Cinema | Filme chinês “Last Sunrise”, de Wen Ren, vence grande prémio do Fantasporto

[dropcap]A[/dropcap] longa-metragem “Last Sunrise”, a primeira do realizador chinês Wen Ren e em antestreia mundial no Fantasporto’2019, venceu a 39.ª edição daquele festival de cinema, que premiou ainda filmes da Índia, Coreia, Austrália, Hungria e Filipinas, foi hoje anunciado.

Segundo a organização, o filme vencedor do grande prémio da edição deste ano do festival, “Last Sunrise”, é “um dos primeiros filmes de ficção científica produzidos na China, com grandes interpretações e efeitos especiais”, no qual “o astrónomo Sun Yang e a sua jovem assistente Chen Mu descobrem um mundo gelado onde projetam o futuro da humanidade depois de o sol desaparecer”.

Em comunicado, o Fantasporto – Festival Internacional de Cinema do Porto informou que o prémio destinado à melhor realização foi para o cineasta britânico Julian Richards, “pelo conjunto de dois filmes que apresentou nesta secção” (“Reborn” e “Daddy’s Girl”), num “facto inédito” no festival, onde “nunca antes um realizador teve dois filmes a concurso, ambos em antestreia internacional”.

A somar

O prémio especial do júri da secção oficial de cinema fantástico foi para “In Fabric”, do realizador britânico Peter Strickland (de “Berberian Sound Studio”, premiado no Fantasporto 2012), pelo seu “alto nível de originalidade”, tendo ainda sido atribuído nesta secção uma menção especial ao filme americano “The Fare”, de D. C. Hamilton.

O prémio para o melhor argumento foi para Rodrigo Aragão, argumentista e realizador do filme brasileiro “A Mata Negra”, e o prémio para melhor actor foi entregue a Christopher Rygh, pelo seu desempenho no filme “The Head Hunter”, uma produção norte-americana “que conta com uma forte componente lusa” e que venceu também o prémio para melhor filme na secção de cinema português.

Já a australiana Georgia Chara foi considerada a melhor actriz pela sua actuação em “Living Space”, do seu compatriota Steven Spiel, o filme húngaro “His Master’s Voice”, de György Pálfy, obteve o prémio destinado à melhor fotografia e efeitos visuais e o prémio para a melhor curta-metragem fantástica foi para o filme israelita “My First Time”, de Asaf Livni.

A 39.ª edição do Fantasporto terminou ontem.

4 Mar 2019

Fantasporto, um festival em idade adulta

A insuportável orfandade

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME-FANTASPORTO 2017, 103 minutos, realização e argumento de Mateo Gil , produção de Espanha.

Sinopse: “Marc é diagnosticado com uma doença que lhe dá um ano de vida. Não aceita o seu destino e decide congelar o corpo. Sessenta anos mais tarde, em 2084, torna-se o primeiro ser humano a ser reavivado na história. É então que descobre que o amor da sua vida, Naomi, o acompanhou de forma inesperada”.

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme começa com o renascimento do protagonista. Nascer de novo é reencontrar a memória dos acontecimentos vividos, um encontro novo com o que fomos, com o que somos.

Estruturado por capítulos o filme vive o tempo de forma não cronológica. Sucessivas elipses dão a ver um vai e vem entre o tempo da vida antes da decisão da criogenização e o do momento actual da narrativa.

O empolgante neste filme de realização cuidada, “décores” assépticos de uma realidade tecnológica já sucessivas vezes anunciada e vista em ecrã de cinema, telemóvel e electrodoméstico TV, é o mapear cirúrgico ao território da habitabilidade do hedonista urbano, através da história do protagonista. Marc é um homem urbano, contemporâneo, jovem, belo e rico, figura de sucesso na agência de publicidade onde trabalha.

Realive, interroga e dá resposta ( com a qual se pode ou não concordar – os filmes são democráticos) a uma pergunta filosófica central neste tempo de orfandade colectiva.

Pode um ser suportar a solidão da consciência da sua total orfandade?

Num tempo em que o antigo conforto da aceitação de Deus é, para muitos, impossibilidade, ou apenas desejo sonhado de pertença a uma organização possível para o mistério da metafísica. Reaparecer vivo num tempo futuro onde todos os que conhecemos desaparecerem, e no qual é a memória o que nos distingue, identifica, é acordar num mundo de solidão imensa.

Como em (quase) todo o cinema , há uma história de amor. É trágico este amor, e o crime aqui, como o definir? Foi Godard que disse que para se fazer um filme é preciso uma mulher, um crime e uma pistola, e não necessariamente por esta ordem.

A morte de Marc é anunciada por análises clínicas que identificaram um tumor na laringe, avançam um tempo de vida ao protagonista que não excede um ano. A decisão pelo suicídio assistido, para um regresso à vida num tempo futuro com data incerta, assim que a tecnologia médica o vier a permitir, ainda antes da falência dos órgãos do corpo o que facilitará o regresso à vida, é a opção e decisão do protagonista.

Esta decisão de antecipar a morte e impede a Noemi de viver com a morte anunciada em calendário conhecido esse tempo com Marc.

A estória do amor dos dois tem sido, foi, uma estória de sucessivos falhanços e, decisão de Marc, é sentida por Noemi como totalmente egoísta. Impossibilita em absoluto à realização da redenção, a vivencia da revelação, esse estado de transcendência, esse tempo com sabor a paraíso que é a comunhão dos amantes.

Marc e Noami, são, foram, os amantes comuns deste tempo onde a procura do êxtase transforma quotidianos em montanha russa emocional, nesta incapacidade para a permanência no tempo da construção da pertença, da permanência com e no outro, mesmo quando esse outro é sujeito que se ama.

Esta é a questão central em Realive, não sendo a linha principal do plot do filme, é o que dá unidade textual ao objecto filme.

É Marc quem, através do último grito do gadget de maior sucesso e de uso massificado nesse novo tempo em que renasceu, 2084 (um par de óculos tecnológicos com um acesso directo, profundamente intenso a todo o banco de emoções, memórias, actos, anteriormente vividos) , nos dá a ver e qualifica a relação amorosa que teve com Noami. É descrita a relação no ecrã em sequências de imagem e em “voice over” , como uma continuidade de desencontros, ora por vontade dele, ora por vontade da Noami. Primeiro ao abrigo de leituras sobre as respectivas carreiras profissionais que falam mais alto do que as exigências do compromisso na relação, depois porque quando um quer assumir o amor ao outro como realidade primeira na sua vida não é o tempo certo o fazer, segundo o outro, num vai e vem de do mesmo comboio em diferentes estações, ou linhas trocadas. Uma espécie de quando eu quero não queres tu e quando tu queres agora não estou para aí virado. E, no contínuo do tempo, desta forma, a vida amorosa dos dois amantes foi partilhada com relações mais ou menos canibais das vidas sexuais mutantes das noites e dias da cidade, naquele só estou bem onde não estou que nos cantou Variações.

Neste regresso à vida em 2084, Marc, é também um produto, o mais valioso produto de uma corporação, a valiosa publicidade concreta para a concretização da expectativa dos lucros na casa dos muitos milhões de yuan renminbi ( conhecem a moeda — o interessante no fantástico é sempre a leitura que é feita do real) . É o primeiro homem com total sucesso no processo tecnobiomédico de regresso à vida após a criogenização .

O seu imenso valor comercial é apenas comparável à profunda solidão que sente e vive.

Noami, também ela, decidiu um regresso à vida num tempo futuro, sabe-o agora Marc, neste seu regresso. Mas não fez a criogenização em tempo de fulgor anímico nas células do seu corpo como fez o seu amor Marc. E, nestes casos, o re-viver é tecnologicamente de dificuldade mais elevada e sem certeza de sucesso.

Na sua profunda solidão, Marc exige, como troca para a permissão à sua exibição como produto, o empenhamento total do gigante da industria médica no regresso à vida de Noami. Mesmo com essa promessa em linha, o seu sentimento de orfandade é total, não resiste, são demasiados tempos num tempo dentro de si que não existe. Está só, e não é Deus.

PRÉMIOS

O Júri Internacional da secção de Cinema Fantástico da 37ª edição do FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA DO PORTO decidiu atribuir os seguintes Prémios:

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME -FANTASPORTO 2017

Realive – Mateo Gil (Spain)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas)

MELHOR REALIZAÇÃO

Liam Gavin – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ACTOR

Frederick Koehler – The Evil Within (EUA)

MELHOR ACTRIZ

Catherine Walker – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ARGUMENTO

Mateo Gil – Realive (Espanha)

MELHORES EFEITOS ESPECIAIS

Drew Casson – The Darkest Dawn (Reino Unido)

MELHOR CURTA-METRAGEM

Cenizo – Jon Mikel Caballero (Espanha)

MENÇÕES ESPECIAIS

A Repartição do Tempo – Santiago Dellape (Brasil)
Garden Party – Théophile Dufresne, Florian Babikian, Gabriel Grapperon, Lucas Navarro, Vincent Bayoux, Victor Claire (França)

27ª SEMANA DOS REALIZADORES / Prémio Manoel de Oliveira

O Júri Internacional da 27ª Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto 2017 decidiu atribuir os seguintes prémios:

PRÉMIO MELHOR FILME SEMANA DOS REALIZADORES 2017

Pamilya Ordinario de Eduardo W. Roy, Jr (Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Sins of the Flesh- Khaled el Agar (Egipto)

MELHOR REALIZADOR

(Kim Jee-Woon – The Age of Shadows (Coreia do Sul)

MELHOR ARGUMENTO

Ivan Szabó , Roland Vranik- The Citizen (Hungria)

MELHOR ACTOR

Park Ji-Il – The Net (Coreia do Sul)

MELHOR ACTRIZ EX AEQUO

Nahed el Sebai – Sins of the Flesh (Egipto)&
Hasmine Kilip- Pamilya Ordinario (Filipinas)

COMPETIÇÃO OFICIAL EXPRESSO DO ORIENTE 2017

MELHOR FILME

The Net – Kim Ki -Duk (Coreia do Sul)

PRÉMIO ESPECIAL

Dearest Sister- Mattie Do (Laos)

MENÇÃO HONROSA

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas/França)

PRÉMIO CINEMA PORTUGUÊS

MELHOR FILME PORTUGUÊS 2017

Um Refúgio Azul- João Lourenço

MELHOR ESCOLA DE CINEMA PORTUGUESA 2017

Politécnico do Porto

Menção Especial do Júri para filme de Escola (Criatividade)

Schlboski – Tomás Andrade e Sousa – ETIC

PRÉMIOS NÃO OFICIAIS

PRÉMIO DA CRÍTICA

Caught – Jamie Patterson (RU)
Division 19 – Susie Halewood (RU)

PRÉMIO DO PÚBLICO

Saving Sally – Avid Liongoren (França/ Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL FANTASPORTO

Catarina Machado – Pintora – pela sua contribuição para o Festival
Rede TV GLOBO – (Brasil)

PRÉMIOS DE CARREIRA 2017

Ate De Jong – realizador (Holanda)
Glória Perez – argumentista, vencedora de Emmy

10 Mar 2017

Os 37 anos de Fantasporto

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá a terminar o FANTAS’2017 que nesta edição anunciou como linha de programação O CINEMA DOS NOSSOS TEMPOS.

À cidade do Porto chegaram filmes do Laos, Albânia, Egipto, Israel, Argentina, Brasil, EUA, entre outros países e cinematografias.

Assume-se como Festival de cinema generalista com especial atenção ao cinema de género. Dá cobertura à grande extensão de filmes produzidos na área do Fantástico.

Não deixa de ser um forte sinal do momento que o mundo vive, a ligação forte ao real em muitos dos filmes programados nesta 37ª edição.

O Fantasporto é um dos mais importantes festivais de cinema Fantástico no mundo, género que dá cobertura a filmes com modelos de produção e estratégias narrativas diversas que vai da ficção científica, à comédia, terror, a filmes “zombies”, ao “gore”, entre outras tipificações e, como sempre, nesta relação própria do cinema consigo mesmo, aos filmes híbridos em que os subtemas do género se misturam, recriam, apoderando-se de códigos que aparentemente lhe eram exteriores.

Antes de, em forma próxima de breves notas de diário traçar um retrato a esta edição, sem pretensão de objectividade de jornalista científico, a fazer no próximo artigo, segue um texto onde, por voz própria, a comunicação do Festival nos conta como em 1981 esta aventura que se chama Fantasporto começou.

Como nasceu o Fantasporto?

À mesa do café Luso, na praça Carlos Alberto, a cinquenta metros do que foi durante muitos a catedral do cinema no Porto, o cinema Carlos Alberto, na altura com o nome pomposo de Auditório Nacional Carlos Alberto. Na mesa estavam a Beatriz Pacheco Pereira, o Mário Dorminsky, e o pintor José Manuel Pereira. Os primeiros queriam mostrar filmes, o último, prematuramente falecido, queria expor a sua pintura. Dois anos depois junta-se à equipa o António Reis.

O primeiro apoio financeiro foi do Instituto Português do Cinema, hoje ICA, no montante de 15 contos.

Das “majors” ao cinema independente? Ou o sentido foi inverso?

Desde o início o Fantasporto mostrou as maiores produções europeias, filmes norte americanos de “majors”.  Em 1981, apresentou a primeira longa metragem de animação chinesa.

Sem rejeitar filmes de baixos orçamentos, produção independente ou experimental, o Fantasporto é desde o inicio uma montra de técnicas de vanguarda. Muitos dos filmes apresentados são Óscares, Goyas, Césars, Baftas.

Para além da programação directa junto das “majors”, o Fantasporto tem uma colaboração privilegiada com produtores e distribuidores portugueses.

Porquê o género Fantástico?

Na altura, em 1981, o género era quase desconhecido. O festival nunca foi apresentado como exclusivamente fantástico.

O “Blade Runner”, só foi produzido em 1982, um ano depois da primeira edição do Fantasporto, onde teve  ante estreia europeia.

A recessão económica impunha, então,  uma fuga à realidade. O pós-25 de Abril permitia a abertura do cinema do resto do mundo a Portugal, já não tínhamos a censura.

Tínhamos a ideia de que havia um enorme potencial do imaginário a explorar, desde Murnau aos clássicos do neo-romantismo francês. Havia ainda o Maravilhoso na literatura, na pintura, nos filmes de todos os tempos. Os cruzamentos com outras artes começaram também logo na primeira edição do festival

Georges Méliès e todos os realizadores do passado, e em todos os países, tinham favorecido a imaginação através da fantasia. Nem Akira Kurosawa nem Manoel de Oliveira ( “O Estranho Caso de Angélica”) escaparam à moda.

Hoje as grandes produções  mundiais ainda favorecem o género: “ O Senhor dos Anéis”, “Matrix”,  “ Avatar”, “Harry Poter” , etc, são a prova que todos conhecem.

Festival generalista agora, porquê?

Porque, depois do surto dos anos 80, o cinema Fantástico sofreu uma crise qualitativa, e havia que manter o nível da programação. O festival alargou os seus horizontes para todas as temáticas, no que foi seguido pela maioria de festivais do fantástico na época. Foi criada a Semana dos Realizadores, inicialmente só para os primeiros e segundos filmes.

Pedro Almodôvar foi visto pela primeira vez em Portugal com o seu filme “Matador”. Em 2002, perante a crescente importância do cinema oriental, surgiu a Secção Oficial Orient Express.

Hoje, muitas dos filmes vistos nas retrospectivas são inéditos em Portugal, e resultam de uma programação organizada em colaboração com os Ministérios da Cultura e Institutos do Cinema dos países envolvidos.

A promoção de um evento cultural

O Fantasporto é uma referência no mercado do Filme no Festival de Cannes, com um stand próprio onde divulga o festival e o país. Esta acção no maior festival de cinema e mercado do mundo, inclui uma intensa campanha nas revistas ; “Variety, ( que inclui o Fantasporto na lista dos 25 melhores festivais do mundo e envia correspondente), é apenas um exemplo, televisões, distribuidores , etc.

O festival tem das maiores coberturas mediáticas de eventos nacionais.

Uma comédia antes de adormecer

A noite de ontem terminou com a projecção no grande auditório do filme  Night of Living Deb

Uma comédia romântica e um “apocalipse de Zombies”, parece ser uma mistura com sucesso improvável, se a isto se misturar uma leve crítica de costumes e denúncias ambientalistas, ainda o parecerá mais.  Mas é isso que acontece neste filme de 2015, produção dos EUA, realizado e escrito por Kyle Rankin.

A actriz Maria Thayer, tem aqui uma interpretação divertida, fresca, capaz de levar ao riso o mais sorumbático dos espectadores.

O filme dura 85 minutos. Na verdade os zombies são uma figuração com dimensão de epidemia, todo o interesse do filme resulta da interpretação da actriz e do actor com quem contracena, este a protagonizar o cliché do “bonzão” e, no caso, filho de família de elite ambientalmente contestatário. O pai é um poderoso homem de negócios, controla a água da cidade, convive com as altas esferas do poder político executivo. Tudo é caricatura, um jogo descarado e frontal que procura a cumplicidade do espectador num humor vários furos acima do usualmente praticado no cinema que se assume, sem complexos, como entretenimento e complemento à venda de pipocas. É isso que torna o filme interessante e eficaz, capaz da surpresa do riso.

7 Mar 2017

Histórias do Fantas

37º Festival Internacional de Cinema do Porto

The  Citizen

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ilme  de  Roland Vranik, 117’, Hungria,  também seleccionado para os ecrãs do Festival de Berlim,  é de uma colagem forte ao real e ao tema da migração. A relação do eu com o outro, o reconhecimento da alteridade como processo de descoberta do eu. A Europa, espaço civilizacional e território organizacional,  é olhado como desejo e vontade de pertença  pelas populações que sofrem na dureza do quotidiano as actuais guerras da reconfiguração da ordem internacional que ocorrem no lado sul do mediterrâneo.

É com a ideia de identidade e pertença a um território com soberania própria, a nação, no caso a Hungria, e o processo de aquisição do estatuto de cidadão para quem chega de fora movido pela urgência da sobrevivência e o sonho Europa, que Roland Vranik, filma “The Citizen”.

Na sinopse do filme pode ler-se: um homem negro tenta durante anos tornar-se cidadão da Hungria

Filme de grande e aparente simplicidade, transporta-nos à realidade que sabemos existir através dos espasmos noticiosos dos prime time das tvs.

Esta realidade, a dos campos de refugiados e da guerra nos países no lado sul do mediterrâneo  é permanente em todo o filme. Em campo, seguimos as rotinas de um quotidiano banal de um homem da Nigéria.   O trabalho de segurança no supermercado de bairro de uma organização transnacional de distribuição alimentar, a vida no apartamento que partilha com um amigo, a vontade e o esforço para a obtenção do documento que confere o estatuto de cidadão húngaro.

São várias as dimensões com  relevância na inteligente construção fílmica desta obra, uma, é a eficácia com é trabalhada a percepção da presença do fora de campo enquanto elemento da materialidade narrativa.  Nunca, em nenhum momento, é-nos dado a ver qualquer campo de refugiados, ou imagens das cidades destruídas nos conflitos da guerra, nem emigrantes em movimento.  O realizador sabe que não é preciso, já todos as vimos. O que é preciso, é conhecer o outro, viver com ele a vida, o seu quotidiano de humildade, esperança, revolta. A força da dignidade do homem.  A vontade de uma vida comum, banal, pacífica, sem errância, onde a dor pode ser, se não esquecida, atenuada e tolerada no movimento repetido dos afazeres do quotidiano sem acessos constantes de intoleráveis imprevistos.

O filme mostra-nos a verticalidade, a dignidade do outro na submissão por vontade ao processo burocrático e Kafkiano para a admissão ao lugar de cidadão húngaro.

Essa vontade e a dificuldade da sua concretização levam o protagonista ao encontro com uma professora reformada, uma mulher que vive a sua família num quotidiano normal, marido e dois filhos, numa vivenda em rua tranquila com velhos castanheiros nos passeios. É a irmã da gerente do supermercado onde o herói trabalha como segurança.

Este encontro é toda uma sequência de cenas de uma rara e revolucionária beleza trazida à centralidade do filme.  O amor, a descoberta do outro, o pré-conceito, o racismo,  o ciúme e a posse,  a solidariedade,  o afecto, a aceitação da condição de diferente do outro,  a capacidade da alegria e a vontade de servir, proteger, amar .

A raridade é todo se passar numa quase total ausência de espectacularidade, a um ritmo que torna visível a interioridade dos sentidos e sentimentos com os quais se reconhece a especificidade do humano.

Olhar é este filme é também verificar o rigor e eficácia da sua construção narrativa. Logo no início, aquele que partilhava com o herói o apartamento parte para a Áustria. Vai para um novo trabalho. Pouco depois, uma mulher, jovem refugiada do Irão chega.  Não vem só. Está grávida. Sem papéis e neste contexto em que o acesso à Europa é mais do que um oceano de burocráticas dificuldades, o apartamento é uma minúscula ilha abrigo. O herói torna-se parteiro e o apartamento maternidade. A criança é uma bela menina a quem a mãe dá o nome da avó.

Os exames e as reprovações para o acesso aos papéis que conferem a cidadania sucedem-se. Para um negro é ainda mais difícil. O processo pode demorar 8 a 15 anos.

A mulher mãe de família, professora reformada, descobre novamente a paixão, muda e é expulsa de casa.  O herói é desancado, batido pelo pai e filho da professora que se tornou amante.

O desejo de posse, ciúme, a vontade de apropriação do outro, fazem com que aquela que por vontade e contra hábito instituído,  ousou amar o negro emigrante, informa a polícia da existência da bebé e da mãe.  São deportadas. Finalmente pelo correio chega a carta que confirma a cidadania do herói.

O negro, que lutou para que lhe fosse reconhecido o direito de ser igual , pela admissão à comunidade territorial de pertença, é agora cidadão húngaro. Não consegue aceitar o acto que, para a professora reformada foi de amor, e para o herói, denúncia e violência. O agora cidadão húngaro abandona o país. Parte para a Áustria onde o amigo lhe encontrou novo trabalho.

Lines

Do realizador Vassilos Mazomenos, um grego que também é produtor e argumentista, foi exibido o seu mais recente filme, cujo título original é Grammes.

O realizador é fundador e director da Horme Pictures. Este filme é a sua oitava longa metragem e os seus filmes já passaram por festivais internacionais;  Montreal, Cairo, Puchon, Sitges, Chicago entre outros.

Filme rodado em 2016, segue a abordagem estetizante e procura de uma linguagem plástica com que o realizador tem vindo a afirmar a sua carreira.

Vassilos,  tem neste filme como tema e estética cinematográfica, as consequências da crise grega em pessoas de diferentes condições sociais. Organiza a estrutura em capítulos; teatro, fábrica, escritório, rua, política, contando histórias pessoais de vivências que se desmoronam em resultado do tempo económico , financeiro e social, vivido na Grécia.

O eixo que une narrativamente o filme é uma linha telefónica de atendimento SOS para pessoas em situações de enorme fragilidade. A linha oferece exclusivamente, apoio psicológico, basicamente a disponibilidade de ouvir e, em todos os casos, é a ausência de fundos financeiros a razão do estar em crise.

Com 85 minutos, montagem de Thanos Koutsandreas, fotografia de Giorgos Papandrikopulos, o filme, com momentos de particular interesse pela composição; enquadramentos, mise-en-cène, direcção de arte, décores,  cuidados e que reflectem a abordagem estética do realizador ao seu cinema, causa alguma  interrogação e perplexidade que no entanto não parece ser suficiente enquanto abordagem para a dimensão social, cultural e económica que se propôs tratar.

Veremos o que dirá o júri do Festival.

6 Mar 2017

37.º Festival Internacional de Cinema do Porto | “O ruído não mata mas o medo sim”

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 1 de Março, 16h30, o ecrã do grande auditório Manuel de Oliveira no Teatro do Rivoli abriu-se para o formato 2:39.1. A projecção de “Comboio de Sal e Açúcar”, filme de Licínio de Azevedo, com argumento a partir do livro com o mesmo nome que o mesmo autor escreveu, começa. É uma viagem iniciática e transformadora de 93 minutos, onde a contenção e a exuberância do continente África são expressão da voz humana sitiada em corpos e almas em guerra com as trevas e as visões de luz.

Em 1988, a independência de Moçambique, a afirmação do direito de soberania e consequente anulação do estatuto de território colonizado pelo império português desde o séc. XV, tinha 13 anos. No entanto, o mundo da geopolítica, dividido entre livre e marxista, mantinha em África uma guerra pelo poder. É em Novembro de 1989, com a queda do muro de Berlim, que se precipita o fim de uma visão do mundo divido em dois blocos ideológicos e políticos.

Em 1988, em Moçambique, a guerra colonial continuava, eram outras as potências mandatárias, é sabido, e o nome dado à guerra outro.

Moçambique está em plena guerra civil. A viagem no comboio puxada pela locomotiva D 67, que liga Nampula ao Malawi, é uma oportunidade de comércio para as mulheres com a sabedoria da exigência da sobrevivência num mundo de terror e delinquência com força normativa. Trocam sal por açúcar e garantem desta forma a subsistência das famílias. Uma viagem a 5km/h numa linha sabotada, que expõe e torna vulnerável todos aqueles que a fazem, uma viagem em que se confronta a esperança e o pesadelo da guerra.

Lorenzo Esposito, programador do Festival de Locarno, festival em que o filme esteve seleccionado, escreveu: “Um relógio que já não marca o tempo. A câmara mergulha no cais de uma estação perdida. Um grande grupo de pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, ali se sentam em silêncio à espera. (…) trabalhadores, observados de longe por um grande contingente militar trabalham para fortalecer o comboio que parte. (…) um Western africano. Estamos a bordo de um comboio de amor e guerra, em direcção ao Inferno ou ao Céu, onde as mulheres têm que se defender da raiva dos soldados, apesar de algumas se apaixonarem por eles e darem à luz os seus filhos (…) o caminho é longo e perigoso, mais de 700 quilómetros que tresandam a sangue e a morte, interrompidos por sabotagens contínuas: assaltos por milícias ao serviço de senhores da guerra e ataques suicidas por tropas sem nome. (…) Os picos de violência, as mortes mais dolorosas e até os duelos pareciam ansiar fugir para fora do ecrã. São restringidos, não por serem anti-espectaculares, mas para contar a história da dignidade melancólica de um povo roubado dos seus sonhos e esperanças.”

Sim, Western africano, tal como “Apocalypse Now” (Coppola, 1979) é um a Western no Vietname, ainda que aqui sejam bem menos os planos americanos (o plano western por definição), embora sejam claramente assumidos no momento do combate final entre o herói, o tenente Taiar, que mais que a guerra sonha a paz, a agronomia e a tranquilidade de uma vida normal em família como modo de vida, e o bandido, o Alferes Salomão, que tornou a guerra sem lei a marca do seu carácter.

É Licínio de Azevedo quem diz sobre estes dois personagens que “o Taiar é um tenente com mentalidade moderna, científica, que estudou numa academia militar na Ucrânia, ex-União Soviética, e que tem um pensamento diferente por ser jovem e ter recebido formação fora do país. O seu antagonista é o alferes Salomão, que ganhou a sua patente na guerra. É um grande combatente, mas tem um visão mais fechada. Sente-se dono do mundo, dono das mulheres, do comboio.”

Licínio Azevedo, cineasta formado pelo Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, nos anos que se seguiram à independência, teve como professores Jean Rouch, Godart, Ruy Guerra, é mestre nesta sua assinatura cinematográfica, capaz de uma contenção, de um fechamento dum comboio que se move enclausurado num carril a céu aberto, num jogo permanente de tensão entre a escuridão e o desejo da luz. E não é fácil resistir à grandiosidade da expansão territorial do continente africano, mas Licínio Azevedo consegue permanecer perto das almas dos homens e mulheres, sem que o fora de campo deixe de estar presente no ecrã, não estando. Por vezes, quando a respiração da narrativa o permite, temos um plano geral da exuberância do território africano mas, quase sempre, num trabalho de grande assertividade, são personagens construídos com uma sabedoria de fino recorte, que a câmara nos dá a ver e sentir.

Ainda sobre o universo do personagens, diz-nos o cineasta: “Neste filme há três grupos de personagens: os militares que protegem e controlam o comboio, entre os quais há os bons e os maus; os trabalhadores dos caminhos-de-ferro que permitem que o comboio siga o seu caminho e que são a intelligentsia; e os civis, sobretudo mulheres, que viajam e que representam a luta humana mais básica: a sobrevivência. É como um microcosmos onde coexistem muçulmanos, cristãos e animistas, numa atmosfera de traições, ataques e morte, mas também de esperança renovada. ‘Quando o sol nasce todas as esperanças se renovam’, já dizia o meu velho Hemingway. E assim se vai mantendo o equilíbrio, porque dentro do comboio todos os passageiros arriscam as vidas. Durante a guerra temos tendência a diferenciar os bons e os maus, mas isso nem sempre é fácil. Aqueles que atacam o comboio são terríveis mas, por vezes, aqueles que o deveriam proteger são piores.”

Há personagens outros, bem desenhados, magistrais, o Caravela, uma espécie de assistente de maquinista, padre e febril nas suas preces religiosas, ou comandante, carismático, animista, líder incontestado.

O filme, uma co-produção entre Portugal, Moçambique, França e Brasil, chega ao Fantasporto após selecção em Locarno e um prémio no Egipto. Veremos o que o 37.º Festival Internacional de Cinema do Porto lhe pode oferecer.

5 Mar 2017

O Porto veste cinema

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre 20 de Fevereiro e 5 Março nas ruas adjacentes ao Teatro Municipal Rivoli,  mas com franca probabilidade numa qualquer rua da cidade, centenas de pessoas vestem-se para ir ao cinema. Poucas vestem Prada ou Chanel, estão a caminho de uma das 96 sessões do 37º Festival Internacional de Cinema do Porto, e vestem heróis, ou anti-heróis do grande ecrã; “Eduardo Mãos de Tesoura”,  “Freddy Krueger”,  “Nosferatu”, “The Joker”,  “Mulher Aranha”, para referir apenas alguns exemplos do vastíssimo guarda roupa/ícone(s) do cinema.

O 37º FANTASPORTO  reafirma a sua marca, fortíssima no circuito dos Festivais de cinema de género do mundo, com a presença confirmada de 125 filmes inéditos, (ante estreia nacional, ante estreia europeia, ante estreia internacional e em ante estreia mundial)

O filme de abertura é “The Age of Shadows” de Jee-woon Kim, já passou na Selecção Oficial dos Festivais de Veneza e Toronto, teve o prémio do Melhor Filme do Festival de Filadélfia. É uma superprodução, e é o candidato aos Óscares pela Coreia do Sul,  e um êxito de bilheteira no mercado asiático.

O realizador, Jee-woon Kim, ganhou a 24ª edição FANTASPORTO (2004), com o filme “ A Tale of Two Sisters”.

Na Selecção Oficial estarão 33 países, a concurso ou fora de competição.

Todos os filmes novos abordam o modo como o real de hoje nos afecta, nomeadamente às guerras ( “Bloodlands “ da Albânia), o drama dos migrantes (“The Citizen”da Hungria), a realidade das mulheres muçulmanas face ao adultério ( “Sins of the Flesh”, do Egipto, produzido pelo celebrado Youssef Chahine) ou a realidade económica da Europa (o filme grego “Lines”). Reflexões também quanto à sustentabilidade do nosso futuro com o espanhol de ficção científica “ReAlive” ou o britânico-americano “Division 19” .

Também presente a crítica social  à burocracia com (“A Repartição do Tempo”, uma das maiores  e mais divertidas superproduções do Brasil deste ano. Destaque ainda para um dos maiores realizadores mundiais do momento, o coreano e amigo multi-premiado do Fantasporto, Kim Ki Duk com “The Net” . Também coreano, e do meste da animé Yeon Sango, “Seoul Station” vai estar no ecrã do Rivoli.

Os filmes portugueses em competição que fazem a sua estreia Mundial nesta edição do festival são as longas metragens ”A Ilha dos Cães” ,“A Floresta das Almas Perdidas”  e “Comboio de Sal e Açúcar”.

A longa-metragem “Rewind” produção suíça do português Pedro Joaquim, também tem aqui a sua ante-estreia mundial. Destaque ainda para o Prémio de Cinema Português que vai novamente escolher  o melhor filme e a melhor escola de cinema. Na programação, como é usual, fazem parte inúmeras curtas-metragens.

Nas retrospectivas o destaque vai para o CINEMA DE ACÇÃO DE TAIWAN,  organizada oficialmente pelo governo local de Taiwan, um conjunto de clássicos, muitos inéditos em Portugal.

Igual destaque merece a retrospectiva do moderno CINEMA ARGENTINO , com, entre outros, os recentes  “ El Ataud Blanco” e “ El Muerto Cuenta su Historia”.

Nesta apresentação síntese,  de referir ainda o programa especial de cruzamento com outras artes com um conjunto de conferências e workshops.

O filme de encerramento, deste 37º festival Internacional de Cinema do Porto,  actualmente  classificado como um dos 10 melhores festivais independentes no mundo, ainda não está anunciado.

O Festival vive de uma programação objecto de grande atenção, de uma cidade e de um público muito particular. Um público de festival que vive intensamente a alegria partilhada de ver cinema na sala escura, exuberante, capaz de gritos, berros, falas para o ecrã, na melhor tradição dos afectos do grande público ao grande ecrã.

Nas edições anteriores do festival foram muitos os nomes com destaque na cinematografia mundial presentes na cidade do Porto, aqui ficam alguns; Ben Kingsley, Luc Besson, David Lynch, Neil Jordan, Max von Sydow, Rosana Arquette, Danny Boyle, Serguei Paradjanov , Anthony Minguela, John Hurt,  Pedro Almodóvar, Paul Anderson, Danny Boyle, James Cameron, Nick Cassavetes, Joel Coen, David Cronenberg, John Carpenter, Roland Emmerich, David Fincher, Terry Gilliam, Peter Greenaway, Michael Haneke, Peter Jackson, Takashi Miike, Anthony Minghella, Vincenzo Natali, Tim Robbins, Roberto Rodriguez, Ridley Scott, Quentin Tarantino, Guillermo del Toro, Lars von Trier ou Larry Wachowski.

E muitas as retrospectivas, Jean Cocteau a Orson Welles,  Vivente Aranda, Juan Luis Bunuel, Brian de Palma, Bigas Luna, Dario Argento, George Mélies, André Delvaux, Mario Bava, Terence Fisher, David Cronenberg, René Laloux, Tobe Hooper, Georges Franju, Luis Bunuel, Andrzej Zulawski, Paul Verhoeven, Harry Kumel, René Clair, Marcel Carné, John Waters, Andy Warhol, Leni Riefenstahl, Michele Soavi, David Lynch, Walt Disney, Alfred Hitchcock, , Mojica Marins, Nelson Pereira dos Santos, Jesus Franco, Alex Cox, Julien Temple, Oswaldo Caldeira, Hershell Gordon Lewis, Lucio Fulci, Christpher Lee, Takashi Miike, Sabu, Shynia Tsukamoto, Jean Renoir, Ed Wood , António de Macedo, José Fonseca e Costa, Fernando Lopes, não citando todas.

É fácil perceber o prazer da cidade neste Festival que, com o património edificado e simbólico e o mundialmente conhecido vinho e rio Douro, que aqui a si mesmo se esquece no sal Atlântico, afirma de forma brilhante o Porto no mundo contemporâneo.

24 Jan 2017