhuàn), também conhecida pelo nome dos seus protagonistas Xu Xian (许仙Xǔ Xiān) e Bai Niangzi(白娘子Bái Niángzi), que atingiu o apogeu da poularidade durante a dinastia Qing.

Nela os amantes são irremediavelmente perseguidos por um bonzo budista, que lhes destrói a felicidade ao insistir para que Xu Xian (许仙) se afaste da Bai Niangzi (白娘子), já que ela era uma serpente encantada.

Omitido pelo bonzo ficaria o esforço de meditação que levou a serpente a transfigurar-se em forma humana.
O que o bonzo budista não via, como ainda muitos religiosos cristãos não conseguem perceber, é que na face exterior do que parece ser transgressão se esconde uma força natural e espontânea estreitamente ligada à mente de quem lida com ela. Para uma mente pura, a força natural nada tem de impuro, para uma mente turva, a força é, na versão ocidental, pecado, e na oriental poder negativo e demoníaco.

A força da serpente é completa em si própria. Nada há a acrescentar-lhe. A atestar a sua perfeita completude, há uma história proverbial muito contada, Desenhar Pés à Serpente (畫/画蛇添足Huà Shé Tiān Zú) , frequentemente encurtada na expressão Os Pés da Serpente (Shé Zú蛇足).

古时候,楚国有一家人,祭完祖之后,准备将祭祀用的一壶酒,赏给帮忙办事的人喝。帮忙办事的人很多,这壶酒如果大家都喝是不够的,若是让一个人喝,那能喝得有余。这一壶酒到底怎么分呢?大家都安静下来,这时有人建议:每个人在地上画一条蛇,谁画得快,这壶酒就归他喝。大家都认为这个方法好,都同意这样做。于是,在地上画起蛇来。
有个人画得很快,一转眼最先画好了,他就端起酒壶要喝酒。但是他回头看看别人,还都没有画好呢。心里想:他们画得真慢。他洋洋得意地说:“你们画得好慢啊!我再给蛇画几只脚也不算晚呢!”于是,他便左手提着酒壶,右手给蛇画起脚来。正在他一边给蛇画脚,一边说话的时候,另外一个人已经画好了。那个人马上把酒壶从他手里夺过去,说:“你见过蛇吗?蛇是没有脚的,你为什么要给它添上脚呢?所以第一个画好蛇的人不是你,而是我了!”那个人说罢就仰起头来,咕咚咕咚把酒喝下去了。

Eis a minha tradução:

Nos tempos antigos, no Reino Chu (楚國/国Chǔ Guó), havia um Senhor feudal que após ter prestado as devidas libações rituais aos antepassados, ainda lhe sobrou um jarro de vinho, que pensou distribuir pelos empregados. Mas como estes eram muitos, o vinho não chegava para todos, porém para um seria mais do que suficiente. Afinal como havia de ser partilhado? Para que se acalmassem um deles sugeriu: “cada um vai desenhar uma serpente no chão, o que terminar primeiro, obterá o jarro de vinho.” Todos concordaram com a ideia e assim começaram a desenhar. Havia um que estava cheio de vontade de o beber, por isso despachou o desenho num abrir e fechar de olhos.

Ao olhar para os outros, viu que ainda não tinham acabado, pelo que pensou que eram muito vagarosos e disse triunfalmente: “Vocês são tão lentos que até tenho tempo para acrescentar pés à serpente!” Então, enquanto agarrava com a mão esquerda no jarro, com a direita acrescentou os pés ao réptil. Na altura em que estava a desenhar-lhe os pés e a falar, um outro terminou o seu desenho; arrebatando-lhe o jarro da mão, disse: “já viste alguma serpente? Se não têm pés por que lhos acrescentaste?!Por isso, o primeiro a desenhar uma serpente não és tu, mas sim eu.” Ao acabar de falar, levantou a cabeça e gluglu emborcou o vinho.

Num equivalente estilístico para Português, o primeiro vencedor tinha borrado a pintura. Numa leitura ontológica, nada há a acrescentar a uma força completa em si mesma. Logo, este dito é usado para mostrar alguém a fazer algo de supérfluo.

Quando a serpente pretende ser outra, tem aberto o caminho da metamorfose, semelhante ao do bicho da seda e da borboleta.

Os chineses estão bem conscientes do poder da Serpente (shé 蛇), cuja leitura etimológica é o verme radicalmente outro, o bicho, a força antitética da civilizada. Esta energia natural imensa foi rebatizada como Pequeno Dragão (小龙 Xiǎo Lóng) para dar espaço ao réptil a se cultivar e exercitar na via espiritual, num percurso interior do corpo à mente, sem, contudo, perder as suas raízes telúricas. A serpente rasteja na terra, se conseguir erguer-se aos céus como um dragão voador, realiza a união das duas forças primordiais do universo, a do Céu e a da Terra, no interior do corpo humano e no exterior do corpo cósmico.

Referências bibliográficas

Baidu. 2025.“画蛇添足” Baidu. Baike. Disponível em: https://baike.baidu.com/item/%E7%94%BB%E8%9B%87%E6%B7%BB%E8%B6%B3/463357, acedido a 10 de janeiro de 2025.
Jung C.G. 1932. The Psychology of Kundalini Yoga. Notes to a Seminar Given in 1932. Ed. Sonu Shamdasani, Princeton: Princeton University Press.
Kwok, Man-Ho. 1997. Chinese Astrology. Forecast your Future from your Chinese Horoscope. Singapura: Asiapac Books.
Revista Circuito (Redação). “2025 é o Ano da Serpente no Calendário Chinês. A Energia Predominante será a da Madeira Yin”. Revista Circuito. Disponível em: https://www.revistacircuitcom/2025-e-o-ano-da-serpente-no-calendario-chines/, 10 de janeiro de 2025, acedido nesta data.
Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. “A História da Serpente Branca”, in Mitos e Lendas da Terra do Dragão, Lisboa: Caminho.
Zhao Qingge (赵清阁) .1998. The Legend of White Snake. Beijing (北京): New World Press (新世界出版社)

14 Jan 2025

Viagem no Grande Canal por Jiangnan

A praça central de Wulin (武林门) em Hangzhou era o principal local do mercado e até 2005 o cais terminal do Grande Canal (Da Yunhe, 大运河), onde durante 1400 anos se descarregaram as mercadorias vindas do Norte, como peles e carvão, e em sentido inverso partiu muito cereal e arroz.

O edifício no meio da praça, apesar de parecer um local governamental, é a sala de exposições da cidade. Na parte Oeste, dois grandes centros comerciais, um deles com cinema, prolongam a rua por onde somos levados até ao ancoradouro do Grande Canal. Num pequeno resguardo à entrada do cais de embarque vendem-se os bilhetes de barco para Suzhou [estamos em finais dos anos 90 do século XX] e todos os dias dali parte um barco às cinco e meia da tarde, numa viagem feita noite dentro pelo canal Jiangnan [Jiangnan yunhe (江南运河)]. Outrora, o percurso ia a Wuxi, mas esse serviço estava há dois anos desconectado.

O Canal Jiangnan começa em Zhenjiang, na margem Sul do Changjiang (Yangzi ou Yangtzé), após o Grande Canal cruzar o terceiro maior rio do mundo, e para Sul segue o seu curso por Danyang (丹阳), Changzhou (常州), Wuxi (无锡), Suzhou (苏州), Pingwang (平望), chegando a Hangzhou onde se conecta ao Rio Qiantang.

No guiché, que parecia guardar o beco a levar à porta de embarque, compramos para o dia seguinte por 98 yuan o pequeno [qual de citadino autocarro] bilhete de uma cama, em compartimento de um beliche, pois as cabinas de duas camas a custarem 115 yuan estão esgotadas. Pedem para chegarmos às cinco da tarde, meia hora antes da partida.

Olhava o cais de onde dois anos antes partira de barco até Suzhou e regressava agora preparado para repetir a viagem, mas ao chegar ao cais verifico que este está a ser demolido. Os barcos dessas viagens aí continuam ancorados, mas estas foram agora suspensas por tempo indeterminado. Por mero acaso, apercebemo-nos da movimentação registada ao fundo do cais, com pessoas à espera ao lado de uma placa em triângulo a indicar a paragem do barco. Indagando, ficamos a saber não se efectuar já a viagem até ao antigo cais de embarque de Nanxingqiao (南星桥), situado pouco antes de chegar ao templo Sanlang, próximo do terminal Sul de autocarros.

Agora estava aberta uma carreira de barco, que numa curta viagem de dez minutos para jusante, encosta por breves momentos na paragem de Baziqiao zhan (坝子桥站), junto à ponte Bazi (坝子桥), para depois regressar ao cais de onde tínhamos partido. Por cinco yuan podemos olhar uma das comportas dos canais da cidade, que apesar de fechada deixa escorrer fios de água para o Grande Canal e parecendo um lugar atraente, uma ponte com três arcos coberta por um telhado de madeira é a porta de um ramal do canal.

Também por cinco yuan, somos levados até à ponte antiga de Gongchen, junto à praça onde está o Museu do Grande Canal Beijing-Hangzhou. E assim voltamos para visitar esse excelente museu, que veio criar um novo pólo turístico à cidade de Hangzhou.

Aí se encontram expostas miniaturas de barcos, e se podem ver os percursos das viagens marítimas ao longo dos séculos e os séculos de construção do Grande Canal, os seus patrocinadores e o modo como foram resolvidos os obstáculos apresentados para fazer desta via uma ligação directa entre a capital do Norte e o resto da China.

NO GRANDE CANAL

Só com a nova abertura do país ao turismo realizada em 1978 apareceu o interesse para tirar um novo proveito desta grande obra de engenharia. Pelo Grande Canal continuavam a ser transportadas as mercadorias, apesar de partes do percurso estarem interrompidos, pois a navegação fora já abandonada desde os finais do século XIX. Como resposta, em 1981 as entidades turísticas de Wuxi abriram uma viagem entre Suzhou e Yangzhou e outra, do lago Tai até Hangzhou.

O barco colocado à disposição do turismo era uma réplica fiel do barco-dragão do Imperador Sui, Yangdi. Nos finais dos anos 90, as viagens fazem-se entre Hangzhou e Suzhou e daí até Wuxi os barcos são já normais barcos de passageiros com dois andares. Depois, no segundo ou terceiro ano após o início do III milénio, a viagem deixou de se fazer para Wuxi e apenas se realizava entre Hangzhou e Suzhou e no ano 2007 esta foi interrompida. Cremos nós, para a reestruturar e preparar novos barcos para os turistas aproveitarem as belezas das paisagens e a História do Grande Canal.

Às cinco da tarde chegamos ao cais, meia hora antes da partida. Quinze minutos depois da hora, às seis menos um quarto estamos a navegar pelas águas do Grande Canal. O atraso deve-se a ter de se arrumar no barco as bicicletas do grupo de cicloturismo, chegado em cima da hora da partida.

O barco onde viajamos tem dois andares e aproximadamente vinte cabinas, com quartos de banho comuns, a cozinha e um pequeno salão, onde são tomadas as refeições, jantar e pequeno-almoço.

A viagem será feita à noite pela região conhecida por Jiangnan [Sul do Rio], que atravessa as terras a Sul do Changjiang (Rio Yangzi), nas províncias de Zhejiang e Jiangsu, de onde provém o nome do canal construído na dinastia Qin com 85 km de comprimento e alargado em 605. De Hangzhou passa por terras de Huzhou e Jiaxing e saindo da província de Zhejiang entra na de Jiangsu e contornando a Leste o lago Tai, segue até Suzhou, onde de barco terminará a nossa viagem.

De Hangzhou partíamos para Suzhou, na comparação do viajante veneziano Marco Polo, cidades gémeas a nível de beleza, Paraísos na Terra.

A noite cai em Hangzhou quando cruzamos a ponte Gongzhen, construída em 1631 toda de pedra com três arcos e que nos traz despertos no convés, apesar de chuviscar, por dar início ao percurso ainda não navegado. Um barco de passageiros passa transportando apenas uma pessoa, não sendo de estranhar pois a neblina e o chuviscar durante toda a tarde retira o prazer da viagem.

Os choupos enfileirados ao longo das margens empedradas são subitamente iluminados pelas lanternas vermelhas de um restaurante na borda da água de estilo antigo à espera de clientes. A beleza da paisagem talvez apenas se deva às sombras da noite.

O trânsito de barcos é intenso e todos são de carga, alguns grandes, onde cabem contentores, outros transportando areia, carvão ou toros de madeira. O barco com o casco plano e a proa em U, navega a rasar a borda de água. Na popa da embarcação, no topo da cabina-habitação encontram-se as luzes de sinalização, com a verde no lado direito e no esquerdo, a vermelha. Leva um foco de luz branca intenso a iluminar o canal de frente e ao cruzar com outras embarcações desvia-o, ou apaga. Ganha-se a escuridão. Antes de cruzar com outros barcos, uns em sentido contrário, outros para serem ultrapassados, volta a acender por segundos o holofote a avisar e visualizar o tamanho das embarcações.

Junto a um desvio do canal, uma bomba de gasóleo na margem espera para reabastecer de combustível quem por ali passa. As águas transportam detritos de esferovite e ramos de árvores. De quando em vez, uma fábrica nas margens tem o seu cais fazendo proveito desta via privilegiada de transporte para receber matéria prima a enviar a produção.

O tamanho em largura do canal vai variando e por vezes permite a passagem ao mesmo tempo de quatro barcos, mas noutros locais para três já é apertado.

Cruzamos com um comboio de barcos puxado por um rebocador, onde se situam as cabinas dos trabalhadores, levando atrelado dez longos barcos contentores. Um ligeiro toque no nosso barco faz-se sentir.

Se nas primeiras duas horas de viagem o buzinar é constante, depois apenas solta um estridente som de apito ao passar por um conjunto de casas e quando se cruza em sentido inverso com o barco da companhia.

Adormecemos, não sem antes sentirmos mais um toque entre embarcações e desta vez a pancada é mais forte.
Chegamos de manhã cedo ao destino, após mais de nove horas de viagem a navegar no Grande Canal. Às 5:30, o barco aportou junto à Ponte do Precioso Cinto (Baodai Qiao, 宝带桥) na parte Sudeste de Suzhou, no distrito de Wuzhong, mas apenas dele saímos às seis e meia. Dois autocarros esperam na Rua Changqiao (长桥街道) para levar os passageiros até ao centro da cidade, a seis quilómetros.

Baodai Qiao é considerada uma das pontes mais representativas da China e tem esse nome pois foi construída entre 816 e 819 à custa da venda do valioso cinto de Wang Zhongshu, governador de Suzhou na dinastia Tang. Com uma extensão de 317 metros e 4,1 metros de largura, conta 53 arcos, tendo três aberturas é suficiente para permitir aos barcos continuar pelo Grande Canal e também atravessar o Rio Daidai e o lago Tantai. O resto da ponte faz de cais, ficando ao nível das embarcações que aí acostavam e facilmente descarregavam as mercadorias.

10 Jan 2025

A busca de Pan Gongshou por um jardim numa encosta

Xie Lingyun (385-433), o irreverente poeta viandante que quis conhecer rios e montanhas ignorados, participou num grande banquete no dia 24 de Outubro de 418, na festa Chongyang jie, do «Duplo nove», em que era homenageado Kong Jing (347-422) um antigo conselheiro e apoiante de Liu Yu (363-422), que seria o fundador da dinastia Liu Song.

Nesse banquete que decorreu em Xima tai, o «Terraço para observar corridas de cavalos» em Pengcheng (Xuzhou, Jiangsu), Xie Lingyun foi chamado a compôr um poema «para inspirar confiança e segurança», numa altura em que o homenageado decidira retirar-se do serviço público e quando os partidários de Liu Yu ainda estavam em pleno processo de combate e consolidação do poder. Logo no início, o poema assinala os dois movimentos contrarios:

«No último mês do Outono

os ventos na fronteira Norte

são ríspidos e cruéis,

Os cisnes migrantes voam

contra as investidas

do frio intenso e da neve.»

Depois, descreve:

«O peregrino, de regresso,

segue o curso do rio

até ao limiar do oceano,

Faz uma vénia, tirando o chapéu,

e sai das fileiras da corte.

Abrandando os remos

o barco é amarrado

nos serpenteantes baixios,

Olhando para a sombra do sol,

ele aguarda que a música

anuncie o fim do banquete,

As correntes do rio correndo

adiante com rapidez.»

Mas o poeta não se exime, olhando o exemplo, colocando-se em questão:

«Como posso eu apenas contemplar

os nossos caminhos separando-se?

É o querido objectivo, para meu desgosto,

que eu agora vou contra.

Aquela maravilhosa via do jardim

numa encosta da montanha.

Ah, como lamento a minha frágil virtude

e vãs demandas.»

Mas a busca prosseguiria até ao fim. Na dinastia Qing um outro poeta e pintor que leu o poema, percebeu a contraditória vontade como se estivera presente no famoso banquete.

Pan Gongshou (1741-1794), numa folha de um álbum de pinturas e poemas de c. 1790 (Universidade de Alberta), recordou Xie Lingyun e o poeta Pan Yue (247-300) com quem partilhava o nome de família e que de modo memorável chorou a morte da esposa: «Vestígios daquele banquete e das músicas do tempo de Xie Lingyun, o duque Kangle, começam a extinguir-se,/ O poeta Pan Yue sentiu o Outono encher-lhe o peito de tantas lágrimas./ Retirado, em sonhos, não alcançarei o meu desejo, resta-me apenas sentar-me sozinho,/ Mas sentado sob as nespereiras florescendo no início do Inverno, como poderei manter tais sentimentos?»

O pintor de Dantu (Zhenjiang, Jiangsu) procuraria o seu «jardim numa encosta de montanha», entre pinturas que refez como se nelas quisesse habitar. Obras distantes no tempo, como os rolos verticais que se encontram no Museu de Arte de Harvard, inspiradas por obras de outros pintores como o monge do século X, Juran ou a notável Ma Shouzhen (1548-1604). Seguindo com eles no desassossego de percorrer ignorados rios e montanhas.

7 Jan 2025

Lin Huiying e a nova poesia

Texto e tradução de António Izidro

O descontentamento pelo clima político e social do país sob o domínio estrangeiro agravou-se a partir de 1915. Exigia-se, por um lado, resposta mais contundente e eficaz das autoridades governativas, enquanto circulava no seio dos intelectuais e nas universidades a necessidade de um novo conceito de cultura e novos pensamentos para a nação fragmentada. Era necessário romper as obsoletas mentes clássicas.

Em França decorria a Conferência de Paz de Versalhes de 1919 que, entre outras deliberações, propor-se-á a manutenção da ocupação japonesa em territórios chineses, não obstante os protestos, em vão, da delegação de Pequim. A notícia da derrota da diplomacia chinesa chegou à capital no dia 2 de Maio e no dia seguinte as universidades reuniram-se para tomar uma acção – a manifestação no dia 4 Maio.

Cerca de três mil estudantes concentraram-se na Praça de Tiananmen em protesto contra o regime, contra a cultura, a tradição, vistos como responsáveis pelo desastre nacional de uma nação amarrada por filosofias e conceitos obsoletos. Em pouco tempo, a manifestação estender-se-ia por quase todo o país. Empresários, operários e camponeses uniram-se em greve, seguiram-se as repressões, prisões de estudantes, que agravaram ainda mais o caos. Sem outros meios para travar o descontentamento nacional, o governo republicano caiu no dia 13 de Junho. Terminaram as repressões, os estudantes foram libertados e detidos os traidores da pátria. Uma nova indicação foi dada à delegação chinesa em Paris: “Não se assina o tratado de Versalhes.”

Um movimento estudantil a acordar a nação inteira e a provocar a queda de um governo, bem ao jeito do ditado popular da autoria de Mao Zedong que diz que para incendiar um bosque basta uma centelha. A história da China é repleta de manifestações, motins e outros fenómenos de insurreição, cujos desfechos são lições que reis, imperadores e governantes não prescindem. O movimento estudantil de 4 de Maio de 1919 alcançou os objectivos, não porém com efeitos imediatos, mas permitiu lançar o conceito de nova cultura, da limpeza semântica. A semente começou a germinar ao nível das liberdades, dos direitos da mulher na educação, nas artes, na literatura. Defendia-se o abandono da escrita clássica, dos velhos conceitos morais e filosóficos de inspiração confuciana que impediram a monarquia de sacudir o jugo estrangeiro, enfim, a criação de um novo ambiente social, cultural e político e uma nova forma de poetizar.

Foi neste clima renovado que Lin Huiying (1904-1955), escritora, a primeira mulher arquitecta chinesa, foi estudar belas-artes nos Estados Unidos da América, destacando-se como professional na restauração e conservação do património cultural chinês. Contrastando o seu reconhecido mérito em projectos, designs e trabalhos de arte, como escritora, Lin Huiying, autora de uma vasta obra literária, revela o lado lírico da sua personalidade, as emoções, e sobretudo o profundo enamoramento pelos sentimentos, pela saudade.

Em «Não desfaças» (escrito em chinês moderno) publicado na colectânea de 1936, depreende-se que há por parte da autora a conservação de uma realidade que não está mais presente, mas por ela perseguida; a interrupção, mas para ela atemporal, do afecto pelo amigo que faleceu, o sujeito passivo neste discurso directo, a quem pede para não desfazer o afecto e a amizade que uniram os dois. Afinal, tudo continua igual, a fluir, no mesmo luar, nas mesmas estrelas, no mesmo eco que soa no vale da montanha.

别丢掉

这一把过往的热情

现在流水似的

轻轻

在幽冷的山泉底

在黑夜,在松林

叹息似的渺茫

你仍要保存着那真

一样是明月

一样是隔山灯火

满天的星, 只有人不见

梦似的挂起

你向黑夜要回

那一句话 你仍得相信

山谷中留着

有那回音.

Lin Huiying

Não desfaças

Aquele afecto ardente do pretérito

que de mansinho flui como água

no remanso da fonte sob a montanha

no escuro da noite, no pinheiral,

por entre suspiros indistintos.

Conserva aquela mesma realidade tua,

na lua do mesmo luar,

na mesma intangível chama,

nas estrelas onde pendurámos sonhos,

cobrindo o céu.

Juntos não as veremos de novo.

Assomes na escuridão da noite

por creres que as mesmas palavras

se conservam naquele mesmo eco

e ressoam naquele mesmo vale,

daquela mesma montanha.

«Tu és o abril na terra» é uma tentativa de esculpir a imagem da filha recém-nascida, com elementos audíveis e visíveis da natureza, concretos e abstractos: brisa, névoa, solenidade, inocência, estrelas, flores… num cenário conjugado com a época de abril.

你是人間的四月天

我説 你是人間的四月天

笑響點亮了四面風

輕靈在春的光豔中交舞着變

你是四月早天裏的雲煙

黃昏吹着風的軟,

星子在無意中閃,

細雨點灑在花前

那輕,那娉婷, 你是

鮮妍 百花的冠冕 你戴着

你是天真,莊嚴你是夜夜的月圓

雪化後那片鵝黃, 你像

新鮮初放芽的綠

 你是, 柔嫩喜悦,水光浮動着你夢期待中白蓮

 你是一樹一樹的花開

是燕在梁間呢喃你是愛,是暖

是希望

你是人間的四月天.

Tu és o Abril na terra

Digo, tu és Abril na terra,

sorriso luminoso dos quatro ventos,

a bailarina em metamorfose,

leve no brilho da primavera.

Tu és a névoa das manhãs de abril,

a brisa suave do crepúsculo.

As estrelas faíscam ao acaso,

a chuva borrifa gotas diante das flores.

Levezinha, elegante formosura, és tu

corola de branca flor cingida à cabeça.

Tu és inocência, solenidade,

tu és a lua cheia das noites

da amarelada neve derretida.

Tu és a frescura verde dos rebentos

a tenra alegria, o lótus branco do teu sonho,

flutuando em águas luzidias.

Tu és a flor desabrochando em cada árvore

o grinfar das andorinhas por entre as vigas.

Tu és amor, és brandura, és a esperança.

Tu és o Abril na terra.

笑的是她的眼睛,口唇

和唇邊渾圓的漩渦。

艷麗如同露珠

朵朵的笑向

貝齒的閃光里躲。

那是笑 神的笑,美的笑

水的映影,風的輕歌

笑的是她惺松的鬈髮

散亂的挨著她耳朵

輕軟如同花影

痒痒的甜蜜

湧進了你的心窩

那是笑 詩的笑,畫的笑

雲的留痕,浪的柔波

Sorriso (exaltação do sorriso feminino)

São seus olhos, são seus lábios,

rodopio de remoinhos junto aos beiços

a competir com a beleza do orvalho.

No brilho de cada dente escondido

brota a flor de um sorriso,

aquele sorriso, sorriso divino e belo,

reflectido nas águas e cantado pelos ventos.

Sorrisos são cachos adormecidos do seu cabelo

esparsos, aconchegados aos ouvidos,

leves como sombras floridas

prurido açucarado

invadindo os corações

É aquele sorriso, sorriso poético, pitoresco,

como vestígios de nuvens esvaídas,

como mansas ondas encristadas.

深夜裏聽到樂聲

這一定又是你的手指

輕弹着

在這深夜,稠密的悲思。

我不禁颊邊泛上了红

静聽着

這深夜里弦子的生動。

一聲聽從我心底穿過

忒凄凉

我懂得,但我怎能應和?

生命早描定她的式楊

太薄弱

是人們的美丽的想象。

除非在梦里有這麼一天

你和我

同來攀動那根希望的弦。

Escuto melodia em alta noite

Tenho a certeza: são os teus dedos

uma vez mais, dedilhando suave

nessa noite imersa em densa mágoa.

Sem me poder conter,

o rubor sobe-me pelas faces

Serenamente, escuto

as cordas vibrando noite adentro.

Os sons trespassam a minha alma,

tão desolada.

Entendi, mas como hei-de corresponder?

O destino já me entregou a sina,

tão frágil.

Como é belo imaginar

esse dia que só o sonho pode trazer

tu e eu trepando

por uma corda de esperança

6 Jan 2025

Jardins da China (5) – O recinto das flores de ameixeira

(Meihuashu ji)

Por Zhong Xing

Zhong Xing (1572-1624), também conhecido por Zhong Xinghui, foi um letrado e historiador chinês que viveu durante a dinastia MIng.

Quando se chega aos Três Wu (três cursos de água que rodeiam Suzhou), pergunta-se se ainda se estamos num rio: do barco ou da margem, só se vêem jardins. Jardins? Sim, jardins sobre a água! Sobre a água, na água, à esquerda, à direita, em terraços elevados, em habitações escondidas, quiosques arejados, galerias sinuosas, cais horizontais, rochas verticais, flores no chão e pássaros no ar, caminhos em todas as direcções, tudo em jardins, nada mais que jardins.

Por que precisa toda a gente de um jardim? Porque o homem é tal que, se estiver sempre no meio de jardins, já não se apercebe disso, e tem de ter o seu próprio jardim para saber que está num jardim.

Quando navego nos Três Wu, encontro-me sempre num jardim, sem poder conhecer todos os jardins desse jardim. Em Liangxi (Wuxi) é o Vale do Velho Estúpido de Zou, em Gusu (Suzhou) é o Político Desastrado de Xu, a Paz Celestial de Fan, a Montanha Fria de Zhao: cada pessoa que se preze tem o seu próprio jardim.

Mas os jardins não estão apenas na água, ou podem estar na água e continuar a ser diferentes, como é o caso do Recinto das Ameixeiras em Flor do meu amigo Xu Xuanyou. Fica em Fuli, onde Lu Guimeng da dinastia Tang viveu (no século IX). Se é diferente, é porque se chega lá através do rio Wusong, o único rio dos Três Wus que merece esse nome.

Vim ao Recinto com Lin Maozhi no inverno do ano jiwei da era Wanli (1619) e prometi escrever uma prosa sobre este jardim, mas não cumpri a minha promessa até agora, no ano xinyou da era Tianqi (1621). Vejo-o muitas vezes na minha mente, mas não consigo lembrar-me de todas as suas voltas e reviravoltas, como o pintor de bambus que projecta mentalmente toda a imagem sem ser capaz de contar os nós do caule. Só um poema que escrevi sobre este jardim é que o traz de volta à memória. A água dos Três Wu, que corre mais livremente em Fuli, torna-se invisível a poucos passos do Recinto, para reaparecer no interior, onde tem de entrar por um canal subterrâneo.

Abra uma porta e estará no mesmo nível que o Pavilhão das Líchias e dos Crisântemos1, depois suba uma escada sinuosa até ao Pavilhão do Reflexo. Não se vê apenas a água lá em baixo: o que se avista do quiosque, o que a galeria acompanha, o que a ponte atravessa, onde as pedras sobem e descem, onde os salgueiros e os bambus se reflectem, é água.

O meu poema diz: “Fecho a porta e domino uma corrente fria, levanto a mão e encontro uma paisagem”. Se nos virarmos nos degraus, podemos ver uma sucessão de picos, que são rochas colocadas arrastadas na parte ocidental do jardim. Se deixarmos o nosso olhar vaguear ao longe, veremos água rodeada por uma galeria que, por sua vez, está rodeada de um muro. A água, verdejante com árvores e plantas aquáticas, reflecte-se nas nossas roupas. Do outro lado do muro há um outro pavilhão, solitário, que julgas estar ao teu alcance, mas não sabes como lá chegar, porque o caminho é traçado e depois desaparece. Como diz o meu poema: “Avançamos e paramos, os desvios têm os seus mistérios.” Quando se desce do pavilhão, é preciso ter cuidado com os pés para não molhar a roupa; chega-se à entrada da Gruta dos Perfumes, no fim da qual se atravessa uma piscina numa ponte de pedra. Depois de passar a Gruta do Pequeno Mont You, páre no Pavilhão da Hospitalidade, perto do Banco do Murmúrio do Brocado, uma rocha musgosa corroída pela água.

A galeria do outro lado da água é ladeada por bambus; o ruído e o brilho da água misturam-se com o canto do vento e o jogo do sol nos bambus, iluminando-os e encobrindo-os alternadamente, como evoca o poema: “Galeria imóvel entre os bambus, sons e luzes que se movem ao perto e ao longe.”

Virando para norte, chega-se a um quiosque triangular no coração da torrente, onde o ar é tão fresco que parece de outono ou de inverno. Depois, siga por um beco entre sebes e, de repente, verá um Pavilhão do Repouso Verde, com vista para o Pavilhão do Reflexo e para as estranhas pedras que foram respeitosamente chamadas Elã Divino. A galeria rodeada de água começa aqui; o seu nome, Galeria das Sombras Fluidas, foi desenhada por Chen Meigong.

Percorra depois a balaustrada verde e rubra até ao Pavilhão Azul Celeste. Algumas dezenas de passos mais à frente, virando para sul, a ermida dedicada a Weimoji2 marca o centro da galeria. Vinte ou trinta passos mais à frente, chega-se à Ponte da Lua sobre as Ondas, com um quiosque para a contemplar. O vento anima a superfície do lago, um espelho onde as aves do ar se misturam com os peixes da água.

A ponte conduz à Sala do Ócio Merecido, a mais bela sala do jardim, onde se podem sentar cem pessoas no terraço de pedra onde se realizam concertos e festas. A noroeste, encontra-se um pequeno templo dedicado a Buda. Do Pavilhão do Reflexo à Sala do Ócio Merecido, passa-se de um retiro escondido para um espaço aberto, e do salão para o templo regressa-se ao silêncio, como se deve. O templo fica junto à água, que se atravessa no Vau Flutuante Vermelho.

A norte, a Torre da Biblioteca e, um pouco mais adiante, o Santuário, lugar de repouso do Mestre do Jardim, ao qual só são admitidos convidados íntimos. Na ribeira a leste da Sala do Ócio Merecido encontra-se um quiosque denominado Lavadouro dos Tinteiros. Uma porta cortada na parede dá acesso ao Pavilhão do Pura Água Profunda, que é aquele que se vê ao longe sem saber como lá chegar.

Deixe para trás todas as vistas requintadas, que se sucedem no interior, mas ao resignar-se por um momento, descobre-se uma nova paisagem, mais clara e mais ampla. Fora do pavilhão, o bambu é lavado pela névoa e pela geada, as flores e os frutos são coloridos por nuvens iridescentes, os lagos são purificados pelas estrelas, e há uma suavidade e um brilho primaveris, mesmo no tempo frio e sombrio. O meu poema diz: “Eu costumava evitar o outono e o inverno para ver os jardins, mas se eles mantiverem a sua beleza, não importa a estação do ano”.

Apesar de só lá ter estado uma vez, o meu coração e os meus olhos falam-me de todas as suas estações e gostaria de lhe chamar o Jardim das Flores Eternas. Mas, com as suas extensões de água límpida, evoca sobretudo o outono, e termina com uma Ermida do Outono em Movimento, porque o outono é o culminar das outras estações. Como já disse, a água dos Três Wu não é mais do que jardins, mas nós só vemos as cidades e as aldeias e esquecemo-nos dos jardins.

O jardim de Xuanyou é todo água, mas só se vêem os quiosques e os pavilhões e esquecemo-nos da água. Água? Jardim? É difícil de dizer! O homem de lazer olha para um sítio com tranquilidade, o homem sábio é exímio no seu paisagismo, o homem superior retira dele a quintessência. Cada um vê as coisas à sua maneira. Como diz o meu poema: “Vemos o ócio nestas pontes e nestes quiosques? Podes ser ocioso e competente, eles não estão lá por acaso.”

Tradução de Miguel Lenoir

1. Alusão literária (a Lu Guimeng, que aí viveu, e a Su Shi) a uma vida frugal e feliz.
2. Weimoji, um eremita que se diz ter tido uma conversa com o Buda.

3 Jan 2025

Hangzhou e o Grande Canal

O Rio Qiantang (钱塘江), o primeiro dos cinco rios que abastece de água o Grande Canal, tem junto à sua foz Hangzhou (杭州). Durante 1400 anos a cidade foi o terminal dessa vasta via aquática e é um dos centros para onde confluem e se reúnem, ou intersectam vários canais dos seus diferentes percursos.

De Hangzhou parte o Grande Canal (Da Yunhe, 大运河) para Norte e em Zhenjiang atravessa o Changjiang entrando em Yangzhou, de onde por duas diferentes vias se pode navegar até Wuxi, aproveitando as águas do lago Tai, ou no percurso até Huai’an, a antiga secção Leste do Tongji (Tongji qu, 通济渠), usando o Rio Huai (Huaihe) por o antigo canal Hangou, de Shanyang (山阳, actual Huai’an) a Jiangdu (江都, hoje Yangzhou).

Era o canal Shanyang [Shanyang du] dragado na dinastia Qin com 85 km de comprimento, a começar no Changjiang (Rio Yangzi) ia até Suzhou, de onde já no Período Primavera-Outono havia ligação a Wuxi. Yangdi, Imperador da dinastia Sui, em 605 mandou alargá-lo e estender o comprimento desse canal de Shanyang (actual Huai’an) até Yangzijin (扬子津), parte Sul da cidade de Jiangdu (actual Yangzhou).

O canal Jiangnan yunhe (江南运河) vai para Sul até ao Rio Qiantang (Qiantangjiang) chegando a Hangzhou e para Leste da cidade, em Xixing, distrito de Binjiang, começa o Canal Zhedong (浙东运河, Zhejiang Leste ou Hangyong) com 240 km, a percorrer o Norte da província de Zhejiang, passa por Shaoxing (绍兴) e conjugando-se ao Rio Yong chega a Ningbo (宁波), onde no distrito de Zhenhai, termina o Canal. Já a Norte, as águas do Rio Qiantang vão desaguar no Mar da China do Leste. A cidade de Ningbo, a Nordeste da província de Zhejiang, é oficialmente considerada desde 2013 o término Sul do Grande Canal.

Por etapas descontínuas, nas visitas a Zhejiang (浙江) percorremos todos esses cursos em diferentes alturas, repetindo-os ao visitar a capital da província Hangzhou, Shaoxing e Ningbo, ou para Oeste, na senda da seda, passando por Huzhou (湖州), Hanshan (含山), Wuxing (吴兴), no eixo Hangzhou-Huzhou, ou na via Shanghai-Hangzhou, encontramos na província de Jiangsu, Shengze [(盛泽), no distrito de Wujiang, pertencente a Suzhou e em conjunto com esta, a par de Hangzhou e Huzhou, foi uma das quatro cidades da seda], Tongxiang (桐乡) e a quinze quilómetros Wuzhen (乌镇), visitada era ainda uma antiga pequena aldeia com vida ao longo de canais ligados ao Grande Canal, a meio caminho entre Shanghai (Xangai) e Hangzhou.

Nestas viagens, poucas vezes com oportunidade de as realizar por água e daí percorridas em autocarro, acompanhando em paralelo o Grande Canal, grande parte dos trajectos e era ver os barcos passarem lado a lado com a estrada, aparecendo ao mesmo nível desta.

ONDAS NO RIO QIANTANG

Desde há dois mil anos registado na literatura e poesia o fenómeno ocorre próximo do Festival do “Meio do Outono”, entre o 15.º dia do oitavo mês lunar, sendo o clímax no 18.º dia. Ondas de dois metros e meio penetram no Rio Qiantang e chegam à baía de Hangzhou, atraindo milhares de espectadores todos os anos. Esta extraordinária ocorrência deve-se a um conjunto de factores como a gravitação de corpos celestes, a força centrífuga produzida por a rotação da Terra e a forma de gargalo da baía de Hangzhou, sendo o melhor local para observar no concelho de Haining, em Haiyan e Xiaoshan.

Hangzhou, com o nome de Lin’an, foi desde 1138 a capital da dinastia Song do Sul (1127-1279) devido à tribo tártara Jurchen (conhecida mais tarde por manchu, proveniente do Nordeste da China), ter em 1126 conquistado aos Song do Norte a capital Kaifeng. Levaram da corte quase três mil presos para Harbin [onde desde 1115 como dinastia Jin (1115-1234) os Jurchen tinham a capital Imperial em Huining (Harbin) e edificaram Zhongdu (Beijing)], e no inverno de 1141 os Song cederam aos Jin um vasto território, tornando-se como vassalos, pois pagavam um tributo anual de prata e seda.

O restante da corte da dinastia Song retirou-se para Sul, fugindo das investidas dos Jin, e instalou-se em Nanjing (actual Shangqiu, província de Henan) onde Zhao Huan foi feito Imperador Qin Zong (1125-1127). O seu irmão, Zhao Guo, no ano de 1127 proclamou-se Imperador com o nome de Gao Zong e deu início à dinastia Song do Sul (1127-1279), mudando em 1138 a capital para a beira-mar, na cidade de Hangzhou.

Era já em 907 chamada Lin‘an, quando Qian Liu fundou o reino Wuyue e aí fez a capital, governando Zhejiang, parte de Jiangsu e Fujian. Como a China do Norte se encontrava em guerra, as populações aí se foram refugiando pois Qian Liu pacificou o reino, expandindo-se este economicamente. O reino Wuyue (907-979) durou 72 anos, com três dinastias e cinco soberanos e só foi conquistado em 978 por a dinastia Song do Norte (960-1127) cuja capital era em Kaifeng.

A História dos Dez Reinos ligados com as Cinco Dinastias (907-960) refere ainda o reino Wu (902-937), situado onde se encontram as províncias de Jiangsu, Anhui, Jiangxi e Hubei, com a capital em Yangzhou e Nanjing, durou 35 anos e teve quatro soberanos. Foi conquistado por o reino Tang do Sul (923-936) aos Liang Tardio (907-923), a dinastia que sucedeu à Tang (618-907). Shi Jingtang, o fundador da dinastia Jin Tardia (936-946) conseguiu o apoio dos Liao (916-1125) [tribo mongol dos Chitan na China] e conquistou o poder ao reino Tang do Sul, voltando a mudar a capital para Kaifeng.

Só a dinastia Tang Tardio (923-936) teve Dong Du (Luoyang) como capital, pois nas restantes quatro pertencentes às Cinco Dinastias (Wu Dai, 五代, 907-960) era em Kaifeng. Já a vitória sobre os Han Tardio (947-950) de Zhao Kuangyin, chefe da dinastia Zhou Tardio (951-960), levou os seus oficiais a colocá-lo no lugar de Imperador com o nome de Taizu, fundando em 960 a dinastia Song, que durou até 1279. De 963 a 979 os Song conquistaram um a um os nove Estados do Sul e unificaram a China.

ORIGENS DE HANGZHOU

Próximo do mar, o local onde hoje está construída a cidade de Hangzhou encontrava-se originariamente coberto de água e na maré baixa, as águas do Rio Qiantang deixavam ver baías criadas pela areia. No tempo da dinastia Xia (2070-1600 a.n.E.) a este lugar foi dado o nome de Yuhang, por aí ter Yu, o primeiro rei dessa dinastia, chegado de barco (=hang).

Antes da dinastia Zhou pertencia à área de Yangzhou (uma das nove regiões administrativas da então China). Durante a dinastia Qin (221-206 a.n.E.) começaram a construir-se casas no sopé do monte Lingyin, a Noroeste do lago e com o assoreamento, esse núcleo original foi-se expandindo para os vales a Leste e a Norte. Em 326, reinava a dinastia Jin de Leste quando foi construído o templo do Recolhimento das Almas, Lingyin si, sendo um dos dez mais importantes templos de Budismo Chan na China.

Como cidade, Yuhang, o antigo nome de Hangzhou, só começou a ser construída em 406, entre as margens do lago Oeste já formado, e daí ao rio. Situada num vale ao longo do Qiantangjiang, com 410 km de zona fértil de plantações de arroz (com três colheitas ao ano), salinas, arbustos de chá pelas colinas envolventes, fábricas produtoras de seda, flores e pássaros de uma vegetação temperada. Nessa exuberância de produtos, não era de estranhar a capital da província de Zhejiang, Hangzhou, pela abundância ser de onde a grande parte dos impostos, normalmente pagos em géneros, partiam como tributos rumo às cidades Imperiais.

O centro de Hangzhou gira em torno do imenso lago, antigamente denominado Búfalo Dourado, formado a partir de uma inicial lagoa, alimentada pelas águas do Rio Qiantang. Conta a lenda viver o búfalo dourado deitado no fundo do lago e sempre que começava a diminuir o nível das águas, o búfalo emergia e voltava a enchê-lo. A história reporta-se à dinastia Han (206 a.n.E.-220), quando oficiais locais, para agradar ao Imperador, pediram à população para drenar as águas do lago. Seco, logo o búfalo apareceu e os oficiais correram para o apanhar.

Furioso, o búfalo produziu água suficiente num só momento que encheu o lago e desde então nunca mais secou. Hoje lá está o búfalo dourado numa estátua dentro de água a recordar as origens desta cidade.

Durante a dinastia Sui, Hangzhou foi muralhada quando Yangdi, o segundo imperador mandou rasgar o Grande Canal. Na dinastia Tang, conjuntamente com Yangzhou e Guangzhou, Hangzhou era um dos três portos de Trato, tanto com ligações marítimas, como fluviais.

Os viadutos vieram modernizar Hangzhou, que num momento se encheu de automóveis e pessoas, mas tapam, escondendo o que fica ao nível de solo. Voando de carro por um viaduto em primeiro andar somos dirigidos por a zona Norte da cidade, ficando assim sem visão dos muitos canais que atravessam a cidade. Só mais tarde ao caminhar pelas ruas, as pontes em arco chamam a atenção, agora desenquadradas devido à diminuição do espaço a envolver o canal por necessidade de aumentar as vias rodoviárias. Na parte Nordeste do lago, a planta da cidade feita em relevo na estrutura do passeio, permite perceber a rede de canais, os limites das muralhas, a área ocupada pelo vasto lago e em visão aérea, planar por séculos da História de Hangzhou.

Após passear nas margens do Lago Oeste (Xihu, 西湖), dirigimo-nos para a praça Wulin e caminhando por o antigo centro, duas antigas pontes deslumbram ao longo do trajecto iniciado na estação rodoviária do Norte.
Chegados à praça central de Wulin, do cais terminal do Grande Canal queremos embarcar para ir visitar o Museu do Grande Canal. Nem barco de carreira para aí nos levar [existente dois anos depois], pois esse era o meio para navegar num primeiro contacto por esta enorme via de água. Sem outra possibilidade partimos de táxi.

Chegados à praça referenciada como o local do museu, uma antiga ponte chama a atenção, toda de pedra com três arcos, construída em 1631, é a ponte Gongzhen a salvar esta viagem, pois o museu está fechado por três dias, como o porteiro nos indica. Mais tarde ficamos a saber faltarem três dias para o museu ser inaugurado, quando em 2007, seis meses após viajar de barco por o Grande Canal, aí voltamos, agora num turístico barco de carreira até à nova zona de museus de Hangzhou.

31 Dez 2024

O Espelho Incerto Dos Alegres Encontros no Vaso Celeste

Gong Kai (1222-1307), um antigo funcionário que no final da dinastia Song se mudou para os arredores da próspera Hangzhou aí vivendo pobremente dedicado à pintura, seria reconhecido pela nobreza do seu carácter íntegro e selvagem que se reflectia no aspecto de algumas das figuras nas suas pinturas, como o cortejo de Zhong Kui, o caçador de demónios ou shouma, o «cavalo magro».

No futuro, dado o apreço que as suas pinturas alcançariam, outros se apropriariam do seu estilo ou atribuiriam o seu nome como uma marca de distinção, a pinturas alheias que assim se valorizavam. É possível que esse seja o caso de um longo rolo horizontal de pintura a tinta sobre papel que hoje se encontra cortado em três partes e em dois museus.

No Museu de Arte da Universidade de Princeton, a pintura Hutian jule tu, «Encontro Feliz no vaso celestial» (29,7 x 298 cm) é atribuída ao pintor profissional de Fujian, Zheng Wenlin (activo entre 1522-1566). No Metmuseum, uma parte é atribuída a Gong Zuiyen (Gong Kai, 29,8 x 431,8 cm) e outra sem autor definido mas no estilo de Gong Kai (29,2 x 374,4 cm).

No final do rolo outorgado a Gong Kai onde se observam diversas personagens entregues a variadas actividades ao longo de um rio numa paisagem com dragões, pêssegos da imortalidade, grous e cogumelos lingzhi, há um extenso comentário informado sobre o que foi observado que diz: «O grande jardim de Benglai shan ‘A montanha do eterno devir’, é muito longe deste Mundo, para além do grande rio que o separa do monte, tudo é muito diferente (…) Como não há estações, não se distingue a Primavera do Verão nem o Outono do Inverno (…) Estranhas pessoas aladas reúnem-se ali para estudar as verdades da filosofia daoísta, suas faces são de velhos sérios; não conhecem as preocupações mundanas nem se ocupam do princípio ou do fim do Mundo (…) Alguns divertem-se dançando ou fazendo música no qin, outros escrevendo, pintando ou jogando weiqi (…)»

Zheng Wenlin tem a seu favor para ser o autor do rolo o facto de tanto se ter dedicado à figuração, de um modo desregrado e selvagem, desses obscuros seres em trânsito entre dois mundos, que foi conhecido como o «imortal louco».

Em muitas outras pinturas, evocando tantos selectos encontros, mostrou imortais usufruindo das gratas actividades a que se dedicavam os letrados, como num espelho impreciso. E aqui invocando hutian, o «vaso celeste», tantos sentidos; como Fanghu, o «pote quadrado», a ilha dos imortais ou a conhecida história do folclore que fala de um lenhador que, regressando a casa no fim de um dia de trabalho com o machado às costas, encontrou um belo pote de latão.

Resolveu levá-lo com o machado lá dentro e ao chegar a casa, a esposa reparou que lá dentro estavam dois machados. Em seguida, repetindo o processo, os dois repararam que era possível fazer dois de tudo.

30 Dez 2024

O retrato de Li Xiangjun com leque redondo na mão

Hou Fangyu (1618-1655) passou a sua juventude em Pequim, mas em 1639 foi fazer os exames imperiais a Nanquim e, tendo falhado devido ao modo crítico como se expressou no ensaio da prova, retornou ao Norte num desatinado vaivém entre o Sul e o Norte que acompanhou o acelerado crepúsculo da dinastia Ming, envolta em corrupção e laxismo.

Frequentando o sofisticado mundo literário da época, Hou Fangyu encontrou um dia em Nanquim, na margem do rio Qinhuai, numa casa chamada Meixiang Lou, onde se encontravam literatos com as chamadas geji, cantoras, dançarinas dedicadas à música, uma fascinante rapariga ainda com dezasseis anos e de múltiplos talentos, conhecida como Li Xiangjun, que no futuro seria associada às Qinhuai bayan, as «Oito belezas de Qinhuai» e entre eles nasceria uma relação que, tal como a dinastia, estava destinada ao fracasso.

Ela vinha de uma família de letrados em decadência vítima, como tantos outros, do despótico eunuco Wei Zhongxian (1588-1627). Logo no início do casamento Hou Fangyu ofereceu à sua noiva um objecto que, como um dispositivo independente da vontade, seria capaz de desencadear a memória nostálgica de momentos perdidos e felizes do passado. Nesse objecto, um tuanshan, um leque redondo rígido emoldurando um círculo de seda com um cabo de marfim, ligado à noção de união, Hou escreveu um poema para ela.

No meio da turbulência dos dias, Hou Fangyu foi forçado a ausentar-se e a noiva obrigada a viver com outro homem. Algo a que ela se negou, tentando o suicídio e no processo manchando de sangue o seu querido leque.

O pintor Yang Yuncong (1597-1645), em vista do sucedido, contornou com um pincel as manchas de sangue, delas fazendo flores de pessegueiro. O leque e essas flores cor-de-rosa e avermelhadas que desabrocham antes das folhas, e por um período breve, estão no título da peça musical Taohua shan, escrita por Kong Shangren (1646-1718), que eternizaria o intranquilo tempo da transição no fim dos Ming, figurado na fragilidade de uma relação de emoções exacerbadas.

Cui He (1800-1850), um pintor dos fins da dinastia Qing, recordaria a inspiradora Li Xiangjun num retrato imaginado, debruçada sobre uma janela circular com as cortinas levantadas (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 52,4 x 124,5 cm, no Metmuseum). Atrás dela é possível observar no seu gineceu; um espelho também redondo, um livro sobre a mesa, roupas sobre uma cadeira.

Em redor da janela, por cima, um salgueiro, alusão à saudade em baixo, ramos de flores brancas possivelmente meihua, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, que também podem ser designadas como li, o seu nome de família.

Só ultrapassa o círculo da janela, uma parte da manga do vestido e uma parte do leque redondo na sua mão, despontando das suas vestes pintado com o ramo de pessegueiro que fora manchas de sangue.

27 Dez 2024

Identidade, Periferia e Globalização: Duas Narrativas de Macau (continuação)

Por Fernanda Gil Costa, ex-directora do departamento de português da Universidade de Macau

Ao ler-se na “Advertência ao leitor” de Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja (publicado em Macau em 2016) que: “A história que se segue não pretende rigor histórico ou justeza, na descrição dos factos, hábitos ou comportamentos de antanho. As datas referidas e os intervenientes querem-se, obviamente, tão ficcionais quanto a realidade” – é expectável entender-se, apesar de tudo, que a encenação histórica das figuras, dos discursos e dos acontecimentos mantêm uma indisfarçável ligação com o presente do leitor português contemporâneo que, por isso, tenderá a interrogar-se sobre as reais condições do alegado passado da efabulação e sobre o sentido do cenário montado sobre factos históricos conhecidos. Neste sentido o leitor modelo de Carlos Morais José é não só o que frequenta o espaço público da cidade de Macau mas também o leitor habitual da literatura portuguesa.

A viagem, o trânsito entre mundos é o espaço da narrativa dentro e fora do relato do narrador. Todas as personagens estão em viagem – viagem por mar, deambulação por impérios e cantos remotos do mundo de quinhentos. Por isso, encontrar a relação com e história e a memória de Macau desde o seu achamento e estabelecimento como feitoria entre ocidente e oriente até ao presente pós-colonial, depois das negociações que conduziram à actual administração chinesa do território, é uma necessidade da leitura.

A orientação do leitor é difícil, pois só a viagem que decorre no presente da narrativa (o enquadramento – a viagem do padre protestante inglês) está escorada por eventos com substância histórica; as outras duas, a do padre irlandês possuidor do documento que é foco do romance, a confissão de Bernardo Vasques em Macau e a leitura da mesma são relatos escritos/lidos por terceiros, pertencendo, portanto, ao tempo suposto-passado da intriga. A variedade e arbitrariedade das referências, citações e ecos da tradição literária filiam-se claramente numa tradição textual pós-moderna especialmente próxima de muita narrativa contemporânea, especialmente de carácter parodístico.

A viagem do padre protestante decorre entre Singapura e Macau (simbolicamente entre o império inglês e o império português); este aporta à chamada Cidade do Santo Nome de Deus em vésperas do incêndio do Colégio de S. Paulo, a primeira universidade católica da Ásia. Tal viagem está, por isso, carregada de sentido simbólico e iniciático já que o protestante vai encontrar em Macau os jesuítas acossados pelos ventos de fim de ciclo que o iminente desaparecimento do colégio vem sublinhar de forma inevitável.

Ainda mais importante é o facto de a viagem entre Singapura e Macau ver falhar a missão do protestante, já que apesar dos esforços que aí empreende não encontra prova que confirme a existência do Arquivo das Confissões dos Jesuítas devido quer ao silêncio das fontes contactadas quer ao incêndio do Colégio de S. Paulo, cujo desejado recheio (onde supostamente as provas se encontrariam) vê arder impotente diante dos olhos.

Voltando a Arquivo das Confissões, um romance histórico publicado em Macau em 2016, o inusitado assunto poderá não ser surpreendente se considerarmos que o território tem uma história razoavelmente desconhecida do grande público no que diz respeito a episódios, memórias e fontes (a par de lendas e mitos de raiz popular luso-chinesa). A isso acresce o facto de nos últimos anos algumas investigações históricas terem contribuído para reforçar a ideia (que se tornara lenda) de que Camões teria vivido e trabalhado em Macau, o que voltou a colocar o poeta e a sua rota do Oriente no centro de indagações e investigações.

Sendo o ponto de partida do romance um assumido desafio a todo o propósito ‘sensatamente’ realista, a sua organização retoma as melhores tradições do género da narrativa enquadrada – gavetas de histórias que se abrem e esvaziam a partir de outras, articuladas em móveis geometrias de eventos misteriosos, de segredos e tesouros perdidos, dando origem à variedade das vozes e ‘fantasmas’ que lenta e intencionalmente desenrolam um imbricado novelo de histórias apenas sustentado por uma teia onírica.

Como foi já referido, o narrador principal é um padre inglês protestante que recebe por mero acaso um segredo perdido e de origem desconhecida, cedendo a voz, na recepção do inesperado tesouro, a um padre católico irlandês, o depositário do tesouro, em trânsito entre mundos. Este possui o manuscrito da confissão feita a um jesuíta português, que a terá ouvido e registado em Macau, de um patético bandido e viajante /navegante português, de neopícaro recorte, o qual durante uma viagem ao oriente teve e gulosamente aproveitou a oportunidade de se apropriar, por roubo premeditado durante uma longa congeminação de inveja, de nem mais nem menos que uma obra desconhecida e autobiográfica (espécie de autografia de recorte epopeico) de Luís de Camões.

Dois registos estilísticos são, assim, fundamentais nesta obra: primeiro, o da literatura de viagem que colhe variações na tradição vastíssima do género (pícaro, aventura, viagem iniciática, literatura de desastre e naufrágio); segundo, o registo da reflexão filosófica que invade a perspectiva e a narrativa através da voz do narrador principal, um padre culto, devoto e inclinado para a dialéctica dos fenómenos humanos e mundanos. A pergunta que se impõe é – como é que esta estratégia literária se conjuga com o lugar e o tempo reais da obra questionada?

A viagem enquadrada que é a intriga central da narrativa e o seu mais remoto passado é a de Bernardo Vasques, narrada em confissão, na primeira pessoa, entre os capítulos sexto e vigésimo sexto. Nela se recupera a história e o ambiente de relatos vários das navegações portuguesas, retirados quer dos cronistas quer das ficções do tempo, como as de Peregrinação.

A história é a de um homem de estudos e esmerada educação humanística a quem a obsessão narcisista de ser o melhor poeta de sempre, desenvolvida durante os tempos de passagem pela universidade de Coimbra, onde se confronta com a já vasta sombra de Camões, exacerba o desejo neurótico e mitómano de o ultrapassar em fama e glória. É curioso notar que Bernardo compõe, com excelência, o perfil tradicional do português apanhado pelo fatal emaranhado de ressentimento, queixume e inveja que o filósofo José Gil descreveu em Portugal, Hoje. O Medo de Existir (2004). Ao comentar as emoções e sentimentos negativos presentes no perfil do “invejoso”, o filósofo destaca sobretudo o ressentimento e o queixume, a que chama um “processo de captura” da consciência em estado geral de vulnerabilidade. Ora, Bernardo Vasques lamenta a sua condição de irmão do meio, embora não deseje a sorte nem do primogénito nem do irmão mais novo e acaba por confessar o esmero da educação que lhe foi dada pelo pai, que o destinava ao estudo das leis. O ressentido e generalizado queixume perpassa as suas palavras desde o início da sua narrativa:

Calhava-me ser humilhado pelo mais velho, aturar-lhe as ordens e a arrogância, garantidas pela sua força física; e obrigado a proteger o mais novo, suportar-lhe as birras, satisfazer-lhe as manias e embarcar na adulação geral. (AC: 41)

Sobre a inveja escreve José Gil, como se descrevesse Bernardo Vasques:

É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior (SE: 93)

O empolamento mitómano dos sentimentos de Bernardo V. levam-no a aspirar à fama e glória de poeta maior, lugar ensombrado e ocupado pelo vulto gigante de Camões. Incapaz de obter o reconhecimento almejado e cada vez mais colhido pela humilhação e seu “processo de captura”, embarca para a Índia com o intuito de encontrar o poeta e roubar-lhe a obra que o elevou ao trono das letras que para si deseja.

Sabia muito bem o que fazer: ele sofreria. Não como eu. Mas por uma perda irreparável. Não o mataria, não lhe roubaria a vida, mas sim a obra, (AC: 86)

Tal projecto neurótico e alucinado será executado no capítulo décimo quarto, depois de encontrado e reconhecido o velho poeta com a involuntária (e irónica) ajuda de uma figura criada pelo próprio, n’ Os Lusíadas – o soldado que desceu o outeiro mais depressa do que subira (AC: 76-77); a esse episódio segue-se uma série atormentada e criminosa de episódios de bíblica maldade, a par de tragédias encadeadas na tradição tenebrosa dos relatos de naufrágios, que terminam com a perda do pretenso manuscrito por Bernardo, depois de o ter aprendido de cor, de tanto repetir a leitura. O pecador arrependido que em Macau se confessa no final da vida, ostenta igualmente sinais claros de desequilíbrio mental e paranóia esquizofrénica. O desaparecimento misterioso, terminada a confissão, empresta à figura de Bernardo traços alegóricos (a marca do procedimento alegórico está patente no facto de Bernardo não lograr que a mão lhe obedeça para escrever e assinar a obra como sua, apesar de a saber de cor), embora na narrativa arraste o humilhante destino de um ser capturado entre a mediocridade e o desejo de grandeza e vanglória.

Pode um homem transformar-se num livro? Assim parecia. (…) todas as minhas acções se enfeitavam dos seus versos, os pensamentos ferviam de rimas, nada de novo havia que não coubesse ou não estivesse previsto na grandeza desta obra. (AC: 134)

Em conclusão, o registo escrito do delírio paranóico sobre a viagem fracassada de Bernardo Vasques, o transe de recitação (do suposto poema camoniano) depois do qual a personagem desaparece como por osmose entre carne e verbo, ainda antes da absolvição, tal como um pesadelo que cede ao aparecimento da madrugada, levam-nos igualmente à sua pergunta (já citada) entre a retórica e a angústia: “pode um homem transformar-se num livro?” (AC: id.) e ao desespero do impreparado, estarrecido confessor, quanto à justiça da retribuição do perdão divino: “O espírito humano não é um tratado científico e eu sou um pobre leitor cheio de dúvidas e de mísero talento.” (AC: 158).

É também a altura de inquirir em que medida Bernardo Vasques se relaciona com o presente do leitor e a que presente pode de facto aludir. A sua história é alucinada e paranóica, projecção de uma mente configurada pela distorção dos mapas da realidade e da psicótica apreciação do lugar dos outros, aliados ou oponentes dos seus objectivos, a par dos obstáculos que enfrenta (seja a fome e a sede depois de um naufrágio, a solidão absoluta ou a inserção numa comunidade desconhecida e crescentemente hostil). A ausência de escrúpulos, o aventureirismo inócuo e sempre aguerrido, cruel, invejoso e oportunista de um português que demanda o mundo em busca do rasto de Camões para se apoderar da sua (pretensa) obra constitui o inverso da epopeia, o avesso do Gama de Os Lusíadas, a paródia do sujeito lírico de Sonetos e restante lírica amorosa. Bernardo Vasques parece expor, de facto, um presente alheio à memória de grandeza, universalidade e vocação descobridora e inspiradora da história portuguesa de quinhentos.

O leitor poderá ainda questionar-se sobre a verosimilhança do artificioso relato que reúne tanto o temeroso confessor como o penitente Bernardo Vasques. Poderá tratar-se de mais uma variação sobre o sonho obscuro e polémico de que encontramos testemunho nas letras e nas artes desde a Modernidade, pelo menos desde que Goethe (e antes dele Marlowe) criou um inesquecível Fausto, mundano e humano, que através de singular, simbólico pacto com o demónio, plasmou no ser humano o desejo indelével de mais-querer e ir-mais-além, a porfia e o esforço de conhecimento e acção (streben, diz-se em alemão), que é afinal a medida estética e ética em que a verdadeira, exigente dimensão humana modernamente se reconhece, pelo menos desde o Renascimento. O relato, porém, não cessa de empurrar o leitor para longe da rememoração dos tempos de anseios de valor e grandeza. Na moldura da história ressoa a sobriedade do padre protestante que vai a Macau assistir ao incêndio do mais elevado símbolo do império no oriente, o Colégio de São Paulo, a sua análise implacável da inveja, a mola impulsionadora da mediocridade.

Para Carlos Morais José, que afirma sentir-se em Macau um autor português no exílio e deixa voluntárias marcas dessa vivência em toda a sua obra em prosa e verso, onde a língua portuguesa, quase silenciosa nas ruas, é apesar de tudo ainda oficial, a odisseia inversa de Bernardo Vasques é apenas o último testemunho de uma condição de carência e alienação, de teor ontológico, que parece contagiar os poetas e intelectuais que a viagem real (e iniciática) levou para longe dos púlpitos e dos palcos da rotina estético-literária da chamada pátria.

Essa condição de carência (e consciência de ser e devir) pode talvez aproximar-se da recente noção de “Exiliance” criada por Alexis Nouss1 que a considera uma “condição de consciência” comum aos exilados e migrantes de todos os tempos e espaços.

Embora se deva assinalar a probabilidade de uma definição que se alheia voluntariamente dos traços materiais do tempo e do espaço poder aproximar-se de uma visão essencialista do exílio (aliás, sensível na formação do termo exil[iência]), a sua delimitação como “condição de consciência” parece reintroduzir o papel formador e reformulador do tempo e da circunstância. No caso de Carlos Morais José trata-se de uma condição de consciência (mas também de resistência e devir) que se evidenciará igualmente em outras das suas obras, fazendo parte da visão especial de Macau como singularidade radical na sua condição periférica.

Em As Alucinações de Ao Ge e Arquivo das Confissões, um conto e um romance histórico publicados no espaço público de língua portuguesa de Macau posterior à mudança de soberania e consequente emergência de um espaço pós-colonial, encontramos traços de resistência aos monopólios temáticos e discursivos das últimas décadas de narrativas premiadas internacionalmente, navegando os largos mares da chamada Literatura Mundo. Também o denominado grupo de Warwick (WReC), na esteira dos artigos publicados por Franco Moretti em 2000 e 2003 na New Left Review, desenvolve uma ideia de “Literatura Mundial”2 sobretudo entendida como relação dinâmica e dialéctica entre centro e periferia do sistema mundial da literatura, insistindo no valor de resistência atribuído à literatura de regiões periféricas face aos grandes centros de difusão de literatura, ideia que Paulo Medeiros designa também por “imaginação do centro”, sublinhando o interesse “… em obras que resistem, de variadas maneiras, à hegemonia vigente” (Dialética da Periferia: Formas de Resistência na Literatura Mundial: 2021, 221).

Posição semelhante é defendida por Cosima Bruno (Bruno: 2014), que propõe o abandono de uma epistemologia essencialista relacionada com nacionalidade e língua e com origem geográfica estrita (Bruno: 2014, 753). Em seu entender, o caso de Macau, apesar da exiguidade do território (que pode não ser sinónimo de insignificância) apresenta condições para alterar a tradicional divisão do mundo em três domínios conhecidos: centro, periferia e semi-periferia (divisões ligadas, por sua vez, à ideologia colonial e seus avatares no período da globalização). Em seu entender a cultura periférica de Macau pode vir a ser reconhecida como um caso específico de ponte natural entre global e local, permitindo viabilizar uma “candidatura” relevante à categoria de Literatura Mundo.

No final do seu artigo, C. Bruno faz um apelo à tradução da literatura de Macau e acrescenta que isso é essencial:

…not only to contribute to the postcolonial library and to broaden understanding of the ‘literary world’, but also to enable (..) the field of comparative literature together with other literatures (for example Spanish, Portuguese or French) that present global/local structure (Bruno, 2014: 67).

Tal interesse pela literatura de Macau, obviamente marginal no contexto actual da Literatura Mundo, é o que melhor pode dar testemunho do legado intranquilo patente na história e na memória da cidade e apelar à herança mal escrutinada do seu passado colonial e marginal.

O facto incontornável de esta literatura ter contornos e fronteiras incertas (expressão de várias línguas e pertenças) projeta e sublinha o papel intermediário da tradução e pode alterar, a mais curto ou longo prazo, o perfil e a representatividade cultural deste território simultaneamente indefinível, insular e plataforma de globalização.

Referências:

Alexis Nouss 2015.

A expressão “Literatura-Mundial” é utilizada por Paulo Medeiros em português (membro do grupo WReC) e é, em meu entender muito semelhante à “Literatura-Mundo” (semelhante à expressão francesa Littérature-Monde), utilizada pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa.

20 Dez 2024

Identidade, Periferia e Globalização: Duas Narrativas de Macau

Por Fernanda Gil Costa, antiga directora do departamento de português da Universidade de Macau

Apresenta-se de seguida uma breve abordagem da literatura de Macau em língua portuguesa (também em tradução, já que o território tem hoje duas línguas oficiais) publicada nas duas décadas que se seguiram à mudança da soberania portuguesa para a chinesa. Assim se tenta evidenciar uma certa singularidade da vida literária macaense que, sem deixar de se conjugar com práticas modernistas e pós-modernas da cena literária internacional, pode configurar a consciência da sua inevitável periferia face aos circuitos das literaturas nacionais portuguesa e chinesa e aos grandes centros de intercâmbio da chamada Literatura Mundo. As duas narrativas selecionadas, de uma autora chinesa que vive em Macau e em 2010 viu traduzida para português a narrativa curta que tornara pública em 1999 (o ano da transição de soberania) e de um autor português, Carlos Morais José, que dirige um jornal do espaço público de língua portuguesa1constituem uma demonstração da presença de uma vida cultural activa no espaço público de língua portuguesa (jornais e suplementos culturais, festivais literários, actividade editorial) apesar da exiguidade em número de leitores. Além disso, as duas narrativas (um conto e um romance histórico) parecem revelar complexos temáticos e padrões formais que expõem a vida cultural da cidade como experiência de periferia e resistência agregada à sua condição de insularidade e exílio.

Na curta narrativa intitulada As Alucinações de Ao Ge, publicada em 1999, em chinês, por uma autora chinesa de Macau (de origem cambojana), Lio Chi Heng coloca-se numa posição de inesperado desafio face ao leitor português (que pode ler o conto em português depois da tradução, em 2010, patrocinada em edição bilingue pelo IPOR2), ao abordar a questão conflituosa da identidade macaense quase sempre ignorada pelos autores de Macau de ascendência portuguesa.

Assim, pode dizer-se que a intempestiva obra de Lio Chi Heng surgiu no espaço público da cidade como uma das produções literárias mais originais da literatura escrita em Macau nos últimos anos. Apresenta-se também como uma obra reveladora da marca/mancha pós-colonial que de forma insidiosa se manifesta afinal no espaço público macaense e chinês da ex-colónia. Autores de origem macaense (híbridos de origem étnica portuguesa e chinesa) tinham já apresentado o relacionamento entre europeus e chineses como um problema de solução difícil e eventualmente traumática3, sobretudo no contexto do relacionamento amoroso, durante o período colonial do século XX, mas o conflito desloca-se mesta narrativa para o interior do protagonista mestiço que se sente dividido pela origem dupla, numa sociedade de transição em que a agulha da balança do poder começou a oscilar para o lado oposto.

O conto toma como centro da sua observação a personagem Ao Ge, um macaense mestiço (descendente de portugueses e chineses) que durante uma viagem à Europa acaba por revelar numa série de eventos desencadeados em vertiginosa sucessão, os seus ocultos problemas e traumas de identidade. A história é simultaneamente contada na terceira pessoa, por um narrador omnisciente, e na primeira, em versão autodiegética, disposta em capítulos alternados. A tradição modernista está presente nesta indecisão da perspectiva e no carácter aberto que tal processo imprime à sequência dos nódulos narrativos. Sobre o problema, sem solução definitiva óbvia da identidade híbrida, inoportuno porque é ignorado dentro do espaço público português, diz a autora, esclarecendo a sua motivação para o tema: “A crise de identidade macaense não é criação minha. Antigamente muitos macaenses raramente mencionavam os membros da família chinesa.” 4

Veremos que, no final, a relativa aceitação da avó chinesa por Ao Ge não ultrapassa as circunstâncias domésticas e a vida projectada do protagonista que continuará inserido numa sociedade em que os preconceitos raciais perdurarão para além da mudança de equilíbrio e da nova relação na distribuição das forças sociais e culturais dominantes.

O narrador do conto (tal como a autora) conhece o peso da dimensão complexada e oculta da identidade de Ao Ge, o seu mal-estar em relação às marcas fisionómicas asiáticas do rosto, subalternizadas durante o período colonial, que o levam a exacerbar a metade da sua origem europeia. A apreciação do narrador face à personagem, que se situa, naturalmente, num nível mais elevado de conhecimento e consciência que o protagonista, transparece na citação seguinte:

“É preciso voltar ao tempo do avô de Ao Ge. Os portugueses não se contentaram em deixar para trás de si a impressão dos seus passos; eles deixaram também os seus genes! O avô de Ao Ge foi um desses semeadores de genes (AAG:28).

O narrador conhece igualmente o trauma de infância e adolescência da personagem, a violação por rapazes portugueses que o tratavam por “- Meu chinês, filho da puta!” (23), que Ao Ge recorda no presente da história da diegese, durante o encontro com o travesti, em Paris, como uma sequência de imagens de cinema em que se observa à distância: “Contra uma parede amarelada, um jovem era arremessado num vão de escada e, atrás dele, um grande latagão comia-o por detrás” … (id.).

Incapaz de entender as suas emoções e o alcance das suas relações, Ao Ge falha o relacionamento com os colegas portugueses que inveja e deseja por serem de suposto “sangue puro” e superior beleza e evita enfrentar a pulsão inconsciente que o atrai para a homossexualidade. “Como foi possível que um mulherengo como eu tivesse dormido com um homem?” (24) pergunta-se, depois do episódio com o travesti em Paris e do embaraçoso desejo por José, companheiro de viagem, numa praia próxima de Lisboa, cuja beleza “europeia” o excita descontroladamente.

O ressentimento e o complexo sentimento de amor/ódio pelos portugueses são o tema dominante do conto. Ao Ge reflecte sobre o seu destino quase sempre em termos apologéticos, considerando, por exemplo, que o seu nariz “alto e recto” é uma compensação dada pelo “Criador” ao seu rosto asiático. Vale a pena citar as suas palavras:

Para mim a recompensa foi este nariz mágico, cujos poderes me fizeram esquecer as humilhações que me corroíam o coração. Mais tarde foi também graças a Ele que senti orgulho na minha vida, em ser filho desta terra. (AAG: 34)

A mesma superficialidade de observação e valoração se regista no pensamento de Ao Ge quando se gaba de ter um bom posto, “apesar de fazer gazeta a toda a hora, consegui um bom posto, tal como o meu avô.” (ibid.); e o mesmo acontece na relação com as línguas que fala e aprende a falar: “Antigamente falar português chegava para tudo, mas hoje em dia o potunghua é mais popular” (ibid.).

Para Ao Ge a vivência plena da cidade, das suas línguas e culturas contrastivas não é atraente; a língua que usa tem a ver com a utilidade imediata, status social e filiação de moda. A relação com o espaço geográfico é, de facto, como sugeriu Ana Paula Laborinho noutro contexto, permeada por uma sensação de exílio a que não são exteriores a nostalgia, a insularidade e a efemeridade de uma vida sem dificuldades de sobrevivência. Veja-se a reflexão seguinte:

O impacto do potunghua dá-me a impressão de perder Macau. O rosto e a língua são os dois pratos da balança da minha vida e eu equilibro-me entre um e outro. (AAG: 35)

Neste ponto faz sentido reconhecer que Ao Ge acaba por reencontrar a sua matriz identitária chinesa (que parece ser uma decisão desejada pelo narrador omnisciente e, porventura, autoral) quando nas aulas de potunghua (tal como no interesse não inocente pela professora de mandarim, cheia de carácter e personalidade) é levado a reflectir sobre a história da China (e de Macau, enquanto colónia portuguesa) para regressar à memória da avó chinesa, repudiada no início da narrativa devido à sua ascendência, que o protagonista volta a visitar no cemitério da “cidade cristã”, embora ela não descanse junto do avô português, sepultado com a legítima mulher de origem portuguesa.

Mas a sua existência perdida entre etnias, línguas e heranças culturais não parece ser superável: “Eu… eu não consigo localizar a minha identidade, que é também uma alucinação.” (Id: 45), confessa Ao Ge mesmo no final da narrativa, assim expressando com lucidez inesperada a ausência como centro da sua existência, provável sintoma da desorientação e perda de rumo de alguma população macaense mais jovem, na viragem do último século, entre a influência chinesa e a portuguesa /macaense, no momento em que a transição aconteceu.

É também muito revelador que Ao Ge abandone o cemitério depois da visita enquanto acredita ouvir a voz compreensiva da avó chinesa que ele desprezou, dizer: “meu tontinho, meu tontinho…” (Id: 46), num sinal de carinhosa condescendência que dá voz ao novo espírito do lugar. Tal atitude parece configurar uma incarnação ou sinédoque da China pela avó enquanto pátria remota em termos de dominação política, genética e linguística, a que Macau retorna sem entraves no final do século XX.

Na última cena, sintomaticamente, parece insinuar-se no desenho de Ao Ge, feito por uma autora de língua chinesa, a característica que já foi considerada a mais persistente da população macaense, o chamado “Macau Bambu”, sinal simultâneo e paradoxal de instabilidade e permanência.5

Este conto de Lio Chi Heng preenche um vazio na abordagem da questão macaense em primeiro lugar pela perspicácia do olhar, mas também pela flexibilidade feminina e abrangente da análise sobre a situação insular e paradoxal de Macau, o seu plurilinguismo e interculturalidade, e sobretudo a exposta situação pós-colonial da cidade quase sempre ignorada na literatura e na crítica portuguesa.

O desconforto da personagem Ao Ge parece entrelaçar a ambiguidade da opção sexual com a dificuldade de definição da identidade cultural, étnica e linguística e lançar uma ponte para um futuro pacificado – por mais inverosímil que seja (e porventura utópico) – para a redescoberta da China como pátria última (e única). Esse momento ainda não realizado, porém, desejado por muitos como superação possível de um passado de conflito (tão recalcado quanto possível, mas latente) entre a matriz portuguesa/ europeia e a asiática não pertence ao presente do conto, mas está (presume-se) subentendido.

O desconforto do protagonista representa além disso um desafio e um risco para o leitor português. Desafio porque a ambiguidade e superficialidade do problemático perfil de Ao Ge não permitem uma identificação plena com a personagem e risco porque o seu lugar é solitário, imaturo e ambivalente, mesmo que solicite uma explícita cumplicidade com a sua história individual. Citando David Brookshaw: “Esta novela é única na produção literária em Macau, já que se trata da visão de uma chinesa sobre a situação do macaense perante a sua dupla herança… (2010: 22).

O protagonista não encontra, portanto, uma saída pacífica para a identidade macaense como alternativa à herança portuguesa, perante um futuro de forçada integração na China. No desenho imperfeito da sua identidade (não gosta do que é, a sua vida está presa entre o que não sabe definir e o que não pode assumir, quer humana e etnicamente quer sexualmente) perde-se no lugar transitório em que se encontra, a geografia ambivalente e excessiva do pós-colonial. Tem mais do que uma língua, mais do que um género, mais do que uma pertença – daí a imperfeita solidão e a condição de ‘exilado’. Enquanto figura de uma transição que o ultrapassa, coloca mais problemas, perguntas e desafios do que respostas ou soluções. O pós-colonial é precisamente o espaço/tempo insuperável de questões inoportunas, da incerteza e das respostas imperfeitas.

(continua)

Referências:

o jornal Hoje Macau

Lio Chi Heng é referida como Liao Zixin, por David Brookshaw, no que parece ser uma transcrição fonética (incompleta) do nome. Segundo o mesmo autor a autora será de origem cambojana. É também D. B. a informar que a obra teve uma tradução francesa, anterior à portuguesa. A tradução portuguesa será no entanto a mais completa, baseada na versão publicada em chinês na revista Aomen Bihui 14, 1999, 76-91 (D. B., “A Escrita em Macau: uma literatura de circunstância ou as circunstâncias de uma literatura”, Macau na Escrita, Escritas de Macau, 19-30; aqui 21-22.). Mais informação sobre esta autora que foi sub-directora do Jornal Oumun, encontra-se na Revista de Macau de Maio de 2011, na rubrica “As Caras por detrás dos Livros” de Catarina Domingues e Gonçalo Lobo Pinheiro

http://www.revistamacau.com/2011/06/05/as-caras-por-detras-dos-livros/ (consultado em Janeiro de 2019).

Neste estudo é usada a versão bilingue de Lio Chi Heng publicada pelo IPOR em 2010, com tradução de Gustavo Infante e Zhang Yufeng e prefaciada por Ana Paula Paiva Dias e Rui de Sousa Rocha, director do IPOR em 2010.

A novela foi também adaptada ao cinema.

Senna Fernandes e Deolinda da Conceição …

“As Caras por detrás dos Nomes”.

http://www.revistamacau.com/2011/06/05/as-caras-por-detras-dos-livros/
(consultado em Janeiro de 2019).

Esta caracterização do macaense remonta ao estudo sobre a etnicidade da população de Macau por J. Pina Cabral e N. Lourenço: Em Terra de Tufões… (1993): 24.

19 Dez 2024

Pode um historiador prever o futuro?

Uma leitura sobre a vidência em Sima Qian

Por André Bueno

No Shiji de Sima Qian, há uma passagem que adoro citar. É retirada da biografia de Zhang Liang [Shiji, 55], um dos grandes heróis que lutou contra Qinshi Huangdi e ajudou a fundar a dinastia Han. Ela nos conta que Zhang era um espécie de ‘predestinado’ a ajudar na elevação de Liu Bang [primeiro imperador de Han] ao poder, e a revelação de seu potencial se dá em um encontro de contornos místicos, que reproduzo nessa longa passagem adaptada:

“Um jovem nobre decadente, chamado Zhang Liang, andava perdido pela China, pensando num meio de acabar com o imperador Qinshi Huangdi. Ele já havia realizado uma tentativa anterior, inteiramente fracassada, e estava totalmente desolado. Qinshi parecia ser inexpugnável, e nada indicava que a situação pudesse mudar. Foi então que, num belo dia, depois de muito vagar, Zhang Liang foi atravessar uma ponte, e deparou-se com um velho, que havia deixado cair seu sapato no rio. Zhang, educadamente, prontificou-se a buscá- lo. Quando trouxe o sapato, o velho chutou-o pra longe e pediu novamente Zhang para pegar. Zhang ficou irritado, mas controlou-se e foi atrás do sapato de novo. Quando o trouxe, o velho simplesmente fez voar o calçado para ainda mais longe, e insistiu que Zhang fosse atrás do dito. Numa história normal, Zhang, ou qualquer outra pessoa, achariam que aquele senhor estava fazendo uma brincadeira de mau gosto ou debochando de sua cara. Mas, como Zhang era um predestinado, de características especiais – e contra a lógica usual destas situações – ele foi atrás do sapato do velhinho, pegou-o e o trouxe de volta. Ele estava de cabeça quente, mas controlado; foi o que permitiu que ele reparasse que o velho estava com uma aura estranha de autoridade, um brilho incomum, e de pronto modificou sua atitude. O ancião agradeceu a gentileza, e disse a Zhang que ele era uma pessoa especial. Pediu que dali a cinco dias o encontrasse num lugar convencionado, para dar-lhe um presente. Zhang ficou atiçado e curioso, e foi ao encontro do senhor dias depois. Quando lá chegou, o velho o esperava e gritou com ele: “Porque se atrasou tanto? Você é um grosseiro mal educado. Deixou um velho esperando! Volte daqui a cinco dias!” Zhang quase saiu do esquadro de novo, mas segurou-se. Voltou cinco dias depois, bem mais cedo do que antes, e encontrou o velho lá apenas para apanhar outra bronca e ouvir: “volte daqui a cinco dias!”. Devem ser nestes momentos que os heróis mostram sua obstinação. Talvez por curiosidade, ou por que não tinha nada melhor, Zhang decidiu fazer diferente. Foi quase um dia antes no lugar marcado e ficou esperando. O velho chegou, sorriu-lhe e disse: “paciência e disciplina, agora sim. Este é o caminho”. Deu-lhe um livro e continuou: “Você será o mestre do novo imperador daqui a dez anos. Daqui a treze anos, nos encontraremos de novo perto da margem norte do rio Chi. No pé do monte Guqian haverá uma pedra amarela: serei eu”, e desapareceu. Ele nunca mais foi visto. Quando terminou este encontro estranhíssimo, Zhang Liang olhou o livro que havia ganhado, e percebeu que se tratava de um tratado militar desconhecido. O livro parecia ser simples, e aparentemente combinava os textos de Taigong com os de Sunzi e de outros autores. Ele dividia-se em três partes apenas: as estratégias superiores, medianas e inferiores. Por causa disso, ele acabaria sendo chamado de ‘As três estratégias’, e para evitar confusões, a tradição chinesa o salvou como As três estratégias do duque da pedra amarela” [Bueno, 2011: 111-113].

No melhor estilo Ariano Suassuna – “não sei como foi, só sei que foi assim” – Sima Qian nos conta toda essa história sem enfatizar qualquer crença especial em sua veracidade. Como historiador, ele reproduzia uma narrativa conhecida; afinal, Zhang foi um personagem real, e se não foi ele a difundir essa lorota, não fez nada para desmenti-la. Mas ao mesmo tempo, Sima precisava defender – até certo ponto – que os especialistas no passado conseguiam, de alguma maneira, explicar o presente e determinar o futuro por meio do seu conhecimento. Isso implicava dizer que os historiadores tinham que lidar com a ideia de que algumas pessoas eram especiais, dotadas de uma tendência, propensão ou destino que lhes garantiria um papel especial na história. Ao mesmo tempo, os especialistas em história deveriam saber ler essas tendências e inferir o desfecho de certos acontecimentos. Não é preciso muito para entender que sustentar essa ideia sempre foi um problema. Como explicar, por exemplo, que Qinshi Huangdi era uma pessoa especial, se seu governo foi marcado pela crueldade? E como ainda explicar que a natureza [Tian, o Céu] o entronizou? Do mesmo modo, Liu Bang, o futuro fundador de Han, se destacava por qualidades bastante peculiares. Ele olhava torto, era displicente com a aparência, andava mal ajambrado, mas tinha uma barba bonita, nariz a testa grande, e setenta e duas verrugas na perna. Dava esmolas e tinha a mente aberta. Quando ia pra taverna, ela enchia de gente, todos ficavam felizes e pararam de cobrar fiado dele. Depois que casou, durante um ano inteiro, todos os dias, ele procurava sua esposa, e a fazia ter orgasmos antes de sair pra beber. Essas eram algumas de suas qualidades notáveis. Sim, isso tudo está na biografia de Liu Bang [Shiji, 8] descrita por Sima Qian. Seguem-se uma série de sinais auspiciosos como voos de dragão, emanações de energia, entre outras coisas fantásticas. Como inferir que Liu Bang era um predestinado, senão por sinais celestes misteriosos, que só seriam compreendidos depois?

Obviamente, isso é a reprodução de uma narrativa do passado. Contudo, como dissemos, os historiadores chineses antigos tinham que opinar sobre as tendências do mundo, sobre os acontecimentos e as questões de governança. Ainda que essas descrições fossem esvaziadas de uma carga de realidade [algo como ‘acredite se quiser’], por outro lado, elas serviam de escopo para comprovar a autoridade daqueles que alcançaram o poder [quer dizer, às vezes seria preciso acreditar nelas…]. Zhang Huawei [2017], em um instigante ensaio sobre a visão de destino em Sima Qian, mostra como esse conceito tornou-se objeto de uma complexa discussão acerca do papel previdente do historiador. Em retrospectiva, a ideia de ‘destino’ [Tianming 天命, empregada aqui de forma sinonímica com a nomeação imperial cosmoecológica dos soberanos chineses antigos] foi eventualmente usada para justificar as impressões do passado, bem como de seus personagens. Isso poderia significar que haveria algum tipo de justiça deontológica, uma ordenação natural das coisas ou ainda, uma fundamentação moral para a existência de uma trajetória de vida previamente definida.

Os chineses, no entanto, sempre buscaram escapar de uma visão pré-fixada das coisas. Existiam três razões para supor isso:

A primeira estava fundamentada no ciclo da mutação, apresentada no Yijing [o Tratado das Mutações], o primeiro livro de ciências da história chinesa. O Yijing explicava simbolicamente o ciclo perene da natureza e suas tendências, e por essa razão, tornou-se também [no imaginário chinês] um oráculo capaz de predizer, sugerir ou aconselhar sobre o desfecho das coisas. Mas – e justamente por isso – os chineses acreditavam que se o livro podia oferecer explicações sobre o curso de determinados acontecimentos, então, eles não seriam fatais, e consequentemente, poderiam ser modificados. A predição do Yijing indicava se algo era favorável ou não; então, o consulente poderia mudar de opinião e investir em uma atitude ou conduta diferente, alterando o curso da situação. De forma paradigmática o Yijing, portanto, tornou-se o primeiro oráculo do mundo que apenas aconselhava, mas que também deixava claro que o desfecho do futuro cabia ao indivíduo [Bueno, 2015]. Veremos que isso será crucial na interpretação de Sima Qian.

O segundo aspecto é a genealogia da cultura, proposta por Confúcio desde o Lunyu [Diálogos]. Em uma de suas passagens, ele afirma que ‘Shang sucedeu Xia, assim como Zhou sucedeu Shang. Sabemos o que se perdeu e o que foi acrescido. Quem suceder Zhou fará o mesmo, já sabemos como será’. A partir desse ponto de vista, o movimento de sucessão das coisas na mutação seria gerido por regras éticas e históricas, ligadas a reprodução e transformação da cultura. Visto assim, haveria algo que se preserva [essencial] e o que se transforma diante das necessidades do tempo [Bueno, 2011b].

É aqui que Sima Qian insere um terceiro elemento, a razão ecológica. Em sua visão, os movimentos sociais e políticos acompanhavam a ciclo da mutação em suas variações e movimentos naturais – como anteriormente apregoado pelo Yijing e por Confúcio – mas reinterpretado pela teoria dos cinco elementos, associação essa defendida por seu mestre Dong Zhongshu. Assim, ‘Xia foi madeira; Shang foi metal; Zhou foi fogo; Qin foi água; Han é terra’. As transformações do mundo seguiriam o movimento Wuxing, e por conseguinte, poderiam ser previstas em escala macrocósmica. Isso atendia ao seu propósito de ‘estudar a relação entre o céu e o homem, e compreender as mudanças nos tempos antigos e modernos’ [Shiji 130]. Assim, os movimentos da natureza – e de forma correlata, da humanidade – poderiam ser previstos e determinados em suas tendências fundamentais.

A articulação desses elementos na formulação de uma teoria de presciência revela o quão problemática era a tarefa de Sima Qian. A redação do Shiji estava envolta em compromissos políticos e ideológicos, com os quais ele teve que lidar amargamente ao longo da vida. Embora estivesse claro que sua proposta era valorizar a trajetória histórica de sua civilização, Sima era obrigado também a lidar com as tensões da escrita que envolvia as disputas de poder e as vaidades da corte [Jiang, 2018]. Nesse sentido, é possível que os personagens notáveis do passado possam ter sido moldados, na escrita das narrativas, para serem figuras prescientes; mas admitir isso significava, igualmente, reconhecer a possibilidade da previsão histórica no presente.

Isso deslizava para outro problema: a relação entre os tempos antigos e hodiernos. Li Bo [2014] analisa como Sima Qian estava plenamente ciente de que era um autor do presente falando sobre o passado, e reinterpretando-o dentro das possibilidades das fontes e das orientações ideológicas de sua época. Segundo Li, Sima fazia história do tempo presente, mas desejava entender e reconstruir as camadas da civilização chinesa em uma genealogia, fundando sua cultura no passado. Neste sentido, a presciência seria uma faculdade inviável de ser realizada, já que só poderia ser inferida a posteriori.

Após listar uma série de exemplos pinçados do Shiji, Zhang Huawei, afirma que ‘Resumindo, os pensamentos de Sima Qian sobre o destino incluem tanto a sua crença no destino como as suas dúvidas sobre a justiça do destino. Sima Qian duvidou da justiça do destino, mas não negou a sua existência. Quanto aos acontecimentos que podem ser explicados pela ação pessoal, Sima Qian também atribuiu grande importância ao papel do pessoal e opôs-se a confundir destino com pessoal. Estes estão de acordo com a intenção criativa de Sima Qian de “estudar a relação entre o céu e o homem” sob diferentes aspectos e refletem a sua crença no destino’. Essa conclusão aponta opiniões, mas parece ficar em cima do muro. Ou seja; Sima Qian não deixara de acreditar que poderia haver predestinados ou prescientes; e por tabela, não desejava abrir mão da faculdade de poder ‘inferir o futuro’ por meio dos estudos eruditos, mas precisava lidar com os perigos de errar as predições e conselhos. Melhor seria deixar isso nas mãos dos oráculos; mas esses mesmos oráculos, assim como as pessoas, podiam mudar de opinião!

Uma leitura que pode nos ajudar a compreender as intrincadas reflexões sobre esse problema é o seminal texto de François Jullien sobre ‘situação e tendência na história’ [Jullien, 2017]. Na interpretação de Jullien – alicerçada por comentaristas chineses – a questão central é como a situação ou contexto de uma narrativa são determinadas por suas ‘tendências’, ou seja, pelas forças que atuam para o andamento do episódio em questão. Isso significa que a predição sobre um acontecimento pode ser aferida, em um complexo jogo de espelhos teóricos, a partir de ressignificação de um evento histórico, de acordo com alguma das grades de leitura filosóficas defendidas pelo historiador. Posto de outro modo: um confucionista pode defender que um dado episódio foi bem sucedido pela presença de agentes morais que conduziram as coisas á um desfecho adequado – e nesse caso, a presciência invoca o uso da tradição como guia para afastar-se dos erros. Já um legalista poderia arguir que o mesmo episódio não teria sido bem sucedido, já que uma decisão calcada no passado pode simplesmente não ser adequada para os dias de hoje. Teremos um então uma infindável diatribe de exemplos e contraexemplos que irão colocar em julgamento se alguém era predestinado ou não, e se o historiador foi capaz de perceber isso ou não. A história, assim, não é conclusiva.

Talvez por isso Sima Qian tomasse cuidado em defender a vidência histórica como uma condição sine qua non do historiador. Perturbados constantemente pelas ingerências de figuras do poder, e agenciados com fundos imperiais, os historiadores chineses viviam na delicada corda bamba entre falar a verdade, aconselhar com juízo, e correr o risco de perderem suas cabeças se não atendessem as vontades de seus financiadores. Visto assim, a escolha de personagens especiais do passado poderia ser tão arbitrária [e seus atributos tão fantasiosos] quanto às inferências sobre o futuro poderiam ser carregadas de erros estratégicos quando o historiador estava cerceado de sua liberdade de pensamento. Esse conflito iria fazer com que uma rica tradição de histórias privadas [ou, histórias alternativas aos discursos estabelecidos pela agência imperial] surgisse, provendo a China de uma valiosíssima e diversa tradição historiográfica [Richter, 1987; Beja,1997]. Quanto aos historiadores chineses, esses aprenderiam a duras penas [depois de observarem a indigna condenação de Sima Qian] que se eles podiam prever algo, deviam primeiro observar a própria sorte, antes de emitirem juízos sobre o passado, o presente e inferir algo sobre o futuro.

Referências

Os textos do Lunyu e Shiji foram retirados do livro Textos da China Antiga. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2023. Essas fontes estão disponíveis em: https://chines-classico.blogspot.com/p/biblioteca-textos-da-china- antiga.html

Beja, Flora B. ‘El precio de la rectitud. El intelectual como crítico en la China tradicional’ in Los intelectuales y el poder en China / Taciana Fisac (comp.), Madrid: Trotta, 1997: 27-44.

Bueno, André. A arte da guerra chinesa. Projeto Orientalismo, 2011a:111-113.Bueno, André. ‘Não invento, apenas transmito’: Re-interpretando a escrita historiográfica de Confúcio. In: X Semana de História Política da UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, 2015. v. 1. p. 251-261.

Bueno, André. ‘O tempo das dinastias’ in Ensaios de Oito Partes. Projeto Orientalismo, 2011b:23-25.

Jiang Tianyue 姜天越. 《司马迁政治思想探究》. 神州·中旬刊, n.12, 2018.

Jullien, François. A propensão das coisas: por uma história da eficácia na China. São Paulo: UNESP, 2017: 223-281.

Li Bo李波. 《司马迁的古今观》. 渭南师范学院学报n.6, 2014.

Richter, Ursula. ‘La tradition de l’antitraditionalisme dans l’historiographie chinoise’. In: Extrême-Orient, Extrême-Occident, 1987, n°9. La référence à l’histoire. pp. 55-89.

Zhang Huawei张华伟. 《浅议司马迁的天命观》. 青年文学家 n.9, 2017.

André Bueno é Prof. Ass. História Oriental da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Este artigo saiu na revista Oriente 24 – Estudos Chineses

17 Dez 2024

O fogareiro de bambu de Wu Kuan

Tang Yin (1470-1523), o pintor de Suzhou que usou o nome Bohu, o «Tio tigre», que confessava a dificuldade em domesticar o seu carácter livre, como acontece muitas vezes, prezava por outro lado os laços de amizade com aqueles que se dispunham a acolher a inépcia na expressão do seu coração puro.

Num rolo de pintura conhecido alternativamente como Bebendo chá sob a árvore wutong, ou O fogareiro de bambu (tinta e cor sobre papel, 116,6 x 23,8 cm, no Instituto de Arte de Chicago) ele evoca o amigo pintor Wu Kuan (1435-1504) que falecera cinco anos antes. Na simplicidade da cena, comum entre letrados da dinastia Ming, representando um encontro ao ar livre de um literato com um monge budista, reconhecíveis nas suas vestes, ambos com uma taça de chá na mão, pequenos detalhes denunciam a sofisticação do momento.

No início do rolo, onde não há qualquer referência a uma habitação, à direita um criado inclina-se sobre um ribeiro recolhendo a sua água pristina para, vê-se depois, ser fervida por outro criado num fogareiro portátil de forma cúbica com uma chaleira circular, as figuras convencionais do céu sobre a terra.

Essa forma criada no início do séc. XIV por um artesão de Huzhou (Zhejiang) que trabalhava o bambu e que o monge Pu Zhen do Monte Hui (Wuxi), lugar onde se apreciava o chá, encontrou na estrada, numa viagem, distingue o rolo dedicado ao ausente Wu Kuan de outras pinturas de Tang Yin em que a apreciação do chá é pretexto para um encontro. Como o rolo horizontal Shiming tu (tinta e cor sobre papel, 105,8 x 31,1 cm, no Museu do Palácio em Pequim) em que evoca o amigo Chen Shiming, numa situação mais usual de hospitalidade em que um convidado vem chegando por uma ponte. Pormenores, na pintura para Wu Kuan, como o nome wutong, da árvore que acompanha o encontro e onde há uma homofonia com a palavra tong que significa «partilhar», aludem à afinidade que Tang Yin tinha com o amigo, com quem saboreava o chá.

Wu Kuan fora autor do poema Aicha ge, Canção de Amor ao chá:

Eu, o ancião que ferve a água,

amo o chá como amo o vinho,

Três ou cinquenta taças, não as contarei.

Começo na sala do chá,

onde não há coisas desnecessárias:

Apenas um fogareiro sob um almofariz.

Aqui não há nada para fazer, excepto ferver o chá.

O dia inteiro a taça nunca deixa os meus lábios,

Assistirá ao encontro de hoje, um único bule.

Da porta vem um convidado,

um verdadeiro amigo do chá,

Para expressar o agradecimento

e imitar o poema de Lu Tong,

Ferver o chá e seguir a ode de Huang Jiu.

A sequela do Livro do chá,

não empresto a ninguém,

A adenda ao chá,

deixo escorregar-me da mão.

Não quero ter nada a ver

com a vulgar plantação do chá,

Conheço apenas alguns hectares

do jardim de chá em baixo desta montanha.

Há pessoas que sonham

em percorrer o país do chá,

Mas, aqui e agora,

eu não quero fazer outra coisa.

16 Dez 2024

Construção do Grande Canal Sui

A dinastia Sui (581-618) instalou a capital em Chang’an e para albergar o grande número de funcionários governamentais ampliou a antiga cidade [que servira de capital às dinastias Zhou do Oeste (104.6-771 a.n.E) em Haojing, Qin (221-206 a.n.E.) em Xianyang, ambas próximo de Xian e com o nome de Chang’an (Xian) à Han do Oeste (206 a.n.E.-9) e dinastia Xin (9-23)] dando-lhe o nome de Daxing.

Mas havia o grande problema de prover a enorme população com alimentos suficientes, provenientes sobretudo da região de maior produção agrícola do território, na zona do curso inferior do Changjiang, e de bens essenciais para os inúmeros funcionários da administração central e da corte. Havia também a dificuldade de transporte de grandes quantidades de mercadorias de Sul para Norte pois as estradas não eram seguras e não estavam preparadas para tal, assim como o Rio Amarelo não era navegável em muitas partes. Daí, o primeiro imperador Sui, Wendi em 584 mandar construir o canal Guangtong (Guangtong qu, 广通渠), para levar arroz à capital usando parte do canal Chao e ligar o Rio Wei ao Rio Amarelo.

Para um maior controlo da zona central do território, o Imperador Wen (581-604) em 588 mudou o nome de Wuzhou para Yangzhou e colocou aí o seu segundo filho, Yang Guang como governador. Yangzhou, cidade nas margens de Changjiang denominada antigamente Hancheng, ou cidade de Han, fora edificada no ano de 486 a.n.E. aquando da construção do canal Han (Hanguo) de onde este partia a ligar o Changjiang (Rio Yangzi) ao Huaihe e essencial para o abastecimento da capital Daxing.

Yang Guang como governador aproveitou o canal e mandou em 601 complementá-lo até Luoyang e quando se tornou em 604 o segundo Imperador Sui, no ano seguinte Yangdi (604-618) reconstruiu Luoyang para ser a sua capital Dongdu (capital de Leste) e ainda em 605 ordenou a construção de uma vasta estrada de água, conhecida por Grande Canal (Da yunhe, 大运河).

O canal dragado até ao ano de 610 tinha três secções: a primeira, o canal Tongji colocava a água dos rios Gushui e Luoshi no Parque Oeste de Luoyang e seguia directamente até ao Huanghe e continuando no Rio Amarelo, em Banzhu, a Leste de Luoyang, até ao velho fosso Langdang em Shanyang (hoje prefeitura de Huai’an, Jiangsu) na margem Sul do Huaihe. De Shanyang as águas do Rio Huai dirigiam-se pelo antigo Canal Han (Hangou) e afluíam no Changjiang em Jiangdu (hoje cidade de Yangzhou, Jiangsu). Toda a secção de Luoyang a Jiangdu tinha mais de mil quilómetros de comprimento.

A segunda secção, construída em 610 como canal Yongji drenava a água directamente do Rio Qinshui em Luokou, a Sul do Huanghe, até ao Norte de Zhuojun (hoje Beijing) tendo também mais de mil quilómetros de comprimento, fazendo a ligação do Rio Amarelo à região de Beijing.

A terceira secção, o canal Jiangnan de 400 km de comprimento levava a água do Changjiang em Jingkou ao Rio Qiantang em Yuhang (hoje cidade de Hangzhou, Zhejiang).

O Grande Canal totalizava 2500 km de Zhuojun no Norte até Yuhang no Sul ficando Luoyang no centro. Esta via de água ajudou a promover a economia e a desenvolver o país então unificado, segundo refere Bai Shouyi em Na Outline History of China.

YANGDI VIAJA NO GRANDE CANAL (大运河)

Yangdi fez três viagens no Grande Canal, das quais não encontrei registos históricos, existindo muitos relatos em que cada uma das versões diverge bastante. A primeira viagem ocorreu no ano de 605, a segunda em 610 e a terceira em 616, apesar de também aqui as datas não coincidirem.

Quando em 605 ficou completa a construção da secção do Grande Canal com 1800 km entre Yangzhou e Dongdu (Luoyang), o imperador logo fez uma viagem de inspecção no seu barco-dragão, palácio flutuante com telhado em cristal de onde pendiam lanternas e as colunas gravadas com dragões dourados. Seguia a fanfarra a anunciar o cortejo, num espectáculo que pela sua grandeza, excedendo toda a imaginação muito impressionou os habitantes de Dongdu.

A terceira viagem, desde Dongdu até Yangzhou, é referida por Deng Shulin como sendo feita em “dois barcos-dragões de quatro pisos construídos e decorados com extremo luxo, levavam a bordo o imperador Sui Yangdi e as suas concubinas favoritas.” Referem algumas versões da história, a imperatriz Xiao seguia no segundo barco. Navegavam devagar rumo ao Sul, a Yangzhou, na actual província de Jiangsu, e segundo uma lenda “para contemplar uma flor famosa do local. Seguiam os barcos-dragões cerca de dez mil barcos de diversos tipos.

Eram os membros da casa imperial, concubinas, dançarinas, vassalos, guardas e munições. Toda a comitiva se estendia por uns cem quilómetros. Nas margens flutuavam bandeiras coloridas. Os guardas, a cavalo, armados, andavam em fila. Os oitenta mil sirgadores vestidos de trapos, recrutados à força, puxavam os barcos, com a sirga penetrando no ombro, cortando as carnes – parar era morrer.”

Mantinha-se Yangdi em Yangzhou quando em 618, durante uma revolta camponesa (Jiangdubingbian, 江都兵变) foi morto por um grupo das suas tropas leais e o país caiu no caos.

Assim, o Grande Canal Sui e Tang tinha o centro em Dongdu (Luoyang) e para Oeste usava o Guangtong qu entre Daxing (Chang’an) e o Rio Amarelo. Para Norte, o canal Yongji chegava a Zhuozhou (涿州) e para Sul usava Tongji qu e Shanyang du [do Rio Huai ao Changjiang] e Jiangnan yunhe de Jiangdu (Yangzhou) a Yuhang (Hangzhou). Este era o trajecto do Grande Canal (Da yunhe, 大运河) até à dinastia mongol dos Yuan (1279-1368).

12 Dez 2024

Encontros e desencontros proverbiais em torno das noções de abertura e fechamento

Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau

A filosofia comparativa pode usufruir de vasta colheita caso se dedique ao campo proverbial. Aqui se encontram pontos de vista que podem contribuir não apenas para a filosofia como para os estudos de imagologia e os de psicologia social, através da observação atenta das mentalidades.

É interessante notar a semelhança de perceção tanto por parte dos portugueses como dos chineses relativamente ao modo como são aproveitados os talentos de ambas as terras. Muitos em Portugal queixam-se de serem mal aproveitados, de verem os seus filhos partirem rumo à emigração por falta de oportunidades no país, já que “santos de casa não fazem milagres” e, por isso, é bem melhor ser-se profeta em terra alheia, porque “nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (Lc 4,21-30), sendo que a expressão remonta aos tempos bíblicos e à explicação oferecida por Jesus por não fazer milagres em Nazaré. Coincidentemente, os chineses possuem uma expressão proverbial de 4 caracteres e longa história, um chengyu, (成语chéngyǔ), que remete para os Anais da Primavera e do Outono (春秋), um dos cinco clássicos da filosofia confucionista, especificamente ao mais conhecido dos seus comentários, Comentário de Zuo e ao 26º ano do Duque de Xiang《左传 襄公二十六年》(Zuǒ chuán xiānggōng èrshíliù nián), no qual se diz literalmente que “Os talentos de Chu são criados neste reino, mas aproveitados por um outro reino, o de Jin” ( 楚材晋用chǔ cái jìn yòng). Fica a ideia de que os oficiais de Jin não são tão talentosos como os de Chu, mas talvez sejam mais espertos, porque pelo menos são capazes de tirar partido dos de fora. Coloca-se aqui uma questão interessante, em termos de certas categorias espaciais com as quais estruturamos o nosso pensamento e nos posicionamos no mundo, são estas as de “dentro” e “fora”, bem como as correlativas de “proximidade” e “distância”, que conduzem às noções de “abertura” e “fechamento”. Parece mais fácil compreender e aceitar, no que respeita ao talento, o que é exterior, está mais longe e, de algum modo, interpela e incomoda menos.

Mas se estes pares conceptuais funcionam bem quando aplicados a seres especiais, talentos, profetas, gente fora de série, a verdade é que sofrem uma grande alteração de sentido se a coletividade passar a ser perspetivada como norma ou padrão. Aí há uma tendência para proteger os “de dentro” contra os “de fora”, que são muitas vezes encarados como perigosos e disruptivos, na cultura e civilização chinesas, a atender à abundância de provérbios relativos aos “de fora”. Já nos Ritos de Zhou 《周礼》, obra datada de meados do século II a.C, se chama a atenção para a necessidade de questionar sobre os perigos para o país, as migrações e o governante no poder, mas especialmente para o cuidado com “as migrações e necessidades de planeamento” (询迁询谋xún qiān xún móu), nem todas as mexidas e movimentações relativas ao “dentro” ao status quo, ou ordem estabelecida, são boas, mas podem ser proveitosas se no relacionamento do “dentro” com o “fora”, os primeiros não se deixarem contaminar pelos segundos e retirarem o melhor partido destes. E aqui mais uma vez portugueses e chineses concordam, em termos proverbiais, no que se refere a lisonjear ou enganar os estrangeiros em proveito próprio, por exemplo, nós portugueses e brasileiros ludibriando os nossos mais antigos aliados na Europa, o que ficaria retido numa interpretação possível da expressão “para Inglês ver”, a propósito do comércio de escravos com o Brasil, por volta de 1830, já então proibido, com o nosso próprio consentimento, mas imediatamente contornado1, por estarem em jogo valores comerciais de grande peso; assim como os chineses da dinastia Qing na expressão retirada ao escritor Wu Jianren (吴趼人, 1866-1910), em História da Dor 《痛史》(tòng shǐ), que poderá ser traduzida pela paráfrase “lisonjear os estrangeiros para proveito próprio” (媚外求荣mèi wài qiú róng), significando numa tradução literal “lisonja para a glória”.

Na opinião de alguma desta sabedoria proverbial, em que não há fronteiras claras entre o senso comum e o saber propriamente dito, segundo muitos portugueses e chineses dos tempos antigos (e talvez alguns atuais) os “de fora” são bons para ser fintados, ludibriados ou então claramente mantidos à distância, porque quando os deixamos penetrar no espaço interno, ou até íntimo, as coisas podem correr mal, como se indica no dito “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento” ou, de um modo menos particularizante e mais sistemático e generalista nos provérbios chineses, nos quais se condena, relativamente à dinastia Qing, ela própria alienígena, a bajulação sistemática dos estrangeiros, por exemplo, através de um dito célebre de um grande escritor chinês Mao Dun (茅盾, 1896-1981) em Aprender com Luxun 《向鲁迅学习》(Xiàng Lǔxùn Xuéxí) : “venerar e bajular o estrangeiro ( 崇洋媚外chóng yáng mèi wài). Neste se condena claramente a bajulação ao outro e a xenofilia, que caracterizou alguns momentos importantes da história cultural chinesa na sequência das Guerras do Ópio (1839-42; 1856-1860), ou da implantação da primeira república chinesa (1912- 1949), a que corresponderia o mesmo tipo de tendência em Portugal, nomeadamente até meados do século XX em relação à cultura francesa. Assim, a literatura estava pejada de francesismos, (como hoje o está de anglicismos) e as meninas educadas deviam todas saber “tocar piano e falar francês”.

As tendências de adesão camaleónica aos “de fora” são comuns aos dois povos e prendem-se com momentos históricos específicos, nos quais existe mais proximidade a determinado país por razões dinásticas, em tempos de monarquia, ou políticas, em tempos de república.

Não são menos evidentes as tendências de fechamento ao outro étnico, que pode ocorrer no interior do espaço nacional, diversificando-se de acordo com as paisagens étnicas e geográficas. Quem não recorda expressões no nosso país como “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”, ou “abaixo do Douro, tudo mouro”? Neste sentido, recorde-se a respeito dos chineses mais um aforismo de Mao Dun, incorporado na sapiência proverbial, a propósito da cidade de Xangai, que significa, numa tradução pelo sentido, “em redor é tudo estrangeiro” 十里洋场 (shí lǐ yáng chǎng), mas ao pé da letra se traduz por “dez milhas de mercado estrangeiro”. Este pode ser aplicado em sentido positivo como referindo-se a um mercado próspero, mas também negativo, aludindo a uma cidade repleta de gente “de fora”, como era Xangai para muitos chineses que a viam como uma colónia capitalista. É preciso remontar à “invasão dos estrangeiros”, na sequência das duas Guerras do Ópio para entender a aceção negativa, a que foi empregue por Mao Dun.

O auge da xenofobia sucede no mundo proverbial quando o estrangeiro é identificado como o inimigo, o que se converte numa apologia do fechamento, memorizada e repetida em frases rítmicas e rimadas ao longo de gerações, pense-se no mundo proverbial português em “mantenha os amigos por perto e os inimigos quanto mais longe, melhor”, cuja correspondência em chinês poderá ser, numa tradução literal, “os inimigos devem manter-se afastados das fronteiras do país” 御敌于国门之外 (yù dí yú guó mén zhī wài), tornando-se o mais distantes e estranhos possível, como sugere este dito da época dos Reinos combatentes, sendo um aforismo atribuído a Mâncio (孟子), retirado do capítulo Wan Zhang 《孟子·万章》da obra homónima, mesmo que o afastamento possa ser apenas de um dos reinos chinês para o outro, como era o caso à época em que o filósofo e/ou os seus discípulos escreveram.

Quando o pensamento fechado impera, torna-se notório, por um lado, o enaltecimento das políticas nacionalistas, com o consequente afastamento dos países estrangeiros e de todas as redes intelectuais e político-comerciais “de fora”, por outro, o louvor daqueles que revelam amor à pátria até ao sacrifício extremo, como bem denotam as expressões portuguesa e chinesa, de sentido idêntico, “sacrificar-se pela pátria” (徇国忘己 xùn guó wàng jǐ). Este dito chinês surge no Livro dos Song, Biografia de Xiehui (389-426)《宋书·谢晦传》(“Sòng shū·xièhuìchuán”), encontrando eco na expressão do poeta Bai Juyi (白居易, 772-846) da dinastia Tang em “sacrificar o corpo pelo país” (徇国忘身 xùn guó wàng shēn). Há ainda um outro provérbio chinês que de um modo não tão radical, pois não exige o sacrifício extremo, afasta, no entanto, os laços com o exterior, sendo atribuído a Hu Qi da dinastia Song (宋·胡锜), “Cultiva o interior, resiste ao exterior” (内修外攘 nèi xiū wai rǎng), numa interpretação possível “olha para dentro, não olhes para fora”.

Para terminar com uma nota de esperança no diálogo e na comunicação civilizacionais, oposta e complementar à tendência de fechamento existe outra de abertura para a qual também se encontram ditos quer em português quer em chinês. Assim, em Portugal empregamos expressões que denotam a vontade de entendimento do outro e a aceitação de práticas culturais e costumes diferentes: “em Roma sê romano” e “à terra onde fores ter, faz como vires fazer”.

Já na China há aforismos relativos a figuras políticas distintas dos tempos republicanos, a Liang Qichao (梁启超, 1873-1929 ), um importante intelectual chinês dos tempos modernos, muito ligado à defesa de uma China mais aberta e comunicativa, como era proposto pelo Movimento da Nova Cultura (1915-1925) ao qual aderiu. Posto isto, não surpreende o seguinte dito, coletivamente apropriado, “portas abertas” (门户开放mén hù kāi fàng), já que só com uma política de abertura de portas para o mundo pode o país prosperar, no entender daquele que foi ministro da justiça da República Chinesa, como explicaria em Breve História da Evolução dos Meios de Subsistência 《生计学说沿革小史》 (“shēngjì xuéshuō yángé xiǎoshǐ”) , pela exposição, contacto e absorção de novas ideias, recebidas do Ocidente, como as da promoção de um pensamento diferente da tradição confucionista, com as características do individualismo, da crítica, da independência e da autonomia para as mulheres. Uma outra expressão que ficou incrustada no pensamento contemporâneo chinês surgiu já no contexto da segunda república chinesa, estabelecida em 1949 pelo partido comunista chinês, e numa segunda onda de pensamento, passada a primeira vaga dos furores revolucionários. Os novos ventos pediam então “reforma e abertura” (改革开放Gǎigé kāifàng), após o fechamento revolucionário que culminaria no Maoísmo (毛主义Máozhǔyì). Esta expressão viria a ser empregue por Deng Xiaoping (邓小平), a 18 de dezembro 1978, na terceira sessão plenária do décimo primeiro Comité Central do PCC. Após o período caótico da Revolução cultural (1966-1976), era preciso pensar noutros termos, serenar os ânimos e abrir a China ao exterior, de modo a que os estrangeiros fossem vistos não como estranhos, ou no pior dos cenários, inimigos, mas sendo suscetíveis de dialogar e contribuir para o desenvolvimento e prosperidade da China, através da compreensão de modos de vida distintos e, sobretudo, da organização económica e científica de que dispunham.

“Abertura” e “fechamento” ligados a “distância” e “proximidade”, “fora” e “dentro”, definidos à maneira das fronteiras, podem apresentar-se como muros, portas fechadas ou abertas, mudando consoante os tempos, a educação das gentes e a mentalidade de quem ocupa o poder.

Referências Bibliográficas

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Gushiju .(2024). “关于外国人的成语 (12个)” (Provérbios sobre estrangeiros)

《 古诗句网 ©2024 京ICP备22222222号-1》 https://ww.gushiju.net/chengyu/k/%E5%A4%96%E5%9B%BD%E4%BA%BA, acedido a 19 de novembro de 2024.

Ngan, António André. (1998). Concordância Sino-Portuguesa de Provérbios e Frases Idiomáticas. 中葡對照成語集Macau: Associação de Educação de Adultos de Macau.

Rocha, Hélio. (2024). “Há duas versões para a origem da expressão ‘para inglês ver’” .Jornal Opção. 26/11/2024. https://www.jornalopcao.com.br/colunas-geral/memorando/ha-duas-versoes-para-a-origem-da-expressao-para-ingles-ver-259029/, acedido a 26 de novembro de 2024.

Torga, Miguel. (1967). Portugal. Coimbra: Coimbra Editora.

Portugal proibiu, por pressão da Grã-Bretanha, o comércio de escravos no início do século XIX, mas apenas em teoria, já que o tráfico clandestino continuou até 25 de fevereiro de 1869.

11 Dez 2024

A deusa que dançava na margem do rio Luo

Cao Pi (c.187-226), que seria imperador de Cao Wei no tempo dos Três Reinos e foi o segundo filho do brilhante estratega, general e poeta Cao Cao (c.155-220), após este derrotar o seu rival Yuan Shao na batalha de Guandu, esse seu filho tomou como esposa uma senhora já casada com um general do Estado derrotado chamado Yuan Xi, quando este ainda vivia.

Essa senhora conhecida apenas como Zhen furen, a «Senhora Zhen» possuia tais exemplares qualidades de bondade e amor filial que a brandura do seu carácter generoso não seria apenas cantada por sucessivas gerações, mas também objecto de uma suspeita envolvendo o irmão de Cao Pi, o ilustre poeta de carácter rebelde e insubmisso Cao Zhi (192-232), que fora derrotado pelo irmão na disputa pelo poder depois da morte de Cao Cao.

Essa suspeição baseia-se num poema escrito por Cao Zhi, que partilhava claras afinidades com a Senhora Zhen ao contrário do seu cru irmão, conhecido como Rapsódia sobre a deusa do rio Luo (Luoshen fu). Segundo alguns relatos o nome original do poema porém, seria Gan Zhen fu, «Rapsódia ao ser tocado pela Senhora Zhen» mas foi modificado pelo filho dela, o herdeiro do reino, Cao Rui, quando leu o poema.

Segundo uma nota de Li Shan da dinastia Tang, o fantasma da recém-falecida Senhora Zhen teria aparecido em sonhos a Cao Zhi, dançando à beira das águas, de uma forma que ele interpretou como uma reincarnação da lendária deusa do rio Luo (Luo he), uma senhora ligada ao mitológico herói cultural Fuxi, designada Fufei que, ao atravessá-lo, se afogara nesse afluente do rio Amarelo que passa em Luoyang, capital de Cao Wei.

Uma flor odorífera oriunda da distante Península Ibérica que se pode desenvolver em devesas nas orlas dos rios, levada ao longo da extensa Rota da Seda provavelmente por mercadores árabes durante a dinastia Tang, ficaria ligada a essa lenda da deusa do rio Luo. A flor do narciso na subspécie narcissus tazetta chinensis seria designada shuixian hua, a «flor da imortal do rio» ou lingbo xianzi, a «ninfa levantada sobre as ondas». Pintores observarando a flor com as suas compridas folhas verticais entenderam a sua significante beleza.

Wang Guxiang (1501-1568), calígrafo e pintor de Changzhou (Jiangsu), tal como fizera o pintor dos Song Zhao Mengjian, dedicou uma particular atenção a essas flores que desabrocham no início da Primavera, prometendo um ano bom. No rolo horizontal Flores das quatro estações (tinta e cor sobre seda, 24 x 545 cm, no Museu de Arte de Cleveland) em que ao lado de cada flor colocou um comentário, junto ao narciso escreveu: «a faixa de jade deixada no rio Luo».

Diz-se que um outro objecto que pertencia à Senhora Zhen, uma almofada bordada a jade e ouro, foi mostrada por Cao Pi ao seu irmão. Reparando no olhar flébil de Cao Zhi, logo desfeito em lágrimas, o irmão compreendeu e ofereceu-lha.

10 Dez 2024