Diários de guerra de um ornitólogo

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] o quarto telemóvel que me impinge desde que me sentei na esplanada. Não desiste. Já passaram na rua uma trintena de grávidas. Dois vendedores de dvds piratas esperam encostados à acácia que eu me levante para me acossar. Uma miúda de olhos de boga, tão afadigada a digitar no seu cell, fica tremendamente desiludida quando eu a interrompo para lhe perguntar as horas… E extensões eléctricas, não quer? Fazem sempre jeito. Vendo duas tábuas de engomar pelo preço de uma. Quarenta e um graus, e o café não tem gelo. A minha mulher liga-me, Faz cinquenta dias que entregaste o relatório – como se estivesse nas minhas mãos. Não me pagam, interpôs-se uma guerra idiota entre a bondade e a administração do Estado. Um gala-gala sobe pela acácia. Abro o gmail, um aluno enviou-me a proposta do seu projecto de fim de curso, pedindo que o supervisione. Dou uma leitura na diagonal. É uma vala comum onde se esqueceram de deitar os corpos. Não há uma vírgula onde se note que a criatura esteve quatro anos na universidade.

Face a este caos, é preciso um método, um simulacro de ordem. Como faço tudo ao contrário do que é costume, descanso fazendo traduções, assim como outros pescam o merlin ou vão ao Kruger fotografar os leões.

Tenho uma péssima, uma canhestra relação com as línguas. Leio quotidianamente em várias delas mas é frequente sentir-me como quem lê as pegadas de tartaruga na praia, incerto sobre a morfologia do animal que aqueles sinais indicam. É porque me é difícil que persisto. Da mesma forma que só a dificuldade me levou a não abandonar a escrita. Estou para todas as línguas como Moisés para as costas de Deus. E sentindo ao perto a luz dos sessenta afigura-me inútil invejar aqueles que por berço articulam os vocábulos alheios como morrões que displicentemente abandonam nos cinzeiros. Traduzo numa espécie de selvático urbanismo mental, em inconspícuo labor, enquanto na rua os jacarandás se desnudam ou a casca do limão cai no gim. É aquilo a que chamo: os diários de guerra de um ornitólogo.

Sem dar-me conta reuni quinhentas páginas de poesia, traduzidas do espanhol, do francês, do inglês, do italiano. Ia agora editar todos os hispânicos, duzentas páginas. Mas o editor, numa atitude infantil de animal birrento, quis polemizar em 360 graus e disparou no seu próprio pé, pondo-se fora do baralho.

Creio que só uma coisa terão em comum, os meus poetas: a ideia da destruição da linguagem não lhes é afim. Se nos atermos ao que dizia Bataille: «a poesia há-de ser o comentário de sua própria ausência de sentido», nenhum deles abraçaria tal dogma. Contudo, já os imagino a assentir com o que Andrès Sánchez Robayana anotou no seu diário: «A poesia é agora, para mim, um novo estado de consciência. Um estado ilegível. Porém um estado que provém da leitura paródica do ilegível. Por um momento, vejo, leio o ilegível. Não é decifrar um inimigo, mas sim vivê-lo» (La Inminencia/ Diarios, 1980-1995, pág.44). São coisas muito distintas.

De SALVADOR ESPRIU (1913-1985), catalão, um poema, OS JACINTOS: «Sentir sem mais,/ conhecer de cada coisa/ o lhano e simples nome, carícia/ como a de abril sobre as folhas novas/ enquanto a luz de chuva da tarde/ se reclina pouco a pouco entre os jacintos./ Claro momento da flor, reflectida,/ e por vezes recôndita: beleza/ última do seu recorte nos meus olhos./ Depois, pelo ar, ténue/ recordação, o mais além do intenso verde/ da erva que molha esta chuva lenta».

14/03/2017

A minha mulher, Teresa Noronha, editora e escritora, foi convidada para um encontro de literatura infantil, em Lisboa. Aceitou e tendo o passaporte caducado foi renová-lo. A um mês da partida. Pagou a taxa de urgência, para o levantar em cinco dias. Na data indicada pelo recibo deslocou-se à Migração. Nada. Mais uma semana de peregrinações. Nada. Um dia fez finca-pé, queria que a esclarecessem sobre o atraso do seu passaporte. Ao fim de três horas, sentiram-se maçados e resolveram ir verificar.

Tem um problema com o seu processo… Que problema? Tem um «V», uma abreviatura em vez de um nome e na fábrica recusaram fazer o passaporte… E por que não me avisaram logo, para se resolver? Esqueceu…

No dia seguinte, ela levou a cópia da certidão de nascimento requerida. Como se a Migração não tivesse um cadastro identitário dela há cinquenta anos, como se… Entregou a cópia ao “chefe” e reforçou a sua urgência. Explicando, a) que o problema fora dos serviços, a funcionária que recebera os documentos requeridos não assinalou a anomalia; que pagara uma taxa de urgência; que a urgência agora era total pois ia representar Moçambique num encontro dos Palops com data marcada. O “chefe” descansou-a, o seu processo “vai ser muito bem encaminhado!”. E tudo desacelerou.

Talvez porque a senhora foi maçadora. Talvez pelo motivo não-declarado que de outra vez levou uma funcionária a dizer descaradamente a uma filha nossa, Menina, pagaste a taxa de urgência, mas se não me deres mil o teu documento fica pronto daqui a seis meses… Talvez só por incompetência e relaxe… Embora “muito bem encaminhado”, houve descaminho. O V tornou-se “um caso” e o passaporte não saiu. E a minha mulher não compareceu no encontro.

Dá um enorme cansaço insistir em viver num país que todos os dias se afadiga a maltratar os seus melhores elementos, porque a qualidade destes ilumina a mediocridade reinante.

Ah, mas porque não recorreram ao Ministro da Cultura, que vocês conhecem, perguntam amigos. Exactamente porque não podemos colaborar com o estado das coisas, a nenhum preço. Queremos um país onde seja possível a um cidadão comum ser respeitado pela simples inerência dos seus direitos. Mesmo que a honestidade seja o que nos trama, preferimo-la. Seguir-se-á o protesto.

16 Mar 2017

Sei de rios

São Luiz, Lisboa, 12 Março

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue sei eu? Talvez por isso afirme que o fado atingiu agora extrema maturidade, sabor e saber entre figo e pão saído do forno, entre o vigor da técnica e o perfume do espírito. Fica-me isso em fundo de boca neste concerto, singelamente chamado de Camané e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, ainda que devesse incluir algures no título o director musical, Filipe Raposo. Lá está, que sei eu: quem decidiu o alinhamento, a escolha e o encadear dos temas, o avanço e recuo de cada instrumento, os silêncios? Saio esmagado no fim da semana, percebendo que desde a segunda-feira anterior tudo viria a estar contaminado por isto. Começa com o costumeiro atraso na percepção de que Camané está prestes a explodir e convém estar por perto. Salvam-me os bastidores (obrigado, Elsa. Obrigado, Aida). Os versos cantados em lâmina a sublinhar esses momentos revividos. O delírio de melodias despenteadas para lá da bainha descosida do pano negro. Bato com a mão na cabeça para interromper as correspondências entre o que agora oiço e o que vivi ao longo da semana, do ano, que digo?, dos anos. Camané, devias ser estudado pela física quântica, essas tuas maneiras de misturar num instante tempos e espaços. Esqueçamo-nos de mim, assunto implosivo do diário. Quem como ele arrisca experimentar sem perder o pé, voar de contrabaixo sem perder os arreveses da tradição. O verso de David Mourão-Ferreira seria o mesmo sem a energia de José Mário Branco? A paisagem de Jobim e Oliveira escavaria tão funda a sua inutilidade sem Raposo e a tua voz? Outros modos são possíveis, mas estes combinam lua e noite de forma única. Na variedade das canções, que vão do tango ao quase pop, na complexidade dos arranjos, no modo de jogar com os ritmos e as sensibilidades, com os instrumentos puxando o cantar para danças nada óbvias, com invariável certeza de que as palavras são o chão da boca Choro, quieto como convém. Na boca de cena do fado há um negro muito nosso, que precisamos escavar para libertar as selvas de cor que por ali se escondem. Sim, pode haver luxúrias de luz e aventura nas noites domésticas que guardamos nos bolsos. Reparo, não sem tristeza, que colecciono respostas íntimas a inquéritos de imprensa. Relembro esta, pela mão da Manuela Paraíso. «Qual é a característica dos portugueses que mais o irrita? O coitadismo. Somos o povo que mais se lamenta, mas também o que mais embirra com quem faz e que ignora o que fez. Enfim, o espírito de rés-do-chão». Camané, tu resgataste o fado do coitadismo.

Mymosa, Lisboa, 6 Março

Nunca pensei. Devia tatuar mais esta no corpo, tão desafinado que vai com o que pensa. Estou com o Ferreira Fernandes a partir História, que vai sendo maneira nossa de abrir conversa, e logo José transfigura para me contar das ocultas razões que levaram o rio Kwanza a inventar país. Tanto angolano na minha vida e nenhum me havia falado com tal rasgo destas histórias trágicas de amor: um rio daquele tamanho parte para Norte ao encontro do oceano; desenha no encontro uma baía capaz de se erguer capital de reino Ndongo; e daí, por portas travessas, resolvido conflito com o outro reino não menos mítico do Kongo, faz nascer país assente na língua portuguesa que, sofrendo barragens e transvases, não deixa de ser nascente e foz. Kwanda sendo rio, na vez de moeda, faz toda a diferença. E ponto. Um ponto é tudo, assim titulou ele a melhor crónica da imprensa portuguesa, citando poeta que se fez moçambicano, filho do que desenhou mitos à beira Tejo.

Foi o Bruno Vieira Amaral que me perguntou, há uns anos e para a Ler: «Falta alguma coisa no seu BI? Sim, uma identidade». Eis-nos fadistas. O Bruno de Almeida filmou o namoro das esquinas com o mar da Palha, cenário de Sei de um Rio, fecho inolvidável do que ainda não vi: «Rio onde a própria mentira/Tem o sabor da verdade/Sei de um rio».

Mymosa, Lisboa, 11 Março

Almoço longo com o Carlos Querido, em rotineiro e soalheiro costume de camponeses, ele da zona oeste, faroeste, eu da Penha, a mais alta e infértil colina de Lisboa. Ambos mondadores do silêncio, lavramos à mesa uma alegria pesada. «Se canto, não me dói tanto/O coração magoado/Mas há em tudo o que canto/Este silêncio pesado», risca a Manuela de Freitas. À laia de conclusão, passou outra resposta a interrogatório, desta para papel de jornal do Fernando Alvim. «Só escrevi um fado, que João Lucas compôs, mas quando ouvi pela primeira vez o António Zambujo a cantar pedaço da minha delirante infância pensei por momentos que a vida podia fazer sentido, breve é claro. Breve o sentido e a vida, que a poesia só ensina a cair. Fado do Homem Crescido, escrito para o filme de animação homónimo que o Pedro Brito realizou, diz com imagens e sons e palavras que a amizade é impossível, pelo que estamos condenados à solidão. Ora nada mais vale senão a amizade.»

Santa Bárbara, Lisboa, 13 Março, madrugada

A noite faz-se ainda mais noite com Lua cheia desta maneira. Faz-se bruta e provoca-me do outro lado do vidro, eterna companheira, lanterna de todos os versos. «É triste sorte/Que nos faz pensar na morte/E em tudo o que em nós morreu», diz João Ferreira-Rosa. Mas teria forma a vida sem o côncavo do que nos vai morrendo? Última resposta ainda ao Alvim. «Vi a chegada à Lua em directo e logo ali descobri uma vocação, que era magro e não me dava mal com as matemáticas. Um certo professor, contudo, deu-me a conhecer um tal de Fernando Pessoa, jaz morto mas não arrefece. Até já tinha lido poesia, mas nunca tinha lido poesia. Não mais me livrei dela, apesar de ainda ter continuado a achar durante anos que podia ser astronauta. Têm sido os versos a levar-me à lua e a prender-me à terra. A enterrar-me.»

15 Mar 2017

O problema dos clones

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m destes dias jantei com uma amiga, a Inês, e, a páginas tantas, ela confessa-me a sua relutância em ser teletransportada. “O teletransporte, a existir”, assegura-me, “não funcionaria como vemos nos filmes de ficção científica”. “E isso quer dizer o quê?” Pergunto. “Nos filmes de ficção científica”, prossegue, “o teletransporte é equivalente a mover água de um sítio para outro, ou seja, a matéria que estava de um lado é transferida para outro lado através de um meio adequado para o efeito.” De facto, pensei, é também assim que eu concebo o teletransporte, enquanto possibilidade de um futuro por acontecer. “O teletransporte assemelha-se muito mais a uma cópia, na verdade. O sujeito está do lado de cá, passa por uma espécie de scanner que o lê e, do lado de lá, é reconstruído. Mas não é a mesma matéria que passa de um lado para o outro, é como se o resultado do transporte fosse, na verdade, uma versão dois de ti próprio, um clone.”

Um clone. Se nos focarmos no processo leitura e recriação, tal como a Inês mo descreveu e que corresponde, de resto, ao modo como a física quântica o teoriza, é difícil não pensarmos nas implicações que uma tecnologia deste tipo teria ao nível daquilo que postulamos ser a identidade. Mesmo que não seja possível termos – como de resto não o parece ser, pois a leitura quântica é de carácter destrutivo –, num determinado instante, dois sujeitos exactamente iguais coexistindo – mesmo que por fracções de segundo –, ficam algumas dúvidas inquietantes.

Cada teletransporte corresponderia, na verdade, a uma espécie de suicídio. O sujeito – ao contrário do que acontece, por exemplo, num elevador, no qual a pessoa que entra e que sai é a mesma – entraria num compartimento e, no processo, seria destruído para poder ser reconstruído noutro local. De certo modo, isto reconfortava a Inês. Era garantia de não poderem existir, em simultâneo, duas criaturas absolutamente idênticas. Mas a questão da recriação criava outros problemas, nomeadamente a questão das versões.

A Inês não estava de todo confortável com o facto de cada transporte ser uma espécie de progressão aritmética de versões de si própria. Afinal, e mesmo sem a possibilidade de existir outro eu para além de mim, pela natureza específica do processo, o sujeito tinha forçosamente notícia de a sua existência corresponder, na verdade, a uma recriação de um original que já não era ele. Para mim, no entanto, este pensamento não era inquietante. Para existir um clone, insistia, tem de existir um original. Se o original é destruído no processo de cópia, a questão não se põe.

Da nossa discordância acerca da natureza filosófica do teletransporte passámos para outro tipo de considerações. “Imagina”, sugeri-lhe, “que o processo de leitura não era destrutivo. Imagina que te conduziam para dentro de uma sala, completamente às escuras, e que te clonavam. Imagina que o processo era instantâneo e que, quando acendiam as luzes, estavam dezenas de sujeitos exactamente iguais a ti, da roupa às memórias, do corpo à capacidade de se auto-nomearem. Haveria alguma forma de podermos distinguir, com certeza, o original dos clones? Mais importante ainda, haveria alguma forma de o original saber que o era?”. Ficámos o resto da noite nisto. Talvez a quantidade de passos dados dentro da sala pudesse ajudar o sujeito a determinar em que posição estava quando se deu a clonagem. Se, de algum modo e sem se mexer, estivesse numa posição inteiramente diferente da distância que imaginava ter percorrido, saberia com certeza que não era o original. Mas era fácil ultrapassar isso. Se o sujeito fosse de cadeira de rodas, teria uma notícia muito mais difusa da distância percorrida. Ou se a sala fosse antecedida por um corredor extenso que dificultasse a leitura da distância às cegas. O facto, indesmentível, é que todos os sujeitos pensariam ser o original e que todos eles nutririam, mesmo não o verbalizando, a mesma dúvida: e se eu for meramente uma cópia?

Não conseguimos resolver o paradoxo. Nem sei se tem resolução. Mas temos de jantar juntos mais vezes.

14 Mar 2017

A vertigem de nunca estar a ser 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Ver no Escuro, terceiro livro de poesia de Cláudia R. Sampaio, editado em 2016 pela Tinta da China, o título dá-nos de imediato uma pista. Ver no escuro pode querer dizer várias coisas, entre elas a situação literal de alguém que, em casa ou na rua, se esforça por ver o que está diante de si, envolto no escuro. Por outro lado, ver no escuro, e como título de um livro de poesia, pode muito bem querer dizer-nos, indicar-nos que estamos prestes a entrar num espaço, o do livro, onde alguém escreve como se o mundo estivesse fechado num breu e a linguagem o iluminasse.

Por outro lado, e de um modo mais literal, ver no escuro também é o modo como a autora termina o livro: “fazendo-me ver no escuro” Mas eis a última estrofe do livro: “Agora mato-me escrevendo / e aqui ressuscito em rua beijando pés / Eu sou esta verdade / Sou a desorientada concentração / das noites desertas / E ascendo-me, grata, / com a poesia dançando entre a / vida e a morte, magnífica / tapando-me a boca toda, / fazendo-me ver no escuro” (p. 78) Parece claro, este ver no escuro, para a poeta, é o próprio acto da poesia, o acto de escrever poesia. E, contrariamente à poesia de Catarina Santiago Costa e ao seu Tártaro – lido aqui semanas atrás –, Cláudia R. Sampaio não se vira do avesso, nem convoca uma linguagem à revelia da linguagem dos dias, à revelia da linguagem que levamos à rua. Em Ver no Escuro deparamo-nos com a mesma linguagem que levamos à rua a passear, a mesma linguagem com que agradecemos a quem nos acende o cigarro, mas com uma eficácia poética conseguida através de um desequilíbrio sintáctico. Aqui, é o verso que repõe a dimensão metafísica da linguagem e não a palavra. “Tragam-me um homem que me levante com / os olhos / que em mim deposite o fim da tragédia / com a graça de um balão acabado de encher / tragam-me um homem que venha em baldes / solto e líquido para se misturar em mim / (…)” (p. 39) São inúmeros os versos ao longo do livro, onde a distorção da linguagem ilumina partes escuras da existência. Deixemos aqui apenas mais um exemplo, que se prende com o próprio sentido de ver no escuro, que a poeta quer que se veja, independentemente de nos deixar a liberdade de vermos outros, que nos parecem até mais pertinentes: “Passei todo aquele poema a viver.” (p. 63)

Mas Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento. Quando alguém morre, o seu esquecimento dói muito a quem o amou um dia, e continua a amar. Os primeiros tempos de luto, vive-se no paradoxo de lembrar e da dor da lembrança, que nos faz querer esquecer, e este querer esquecer quantas vezes não faz nascer uma culpa inconfessável? Como se não fôssemos dignos, não estivéssemos à altura do amor que nos foi dado. Ou, na tese mais forte e, paradoxalmente, mais calmante para a existência, como se nada pudesse ser feito contra o esquecimento de quem um dia nos amou tanto. “E no fim são todos cinza” (p. 7), canta a poeta no final do primeiro poema. Mas o esquecimento do outro, para nós e para aqueles que compõe o mundo, não é o único esquecimento que dói, a única ausência que faz vibrar a existência, contorcendo-a de uma dor que parece não existir de facto, uma dor que não é uma pedra sobre um rim, uma pedra sobre um braço, uma pedra sobre a fronte. O esquecimento é uma pedra sobre a existência. Uma pedra a dizer para onde vamos, para onde todos caminhamos. Todos os dias se morre: “Os  dias começam com a despedida / de qualquer coisa / nem a água dura para sempre / nem a cova impiedosa deste colchão” (p.40) Todos os dias o mundo caminha para o seu desaparecimento. Tudo está a desaparecer diante dos nossos olhos. Escreve a poeta, este poema à página36:

Morro todos os dias

especialmente depois do lanche

quando pego no regador fininho

onde despejo o dilúvio dos olhos

e vou regando as plantas

à espera de descendência.

A dor que mais parece macerar a existência, neste livro, é o esquecimento de si mesmo. Tudo caminha, não apenas para deixar de ser, mas para o esquecimento de ter sido, que é não o não-ser, mas o buraco negro do ser. Quem consegue deixar um pai morto transformar-se num buraco negro de ser? Uma mãe, uma avó, um irmã ou uma irmã? Quem, como Orfeu, em podendo, em tendo forças, não vai ao mais fundo dos infernos resgatar o esquecimento desses que o amaram? Resgatar do esquecimento quem o amou é resgatar o próprio amor. Aqui, neste livro, a tentativa de resgate é a do próprio. Orfeu desce ao Hades, não para resgatar a sua amada, mas a si mesmo. Somos nós, cada um de nós, que está morto para si mesmo. Cada um de nós, vivos, ou assim o julgamos, arrasta-se pelo Hades em busca de si mesmo – já tínhamos visto aqui, semanas atrás, algo semelhante no Tártaro, de Catarina Santiago Costa. Escreve Cláudia R. Sampaio: “Estou viva. / E penso que para além de mim / não há quem o saiba.” (p. 62) Estes versos, que ecoam Álvaro de Campos, sublinham a dor de esquecimento que nos assalta e que pode ter estas formulações: se ninguém me sabe viva, estarei eu viva? Se ninguém me lembra, lembrar-me-ei eu de mim mesma? “Existo até à memoria / como um peixe às voltas” (p. 65)

Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento

A memória é tudo. Aqui, Deus é a memória de todos. Só Deus se lembra de tudo e de todos. Só Deus transporta em Si o que alguém foi; não apenas o que é, mas o que foi. E é aqui, neste lugar místico, que o sentido da poesia em Cláudia R. Sampaio aparece. O poema é uma imitação falhada de Deus. Imitação, porque toca os interstícios da existência e faz dela memória; falhada, porque nenhum poema nos leva a nós, a um eu que preste, é sempre uma ficção de eu, uma possibilidade de eu. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63)  Ou ainda, como ela mesma canta acerca do amor: “E agora sou uma esponja e encolho / porque ainda estamos a reduzir-nos / em violentíssimo eco / Adeus, eus, eus” (p. 33) E o que diz acerca do amor pode ser dito acerca de cada um de nós e da poesia, como ela mesma escreve neste verso, à página 58: “não adianta escrever se não somos”. Esta redução do humano à impossibilidade de permanência, ver o humano pelo que não pode, atravessa todo o livro. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) O humano é o que não é, a não ser em relâmpagos. Pior: o humano é o que já foi, e não há memória que nos salve. “Sou instante.” Mas não se segura o instante. Ninguém é o que é. O humano é aquele que vai sendo. A poeta, nos seus poemas, vive esta vertigem de nunca estar a ser, de sempre ter sido, e de estar arrastar a morte pelos dias até ao desaparecimento completo, até ao buraco negro do esquecimento. “E tudo é outro nome que não este.” (44), termina assim um dos poemas mais longos deste livro. O esquecimento é, podemo-lo dizer agora, apenas o outro lado de não se estar a ser, mas de sempre termos sido. É a parte angustiante do ter sido, o futuro do ter sido. Mas um futuro que não trará uma memória, não trará um passado. O nosso fim, o fim daquele que é ter sido, é um infinito buraco negro. Esta é a vertigem que percorre este livro de Cláudia R. Sampaio, propositadamente ad nauseam. Terminemos com um poema da autora (pp. 70-1):

Sou instante.

É assim que escrevo, com a alma enfiada nos dedos

ou os dedos enfiados nos olhos

miraculosamente sentada, respirando,

sendo a faca cortada ao meio

sendo a coluna um pouco torta perto de

uma janela quase sempre aberta

como se daí viesse tudo.

Talvez a cabeça enfiada neste corpo seja

um grito que vem de outra boca,

ou de asfaltos, ou de peixes voadores.

Talvez este desencontro inscrito em mapas venha

de pássaros desajustados bicando planetas.

Eu devia ser a água vertida em bebedouros imundos,

tornando-os úteis

devia ser a noite de sexo incendiada, em que o fôlego

fosse altar

devia ser do espaço onde me coubesse eu-só

devia ser trocada por três côdeas

ou por um livro do Cesariny

ou por um pranto

Qualquer coisa que me levasse daqui.

Porque eu descalço-me antes de caminhar sobre mares.

Com estes dois pezinhos aprendizes, assim me

vou até ao fundo

e no meio das convulsões e dos impulsos que

me calçam, deverei existir

Que a minha verdade me seja entregue por quem

me entrar no infinito:

ninguém

Não duvido de que ficarei sozinha

e há tanta beleza nisto que tremo toda

enfiando um dedo na eternidade

Podemos ser abandonados por todos

mas seremos imortais por conta própria.

14 Mar 2017

Fantasporto, um festival em idade adulta

A insuportável orfandade

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME-FANTASPORTO 2017, 103 minutos, realização e argumento de Mateo Gil , produção de Espanha.

Sinopse: “Marc é diagnosticado com uma doença que lhe dá um ano de vida. Não aceita o seu destino e decide congelar o corpo. Sessenta anos mais tarde, em 2084, torna-se o primeiro ser humano a ser reavivado na história. É então que descobre que o amor da sua vida, Naomi, o acompanhou de forma inesperada”.

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme começa com o renascimento do protagonista. Nascer de novo é reencontrar a memória dos acontecimentos vividos, um encontro novo com o que fomos, com o que somos.

Estruturado por capítulos o filme vive o tempo de forma não cronológica. Sucessivas elipses dão a ver um vai e vem entre o tempo da vida antes da decisão da criogenização e o do momento actual da narrativa.

O empolgante neste filme de realização cuidada, “décores” assépticos de uma realidade tecnológica já sucessivas vezes anunciada e vista em ecrã de cinema, telemóvel e electrodoméstico TV, é o mapear cirúrgico ao território da habitabilidade do hedonista urbano, através da história do protagonista. Marc é um homem urbano, contemporâneo, jovem, belo e rico, figura de sucesso na agência de publicidade onde trabalha.

Realive, interroga e dá resposta ( com a qual se pode ou não concordar – os filmes são democráticos) a uma pergunta filosófica central neste tempo de orfandade colectiva.

Pode um ser suportar a solidão da consciência da sua total orfandade?

Num tempo em que o antigo conforto da aceitação de Deus é, para muitos, impossibilidade, ou apenas desejo sonhado de pertença a uma organização possível para o mistério da metafísica. Reaparecer vivo num tempo futuro onde todos os que conhecemos desaparecerem, e no qual é a memória o que nos distingue, identifica, é acordar num mundo de solidão imensa.

Como em (quase) todo o cinema , há uma história de amor. É trágico este amor, e o crime aqui, como o definir? Foi Godard que disse que para se fazer um filme é preciso uma mulher, um crime e uma pistola, e não necessariamente por esta ordem.

A morte de Marc é anunciada por análises clínicas que identificaram um tumor na laringe, avançam um tempo de vida ao protagonista que não excede um ano. A decisão pelo suicídio assistido, para um regresso à vida num tempo futuro com data incerta, assim que a tecnologia médica o vier a permitir, ainda antes da falência dos órgãos do corpo o que facilitará o regresso à vida, é a opção e decisão do protagonista.

Esta decisão de antecipar a morte e impede a Noemi de viver com a morte anunciada em calendário conhecido esse tempo com Marc.

A estória do amor dos dois tem sido, foi, uma estória de sucessivos falhanços e, decisão de Marc, é sentida por Noemi como totalmente egoísta. Impossibilita em absoluto à realização da redenção, a vivencia da revelação, esse estado de transcendência, esse tempo com sabor a paraíso que é a comunhão dos amantes.

Marc e Noami, são, foram, os amantes comuns deste tempo onde a procura do êxtase transforma quotidianos em montanha russa emocional, nesta incapacidade para a permanência no tempo da construção da pertença, da permanência com e no outro, mesmo quando esse outro é sujeito que se ama.

Esta é a questão central em Realive, não sendo a linha principal do plot do filme, é o que dá unidade textual ao objecto filme.

É Marc quem, através do último grito do gadget de maior sucesso e de uso massificado nesse novo tempo em que renasceu, 2084 (um par de óculos tecnológicos com um acesso directo, profundamente intenso a todo o banco de emoções, memórias, actos, anteriormente vividos) , nos dá a ver e qualifica a relação amorosa que teve com Noami. É descrita a relação no ecrã em sequências de imagem e em “voice over” , como uma continuidade de desencontros, ora por vontade dele, ora por vontade da Noami. Primeiro ao abrigo de leituras sobre as respectivas carreiras profissionais que falam mais alto do que as exigências do compromisso na relação, depois porque quando um quer assumir o amor ao outro como realidade primeira na sua vida não é o tempo certo o fazer, segundo o outro, num vai e vem de do mesmo comboio em diferentes estações, ou linhas trocadas. Uma espécie de quando eu quero não queres tu e quando tu queres agora não estou para aí virado. E, no contínuo do tempo, desta forma, a vida amorosa dos dois amantes foi partilhada com relações mais ou menos canibais das vidas sexuais mutantes das noites e dias da cidade, naquele só estou bem onde não estou que nos cantou Variações.

Neste regresso à vida em 2084, Marc, é também um produto, o mais valioso produto de uma corporação, a valiosa publicidade concreta para a concretização da expectativa dos lucros na casa dos muitos milhões de yuan renminbi ( conhecem a moeda — o interessante no fantástico é sempre a leitura que é feita do real) . É o primeiro homem com total sucesso no processo tecnobiomédico de regresso à vida após a criogenização .

O seu imenso valor comercial é apenas comparável à profunda solidão que sente e vive.

Noami, também ela, decidiu um regresso à vida num tempo futuro, sabe-o agora Marc, neste seu regresso. Mas não fez a criogenização em tempo de fulgor anímico nas células do seu corpo como fez o seu amor Marc. E, nestes casos, o re-viver é tecnologicamente de dificuldade mais elevada e sem certeza de sucesso.

Na sua profunda solidão, Marc exige, como troca para a permissão à sua exibição como produto, o empenhamento total do gigante da industria médica no regresso à vida de Noami. Mesmo com essa promessa em linha, o seu sentimento de orfandade é total, não resiste, são demasiados tempos num tempo dentro de si que não existe. Está só, e não é Deus.

PRÉMIOS

O Júri Internacional da secção de Cinema Fantástico da 37ª edição do FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA DO PORTO decidiu atribuir os seguintes Prémios:

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME -FANTASPORTO 2017

Realive – Mateo Gil (Spain)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas)

MELHOR REALIZAÇÃO

Liam Gavin – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ACTOR

Frederick Koehler – The Evil Within (EUA)

MELHOR ACTRIZ

Catherine Walker – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ARGUMENTO

Mateo Gil – Realive (Espanha)

MELHORES EFEITOS ESPECIAIS

Drew Casson – The Darkest Dawn (Reino Unido)

MELHOR CURTA-METRAGEM

Cenizo – Jon Mikel Caballero (Espanha)

MENÇÕES ESPECIAIS

A Repartição do Tempo – Santiago Dellape (Brasil)
Garden Party – Théophile Dufresne, Florian Babikian, Gabriel Grapperon, Lucas Navarro, Vincent Bayoux, Victor Claire (França)

27ª SEMANA DOS REALIZADORES / Prémio Manoel de Oliveira

O Júri Internacional da 27ª Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto 2017 decidiu atribuir os seguintes prémios:

PRÉMIO MELHOR FILME SEMANA DOS REALIZADORES 2017

Pamilya Ordinario de Eduardo W. Roy, Jr (Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Sins of the Flesh- Khaled el Agar (Egipto)

MELHOR REALIZADOR

(Kim Jee-Woon – The Age of Shadows (Coreia do Sul)

MELHOR ARGUMENTO

Ivan Szabó , Roland Vranik- The Citizen (Hungria)

MELHOR ACTOR

Park Ji-Il – The Net (Coreia do Sul)

MELHOR ACTRIZ EX AEQUO

Nahed el Sebai – Sins of the Flesh (Egipto)&
Hasmine Kilip- Pamilya Ordinario (Filipinas)

COMPETIÇÃO OFICIAL EXPRESSO DO ORIENTE 2017

MELHOR FILME

The Net – Kim Ki -Duk (Coreia do Sul)

PRÉMIO ESPECIAL

Dearest Sister- Mattie Do (Laos)

MENÇÃO HONROSA

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas/França)

PRÉMIO CINEMA PORTUGUÊS

MELHOR FILME PORTUGUÊS 2017

Um Refúgio Azul- João Lourenço

MELHOR ESCOLA DE CINEMA PORTUGUESA 2017

Politécnico do Porto

Menção Especial do Júri para filme de Escola (Criatividade)

Schlboski – Tomás Andrade e Sousa – ETIC

PRÉMIOS NÃO OFICIAIS

PRÉMIO DA CRÍTICA

Caught – Jamie Patterson (RU)
Division 19 – Susie Halewood (RU)

PRÉMIO DO PÚBLICO

Saving Sally – Avid Liongoren (França/ Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL FANTASPORTO

Catarina Machado – Pintora – pela sua contribuição para o Festival
Rede TV GLOBO – (Brasil)

PRÉMIOS DE CARREIRA 2017

Ate De Jong – realizador (Holanda)
Glória Perez – argumentista, vencedora de Emmy

10 Mar 2017

Outras margens

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que me faz falta às vezes é o nada fazer. Aqueles dias em que a actividade parece um atributo acessório da existência, que em nada tem a ver com uma qualquer natureza ontológica. Que a contradiz em tudo e a força a uma outra coisa em nada semelhante. Incluir assim, nessa ânsia de existir simplesmente, uma certa indiferença a dormir ou comer, mesmo. Tarefas, decisões e horários. Estratégias, hierarquizações e planos. Uma espécie de jejum radical para a revisão de todo um mecanismo complexo de sentir. Do sentir. Sobretudo naqueles momentos particulares em que tudo nos quer ver bem. Ajudar. Sugerir. Tudo nos quer naquele lugar confortável que não inspire preocupações. Diminuir a dor. Obrigar. É nesses momentos que vem por vezes a recusa radical. Um luxo de liberdade a que nunca me dei por mais do que momentos. E depois voltar. Tão igual como qualquer rio que nos acompanhe os olhos na cidade onde vivemos. Nunca outro. Nunca as mesmas águas. O tempo.

E voar um pouco mais longe do que o fim da minha rua só para andar ao longo do rio. De um outro rio. Um outro cenário. Um outro café. Sentar-me num café que não é o do topo da minha rua. Sentar-me da mesma maneira e cruzar a perna da mesma maneira. Olhar o mesmo infinito sem consequência, sem explicação nem sentido. Mas ser um café que não é o da esquina no fim da minha rua. Sair da vida do costume como se a deixasse lavada de fresco e bem passadinha a ferro, impecável em cima da cama, para vestir num outro dia. Mas vestir uma outra. É o que é preciso, às vezes.

Convalescer de estar triste, com uma manta de lã fina e quente, quase sem peso sobre as pernas, como num sanatório de montanha e relegar tudo para um plano entretanto de irrealidade. Ou convalescer nas palavras mais eficazes do que o motor de um 787, ou um A350. Do que um Concorde. Daqueles que caíam facilmente. Como estas. Depois. A cada dor particular o seu placebo próprio. Passar por uns dias. Passar por uma cidade estrangeira, pela vida como se pela vida de alguém tal e qual como uma “Laura, on the train that is passing through”… uma vaga melancolia sem questões de maior. Há momentos de dor. Ou de dores variadas. Não ter vergonha da dor ou da ausência dela. Deixá-las seguir o seu curso e o seu tempo. Cobri-las com uma lã fina para não terem frio a mais. Do que o do seu inverno. Mas as dores devem ser tão leves aos outros, como os outros a elas.

Há ideias mistas que se colam ao corpo como uma pele fina mas forte. A mistura de sentimentos de sinal oposto. Se haverá ou não sentimentos maus de sentir é o que me intriga tantas vezes. Sentir á o último reduto de estar. De ser vivo. De viver para o que naturalmente cresceu em si e não se alterou na essência. Sentir sem o escudo protector da indiferença benigna para que não haja tempestades que façam naufragar. Coisa a proteger. Talvez. Para que não me espreite ao espelho o rosto de uma planta. Uma flor. Não há sinal maior de estar vivo do que a dor. Dói-me logo existe em mim. Existo. A excluir outros sentimentos de igual capacidade de absorção de tudo, de mim, de toda a dor de todo o insucesso. Como o amor. Sim. Porque renegar o sonho maior de tanta gente. Coisas vagamente vergonhosas. A dor, como o amor. E a rimar.

Passear numa cidade estrangeira. A dor. A perda. Tudo o que reunido é o que sou. No momento em que vou. Passear numa cidade estrangeira ao meu círculo vicioso. Um beco circular. Passear como se nada mais fosse possível fazer, e escolher o cenário que há-de preencher os olhos senão a mente. Mas a nova paisagem é como convalescer na Montanha Mágica de Mann. E tudo ser relativo ao momento em que tudo e nada pode ser possível. Em que tudo fica igual ou muda. Como sempre. Só num outro cenário e como tal a validar o momento diferente de todos como todos são de todos. Não há como uma viagem para nos catapultar para o espaço sem tempo e o tempo sem dono e não há como estar só para que tudo seja possível de não ter sentido nem metas nem sucesso nem horas nem sentido nem culpa nem nada. Mesmo.

Há cidades para sempre entranhadas no mais recôndido escaninho da dupla e retorcida hélice do nosso ADN. Cidades feitas do ouvir contar, das fotografias e dos filmes de sempre. E da história, que estrutura uma origem de que se gosta e quer sentir fazer parte. Dos álbuns e dos livros, do cinema e das memórias coladas a uma canção. A muitas. Memórias às vezes sem dono, já. Das pessoas que nunca conhecêramos não fosse a esplêndida presença que deixaram em objectos que voltamos sempre a visitar, a revisitar como num domingo se visitava a família. Que nunca conhecemos mas conhecemos melhor do que a muitos dos nossos. Com quem nos cruzamos um dia numa das estradas de um momento de sorte e acaso, e por quem nos apaixonámos de emoções fortes, de ódios e rejeições ou de amor mesmo. Pessoas com nomes que nunca esquecemos e que nunca morreram para nós, póstumos a elas, por vezes, a quem encontrámos já em dimensões diferentes da matéria e do espaço, mas que reconhecemos como nossas. As nossas pessoas do intelecto e as nossas pessoas da admiração e as nossas pessoas de quem temos tantas fotografias que quase tomámos café aqui e ai com elas. Espiadas e abstraídas de nós. Também elas. Tanto a conhecer numa cidade onde não se nasceu nem cresceu mas acrescentou mundo e o olhar perdido nos limites da sua aldeia não fosse assim. Ou talvez nem fosse assim. Como dizia o poeta. O mundo do tamanho do olhar que se lhe deita. Mas assim é mais. E cidades onde se quer sempre voltar.

Estar numa cidade estrangeira fervilhante de coisas, de fenómenos, de acontecimentos.. De objectos de cultura. De memória e de estar a acontecer. Numa arquitectura de trajectos de coleccionador. E não ver nada disso. Quase. Porque de uma cidade estrangeira de que goste, gosto sobretudo da cidade. Esse ser articulado, pujante e indiscutivelmente vivo. Dentro de lugares fechados para a cultura, ver só o suficiente para amadurecer em horas e dias. E dar as margens de silêncio precisas. Rigorosas como uma moldura a proteger e a guardar o tempo e espaço para pensar. Sem ruído. Sem sobreposição. Caminhar numa cidade civilizada. Num modelo cultural. E não esquecer de ver os sem-abrigo por fora das janelas de cada museu. Alguém que dorme às oito da noite numa manta de quadrados porque não há mais mundo por hoje. Os que pedem para comer. Tantos. Rostos morenos de famílias inteiras ao longo do rio. A vida. E aquelas figuras arrumadas e dignas como uma certa classe média. E que sobriamente também estendem a mão. A vida exposta na palma da mão limpa. A vida.

Quilómetros num sentido ou noutro a mergulhar os olhos no verde denso das águas do rio que lembrava mais largo, e no ocre claríssimo como se duma cor diluída para não ferir. Quase um cinzento de prata amarelada. Os prédios todos semelhantes nas suas inúmeras diferenças. Apaziguados numa harmonia cromática de extensão confortável sem sobressaltos. E assim ao longo dos dias. Pequena, grandes incursões para dentro das margens e voltar. À referência. Nelas, entrar em cada igreja não programada. E lá bem no fundo suponho uma súplica. Tão ténue e escondida até de mim. A sentar-me por longos momentos de respiração. Talvez que alguma coisa de mim, através de mim e sobre mim me salve. Deste momento. De mim.

E todos os dias partia desalvorada do hotel para o rio, ali mesmo ao fundo da rua, quase como se em casa. Mas outro rio. Às vezes é preciso outro rio. Como o tempo. E partia apressada com a alma desfraldada a sair dos bolsos já de si cheios de pedras e pesos. Desfraldada e não feliz. Mas expectante dessas horas como um grau zero de existência plena, a caminhar simplesmente pelas margens desse rio. Só. Para dificuldade bastava aquele longo e prolongado tempo a reunir coragem de deixar a cama para trás. Com os seus fantasmas desalinhados e em pijama até à noite. Ideias que nos colam ao corpo, como quem transporta os ossos dos antepassados, limpos de toda a existência no silêncio de um pequeno saco. E guardar silêncio sobre a dor. Mesmo de mim. Ferreamente diluída nos passos enquanto não pararem sob o efeito dos olhos.

Porque às vezes é preciso ir mais longe, onde nada exige essa felicidade que nem sempre pode ser. Pesos. Ou seria a mala a fazer peso nas costas. Cheia daquelas coisas-casa. Livros de páginas em branco, canetas pretas, duas maçãs, a máquina fotográfica. O mapa a refazer um mapa, outro, mental tão desfeito ao longo dos anos. A reler nele, saborosamente, os nomes. A imprimir numa nova memória. Coisas. Inseparáveis e pesadas como uma concha de caracol. Inevitáveis. Curiosa concha-caixa a desse molusco, concha-casa espiralada e esconderijo, quando é na realidade o esqueleto externo. Como o mistério de uma mala de senhora. Desde aquela bolsinha minúscula onde mal cabe o pó de arroz e um lencinho bordado, porque mais não é preciso para além do batom, até ao por- aí- fora das dimensões e dos mistérios esclarecedores de uma diferenciação social, cultural de uma emancipação ou de um desamparo a fazer transportar um mundo- concha. Que aquilo que se transporta é um mundo…uma gaveta escolhida do mundo como um esqueleto externo. Um arcobotante a suportar uma eminência de queda, um peso a mais. Espiralado como as curiosas camadas de ser que precisamos poder derramar numa emergência em branco de papel. Ou de um olhar que é preciso prender ao vidro de uma lente. Para ver melhor. Apurar o cenário em que se representa um intervalo de tempo depurador. Coisas. Daquela mala desenhada para se prender firmemente às costas, ao peito, como se parte delas, dele. A fazer peso mas sem tolher os passos. Numa pressa de chegar. Ao rio. E aí parar numa das margens. A respirar fundo o alívio de ter chegado ali para ali caminhar. E caminhar ao longo dele. Grande demais e como tal inesgotável para a minha pequena escala. O que é bom. Que o mundo seja grande e o tempo também.

A pequena história destes dias. Resumida à sua verdadeira extensão. Passear até à exaustão e pelas horas adiante, com aquela pequena garra fincada em mim em pano de fundo bem fundo. Para aquém das tonalidades envelhecidas em texturas suaves. De todo o cenário-cidade. Do céu. Cinzento a combinar. Respirar em grandes haustos um ar que parecia limpo do que ficou para trás e trazem até inesperados perfumes, de árvores não, que por todo o lado friorentas e nuas, mas arbustos que se cruzavam comigo, rápidos no andar. A andar como se para sempre. Para sempre acompanhada. Como por sombras num pano de fundo. Bem fundo. O que não tem remédio. Sinto, logo existo. Que maravilha única e insubstituível. Acontece uma vez. Não acredito em mais. Estar em Paris só para estar em Paris. Para andar ao longo das margens. Minhas. Do rio. Coisas diferentes. Há um peso que cola os passos ao chão. Mas a cabeça sempre mais acima do que os pés. Essa tonta. Tresloucada. A vida, digo eu. Inalcançável senão por partes. Dias.

Paris é uma daquelas cidades a que pensei só voltar só, ou com um grande amor. Aqui estou. Sem querer distinguir as ramificações de uma e outra verdade. Ambas acompanham como uma pessoa querida.

Está frio. Ponho quando posso prescindir delas, as mãos nos bolsos. Quando cabem. Saem por ali tantas coisas. E luvas, e bem lá no fundo para não o perder, como o primeiro mapa que me caiu por ali algures, um coração. Suponho-o diferente. Vi-me diferente – nesta cidade – depois de vinte anos. E noutras margens. E este é outro talvez também. O último romântico. Não o posso deixar cair por aí. Nem esquecê-lo no check-in. Vai ser revistado, talvez acusado de ter em mililitros mais do que o permitido transportar. Como o champô de que eu gosto. Suspiro. E continuo. A atravessar pontes sobre o rio. A acompanhar o rio sob pontes atrás de pontes a parar e com a alma sempre cheia de uma canção. Que durou dias.

10 Mar 2017

O macaense Albino de Paiva de Araújo na Europa

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]emos vindo a escrever sobre a história deste boémio e no último artigo tratamos já sobre uma das principais protagonistas, Blanche Lachmann, a tal Madame Paiva que em segundas núpcias casara com Albino de Paiva de Araújo, para em Paris conseguir um nome e uma dignidade equivalente à sua opulência. Falta agora apresentar o próprio Albino Francisco de Paiva de Araújo, que nasceu em Macau na freguesia de S. Lourenço a 19 de Maio de 1824 e suicidou-se em Paris em 1873. Estas são as datas referidas pelo padre Manuel Teixeira, mas Jorge Forjaz dá outras e se a de 1832 para o nascimento parece estar errada, a da morte, em 8 de Novembro de 1872, cremos ser a ajustada. No entanto, o ano de 1873 é referido pela maior parte dos autores que sobre esta história escreveram e a que Camilo Castelo Branco indica, mas mais à frente diz, “até que em 1873, li nos jornais portugueses que Paiva Araújo se suicidara em Paris”. Segundo Jorge Forjaz, o pai deste, Albino José Gonçalves Araújo nasceu no Rio de Janeiro (Candelária) em 1797 e faleceu em Macau, na freguesia da Sé, a 24 de Janeiro de 1832 (apesar de Manuel Teixeira referir 1842) e a mãe, Mariana Vicência nascera em Macau a 22 de Julho de 1802. Camilo Castelo Branco dá “uns ligeiros traços do perfil do sujeito. Paiva Araújo nascera em Macau e era filho único de um negociante rico, ali falecido por 1842. Quando o pai morreu, Paiva Araújo estava em Paris em um colégio. A viúva veio para a Europa, e para residir escolheu o Porto, onde não conhecia alguém. Mandou edificar uma casa perto da alameda da Aguardente [hoje desaparecida e que se situava no topo da rua do Bonjardim], mobilou-a com muito gosto e selecta riqueza de baixela d’ouro e prata, jarrões japoneses e porcelanas antigas. Fechou-se com o misterioso luxo de fada, sozinha, quase desconhecida de nome e de pessoa. Chamavam-lhe a Macaense. O seu nome era D. Mariana de Paiva Araújo. Sabia-se apenas que era viúva, muito rica e tinha um filho a educar em França. A casa arquitectada pelo risco burguês, trivial no Porto, era de azulejos amarelos com muitas janelinhas de estores brancos, sempre descidos. Tem um jardim com vasto portal gradeado para a rua, tufado de bosquetes de árvores exóticas e miniaturas de montanhas que punham na alma saudades das florestas do Buçaco e Senhor do Monte. Paiva Araújo não frequentou curso algum nem adquiriu noções vulgares em algum ramo de ciência. Aos dezoito anos veio para a companhia da mãe. Sobejava-lhe riqueza à mãe extremosa que dispensasse o seu filho único dos fastios de uma formatura inútil.

Por 1845 apareceu Paiva Araújo no Porto curveteando garbosamente o seu cavalo árabe por aquelas sonoras calçadas. Era um galhardo rapaz trigueiro, alto, com um buço preto encaracolado nas guias, elegante, sem as farfalhices coloridas da toilette dos casquilhos seus coevos. Tinha poucas relações, e dava-se intimamente com Ricardo Browne, o árbitro da moda. Ricardo Browne era tão poderosamente iniciador que até, pelo facto de ser muito surdo, contagiou de surdez fictícia muitos rapazes em condições as mais sanitariamente fisiológicas das suas grandes orelhas. Estes rapazes, assim cavaleiros, figurinos, lovelacianos, esgrimidores, mais ou menos surdos, chamavam-se simplesmente janotas, ou em nomenclatura mais culta – dandys. Não se conhecia ainda em Portugal o peregrino vocabulário de sport, de turf, de sportman, de high-life, de sporting, de gommeux. Ignoravam-se estas inglesias e francesismos da actualidade mascavada de idiomas com que um qualquer modesto noticiarista da travessa de Cata-que-farás, 4.º andar, lado esquerdo, parece que nos está conversando num salão de Regent-Street, a marinhar com as pernas pela espalda de um carmezim, as suas emoções pessoalíssimas de Hyde-Park e Jockey-Club.

O Porto e a vida reclusa de sua mãe deviam ser intoleráveis a Paiva Araújo. Browne saiu para Paris, e ele para Lisboa, onde se notabilizou facilmente pelas prodigalidades das suas despesas. Bulhão Pato, em um dos seus escritos entristecidos pela saudade daqueles tempos, fala do cavalheiro Paiva Araújo. Dava jantares aos rapazes da alta linha, a colmeia do Marrare do Chiado, parte dos quais ainda vive mais ou menos pintada; e, feito o último brinde, quebrava a louça do toast, voltando a mesa como quem ergue a tampa de um baú. Pagava generosamente o prejuízo. O seu vinho, além de reduzir os cristais a cacos, não tinha mais funestas consequências.

Assim que perfez a idade legal, pediu o seu património paterno à mãe, e foi viajar. Recebeu letras no valor de cento e tantos contos. Conheceu então em Baden-Baden a deslumbrante mulher que chegara da exploração dos lords com um pecúlio que lhe permitiu construir um palácio”, segundo Camilo Castelo Branco. Jorge Forjaz dá uma achega dizendo, “Blanche Lachmann deitou as mãos a Albino Araújo e não passou muito tempo estavam a casar, a 5.6.1851, na Capela dos Irmãos da Doutrina Cristão em Passy, Paris”. E continuando com Camilo: “Casou. Se ela morresse de 72 anos, segundo o cômputo de algumas folhas francesas, teria casado aos 39 anos com o nosso compatriota. Deveria ser, portanto, extraordinária e bestificadora a formosura de uma mulher que, em tal idade, ainda viçava flores com frescor e perfume, tendo sido tão cheiradas e mexidas! O certo é que ela tinha 25 anos quando casou em segundas núpcias, 46 nas terceiras, e 58 quando morreu no seu palácio de Newdeck, de uma febre cerebral consequente a um reumatismo cardíaco. Depois de ter entesourado no seu largo peito vinte pródigos conhecidos com os patrimónios correspondentes, ainda lhe restava espaço no coração para alojar um reumatismo! Valente e elástico músculo de polaca!

Paiva Araújo, casado, visitou Lisboa e a mãe, com a esposa. A polaca no Porto, no topo da fétida rua do Bomjardim, com a nostalgia de Paris!… Certas mulheres que viveram em Paris, nas máximas condições de horizontalidade, só lá podem viver”. Interrompemos a crónica de Camilo Castelo Branco que já vai longa, mas acerca da vida em Portugal desta personagem é quem melhor está documentado. Jorge Forjaz adita, “Ainda estiveram juntos em Lisboa, onde ela teve algumas dúvidas sobre o real fundamento da fortuna dele, já então seriamente abalada. Conta Pinto de Carvalho que estando no Hotel Victor em Sintra “. E concluindo com Camilo Castelo Branco, “A polaca regressou a Paris, e como o seu marido constituía um empacho aos seus embelecos e astúcias, requereu a separação e regressou ao exercício profissional do galanteio>”. Encontramo-nos agora com as personagens principais apresentadas.

10 Mar 2017

Carla Maciel: “Adoro o que faço. Sou uma privilegiada”

Carla Maciel

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á vinte anos que vens trabalhando em teatro, cinema e televisão. Imagino que exijam esforços e técnicas diferentes. Podes explicar-nos quais as maiores diferenças que encontras nesses diferentes modos de se ser actriz? E tens alguma preferência por um deles? E a tua preferência foi mudando ao longo dos anos, ou sempre se manteve a mesma?
O meu pai era um apaixonado pela música e em criança comecei juntamente com ele a aprender a cantar e tocar guitarra. Durante a infância e a juventude a música e a dança ocupavam a maior parte do meu tempo. Até que aos 17 anos entrei numa escola de teatro no Porto. Tive o privilégio de ter um enorme background do que poderia ser este universo tão fascinante e ao mesmo tempo tão assustador. O teatro apareceu de uma forma espontânea. Não tenho preferências. Adoro o que faço. Sou uma privilegiada . Gosto de fazer de tudo um pouco. Depende muito das fases e do trabalho que aparecer. Até agora tem sido muito equilibrado mas confesso que o cinema tem sido a linguagem que menos tenho trabalhado.

Há sempre alguns personagens que marcam mais as actrizes, quais foram os personagens que mais te marcaram até hoje? E por quê?
Fiz muitos personagens ao longo da minha carreira. Passei por várias companhias desde o Porto até chegar a Lisboa e tive a sorte de interpretar grandes personagens. Houve uma personagem que dada a exigência de transformação me deu muito gozo fazer, uma velha alentejana (inspirada na minha avó) no Teatro Meridional. O espectáculo chama-se Amanhã, de José Luis Peixoto. Nos últimos anos a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, tão inteligentemente encenada pelo Tiago Rodrigues; e Albertine, a partir de Marcel Proust, e tão brilhantemente escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington. Em televisão também tive a sorte de fazer bons papéis.

De há uns anos a esta parte tens trabalhado com o teu marido, o Gonçalo Waddington, há algumas desvantagens em levarem o trabalho juntos para casa, ou são só vantagens?
A minha parceria com o Gonçalo nasceu instintivamente. Conhecemo-nos e ambos tínhamos um percurso artístico e objectivos semelhantes. À medida que fomos crescendo e amadurecendo, fomos conciliando os nossos sonhos sempre com a nossa vida pessoal. Claro que traz desvantagens e riscos, adoramos debater, somos os dois muito activos mas sempre com espírito de equipa, de colectivo, pelo respeito mútuo na discussão das ideias. Juntar o útil ao agradável e porque não? Dois casamentos numa única lógica. Respeito, cumplicidade, e muito amor pelo que fazemos.

Uma outra actividade à qual tens emprestado o teu tempo é o da leitura de textos literários. Embora hoje não seja uma actividade exclusiva de actores – há, aliás, cada vez mais não actores a fazerem leituras –, os actores fazem-nos melhor?
Comecei a ler muito tarde. Sou uma auto didacta. À medida que ia trabalhando com encenadores e colegas, fui escutando e absorvendo informação. Nomeadamente livros que eram bases importantes para o entendimento do próprio espectáculo. Com os anos comecei a sentir falhas estruturais, senti que precisava de ler os clássicos por exemplo, os filósofos, a poesia e por aí adiante. Qualquer pessoa que lê muito, sabe ler um texto. Claro que os actores têm mais facilidade, talvez pela colocação da voz, alguma interpretação e talvez um maior à vontade. Mas depende dos textos.

Qual achas que está mais pujante hoje, em Portugal, o teatro ou o cinema?
Penso que ambos estão pujantes. O cinema tem dado provas que cada vez mais há novos realizadores e de qualidade. Neste momento encontram-se um grande número de curtas e longas metragens fora do país, em festivais, a mostrar que o nosso cinema português apesar das dificuldades existentes ainda tem cinema de excelência. Estreou recentemente o filme do Marco Martins, São Jorge, que é a prova disso. Em relação ao teatro existe cada vez mais criadores, estão a nascer novas companhias, e os teatros, que têm vindo a criar diferentes dinâmicas para que o público consiga ter opção de escolha do teatro que pretende ver, apresentam-nos cada um a sua linguagem, trabalhando cada um deles para públicos diferentes. Considero que estamos no bom caminho. Apesar das dificuldades sentidas temos de ser perseverantes e exigentes continuando a mostrar o quanto a cultura é essencial. Nunca desistir.

Que projectos para este ano?
Este ano entro como actriz na segunda parte de uma tetralogia escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington, O Nosso Desporto Preferido – futuro distante, com estreia em Abril no Teatro Municipal São Luiz. E em Novembro junto-me á actriz Teresa Sobral para criarmos um espectáculo com um texto do Gonçalo M. Tavares que tem estreia prevista para Janeiro de 2018. O ano ainda se preenche com um mestrado de teatro, ser mãe intensivamente, leituras e o que imprevisivelmente aparecer.

10 Mar 2017

Turbilhão existencial

Ferreira, Vergílio, Signo Sinal, Bertrand, Lisboa, 1990.
Descritores: Romance, Memória, Utopia, Progresso, História, 268 p.21cm, ISBN: 972-25-0270-0

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

Turbilhão existencial

O romance Signo Sinal decorre em grande parte numa aldeia que é completamente devastada por um abalo de terra, após a revolução do 25 de Abril de 1974.

É necessário reconstruir a aldeia, mas no contexto revolucionário as medidas são difíceis de implementar. Vergílio Ferreira utiliza a aldeia como metáfora de toda a sociedade portuguesa no contexto de uma regeneração desencadeada pelos ideais utópicos gerados pela revolução. Também o país foi abalado por um verdadeiro terramoto social. Também o país pretende sair das ruínas e descobrir os caminhos para uma nova vida. E pior do que o terramoto social foi, para mim, o terramoto ideológico.

Aqui há uns anos enquadrado pelas potencialidades dinâmicas de uma dicotomia engendrada por Paul Ricoeur numa das sua obras e fixada na fórmula utopia versus ideologia escrevi um texto definitivamente legitimador do processo revolucionário e jamais me atreveria a revê-lo à luz de preconceitos conservadores ou reaccionários, mas sempre à luz da historicidade intrínseca extra moral que os tempos transportam consigo tacteando os caminhos que a história ainda pode abrir e devastar. Isso não inibe o discurso crítico jamais judicativo no plano histórico imanente. Foi como tinha que ter sido e agora é fácil imaginar que pudesse ter sido de outra forma. No essencial é essa a sensibilidade que subjaz ao narrador de Signo Sinal.

O personagem principal, Luís, sobrevivente do cataclismo e herdeiro de uma fábrica que o seu pai havia construído, encontra dificuldades na acção que resultam da convergência da sua vocação, mais dada ao pensamento e à reflexão que a iniciativas concretas e práticas, com a inoperância própria de momentos históricos em que se quer reconstruir tudo e depois muitas vezes não se reconstrói nada, pois o conflito entre ideais absolutamente utópicos e a realidade é na maior parte das vezes paralisante. Respira-se uma atmosfera ébria e exaltada, pouco propícia ao humilde lançamento dos caboucos da reconstrução. Proliferam os comícios, as manifestações, os planos, mas avança-se muito pouco ou quase nada. Todos os planos são grandiosos, mas as realizações são nulas. A burocracia, as discussões intermináveis, os excessos idealistas manietam o bom senso, e sem bom senso e eficácia nada se realiza.

Se a aldeia representa o microcosmos do país, o arquitecto responsável pela reconstrução representará a elite revolucionária que tem em mãos a construção de uma sociedade nova e de uma nova época da história. Uma espécie de demiurgo do tempo novo. Os diálogos de Luís com o arquitecto mostram essa realidade contraditória entre o desejo e a realidade.

Vergílio Ferreira vai desconstruindo com eficácia as ilusões de uma sociedade que pretende, a partir de fragmentos de antropologias ingénuas e de crenças que nada acrescentam às mais antigas, erguer-se acima da sua própria condição. Sabemos que todas as revoluções resultam de excessos voluntaristas em que os sonhos, os ideais, as utopias adulteram por pura ansiedade escatológica a trama omnipresente da realidade. Os revolucionários, por vocação própria, caricaturam a realidade para melhor terem a ilusão de que a podem moldar, mas aquilo que à pressa se expulsa pela janela, bastas vezes volta a entrar pela porta que continua escancarada. Ou o contrário. Vale o mesmo e é mais perverso.

É em Luís que culminam as contradições do processo transformista, pois nele a realidade social conflitua com a realidade da sua própria vida, onde a dimensão que o transcende conflitua com a sua procura, com a sua demanda, de um sentido existencial. Ora, é sempre isso que acontece, no turbilhão das questões sociais transpersonalistas é sempre a nossa própria questão que continua a acossar-nos. Qualquer ideólogo marxista se apressaria a apostrofar Luís, afirmando que as suas preocupações, impasses, dúvidas e hesitações não passam afinal do drama histórico da classe social a que pertence, a pequena burguesia. E que a história e o seu progresso facilmente removem essas inércias.

Nada mais ingénuo; e por isso Vergílio Ferreira que há muito atirou para trás das costas esses paradigmas sociológicos estreitos, maniqueístas e redutores, acolhe portanto Luís no seu texto como expressão de uma resistência estrutural à rasoura simplista das ideologias. Há na história da humanidade muito mais a expressão do mito de Sísifo que a saga gloriosa do progresso, embora ambas coexistam de forma pletórica. Sendo assim, o autor coloca na boca da sua emblemática personagem estas palavras: “talvez destruam tudo outra vez do que construíram, porque escutam uma ordem nova e certa e irrecusável desde o ignorado da vertigem”. Se nos lembrarmos da metáfora de Walter Benjamin, plasmada plasticamente no quadro de Paul Klee, em que a história é identificada com um anjo que voa de costas continuamente a olhar para o passado, facilmente se percebe que o progresso acontece à margem das vontades, subordinado a um vórtice que aspira vectorialmente para a frente. Enfim, como o anjo voa de costas, parece que é para trás.

Não sei se era assim que pensava Vergílio Ferreira, mas que ele procurava enfatizar neste romance a persistência de estruturas de longa duração ligadas à natureza da condição humana muito mais do que ao visionarismo circunstancial ditado pelos artífices voluntaristas da história, a partir de projectos grávidos de ideologias, disso não tenho dúvidas.                   

9 Mar 2017

Falhar menos

02/02/17

[dropcap]N[/dropcap]ão escrevo para que me interpretem. Como Melville acredito que o mundo e o mistério são maiores que eu. Há, por isso, momentos em que uma leve sintonia me faz bem como quando leio numa conferência de Foucault de 1966, intitulada O corpo utópico, que o pensador francês opõe a utopia ao corpo. Diz ele que «o corpo é o único que não se pode trasladar para um espaço imaginário perfeito», porque todas as manhãs o espelho mostra-me mais calvo e que os músculos me caem lassos e a pele começa a ter manchas inarredáveis e que o que se passa com o meu corpo se afastou milhas do modo com que imagino todas as minhas construções. Ou seja, o que eu idealizo e por outro lado a minha presença que, dia a dia, se desvanece. Bom, a clivagem desta consciência toda a gente a adquire por experiência própria. Até aí nada de novo. O que me parece inédito é a chamada da utopia para um contraponto com o corpo, habituados que estamos a localizá-la no campo das ideias. Seja pois a utopia o inverso do corpo, a sua sombra: isto supõe que todas as outras ideias, porque menos radicais, se inscrevem no corpo, florescem à margem do seu desgaste, como órgãos, extensões daquele, ou vidas virtuais possíveis, para o que aprende a ausentar-se. Suponho que esta será a melhor das maquilhagens.

Em relação a este aspecto são interessantes as reflexões com que Michel Onfray demonstra a presença do corpo (ou a sua censura) no delineamento do pensamento, mesmo em Deleuze, que quis teorizar o «corpo-sem-orgãos».

05/02/17

Nina Simone, vi-o agora, teve direito à sua biopic. Vale o filme o que vale a sua intérprete – Zoe Saldana, magnífica – e por três ou quatro pormenores que iluminam uma vida e as suas circunstâncias. Uma entrevista na rádio de Nina com um jornalista francês funciona como a vértebra do filme, voltando-se repetidamente a ela; a uma pergunta sobre porque decidiu Nina ir viver para França, onde é adorada, Nina responde: “A América falhou. Falhou com o meu povo, e comigo. A América falhou como país”. Fala evidentemente do racismo. Noutro filme sobre Miles Davis, o genial trompetista, que a dado momento se exilou em Paris, onde é idolatrado como artista, também diz que na “cidade luz” vive uma liberdade que nunca conheceu na América. A América falhou.

Se formos vinte anos atrás, à história de Josephine Baker temos outro exemplo de uma vida extraordinária e fustigada pelo racismo e que encontra em Paris o porto de abrigo. Porque em Paris é respeitada e no seu país era perseguida. Três exemplos que atravessam um século mas que atestam pelo menos que a meritocracia na Europa tem menos cor – é de artistas que falo, gente comum terá mais problemas, mas o modo como se tratam os artistas é um indicador civilizacional.

Entretanto sabemos: a América de Obama falhou, a América de Trump, já se viu, vai falhar melhor. Hoje, no essencial, o racismo mudou o seu foco mais encadeante, é menos étnico que islamofóbico, contudo, o que está em jogo nas eleições europeias deste ano é saber se a Europa – que, na generalidade, resolveu melhor a condição pós-colonial que a América as suas tensões internas – vai continuar a ser um porto de abrigo ou se as restrições que decorrerão de resultados contrários aproximarão a Europa de um modelo afim do americano, racista, xenófobo e áspera e orgulhosamente clivado. Às vezes era preciso falhar menos.

06/02/17

A descoberta dos sete exoplanetas semelhantes à Terra, com possibilidades de ter água, excitou meio mundo. Era uma descoberta que faltava à necessidade de descomprimir a solidão do homem no vasto, álgido, universo que nos rodeia. Digamos que, no meu caso, foi o modo mais feliz da realidade contrariar o convincente mas terrível diagnóstico que o ensaista de arte e poeta de Barcelona, Rafael Argullol, fez em Maldita Perfección/ Escritos sobre o sacrifício y la celebración de la belleza (2013), e que nos colocava à beira de uma depressão irredimível. Num texto intitulado A Solidão de Shakespeare, Argullol sustenta o seguinte: «Nenhum poeta posterior ao século XVII teria podido escrever como o fez Shakespeare sem ser acusado de inverosimelhança total. Se um escritor actual, por exemplo, vinculasse as paixões humanas a supostas paixões dos astros, ventos ou moléculas, seria justamente culpável de um maneirismo que lhe faria perder toda a eficácia literária. Ninguém imagina um cenário deste tipo como campo metafórico de um poeta contemporâneo. Todo o contrário acontecia com Shakespeare, cujo enorme potencial de metáforas há que entendê-lo, em boa medida, como consequência da sua disposição, convergente com uma consciência todavia era da sua época, para enlaçar os fenómenos da natureza humana com os fenómenos do conjunto do cosmos». E a seguir Argullol mostra como a grande fronteira do espaço se revelou um poço sem fundo: «Inalcançado qualquer indício de diálogo, nunca como agora parece evidente a consciência de solipsismo. O homem é um relato sem ouvintes no qual se conta o seu solitário protagonismo no mundo».

E esta viragem das esperanças antigas para um horizonte tão abissal como mudo, este confinamento, imaginei eu a partir da leitura de Argullol, foi desde a desilusão da aventura espacial, destapando (como uma Caixa de Pandora) todas as depressões, com correspondências visíveis desde a sensação de uma «falta de alternativas políticas», à crença de que os fármacos podiam substituir a psicanálise, até à suposta incapacidade da poesia sair do beco do quotidiano: atravessávamos um mundo sem exterior fora da alucinação, sem saídas, gélido e destituído de – lá está – utopias.

Esta descoberta da astronomia, de sete planetas com condições para ter vida, devolve-nos um ponto de fuga, uma ilusão que nos faz de novo exigir o impossível: a derrota das distâncias insalváveis.

9 Mar 2017

Desejos de mais luz

Santa Bárbara, 26 Fevereiro

Antero de Quental por Almada Negreiros, retrato patente na exposição da Fundação Calouste Gulbenkian

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ontinuo sem perceber este preconceito em relação ao conto, que o desvaloriza como mero exercício literário entre a sublime poesia e o trabalhoso romance, que o arruma sem mais na prateleira das fracas audiências. Que género se aplicaria melhor ao ritmo de vida de hoje, ao nosso nível de literacia, ao tamanho do metropolitano de Lisboa? Ainda assim, há quem insista, por exemplo, em traduzir o cubano Virgilio Piñera, um dos grandes contistas latino-americanos, além de poeta, enfim, intelectual, a merecer leituras em cabal que inclui dramaturgia, romance, ensaio e percurso. Aliás, na lista de projectos, desesperante para apenas 24 horas em cada dia e uma conta bancária despida, tenho a edição do seu notabilíssimo La isla en peso, traduzido pelo Cabrita. Deixemos para depois o depois que acontecerá e concentremo-nos na certeza deste «O Grande Baro e Outras Histórias», com escolha e tradução de Rui Manuel Amaral, a partir de três volumes (de 1956, 1970 e no póstumo de 1987). O cubano cria ambientes claustrofóbicos, constrói exímias arquitecturas narrativas, esculpe íntimas personagens tendo o absurdo como pano de fundo, mas sustentando-se em uma cirúrgica atenção aos mecanismos do quotidiano. No beco sem saída dos dias, a escapatória pode estar no muro. A nenhum conto, maior ou menor, lhe falta a lógica interna de uma granada, com diálogos afiados, detalhes luxuriantes e olhar raiado de ironia. Leia-se pedaço d’«A Carne», que abre o cuidado volume (e rima com a contracapa). «Ali chegado, fez saber que cada pessoa deveria cortar da nádega esquerda dois bifes, em tudo semelhante a uma amostra de gesso que pendia de um reluzente arame. E declarou que deveriam ser dois bifes e não um, porque se ele próprio cortara da nádega esquerda um belo bife, convinha que a coisa avançasse a bom ritmo, isto é, que ninguém comesse um bife a menos. Assentes estes pontos, todos se dedicaram a cortar dois bifes das respectivas nádegas esquerdas. Era um espectáculo glorioso, mas que dispensa mais descrições».

Detalhe de importância: assim começa a Snob, editora que absorve a livraria homónima de Guimarães, entretanto arrumada em caixas e tornada nómada pelo Duarte Pereira, com a cumplicidade da Rosa Azevedo. Procura, além de personalidade literária virada para raridades, estratégias outras de financiamento e circulação. Longa vida ao absurdo de editar!

Santa Bárbara, 28 Fevereiro

Perdido nas correrias, nem vi chegar a festa da carne. Não consegui a pausa, apenas o bálsamo de umas quantas páginas editadas por outros. A Anne, da Chandeigne, no meio da confusão da abertura da nova Librairie des éditeurs associés, teve tempo e gentileza para me enviar o encantatório álbum Le Chant du Marais, no qual Pascal Quignard vai de compor, com a ajuda ilustrativa de Gabriel Schemoul, uma perturbadora melodia sobre o desejo e a inveja. Um jovem cantor mata o seu concorrente sem com isso conseguir calar a voz que maravilhava a Paris do século XVI. Ainda parece ganhar com o sucedido, mas apenas o tempo necessário para que a armadilha se estenda em barroco esplendor. Schemoul põe a passar, em baixo contínuo, uma corrente de naturezas mortas, flores e raízes, restos, aqui um peixe, pequenos seres obreiros da decomposição, mariposas, ali um crânio. O fluxo passa por construções de carpintaria absurda, cruzamento de instrumento de tortura com exercício de geometria descritiva. Poderosa metáfora, a inveja feita máquina que se alimenta dos restos mortais do desejo.

Nestas águas navega também «O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja», assinado pelo director do Hoje Macau. (Hesitei em escrever nestas páginas sobre ele, evitando mal-entendidos talvez morais. No espírito do diário, entendo dever obediência apenas aos apetites do dia, pelo que). Qual contador, são inúmeras as gavetas, portas, passagens e compartimentos secretos deste poderoso romance disfarçado de histórico, que fervilha de ideias. Pisando o chão do milenar confronto entre metades do mundo, possui como núcleo o projecto católico, centrado em Macau, de um arquivo de confissões destinado a facilitar o entendimento dos males do mundo. Dele se extrai caso exemplar, este de Vasques. Com ele andaremos por Coimbra, pelo desejo de partida, baloiçaremos em caravelas, instigaremos motins, conheceremos o exótico, o delírio, mas sobretudo o fel pestilento da inveja. Vasques rouba manuscrito de Camões e por ele se deixa devorar em crescendo. «Aquela obra era demasiado genial para lhe ser permitida a existência. Nós, os mortais, não aguentaríamos viver à sua sombra. Destruí-la seria um acto humanitário, uma bondade digna do grande amigo do Homem.» O achado desta narrativa, a pimenta desta viagem encontra-se na construção fantasmática de Camões, que nunca aparece estando omnipresente, magnífica e tóxica paisagem. Por instantes desfaz-se em volutas de perfume, quase sempre se ergue tornado arrasador. Causado sempre por aquele que em seu escravo se converteu. A inveja faz de nós escravos necrófagos.

Biblioteca Pública, Ponta Delgada, 2 Março

«Amem a noite os magros crapulosos,/ E os que sonham com virgens impossíveis,/E os que se inclinam, mudos e impassíveis,/ À borda dos abismos silenciosos…»

O lançamento da Poesia Completa de Antero, na sua terra natal, aconteceu intenso por via do atentíssimo Luiz Fagundes Duarte, pelo olhar esclarecido de Leonor Sampaio, pelas leituras de Nelson Cabral, e as versões criadas por Ana Paula Andrade para a voz dos alunos do Conservatório Regional. Mas não consigo esquecer a carta. A Biblioteca, pela mão de Iva Matos e de Margarida Mota Oliveira, preparou pequena mostra de manuscritos e primeiras edições. E nela brilha com a luz do enigma uma simples missiva dirigida, como hoje, uma quinta-feira, «á noite», ao seu médico. «Peço-lhe o obséquio d’uma nova visita sua, amanhã, por qualquer hora que mais lhe convier, desde a uma da tarde até ao anoitecer. Sinto-me cada vez peor e desejaria ser novamente interrogado e examinado.» No dia seguinte, ao anoitecer, suicidava-se não longe daqui. Ajudará este volume a vencer esta morte?

«Eu amarei a santa madrugada,/ E o meio-dia, em vida refervendo,/E a tarde rumorosa e repousada.//Viva e trabalhe em plena luz: depois,/Seja-me dado ainda ver, morrendo,/O claro sol, amigo dos heróis!» (de Mais Luz!)

8 Mar 2017

O que tem a Primavera chinesa a ver com Picasso? 毕加索的山水画

Pois, realmente o que será?

Vou começar por uma pessoa que quase ninguém conhece

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]uo Xi 郭熙 (1020 – 1090) foi um pintor chinês shanshui que viveu durante a Dinastia Song do Norte. Era um cortesão, um literato, um pintor culto que desenvolveu um sistema incrivelmente detalhado de pinceladas distintivas. Este sistema veio a revelar-se importante para artistas que vieram depois dele.

Guo X- “Árvores velhas, distância nivelada” (1080)

O que é uma pintura Shanshui. As pinturas Shanshui retratam montanhas e temas aquáticos e implicam um grande rigor na criação de um equilíbrio quase místico entre uma série de requisitos complexos, a composição e a forma. Todas as pinturas shanshui devem ter três componentes básicos:

Os Trilhos – Os trilhos nunca devem ser a direito. Devem ser sinuosos como um curso de água. Este truque ajuda a dar profundidade à paisagem conferindo-lhe vários planos. O trilho, ou passagem, pode ser um rio, o caminho que o ladeia, ou um raio de sol que atravessa o céu sobre o dorso da montanha. Prevalece o conceito de nunca criar padrões inorgânicos, mas sim de mimar os padrões criados pela Natureza.

O Limiar – Os trilhos devem conduzir a um limiar. O limiar está lá para nos receber e para nos dar umas especiais boas vindas. O limiar pode ser uma montanha, a sua sombra projectada no solo, ou o seu recorte contra o horizonte. A ideia é que a montanha, ou o que a contorna, sejam definidos claramente.

O Coração – O coração é o ponto focal da pintura e todos os elementos devem conduzir-nos a ele. O coração define o significado do quadro. Cada quadro deve ter um único ponto focal e todas as linhas desenhadas devem levar-nos directamente para lá.

Uma verdadeira pintura shanshui não deve representar a paisagem que o pintor viu, mas sim a paisagem que o pintor “pensou”. Ninguém quer saber se as cores e as formas do quadro são parecidas com a realidade. A pintura shanshui vai contra as ideias feitas sobre o que um quadro deve ser. Os quadros não são uma janela aberta aos nossos olhos, são uma janela aberta à nossa mente. A pintura shanshui é um veículo para a Filosofia.

Guo Xi – “Primavera Antecipada” (datada de 1072)
Colecção do Museu do Palácio Nacional, Taiwan

Uma das obras Shanshui mais famosas de Guo Xi é a Primavera Antecipada, datada de 1072. Nela podemos ver as técnicas inovadoras na criação de múltiplas perspectivas, que ele designava por “ângulo da totalidade”, mas que também ficou conhecida por “Perspectiva Flutuante,” uma técnica que faz deslocar o observador e o seu olhar. As montanhas de Guo e os seus cursos de água primaveris são luminosos e sedutores como um sorriso…

O jardim do Templo Ditoku-ji em Quioto, construído originalmente em 1509, é uma cópia viva das pinturas de Guo Xi, inspirado na estética da Perspectiva Flutuante. Para apreciar cada canto e cada pedra do jardim, o visitante deve deslocar-se à sua volta e mudar de posição. Aqui, o jardim passou a ser um modo de vida.

Muitos anos mais tarde, quando ainda estava na China e andava no Liceu, vi pela primeira vez rostos e corpos femininos de Picasso e aí compreendi, de repente, o significado do “ângulo da totalidade” de Guo Xi.

8 Mar 2017

Os 37 anos de Fantasporto

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá a terminar o FANTAS’2017 que nesta edição anunciou como linha de programação O CINEMA DOS NOSSOS TEMPOS.

À cidade do Porto chegaram filmes do Laos, Albânia, Egipto, Israel, Argentina, Brasil, EUA, entre outros países e cinematografias.

Assume-se como Festival de cinema generalista com especial atenção ao cinema de género. Dá cobertura à grande extensão de filmes produzidos na área do Fantástico.

Não deixa de ser um forte sinal do momento que o mundo vive, a ligação forte ao real em muitos dos filmes programados nesta 37ª edição.

O Fantasporto é um dos mais importantes festivais de cinema Fantástico no mundo, género que dá cobertura a filmes com modelos de produção e estratégias narrativas diversas que vai da ficção científica, à comédia, terror, a filmes “zombies”, ao “gore”, entre outras tipificações e, como sempre, nesta relação própria do cinema consigo mesmo, aos filmes híbridos em que os subtemas do género se misturam, recriam, apoderando-se de códigos que aparentemente lhe eram exteriores.

Antes de, em forma próxima de breves notas de diário traçar um retrato a esta edição, sem pretensão de objectividade de jornalista científico, a fazer no próximo artigo, segue um texto onde, por voz própria, a comunicação do Festival nos conta como em 1981 esta aventura que se chama Fantasporto começou.

Como nasceu o Fantasporto?

À mesa do café Luso, na praça Carlos Alberto, a cinquenta metros do que foi durante muitos a catedral do cinema no Porto, o cinema Carlos Alberto, na altura com o nome pomposo de Auditório Nacional Carlos Alberto. Na mesa estavam a Beatriz Pacheco Pereira, o Mário Dorminsky, e o pintor José Manuel Pereira. Os primeiros queriam mostrar filmes, o último, prematuramente falecido, queria expor a sua pintura. Dois anos depois junta-se à equipa o António Reis.

O primeiro apoio financeiro foi do Instituto Português do Cinema, hoje ICA, no montante de 15 contos.

Das “majors” ao cinema independente? Ou o sentido foi inverso?

Desde o início o Fantasporto mostrou as maiores produções europeias, filmes norte americanos de “majors”.  Em 1981, apresentou a primeira longa metragem de animação chinesa.

Sem rejeitar filmes de baixos orçamentos, produção independente ou experimental, o Fantasporto é desde o inicio uma montra de técnicas de vanguarda. Muitos dos filmes apresentados são Óscares, Goyas, Césars, Baftas.

Para além da programação directa junto das “majors”, o Fantasporto tem uma colaboração privilegiada com produtores e distribuidores portugueses.

Porquê o género Fantástico?

Na altura, em 1981, o género era quase desconhecido. O festival nunca foi apresentado como exclusivamente fantástico.

O “Blade Runner”, só foi produzido em 1982, um ano depois da primeira edição do Fantasporto, onde teve  ante estreia europeia.

A recessão económica impunha, então,  uma fuga à realidade. O pós-25 de Abril permitia a abertura do cinema do resto do mundo a Portugal, já não tínhamos a censura.

Tínhamos a ideia de que havia um enorme potencial do imaginário a explorar, desde Murnau aos clássicos do neo-romantismo francês. Havia ainda o Maravilhoso na literatura, na pintura, nos filmes de todos os tempos. Os cruzamentos com outras artes começaram também logo na primeira edição do festival

Georges Méliès e todos os realizadores do passado, e em todos os países, tinham favorecido a imaginação através da fantasia. Nem Akira Kurosawa nem Manoel de Oliveira ( “O Estranho Caso de Angélica”) escaparam à moda.

Hoje as grandes produções  mundiais ainda favorecem o género: “ O Senhor dos Anéis”, “Matrix”,  “ Avatar”, “Harry Poter” , etc, são a prova que todos conhecem.

Festival generalista agora, porquê?

Porque, depois do surto dos anos 80, o cinema Fantástico sofreu uma crise qualitativa, e havia que manter o nível da programação. O festival alargou os seus horizontes para todas as temáticas, no que foi seguido pela maioria de festivais do fantástico na época. Foi criada a Semana dos Realizadores, inicialmente só para os primeiros e segundos filmes.

Pedro Almodôvar foi visto pela primeira vez em Portugal com o seu filme “Matador”. Em 2002, perante a crescente importância do cinema oriental, surgiu a Secção Oficial Orient Express.

Hoje, muitas dos filmes vistos nas retrospectivas são inéditos em Portugal, e resultam de uma programação organizada em colaboração com os Ministérios da Cultura e Institutos do Cinema dos países envolvidos.

A promoção de um evento cultural

O Fantasporto é uma referência no mercado do Filme no Festival de Cannes, com um stand próprio onde divulga o festival e o país. Esta acção no maior festival de cinema e mercado do mundo, inclui uma intensa campanha nas revistas ; “Variety, ( que inclui o Fantasporto na lista dos 25 melhores festivais do mundo e envia correspondente), é apenas um exemplo, televisões, distribuidores , etc.

O festival tem das maiores coberturas mediáticas de eventos nacionais.

Uma comédia antes de adormecer

A noite de ontem terminou com a projecção no grande auditório do filme  Night of Living Deb

Uma comédia romântica e um “apocalipse de Zombies”, parece ser uma mistura com sucesso improvável, se a isto se misturar uma leve crítica de costumes e denúncias ambientalistas, ainda o parecerá mais.  Mas é isso que acontece neste filme de 2015, produção dos EUA, realizado e escrito por Kyle Rankin.

A actriz Maria Thayer, tem aqui uma interpretação divertida, fresca, capaz de levar ao riso o mais sorumbático dos espectadores.

O filme dura 85 minutos. Na verdade os zombies são uma figuração com dimensão de epidemia, todo o interesse do filme resulta da interpretação da actriz e do actor com quem contracena, este a protagonizar o cliché do “bonzão” e, no caso, filho de família de elite ambientalmente contestatário. O pai é um poderoso homem de negócios, controla a água da cidade, convive com as altas esferas do poder político executivo. Tudo é caricatura, um jogo descarado e frontal que procura a cumplicidade do espectador num humor vários furos acima do usualmente praticado no cinema que se assume, sem complexos, como entretenimento e complemento à venda de pipocas. É isso que torna o filme interessante e eficaz, capaz da surpresa do riso.

7 Mar 2017

Os dias em que não fui eu

[dropcap style≠’circle’]E[[/dropcap]star doente quando se é jovem, salvo raras excepções, não é o mesmo que estar doente na meia idade ou numa idade ainda mais avançada. Chegados aqui, aonde a redução a nada se torna visível e não um fruto podre da imaginação, a doença opera como um despertador à segunda-feira, não para o início do dia, da semana, para a interrupção abrupta do descanso do fim de semana, mas para o conhecimento de que a nossa hora de acabar está a chegar. A morte começa a pesar, a esmagar-nos o peito, de tanta angústia, de não vermos outra possibilidade que não a de irmos morrer. E não se trata de um irmos morrer um dia, mas de irmos morrer em breve, muito em breve, ou pelo menos essa possibilidade assume uma concretude que nunca antes tinha assumido.

Ao longe, a morte não assusta. Em alguns casos, o sofrimento assusta muito mais do que a morte. Mas a condição de se ser um sofrimento agudo é igual a estar vivo dentro da morte e, por isso mesmo, a imagem do inferno. E aqui pretende-se ler apenas acerca da morte que surge como horizonte próximo, que nos surge como a única possibilidade dos próximos dias, e que é angústia no seu máximo esplendor. Por outro lado, uma doença grave pode transladar um jovem para uma situação à beira da morte, invertendo a idade e a chamada ordem natural das coisas. Uma doença grave, que nos põe realmente diante da morte, isola-nos do mundo e de nós mesmos, tal como até aí o conhecemos e nos conhecemos.

Tudo isto vem a propósito de um pequeno livro, enquanto objecto (20 poemas, e nenhum excede uma página), mas grande quanto ao resto, XX Dias, de Rui Miguel Ribeiro (Averno, 2009). No final do livro, tem uma pequena nota, que diz: “Estes poemas foram escritos durante o meu internamento no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, Francisco Gentil, na UTM [Unidade de Transplante Medular], entre Março e Abril de 2009”. Pressupõe-se, então, que os vinte poemas do livro correspondem aos vinte dias de internamento. E a indicação final mostra que o autor quis que tivéssemos esta informação adicional aos seus poemas, que soubéssemos das condições que levaram à escrita dos mesmos. Quem precisa de transplante de medula tem de ficar isolado num quarto, e os médicos têm de baixar o seu sistema imunitário ao mínimo possível, de modo a que a medula nova não seja rejeitada pelo corpo. E mesmo que se trate de um auto-transplante, o risco é enorme, devido à interrupção do sistema imunitário. E o primeiro poema diz-nos isso mesmo, de um modo melhor, à página 7:

I – PRIMEIRO

Primeiro tiram-me tudo.

Depois começou a destruição.

Corre o estore sobre a marca 

cíclica do relógio.

Entre o passado, pesadas horas

e restos que teimam em arrastar

as suas correntes; e o futuro, esse

silêncio escuro que nada me comunica

e insiste na sua própria tangencia.

Lenta passagem, fundo de um poço

Sem fundo que aqui invade a matéria,

o primeiro nome do sofrimento.

Deste lado da morte, nada mais sou

do que a melancolia que a nada conduz.

A espera de um outro nome para depois.

“Deste lado da morte” é uma expressão pujante, que aqui não assume o lugar de outro, isto é, aqui não assume o lugar de uma figura de estilo, mas a literalidade da situação daquele que escreve. Este lado da morte é, por enquanto, a espera. E a espera não assume aqui nenhuma virtude, contrariamente aos ditos populares, mas antes nos transforma, numa situação destas, em instrumento. Numa situação destas, não passamos temporariamente de um instrumento para uma operação. Não são apenas os procedimentos cirúrgicos, médicos, que são um instrumento para nos reporem a saúde, nos reporem no caminho que usualmente trilhávamos, nós mesmos somos instrumento de nós mesmos nesse procedimento. Deitado no escuro de uma cama, no escuro da vida, servindo a procedimentos que desconhecemos, rapidamente nos damos conta de que não nos pertencemos, que somos “uma coisa” dos outros, momentaneamente (espera-se) uma coisa dos outros, pois “tiram-nos tudo”. E tiram também os sonhos, “que chegam cada dia mais pobres” (p. 20). Mas leia-se o terceiro poema, à página 9:

III – O SILÊNCIO

A morte dos sonhos e a solidão

são medidas e pesadas como todas

as minhas excreções, de 8 em 8 horas.

Neste breve parêntesis de químicos

entre a febre e as carências

que amparam o pensamento

cai sobre o dia uma luz sem ruído,

sem outro objectivo que o silêncio,

esse mapa do futuro isento da morte,

que me faz contemplar – Hoje começou a primavera.

Este “breve parêntesis de químicos”, é também o breve parêntesis instrumental, o breve parêntesis em que a consciência assume ou tenta assumir uma relação fenomenológica com aquilo que se está a passar consigo. Por isso, quando aqui se escreve “carência” – as carências / que amparam o pensamento –, escreve-se aquilo que se fez, que se viveu de uma felicidade que, à luz do escuro da cama, parece ter sido perfeito, e agora tem aquele sabor azedo de nunca mais. Todas as noites em que o riso, em que as palavras, em que as mãos acertaram na perfeição com o outro, chegam agora aqui com a profunda dor dessa amálgama de “ter sido” e de “nunca mais”. É assim que sente aquele que está dia após dia, noite após noite enterrado numa cama de hospital à espera de um milagre. E o que é um milagre? É, adivinha-se aqui neste livro, que o mundo volte até nós de maneira certa. O poeta escreve assim, à página 15, na última estrofe do poema IX, A LUZ: “É breve a sua presença [da luz]. / Uma fronteira entre distancias / onde a morte é duração, / a espera do mundo de maneira / incerta. A noite dentro do corpo.”

Se tínhamos já visto em livros anteriores, o de Miguel Manso (Supremo 16/70) e o de Vasco Gato (Fera Oculta), fazer-se um livro através de um outro apenas, o do avó que se entregou à morte, no caso do primeiro livro e o do filho que está para nascer, no caso do segundo livro, aqui Rui Miguel Ribeiro faz de si mesmo um outro, acerca do qual escreve também ele um livro (e que na realidade é anterior aos outros dois referidos anteriormente). O livro, no fundo, relata “vinte dias em que não fui eu”, pois esta é provavelmente a única experiência possível de não sermos nós mesmos, em vida. E é isso mesmo que o poeta se dá conta, e regista, daquele modo particular, que é o da grande poesia. Leia-se, neste caso, o poema “XI – AS NOITES” (p. 17):

             Noite após noite

apenas posso confiar na sua descida.

Este jogo de amanhãs

em peso das horas

em que procuro uma harmonia.

Sob esta luz contínua

não tenho um reflexo

há dias que não vejo o meu rosto.

             A cama marca o calendário

fora de mim, débil raiz

que se alimenta da contagem,

as semanas, a roleta que jogo

com o futuro e as suas representações.

Há dias que não vejo o meu rosto.

Hoje dizem-me que atingi a aplasia.

Terei viciado o jogo? A vida?

Este parece-me um poema de excelência acerca desta experiência singular, de algum modo impossível, de sermos fora de nós. Ou melhor: de não sermos nós e continuarmos a viver; e não no sentido do binómio autenticidade-inautenticidade, mas na sua literalidade. Cada notícia dada ao fim do dia e no seu início assume as proporções de terramoto. A voz do médico, do especialista, é a voz do oráculo. E bebe-se aquelas palavras como se bebe a própria vida. E o oráculo é-nos transmitido de um modo profissional, de um modo esterilizado, como tudo naquele quarto, como se nós não fôssemos uma existência, mas um peça de um qualquer jogo desconhecido. As palavras que o “especialista” pronuncia “você está com aplasia” (ou outro modo igualmente esterilizado de dizer) são ditas como se dissesse “se jogar esse peão, como-lhe o cavalo e dou-lhe xeque mate em dois lances”, mas aquele que ouve as palavras, ouve-as como se o infinito lhe esmagasse o peito e estivesse a ver-se a si mesmo a morrer. São dois os humanos, um de pé a falar e outro enterrado na cama a ouvir, mas são dois mundos completamente distintos. O médico-especialista afastar-se-á da cama, do quarto, regressando à sua vida normal, eventualmente levando a outro quarto as mesmas palavras “você tem uma aplasia”, tomando um duche em seguida e indo jantar, com a mulher, com amigos, ou simplesmente sozinho, entretido com o seu telemóvel ou com uma televisão. O poeta, enterrado na cama, ficará com o não sentido da existência, com o infinito a esmagar-lhe o peito, segundo a segundo. O mundo torna-se, ainda mais do que já era, um escuro infinito e inabitável. Terminemos esta viagem com o poema “V – OS LIVROS”, de Rui Miguel Ribeiro:

Vêm castigados e doridos.

Também eu penso desde a cama

em como lhe corresponder.

Ao chegar das horas vejo

no seu silêncio de esterilização

a resistência que mantém a sua forma;

todos os lugares a que daqui posso chegar,

já que o tempo é a única companhia.

Vêm paliativos e não esperam mudanças;

concedem os seus mundos e sonhos

de futuro. A morte a favor do passar dos dias.

7 Mar 2017

A sabedoria do cão

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á poucas figuras históricas pelas quais nutra o interesse e a admiração que nutro por Diógenes, o Cínico. Filósofo contemporâneo de Platão, Diógenes cunhou o termo pelo qual identificamos uma particular disposição para a vida, i.e., o cinismo, um étimo que significa, literalmente, “aquele que vive como um cão”. E era assim que Diógenes vivia: alimentando-se de restos, vagueando sem rumo pela cidade e dormindo dentro de um barril. Desprezava a autoridade, as honrarias e a riqueza; deambulava pela ágora com uma lamparina acesa e, quando lhe perguntavam que fazia ele com uma lanterna em pleno dia, respondia: “procuro um homem”. Não era simpático para com os seus contemporâneos: de Platão dizia que este o aborrecia de morte, dos sofistas, que eram os demagogos que a populaça gostava, aos retóricos, que discursavam pela reputação, chamava-lhes “poços sem água”, aludindo à preferência destes pela forma do discurso sobre o conteúdo.

Alexandre Magno, o homem que fez Júlio César chorar desconsoladamente quando este leu a biografia do primeiro – não terei eu razão para chorar, disse Júlio César aos amigos, quando Alexandre com a minha idade já tinha conquistado tantas nações e eu sem fazer nada digno de menção? – quis conhecer Diógenes. Desse encontro – entre o homem que tinha tudo e o homem que nada queria – resultou um dos episódios mais comentados da história da filosofia. Alexandre terá dito a Diógenes: Diógenes, eu sou Alexandre Magno, pede-me o que quiseres e eu dar-to-ei, ao que Diógenes terá respondido, numa das versões, Alexandre, não me tires aquilo que não me podes dar, e, noutra, mais comummente difundida, o que quero, Alexandre, é que saias da minha frente, pois que me tapas o sol. Alexandre terá depois confessado aos seus generais incrédulos que, se não fosse Alexandre, gostava de ser Diógenes.

A história de Diógenes sempre me fascinou. Tanto que, numa peça de teatro que escrevi sobre a Macha, uma das personagens das Três Irmãs, de Tchekhov, o velho cão aparece como personagem. Não raras vezes, quando ando por Lisboa e pelas suas tascas, encontro pessoas que, aparentemente, vivem como Diógenes, cada uma delas regressando do vinho barato aos barris de cartão onde improvisam um abrigo contra a noite e contra a escuridão do mundo. Quando atalhamos conversa, dou por mim à procura do Diógenes que pode haver neles, da ironia cortante do velho cão, do desprezo que caracterizava a forma como Diógenes encarava a vida e as coisas com que a polvilhamos para lhe dar sentido, da sabedoria através da qual ele colocava os seus interlocutores no sítio, muitas vezes um sítio que estes não conheciam mas que lhes era, afinal, adequado.

O que encontro, invariavelmente, são histórias de violência, histórias desconexas de vidas que a certa altura se perderam do norte magnético pelo qual se rege a sociedade dos muitos, o que encontro é gente vergada pelos requisitos da vida que, por mau jeito ou inépcia, nunca foram capazes de reunir. E talvez seja uma coisa tonta, esta de procurar a sabedoria canina de Diógenes no Cais do Sodré, tão tonta, porventura, como ir no safari do sentido da vida para as margens do Ganges, mas a verdade é que continuo a pensar na possibilidade de dar com um destes muitos párias com os quais nos cruzamos, de lanterna na mão em pleno dia, no Largo de São Paulo, à procura de um homem.

6 Mar 2017

Histórias do Fantas

37º Festival Internacional de Cinema do Porto

The  Citizen

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ilme  de  Roland Vranik, 117’, Hungria,  também seleccionado para os ecrãs do Festival de Berlim,  é de uma colagem forte ao real e ao tema da migração. A relação do eu com o outro, o reconhecimento da alteridade como processo de descoberta do eu. A Europa, espaço civilizacional e território organizacional,  é olhado como desejo e vontade de pertença  pelas populações que sofrem na dureza do quotidiano as actuais guerras da reconfiguração da ordem internacional que ocorrem no lado sul do mediterrâneo.

É com a ideia de identidade e pertença a um território com soberania própria, a nação, no caso a Hungria, e o processo de aquisição do estatuto de cidadão para quem chega de fora movido pela urgência da sobrevivência e o sonho Europa, que Roland Vranik, filma “The Citizen”.

Na sinopse do filme pode ler-se: um homem negro tenta durante anos tornar-se cidadão da Hungria

Filme de grande e aparente simplicidade, transporta-nos à realidade que sabemos existir através dos espasmos noticiosos dos prime time das tvs.

Esta realidade, a dos campos de refugiados e da guerra nos países no lado sul do mediterrâneo  é permanente em todo o filme. Em campo, seguimos as rotinas de um quotidiano banal de um homem da Nigéria.   O trabalho de segurança no supermercado de bairro de uma organização transnacional de distribuição alimentar, a vida no apartamento que partilha com um amigo, a vontade e o esforço para a obtenção do documento que confere o estatuto de cidadão húngaro.

São várias as dimensões com  relevância na inteligente construção fílmica desta obra, uma, é a eficácia com é trabalhada a percepção da presença do fora de campo enquanto elemento da materialidade narrativa.  Nunca, em nenhum momento, é-nos dado a ver qualquer campo de refugiados, ou imagens das cidades destruídas nos conflitos da guerra, nem emigrantes em movimento.  O realizador sabe que não é preciso, já todos as vimos. O que é preciso, é conhecer o outro, viver com ele a vida, o seu quotidiano de humildade, esperança, revolta. A força da dignidade do homem.  A vontade de uma vida comum, banal, pacífica, sem errância, onde a dor pode ser, se não esquecida, atenuada e tolerada no movimento repetido dos afazeres do quotidiano sem acessos constantes de intoleráveis imprevistos.

O filme mostra-nos a verticalidade, a dignidade do outro na submissão por vontade ao processo burocrático e Kafkiano para a admissão ao lugar de cidadão húngaro.

Essa vontade e a dificuldade da sua concretização levam o protagonista ao encontro com uma professora reformada, uma mulher que vive a sua família num quotidiano normal, marido e dois filhos, numa vivenda em rua tranquila com velhos castanheiros nos passeios. É a irmã da gerente do supermercado onde o herói trabalha como segurança.

Este encontro é toda uma sequência de cenas de uma rara e revolucionária beleza trazida à centralidade do filme.  O amor, a descoberta do outro, o pré-conceito, o racismo,  o ciúme e a posse,  a solidariedade,  o afecto, a aceitação da condição de diferente do outro,  a capacidade da alegria e a vontade de servir, proteger, amar .

A raridade é todo se passar numa quase total ausência de espectacularidade, a um ritmo que torna visível a interioridade dos sentidos e sentimentos com os quais se reconhece a especificidade do humano.

Olhar é este filme é também verificar o rigor e eficácia da sua construção narrativa. Logo no início, aquele que partilhava com o herói o apartamento parte para a Áustria. Vai para um novo trabalho. Pouco depois, uma mulher, jovem refugiada do Irão chega.  Não vem só. Está grávida. Sem papéis e neste contexto em que o acesso à Europa é mais do que um oceano de burocráticas dificuldades, o apartamento é uma minúscula ilha abrigo. O herói torna-se parteiro e o apartamento maternidade. A criança é uma bela menina a quem a mãe dá o nome da avó.

Os exames e as reprovações para o acesso aos papéis que conferem a cidadania sucedem-se. Para um negro é ainda mais difícil. O processo pode demorar 8 a 15 anos.

A mulher mãe de família, professora reformada, descobre novamente a paixão, muda e é expulsa de casa.  O herói é desancado, batido pelo pai e filho da professora que se tornou amante.

O desejo de posse, ciúme, a vontade de apropriação do outro, fazem com que aquela que por vontade e contra hábito instituído,  ousou amar o negro emigrante, informa a polícia da existência da bebé e da mãe.  São deportadas. Finalmente pelo correio chega a carta que confirma a cidadania do herói.

O negro, que lutou para que lhe fosse reconhecido o direito de ser igual , pela admissão à comunidade territorial de pertença, é agora cidadão húngaro. Não consegue aceitar o acto que, para a professora reformada foi de amor, e para o herói, denúncia e violência. O agora cidadão húngaro abandona o país. Parte para a Áustria onde o amigo lhe encontrou novo trabalho.

Lines

Do realizador Vassilos Mazomenos, um grego que também é produtor e argumentista, foi exibido o seu mais recente filme, cujo título original é Grammes.

O realizador é fundador e director da Horme Pictures. Este filme é a sua oitava longa metragem e os seus filmes já passaram por festivais internacionais;  Montreal, Cairo, Puchon, Sitges, Chicago entre outros.

Filme rodado em 2016, segue a abordagem estetizante e procura de uma linguagem plástica com que o realizador tem vindo a afirmar a sua carreira.

Vassilos,  tem neste filme como tema e estética cinematográfica, as consequências da crise grega em pessoas de diferentes condições sociais. Organiza a estrutura em capítulos; teatro, fábrica, escritório, rua, política, contando histórias pessoais de vivências que se desmoronam em resultado do tempo económico , financeiro e social, vivido na Grécia.

O eixo que une narrativamente o filme é uma linha telefónica de atendimento SOS para pessoas em situações de enorme fragilidade. A linha oferece exclusivamente, apoio psicológico, basicamente a disponibilidade de ouvir e, em todos os casos, é a ausência de fundos financeiros a razão do estar em crise.

Com 85 minutos, montagem de Thanos Koutsandreas, fotografia de Giorgos Papandrikopulos, o filme, com momentos de particular interesse pela composição; enquadramentos, mise-en-cène, direcção de arte, décores,  cuidados e que reflectem a abordagem estética do realizador ao seu cinema, causa alguma  interrogação e perplexidade que no entanto não parece ser suficiente enquanto abordagem para a dimensão social, cultural e económica que se propôs tratar.

Veremos o que dirá o júri do Festival.

6 Mar 2017

37.º Festival Internacional de Cinema do Porto | “O ruído não mata mas o medo sim”

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 1 de Março, 16h30, o ecrã do grande auditório Manuel de Oliveira no Teatro do Rivoli abriu-se para o formato 2:39.1. A projecção de “Comboio de Sal e Açúcar”, filme de Licínio de Azevedo, com argumento a partir do livro com o mesmo nome que o mesmo autor escreveu, começa. É uma viagem iniciática e transformadora de 93 minutos, onde a contenção e a exuberância do continente África são expressão da voz humana sitiada em corpos e almas em guerra com as trevas e as visões de luz.

Em 1988, a independência de Moçambique, a afirmação do direito de soberania e consequente anulação do estatuto de território colonizado pelo império português desde o séc. XV, tinha 13 anos. No entanto, o mundo da geopolítica, dividido entre livre e marxista, mantinha em África uma guerra pelo poder. É em Novembro de 1989, com a queda do muro de Berlim, que se precipita o fim de uma visão do mundo divido em dois blocos ideológicos e políticos.

Em 1988, em Moçambique, a guerra colonial continuava, eram outras as potências mandatárias, é sabido, e o nome dado à guerra outro.

Moçambique está em plena guerra civil. A viagem no comboio puxada pela locomotiva D 67, que liga Nampula ao Malawi, é uma oportunidade de comércio para as mulheres com a sabedoria da exigência da sobrevivência num mundo de terror e delinquência com força normativa. Trocam sal por açúcar e garantem desta forma a subsistência das famílias. Uma viagem a 5km/h numa linha sabotada, que expõe e torna vulnerável todos aqueles que a fazem, uma viagem em que se confronta a esperança e o pesadelo da guerra.

Lorenzo Esposito, programador do Festival de Locarno, festival em que o filme esteve seleccionado, escreveu: “Um relógio que já não marca o tempo. A câmara mergulha no cais de uma estação perdida. Um grande grupo de pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, ali se sentam em silêncio à espera. (…) trabalhadores, observados de longe por um grande contingente militar trabalham para fortalecer o comboio que parte. (…) um Western africano. Estamos a bordo de um comboio de amor e guerra, em direcção ao Inferno ou ao Céu, onde as mulheres têm que se defender da raiva dos soldados, apesar de algumas se apaixonarem por eles e darem à luz os seus filhos (…) o caminho é longo e perigoso, mais de 700 quilómetros que tresandam a sangue e a morte, interrompidos por sabotagens contínuas: assaltos por milícias ao serviço de senhores da guerra e ataques suicidas por tropas sem nome. (…) Os picos de violência, as mortes mais dolorosas e até os duelos pareciam ansiar fugir para fora do ecrã. São restringidos, não por serem anti-espectaculares, mas para contar a história da dignidade melancólica de um povo roubado dos seus sonhos e esperanças.”

Sim, Western africano, tal como “Apocalypse Now” (Coppola, 1979) é um a Western no Vietname, ainda que aqui sejam bem menos os planos americanos (o plano western por definição), embora sejam claramente assumidos no momento do combate final entre o herói, o tenente Taiar, que mais que a guerra sonha a paz, a agronomia e a tranquilidade de uma vida normal em família como modo de vida, e o bandido, o Alferes Salomão, que tornou a guerra sem lei a marca do seu carácter.

É Licínio de Azevedo quem diz sobre estes dois personagens que “o Taiar é um tenente com mentalidade moderna, científica, que estudou numa academia militar na Ucrânia, ex-União Soviética, e que tem um pensamento diferente por ser jovem e ter recebido formação fora do país. O seu antagonista é o alferes Salomão, que ganhou a sua patente na guerra. É um grande combatente, mas tem um visão mais fechada. Sente-se dono do mundo, dono das mulheres, do comboio.”

Licínio Azevedo, cineasta formado pelo Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, nos anos que se seguiram à independência, teve como professores Jean Rouch, Godart, Ruy Guerra, é mestre nesta sua assinatura cinematográfica, capaz de uma contenção, de um fechamento dum comboio que se move enclausurado num carril a céu aberto, num jogo permanente de tensão entre a escuridão e o desejo da luz. E não é fácil resistir à grandiosidade da expansão territorial do continente africano, mas Licínio Azevedo consegue permanecer perto das almas dos homens e mulheres, sem que o fora de campo deixe de estar presente no ecrã, não estando. Por vezes, quando a respiração da narrativa o permite, temos um plano geral da exuberância do território africano mas, quase sempre, num trabalho de grande assertividade, são personagens construídos com uma sabedoria de fino recorte, que a câmara nos dá a ver e sentir.

Ainda sobre o universo do personagens, diz-nos o cineasta: “Neste filme há três grupos de personagens: os militares que protegem e controlam o comboio, entre os quais há os bons e os maus; os trabalhadores dos caminhos-de-ferro que permitem que o comboio siga o seu caminho e que são a intelligentsia; e os civis, sobretudo mulheres, que viajam e que representam a luta humana mais básica: a sobrevivência. É como um microcosmos onde coexistem muçulmanos, cristãos e animistas, numa atmosfera de traições, ataques e morte, mas também de esperança renovada. ‘Quando o sol nasce todas as esperanças se renovam’, já dizia o meu velho Hemingway. E assim se vai mantendo o equilíbrio, porque dentro do comboio todos os passageiros arriscam as vidas. Durante a guerra temos tendência a diferenciar os bons e os maus, mas isso nem sempre é fácil. Aqueles que atacam o comboio são terríveis mas, por vezes, aqueles que o deveriam proteger são piores.”

Há personagens outros, bem desenhados, magistrais, o Caravela, uma espécie de assistente de maquinista, padre e febril nas suas preces religiosas, ou comandante, carismático, animista, líder incontestado.

O filme, uma co-produção entre Portugal, Moçambique, França e Brasil, chega ao Fantasporto após selecção em Locarno e um prémio no Egipto. Veremos o que o 37.º Festival Internacional de Cinema do Porto lhe pode oferecer.

5 Mar 2017

Blanche Lachmann, a tal Madame Paiva

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada, com o título Boémio macaense suicida-se em Paris, focamos a vida de Branca Lachmann através de dois autores, um romancista, Camilo Castelo Branco, que diz ser ela uma polaca de nascimento e outro, o historiador Padre Manuel Teixeira, que a refere como “filha bastarda do Grão-duque Constantino, da Rússia, sendo uma judia polaca” e “favorita do Sultão de Constantinopla, espia da Alemanha e veio a casar com o alfaiate Francisco Hyacinthe Villoing”. É da tradução deste padre historiador, de um artigo escrito por Peter Flectwood-Hesketh e publicado na revista Country Life de 25 de Setembro de 1969, que complementamos com informações mais detalhadas o anterior texto.

“Ester Paulina Blanche Lachmann nasceu em Moscovo, sendo filha de um pobre alfaiate Martins Lachmann e de sua mulher Ana Maria Klein, judeus refugiados da Polónia. Sobre o seu nascimento aparecem duas datas: – uma, a de 7 de Maio de 1826, dada pelo livro Genealogisches Handbuch der Fürslicher Haüser;” outros, como Frederich Loliée (que em 1914 publicou a relação completa da sua vida), “dão o ano de 1819 – uma diferença de 7 anos”, a qual foi usada por Peter Flectwood-Hesketh. (…) “Aos 17 anos, Teresa – nome que adoptou [somente em Paris] em vez de Ester – casou com Antoine François Hycacinthe Villoing, jovem alfaiate francês tão pobre como ela (ainda que no Handbuch aparece como banqueiro), de quem teve um filho. O jovem casal trabalhava longas horas no rés-do-chão mal iluminado dum prédio de Moscovo. No entanto, Teresa convenceu-se que esta vida não era para ela. Resolvida a alcandorar-se um dia ao pináculo mais elevado da riqueza e do triunfo e fixando uma linha de que nunca mais se desviou, ela, numa bela manhã, lançou-se sozinha para o mundo, abandonando o marido e a sua criança.

Dizem que era dotada duma bela figura, pescoço grego, cabelo espesso castanho-aloirado e olhos soberbos. Com estes atributos, uma inteligência astuta, uma vontade indomável e uma energia quase ilimitada, abriu o seu caminho de capital em capital – Berlim, Viena, Constantinopla – e aí por 1841 chegou à estância alemã de Ems. Aqui encontrou Heinrich Herz, pianista e compositor já célebre, e sentiram-se atraídos imediatamente um pelo outro. Ela tinha 22 anos, ele 35 e depressa Teresa passou a viver com ele como sua <esposa> em Paris, cidade dos seus sonhos, ingressando no seu meio musical e intelectual. Teresa tornara-se, no entanto, uma boa música e com Herz ficaram patronos de muitos jovens profissionais que eram convidados a fazer sua estreia parisiense no salon Herz”. [Heinrich Hertz (1803-1888), um dos mais célebres pianistas e compositores do seu tempo, nascera em Viena, na Áustria, mas adoptou a França como seu país, onde fez a sua vida, sendo professor no Conservatório de Paris. Como na Europa os tempos não eram muito propícios para os judeus, escondeu essa sua origem.]

“Herz estava próspero. Fundou uma fábrica de pianoforte [em 1830], construiu uma casa e um salão de concertos [o salon Herz criado em 1838 na rua de la Victoire, onde muitas vezes Berlioz e Offenbach deram concertos], mas nem os seus recursos bastavam à extravagância de Teresa”, segundo Hesketh. Tal levou Henri Herz em 1848 a “fazer uma tournée na América para recuperar a sua fortuna, deixando Teresa com a criança que tinha dele. Esteve ausente cinco anos e nesse intervalo, os seus parentes puseram Teresa na rua, mas ela levou consigo muitas das suas pertenças”.

Aqui ajustamos tais informações com as de Camilo Castelo Branco que refere, “Ligada primeiro a Herz, pianista célebre, sob a falsa estampilha de esposa, chegou a sentar-se entre as duquesas nos saraus de Luís Filipe. Depois, desvelado o segredo da sua concubinagem, foi expulsa afrontosamente dos círculos também falsamente carimbados de honestidade, e fugiu para Londres, deixando ou levando o pianista”. Compreender-se-á pois a razão dos pais de Herz a terem colocado fora de casa, quando o seu filho se encontrava em digressão pela América e por isso, se desfaz a dúvida que Camilo colocou se terá ou não levado o pianista com ela para Londres. Também o que refere Peter Flectwood-Hesketh sobre o filho que teve de Herz parece ser produto de uma confusão pois este, como mais à frente refere, faleceu em 1862 com 25 anos, sendo assim a data de nascimento a de 1837, logo ainda do tempo em que vivia com o alfaiate. A esse filho [Antoine de seu nome] pagou a educação, apesar de nunca mais o ter visto. Como se pode ler mais à frente nesse artigo, a filha que teve com Herz nascera em 1841/42 e viria a morrer em 1854 com 12 anos. No entanto, há fontes que indicam essa filha, Henriette ter nascido aproximadamente em 1847 e falecido a 1859.

Milionária em Londres

Ainda antes de ter ido para Londres, a senhora Villoing (pois o seu esquecido marido apenas faleceu a 15 de Junho de 1849) retornou à “pobreza, estando demais a mais desesperadamente doente. Teófilo Gautier visitou-a e ela ameaçou suicidar-se; mas prometeu que, se recuperasse, havia de construir um dia a casa mais linda de Paris. Outros foram também em auxílio de Teresa. O jornalista Jules le Comte ajudou-a a ingressar no mundo da moda, ao passo que a sua amiga Ester Guimont apresentou-a a Camilo, famoso modista, que, pressentindo uma cliente promissora, colocou à sua disposição toda a sua indumentária”, segundo refere Peter Flectwood-Hesketh.

Agora sim, em Londres sozinha no seu camarote de ópera, “ameaçada por uma segunda catequese de fome, ajuntou a sua fulminante formosura um vestuário de espaventos, sentou-se langorosamente num camarote de Covent-Garden”, como refere Camilo Castelo Branco. “Ornamentada resplendentemente, atraiu depressa a atenção da jeunesse dorée, tirando bom proveito dos amorosos sucessos. Com a confiança restaurada e os cofres repletos, regressou a Paris em 1848”, como refere Flectwood-Hesketh e com ele continuando, “Surgindo novamente como figura conspícua na ópera, Teresa tornou-se objecto de lisonja na imprensa ligeira e entre os seus admiradores não havia nenhum mais devoto do que o jornalista napolitano Angélico Florentino”.

Com a morte do marido, que se estabelecera num recanto de Paris sem nunca interferir na vida dela, faltava agora apenas a Thérèse um título para lhe dar a dignidade, digna da sua opulência. Encontrou tal em Albino Francisco de Paiva de Araújo, que Flectwood-Hesketh diz ser “marquês de Paiva Y Aranja com quem se casou em Passy em 5 de Junho de 1851.”

Mas quem era este macaense, que Thérèse Esther Blanche Lachmann conhecera em Baden-Baden? Os jornais portugueses transcrevendo parte de “notícias, com outras particularidades romanescas e algumas anedotas um pouco boulevardières, revelam não terem obtido perfeito conhecimento do português que deu canonicamente o seu apelido Paiva àquela mundana”, como refere Camilo Castelo Branco.

5 Mar 2017

Catarina Santiago Costa: “Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina”

[dropcap]T[/dropcap]ens dois livros de poesia editados, ambos pela Douda Correria e ambos em 2016, Estufa e Tártaro (acerca do qual se escreveu recentemente aqui no Hoje Macau). Consideras que são livros diferentes, isto é, com estéticas diferentes, ou antes pelo contrário, há uma continuidade do primeiro livro no segundo?
Estufa foi editado em Dezembro de 2015; Tártaro, em Junho de 2016. O que se passou foi que, aquando do lançamento da Estufa, já o Tártaro estava na gaveta da Douda Correria. O segundo não prolonga nem completa o primeiro. Estufa foi escrito sem saber que era livro, teve de ser cortado à catanada e depois muito cinzelado; o Tártaro nasceu, como o próprio nome indica, caoticamente. Talvez de tão impetuoso, parecia impossível de ser mexido e de uma deformidade fatal. Teve de dormir para ser cirurgicamente cortado e colado.

A parceria com a Douda Correria é para continuar?
Não sei o que o futuro trará mas sei que a Douda Correria dança um pas de deux com os seus autores. Editora livre que é, não dita sentenças nem espera (muito menos exige) exclusividade. Quase todos os autores da Douda relacionam-se com outras editoras. Mas confesso que gosto de ser convidada e foi isso que o Nuno Moura fez, convidou-me a enviar-lhe a Estufa. Quando chegou a vez do Tártaro, já me sentia confortável para o enviar por iniciativa própria.

Há neste momento, em Portugal, muitas jovens mulheres a publicar poesia, e com qualidade. Sugeres alguma explicação para isso?
Na minha opinião, o aumento consistente da educação e da emancipação das mulheres, que, como sabemos, são processos lentos e demoram décadas a produzir resultados palpáveis. O importante é que, mais ou menos jovens, não faltam poetas vivas para encher as estantes dos leitores: Regina Guimarães, Ana Luísa Amaral, Rosa Maria Martelo, Adília Lopes, Cláudia R. Sampaio, Raquel Nobre Guerra, Rosalina Marshall, Maria Sousa, Inês Dias, Rita Taborda Duarte, Ana Tecedeiro, Matilde Campilho e tantas, tantas mais.

Quais as tuas afinidades electivas, na poesia?
Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina, especialmente a de americanas do século XX – Sylvia Plath, Anne Sexton, Sharon Olds… E, apesar de ser do século XIX, também tenho uma fixação pela Emily Dickinson, que tem poemas de uma mística sensual que me cativam – há ali um contraste que gera um equilíbrio estranho.

A Emily Dickison é uma poeta extraordinária. E, para além da mística sensual, com a que te identificas, há também uma solidão imensa naquelas páginas.
Sim, era uma monja confinada ao domicílio, que chegou a frequentar um seminário, e que convoca uma sensualidade e um erotismo místicos que verte na sua poesia. O resultado é uma contenção explosiva. Atesta-o, por exemplo, este poema (aqui, na tradução do Jorge de Sena): “Morri pela Beleza – mas mal eu / Na tumba me acomodara, / Um que pela Verdade então morrera / A meu lado se deitava. // De manso perguntou por quem tombara… / – Pela Beleza – disse eu. /– A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa. / Somos Irmãos – respondeu. // E quais na Noite os que se encontram falam – / De Quarto a Quarto a gente conversou – / Até que o Musgo veio aos nossos lábios – / E os nossos nomes – tapou.”

Estás a escrever um novo livro?
Penso que sim. Mas ainda não tenho a certeza.

O que te leva a não ter a certeza?
Tenho escrito em torno de um tema que me tomou – não o determinei mas constato que estou cativa daquele lugar. Mas só digo que escrevi um livro quando não há ponto de retorno, quando já ali está, mesmo que venha a ser sujeito a alterações. Ainda estou naquele estágio em que posso implodir tudo.

Para além da poesia, escreves prosa, ficção ou ensaio?
Por minha iniciativa, escrevo sempre poesia. Mas já escrevi notícias, fiz entrevistas, press releases, sempre em trabalho. Fui convidada a escrever um texto dramático infanto-juvenil em conjunto com a Teresa Coutinho (actriz) e o Pedro Moura (guitarrista) para a Trupe do Bichos. Estou a gostar imenso da experiência. Mas não tenho nenhum projecto em prosa no horizonte.

5 Mar 2017

Do superior interesse das crianças

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foram passados séculos desde o tempo em que uma criança pelo facto de o ser lhe era negado o querer. De forma mais branda ou rigorosa, a voz delas era uma expressão paralela onde se rasurava de vez a vontade própria, caso tivessem a ousadia de se insurgirem. Elas faziam parte de uma estrutura onde não devia entrar as suas vontades e tanto quanto possível haver mundos separados, onde, felizmente, e por sensatez ambiental, os adultos também não participavam. Passaram-se poucas décadas e toda esta aparente e, quiçá, condenáveis práticas foram revertidas no seu oposto com comportamentos obsessivamente antagónicos de modo a aparecer um memorando da criança-deus, que emerge carregada de quereres, elaborada para centro, estimulada para o todo, opinativas entre coisas, onde para que tudo corresse bem e não se criassem traumas convinha responder de forma obsessionalmente afirmativa também. Tornámo-nos sem querer “entreteiners” da pequenada a quem devíamos amestrar com parcimónia e muitas cautelas.

Veio muito recentemente a público o superior interesse das instituições que, pasme-se, deve ser um núcleo infantil mais abrangente dado que por cabeça o Estado paga bem a quem os realojar num Jardim Escola esperando aí a tão benemérita adopção que porá fim aos seus pesares e alegria institucional, dado que jamais se saberá da dor das mães nestes tão programáticos interesses.

Uma mãe pobre é metade de nada! A lei pune a pobreza como anátema tal como se deu no caso da lepra romana e esquece-se que os fios que ligam a progenitura são bem mais vastos que este exercício da regência do “bem estar”. É que uma criança que nasça nestes pouco interessantes ambientes pode estar ligado a ela, mas nada continua a ser-lhe perguntado por causa dos seus superiores interesses. Amputada ao seu ambiente que, mau ou bom, é onde está a sua mãe, ela parte, depois fica lá aos cuidados pedagógicos e interessados dos tratadores que as mantêm anos a fio até à clivagem final da adopção.

O amor nada tem a ver com os interesses e um lar completamente destruturado terá a sua maneira de o expressar que não devemos censurar ou mesmo esquecer no meio, também ele agreste, desta azáfama bem-dita. Chegou-se ao desregramento inquisitorial de se poder ouvir uma criança a chorar na casa ao lado e chamar-se o “Santo Ofício” sem que se pergunte primeiro se alguém precisa de um conselho ou de uma ajuda. É aqui, nestes superiores contextos, que aparecem os paragonais casais das personalidades públicas com as suas crianças.

As crianças dos casais economicamente fortes estão ilesas de tão brutais e desonrosos tratamentos, mas os seus poderosos pais nem sempre as tratam melhor no contexto humano a que presidem, dado que as crianças sabem ler, andam na escola, observam como ninguém, e, quantas vezes, elas mesmas são o elemento de arremesso entre estes factos, o que as torna sem dúvida extremamente vulneráveis. Mas partindo do princípio que o dinheiro é o interesse em si mesmo, o estar que todos procuram, estas crianças estão então amplamente “defendidas” e aqui entramos na zona negra deste proteccionismo, a usura e a total insensibilidade perante os mais frágeis. Os filhos dos pobres, outrora, também eram retirados bem cedo para servirem as pessoas, para mão de obra, ninguém poria a questão em moldes afectivos, como hoje continua a não ser feito por razões ardilosamente mais polidas mas que servem interesses, mercado e grandes áreas de inférteis anónimos que, por vazio e descrença das suas vidas que nada têm de misantropo, se apoderam das vidas que lhes possam fazer sentir ainda as suas.

É porventura ainda cedo para se fazer uma abordagem da revolta dos “defendidos” mas creio que a ver pela revolta dos escravos não passarão muitos anos para deixarem ensanguentadas muitas áreas de benfeitorias ou, num processo psicótico mais que provável, termos uma percentagem de gentes que raiam o perigoso, dado que mesmo mau, o amor quando é, torna sempre melhores os seres. As boas intenções e as boas práticas podem não ser suficientes face a coisas maiores: teremos nós mais adiante a capacidade de nos metermos em causa? É cedo para sabermos, porém, creio que graves transtornos nos esperam. Rompida a fina película por onde as coisas importantes se inscrevem somos com o tempo personalidades ameaçadoras: lembro aqui Heiner Muller o dramaturgo e poeta alemão que escreveu assim no seu livro «O Anjo do Desespero»:

…. depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que vi era mais do que podia suportar ….

Este autor é quase um arauto terrível, mas nós precisamos da lucidez dos poetas e, talvez, da sua estranha prefiguração para desvendarem o fim provável dos mesmos terrores mostrando assim outros graus da nossa humanidade. O Homem não foi feito para se ajustar aos modelos económicos, mas os modelos económicos, esses, terão de se ajustar a cada pessoa, enquanto não fizermos isto de forma concertada deixando intacto o que une um ser ao outro, produzimos miséria e lixo que no ponto máximo da sua insuportabilidade desaparecerá da ordem das coisas.

Tudo desaparecerá, é certo, na voragem do tempo, mas o amor manter-se-á como vínculo imperecível, e é desta matéria que serão possíveis os seres futuros que saberão de nós por este vínculo nos seus sonhos distantes e poderão algures em qualquer recanto do Universo sorrir-nos ainda.

Orfeu o bardo era um homem que não sabia esperar. Depois de perder a mulher,

porque a possui cedo demais a seguir ao parto ou porque olhou quando não

devia ao tirá-la do mundo dos mortos depois de a libertar da morte pelo canto,

fazendo-a regressar ao pó antes de ela novamente se fazer carne.

Orfeu inventou a pederastia , que evita o parto e está mais perto da morte que o

amor pelas mulheres. (Heine Muller)

2 Mar 2017

Arquitectura e poética 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Maputo existe um hotel, o Taj Mahal, onde os mictórios do bar se localizam exactamente por trás do balcão da recepção. E a porta de tal fétido lugar tem de há muito os gonzos enferrujados pelo que a primeira visão que algum hóspede pode ter, quando faz o registo de entrada ou pede a chave do quarto, será a de uma morcela que urina.

Será igualmente um modo insólito para se entrar no teor desta crónica que pretende dar conta de uma feliz exposição de arquitectura que inaugurou em Maputo, mas através do bizarro exemplo talvez se entenda a oportunidade de uma verdadeira lição de arquitectura numa terra que foi perdendo qualquer noção do que seja um plano urbanístico, a ordenação do território, o respeito pelos planos directores das cidades ou a adequação arquitectónica.

A exposição é de José Forjaz, o arquitecto decano no país, que aos 84 anos, decidiu mostrar 40 projectos não edificados, no Instituto Camões.

Numa nova deriva prévia, vou contar o que me aconteceu na ida à casa de uma amiga. Ela não estava e fiquei na sala à espera dela, a espreitar a estante. E então aí vi um livro que se chamava “How to think like Leonardo da Vinci”. Fiquei estarrecido. Eis que nos impingem métodos para chegar instantaneamente às vistas largas do Leonardo sem termos de passar pelo esforço de subir à montanha, aplainando de imediato o terreno. O que acontece é que o vale altíssimo a que ele chegou e a percepção que aí ganhou era indissociável do processo da subida, das dificuldades e dos conseguimentos na escalada e nenhum livro de 300 páginas, que se lêem em oito horas, supre os quarenta anos da subida, as vicissitudes, os méritos e os sentimentos frustres que tanto acompanharam o Leonardo no seu percurso. E só aí, na sua provação, pôde converter o estudo das topologias do terreno que tanto o cansaram em vantagens e conhecimento.

Ora a lição que se tira destes projectos no papel de José Forjaz, considerado internacionalmente como um grandes arquitectos de África, é o seu flagrante aspecto totalizador. A relação com a arquitectura é aqui pensada de um modo total – fazendo convergir no esquisso todos os aspectos da relação do homem com o ambiente e a paisagem, o corpo, o espaço físico, material, a memória tangível ou intangível dos lugares, o solo, a meteorologia, a antropologia, a economia, a energia, a estética, a funcionalidade, a geomancia, etc., etc. Ou seja, só a idade faz o arquitecto – não há recurso à mentira.

Vamos agora ao aspecto poético.

Não se confunda poético com estético, que pode ser a sua declinação em estereotipo, em cânone. O que em rigor é bom como aquisição vernacular imediata mas é sempre mau quando uma conquista expressiva se torna hábito.

O poético não é um mero jogo das formas, é uma relação mais profunda e exige, entre outras, duas características basilares. Uma delas, assenta naquilo que a arquitectura partilha com as outras artes, o ritmo.

O ritmo está para a arquitectura como as estrofes, as rimas e as aliterações estão para o poema. Mas também acontece que de uma forma plástica a arquitectura nos traduza, por vezes, acordes musicais. Um poeta espanhol, o José Bergamin chamava à tourada a “música calada”. Não está mal visto, mas podemos deslocar esta definição, se calhar até com mais propriedade, para certas obras de arquitectura.

Outro atributo da poética é especificamente arquitectónica e define-se pela empatia revelada entre o projecto e o lugar, numa espécie de co-nascimento retroactivo.

Bom, o sentido de uma paisagem, o que estrutura o seu campo visual, não resulta de uma análise intelectual dos elementos que a compõem mas de uma apreensão sintética das relações que os unem. É como se a paisagem ajudasse o seu espaço construído a encontrar a sua verdade perceptiva.

O José Forjaz que num seu texto fala sobre as relações entre a arquitectura e a medicina não poderia deixar de ser sensível a este aspecto.

A poética, nestes projectos, encontra-se no encontro entre a experiência sensível de estar diante da paisagem e de se tornar evidente que o espaço construído fala com ela, ou melhor que ele diz o que a paisagem queria dizer de si mesma.

Este sentido inscrito no sensível é mais do que uma troca, ao mesmo tempo material e cultural, que se estabelece entre o homem e o seu meio, é entender o mundo como uma ressonância em que todos os elementos interagem para dar mais do que a soma do todo.

Isto até pode acontecer de maneiras muitos diferentes. Pode dar-se por “substracção”, como na Casa de Chá, um projecto para o Japão, que ilustra a crónica, em que a transparência se funde no espaço em vez de lhe impor intrusamente um volume, ou noutro exemplo, este construído, no caso do Memorial de Mbuzini, erguido no lugar onde se deu o acidente de avião que vitimou Samora Machel, em que um dos elementos estruturantes para a idealização do memorial foi o vento, tão presente na colina. O que deve ter sido compreendido por muito poucos.

Mas é por isso que uns são dotados de poética e outros não.

O mais vulgar exemplo desta espécie de simbiose ou de sentimento-paisagem é a célebre Casa na Cascata do Lloyd Wright. Aquela casa enriquece a paisagem, era como se a cascata tivesse corpo mas lhe faltasse algo, houve a partir dela um co-nascimento, algo mais do que uma simples correcção sintáctica. A cascata e a vivenda mobilizam um traço de união entre o espaço e o espírito.

È o mesmo que eu encontro por exemplo no projecto do Museu de Arte Tomihiro, no Japão, um museu destinado a duas artes quase intangíveis, a aguarela e a poesia (cf. em Caliban.pt)

Aqui só lamento que a tecnologia não permitisse ainda ao José Forjaz ter posto o museu a levitar sobre a encosta, sendo aliás ao que o projecto propende.

2 Mar 2017

Deus é o nada a olhar-se ao espelho

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]itornelos, Abysmo, 2014, é o primeiro e único livro publicado pela poeta Joana Emídio Marques, até à data. O livro é composto de três partes: “Ritornelos”, com 52 poemas; “Cânticos da Floresta”, com 14 poemas; e “Litanias”, com 8 poemas. E entre cada poema da primeira parte do livro encontramos as belas ilustrações de Bárbara Fonte (nas duas partes finais do livro, as ilustrações aparecem no início e não entre poemas).

Uma vez mais, o título do livro dá-nos alguma indicação fenomenológica acerca daquilo que nos mostra. Ritornelos é um termo musical (dois pontos seguido de uma barra vertical), que indica a repetição de uma parte da partitura, isto é, a repetição da sua execução musical. Pode também tratar-se da indicação de um refrão. Aqui, e partindo da sua função musical, a palavra remete para uma ideia próxima da do devir e não da repetição, como se se tratasse da vida como uma repetição infinita, mas sempre diferente. Em suma, um voltar atrás, não da mesma maneira – isso seria um eterno retorno – mas sempre de modo diferente. Múltiplos modos diferentes e nenhum melhor do que o anterior, pois trata-se de um devir sombrio, como se o infinito ou a repetição do infinito não passasse do eco de uma gargalhada de Deus: “(…) tudo isto / que se repete repetindo-se / eco da gargalhada de Deus.” (p. 51) O devir aparece-nos logo nos primeiros versos: “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / (…)” Embora seja ao ritornelo 25, da primeira parte, página 57, que o devir se assume em toda a sua pujança:

O que se torna tempo
não poderás somá-lo
é abissal e infinito
esperar que nasça o princípio
no interior do que só vês de fora.
Não, não podes somá-lo
entre os dedos idênticos
nem à verdade nem à carne,
o que se torna tempo
é este exacto instante
que se cumpriu
se perdeu.

O termo devir aparecia já à página 47: “como se soubesses o devir do tempo / (…)”. Não há, contudo, ou parece não haver um sentido positivo neste devir, em Joana Emídio Marques. O devir é negro, sombrio, onde a morte mesma não é abrigo. Escreve à página 29: “O Ser não devolve o não Ser / o símbolo não devolve o sentido.” Ou ainda nos versos finas do poema à página 63: “Um homem cai / num buraco aberto pelo tempo / mergulha / na láctea corrente de lírios e desaparece. / Depois outro e outro ainda / até não haver qualquer rumor / que  não seja o da Babilónia / bebendo sofregamente / na corrente fluvial os lírios de leite.” Esta presente consciência da perda, contínua consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo, vê-lo-emos melhor no final deste texto. Por ora, mostremos como no humano, a única possibilidade de fuga, que seria a invenção do outro, a transformação do outro numa amplificação do eu, acaba sempre por se virar contra nós, porque é sempre nas palavras e na necessidade que elas têm de sentido que o outro vive, como escreve a poeta no belo ritornelo 39:

Eras
agora voltas ao fogo
à tarde de experimentar estar entre os reflexos.
Eras
agora a voz vem desmembrar o passado em presente.
Eras
sem acidente que evocasse o princípio.
Eras,
quando eu era eu
te designava
te existia.

Este poderoso poema, imerso numa ontologia do devir, em que tornar-se é o único lugar disponível, repete a palavra “eras”, como expressão fundamental do humano. “Eras”, segunda pessoa do pretérito imperfeito do verbo ser, sugere a ideia de nevoeiro, a ideia de estarmos imersos num ambiente em que não vemos o que está a acontecer, ambiente próprio da memória e da literatura – era uma vez –, que pressupõe um nunca ter sido. Este ver, em cada um de nós, simultaneamente uma memória de outro e um nunca ter sido, revela-nos antes de mais como um ser de palavra, um ser de continua transformação através da palavra, que é o modo como a consciência tem acesso ao que não é a própria consciência, um reflexo de si mesma, que é já um outro. Dito de outro modo: “Eras / agora voltas ao fogo / à tarde de experimentar estar entre os reflexos”; cada um de nós é para nós mesmos um reflexo derivado de se experimentar, isto é, um reflexo derivado dos outros. “Eras” é uma expressão reflexa de nós mesmos, aqui e agora e no tempo, que também ele só existe numa permanente mudança, “o que se torna tempo / é este exacto instante / que se cumpriu / se perdeu.” (25, p. 57) Por isso, Beirute – no ritornelo 27 – somos todos nós e todos os tempos do mundo. Beirute será ainda amanhã, quando amanhã talvez nem exista; Beirute será ainda no início dos tempos, quando este talvez não tenha sequer existido. “Beirute / e já não há carne que possa chamar um nome / (…) // E já não há carne / a que se possa chamar um nome. / Só Deus atravessando uma palavra, / carregando-a nos braços / devolvendo-a ao sono, anuncia: / Beirute.” A capital da Síria, para além do que hoje é, para além do que foi ao longo dos tempos, assume também aqui o símbolo de não sentido do mundo, de não sentido do humano. Estamos continuamente entre, a caminho de nos tornarmos nós mesmos – em sentido nietzschiano – e de nos tornarmos nada; um nada que já fomos e que tornaremos a ser. Mas também encontramos a identidade entre devir e existência na segunda parte do livro, em “Cânticos da Floresta”. À página 131, cântico 3, Joana Emídio Marques escreve: “Já não sou a minha carne / e o carrossel gira, / gira, gira, gira, / passa por ti e não pára. / Já não sou a tua carne / és Outra, és Tu.” No fundo, a vida não pode ser vivida a não ser que seja uma criação. Melhor seria dizer, como se adivinha que a poeta diga, a vida só pode ser vivida se imaginada, como quem agora lança uma linha ao mar e imagina um peixe no futuro.

Mas, para além desta sombra de Nietzsche, evidentemente um Nietzsche apropriado pela poeta, ou até mesmo um Nietzsche à revelia da poeta, estende-se também uma solidão enorme, onde o início do cântico 4, à página 133, o enuncia de modo belo e aterrador: “Aqui / na casa das cadeiras vazias / (…)”. Este aqui somos nós na beira da página, e sempre na beira da vida. Mas esta solidão, que é reflexo da impossibilidade de reconciliação com o espelho, com os outros, connosco – e qual nós, aquele que estamos para ser, aquele que fomos ou aquele que vamos sendo? – já se encontrava desde o início do livro, em todo o primeiro poema, que começa “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / as horas caminham no sentido contrario ao dos pássaros” (e poucos livros terão um início tão próximo da perfeição), e o poema termina “E agora onde me vão eles enterrar?” Esta impossibilidade de reconciliação, seja com o que for ou com quem for, ancora num imenso solipsismo, fazendo deste livro, já longe de Nietzsche, um devir negro, um devir sombrio. Este solipsismo, encontra-se enunciado de modo mais metafísico ao poema 3 da primeira parte do livro: “Entre os possíveis e as coisas / não ser nada, / nem sequer inclassificável.” Por isso, podemo-lo dizer agora, a presença contínua de Deus ao longo do livro nos aparece mais como nada do que como Todo. Deus é a solidão perfeita, redonda, sem mácula, sem passado, sem futuro, sem lembrança ao rés da pele, sem desejo. Quando se escreve Deus, neste livro, escreve-se nada e solidão. Deus surge no livro apenas ao poema 16, com os seguintes versos: “No fim da penumbra / Deus chamou-te a olhar / três noivas-cilindro / erguendo sobre o mundo seus corpos brancos / seus corpos-silo / prostrado na solidão dos milénios.” Aparece depois várias vezes ao longo do livro e, quando não aparece literalmente, aparece em metonímias, sinédoques, antonomásias. Mas sempre significando o misterioso absoluto e infinito nada. Deus é o nada que se olha no espelho. O silêncio a parte musical do nada. Porque a solidão, que é o nada fazendo-se humano, tem também o seu lado musical, o silêncio, e que percorre as páginas deste livro, como não poderia deixar de ser, sendo ele tão musical, desde o título ao último verso.

Recuperemos agora aquilo que mostrámos atrás acerca da consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo. Este livro de Joana Emídio Marques, uma espécie de itinerário de Deus a Deus (que é o nada a olhar-se ao espelho), começa com os versos já citados, “Acordando infinitamente / para o que há-de vir”, e termina com este “Se acordar agora adormecerei?”, perfazendo formalmente um percurso no sonho. Toda a existência é sonho, ou parece ser um sonho, algo que não é nem ser, nem não-ser. Ritornelos mostra-nos que nunca chegaremos a saber se existimos ou se sonhamos, se estamos vivos a caminho da morte ou mortos a caminho da vida. O devir, o nada, a solidão… o que é este mundo? O que é eu? Por quê a vida? “ – Eu Sou, / gritei depois de morta.” (p. 107) Terminamos com um poema de Joana Emídio Marques, o cântico 8, à página 139:

Não sou eu que vivo, mas a flor
que dando-se às eternidades pretéritas
respira no que desconhece
a beleza inaugural do dia.
Já não sou eu que vivo
mas o tempo estranhado pelo sem-tempo
em madrugadas tão plenas que tecem caminhos.
Um dia, quando voltar da morte e me detiver em frente à janela
que me puxa par adentro do segredo e do mistério
ter-te-ei despido.
Já não sou eu que vivo
e se gritar afogo-me no meu próprio eco
neste campo de escombros
átomos explodindo nas carnes das casas.
Já não sou eu que vivo
mas o grito
o milagre nos corredores da noite
nas mãos dadas a ninguém.
Entranhas de Deus espalhadas sobre a tua ausência.

28 Fev 2017

Palácio de Mafra e Tapada candidatos a Património Mundial da UNESCO

Michel Reis

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] dossier de candidatura do Palácio Nacional de Mafra e respectiva tapada a Património Mundial da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), foi entregue ao comité internacional desta organização no dia 27 de Janeiro de 2017, correspondendo a uma etapa histórica neste complexo e exigente processo, que permitirá a tomada de decisão da UNESCO.

Constando da lista de bens patrimoniais portugueses a serem alvo de processo de classificação proposta pela Comissão Nacional da UNESCO desde 2004, o monumento voltou a constar da listagem em 2016, depois de uma recomendação da UNESCO em 2013 para que fossem actualizadas as listas dos estados-membros, a cada 10 anos, pré-requisito para a inscrição de bens na Lista do Património Mundial. Em 2014, a Câmara de Mafra constituiu uma comissão municipal, composta pelo director do Centro Cultural de Belém, ex-secretário de Estado da Cultura e vereador Elísio Summavielle e por outros dois vereadores, destinada a elaborar a candidatura do Palácio Nacional a património mundial da UNESCO. A candidatura a património mundial pretende contribuir para a valorização e promoção monumental e ambiental daquele conjunto arquitectónico, ao contribuir para a atracão de turistas e para o desenvolvimento socioeconómico do concelho.

O dossier de candidatura, designado Real Edifício de Mafra, foi coordenado pelo município e pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) da República Portuguesa, com a colaboração do Palácio Nacional, Escola das Armas, Tapada Nacional e Paróquia de Mafra. Caso venha a ser atribuída a classificação, os parceiros querem fazer coincidir o anúncio da UNESCO com as comemorações dos 300 anos do lançamento da primeira pedra do palácio, que se assinalam este ano e têm o ponto alto a 17 de Novembro. Estas comemorações estão a ser alvo de um vasto programa de actividades que teve início a 17 de Novembro de 2016.

Datado do início do século XVIII, o Palácio Nacional de Mafra, situado a 28km de Lisboa, mandado construir pelo Rei D. João V em cumprimento de um voto para obter sucessão do seu casamento com D. Maria Ana Josefa, Arquiduquesa de Áustria ou, há quem diga, a cura de uma doença de que sofria, é o mais importante monumento representante do barroco em Portugal, nomeadamente do barroco joanino. A sua construção foi iniciada em 1717 e concluída em 1755, ano em que ocorreu o grande terramoto na capital portuguesa. Os trabalhos começaram no dia 17 de Novembro de 1717 como um modesto projecto para abrigar 13 frades franciscanos, mas o ouro do Brasil começou a entrar nos cofres portugueses;  e Dom João V e o seu arquitecto alemão Johann Friedrich Ludwig (conhecido em Portugal por João Frederico Ludovice), iniciaram planos mais ambiciosos, não se poupando a despesas. Construído em pedra lioz da região, o edifício colossal ocupa uma área de perto de quatro hectares (37.790 m2), compreendendo 1200 divisões, mais de 4700 portas e janelas, 156 escadarias e 29 pátios e saguões. A sua construção empregou 52 mil trabalhadores. Tal magnificência só foi possível devido ao ouro do Brasil, que permitiu ao monarca por em prática uma política mecenática e de reforço da autoridade régia.

O monumento é uma referência do pensamento urbanístico, arquitectónico e natural da civilização ocidental, quer enquanto unidade, congregando um paço real, uma basílica, um convento, um hospital monástico, um jardim e uma tapada, quer devido aos seus equipamentos de prestígio, entre os quais se conta uma das mais notáveis e ricas bibliotecas europeias do século XVIII, abrangendo todas as áreas de estudo; a mais importante colecção de escultura barroca em Portugal e fora de Itália, da autoria de mestres italianos e portugueses da época (no reinado de D. José I, que precedeu D. João V, foi criada em Mafra uma importante Escola de Escultura, sob a direcção do mestre italiano Alessandro Giusti, de que são exemplo os retábulos de mármore da Basílica); dois carrilhões, os maiores do mundo, constituídos por 119 sinos afinados musicalmente entre si; encomendados na Flandres a dois fundidores de sinos diferentes e pesando o maior 12 toneladas, num total de 217 toneladas; e o único conjunto conhecido de seis órgãos de tubos concebidos para utilização simultânea, instalado na basílica, encomendados por D. João VI, no final do séc. XVIII, para substituir os primitivos que estavam degradados. Estes instrumentos foram construídos pelos dois mais importantes mestres organeiros portugueses da época – António Xavier Machado e Cerveira e Joaquim António Peres Fontanes – tendo sido terminados entre 1806 e 1807.

Criada em 1747, a Tapada possui mais de 500 animais de 60 espécies diferentes, entre gamos, veados, javalis, aves como a águia de Bonelli ou o bufo real, répteis como salamandras, tritões e cobras e uma floresta de 800 hectares. Algumas das árvores são consideradas de interesse público, como o castanheiro-da-índia, a olaia e o sobreiro.

Nunca tendo sido residência permanente da Família Real, o Palácio de Mafra foi até ao fim da monarquia frequentemente visitado pelos monarcas, que aqui vinham celebrar algumas festas religiosas ou caçar na Tapada. Foi também em Mafra que o último Rei de Portugal, D. Manuel II passou a sua última noite no país antes da sua partida para o exílio aquando da implantação da República, a 5 de Outubro de 1910.

Mudança de estatuto

Decretado Monumento Nacional pelo Decreto de 10 -1-1907 e pelo Decreto de 16-6-1910, o Paço Real é transformado em museu, abrindo logo em 1911 com a designação de Palácio Nacional de Mafra que mantém até hoje. O Convento foi incorporado na Fazenda Nacional quando da extinção das ordens religiosas em Portugal, a 30 de Maio de 1834 e, desde 1841 até aos nossos dias, foi sucessivamente ocupado por diversos regimentos militares, sendo actualmente sede da Escola das Armas.

Para além desta escala verdadeiramente europeia, o monumento constitui, inquestionavelmente, um referencial identitário do Concelho de Mafra, não só porque tão grandiosa construção inaugurou uma nova fase no desenvolvimento deste território, mas também porque o posicionou num patamar superior de visibilidade nacional e internacional.

Em 2010, foi concluído o restauro dos seis órgãos históricos do monumento, um conjunto único em todo o mundo, e que representou um investimento de 1milhão de euros. Os instrumentos estiveram a ser restaurados durante 11 anos, sob a supervisão do mestre organeiro português Dinarte Machado.

Por Portaria publicada no Diário da República em 17 de Setembro de 2015, o Governo de Portugal autorizou a Direcção-Geral do Património Cultural a celebrar contrato destinado à operação de Reabilitação dos Carrilhões e Torres Sineiras do Palácio Nacional de Mafra. Em 2015, a DGPC lançou o concurso público no valor de 2,3 milhões de euros para as obras de restauro dos carrilhões e sinos do monumento, o maior conjunto sineiro do mundo que está em risco. A garantia desta recuperação era fundamental para o Estado e a Câmara de Mafra poderem candidatar o monumento a património mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). A tutela apontou na altura o prazo de conclusão para o final de 2017 , data que coincide com as comemorações dos 300 anos sobre o lançamento da primeira pedra do monumento, mas que afinal não se irá concretizar.

28 Fev 2017

Tempos difíceis. Ai o cinema, ai o cinema

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]ard Times, For These Times, é o título da obra literária do Charles Dickens e do terceiro filme do João Botelho (1988), 90 minutos, com um preto e branco nativo (na rodagem) notável, filmado em 35 mm por Elso Roque, direcção de arte de Jasmim de Matos, um talento que infelizmente já não partilha connosco nem as esperanças nem o sofrimento do quotidiano vivido.

Mas este título e esta crónica, não é sobre esta obra cinematográfica, é sobre os continuados TEMPOS DIFÍCIEIS do cinema Português.

O anunciado novo enquadramento legislativo, em lugar de ser um tempo de reflexão crítica por parte dos seus principais actores, os que o fazem, e os que o distribuem em sala, sobre qual cinema serve Portugal, e qual a legitimidade e a eficácia na decisão dos apoios públicos ao cinema, tem sido um tempo de vigor nas explosões intestinas, na defesa dos interesses já conhecidos e em vigor nestas últimas três a quatro décadas, ou seja, desde os anos 80 do século vinte.

Nas redes sociais, em artigos de imprensa, em cartas abertas postas a circular em festivais internacionais de cinema, a pressão das facções dos “donos” do direito a fazer cinema com fundos públicos em Portugal, manifesta-se de forma mais corporativa e fratricida, do que na verdade empenhada em posicionamentos estéticos ou teóricos sobre um pensamento sistematizado sobre o cinema neste tempo concreto da hipermodernidade que vivemos.

Em resumo, temos assistido ao território da criação cinematográfica radicado em duas igrejas. Ambas falam em nome da relação do cinema com o público, ou melhor com os públicos. O deus verdadeiro está em cada uma, segundo os próprios funcionários, ou crentes, da instituição respectiva. Uma igreja segue mais de perto a teologia do marketing, essa grande ciência que sabe mais das nossas vontades e necessidades do que nós mesmos, e a outra, sente-se dona, legitima e única continuadora da chamada política de autor – movimento do cinema europeu iniciado com a geração dos “Cahiers du cinema”, Bazin, Godard, etc, afirmando recusar-se a tratar os públicos como imbecis.

Mas, a razão de fundo da querela é outra, é que, para filmar em Portugal com o mínimo de condições necessárias para cumprir as obrigações com as equipas técnicas e artísticas; os custos de desenvolvimento, preparação, produção, pós-produção e de comunicação de um filme com possibilidade de existir nos circuitos de exibição nacional e internacional, salvo casos esporádicos e nessa condição únicos, é necessário ter os apoios financeiros que resultam das políticas culturais públicas e, como os montantes são sempre escassos, o eixo do mal instala-se, e em cada igreja, instala-se a verdade com exclusão do que lhe esteja fora. Conviria, parece-me, traçar de forma breve o “estado da arte”, com o enfoque no cinema e na sua contaminação no banal quotidiano.

O cinema é matéria de múltiplos territórios, é transdisciplinar, é arte e indústria, contamina comportamentos, atitudes, artes, num duplo movimento de apropriação e recriação do apropriado.

É o mais poderoso construtor do “phatos” (palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento, sentimento, ligação afectiva), utilizando a terminologia do cineasta Eisenstein (1898-1948), neste tempo da irrupção de milhões de subjectividades, de comunidades afectivas territorialmente difusas. O cinema afirma-se enquanto olhar singular do homem sobre si e sobre o mundo.

Capaz de transportar o espectador para a tela, o cinema é produtor de modelos e da reflexão crítica aos modelos que cria, é construtor de sombras e de luz, inventor de presentes, passados e futuros possíveis, afirma a radical dimensão da construção simbólica como alicerce e pilar para toda a tentativa hermenêutica do humano olhar sobre o mundo.

Presente na forma e no desejo do habitar dos quotidianos pelas populações urbanas indiferentemente das geografias e modos de vida, sejam mais ou menos conservadoras, liberais, alternativas, dissidentes, feministas, pós-feministas ou pós-revolucionárias, o cinema está presente e, essa presença, sustenta e enforma olhares e subjectividades, visões do eu e do outro.

O cinema é uma poderosa força construtora de mundos e do mundo.

É neste contexto que se tem de pensar a política de fundos públicos de apoio ao sector. O momento de um novo enquadramento legislativo é talvez o melhor dos tempos para, por exemplo, pensar a articulação entre fundos públicos para o cinema e política externa de Portugal. O cinema e os objectivos e necessidades estratégicas de Portugal no curto, médio e longo prazo.

A questão é, ou pelo menos a mim parece-me que deveria ser:

Que cinema serve Portugal?

Qual a legitimidade e a eficácia na decisão dos apoios públicos ao cinema?

Pode um sistema de júris exteriores à administração pública cumprir com eficácia o entendimento das políticas públicas para o cinema? Se sim, de que forma?

Apesar da chamada participação dos actores em campo, não se encontra facilmente qual seja a não legitimidade a que seja o ICA que assuma e garanta as decisões de financiamento com base no cumprimento das linhas programáticas de curto e médio prazo definidas em sede própria – o governo eleito.

A constantemente transparência enquanto valor, o chamado não dirigismo do gosto pelo poder político, com a solução dos júris vindos e representantes dos diversos sectores da actividade cinematográfica, é, ou pode ser, um pensamento bondoso, mas nada garante que seja mais do que isso

A obrigatoriedade de pensar o cinema numa visão integrada e alargada tanto às questões da comunicação de Portugal no mundo contemporâneo, como à oferta cultural em território nacional, como à diversidade estética própria da cinematografia contemporânea, não me parece que fique necessariamente melhor entregue fora do que dentro do organismo que depende da tutela do Ministério da Cultura.

Em registo de conclusão.

A velha discussão Bragança – Paris, apoia-se na irrelevante, estafada e sem fundamentação teórica credível, oposição entre cinema arte e cinema indústria, paradoxalmente, continua a legitimar o discurso e pensamento sobre o cinema que se faz e que importa fazer.

O cinema, “ o diálogo do mundo contemporâneo”, como afirmou Elia Kazan, é arte e indústria, tem a razão da sua paixão nos públicos numa ancestralidade muito anterior a si, a necessidade de narrativas que acompanha a história do homem no mundo. A discussão arte cinematográfica versus indústria é bacoca, ignorante e enganosa. O que existe são diferentes modelos de produção, e todas as possibilidade de filme conhecidas ou a conhecer. A questão dos fundos públicos, das políticas públicas para o cinema português é central e vai continuar a ser, mas nenhuma igreja tem legitimidade acrescida.

27 Fev 2017