Fantasporto, um festival em idade adulta

A insuportável orfandade

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME-FANTASPORTO 2017, 103 minutos, realização e argumento de Mateo Gil , produção de Espanha.

Sinopse: “Marc é diagnosticado com uma doença que lhe dá um ano de vida. Não aceita o seu destino e decide congelar o corpo. Sessenta anos mais tarde, em 2084, torna-se o primeiro ser humano a ser reavivado na história. É então que descobre que o amor da sua vida, Naomi, o acompanhou de forma inesperada”.

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme começa com o renascimento do protagonista. Nascer de novo é reencontrar a memória dos acontecimentos vividos, um encontro novo com o que fomos, com o que somos.

Estruturado por capítulos o filme vive o tempo de forma não cronológica. Sucessivas elipses dão a ver um vai e vem entre o tempo da vida antes da decisão da criogenização e o do momento actual da narrativa.

O empolgante neste filme de realização cuidada, “décores” assépticos de uma realidade tecnológica já sucessivas vezes anunciada e vista em ecrã de cinema, telemóvel e electrodoméstico TV, é o mapear cirúrgico ao território da habitabilidade do hedonista urbano, através da história do protagonista. Marc é um homem urbano, contemporâneo, jovem, belo e rico, figura de sucesso na agência de publicidade onde trabalha.

Realive, interroga e dá resposta ( com a qual se pode ou não concordar – os filmes são democráticos) a uma pergunta filosófica central neste tempo de orfandade colectiva.

Pode um ser suportar a solidão da consciência da sua total orfandade?

Num tempo em que o antigo conforto da aceitação de Deus é, para muitos, impossibilidade, ou apenas desejo sonhado de pertença a uma organização possível para o mistério da metafísica. Reaparecer vivo num tempo futuro onde todos os que conhecemos desaparecerem, e no qual é a memória o que nos distingue, identifica, é acordar num mundo de solidão imensa.

Como em (quase) todo o cinema , há uma história de amor. É trágico este amor, e o crime aqui, como o definir? Foi Godard que disse que para se fazer um filme é preciso uma mulher, um crime e uma pistola, e não necessariamente por esta ordem.

A morte de Marc é anunciada por análises clínicas que identificaram um tumor na laringe, avançam um tempo de vida ao protagonista que não excede um ano. A decisão pelo suicídio assistido, para um regresso à vida num tempo futuro com data incerta, assim que a tecnologia médica o vier a permitir, ainda antes da falência dos órgãos do corpo o que facilitará o regresso à vida, é a opção e decisão do protagonista.

Esta decisão de antecipar a morte e impede a Noemi de viver com a morte anunciada em calendário conhecido esse tempo com Marc.

A estória do amor dos dois tem sido, foi, uma estória de sucessivos falhanços e, decisão de Marc, é sentida por Noemi como totalmente egoísta. Impossibilita em absoluto à realização da redenção, a vivencia da revelação, esse estado de transcendência, esse tempo com sabor a paraíso que é a comunhão dos amantes.

Marc e Noami, são, foram, os amantes comuns deste tempo onde a procura do êxtase transforma quotidianos em montanha russa emocional, nesta incapacidade para a permanência no tempo da construção da pertença, da permanência com e no outro, mesmo quando esse outro é sujeito que se ama.

Esta é a questão central em Realive, não sendo a linha principal do plot do filme, é o que dá unidade textual ao objecto filme.

É Marc quem, através do último grito do gadget de maior sucesso e de uso massificado nesse novo tempo em que renasceu, 2084 (um par de óculos tecnológicos com um acesso directo, profundamente intenso a todo o banco de emoções, memórias, actos, anteriormente vividos) , nos dá a ver e qualifica a relação amorosa que teve com Noami. É descrita a relação no ecrã em sequências de imagem e em “voice over” , como uma continuidade de desencontros, ora por vontade dele, ora por vontade da Noami. Primeiro ao abrigo de leituras sobre as respectivas carreiras profissionais que falam mais alto do que as exigências do compromisso na relação, depois porque quando um quer assumir o amor ao outro como realidade primeira na sua vida não é o tempo certo o fazer, segundo o outro, num vai e vem de do mesmo comboio em diferentes estações, ou linhas trocadas. Uma espécie de quando eu quero não queres tu e quando tu queres agora não estou para aí virado. E, no contínuo do tempo, desta forma, a vida amorosa dos dois amantes foi partilhada com relações mais ou menos canibais das vidas sexuais mutantes das noites e dias da cidade, naquele só estou bem onde não estou que nos cantou Variações.

Neste regresso à vida em 2084, Marc, é também um produto, o mais valioso produto de uma corporação, a valiosa publicidade concreta para a concretização da expectativa dos lucros na casa dos muitos milhões de yuan renminbi ( conhecem a moeda — o interessante no fantástico é sempre a leitura que é feita do real) . É o primeiro homem com total sucesso no processo tecnobiomédico de regresso à vida após a criogenização .

O seu imenso valor comercial é apenas comparável à profunda solidão que sente e vive.

Noami, também ela, decidiu um regresso à vida num tempo futuro, sabe-o agora Marc, neste seu regresso. Mas não fez a criogenização em tempo de fulgor anímico nas células do seu corpo como fez o seu amor Marc. E, nestes casos, o re-viver é tecnologicamente de dificuldade mais elevada e sem certeza de sucesso.

Na sua profunda solidão, Marc exige, como troca para a permissão à sua exibição como produto, o empenhamento total do gigante da industria médica no regresso à vida de Noami. Mesmo com essa promessa em linha, o seu sentimento de orfandade é total, não resiste, são demasiados tempos num tempo dentro de si que não existe. Está só, e não é Deus.

PRÉMIOS

O Júri Internacional da secção de Cinema Fantástico da 37ª edição do FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA DO PORTO decidiu atribuir os seguintes Prémios:

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME -FANTASPORTO 2017

Realive – Mateo Gil (Spain)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas)

MELHOR REALIZAÇÃO

Liam Gavin – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ACTOR

Frederick Koehler – The Evil Within (EUA)

MELHOR ACTRIZ

Catherine Walker – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ARGUMENTO

Mateo Gil – Realive (Espanha)

MELHORES EFEITOS ESPECIAIS

Drew Casson – The Darkest Dawn (Reino Unido)

MELHOR CURTA-METRAGEM

Cenizo – Jon Mikel Caballero (Espanha)

MENÇÕES ESPECIAIS

A Repartição do Tempo – Santiago Dellape (Brasil)
Garden Party – Théophile Dufresne, Florian Babikian, Gabriel Grapperon, Lucas Navarro, Vincent Bayoux, Victor Claire (França)

27ª SEMANA DOS REALIZADORES / Prémio Manoel de Oliveira

O Júri Internacional da 27ª Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto 2017 decidiu atribuir os seguintes prémios:

PRÉMIO MELHOR FILME SEMANA DOS REALIZADORES 2017

Pamilya Ordinario de Eduardo W. Roy, Jr (Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Sins of the Flesh- Khaled el Agar (Egipto)

MELHOR REALIZADOR

(Kim Jee-Woon – The Age of Shadows (Coreia do Sul)

MELHOR ARGUMENTO

Ivan Szabó , Roland Vranik- The Citizen (Hungria)

MELHOR ACTOR

Park Ji-Il – The Net (Coreia do Sul)

MELHOR ACTRIZ EX AEQUO

Nahed el Sebai – Sins of the Flesh (Egipto)&
Hasmine Kilip- Pamilya Ordinario (Filipinas)

COMPETIÇÃO OFICIAL EXPRESSO DO ORIENTE 2017

MELHOR FILME

The Net – Kim Ki -Duk (Coreia do Sul)

PRÉMIO ESPECIAL

Dearest Sister- Mattie Do (Laos)

MENÇÃO HONROSA

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas/França)

PRÉMIO CINEMA PORTUGUÊS

MELHOR FILME PORTUGUÊS 2017

Um Refúgio Azul- João Lourenço

MELHOR ESCOLA DE CINEMA PORTUGUESA 2017

Politécnico do Porto

Menção Especial do Júri para filme de Escola (Criatividade)

Schlboski – Tomás Andrade e Sousa – ETIC

PRÉMIOS NÃO OFICIAIS

PRÉMIO DA CRÍTICA

Caught – Jamie Patterson (RU)
Division 19 – Susie Halewood (RU)

PRÉMIO DO PÚBLICO

Saving Sally – Avid Liongoren (França/ Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL FANTASPORTO

Catarina Machado – Pintora – pela sua contribuição para o Festival
Rede TV GLOBO – (Brasil)

PRÉMIOS DE CARREIRA 2017

Ate De Jong – realizador (Holanda)
Glória Perez – argumentista, vencedora de Emmy

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