Por coincidência, falso marquês

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ual teria sido a finalidade de Madame Blanche Lachmann se casar com Albino Paiva? Num anterior artigo referimos as famílias ligadas à nossa personagem principal, mas faltou falar da descendência proveniente do casamento de Francisco José de Paiva com Inácia Vicência Marques. Os avós do lado materno de Albino Francisco de Paiva de Araújo tiveram oito filhos e se aqui apenas nos interessa Mariana, uma das cinco filhas e mãe do nosso biografado, já o seu tio, Francisco José de Paiva filho (1801-1849) foi o elemento da família mais distinto e quem deu o nome à Travessa do Paiva. Sobre ele haveremos de tratar em próxima ocasião. Outra filha deste casal, que mais adiante irá aparecer nesta história, é D. Antónia Maria de Paiva, nascida na freguesia de S. Lourenço a 22 de Dezembro de 1816 e que casou em Lisboa com Francisco Rebelo de Albuquerque de Mesquita e Castro, 2.º Visconde de Oleiros, segundo informações de Jorge Forjaz no livro Famílias Macaenses.

Em Paris, sobre Albino Francisco de Paiva de Araújo, Flectwood-Hesketh diz ser “marquês de Paiva Y Aranja com quem [Thérèse Blanche Lachmann] se casou em Passy em 5 de Junho de 1851. Paiva era primo do embaixador português. Aparentando ser muito rico, ele estava na realidade profundamente endividado; as grandes propriedades em Portugal, de que ele se dizia herdeiro, eram inteiramente fictícias. Ele vivia do dinheiro de Teresa; primeiro ficaram na rua Rossini, depois numa casa curiosa no Lugar de S. Jorge, de escultura gótica, construída em 1840 pelo arquitecto Renaud. Em troca do seu grau nobiliário, ela deu dinheiro a Albino, mas só o mínimo da bênção nupcial; e durante um ano uma nova luz navegou na sua órbita.” A informação de Albino Paiva de Araújo ter o título de Marquês não é verdadeira, nem tão pouco o de ser primo do embaixador português em Paris, o Visconde de Paiva. No entanto, é espantosa a coincidência pois encontrava-se em Paris na mesma altura Francisco José de Paiva (1819-1868), 1.º barão em 1853 e 1.º visconde de Paiva em 1858, como enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de Portugal em Paris. Este era filho de D. Ana Sofia Thompson e de José Caetano de Paiva Pereira, fidalgo cavaleiro da Casa Real e membro do Supremo Tribunal de Justiça. Casado com Carlota de Oliveira Maia a 19-12-1838, foi eleito par do Reino em 1862. Em Paris contraiu enormes dívidas, que não conseguia pagar e por tal foi transferido para Berlim e aí se enforcou de profundo desgosto em 1868. Interessante paralelismo com a história do nosso boémio, Albino Francisco de Araújo, que também se suicidou e cujo avô e tio tinham o mesmo nome do embaixador português em Paris.

O final de Paiva de Araújo

Foi pelo título (falso) de marquês que Blanche Lachmann se casara com Albino de Paiva de Araújo, pois, já 40 vezes milionária desde que viera de Londres, faltava-lhe apenas um título para adquirir dignidade na sociedade, condizente com a sua opulência e assim, passou a apresentar-se com o seu marido, o marquês de Paiva. O padre Manuel Teixeira refere, “Ainda vivia com este suposto marquês, que era o seu segundo marido, a quem dera dinheiro em troca do seu grau nobiliário, quando foi apresentada, pelo cônsul alemão Félix Bamberg numa noite de ópera em 1852, ao conde Henckel von Donnersmark”.

Segundo Camilo Castelo Branco: “Dobaram-se alguns anos em que nada averiguei; até que, em 1873, li nos jornais portugueses que Paiva Araújo se suicidara em Paris. Conversando a tal respeito com António Augusto Teixeira de Vasconcelos, em Lisboa, por 1874, me disse o famoso escritor, que o conhecera muito em Paris, e tinha exactas informações da sua morte.

O marido indigente de mad. de Paiva procurou congraçar-se com a sua marquesa, que vivia opulentamente no seu palácio de Pont-Chartrin, o das 365 janelas, decorado por Paul Baudry, ligada ao conde Henckel de Donnesmark. Ela repeliu-o. Paiva manteve-se algum tempo de empréstimos, e pequenos donativos talvez da mãe com que ia disfarçando a sua pobreza aos olhos de outros a quem tencionava recorrer”.

O Padre Manuel Teixeira refere, “Tendo obtido do Santo Ofício a anulação do seu casamento com o <Marquês> de Paiva a aventureira consorciou-se pela terceira vez com o Conde Henckel de Donnesmark, rei do cobre da Silésia”. Peter Flectwood-Hesketh dá as datas, “Em 16 de Agosto de 1871, o casamento de Blanche com Paiva foi anulado pelo Vaticano e em 28 de Outubro ela casou com Henckel na igreja evangélica da Confissão de Augsburg na Rua Roquépine, Paris. Paiva vivia no n.º 11 da Rue Neuve des Mathurins. Em 8 de Novembro de 1872 ofereceu aos seus credores um jantar particular na Maison Dorée, o qual ele não podia pagar. Voltando a casa nessa noite, pôs termo à vida com um tiro de revólver no peito, tendo 45 anos de idade”. Mas segundo escreve Camilo Castelo Branco, “Um dia, em grande apuro, escreveu pedindo 2000 francos a um rico e antigo conviva dos seus desperdícios, e, juntamente com a carta, meteu na algibeira do fraque coçado um revólver. A carta foi, posta interna, ao seu destino, e a resposta, no dia imediato, foi entregue ao porteiro do hotel. Quando voltou a casa e leu a resposta negativa, ainda subiu alguns degraus, e, no primeiro patamar, caiu moribundo com um tiro no peito. Se bem me lembro, foi o ministro português quem pagou o carro que conduziu o cadáver ao Pére La Chaise.

Depois, a viúva que, até esse dia, se chamava marquesa, pelo seu segundo marido, casou com o terceiro, que realmente a fez condessa. Não duvido que Paiva Araújo se intitulasse marquês em França. Jeronymo Collaço também se intitulava conde, e, a falar verdade, não carecia d’esse ridículo para se distinguir.

Só duas palavras mais a respeito da mãe de Paiva Araújo. Há-de haver oito anos que a sua casa, ricamente ornamentada, foi à praça para pagamento de dívidas. Ela tinha sacrificado quase toda a sua meação para salvar o filho. Pagou as dívidas, e retirou-se com umas sobras mesquinhas para um pobre casebre rural, nos arrabaldes do Porto. Não tenho a certeza de que ela já gozasse a suprema felicidade de morrer”. Assim termina Camilo Castelo Branco a sua crónica publicada no Jornal da Manhã de 13 de Julho de 1885, mas no livro Boémia do Espírito, editado no Porto em 1886, acrescenta em nota duas cartas que recebera no entretanto de amigas da macaense Senhora Paiva para o esclarecer. Interligando essas duas cartas, pois o conteúdo repete-se, fica-se a saber que “Vivia no Porto, na rua de Santa Isabel [próximo do jardim Arca d’ Água], recebendo uma pequeníssima mesada [proveniente de Lisboa] que lhe davam a irmã [D. Antónia Maria Paiva] e sobrinha, viscondessa dos Olivais e viscondessa de Oleiros, mesada que mal chegava para viver debaixo da maior economia” e na outra carta se refere, “A infeliz macaense faleceu no dia 26 de Maio último (1885) com 88 anos, (…e…) está enterrada na Lapa, da qual foi uma grande benfeitora” e regressando à primeira carta, “Foi aquela Irmandade que lhe fez o enterro gratuitamente, como lembrança de algumas esmolas que ela, em tempo, deu àquela Irmandade”.

31 Mar 2017

Reflexões lexicais

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] língua, elemento altamente contorcionista do aparelho fonador, gerada e não criada, consubstancial ao som, por ela todas as coisas foram feitas, e por elas feitas, e por elas começadas, de novo há-de aparecer no cimo das Nações para julgar os vivos e os mortos. 

O Acordo Ortográfico a um primeiro instante pouco atencioso, bloqueia: bloqueia quem de outras fonéticas, e sons e signos, foi gerando a matéria das suas fundações, mas não deve bloquear quem não tem termo de comparação, pois tudo o que se fixa como regra é indiscutivelmente fácil de apreender. Mas nós que somos de muitas camadas de evolução fonadora ficamos pouco à vontade, pois que de nós ninguém se compadece. Nós, que somos ainda da geração do Crepúsculo dos Deuses – filhos deles – portanto, filhos de Deus, vamos assistindo à vinda do Filho do Homem e estas coisas requerem ajustes, tais como a modificação da primeira origem que passa por aperfeiçoar ou mesmo reduzir a complexa estrutura de um sistema que nem sempre serve bem a causa a que se propõe. É também por causa da palavra, de Babel ,que tudo se tornou subitamente mais isolado.

Talvez que a primeira sensação de bloqueio venha justamente da severidade espartana da queda de caracteres, como se ruíssem impérios a partir da pedras angulares, caracteres minguados, desajustados, falta de caracteres, que diminuem o carácter de uma língua. A língua é noção de fertilidade fazendo alma no ser e ela será sempre materna ou não será: ela fica por isso muito bela na sua progressão germinal, na ortografia nunca sentimos ser de mais os signos léxicos – os hífens, as cedilhas, os apóstrofes, as reticências, as vogais, as consoantes mudas, o desalinho, a orquestração, a composição, a arte visual do seu grafismo. Tirar caracteres é amputá-la, facilitando até a confusão entre sinónimos, é reprimi-la. Ora a Língua não pode jamais ser reprimida, quanto muito acrescentada. Esta sistematização de amputação sistemática parece até uma queda da linguagem num local qualquer, uma maneira insidiosa de a instrumentalizar, parece que se perdeu a sensibilidade geradora de realidade manifesta que só ela transporta. É por isso que parece também desprovido de sentido o muito que se diz, o muito que aflitivamente todos querem dizer antes que acabe o tempo de não mais se poder fazê-lo. Estamos todos à beira de uma catástrofe alfabética com lesões cerebrais de tal ordem gigantescas que não sabemos prever as suas consequências. Fomos construindo matéria a partir dela – Ovo Cósmico – na medida em que acrescentamos pela linguagem toda a forma de ajustar a nossa própria dimensão… Talvez, sim, a Língua seja barroca, fractal, gasosa, líquida, fogo, terra… a Língua não é um implante: caem-nos os dentes, outros nascem, a língua ninguém a perdeu nem achou.

Bem capaz pode ainda ser que o aparelho fonador tenha os chamados” dias contados” em sílabas, números, e marés, e que míngue tanto que recue o dom da fala. Mas enquanto o ar nos der à entrada da vida o primeiro som, hei-de dela lembrar o Grito! Ela associa-se ao primeiro fenómeno vivido, escutamos a mãe – a mãe grito – choramos – abrimos o ar – gritamos por fim. Nascemos foneticamente preparados para a linguagem e é no primeiro som nascente que fixamos o fonema e dele partimos para a fala: procuramos o som, a voz da mãe, e não a sua forma, escutamos latidos, gemidos e risos, sabemos da vocação de criar laços tão gigantes como frases. Mas será que a nova humanidade se lembra deste registo? Não, o nascer asséptico implantou um clone adiado, a cesariana matou a forma do “nascido para falar”. Há grito? Há som? Há gemido? Não há. E curiosamente oiçamos eles falando (novos seres): o que entendem da articulação verbal das suas linguagens? Muito pouco, se estivermos atentos não há paralelo com o tempo da Linguagem, que, como é sabido – eles falam – mas por Acordos, que não acordam como nós tantos lados importantes do dom da dita linguagem, que poderá ser agora à nova luz da silhueta mundial até um desajuste.

Dito assim, apenas desejei acrescentar a esta discussão um ponto mais na ordem das coisas pensadas e, observando como os mudos, o mundo, sei que algo grave para nós, últimos herdeiros de uma vontade feita pela palavra, está objectivamente a acontecer. Não sabemos nada de como se vão adaptar as funções. Imaginemos um mundo telepático, preciso, mais filtrado de leveza. Pode ser que sim, que seja este o caminho, mas a nós faltam as peças desta futura construção, não somos consensuais e não temos de facto nenhuma razão para sê-lo. Deixem-nos a herança de um sonho que passou, pois que não será possível derrubá-lo. Estamos demasiado velhos para orientações e suficientemente sábios para reflectirmos as coisas, a nossa vida vai ser demonstrar que não passámos nem de moda, nem de tom, e que, se guardamos intactos todos os verbos, é por que onde tudo muda, é preciso algo que não mude e esses são os construtores da memória. Ninguém se vai lembrar dos que fazem a subtração alfabética e que reduzem a implante o que todos conquistámos gritando, dizendo até a voz nos doer.

Não estando na sintaxe dos modos e dos tempos, acresce informar que a inventividade não se rasura com bisturis orientados nem com tesouras que permanecem afiadas como em tempos de censura, e na língua, como no amor, retirar é uma falta grave: pese embora o ganho dos línguístas em assuntos da matéria, esses bens ficam para os números que precisam ter a beleza abstracta da sua função: dinheiro será por fim uma mera sigla em que até o número desaparecerá e a palavra que produz, será apenas uma ordem.

E, findo o acto, o pano cobre o palco e nestas coisas estranhas acontece pensar da saudade se delas nos esquecermos – das palavras – de como nos fizeram companhia quando todos levaram os seus tristes acordes para outro lado, de como por elas quase fomos mortos. E depois, por elas, ressuscitámos: pensamos na intrigante doença do esquecimento e no banho de ninguém a ser sujeito, e de como continuar, se tal mal nos der a paz de esquecer.

31 Mar 2017

Rita Taborda Duarte | A poesia é um acto de resistência

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens vários livros de poesia editados – em Novembro passado escrevi aqui no jornal acerca do teu Roturas e Ligamentos – e outros tantos de literatura para jovens. Além de tudo isto és também professora de literatura na universidade. Presumo que sejam registos diferentes de pensares a palavra e o mundo. Gostava que me falasses desses diferentes registos.
Os registos da poesia e da escrita para a infância são muito similares: partem até de uma mesma atitude sobre o mundo e o modo como o relacionamos com a nossa própria linguagem. As crianças têm, perante a língua, uma atitude de espanto, desconfiança, mesmo incompreensão; nada do que lhes és dito lhes surge como estático, consabido, pré-definido; apreendem cada palavra à imagem da fluidez do seu mundo; constantemente, usam vocabulário novo e são inventivas, quando se apercebem de que a língua é pobre e fica aquém de toda a complexidade do seus universos. Os adultos, que por cá já andam há mais tempo, olham a língua de longe e do alto; usam a linguagem como uma moeda de troca gasta, cansada, repetitiva, como se não percebessem que a língua não tem a função de representar o mundo, mas de o ser, de o construir. Assim, a poesia está próxima do olhar inaugural da criança e do seu espanto; é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. Aliás, as palavras, amiúde, não seduzem o poeta coisa nenhuma: agridem-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, tão gastas, usadas, não para dizer o mundo (para isso, basta-nos, simplesmente, uma mão cheia de enredos de dicionário), mas para o reconstruir à sua imagem. A verdade é que todos nós passamos boa parte da vida a aprender a ajustar-nos à nossa língua materna; a diferença do poeta é que este procura passar todo o resto da sua vida a tentar desaprendê-la, a desfamiliarizar-se dela, buscando recuperar o olhar inaugural das crianças, quando se confrontam com a linguagem pela primeira vez e a descobrem cheia de enigmas. Na faculdade, eu não ensino literatura (dou aulas na Escola Superior de Comunicação Social), o que, na verdade, me dá uma enorme liberdade para falar de literatura, exactamente do modo que me apetecer. Ou seja, sem rodriguinhos, nem punhos de renda e sem ir cheia de pruridos e cerimónias «ao encontro do texto literário»; pelo contrário, posso ir «de encontro ao texto»; que é exactamente a forma como se deve ler: provocando-lhes umas justas amolgadelas e claro, saindo de dentro dele, do texto, também com algumas mazelas.

Recentemente, há um mês, lançaste um novo livro para crianças, Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos, em parceria com o artista plástico Pedro Proença. A ideia partiu de quem?
No caso particular de Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos (Caminho, 2017) o texto surgiu primeiro. E apareceu, efectivamente e uma vez mais, como espécie de necessidade infantil (para se escrever para crianças, assim como para se ser poeta, deve-se ser um bocadinho infantil) de perceber que por dentro das palavras vivem outras palavras e ainda outras palavras, ainda, que podemos sempre desconstruir, transformando-as, ainda, noutras diferentes, que por sua vez edificam outras coisas novas no mundo. Dos Animais (que são «mais») passei, assim, para os animenos (que são, claro está, «menos»). O desafio ao Pedro surgiu como uma evidência, diria mesmo uma necessidade óbvia: quem melhor do que ele para dar corpo e forma a animenos inventados? Ele que é o especialista em fazer nascer de um traço criaturas que já lá viviam, sem nós nos termos apercebido? Eu criei os animenos com palavras, é certo, mas o Pedro é que acaba por ser o verdadeiro criador, ao dar-lhes sopro da vida. No princípio aqui foi o verbo, mas foi o Pedro Proença que do verbo lhes deu vida.

Qual a importância da artes visuais na tua vida, tendo em conta que ela atravessa tanto os teus livros?
A relação mais óbvia e imediata que me ocorre, digo-te por antinomia, terá a ver com o facto de eu não ser não ser capaz sequer de desenhar uma linha direita; uma iletrada por completo a desenhar seja o que for, por isso também a minha admiração por quem cria mundos palpáveis, com formas, texturas e cores, assim, só com um mover rápido de mão. Tenho uma admiração enorme por isso, já que nem as letras (a minha suposta matéria prima) consigo desenhar… Mas, agora que falas nisso, vejo que tens razão em algo de que nem me tinha bem apercebido. Além dos livros infantis, os meus livros de poesia têm, de facto, uma componente visual forte; um livro de 2004, «Sentidos das coisas» é todo feito a partir da percepção (não só, mas também visual), e grande parte desses poemas de então partiam de objectos pictóricos (quadros, pinturas, esculturas), que, não estando reproduzidos no livro, são pictoricamente reinterpretados através de imagens (ilustração e fotografia) do Luís Henriques. Também Roturas e Ligamentos, o meu último livro de poesia, é um livro duplo: o meu texto interliga-se com a relação poético-pictórica (incrível e belíssima) do André da Loba, que forma a outra face do livro. Na verdade, a questão da percepção (a minha tese de mestrado é sobre isso mesmo, mas a propósito da percepção crítica sobre a poesia) e o modo como incorporamos em nós o que vemos é muito interessante, porque podemos ler tanta ambiguidade na percepção visual como na linguagem; a pintura, por exemplo, é bem o exemplo disso mesmo. A pintura fará ao mundo o mesmo que a poesia: rasura-o e escreve por cima. Na verdade, não acredito nada naquela máxima velhinha de São Tomé… Não: «crer para ver», assim é que deve ser; como fazem as crianças, os poetas, os pintores e melhor ainda farão os poetas-pintores.

Voltando à poesia, aquando da leitura do teu Rotura e Ligamentos, não pude deixar de ver o quanto para ti a ética se liga à palavra. Para além da estética, a palavra é um instrumento ético. Não apenas no sentido da “palavra dada”, isto é, não apenas no sentido de nós com os outros, mas principalmente no sentido da responsabilidade por nós mesmos. Nós somos as palavras que usamos, as palavras que lemos, as palavras que pensamos e até as palavras que calamos. Gostava que nos falasses disto.
A poesia, por si só, é, quanto a mim, um acto de resistência; de resistência contra a própria língua que está aquém ‒ se não a torcermos, se não a torturarmos ‒ de todo o mundo que há por dizer e por construir. Enquanto não percebermos que a poesia não é algo sequer essencial, sendo simplesmente a essência, vamos continuar a tornar o mundo mais pobre e mais unidimensional. É isto que nos diz um dos verso de Carlos de Oliveira ( um neo-realista que percebeu que a poesia por si mesma é uma arma de resistência, exactamente pela própria carência da linguagem: Rosa martelo fala disto mesmo no seu ensaio sobre Carlos de Oliveira) que me habita a memória desde há muito tempo: «elevar a torre do meu canto/ é construir o mundo /pedra a pedra.» A literatura, a poesia, não é, mau grado o platonismo, uma forma mais ou menos incipiente de imitação, sequer de representação, da realidade; é, sim, uma construção do real… sem ela, teremos menos mundo no mundo à nossa volta. Só por isto a poesia será uma questão ética e também uma forma de resistência política. Uma linguagem pobre, rasteira, reflecte um mundo igualmente indigente e em vez de o edificar torna-o mais rarefeito. Mesmo que não trate de temas políticos, a literatura é sempre um proposta ética, que não se limita a aceitar simplesmente o mundo como ele supostamente é; torna-se parte activa na sua reconstrução e funda um modo de o recriar, mais do que o re(a)presentar. É o que tu dizes, na tua própria questão: o mundo é a linguagem, e nós somos as palavras que usamos e também as que calamos. Em tempos numa entrevista [para o jornal Abril Abril] a uma pergunta similar lembrei-me da formulação de Jorge Luís Borges que dizia que todos os livros eram auto-biográficos. Penso que, parafraseando o escritor argentino, podemos também dizer que toda a literatura é política: alguns textos poderão até iniciar-se desta forma «Aconteceu certo dia em Alepo», outros poderão iniciar-se assim : «Num certo lugar da Mancha, cujo nome amanhã o direi», na tradução de Aquilino, que sempre recordo. Na verdade, tudo o que sabemos do mundo muda-nos; tudo o que escrevemos acrescenta mais mundo ao mundo; e as palavras são parte intrínseca deste mundo que habitamos: não são o revestimento, são o miolo.

Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento?
Penso que terá acontecido uma coisa muito interessante com a poesia, nos nossos dias; por ser o parente mais pobre da literatura, aquele mais miserável e esfarrapado, a que os grandes grupos editoriais fecham a porta com um misto de náusea e condescendência (as pessoas são condescendentes com os poetas, e isto acontecerá talvez, como já disse, por eles serem tendencialmente infantis), foram sendo criadas editoras mais pequenas, que publicam, militantemente, livros de poesia, com um desmedido desprezo pelos mercados, e com verdadeiro gosto e entusiasmo pelo trabalho poético, pela palavra dita e escrita; editoras independentes, que acabam por juntar os poetas, promover leituras, tertúlias, e que permitem que a poesia ocupe, de facto, contra todas as expectativas, a cidade, o espaço público. A poesia, efectivamente, excede, graças a essas editoras, o circuito interno comercial do livro fechado, que tantas vezes se resume ao vendável ou não vendável ou a um lugar provisório na estante da livraria: isso é muitíssimo interessante. A abysmo, a que pertenço (e eu sinto a ideia de pertença relativamente à abysmo de uma forma muito forte, como casa que de facto acolhe a minha poesia e a de poetas que muito admiro) é um exemplo disso mesmo. Mas muitas outras editoras, pequenas, têm tido um papel relevante para impedir que se expulse definitivamente os poetas da República; pequenas casas editoriais que fazem um notável trabalho de resistência, com catálogos muitos diversos, mesmo perspectivas diferentes, mas espaços que acolhem resistentemente e com critério a poesia. Citando algumas, e vou pecar por esquecer injustamente outras, reconheço as chancelas do «homem do saco», onde também já editei, na «douda correria», em «do lado esquerdo», «averno», «língua morta», «tea for two», «licorne», «mariposa azual», como alguns exemplos que têm tido uma defesa activa da poesia, contra todas as circunstâncias, divulgando e revelando, contra a maré, novas vozes poéticas.

Que projectos tens para este ano?
Estou a escrever um novo livro de poesia, que penso que estará terminado depois do Verão. Já tem título, de há uns dias para cá: por agora chama-se «A Cabeça do Louva- a- Deus». Curiosamente, é um livro que não é para crianças (soa mal dizer que é um livro para adultos: rasteiras da nossa linguagem), mas que parte de imagens, desenhos a tinta da china, do Pedro Proença. Desta vez, aconteceu o processo inverso: ele desenhou (são cerca de quarenta desenhos, belíssimos e terríveis, com um louco imaginário fundado em mitologia) e eu, a partir dessas imagens extremamente fortes, estou a fazer o que a poesia faz naturalmente ao mundo; ao mesmo tempo a resistir-lhe, a provocá-los, e a apr(e)endê-los, também; tornando-os meus e, consequentemente, naturalmente, rasurando-os… com palavras.

31 Mar 2017

Duelo de gigantes: Ernest Hemingway, “O Velho e o Mar”

Hemingway, Ernest, O Velho e o Mar, Livros do Brasil, Lisboa, 2011
Descritores: Literatura Norte Americana, Tradução e Prefácio de Jorge de Sena, Ilustrações de Bernardo Marques
Cota: 82-31 Hem

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] propósito, além de Fitzgerald, Hemingway privou com  Ezra Pound (1885 – 1972),  e Gertrude Stein (1874 – 1940), sendo um dos membros da comunidade de escritores expatriados em Paris conhecida como “geração perdida”, nome inventado e popularizado por Gertrude Stein. Entre todos talvez tenha sido Gertrude Stein, que, pelo seu estilo, mais tenha influenciado o escritor Hemingway.

Há um facto que me intriga e deixo aqui à discussão. Estou a pensar na hiperbólica fama de Hemingway. Ele é provavelmente o escritor oriundo dos Estados Unidos, mais popular e mais conhecido. É um verdadeiro fenómeno mediático à escala internacional com simpatias em todos os continentes. Foi um grande escritor, sem dúvida, mas quer pelo volume da obra ou pela sua qualidade, terá sido superior a Twain, muito mais antigo, mas também Faulkner, Fitzgerald, Steinbeck, Salinger que são autores da mesma época, com excepção de Salinger que é um pouco posterior e havendo ainda Melville, Burroughs, Bellow, todos em épocas diferentes mas igualmente icónicos para as suas épocas. E se pretendermos explorar o tema da vida aventureira a questão é a mesma não faltam na literatura americana vidas exemplares desse ponto de vista. Mas reconheço que nesse plano Heminngway seja insuperável sobretudo pela imensa variedade de lugares, paixões e não me refiro apenas às paixões amorosas, actividades etc.

Dever-se-á  ao facto de ter desenvolvido uma técnica narrativa muito enxuta, quase cinematográfica, “onde as personagens se movem em quadros e os detalhes mais pormenorizados se evidenciam apenas na estrutura da narração”? Penso que o segredo estará na intersecção de tudo isto.

Escolhi escrever sobre O Velho e o Mar, para começar a escrever sobre Hemingway. Tinha lido alguns contos, bons, e o Adeus às Armas que não me entusiasmou por aí além. Como procuro sempre uma razão, ou mais, para o entusiasmo ou para a decepção, pequena ou grande, provavelmente terei que admitir que tendo o Adeus às Armas (1929) sido mais ou memos contemporâneo do Viagem ao Fim da Noite de Céline (1932) e tendo eu gostado incomparavelmente mais de Céline, que achei mais moderno e literariamente mais poderoso, do ponto de vista narrativo, mas também, no plano semântico e da modernidade. O Viagem ao Fim da Noite é um romance de vanguarda para a sua época, modelo tal como o autor, não só por este romance mas pelo conjunto da obra, para a Beat Generation, que contudo não produziu nenhum escritor da grandeza de Céline. Mais tarde com a Morte a Crédito Céline afirma-se como um escritor muito à frente do seu tempo. Um génio, portanto, que nem a atoarda de Sartre querendo fazer crer que ele teria colaborado com Hitler, o que é mentira, ofuscou a grandeza e carácter inovador da sua obra. Nada disto descobri em Hemingway, quando li o Adeus às Armas. Mas adiante.

Regressemos ao Velho e o Mar e façam-se as perguntas certas, para ver o que é que o pequeno texto tem para nos dizer. Porém começo pela história, antes de mais. A personagem principal são duas, um peixe, um grande peixe parece um espadarte, isso sem dúvida e Santiago, velho pescador cubano de à volta de 80 anos que não consegue pescar nada há 85 dias. Será da velhice, o seu amigo e grande admirador, o jovem rapaz Manolim, diz-lhe que não. Diz-lhe que não e irá mantê-lo mesmo quando as coisas se complicarem ainda mais, tal é o seu respeito, admiração e amor pelo velho. E sobretudo fé nas suas qualidade e na sua experiência. Lá mais para o fim da história fará mesmo menção de passar a pescar com o velho, pois este é simplesmente o melhor. Se não é a idade então o que é. Para o rapaz e sobretudo para o velho, de antes quebrar que torcer, só pode ser o azar ou a falta de sorte como se preferir. O velho não é apenas velho, é doente de mazelas várias, o que não é nada anormal, o próprio Hemingway, na época em que escreve O Velho e o Mar é já hipertenso, diabético e sofre de depressão e hemocromatose, sendo que esta é que é a grande responsável pelo resto de toda a morbidez. Hemingway, sabe o que é a dor e o sofrimento, o enfraquecimento e o desalento que a doença pode provocar.

Mas mesmo assim, com o seu cancro de pele e as tonturas, o velho lobo do mar luta contra a sua sorte e num desses dias de ir ao mar dá-se o que se pode considerar o encontro de uma vida, assim o narra o velho, o encontro com aquele espadarte de mais de cinco metros e de pelo menos 700 quilos. Vai ser uma luta sem quartel, uma luta que só não é olhos nos olhos, face a face, frente a frente por causa do elemento mediador, o mar e a sua profundidade, embora a espaços os seus olhos se tenham cruzado com um misto de espanto, de temor e de respeito. É uma luta de gigantes, dignos um do outro, esta, entre um belo exemplar da dignidade da natureza e um bom exemplar da humanidade. É uma luta sem quartel e sem direito a compaixão, mas as apóstrofes que o lobo (humano) dirige ao peixe são comoventes e de uma altíssima humanidade, mas ainda assim, sem compaixão. É uma luta de vida ou de morte e que ganhe o melhor. Num certo momento o peixe, que arrasta o pescador e o barco para o alto mar e para uma profundidade calculada, vem à superfície e de um salto fixa com o olhar o seu predador. Tudo parece conduzir a uma espécie de consciência animal instintiva, homóloga da humana consciência intelectual e raciocinante. É tudo isto que o velho narra as mais das vezes num solilóquio monótono mas para o leitor arrebatador. A partir da página 39, se não me engano, o romance, se assim lhe posso chamar, pois me parece sobretudo um conto, torna-se imparável e foi o que me aconteceu, só parei sessenta páginas depois quando Hemingway deu por terminada a história. Se a luta entre o pescador e o peixe, as suposições mútuas, as suspeitas por reenvio sistemático, como se fossem lógicas na medida em que o pescador se aproxima do peixe e faz o peixe aproximar-se do pescador, um naturaliza-se e o outro humaniza-se, só assim a luta se tornou numa luta entre iguais, em respeito, em amor quase, mas sem contemplações, sem compaixão, repito, uma luta até ao fim. Ou o homem acaba por matar o peixe como é sua vontade e seu destino, ou o peixe acaba por destruir o homem, porém dirá o autor, sem o vencer, pois um homem pode ser destruído, mas jamais vencido. “Esta é a história de um homem que convive com a solidão, com seus sonhos e pensamentos, sua luta pela sobrevivência e a inabalável confiança na vida”.

É bem verdade que “A história de Hemingway representa a luta que o homem trava para a sua sobrevivência e os aspectos que influenciam essa luta como a experiência, a persistência, a confiança, a amizade e também a sorte”. Mas não é menos verdade que o peixe luta pela sua mesma sobrevivência e mais radical ainda pois é contra a morte que luta e também ele conta com a sua experiência, persistência e ainda sorte. O peixe não saberá o que isso é, mas tudo está cegamente amalgamado no seu instinto vital. De qualquer forma apesar da ligeira superioridade instrumental do velho, se atendermos ao meio em que o combate se trava, favorável ao peixe, podemos dizer que se trata de uma luta justa e digna. A narrativa exacerba a resistência tenaz que o peixe oferece e as dificuldades físicas do velho, para equilibrar os pratos da balança.

Na parte final, depois de ter vencido o peixe e o ter amarrado ao dorso do seu barco, o velho pescador vai ter de se haver com um predador sem escrúpulos, os tubarões que se vão revezando até não ficar do peixe senão a sua carcaça. É com um esqueleto que Salvador chega completamente extenuado à praia e finalmente à enxerga da sua cabana. A luta final desesperada e condenada à derrota é uma luta desigual e inglória. Os únicos momentos de catarse moral acontecem quando Salvador defendendo com galhardia e heroísmo a sua presa consegue matar alguns tubarões, usando para tal todos os seus recursos, embora nós pressintamos desde o início qual seria o desenlace, que em última análise também acaba por ser justo.

Fiel ao pessimismo de Hemingway, que Jorge de Sena procura atenuar, senão mesmo negar no prefácio, e que a mim me parece iniludível até por que são várias as metonímias e parábolas confirmativas do seu pessimismo etológico, ao longo do texto: as andorinhas do mar, os ouriços marinhos, as tartarugas, os peixes voadores e os respectivos assassinos, os falcões sobretudo, mas todos, pois no mar todos podem ser algozes e vítimas. Ninguém está a salvo. E pergunto eu e no seio da humanidade alguém estará a salvo no meio de predadores ainda mais sofisticados!? Mas no mar, não há ética, nem moral que possam salvar. A própria ética e moral plasmada na luta titânica entre o pescador e o peixe, é uma moral e uma ética à superfície e válida no plano das regras formais de um certo cavalheirismo, pois algures numa zona mais profunda e mais irracional e é aí que mergulha a vida e os seus poderes básicos e primários, todos os  princípios soçobram, mesmo, infelizmente, os humanos entre os homens. Para voltar a Céline é evidente que o pessimismo em Hemingway não é tão truculento, radical, cínico e desapiedado como no autor francês, nem tão metaforicamente cruel como por exemplo em Tennesse Williams, no texto Bruscamente no Verão passado, mas é uma forma de pessimismo, ainda assim.

Do ponto de vista do estilo, o de Hemingway, tornou-se paradigmático. O autor usa um estilo directo, sem quaisquer artifícios literários, quase pobre nos seus recursos, mais aparentemente pobre do que realmente pobre. Hemingway tinha a escola jornalística, que há que reconhecer, foi muito útil para domesticar os excessos do fluxo de consciência. Alguém definiu Hemingway como sendo o animal falante, pejorativamente, no sentido de caracterizar alguém que usa uma narrativa quase infantil.  Mas o famoso crítico literário Cyril Connoly afirmou a propósito deste texto : “Leia o livro O Velho e o Mar imediatamente. Após alguns dias, leia-o novamente e irá verificar que nenhuma página desta bela obra-prima poderia ter sido escrita melhor ou de forma diferente”. Melhor elogio não se pode fazer. E este é o estilo de Hemingway, aquele que o imortalizou, sobretudo nos contos de A Capital do Mundo, de 1936.

A história vive de si mesmo, o narrador não acrescenta nada da sua lavra e diz portanto o que as cenas exigem para ficarem objectivamente bem descritas. As caracterizações das personagens são sumárias, os enredos explícitos e intuídos desde o início. Não é de suspense artificial e grandes surpresas que vive a intriga e contudo a narrativa agarra-nos. Que mais se pode dizer.

E neste conto a receita é a mesma: O mar e a sua fauna vivem esplendorosamente (…) “Mas vivem sem a mínima poetização panteísta, sem a mínima deliquescência antropomórfica”. Alguns escritores, alguns narradores, procuram deixar nas suas obras a marca do seu virtuosismo, poético e literário, Hemingway pretende esconder-se por detrás da história que se vai desenvolvendo quase por si através de um descritivismo objectivo. Hemingway dissimula-se e ninguém dá por ele. Não há digressões psicológicas, culturais ou intelectuais, análises complexas, pelo contrário poderíamos até condenar a  assunção por vezes de uma total insignificância. Hemingway mostra o que está a acontecer sem procurar narrar como se a narrativa correspondesse a uma metalinguagem ou explicação de segundo grau. Ou se gosta ou não se gosta.  “A abolição do melodrama exprime-se no olhar despojado do narrador e na exiguidade da acção”.

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

Ernest Miller Hemingway nasceu em Oak Park no dia  21 de Julho de 1899 e suicidou-se com uma espingarda de caça em Ketchum no dia 2 de Julho de 1961, depois de uma vida das mais acidentadas, variadas e aventureiras da História da Literatura. Casou quatro vezes, tendo filhos de pelo menos duas mulheres, teve amantes e não parou muito tempo em lugar nenhum embora houvesse lugares aos quais regressava religiosamente como Cuba e Espanha. Trabalhou como correspondente de guerra em Madrid durante a  Guerra Civil Espanhola  (1936-1939), tomando deliberadamente partido pelos republicanos e dessa experiência inspirou-se para escrever o clássico, entretanto logo passado ao cinema,  Por Quem os Sinos Dobram, com Ingrid Bergman e Gary Cooper. No fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), instalou-se em Cuba. Poucos anos antes do suicídio, escreveu O Velho e o Mar que é segundo alguns critérios a sua obra prima. Com ela ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção, em 1953 e o Prémio Nobel da Literatura em 1954. Há muitos elementos da sua obra que remetem para uma dimensão autobiográfica, Espanha, Paris, Cuba, a Guerra Civil, a Primeira Guerra Mundial, etc. Em Itália durante a Primeira Guerra Mundial, onde serviu como motorista de ambulância na Cruz Vermelha, apaixonou-se pela enfermeira Agnes Von Kurowsky, que viria a ser sua inspiração para a criação da heroína de Adeus às Armas de 1929, a inglesa Catherine Barkley. O seu segundo casamento em 1927 foi com a jornalista de moda Pauline Pfeiffer, com quem viria a ter dois filhos, mas as outras paixões da vida, os touros, a caça e a pesca levavam-no para longe dos lares que ia construindo e na época em que ainda vivia com Pauline, apaixonou-se, em Cuba, por Jane Mason, que era casada com o director de operações da Pan American Airways. Hemingway e Jane tornaram-se amantes. Porém em 1936, apaixonou-se de novo, desta vez, pela jornalista Martha Gellhorn, e esta nova paixão conduziu-o ao seu segundo divórcio. Com tantos casamentos, divórcios e paixões Hemingway confirmava a previsão que lhe fez Scott Fitgerald, de que iria precisar de uma mulher para cada livro.

30 Mar 2017

Almas tenras

23/03/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz Solzhenitsyn sobre um amigo, nos diálogos que teve com o cineasta Alexander Sokurov, em 1998: “Ele tem uma alma tenra, amável e pura”. O primeiro adjectivo faz-me imaginar que, na cadeia dos seres, as almas variam de consistência, desde as cremosas como leite-creme às duras como o aço.

Já conheci almas de puro minério, tipos ruins e ufanos disso. Em África conheci o mal. Simples acaso, tive sorte na Europa e lá se camuflará mais o que aqui será exposto? É irrelevante, lidei aqui com o problema, desde situações de ostracismo a cenas de extrema crueldade que, tanto pessoal como profissionalmente, vivi ou presenciei. Ter resistido ao cinismo que quer infiltrar, espesso, a personalidade por causa do inusitado que nestas regiões se enfrenta foi claramente uma das provações da minha vida.

Ora, o fabuloso destas conversas com o autor de o Arquipélago de Gulag é perceber que quando fala do amigo no fundo fala de si. Metem-no no Gulag durante anos (num dos dias trabalhou a -35 graus) e o homem toca harpa. Confiscam-lhe os seus cinco diários de guerra e o homem toca harpa. Interrogam-no, torturam-no, por mesquinhez e maldade, censuram-lhe os livros, o homem toca harpa. Obrigam-no a viver uma miséria vexatória. Consegue que os seus manuscritos saiam clandestinamente do país e uns anos depois ganha o Prémio Nobel. Nem lhe serve de nada ter-se abstido de ir a Estocolmo, o regime soviético expulsa-o em 1974. Passa a viver em Vermont, nos EUA. Em 1996 regressa à Rússia.

E a criatura que no documentário se apresenta é a mansuetude em pessoa, sem um grama de ressentimento, sem poses, sereno, capaz de uma compaixão e de uma compreensão sobre os seus verdugos que desconcerta. Entretanto, os direitos da venda internacional de o Arquipélago de Gulag, aplica-os em auxiliar os que como ele viveram tal inferno. Pior, com convicção recusa, apesar da insistência de Sokurov, dar qualquer relevo à crueldade humana na textura das comunidades humanas e contrapõe: “se um homem cruel encontrar um homem bom perde terreno para se exercitar e acaba a sua natureza por atenuar-se!”. O que me faz lembrar como para Saramago era a bondade a primeira qualidade do humano.

O chato com a grandeza, quando a encontramos, é que não possamos imitá-la.

Leio, entretanto, que está a sair em Portugal uma nova tradução do Arquipélago de Gulag.

26/03/2017

Uma é loura, outra morena – as minhas filhas. A loura tem nove e a morena doze. A loura ensaia uma peça na viola-d’arco. A outra discute a lei da gravidade com a mãe. A loura interrompe um acorde e pergunta:

– Não percebo nada, afinal os raios são atraídos ou caem na terra – como as maçãs das árvores?

– Que raio de pergunta… – redargue a morena.

– Se for por causa da gravidade caem, não têm escolha. Uma coisa atraída ainda tem escolha.

– Não, olha os teus ímanes… são atraídos e não têm escolha.

– Mas a Miranda da minha turma era atraída pelo Vitor e preferiu não o beijar, quando ele lhe pediu… Ela sentia-se atraída mas escolheu…

– Que têm os raios a ver com as pessoas?

– Pois, por isso acho esse Newton um chato, faz-nos querer ligar maçãs com raios e agora com pessoas… E sabes, para mim, que as maçãs caiam não vejo nisso nada de especial… o que me intriga é que elas adocem.

Cala-se e volta a atacar o seu trecho na viola-d’arco. Até que o rosto se lhe ilumina e vota o baixar o arco. E atira sorridente:

– Já sei para que pode servir a gravidade?

– Diz lá, deve ser boa…

– Foi a gravidade quem engravidou a Miazinha (a nossa gata)… E lança uma gargalhada.

27/03/2017

Umas das consequências mais erróneas que se segue ao abandono dos «mitos do progresso» é deduzir-se daí que nada é passível de evolução, pelo que não haveria culturas mais avançadas do que outras. É o pretexto para uma abjecta preguiça que degenera numa violência não declarada.

Cansa ter de explicar o óbvio: ser um mero utilizador de gadgets e electrodomésticos é inferior a ter a capacitação técnica para os inventar e reproduzir; que uma cultura laica, no interior da qual cada qual pode escolher livremente a sua crença, é superior a uma cultura que de antemão sujeite o pensamento a uma forma única, condicionando-lhe os possíveis e as virtualidades; que a astronomia exige mais estudo e uma propensão para o pensamento abstracto mais complexos do que aqueles a que obrigam a astrologia, etc., etc.

Em resultado do pensamento débil do relativismo vejo, junto dos meus alunos, que se galvanizou um retorno total à superstição e à feitiçaria – mergulham na “tradição”. Nenhum aluno em dramaturgia me apresenta o esboço de uma história urbana. Lembrava uma aluna num colóquio que teve lugar na universidade, na semana passada, como os temas se socorrem invariavelmente «do caminho fácil do exotismo», ou seja, encharcam-se em histórias de curandeiros. Está presente no quotidiano, é relatado sem crivo nos media.

Em 2008 tive de explicar pacientemente a três turmas na universidade que era deveras improvável que uma mulher pudesse ter parido um bule e três chávenas, como foi noticiado em todas as televisões do país, e em 2011 o parlamento da vizinha Suazilândia aprovou uma lei que proibia as bruxas de voarem acima de cento e cinquenta metros de altitude para não chocarem com as aeronaves. Não melhorou desde então.

Simultâneos ao assomo da superstição, crescem os sinais de riqueza material – o parque automóvel de Maputo abisma pela presença maciça de últimos modelos e de carros de luxo -, de aumento da pobreza – sou assediado diariamente por uma dúzia de pedintes – e da inflação – um pequeno frasco de molho de soja custa hoje uns inefáveis 10 dólares – enquanto, agora mesmo, se assiste a um surto de cólera em todo o país; o que demonstra que, pelo menos em termos preventivos, os curandeiros trabalham pouco.

30 Mar 2017

Mortais e outros voos

Torre do Tombo, Lisboa, 20 Março

Poema de Mário Cesariny (1968)

[dropcap style≠’circle’]Ú[/dropcap]ltima reunião de um grupo de trabalho sobre livrarias independentes, a ideia da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que reuniu profissionais do sector para reflectir e sugerir medidas práticas ao Ministro da Cultura capazes de travar o seu definhamento e morte. Se bem que algumas tenham surgido nos últimos meses, e na sequência das conversas que tivemos, não consigo afastar esta sensação de miúdo com dedo no buraco do dique. O óbvio desamor ao livro e à leitura, a inexorabilidade de práticas comerciais tóxicas e selvagens, se não cultivadas, pelo menos ignoradas pelo Estado, e o nosso atavismo organizativo condenam-nos à sempiterna dependência da bondade de estranhos. Alinhavaram-se definições, na vã tentativa de circunscrever o sentido de independente, e propuseram-se medidas de alcance variável, mas o que está por fazer depende afinal da capacidade de cada actor construir independências. Cesariny dizia: «Faz-se luz pelo processo /de eliminação de sombras». Vou ficar à espera de uma rede que se faça cama elástica e permita pulos, cambalhotas, mortais e outros voos.

Horta Seca, Lisboa, 22 Março

Que crueldade! Seres tão frágeis não deviam andar para aqui e para ali, de trás para frente, de casa para o escritório. Outras formas há de preservar as formas além do museu. São frágeis, mas de todo o terreno. Um fotógrafo dado à moda que pouco vem a Lisboa, Sal Nunkachov, criou editora, a Paper View, não apenas para dar corpo às suas visões de um punk benigno, mas para acolher projectos, sobretudo fotográficos, de outrem. Por exemplo, os nus de praia de Leonor Ribeiro, esculturas a preto-e-branco que parecem tintadas de bronze, reflexos de sol a brutalizar as massas, a dançar nas águas, a desfazerem-se com suave raiva no fim, afinal: a areia. Matéria que nos fica nas pontas dos dedos, pois a capa deste Sand está impressa em lixa. Não se trata apenas de fotografia, mas de impressão. Sal experimenta. Em periódica Newds, no caso a #10, imprime a negro sobre papel preto explodindo em pleonasmo. No tradicional jogo das escondidas de quem se despe, a escuridão acrescenta luzes. Lá dizia o mesmo Mário: «Ora as sombras existem/as sombras têm exaustiva vida própria/ não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela /intensamente amantes loucamente amadas /e espalham pelo chão braços de luz cinzenta /que se introduzem pelo bico nos olhos do homem». Em Pin Hole, soma-se o verde e o desfoque e a objectiva sublima o desejo, amachuca o ser no parecer, ou pelo contrário. Fulgurantes são ainda as sobreposições de Here’s How To Do It e Round Abount. Sempre corpos femininos, rostos, torsos, cabelos e atitudes, mas por cima de moldes da Burda, no primeiro, e de cartas e mapas arrancados a atlas, no segundo. Estas sedes abrem-me o apetite.

CCB, Lisboa, 23 Março

Ainda Cesariny, o de Pena Capital (Assírio & Alvim): «Por outro lado a sombra dita a luz /não ilumina realmente os objectos/os objectos vivem às escuras /numa perpétua aurora surrealista /com a qual não podemos contactar /senão como amantes /de olhos fechados /e lâmpadas nos dedos e na boca». Após a gravação de mais um Obra Aberta, com Nuno Saraiva e António Gonçalves, descemos para visita guiada à exposição que homenageia Mário Cesariny, sublinhando a sua veia experimental, libertária e iconoclasta. E lá vimos as sismogravuras, os aquamotos e os objects trouvées, figuras onde o acaso vai de mão dada com o impulso artístico. Quem diz acaso diz a água, movimento dos eléctricos ou recolha do lixo. Interessa-me, sobremaneira, a colagem, essa faculdade de romper cortes no visto para deixar surgir o imprevisto. Fico horas ouvendo esta homenagem a Satie (ao lado, na imagem) e acabo a perder os óculos. Perder as lentes na noite, quem me manda mensagens?

No aniversário da morte, ressuscito pedaço de texto antigo. «Cesariny vem de um tempo em que viver era rasgar possibilidades, Mário, e as contas não foram ainda feitas, de Vasconcelos, pelo que não sabemos quanto lhe devemos em desejo e ventania, em confusão e lucidez, em verticalidade e camisolas de alças, inteireza e veludo com nódoas. Afiou cada âncora como palito, de maneira que os dentes acabaram por se tornar estrelas. Lugares irrequietos onde só se vislumbram regressos, como este, fazem-se difíceis de atracar aos mapas e só com muita sorte e acaso se conseguem indicações capazes de levar o viajante ao encontro da sua perdição, aquela que buscamos com íntimo desespero ao fugir-lhe. Noite e dia, trabalham algures os pianos escravos a escrever no chão com navalhas as maldades, que são outros tantos caminhos. Esta personalidade geográfica caracteriza-se pela aguda magreza que explode mais tarde, por vezes antes, em largueza de vistas.»

Museu Bernardo, Caldas da Rainha, 25 Março

Paulo José Miranda anima com extrema facilidade qualquer grupo, em girândola de assertivas observações, leituras selvagens e ditos de espírito. Mal se desloca para um palco recolhe-se, encolhe-se, isola-se, hesita-se. Passa a mão pelo rosto à procura da frase certa e a coreografia rima com gaguejo. Depois a gargalhada põe fim à fase do aquecimento e o poeta solta-se. Voltou a acontecer em «Bem em Tempos de Mal», sessão dos encontros íntimos que José Ricardo Nunes anima em descomprometido e irónico Museu Bernardo, com a cumplicidade de, entre outros, Henrique Fialho. Gente que ama a poesia das mais activas formas, pelo comentário em tertúlia ou pela leitura em voz alta. Às tantas, Fialho (atentíssimo leitor, a conferir no seu blogue Antologia do Esquecimento) sublinha a (omni)presença de Deus na obra do mano convidado e pergunta-lhe em que ponto está essa produtiva relação. «Sou viciado em Deus, estou em recuperação, mas a qualquer momento posso ter uma recaída», respondeu. A noite chuvosa ganhou esplendor acetinado, à maneira da impressão de preto sobre negro: precisamos mexer corpo e colagem para detectarmos mancha e brilho.

29 Mar 2017

A chinesa sexista e o seu marido 罗敷的丈夫究竟是谁?

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hamavam-lhe Qin Luofu e o mais certo é nunca terem ouvido falar dela. Luo Fu quer dizer “uma beldade”, o que significa que podia ser qualquer mulher bela, mas os chineses sabem que pertencia à família Qin.

Leiam a biografia de Luofu comigo.

Na Estrada das Amoreiras

A luz da manhã

Ilumina a Mansão Qin,

orgulhosa da sua dama,

A dama Luofdamau.

Alimentava os bichos da seda

com folhas das amoreiras

que cresciam a sul;

A cassia pendia do seu cesto,

presa por uma fita de seda.

Cabelo lindamente entrelaçado,

Brincos de pérola como raios de Lua,

Jaqueta amarela,

Aventalinho púrpura

Quando um viajante a avistou,

Pousou o seu fardo

por instantes e coçou a barba.

Sentiu um alvoroço quando a viu

Tirou o boné e cumprimentou.

O lavrador deixa de lavrar,

o cavador de cavar,

E quando voltam a casa,

não encontram graça nas mulheres,

depois de terem vislumbrado Luofu.

Do sul vem um Senhor

numa carruagem com cinco cavalos;

Surpreendido, pára e manda perguntar,

“Quem é aquela beldade,

A que família pertence?”

“Pertence aos Qins,

E o seu nome é Luofu.”

“E que idade terá?”

“Menos de vinte Primaveras,

mas mais de quinze.”

E então, condescendente,

diz, “Luofu, gostarias de

entrar na minha carruagem?”

Ela encara-o sem medo,

e responde:

“Que disparate dizeis, senhor!

Tendes uma esposa,

e eu, um marido.

De Leste vêm cem cavaleiros

e ele vem na sua frente.

Como sabereis quem ele é?

Pelos cavalos que monta,

com sedosas caudas entrançadas

E pelo pónei que o segue,

Pelos chicotes dourados;

e p’la espada com punho de jade

à cintura,

pela qual pagou milhões.

Com quinze anos

era guarda-livros da Prefeitura,

Escrivão aos vinte,

Aos trinta era ministro;

E agora, aos quarenta,

É Governador de Distrito.

A sua pela é muito clara

a sua barba comprida.

Desloca-se na casa dos mandarins

Com passos lentos e seguros;

Senta-se entre milhares

que lhe cedem o melhor.”

(1)

Este é um dos mais famosos poemas Yuefu da Dinastia Han (202AC-220AD). Yuefu foi um departamento musical do Governo fundado durante a Dinastia Qin (221AC-206AC). A Dinastia Han herdou a supervisão deste departamento tendo-se concentrado na recolha do folclore e nos arranjos destas peças musicais que viriam posteriormente a ser usadas em cerimónias e rituais oficiais.

Quando Luofu nos é apresentada, tem. “Cabelo lindamente entrelaçado, /Brincos de pérola como raios de Lua,/Jaqueta amarela,/Aventalinho púrpura.” Uma visão não é verdade? E para quê? Não ia propriamente a nenhuma festa, apenas apanhar folhas de amoreira para dar aos bichos da seda! Esta cena faz-me lembrar o filme Disponível para Amar de Wong Kar-Wai. A protagonista vestia-se todos os dias a rigor só para descer as escadas e ir comprar massas a um vendedor de rua. No nosso poema, Luofu, domina a arte da sedução porque, não só sabe que é sexy como os diabos, mas também porque é espirituosa e bem-humorada e de alguma forma provocadora no que diz respeito ao marido:

“Que disparate dizeis, senhor!

Tendes uma esposa,

e eu, um marido.

De Leste vêm cem cavaleiros

e ele vem na sua frente.

Como sabereis quem ele é?

Pelos cavalos que monta,

com sedosas caudas entrançadas

E pelo pónei que o segue,

Pelos chicotes dourados;

e p’la espada com punho de jade

à cintura,

pela qual pagou milhões.

Com quinze anos

era guarda-livros da Prefeitura,

Escrivão aos vinte,

Aos trinta era ministro;

E agora, aos quarenta,

É Governador de Distrito.

A sua pela é muito clara

a sua barba comprida.

Desloca-se na casa dos mandarins

Com passos lentos e seguros;

Senta-se entre milhares

que lhe cedem o melhor.”

     

(1) Cá para mim o marido a que Luofu se referia era um bicho da seda!

29 Mar 2017

Uma vida inteira dentro de um só poema

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue o título do primeiro livro de Rosalina Marshall – Manucure, Companhia das Ilhas, 2013 – seja o mesmo de um poema de Mário de Sá-Carneiro, não é um mero acaso. Para além dos títulos, livro (de Rosalina) e poema (de Sá-Carneiro), os títulos dos poemas do livro da Marshall são todos versos ou partes de verso desse poema maior de Sá-Carneiro. Por exemplo, “Os meus godets de verniz” é um meio verso do poema, e “Na sensação de estar polindo as minhas unhas” é precisamente o primeiro verso do poema de Sá-Carneiro. E o mesmo iremos encontrar nos poemas: “Os polidores da minha sensação”, “Inflexões de precipício”, “Triângulos sólidos”, “Rebordo frisado a ouro”, “Desgraciosidade boçal”, “Veloz faúlha atmosférica”, “Deponho as minhas limas”, etc., etc., etc. Pois aqui não se trata de uma interpretação minha, como irá acontecer com o resto do texto, é algo concreto, preciso, algo que deve ser assinalado como aquilo que a poeta quis que fosse visto, a ligação quase umbilical entre o seu livro e o poema de Mário de Sá-Carneiro, embora seja também – e aqui começa a minha interpretação – como se a Rosalina Marshall nos dissesse que a sua vida cabe toda dentro de um poema, do poema “Manucure”, desse poeta maior da Orpheu. Mais: é como se nos dissesse que uma vida, qualquer que ela seja, cabe toda num só poema. E se em relação ao poema “Manucure” talvez não haja tantos que ponham ali toda a sua vida, já no poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, não teremos dificuldade em encontrar por lá vidas e vidas inteiras. Há, por conseguinte, ao longo dos poemas deste seu primeiro livro de poesia, enunciações de modos de participar na vida com semelhante inaptidão à que é cantada no poema de Sá-Carneiro.

Estamos diante de um livro de poesia assente numa hermenêutica, apesar do verso que diz “a hermenêutica fechou a porta” (p. 18). Nesta sua hermenêutica, Rosalina identifica no poema de Sá-Carneiro, não só a sua vida, mas o seu próprio modo de olhar a realidade. E, assim, Manucure é um pequeno livro de enunciação de falhas, de enunciação de falhas da realidade. A realidade está sempre errada. Havia em Portugal uma expressão antiga, de quando ainda a moeda era o escudo e não o euro, que dizia: estás-me a falhar como as notas de mil, querendo com isso dizer que alguém nos decepcionava. Ora, neste livro de Rosalina Marshall, a realidade falha-nos como as notas de mil. A realidade é uma máquina de criar decepções. Os poemas enunciam contínuas decepções, vindas da impossibilidade da realidade encaixar nas nossas vidas. E entenda-se realidade por aquilo que acontece. Para citarmos Wittgenstein, no início do seu Tractatus Lógico-Philosophicus: “O mundo é tudo o que acontece.” Entenda-se, aqui, mundo como realidade. Assim, os meus desejos chocam com a realidade. Aquilo que quero, que eventualmente me faz falta, choca com a realidade, como no poema “Os meus godets de verniz”, à página 16:

Eu queria chocolates

e davam-me peixe cozido

travessas e travessas

pratos atrás de pratos de peixe cozido

em vez disso agora como

o vidro do

o vidro do

o vidro do piano

Esta falha da realidade não se fica pelo conflito de interesses entre o que eu quero e o que acontece. Não. É apenas daqui que se parte. Aonde se chega, e é onde faz sentido falar acerca da decepção da realidade, é à memória. A memória é onde a realidade se esfuma. Tudo o que acontece não passa de nevoeiro, quando deixa de ser acontece para passar a ser aconteceu ou acontecido. E é nesta transmutação do tempo, na transmutação da realidade, que o livro ganha uma enorme dimensão metafísica, que já José Mário Silva havia assinalado, na sua resenha no Expresso, a 27 de Abril de 2013: “A escrita de Rosalina tanto se aproxima de Adília Lopes (“sinto um desconforto qualquer/ por usar soutien/ mas se não usasse/ era muito ordinária/ e os homens não gostariam de mim/ por ser demasiado fácil verem-me as mamas”) como da vertigem metafísica de Fiama Hasse Pais Brandão (“por trás dos manípulos das coisas/ escorrem fontes/ escorrem cisnes/ tudo em arco/ tudo em bandeira/ para o fluxo incontornável/ do rossio do universo/ onde permaneço desde a infância/ à espera de um táxi”).” É, aliás, a dimensão metafísica que sustenta os poemas deste livro, como sobressai no início do poema “Inflexões do precipício” (p. 34): “por trás dos manípulos das coisas / saem imperiais, cervejas, pints / por trás dos manípulos das coisas / escorrem fontes (…)”. Por trás das coisas há coisas. Por trás do que acontece há outro acontece. E a memória reivindica a sua própria realidade. O acontecido, que nos acompanha aqui e agora no a acontecer, que inclusivamente sustenta este a acontecer, pois o que me faz identificar-me numa foto quando era criança é a memória, o que nos confere identidade é a memória, e esta faz da realidade sua refém. O que aconteceu chega-nos em parte como quando era no seu acontecer, mas também nos chega em parte como um nunca ter acontecido. E é esta distorção da realidade, operada pela memória, que abre um precedente hermenêutico de indagação da realidade enquanto acontece. Escreve a poeta em “Os polidores da minha sensação” (p. 12):

quando abro a mala

o forro frio que já foi outro

surpreende-me sempre

inesperado odor

de cama de São José

onde me apalparam a perna

e disseram que não merecia levar gesso.

A distorção temporal levada a cabo pela memória opera também uma mudança axiológica. É através da memória que passamos a valorizar o que antes não tinha valor. Não é a passagem do tempo que opera essa transformação valorativa, é a memória. E por isso mesmo, nós voltamos sempre atrás, como ironicamente escreve a poeta, em “Obsessão débil” (p. 18): “a hermenêutica fechou a porta / depois de velha / gostava de lá voltar / e verificar as fechaduras”. E é o que na realidade estamos sempre a fazer, a voltar lá atrás e a verificar as fechaduras. Muitas das vezes não verificamos apenas, também trocamos as fechaduras do lá atrás.

O próprio poema é um ser híbrido, que acontece através do acontecido. Que nasce do real e da memória, que é, nunca é de mais repeti-lo, uma ficção, aquilo que faz aparecer continuidades em completos descontínuos. Por conseguinte, este Manucure, faz do poema de Mário de Sá-Carneiro, como se fosse possível habituar um poema, a morada de uma vida, isto é, faz da memória colectiva, que é a história, seja ela da literatura ou mundial, o lugar onde tudo acontece. A memória justifica-se pela história e um poema de outro é mais descritivo da nossa vida do que uma fotografia nossa antiga. Sem os outros somos nada ou, pelo menos, sem os outros não me reconhecia. Assim, o livro de Rosalina Marshall parte do poema “Manucure” de Mário de Sá-Carneiro, para enunciar a dificuldade de entender a realidade, a dificuldade de mastigar e engolir essa coisa chamada realidade. A realidade está para cada um de nós como o sabor a que sabe a cada um de nós a sua própria boca está para os outros. Escreve a poeta em “Loiras oscilações” (p. 31)

Oh! linda lisboa

no azul pela manhã

oh linda lisboa

tudo negro pela noite

ninguém sabe

a que me sabe

a minha boca

A realidade adjudica-se a si mesma pela história. Na impossibilidade de acedermos ao que seja a realidade, e devido ao facto de a memória reivindicar para si uma realidade própria, a realidade passa a ter um uso comum, passa a ser um território colectivo, que encontra na história a sua fundação. Em Manucure, a historia é o chão não só das palavras, dos poemas, mas da própria possibilidade de entendimento da própria vida. Num poema escrito há 100 anos (neste caso) pode estar a chave da minha vida. Antes de mais, este livro é uma enorme homenagem à poesia de Mário de Sá-Carneiro, no corpo do poema “Manucure”. Mas é também uma homenagem a todo e qualquer poema onde possa caber uma vida inteira. Antes de terminar com a voz da poeta, acrescento que este livro teve uma tiragem de 100 exemplares. Desconheço se houve ou não reedição. A não ter havido, deveria haver.

Na sensação de estar polindo as minhas unhas

sei que morrerei no dia do aniversário da minha morte

ainda há coisas certas na vida

o dia do aniversário da minha morte apresenta tamanha discrição

que nem dou por ele

portanto não mudarei de roupa

talvez passe o dia deitada

no displicente descanso

de não atender telefones

nem me levantarei para ir ver o correio

e se alguém se lembrar de me acender

as inconsequentes velinhas

deixarei que derretam e estraguem o bolo

no dia do aniversário da minha morte

nem me penteio

28 Mar 2017

Da arte de contar uma história

[dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]alter Benjamin diz que os contadores de histórias se podem dividir, fundamentalmente, em dois tipos cujas raízes são tão antigas como a própria necessidade de contar uma história: aquele que, por opção ou por destino, não tem como sair do seu sítio de origem e conta as histórias, tradições e mitos locais, e aquele que, viajando mundo fora – sendo o expoente máximo dessa figura o marinheiro – vai contando, por onde passa e, sobretudo, quando regressa de onde partiu, aquilo que viu.

Já nos cruzamos de algum modo com uma destas duas figuras. Mais: cada um de nós tem, em quantidades desiguais, uma destas perspectivas de estar no e de ver o mundo. Somos, naturalmente, contadores de histórias. Estas servem o propósito de constituir um património comum de experiências, lendas e mitos que nos ligam e nos situam enquanto identidades sociais. Os gregos representavam a linha do tempo – e a marcha de um homem nela – como alguém virado para o passado que anda, inexoravelmente, em direcção ao futuro, de costas. A imagem, para além de adequada, é honesta. O futuro é o atractor universal que confere direcção – e, por isso, sentido – à caminhada. Mas é desconhecido. A única coisa a que temos acesso (ainda que o estatuto desse acesso não seja de todo claro) é o património de experiências que amealhámos. E neste património incluem-se as histórias que vivemos e que ouvimos e ambas, de certo modo, nos definem.

Segundo Benjamin, a arte de contar uma história está em declínio (o texto no qual o afirma data de 1936 e chama-se “The Storyteller – Reflections on the Works of Nikolai Leskov”). A massificação da informação e do seu formato específico (o de abarcar quase tudo e de ser plausível) é o oposto daquilo que alimenta a arte de contar uma história. Como diz Benjamin, quando abrimos um jornal ao calhas, de manhã, e apesar da multiplicidade de notícias de todos os cantos do globo, a quantidade de histórias dignas de relevo é incrivelmente diminuta. Isto porque, na explicação benjaminiana, tudo quanto nos chega pela via do relato e, sobretudo, do relato noticioso, já vem acompanhado de uma explicação. E a arte de contar uma história, prossegue o autor, é a de libertar a própria história da tentação de explicá-la de alguma forma, de remover quaisquer ligações psicológicas e subjectivas entre os acontecimentos da história. Um dos autores que melhor faz isso e que me vem imediatamente à cabeça é a Flannery O’Connor. A elisão a que nos vota relativamente às motivações psicológicas das suas personagens será talvez um dispositivo pelo qual faz ressair a natureza moral das mesmas. De qualquer modo, e independentemente da razão pela qual Flannery (e os contadores de histórias, na generalidade) escolhe suprimir das histórias que contam as ligações subjectivas de carácter psicológico ou explicativo acaba por dotar a história de uma miríade de ângulos que a explicação, pela sua própria natureza, tenta obviamente reduzir a um único apenas.

Numa época em que a informação se tornou o meio de transmissão de conhecimento por excelência (e que, por acréscimo, deixou de ter a verdade como fundamento axiológico) e, com isso, minou a nossa capacidade inata de trocar experiências, mirrando-a como um membro que não se exercita, era importante percebermos quais as formas que subsistem de produzir as ligações invisíveis que entretecem as estruturas sobre as quais assenta a própria noção de comunidade. Ou a solidão contemporânea deixará de ser uma metáfora simplista para passar a ser um modo de vida sem alternativas.

27 Mar 2017

Maria João Falcão: À descoberta do método

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á vinte anos que vens trabalhando em teatro, cinema e televisão. Imagino que exijam esforços e técnicas diferentes. Podes explicar-nos quais as maiores diferenças que encontras nesses diferentes modos de se ser actriz? E tens alguma preferência por um deles? E a tua preferência foi mudando ao longo dos anos, ou sempre se manteve a mesma?

A minha preferência sempre foi o teatro…também foi o que eu estudei. Cinema fiz muito pouco, por isso estou mais à vontade para falar de televisão e teatro. São processos muito diferentes, a começar pela construção das personagens: um texto de teatro tem um princípio, meio e fim, tu sabes à partida o que acontece e como se desenvolve a tua personagem e é sobre isso que trabalhas. Num guião de televisão só sabes o início e alguns antecedentes da tua personagem, vais construindo conforme os guiões que vais recebendo. Depois em teatro ensaias durante um mês e meio e, se tiveres sorte, ficas três semanas em cena (hoje em dia é muito raro), em televisão podes ir desenvolvendo a tua personagem durante muito mais tempo, entre nove meses a um ano – este é um dos lados mais interessantes de trabalhar em televisão. Depois há outra diferença fundamental que é o que o público vê: em teatro a estreia só acontece depois de um trabalho de ensaios, de preparação dos actores e de tudo estar afinado. Em televisão tu ensaias duas ou três vezes a cena com o director de actores e realizador e depois gravas, e é o que o público vai ver! Tem de haver um trabalho de casa enorme porque chegas ao estúdio preparada para gravar várias cenas. É um treino enorme para o actor. Outra diferença fundamental é que no teatro tudo está à vista do espectador e é ele que escolhe o que vê. Em televisão há uma edição feita pelo realizador. O público só vê o que o realizador quer. Mas a grande diferença será sempre que o teatro é em directo…. se te enganares no teatro ou te esqueceres do texto, ninguém diz “corta!”

Há sempre alguns personagens que marcam mais as actrizes, quais foram os personagens que mais te marcaram até hoje? E por quê?

Das personagens que mais me marcaram destaco a Mona do Dias de Vinho e Rosas com encenação do Jorge Silva Melo, pelo desafio enorme que foi. Mas acho que, mais que os personagens, são os processos e os projectos que me marcam. Consigo destacar ultimamente O Feio com encenação de Toni Cafiero e A Casa de Bernarda Alba com encenação de Maria João Luís. O Feio porque é raro encontrar encenadores com um universo tão próprio como o Toni e que gostem tanto de actores e estejam constantemente a desafiá-los. A Casa de Bernarda Alba foi um projecto da Maria João Luís, o início da companhia Teatro da Terra. Este projecto foi muito importante porque entravam na peça um coro de mulheres de Ponte de Sor. Eram actrizes amadoras, tinham outras profissões, mas cada vez que iam para cena estavam tão felizes… e eu sempre que ia para cena estava tensa, não me divertia. Foi importante o projecto por descobrir que me faltava este lado lúdico e de prazer que esta profissão tem que ter…. e nesta busca acabei por ir para Paris estudar com o Philippe Gaulier. Era para ir três meses e acabei por ficar dois anos a estudar com ele. Mudou-me a vida.

Além de Paris, estudaste artes de representação em Nova Iorque, e agora estás a acabar um mestrado em artes cénicas, na FSCH. Estudar é algo fundamental na tua vida? Para além da prática da representação, o estudo é-te fundamental?

É fundamental. Primeiro trata-se da descoberta de um método.  Ou seja, o que importa é o que se estuda. Mais do que ter ido estudar para Nova Iorque, eu fui estudar Suzuki e ViewPoints com a SITI Company. Mais do que ter ido estudar para Paris, fui estudar com o Philippe Gaulier, perceber a diferença entre a escola dele e a do Lecoq, perceber o que é o clown para Gaulier e o que é o bouffon. Mesmo recentemente fui para o Odin Teatret na Dinamarca perceber o que é o método de Eugenio Barba. Faz parte de uma pesquisa pessoal de perceber o que são estes métodos que, por muito que se leiam os livros, não há nada como conhecer e estudar com as pessoas que os criaram e desenvolveram. São cursos intensivos e prolongados,  não são workshops de uma semana, o que permite um aprofundamento do trabalho que só se consegue com algum tempo de treino. Finalmente há a vantagem de se viajar e viver noutros países e estar em contacto com actores do mundo inteiro. Isso eu nunca consegui como actriz, só como estudante de teatro.

Não tens televisão em casa, e és muitas vezes reconhecida na rua por causa dos teus papéis na televisão. Como entendes ou como vives esse fenómeno de te confundirem com aquilo que representas, nas telenovelas? Tens algum episódio mais caricato que nos possas contar?

Normalmente as pessoas são muito simpáticas, nunca foram desagradáveis ou demasiado intrusivas. Também, confesso que quase ninguém me reconhece. Houve uma vez um senhor que me reconheceu e que me disse A menina ao ar livre é mais bonita. Adorei a expressão ao ar livre!

Qual achas que está mais pujante hoje, em Portugal, o teatro ou o cinema?

Sinceramente não sei nem acho que se possa comparar. Se pujante significa ser internacional, o cinema  português já há uns anos que se tem destacado bastante. Mas há imensas companhias que fazem residências e são programadas no estrangeiro mas que cá não é notícia. Tem-se produzido bastante teatro em Portugal e há bastante público mas ficam, salvo raras excepções, três a cinco dias em cena, o que para um espectáculo não é nada. Os cortes nos subsídios são enormes o que obriga as companhias a esforços hercúleos para cumprir a programação e até mesmo a terminar. Por isso não sei se pujante é um adjectivo que se possa utilizar.

Que projectos para este ano?

Estou agora a ensaiar a peça Migrantes de Matéi Visniec com encenação do Rodrigo Francisco para o Teatro de Almada, onde tenho estado ultimamente a trabalhar. Acabar o mestrado e continuar a desenvolver um projecto pessoal sobre o treino do actor. Também gostava de viajar….mas logo se vê.

24 Mar 2017

Das raízes: José Saramago e “As Pequenas Memórias”

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando escrevia O Memorial do Convento, livro que lhe deu notoriedade mundial, José Saramago começou a pensar num relato autobiográfico. Levou mais de vinte anos para elaborar o projecto, cujo resultado é este livro designado As Pequenas Memórias. É verdade que chegou a sonhá-lo com o título O Livro das Tentações, mas depois concluiu que um título assim, glosando as tentações de Santo Antão de Hyeronimus Bosch, seria demais.

O livro cobre os primeiros quinze anos da sua vida, do nascimento, em 1922, na aldeia da Azinhaga, Ribatejo, aos estudos na escola industrial de Lisboa, de onde sairá com a formação profissional de serralheiro mecânico. Relembra o convívio com as suas raízes camponesas, em particular através da figura altaneira de seu avô, homem sábio e contudo analfabeto, com quem “aprendeu a cuidar dos porcos e observar a via Láctea”. Fala também muito dos tempos de Lisboa, de quando era novo, da sua tendência para a solidão contemplativa e já nessa época da paixão pelo cinema. Penso que foi na Bagagem do Viajante, primeiro livro que eu li de José Saramago, que uma crónica sobre cinema me surpreendeu. Nunca mais esquecei o que Saramago disse sobre o Il general della Rovere de  Roberto Rossellini, com o grande Vittorio De Sica. Na primeira oportunidade não deixei de ver o filme e lembro que correspondia exemplarmente à sua análise, e ficou para sempre registado como um dos filmes da minha vida para parafrasear João Bénard da Costa.

Os textos-memória de Saramago sobre animais são também muito expressivos, em particular a sua reflexão sobre os cavalos, esses mesmo que lhe andam a coxear na alma há setenta anos, afinal por nunca os ter montado.

Eu pessoalmente gosto sobretudo das memórias em que o autor narra os grandes momentos de descoberta interior, ainda que algumas vezes, ou mesmo a maior parte, as descobertas interiores apareçam ligadas a fenomenologias externas.

E deixo-vos com esta pequena pérola:

A noite tinha caído, no silêncio do campo só se ouviam os meus passos. (…) Uma lua cheia, (…) iluminava tudo em redor. Antes do ponto em que teria de abandonar a estrada para meter a corta-mato, o caminho estreito por onde ia pareceu terminar de repente, esconder-se atrás de um valado alto, e mostrou-me, como a impedir o passo, uma árvore isolada, alta, escuríssima no primeiro momento contra a transparência nocturna do céu. De súbito, porém, soprou uma brisa rápida. Arrepiou os caules tenros das ervas, fez estremecer as navalhas verdes dos canaviais e ondular as águas pardas de um charco. Como uma onda, soergueu as ramagens estendidas da árvore, subiu-lhe pelo tronco murmurando, e então, de golpe, as folhas viraram para a lua a face escondida e toda a faia (era uma faia) se cobriu de branco até à cima mais alta. Foi um instante, nada mais que um instante, mas a lembrança dele durará o que a minha vida tiver de durar. Não havia tiranossauros, marcianos ou dragões mecânicos, é certo que um aerólito cruzou o céu (não custa a acreditar que sim), mas a humanidade, como veio a verificar-se depois, não esteve em perigo. Depois de muito caminhar, ainda o amanhecer vinha longe, achei-me no meio do campo com uma barraca feita de ramos e palha, e lá dentro um pedaço de pão de milho bolorento com que pude enganar a fome. Ali dormi. Quando despertei, na primeira claridade da manhã, e saí, esfregando os olhos, para a neblina luminosa que mal deixava ver os campos ao redor, senti dentro de mim, se bem recordo, se não o estou a inventar agora, que tinha, finalmente, acabado de nascer. Já era hora”.

O estranhamento do mundo, o achamento da subjectividade. É disso que se trata. É nisso que consiste o nascimento, e, em boa verdade, este é que é o nascimento de facto. Não tem data marcada, acontece quando acontece, consta que para muitas pessoas nunca chega a acontecer e em muitos casos acontece muito tarde e para quase todos, raras vezes muito cedo. Enfatizo aqui a presença do verbo acontecer, uma vez que é dessa ordem a fatalidade feliz de um nascimento, ou seja da ordem do inesperado, fortuito, e sobretudo mágico. 

Sinopse e ficha critica de leitura

“José Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo (A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa”.

24 Mar 2017

O final da boémia vida de Albino Paiva

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m artigo anterior, deixamos a história de Albino Francisco de Paiva de Araújo após o regresso da viagem a Portugal que fizera com a sua esposa, a Thérèse Blanche Lachmann, aliás Madame Paiva. Camilo Castelo Branco referia, “A polaca regressou a Paris, e como o seu marido constituía um empacho aos seus embelecos e astúcias, requereu a separação e regressou ao exercício profissional do galanteio”. Tal visita desmente as versões a circular sobre o dia seguinte ao casamento ocorrido a 5 de Junho de 1851 e que teve como uma das testemunhas o escritor Theophile Gautier. Segundo diz Viel-Castel, nas Memórias de Conde Horace, no dia seguinte a casar a nova Madame Paiva entregou ao marido uma carta em que punha termo ao casamento.

Já sobre o que ocorreu em Paris, Peter Flectwood-Hesketh refere, “Na ópera com Florentino [o jornalista napolitano Angélico Florentino], uma noite, em 1852 (ano seguinte a se ter casado com o Paiva), o cônsul alemão, Félix Bamberg, apresentou-a a Guido, conde Henckel von Donnersmark, austero mas belo jovem de 22 anos. Apesar de ser 11 anos mais novo do que ela, Guido ficou imediatamente cativo pela deslumbrante marquesa. A princípio ela apenas se divertia com a sua enfatuação; depois jogou com ele um jogo caprichoso de gato e rato. Só quando ele, desesperado, fugiu para Berlim, ela reconheceu em si uma afeição real por ele. Ela seguiu-o e lá começou uma relação que, acrescentada ao ambiente de segurança financeira que oferecia, aproximou-se mais do amor e do romance do que qualquer outra na sua vida calculada e egoísta, durante e até ao fim. Guido era herdeiro duma antiga família, cuja principal propriedade era Neudeck, perto de Tarnovitz, na Silésia [subúrbios de Munique], com valiosas minas de zinco, ferro e carvão. De Berlim foram para Neudeck, regressando a Paris, onde, em 2 de Dezembro, o príncipe Luís Napoleão recebeu o título de Imperador Napoleão III”. (…) “Ela partilhou com Henckel o entusiasmo pela música, sobretudo de Richard Wagner, assíduo visitante. A princípio evitava familiaridades com Guildo; mas quando o teve seguro, submeteu-se a este silencioso e apaixonado alemão. A adicionar a esta resposta amorosa, a sua experiência e habilidade nos negócios ajudou-o imensamente e ganhou a sua devoção e a gratidão durante toda a vida”. E continuando com Flectwood-Hesketh, “A casa de Teresa no Lugar de S. Jorge tornou-se mais uma vez o popular ponto de reunião do círculo literário, musical e artístico com grande desgosto da princesa Matilde, prima do imperador, que via naquilo uma invasão na sua área reservada, bem como da respeitável sociedade parisiense, que olhava para Teresa como pária intocável. Entre os habituais frequentadores de Teresa, quase todos do sexo masculino, contavam-se Paul de Saint-Víctor, León Gozlan, Émile de Girardin, Jacob Ponsard, Émile Augier, os irmãos Goncourt, Arsène Houssaye, Théophile Gautier, Sainte-Beuve e o austeno Taine. Entre os seus amigos havia também financeiros, que a ajudavam com conselhos salutares”.

Regresso a Portugal

Albino Francisco de Paiva de Araújo, após se separar da judia polaca, continuou por mais algum tempo na vida de boémia em Paris, onde gastou o que lhe sobrava da herança, que Camilo Castelo Branco referia, “uma fortuna de 400 contos de réis, que nessa época estariam reduzidos à décima parte” e veio para o Porto já endividado. E continuando com este escritor, que diz ter Albino Araújo abandonado a sua esposa dois anos decorridos, “mais ou menos espontaneamente, a um dos cinco mil príncipes russos que dão mobília nova aos bordéis parisienses, e regressou a Portugal com bastantes malas inglesas, uma dúzia de floretes, outras tantas caraças e manchetes, afora algumas dívidas. A mãe pagou-lhe as letras, e perdoou-lhe o casamento e a dissipação do património”. E continuando com Camilo Castelo Branco, “Durante quatro ou cinco anos, Paiva viveu muito recolhido no Porto, mas frequentando pouco a convivência da mãe.

Habitava uma casinha de duas janelas, situada na extremidade do jardim. Saia de noite, recolhia de madrugada, e passava o dia a comer e a dormir. Um escudeiro levava-lhe em tabuleiro coberto o almoço e o jantar da cozinha da mãe, que ele raras vezes procurava. Era-lhe odiosa, porque lhe não dava dinheiro para sair de Portugal, e apenas lhe enviava mensalmente o necessário para dignamente se tratar na sociedade pacata, frugal e económica do Porto.

Em 1855 e 56 encontrei-o muitas tardes nos pinhais e carvalheiras da Prelada e de Lordelo, passeando com uma francesa de muita vista, escultural, com a trança dos cabelos louros desatados sob as amplas abas d’um chapéu de palha azul ondulante de fitas escarlates. Se eu procurasse o nome dela na sepultura para lh’o dizer, não o acharia, porque a francesa, d’um espírito raro, morreu na obscuridade da pobreza, e d’uma velhice que redime e pede perdão para os delitos da juventude.

Dessa época lembram-me dois episódios de Paiva Araújo. A Macaense dera azo a que se soubesse cá fora que o filho a quisera matar com veneno, para empolgar a herança. O Jornal do Porto dera a notícia com discreta prudência; mas Paiva foi insultar com ameaças de azorrague o honrado proprietário daquele jornal, que desviou de si a responsabilidade da notícia, aliás verdadeira.

O outro caso, mais cómico pelas consequências, foi um duelo à espada, por motivos melindrosamente caseiros, com um fidalgo portuense chamado D. António Peixoto Pinto Coelho Pereira da Silva Padilha de Sousa e Haucourt, simplesmente. Se bem me recordo, Paiva Araújo desarmou, com pouca efusão de sangue, o contendor, D. António, alucinado com o êxito do duelo, atirou-se da ponte Pensil sobre… um barco rabelo de batatas que vinha mansamente descendo o Douro. E saiu sem contusão de entre as batatas que, de certo, não eram tão macias e flácidas como as almadraques de um kalifa de Córdova. (…) Em 1860 encontrei Paiva Araújo em Braga, leccionando francês no colégio da Madre de Deus, no palácio dos Falcões, onde uma família estrangeira tentava inutilmente a fortuna. O marido de Branca Lachmann, nesse ano, trajava menos que modestamente. O seu casaco e chapéu, em tais condições, não lhe os aceitaria um dos seus antigos criados”.

Jorge Forjaz refere, “Depois da separação, Paiva Araújo voltou a Portugal, conservando-se algum tempo no Porto. Mais tarde ainda tornou a Paris, de onde / de quando em quando vinha ao Porto visitar a mãe. Lutava já com os últimos recursos, completamente esbanjada, não a legítima como a própria herança paterna. Entretanto, Blanche Lachmann já fisgara um novo amante – desta vez tratava-se do Conde Henckel von Donnermarck, magnata de cobre na Silésia e primo de Bismarck”.

24 Mar 2017

Walcott & A pata na poça

17/03/2016

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap] oje somos hoje acossados por um novo tipo de ignorância: a dos que só sabem inglês. Mas desta vez dou a mão à palmatória: morreu um dos melhores poetas do século XX, Derek Walcott, de língua inglesa, nascido no mesmo ano do Herberto, 1930.

Era negro, filho das Caraíbas, nascido numa família metodista e anglófona cercada de católicos e francófonos por todo o lado – eis um excelso exemplo da crioulagem dos arrabaldes do mundo, um homem sulcado de periferias como se cicatrizes do seu corpo fossem e que moldou uma obra poética e teatral de «ressonância estereoscópica», no dizer de Brodsky, para quem era «o melhor poeta actual em língua inglesa». De idêntico juízo comungavam Seamus Heaney, outro irrelevante prémio Nobel, Rushdie e Robert Graves, o qual assentiu que nenhum poeta inglês de nascimento seria capaz do extraordinário uso que Walcott fazia do inglês.

Quatro nomes veneráveis que o veneraram. Mas não em Portugal, local onde terá sido um dos poucos nobéis que não tiveram direito a edição. Só vejo uma explicação para isto, mesmo que inconsciente: era negro.

Os espanhóis, com menos complexos em relação aos seus crimes coloniais, traduziram-no com profusão. E assim me foi apresentado, antes de me atrever ao “seu” inglês – experiência, para mim, igual a espreitar uma paisagem através das persianas. Mas a paisagem é mesmo magnífica.

No Brasil existe uma tradução de Omeros, um poema unitário de 200 páginas que verte os ingredientes homéricos para o ambiente dos pescadores antilhanos, e recomendaria igualmente, de entre os cinco ou seis livros que lhe pude ler, Midsummer e The Arkansas Testament. E hoje consegue-se baixar, free, da net, os Selected Poems. Aqui deixo um poema, breve, Arquipélagos, numa versão minha: «No fim desta frase começará a chover./ Da bainha dessa cortina de água desponta uma vela.// Com vagares, há-de a vela perder de vista as ilhas;/ a crença nos portos de toda uma raça/ esfiapar-se-à na névoa.// Terminou a guerra dos dez anos./ O cabelo de Helena, um cirro gris./ Tróia é um fosso de cinzas brancas/ amassadas pelo chuvisco, na orla do mar.// Engrossa a chuva como as cordas de uma harpa./ Um homem de olhos nublados tange-a com os seus dedos/ e recita o primeiro verso da Odisseia».   

20/03/17

Eu, judeu, me confesso: chateia-me que Guterres tenha metido a pata na poça e mandado retirar do site da ONU um relatório elaborado por juristas e académicos idóneos e que, examinando as políticas e práticas de Israel, acusava Israel de cometer “apartheid”.

Nova era a acusação emanar da ONU. Creio que Guterres cedeu ao medo da reacção de Trump, capaz de deixar a organização descalça. Que pena Edward Said não estar vivo para o ouvirmos comentar, ele que foi sempre justo com um lado e outro. Mas lembremos o que o insuspeito judeu George Steiner, há dezassete anos, já lamentava: «Há trinta anos eu escrevi um ensaio onde dizia: “este estado de Israel vai torturar seres humanos. Terá de fazê-lo para sobreviver!” (…) Durante dois mil anos, na nossa fraqueza de vítimas, pertenceu-nos a aristocracia suprema de não torturar o outro. É para mim a maior proeza da nossa herança. E agora, em Israel, é necessário, é necessário criar-se um campo armado, armado até aos dentes. É preciso ter gente nos calabouços em condições muitas vezes terríveis. Isto parece-me um preço que eu não vejo como queira pagar.» Pois. Depois da tortura, o apartheid. Esfuma-se a dignidade, a diferença de ser judeu. Só sobram os falcões e uma máquina de guerra imparável, que se autolegitima quando a retórica sombria das identidades se torna matéria de vida.

Temendo o próximo passo – já dado pelos extremistas do DAESH –, recordo que a escravatura foi abolida não em razão dos bons sentimentos mas porque já saía mais caro ao sistema pré-industrial e era-lhe menos lucrativo do que transformar os escravos em operários.

E eis-nos de novo expostos aos ventos da arbitrariedade com que a diabólica razão financeira distorce as percepções das prioridades no governo das nações para lhes impor os mais abjectos desígnios, ou para esconder (de si mesmo?) as suas enfermidades mais grosseiras.

Nos idos de oitenta do século XX houve um teólogo afrikander que, dado o milagre que conduzira as mãos do dr. Barnard no transplante do coração, defendeu que a raça negra fora criada por Deus para servir de “banco de órgãos” para os transplantes dos boers.

Será o próximo passo face aos palestinianos?

Era vital que a ONU tivesse tido a coragem de aceitar os resultados do relatório que mandou elaborar.

21/03/17

As dimensões ocultas. Baixo da net um ensaio precioso de Cynthia Fleury, que há anos desejava ter: La Fin du Courage (Hachette, 2010). Imprimo-o.

Ao fim de 40 páginas, a minha entusiástica leitura é interrompida pela empregada – quer instruções para o almoço. Dá-se então um sobressalto da geografia e sou abanado pela irreprimível saudade de comer javali. Fica-me de tal modo aguada a boca que abandono tal matéria superlativa para o espírito e rumo ao restaurante da esquina para adoçar a boca com um leitão de medíocre confecção. Salvam-me do desconsolo os lúzios peregrinos (assim no século XVIII se chamava aos “galanços”) de uma trintona, parda, bonita e atrevida, que me faz imaginar que o meu triste bacorinho é um artista de circo e anda de mota. Resisto à tentação e volto disciplinadamente para casa, sem sequer trocarmos números de telefone.

Agarro-me ao ensaio da Fleury mas a minha determinação fraqueja, a vontade de pensar até ao fundo das suas consequências as hipóteses que o texto levanta não é o mesmo; desconcentra-me a falta de sentido de oportunidade para seguir as vias do apetite. Terá sido falta de courage? Adoraria estar em paz quando repito o Aldous Huxley: “sou um intelectual, há coisas que me interessam mais do que o sexo!”.

23 Mar 2017

Lou Andreas-Salomé

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sei se a Rússia será convertível ou não ao culto mariânico, nem um tal aspecto parece de facto de grande importância, a grande Mãe Rússia poderá assim interessar a um devoto cidadão, sem dúvida, mas não a um outro qualquer do mundo que a olha nos seus flancos como uma imensa terra onde cabe tanta de vida, como de morte, até continentes, mas ela tem para além destes mitos, pessoas incríveis e uma delas é Lou Andreas-Salomé. Sempre nos debruçámos fascinados perante esta segunda fase do século dezanove porque ele nos transmite uma polidez e uma vanguarda que permanecem como fundo ideológico dentro dos nossos sonhos: tinham algo de inédito, brilhante, civilizador e único. Hoje olhamo-los e sabemos que nunca conseguimos fazer melhor: as nossas relações pessoais são mais árduas, os nossos preconceitos mais intrigantes, as nossas vidas bem mais ásperas. Eles, porém, eram extremamente modernos e não sabemos o porquê de tudo isto acontecer desta maneira.

Claro, há o contexto social, histórico, cultural, sem dúvida, pois se desejarmos encontrar respostas elas não se esgotarão, mas estou mais inclinada a repousar a deriva desta visão no fascínio natural que me provocam do que analisar com as articuladas fórmulas de pensamento asséptico: eles eram excepcionais. Lou nasceu numa família de irmãos, todos homens. Adorada pelo pai, a vida encarregou-se de a levar até eles como uma criatura aglutinadora e inspirada, talvez esta confiança se deva à sua própria infância de eleita entre os homens, Talvez a sua natureza fosse capaz de exercer esse fascínio e, tanto assim foi, que nunca essa realidade a deixou: Lou foi a mulher mais moderna e mais progressista do seu tempo e nem por isso deixou de ser uma feminina mulher no seu imenso intelecto. Casou cedo, o marido é sempre referenciado nos seus escritos com carinho e uma grande cumplicidade, e que marido é este e que força emana esta mulher para numa organização de homens os manter de forma tão natural e com uma tal harmonia de grupo? Creio que havia uma noção profunda da sua autonomia intelectual e de que sem ela, eles seriam apenas homens comuns, maridos burgueses, amigos tediosos, e outras formas que os homens suspeitam, carregar como fardos, a inteligência deles foi afinal ter entendido uma tão surpreendente verdade, e, por isso, ninguém, nenhum deles, se lembrou – tenho a certeza – lhes passou mesmo pela cabeça, conduzi-la ou pressioná-la. Aliás, eles precisavam dela como o melhor dos interlocutores, sabiam que cresceriam como seres na enorme esfera de contacto com que tanto os rodeou e, tendo ultrapassado as pequenas intrigas de género que tanto paralisam os grupos, o marido era um ser ao serviço de uma causa e, se não participava nas grandes questões, proporcionava que elas existissem. Assim, podem nascer ideias e gente e avanços e vida e saber. Assim, os seres têm funções que não regateiam por ilusões sem mérito e é este o nível civilizacional que os faz tão especiais.

Lou manteve sempre bem firmes os pilares de um núcleo abrangente onde foram forjadas algumas bases do pensamento moderno, como Freud, por exemplo, como Nietzsche que por razões pessoais se afastou do grupo (o que menos conseguiu lidar com o embate Lou) e a sua noção de unidade fê-la manter-se firme mesmo quando, por razões não previstas mas assumidas, se apaixonou por Rilke e foi bonito! Rilke era o mais jovem, o poeta, o mais frágil também, o que mais precisou dela até como uma mãe e ninguém se opôs à vivência profunda desta paixão que despertou respeito: quando dois grandes seres se apaixonam não há areias movediças, as pessoas ao contrário do que se julga, percebem isso e são raras as que desprestigiam a unidade dos amantes. Foi, de facto, um tempo profundo e criativo em que Rilke cresceu como grande poeta e que nos deixaram aquelas maravilhosas cartas que são testemunhos literários de preciosa dádiva. Lou, no entanto, impediu sempre que Freud psicanalisasse Rilke, alegando que poderia ferir as fontes da criatividade, pois que um poeta da dimensão de Rilke trabalhava com áreas que não deviam estar expostas à psicanálise. Não há nada melhor que estarmos unidos àqueles cujas linguagens entendemos e cujos desígnios são também os nossos. O destino abre-se para que passem de forma tão única, que creio ser entendível por todas as partes; e também sabemos do terrível, daquilo que o destino não quer e por levianas questões ele separa. Aquilo que nós, tristes e cansados, desgraçadamente insistimos ainda em querer, creio ser esta a mais terrível das misérias, o não nos apercebermos que a vida nos ajuda levando alguns.

Sim, mas, onde está o nosso núcleo que abre assim? Onde estão agora os meus Rilkes, os meus Paul Rée, os meus Nietzsche? Em lado nenhum e, no entanto, temos de prosseguir e não sou Salomé e não sou russa e não sou este tempo e não estou aqui e não vejo estes pares. Hoje, em que todos falam de género como de uma raça tirolesa, nós gostávamos de ser outra vez estas gentes tão únicas, tão unidas, tão fecundas, tão brilhantes.

Mas é claro, do que mais fica, Rainer nos quer reter, ele que fora para a Rússia, também, em cuja fonte Lou banhou o seu ser neófito de anjo e de poeta:

Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te/ Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te/ E embora sem pés caminharei para ti/ E já sem boca poderei ainda convocar-te/. Arranca-me os braços: continuarei tocando-te/ Com o meu coração como uma mão/ Arranca-me o coração: ficará o cérebro/ E se o cérebro me incendiares também por fim/ Hei-de então levar-te no meu sangue.

Parece tudo demasiado bonito para não nos inundar uma estranha noção de lenda quando Lou a propósito da sua morte escreve a carta que ele não lera.

Tu, o homem incomparavelmente cheio de infância e cujos passos não podem errar porque continua a orientá-los o fundamento primeiro. Fazia-se de novo, então, presente o Rainer com o qual se podia estar de mão dada, como num refúgio inexprimível , e o que se transformava, entretanto, em poesia voltava a construir à sua volta esse mesmo refúgio, como um esplendor interminável.

Temos tantas saudades deste futuro, de tudo isto….

23 Mar 2017

Palavras como “pénis” e “vagina” 珍爱生命

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]elebrar a vida – Leituras Sobre Educação Sexual das Crianças (珍爱生命-儿童性健康教育读本) faz parte de um conjunto de livros publicados pela Universidade Normal de Pequim. Como o título sugere, são usados na educação sexual de crianças da escola primária.

Recentemente livro foi alvo de acalorada discussão, depois de uma mãe de Hangzhou se ter vindo queixar no Weibo, uma rede social chinesa, de que o livro era demasiado explícito. A senhora tinha ouvido a filha ler algumas frases como “O papá põe o pénis dentro da vagina da mamã,” e “O esperma do papá entra no útero da mamã.” Embora alguns dos comentários ao post revelem que as pessoas acreditam que a educação sexual das crianças é importante, um grupo de pais indignados acharam que o livro era impróprio para os mais pequenos. Apelidaram-no de “banda desenhada pornográfica” por ter um “excesso de nudez”.

O tom liberal do livro reflecte-se na exibição de imagens dos órgãos reprodutivos femininos e masculinos e também do acto sexual. “Você como pai, não fica chocado com isto?” perguntou a mãe que levantou esta polémica a um jornalista de Pequim durante uma entrevista. A identidade desta mãe é desconhecida.

O primeiro texto sobre educação sexual apareceu em Shenzhen em 2003, mas foi rapidamente retirado dos currículos escolares. A educação sexual só se começou a difundir na China a partir de 2010, depois de Celebrar a vida – Leituras Sobre a Educação Sexual das Crianças ter sido introduzido para ensinar as crianças de uma escola primária do Distrito de Chaoyang.

O autor, Liu Wenli, afirmou que, embora a educação sexual seja tão importante como a Língua ou a Matemática, a cultura tradicional chinesa considera desnecessária a sua introdução nos currículos escolares. As lições incluídas no livro versam temas como: O Pénis e a Vagina, a Homossexualidade, Igualdade de Género e, mais importante que tudo, o ensino de uma atitude progressiva.

“A maior parte das pessoas sentem-se atraídas pelo sexo oposto, mas algumas sentem-se atraídas por pessoas do mesmo sexo. Este fenómeno é absolutamente normal,” afirma o professor e autor do livro. “Não devemos discriminar essas pessoas.” Para além de falar sobre as orientações hétero e homossexuais, o texto também menciona a bissexualidade.

“Vocês já ouviram falar de uma celebridade que se assumiu como bissexual?” diz a rapariga.

“O professor não nos disse? Algumas pessoas gostam de picante e de doce. Não temos de nos sentir chocados,” responde o amigo.

Num relatório de 2013 elaborado a partir de uma pesquisa interdisciplinar sobre a protecção a raparigas, Celebrar a vida foi citado como um exemplo para ajudar as crianças a estarem mais atentas aos predadores sexuais. Em 2014 foram reportados mais de 500 casos de abusos sexuais infantis.

22 Mar 2017

Leitor de autores

EC.ON, Lisboa, 11 Março

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão devia dizê-lo tantas vezes em público, para manter aquele orvalho das primeiras madrugadas. Ou, pelo contrário, devia gritar esta fraterna ideia de que podemos cultivar comunidades, hortas dos simples nas traseiras de paraísos de onde seremos sempre expulsos. Descobri em Luís Carmelo um irmão que não sabia ter. Além das afinidades que fomos desvelando ou continuaremos tecendo e a tendência para o desvario, une-nos um estranho sentido prático, nem tanto natural, que se faz indispensável para trazer à cena as ideias que nos atormentam. Acrescente-se nele a planície da generosidade e o fulgor da dança. Aquela discreta, como convém, e esta extravagante, porque se pode. Qualquer pista, formal ou improvisada, se expande com as figuras geométricas que o Luís desenha com o corpo todo: inventou a geometria descritiva dançada.

Nas últimas semanas, descontando a presença no Correntes D’Escritas, pude acompanhar de perto o mano Luís em três outras ocasiões, no El Corte Inglés, em dissertação integrada no ciclo «Este Livro que Escrevi», no lançamento do terceiro volume da trilogia, Sísifo, e hoje nesta sessão dos cursos Ícone, da sua activíssima Escola de Escritas. Sou testemunha do seu brilhantismo. E da sua perplexidade ao contar, em preparação para hoje, 53 títulos dados à estampa (e mais de duas dezenas de inéditos), sobretudo no ensaio e no romance, mas com incursões, apenas exemplos, na poesia ou no conto. Bibliografia em badana é uma coisa, outra ver os volumes a construir sobre a mesa uma parede cronológica, a vida disposta de maneira que uma mão as puxe pela lombada e as leve aos olhos. Escusado será dizer que em poucos lugares se poderá ter tal experiência, que as livrarias há muito deixaram ter fundos, ainda assim afundando-se cada vez mais. Carmelo consegue, com um danado poder de síntese, afastar-se da sua obra, semi-cerrar os olhos, agitar os dedos da mão direita no mais longe do braço e dissertar com espantosa certeza. Acerca da circunstância concreta que despertou o desejo de escrita, uma dor ou um exercício, mais os meandros articulados de cada mecanismo, sem esquecer o óleo que une o conjunto para terminar numa conclusão, quase sempre questão em aberto. Por vezes, ferida aberta.

Esta Trilogia de Sísifo ergue-se ponto cimeiro no dançado percurso do Luís Carmelo, que obedece, mais do que aos ritmos exteriores, a um rigor orgânico que propõe formas de contar caleidoscópicas, que busca capturar a essência de cativantes personagens em movimento através de uma linguagem renovada, que acrescenta, com sombras, que não esconde o erótico labor da escrita.

O fecho faz-se com um romance sobre a iniciação, construção literária que há muito fornece à vida a potência de uma explicação, um arrumo, ainda que instável, um sentido possível para os ziguezagues com que progredimos, não necessariamente em frente. Tive crónica na revista Ler, que levava por título «Este Livro e Não Outro», para mastigar a ideia de que a cada momento do vivido temos um livro, e não outro, que lhe corresponde. Por coincidir com experiência marcante será então cabalmente nosso, tal a árvore incorpora bicicleta esquecida encostada ao seu tronco. Reparo agora, tentando a virgindade de simples leitor, que este Sísifo se tornou paisagem actualíssima ao seu famigerado editor, que anda às voltas, sem saber se roda sobre si ou se se dirige em espiral para algures.

Aldeia de Paio Pires, 18 Março

Um dos ensaios do mano Luís, Uma Infinita Voz (abysmo), foi dedicado ao Exercícios de Humano, do mano Paulo José Miranda, agora mesmo homenageado na sua aldeia, com comovente singeleza, em tarde soalheira, na Sociedade Musical 5 de Outubro, pela mão da CoopA, de António Caeiro e Sérgio Gomes. Tentei dizê-lo atabalhoadamente: um regresso que nunca foi ausência. Por ser universal, as raízes do Paulo notam-se bem no que escreve. Momento central foi o testemunho do mano António de Castro Caeiro, um pouco antes das leituras do mano José Anjos. (Sorrio com a irritação que causará em alguns, mais dados à miséria e às comichões, esta luxuriante profusão de manos…). O próprio Paulo coligiu a antologia Resta Ainda Face (abysmo), seguida de ensaio, para a poesia de Helder Macedo, e este, em entrada para A Companion to Portuguese Literature (Tamesis Books), afirma que ele e António Cabrita «estão a destabilizar as reputações pronto a vestir». Manos que escrevem sobre manos, que se lêem a qualquer pretexto. Podia continuar puxando fios de rede que não pára de crescer, e cujas cores generosas me confortam. A identidade da literatura tem que arder nesta incessante procura do sentido e do cruzamento das noites de cada um. Portanto, não basta escrever. Antes gastar a vida assim, a tactear o não dito, a puxar o manto do silêncio. Portanto, a escrever. Ainda que isso nos facilite pouco a vida.

Disse ali o mano António, para mais de meia centena de pessoas. «As suas palavras poéticas dependem de uma compreensão do sentido. E poucos têm como plano de fundo um domínio do pensamento ocidental para poder produzir uma abertura à dimensão em que o sentido acontece. Em que se compreende e não compreende, onde há ou não inteligibilidade. O debate pela palavra é o debate pela compreensão das situações em que não se compreende, não se consegue nem pode.

Por isso muitas vezes parece haver uma impermeabilidade entre a poesia e a vida, como se houvesse duas e não se desse antes o caso de a vida enquanto tal existir na dependência da situação em que nos encontramos. Encontramo-nos continuamente, o mais das vezes e primariamente, sem qualquer necessidade de confronto com o sentido. O confronto com o sentido dá-se quando ele se esvazia, quando, a partir do seu próprio colapso, nos interroga, põe problemas, levanta questões e nos dificulta a vida.»

22 Mar 2017

Assim pudesse acender-me

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho até aqui, tirando os textos sobre os autores da Antiga Grécia, escrito sobre poetas de gerações mais novas do que a minha. Hoje, e antes de terminar este formato, abro uma excepção para um livro de finais do século passado, de um autor de uma geração bem anterior à minha, que trata de um tema algo arredado da temática poética contemporânea: o amor. Opus Affettuoso trata-se de um livro de poesia com 55 poemas curtos, intitulados de I a LV, e ainda um poema final, mais extenso, de três páginas, intitulado “Última Núpcia”. O tema do livro é o amor, sim. E este amor não tem qualquer conotação pejorativa, negativa ou indigente. O amor que aqui aparece, ao longo destes poemas, é o topos humano, o lugar do humano. O amor não é somente um lugar, também faz de nós um lugar. O amor é o lugar desconhecido que habitamos, que habita-nos e para o qual e com o qual caminhamos. Sabemos que há, mas não sabemos o quê, não sabemos quando, nem a natureza do seu aparecimento: “EU NÃO SEI SE / conheci a luz ou a sombra / quando bebi na tua pele. (…).” [XIV] Não podemos saber se subimos ou se descemos, se vamos para bem ou se vamos para mal quando amamos. Não é possível ao humano aceder a esse conhecimento. “(…) de quem não sabe / se é folha ou chão boca saliva / porque tudo em nós é luz líquida / que não conhecemos saboreamos / apenas.” [VIII] Aquilo que sabemos, aquilo que apenas podemos saber é que à beira do corpo há luz. Há uma luz que se acende dentro de nós na beirada de outro corpo, nos campos da amada. Isso, sim, isso sabemos. Uma luz líquida, uma luz que sai de nós e do outro e que ilumina a ambos, uma luz que nasce de um corpo contra outro, de boca contra boca, de sexo contra sexo.

                        XV

ENTRO PÉ ANTE PÉ

          no pátio da minha amada –

         arco iluminado.

           Saio limpo e vazio

          do barro de minha amada –

         de novo abandonado.

Estamos, portanto, num universo de luz e sombras. A luz do corpo e a sombra da alma. Sombra do pensamento que nos estrangula de ausência. Não é o outro que nos dá o ser, quer o outro seja Deus, quer seja a amada; o que nos dá o ser é a sensualidade do outro, o toque do outro e no outro: “(…) do ser que sou agora luz reunida / pela mão no joelho que se abre (…)”. Ser é ser um momento de sensualidade, ser um momento onde nos acabamos, onde nos esquecemos, onde nos abandonamos. Ser é descansar de nós, e só se descansa sensualmente. O amor é o contrário de nós, sabemo-lo logo nos primeiro três versos do livro: “AMO-TE PORQUE NÃO ME AMO / inteiramente. O que me falta / é infinito / (…).” [I] O infinito, aqui, não é a luz, mas a sombra. A sombra do corpo que dá luz em contacto connosco. Queremos o que não sabemos, queremos mais do que podemos, queremos a sombra estendida do mundo. Mais: nós somos a sombra estendida do mundo; somos o que pensa, o que se entrega às sombras, ao desejo de infinito. E só no corpo, só no corpo do outro, da amada, descansamos das sombra que somos, do infinito que nos atormenta. Estar connosco, remetido à nossa própria sombra, ao pensamento, ao infinito desejado é ser perdido, ser em luta connosco, com a necessidade de infinito e a sua impossibilidade. O amor nasce desta consciência: a luta, em nós, entre a necessidade e a impossibilidade de infinito. Amo o outro porque não sou infinito, porque o que o meu pensamento deseja não tem reciprocidade. O amor é o que nos resta. Na impossibilidade de sermos infinitos, de nos amarmos a nós mesmos inteiramente, resta-nos o amor, que nos dá descanso, que nos recolhe dos demónios do dia.

        XXVII

NÃO ACENDAS

a luz não abras

        a janela. O teu sexo

        lâmpada viva

        ilumina-me a noite

        escura. Não abras o dia,

       ilusão impura.

O momento da sensualidade, aquele momento de descanso de nós mesmos, de ser, descanso de pensar, de ser sem ontologia é, contudo, frágil. Demasiado frágil. “A LUZ QUE ME DÁS, ESQUIVA E DURA, / serve-me de abrigo onde desfeito / é já meu cansaço. (…)” [XXXVIII] A luz já é esquiva e dura, abriga e descansa, mas não é fácil de acontecer. A luz não acontece quando se quer, nem quando queremos. A luz do corpo, essa luz líquida, nascente de um com o outro, é bem menos forte, bem menos presente do que o dia, do que a luz demoníaca do dia, que é a luz que revela a nossa sombra, o nosso eu; não o nosso ser, mas o nosso eu. Eu é precisamente o que não quero. O que quero é eu e tu. Pensar é o que não quero, o que quero é meu corpo no teu. Quero luz, a preciosa, rara e líquida luz; não quero a sombra que me habita, que sou eu, que é Eu, e que o dia vai revelar-me. No amor escapamos da humanidade como se falta a uma aula. O amor é a possibilidade de descanso de nós, desse Eu assombrado que nos impede de ser. “(…) Deixa-me levar o sabor / da pequena lâmpada / para que eu possa suportar a travessia / dos pátios que me separam / da próxima noite.” [XXXIV] Ficar entregue a mim (Eu) é caminhar pelas sombras do mundo, pelas sombras do dia, espalhando em mim e fora de mim a minha própria sombra; a minha sombra de ser. Chegar a um corpo, haver um corpo que nos receba, é o que melhor nos pode acontecer. O que melhor nos pode acontecer para não cairmos na sombra do Eu, na angústia da falta de infinito. Depois do corpo da amada, “eu” é uma pedra contra mim mesmo. Pois quando amo, quando estou apaixonado, e é deste amor que o livro fala, eu sem o outro sou uma sombra de mim mesmo, um escuro enorme. Leia-se um poema, onde claramente se vê a luz nascer à beira do corpo do outro. Luz que apaga as palavras, o pensamento, que apaga a sombra que somos. Luz redentora, porque ofusca o Eu, ofusca o que nos afasta de ser, da experiência ancestral do Ser.

A TUA PELE NÃO É A LUZ

                 mas estou perto

                ofuscado

               e sem palavras

               não preciso delas

     ouço o tumulto a

             coroação

   da minha verdade a que vem

  de ti olhar para ti

  silenciosa

e em silêncio desaprender

a musica dos outros a grata

imperfeição do mundo

        e enlouquecer

       onde fui sábio

      outrora

Mas que corpo é esse que o poeta fala? É um corpo qualquer? É o corpo do dia-a- -dia, que desejamos a caminho do trabalho ou de casa, na esperança de voltarmos a ser, de nos esquecermos de nós? Não. O corpo onde vamos acontecer, de onde recebemos nosso ser e ao outro o concedemos, não é esse corpo. O corpo não é do mundo. Há, no mundo, corpos; mas não são estes de que o poeta fala. O corpo que Casimiro de Brito canta é o corpo afectivo, o corpo para além do acontecimento, que nos dá o ser e devolve ao outro o seu ser. É o amor. O amor feito carne, nos muros da pele, nas águas que escorrem pelas calhas, pelas ranhuras do humano, pelos seus orifícios. Leia-se estes versos de “Última Núpcia”: “(…) a linguagem dos animais horizontais / que bebem na lua o olhar que nela / outros amantes deixaram esquecido (…)” O que outros esqueceram é a matéria que nos concederá o ser. A maioria das vezes o que há é esquecimento, esquecimento de um corpo no outro, de um corpo face a outro. Este corpo não é do mundo. Amor e mundo não se entendem. O amor é a experiência do lugar por excelência: o topos dos topos. O amor repele para longe a doença do desconhecido, do infinito, da angústia. O amor qua lugar. O amor enquanto topos. O amor não tem lugar, ele é um lugar. Mais: é o Lugar do humano. Nestes poemas, a casa do humano não é a linguagem, mas o amor, o outro humano com quem fabricamos a luz líquida a que os versos várias vezes se referem ao longo deste livro. “(…) A tua mão / sem palavras sem pensamentos / acaricia-me os joelho / sob a luz que do céu / fatigada / cai.” [XLIII]

Fora do amor, fora do corpo da amada, no mundo, ficamos expostos a nós mesmos, a todas as intempéries da palavra e do pensamento. “(…) Armas tão frágeis / as que temos: o mel a saliva o / sêmen. (…)”. [VI] E, para além de sermos desprovidos de armas eficazes, que combatam o mundo e nossa sombra, há ainda a fragilidade da amada, os “(…) ramos frágeis / da minha amada. (…)” [XI] Aquilo que nos dá o ser, nosso encontro corpo a corpo com a amada, é muito frágil, quase impossível de sobreviver, de prosseguir pelo tempo fora. Não é só o mundo, com seus dias derramando nossas sombras, que nos enfraquece o amor, que nos enfraquece o encontro, a possibilidade da luz líquida, também nossos próprios corpos são frágeis, vulneráveis. Veja-se o que protege a amada:

          XXX

APENAS 

                 um cinto passageiro

                a envolve. Um veio

               mais leve

              do que a brisa

              da manhã. O fio

             de água

            dos meus braços.

Tudo nos conduz à consciência da fragilidade. Mas essa consciência não se dá no amor, não se dá nesse lugar do ser, no lugar onde recebemos e damos ser. A consciência da fragilidade do amor, da fragilidade da amada, no corpo desabrigado da minha amada [XLVIII] e de nós para a amada, de mim para a amada, essa fragilidade dá-se no mundo, nos dias, na sombra, como reconhece o poeta, vagueando pelas ruas, companheiro dos cães “(…) e deito-me / de novo. Desamparado. / Apenas um jogo / de lençóis bastava.” [XVI] Sem amor, não temos onde ficar, não temos lugar onde ficar. Sem amor somos nós vagueando como cães, passeando nossa sombra pelo mundo.

21 Mar 2017

A Barca da Morte

[dropcap style≠’circle’]D.[/dropcap] H. Lawrence tem um belo poema muito ao estilo de uma velha barcarola, com o título deste enunciado. Ele, que foi o escritor dos «Amores no Feno» e de toda uma atmosfera que o coroou de erótica neblina, ele – e talvez por isso – fosse um desbravador indómito, poético, um arauto que se debruçou de forma muito bela sobre a morte, essa porta da iniciação que não está desligada da sexualidade e cujo movimento retorna ao ponto fixo de uma mesma força — lembro que lhe tocava em profundidade o orgasmo dos condenados à morte por enforcamento.

Estes homens não tinham como hoje as respostas organizadas para todos os efeitos como se fossem a parte robótica de si mesmos. Eles estavam animados de uma película cuja deidade desconhecemos, nós, os transmissores de todos os fenómenos em que nunca acreditamos. Decerto que Lawrence, até devido à sua saúde frágil ao longo da vida, se interrogou acerca da morte e essa imensa indagação deu origem a belas reflexões como naquele pequeno conto, «O homem que morreu», é encantador e quase crístico pela forma como se levanta um defunto e se vai lembrando em seu redor (Jerusalém) dos cheiros e dos elementos. Isto tudo a partir de um estranho cantar de um Galo que à mesma hora em que é libertado acciona nele a ressurreição…. No seu belo poema «Canção da morte» formas tautológicas que tão emblematicamente o mantiveram como um mestre do suspense sedutor, mas foi nesta Barca que o seu dom se demorou um pouco mais, talvez até mais, que nas formas de uma mulher.

Esta viagem parte do Outono, eufemisticamente, pois que é nele que embarcamos de forma compenetrada e silenciosa rumo a ela, e ele afirma que:

é tempo de ir/ do adeus ao próprio eu/ de encontrar uma saída do eu caído/e, no ar, a morte, como um cheiro de cinzas!/ E no corpo ferido, a alma assustada/(…)

Sim, toda esta inquietude e formação de um outro ser que renasce na viagem para depor o eu vencido é bonita de celebrar como um rito muito puro de passagem, e inquire-nos de forma bastante frontal:

Já construíste a tua barca da morte, a tua?/ Constrói a tua barca da morte, vais precisar dela.

Todos vamos precisar de construir tal Barca e mesmo que os preconceitos do nosso tempo não assumam esta causa como uma condição articulada de profunda humanidade, ela deve ser trabalhada como a Arca da Aliança, com madeiras belas e ramos de acácia. Não devemos estar impreparados diante do desconhecido, dos desconhecidos, tudo o que é transpor um portal tem de ser “vivido” com um rito que quebre as formas saturadas. Daí, cada um, quando a vida começar a fechar o postigo das possibilidades, se deva abeirar daquele mar de dentro e, sem vontades pessoais, abrir espaço abstractamente para deixar passar a Barca. Morremos sempre por uma causa mas quase sempre nascemos por um mistério.

Nós que já atravessámos tantos mares, que temos marcas de vida em permanência, que temos todas as cicatrizes como trunfos de uma guerra muita vezes inglória, que nem sempre escolhemos, pois que somos escolhidos na abrangência das decisões, que navegamos quando não é preciso e vivemos quando não faz falta, que de tanto estarmos vivos temos uma engrenagem parada em movimento permanente, podemos ter a gravidade dos iniciados quando desta Barca se tratar.

É sempre bom para a alma contemplar outras entradas sem a visão das coisas ao redor e suas certezas, é bom sairmos deste local onde a nossa vida deixou de ter o interesse pretendido:

morrendo, estamos morrendo/ agora só nos resta aceitar a morte/ e construir a barca/ agora, lança à água a pequena barca/ agora, que o corpo morre e a vida parte, lança a alma frágil/ na frágil barca da coragem, na arca da fé.

Talvez que a morte seja um Dilúvio e sejamos nós a construir a Arca, a Barca, para atravessar aquela grande provação de águas que galgam toda a firme certeza que tivéramos de haver terra… talvez que tenhamos essa ideia profunda de voltar a navegar num oceano sem fim e só nesse fim a Pomba, a Luz, a Fonte sejam na nossa travessia tudo o que desejámos saber, contemplar. Se mudados atravessarmos tudo isto e renascermos, não seremos apenas o desejo pessoal de uma condição que ficou, pois que muitos nos tomaram para sermos e, na senda de ser abarcámos a Barca, como a insígnia mais pessoal do enviado que somos, que fomos, dos seres únicos em que cada um se tornou.

É muito bonita a analogia com a passagem bíblica… – e Noé construiu uma Arca – constrói a tua Barca – a pomba voltou ainda com um ramo de oliveira para lembrar, talvez, a ressurreição… mas era cedo e Noé não desceu, mais tarde largou de novo a ave e ela não mais voltou. O pássaro da alma que vai tentar a vida uma outra vez dizendo que ela continua, indicando outro ciclo, esta é uma bela noção de imortalidade que, estando plasmada em nomes, símbolos e incompreensíveis formas, nós conhecemos como taumaturgos de um processo imenso…

Temos medo, sim, do dilúvio, que a Barca se afunde pelo peso sombrio das nossas memórias deixadas, temos medo de atravessar esse imenso nevoeiro e não sabemos se a sombra da alma fará mais escura a travessia… se a bloqueia em porto incerto… mas os que estão livres das questões e não zelam pelo nada como parte descartável para uma vida que contaminou estes mares, entram nela como nas longas catedrais, plenos de respeito pela travessia. Saiba a nossa guardar intacto o assombro de merecer este Poema, tão cheio de vida, como esta morte que se anuncia às portas da Primavera. Lawrence, quase fecundou o momento – este momento – onde vamos descendo no grande e belíssimo instante da jornada.

Desce o dilúvio, e o corpo como uma concha polida
Emerge extraordinário e belo.
E a pequena barca torna a casa, deslizando, trémula,
E a frágil alma desembarca, volta a casa.
Cheia de paz.
O coração renovado embala-se na paz,
Mesmo na do próprio esquecimento.
Constrói a tua barca da morte, a tua!
Vais precisar dela.
espera-te a viagem do esquecimento.

20 Mar 2017

Marquês por coincidência de apelido

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o escrever sobre um macaense, logo os seus apelidos mostram uma teia de casamentos que nos obriga, para dar um enredo coerente, a desmultiplicar as pesquisas por uma série de gerações e famílias. Assim, como a maior parte delas tem parentescos entre si, não faltará em Macau, por muito que custe, quem seja familiar de Albino Francisco de Paiva de Araújo (1824-1872). O Padre Manuel Teixeira refere, “Era filho de Mariana Vicência de Paiva, de raízes beirãs, e de Albino Gonçalves de Araújo, de raízes brasileiras. A sua genealogia entronca com macaenses ilustres, oficiais do Exército e da Armada” e sobretudo ligadas ao comércio, sendo nessa altura o ópio a mercadoria mais importante e de maior valor, que levou nos séculos XVIII e XIX ao enriquecimento dos muitos europeus a viver em Macau.

A mãe, Mariana Vicência nascera a 22-7-1802 na “Cidade do Santo Nome de Deus”, sendo filha de Inácia Vicência e de Francisco José de Paiva. O pai do nosso biografado era Albino Gonçalves de Araújo, natural do Rio de Janeiro, Brasil, da freguesia de Nossa Senhora de Candelária, (e segundo Jorge Forjaz nascera em 1797), vindo a falecer em Macau a 24 de Janeiro de 1842, sendo filho de José Gonçalves de Araújo, natural da Ribeira da Pena e de Ana Francisca de Araújo, nascida em Rio Pardo, Rio Grande do Sul, Brasil. Albino José Gonçalves Araújo foi inspector encarregado da aferição dos pesos e medidas e da taxação dos géneros alimentícios, o “almotacé da Câmara em 1824 e irmão da Santa Casa da Misericórdia, eleito a 9 de Abril de 1829” e “era proprietário do navio Conde de Rio Pardo, que fazia viagens para o Rio e Lisboa. Deixou uma grande fortuna, que foi depois criteriosamente administrada e aumentada por sua mulher”, D. Mariana Vicência de Paiva, com quem se casara “no oratório das casas de seu sogro (freguesia de S. Lourenço) a 7 de Novembro de 1823”, segundo Jorge Forjaz quando fala da família Araújo, mas, ao tratar sobre os Paiva refere a data de 8 de Janeiro de 1823. Já o Padre Manuel Teixeira indica que a 7 de Janeiro de 1823 foram casados pelo Frei João de Sto. António, O.F.M., comissário da Terra Santa e Vigário de S. Lourenço, tendo como testemunhas o conselheiro Manuel Pereira e o comendador Domingos Pio Marques.

As famílias Paiva e Marques

A mãe do nosso biografado, Mariana Vicência de Paiva nasceu na freguesia de S. Lourenço em Macau a 22-7-1802, segundo o P. Manuel Teixeira, enquanto Jorge Forjaz indica o dia 21, sendo baptizada aos 28 desse mês e morreu no Porto, na Rua de Santa Isabel a 26 de Maio de 1885. Era ela filha legítima de Francisco José de Paiva e de Inácia Vicência Marques, duas das mais influentes famílias de Macau, que enriqueceram com o comércio marítimo. Ambas, os Paiva e os Marques, eram provenientes do lugar de Vila do Mato, freguesia de Midões, concelho de Tábua, Beira Alta e o pai de Inácia Vicência, Domingos Marques chegara a Macau por volta de 1760. Sendo Francisco José de Paiva, o marido de Inácia Vicência, também nascido na mesma localidade (lugar Vila do Mato), parece ter chegado a Macau chamado por Domingos Marques. Assim Francisco José de Paiva, nascido c.1758, viera para Macau por volta de 1780 e casou-se na Sé a 24 de Novembro de 1795 com Inácia Vicência Marques. Foi comendador da Ordem de Cristo e faleceu a 27 de Novembro de 1822, ficando sepultado na Igreja de S. Francisco. E continuando com as informações de Jorge Forjaz, “Depois da sua morte a sua firma passou a denominar-se Viúva Paiva & Filhos e tinha escritórios em Cantão, que eram dirigidos por Joaquim José Ferreira Veiga”.

Inácia Vicência Marques, avó pelo lado materno de Albino Francisco de Paiva de Araújo, era filha de Domingos Marques e de Maria Ribeiro Guimarães, natural de Macau. Domingos Marques, que faleceu em Macau a 12 de Janeiro de 1787, “foi procurador do Senado em 1768, 1783 e 1784 e exerceu ainda os cargos de escrivão do Leal Senado e de juiz e administrador da Alfândega. Em 1774 foi eleito almotacé da Câmara. Deve ter-se dedicado ao comércio, onde certamente realizou capitais substanciais, pois foi proprietário do Mato do Bom Jesus e deixou à Santa Casa da Misericórdia o importante legado de 1015 taéis”, segundo Jorge Forjaz. Já Benjamim Videira Pires refere que Domingos Marques “foi Fidalgo da Casa Real, com brasão de armas, irmão de Marques de Távora, no reinado de D. José I” e daí a nota que Jorge Forjaz dá do testemunho de Alberto Alemão, que diz, “Domingos Marques era estribeiro-mor do Duque de Aveiro e foi envolvido também no caso dos Távoras, tendo chegado a ser interrogado e preso”. (…) “Teria cerca de 28 anos quando se deu o célebre atentado [1758] contra o Rei D. José, que originou a terrível perseguição aos Távoras…”

A família Ribeiro Guimarães

Domingos Marques teve seis filhos de Maria Ribeiro Guimarães, cujo pai era João Ribeiro Guimarães, provedor da Sta. Casa em 1753, sendo tesoureiro e procurador do Senado, quando a 27 de Fevereiro de 1773 foi preso, por ter passado aos mandarins chineses uns recibos para se lhes fazer entrega do inglês Francis Scot, acusado de ter assassinado um chinês. Segundo Jorge Forjaz, João Ribeiro Guimarães nascera em S. Miguel de Freixomil em Braga e era um “rico negociante e proprietário de navios em Macau. Foi procurador do Leal Senado em 1755, 1765 e 1782; almotacé da Câmara em 1763 e provedor da Santa Casa da Misericórdia em 1769”. Este casou-se por duas vezes, tendo da sua primeira esposa, Inácia de Oliveira Paiva, duas filhas, Mariana Francisca Guimarães e Maria Ribeiro Guimarães, que mais tarde aparece com o nome de Maria Francisca dos Anjos Ribeiro Guimarães. Refere Jorge Forjaz, “Há aqui uma qualquer mistificação genealógica que não consigo deslindar. Refiro-me ao facto de um neto deste casal (Domingos Pio Marques de Noronha e Castelo-Branco), no processo de justificação de nobreza que levou à concessão de armas, ter afirmado que a sua avó Maria Ribeiro Guimarães, se chamava… Maria Francisca dos Anjos Ribeiro Guimarães de Noronha e Castelo Branco, conseguindo com isso que lhe fossem concedidos armas destes dois últimos apelidos. Como naquele processo de justificação não provou como é que a avó tinha direito àqueles apelidos (o que, pelos dados disponíveis, não parece crível), estou em crer que estaremos perante uma qualquer tentativa de corrigir a história… <ad usum delfini>!

História diferente da nossa personagem principal, Albino Francisco de Paiva de Araújo, que em Paris se tornou marquês por coincidência de apelido.

17 Mar 2017

Cláudia R. Sampaio: “A poesia requer sempre um silêncio”

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens três livros de poesia publicados: Os Dias Da Corja (Do Lado Esquerdo, 2014), A Primeira Urina Da Manhã (Douda Correria, 2015) e Ver No Escuro (Tinta da China, 2016), sentes que são livros estanques, com estéticas e propósitos literários distintos ou há uma continuidade entre eles, tanto ao nível temático quanto estético?
A nível temático acho que há uma continuidade. Os meus livros falam muito de perda, solidão e de uma barreira que está sempre quase a ser ultrapassada além-limite. Quanto à forma, sinto que mudei um pouco, há uma evolução, fui-me descobrindo.

Escreveste, não sei se ainda escreves, roteiros de telenovelas. Achas que isso te marca negativamente perante a crítica ou perante a maioria dos leitores de poesia. Ou hoje em dia os leitores de poesia separam com mais facilidade a poesia do que se tem de fazer para ganhar a vida?
A crítica não me preocupa e nem sequer penso se isso marca negativamente a opinião que podem ter acerca da minha poesia. São coisas tão distintas que acho que não se pode confundir um trabalho que não dependia de mim com aquilo que realmente sou e que atravessa o que escrevo. Acho que as pessoas que me rodeiam pensam o mesmo.

Participas num grupo de leitura de poesia e música, Belos, Recatados e do Bar, juntamente com o músico Pedro Moura, o poeta José Anjos, o escritor Valério Romão e o filósofo António de Castro Caeiro. Gostas de ler poesia em público, ou para ti só faz sentido num projecto como esse que vocês têm? E como nasceu essa ideia?
Os Belos, Recatados e do Bar já existiam antes de eu e o Pedro Moura fazermos parte do grupo. Um dia convidei-os para lerem no meu café literário Folhas d’Erva (que entretanto já encerrou) e eles insistiram para que eu também me juntasse à leitura e para que o Pedro tocasse. Correu tão bem que a partir daí já não nos separámos. Gosto de ler poesia em público porque é uma coisa esporádica e que nesses momentos me dá bastante prazer. Há outros momentos em que só me faz sentido ler aqueles mesmos poemas quando estou sozinha. A poesia requer sempre um silêncio. Mas ao ler em público há uma partilha com o outro, acabamos por despertar a atenção para certos poemas e muitas vezes é uma maneira de os darmos a conhecer.

Em pouco tempo de publicação, desde 2014, parece-me que tens tido um reconhecimento bastante bom por parte da critica e do público? Concordas?
Não sei. Houve sim uma maior visibilidade com o Ver no Escuro (Tinta-da-China) e, por consequência, acabei por ter mais retorno quanto à opinião de leitores que gostaram muito e que me enviam mensagens via Facebook a agradecer por tê-lo escrito, o que me deixa sempre num misto de surpresa e de contentamento.

Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento?
Sim, sem dúvida. O que sinto é que as pessoas se interessaram novamente por poesia, mesmo as gerações mais jovens, e estão a deixar de lado o estigma de que a poesia é uma coisa lamechas para gente triste. Basta ver a sala cheia de caras novas num evento de poesia para perceber isso. Também há cada vez mais gente a escrever e mais editoras interessadas em publicar novos poetas, o que é sempre bom. Desde que isto tudo não faça da poesia um espectáculo oco de variedades, acho belíssimo.

Que projectos tens para este ano, ou intenções?
Tenho um livro pronto, já com editora e que sairá em breve. A única coisa que está a atrasar o processo é a falta de título, o meu eterno calcanhar de Aquiles. Entretanto já comecei a escrever outro livro, que é uma espécie de história-poema-longo e que terá uma banda sonora do Mário Fonseca, em piano. A ideia é, para além de publicar o livro acompanhado de cd, fazermos espectáculos ao vivo. Também gostava de conseguir arranjar um trabalho.

17 Mar 2017

Diários de guerra de um ornitólogo

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] o quarto telemóvel que me impinge desde que me sentei na esplanada. Não desiste. Já passaram na rua uma trintena de grávidas. Dois vendedores de dvds piratas esperam encostados à acácia que eu me levante para me acossar. Uma miúda de olhos de boga, tão afadigada a digitar no seu cell, fica tremendamente desiludida quando eu a interrompo para lhe perguntar as horas… E extensões eléctricas, não quer? Fazem sempre jeito. Vendo duas tábuas de engomar pelo preço de uma. Quarenta e um graus, e o café não tem gelo. A minha mulher liga-me, Faz cinquenta dias que entregaste o relatório – como se estivesse nas minhas mãos. Não me pagam, interpôs-se uma guerra idiota entre a bondade e a administração do Estado. Um gala-gala sobe pela acácia. Abro o gmail, um aluno enviou-me a proposta do seu projecto de fim de curso, pedindo que o supervisione. Dou uma leitura na diagonal. É uma vala comum onde se esqueceram de deitar os corpos. Não há uma vírgula onde se note que a criatura esteve quatro anos na universidade.

Face a este caos, é preciso um método, um simulacro de ordem. Como faço tudo ao contrário do que é costume, descanso fazendo traduções, assim como outros pescam o merlin ou vão ao Kruger fotografar os leões.

Tenho uma péssima, uma canhestra relação com as línguas. Leio quotidianamente em várias delas mas é frequente sentir-me como quem lê as pegadas de tartaruga na praia, incerto sobre a morfologia do animal que aqueles sinais indicam. É porque me é difícil que persisto. Da mesma forma que só a dificuldade me levou a não abandonar a escrita. Estou para todas as línguas como Moisés para as costas de Deus. E sentindo ao perto a luz dos sessenta afigura-me inútil invejar aqueles que por berço articulam os vocábulos alheios como morrões que displicentemente abandonam nos cinzeiros. Traduzo numa espécie de selvático urbanismo mental, em inconspícuo labor, enquanto na rua os jacarandás se desnudam ou a casca do limão cai no gim. É aquilo a que chamo: os diários de guerra de um ornitólogo.

Sem dar-me conta reuni quinhentas páginas de poesia, traduzidas do espanhol, do francês, do inglês, do italiano. Ia agora editar todos os hispânicos, duzentas páginas. Mas o editor, numa atitude infantil de animal birrento, quis polemizar em 360 graus e disparou no seu próprio pé, pondo-se fora do baralho.

Creio que só uma coisa terão em comum, os meus poetas: a ideia da destruição da linguagem não lhes é afim. Se nos atermos ao que dizia Bataille: «a poesia há-de ser o comentário de sua própria ausência de sentido», nenhum deles abraçaria tal dogma. Contudo, já os imagino a assentir com o que Andrès Sánchez Robayana anotou no seu diário: «A poesia é agora, para mim, um novo estado de consciência. Um estado ilegível. Porém um estado que provém da leitura paródica do ilegível. Por um momento, vejo, leio o ilegível. Não é decifrar um inimigo, mas sim vivê-lo» (La Inminencia/ Diarios, 1980-1995, pág.44). São coisas muito distintas.

De SALVADOR ESPRIU (1913-1985), catalão, um poema, OS JACINTOS: «Sentir sem mais,/ conhecer de cada coisa/ o lhano e simples nome, carícia/ como a de abril sobre as folhas novas/ enquanto a luz de chuva da tarde/ se reclina pouco a pouco entre os jacintos./ Claro momento da flor, reflectida,/ e por vezes recôndita: beleza/ última do seu recorte nos meus olhos./ Depois, pelo ar, ténue/ recordação, o mais além do intenso verde/ da erva que molha esta chuva lenta».

14/03/2017

A minha mulher, Teresa Noronha, editora e escritora, foi convidada para um encontro de literatura infantil, em Lisboa. Aceitou e tendo o passaporte caducado foi renová-lo. A um mês da partida. Pagou a taxa de urgência, para o levantar em cinco dias. Na data indicada pelo recibo deslocou-se à Migração. Nada. Mais uma semana de peregrinações. Nada. Um dia fez finca-pé, queria que a esclarecessem sobre o atraso do seu passaporte. Ao fim de três horas, sentiram-se maçados e resolveram ir verificar.

Tem um problema com o seu processo… Que problema? Tem um «V», uma abreviatura em vez de um nome e na fábrica recusaram fazer o passaporte… E por que não me avisaram logo, para se resolver? Esqueceu…

No dia seguinte, ela levou a cópia da certidão de nascimento requerida. Como se a Migração não tivesse um cadastro identitário dela há cinquenta anos, como se… Entregou a cópia ao “chefe” e reforçou a sua urgência. Explicando, a) que o problema fora dos serviços, a funcionária que recebera os documentos requeridos não assinalou a anomalia; que pagara uma taxa de urgência; que a urgência agora era total pois ia representar Moçambique num encontro dos Palops com data marcada. O “chefe” descansou-a, o seu processo “vai ser muito bem encaminhado!”. E tudo desacelerou.

Talvez porque a senhora foi maçadora. Talvez pelo motivo não-declarado que de outra vez levou uma funcionária a dizer descaradamente a uma filha nossa, Menina, pagaste a taxa de urgência, mas se não me deres mil o teu documento fica pronto daqui a seis meses… Talvez só por incompetência e relaxe… Embora “muito bem encaminhado”, houve descaminho. O V tornou-se “um caso” e o passaporte não saiu. E a minha mulher não compareceu no encontro.

Dá um enorme cansaço insistir em viver num país que todos os dias se afadiga a maltratar os seus melhores elementos, porque a qualidade destes ilumina a mediocridade reinante.

Ah, mas porque não recorreram ao Ministro da Cultura, que vocês conhecem, perguntam amigos. Exactamente porque não podemos colaborar com o estado das coisas, a nenhum preço. Queremos um país onde seja possível a um cidadão comum ser respeitado pela simples inerência dos seus direitos. Mesmo que a honestidade seja o que nos trama, preferimo-la. Seguir-se-á o protesto.

16 Mar 2017

Sei de rios

São Luiz, Lisboa, 12 Março

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue sei eu? Talvez por isso afirme que o fado atingiu agora extrema maturidade, sabor e saber entre figo e pão saído do forno, entre o vigor da técnica e o perfume do espírito. Fica-me isso em fundo de boca neste concerto, singelamente chamado de Camané e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, ainda que devesse incluir algures no título o director musical, Filipe Raposo. Lá está, que sei eu: quem decidiu o alinhamento, a escolha e o encadear dos temas, o avanço e recuo de cada instrumento, os silêncios? Saio esmagado no fim da semana, percebendo que desde a segunda-feira anterior tudo viria a estar contaminado por isto. Começa com o costumeiro atraso na percepção de que Camané está prestes a explodir e convém estar por perto. Salvam-me os bastidores (obrigado, Elsa. Obrigado, Aida). Os versos cantados em lâmina a sublinhar esses momentos revividos. O delírio de melodias despenteadas para lá da bainha descosida do pano negro. Bato com a mão na cabeça para interromper as correspondências entre o que agora oiço e o que vivi ao longo da semana, do ano, que digo?, dos anos. Camané, devias ser estudado pela física quântica, essas tuas maneiras de misturar num instante tempos e espaços. Esqueçamo-nos de mim, assunto implosivo do diário. Quem como ele arrisca experimentar sem perder o pé, voar de contrabaixo sem perder os arreveses da tradição. O verso de David Mourão-Ferreira seria o mesmo sem a energia de José Mário Branco? A paisagem de Jobim e Oliveira escavaria tão funda a sua inutilidade sem Raposo e a tua voz? Outros modos são possíveis, mas estes combinam lua e noite de forma única. Na variedade das canções, que vão do tango ao quase pop, na complexidade dos arranjos, no modo de jogar com os ritmos e as sensibilidades, com os instrumentos puxando o cantar para danças nada óbvias, com invariável certeza de que as palavras são o chão da boca Choro, quieto como convém. Na boca de cena do fado há um negro muito nosso, que precisamos escavar para libertar as selvas de cor que por ali se escondem. Sim, pode haver luxúrias de luz e aventura nas noites domésticas que guardamos nos bolsos. Reparo, não sem tristeza, que colecciono respostas íntimas a inquéritos de imprensa. Relembro esta, pela mão da Manuela Paraíso. «Qual é a característica dos portugueses que mais o irrita? O coitadismo. Somos o povo que mais se lamenta, mas também o que mais embirra com quem faz e que ignora o que fez. Enfim, o espírito de rés-do-chão». Camané, tu resgataste o fado do coitadismo.

Mymosa, Lisboa, 6 Março

Nunca pensei. Devia tatuar mais esta no corpo, tão desafinado que vai com o que pensa. Estou com o Ferreira Fernandes a partir História, que vai sendo maneira nossa de abrir conversa, e logo José transfigura para me contar das ocultas razões que levaram o rio Kwanza a inventar país. Tanto angolano na minha vida e nenhum me havia falado com tal rasgo destas histórias trágicas de amor: um rio daquele tamanho parte para Norte ao encontro do oceano; desenha no encontro uma baía capaz de se erguer capital de reino Ndongo; e daí, por portas travessas, resolvido conflito com o outro reino não menos mítico do Kongo, faz nascer país assente na língua portuguesa que, sofrendo barragens e transvases, não deixa de ser nascente e foz. Kwanda sendo rio, na vez de moeda, faz toda a diferença. E ponto. Um ponto é tudo, assim titulou ele a melhor crónica da imprensa portuguesa, citando poeta que se fez moçambicano, filho do que desenhou mitos à beira Tejo.

Foi o Bruno Vieira Amaral que me perguntou, há uns anos e para a Ler: «Falta alguma coisa no seu BI? Sim, uma identidade». Eis-nos fadistas. O Bruno de Almeida filmou o namoro das esquinas com o mar da Palha, cenário de Sei de um Rio, fecho inolvidável do que ainda não vi: «Rio onde a própria mentira/Tem o sabor da verdade/Sei de um rio».

Mymosa, Lisboa, 11 Março

Almoço longo com o Carlos Querido, em rotineiro e soalheiro costume de camponeses, ele da zona oeste, faroeste, eu da Penha, a mais alta e infértil colina de Lisboa. Ambos mondadores do silêncio, lavramos à mesa uma alegria pesada. «Se canto, não me dói tanto/O coração magoado/Mas há em tudo o que canto/Este silêncio pesado», risca a Manuela de Freitas. À laia de conclusão, passou outra resposta a interrogatório, desta para papel de jornal do Fernando Alvim. «Só escrevi um fado, que João Lucas compôs, mas quando ouvi pela primeira vez o António Zambujo a cantar pedaço da minha delirante infância pensei por momentos que a vida podia fazer sentido, breve é claro. Breve o sentido e a vida, que a poesia só ensina a cair. Fado do Homem Crescido, escrito para o filme de animação homónimo que o Pedro Brito realizou, diz com imagens e sons e palavras que a amizade é impossível, pelo que estamos condenados à solidão. Ora nada mais vale senão a amizade.»

Santa Bárbara, Lisboa, 13 Março, madrugada

A noite faz-se ainda mais noite com Lua cheia desta maneira. Faz-se bruta e provoca-me do outro lado do vidro, eterna companheira, lanterna de todos os versos. «É triste sorte/Que nos faz pensar na morte/E em tudo o que em nós morreu», diz João Ferreira-Rosa. Mas teria forma a vida sem o côncavo do que nos vai morrendo? Última resposta ainda ao Alvim. «Vi a chegada à Lua em directo e logo ali descobri uma vocação, que era magro e não me dava mal com as matemáticas. Um certo professor, contudo, deu-me a conhecer um tal de Fernando Pessoa, jaz morto mas não arrefece. Até já tinha lido poesia, mas nunca tinha lido poesia. Não mais me livrei dela, apesar de ainda ter continuado a achar durante anos que podia ser astronauta. Têm sido os versos a levar-me à lua e a prender-me à terra. A enterrar-me.»

15 Mar 2017

O problema dos clones

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m destes dias jantei com uma amiga, a Inês, e, a páginas tantas, ela confessa-me a sua relutância em ser teletransportada. “O teletransporte, a existir”, assegura-me, “não funcionaria como vemos nos filmes de ficção científica”. “E isso quer dizer o quê?” Pergunto. “Nos filmes de ficção científica”, prossegue, “o teletransporte é equivalente a mover água de um sítio para outro, ou seja, a matéria que estava de um lado é transferida para outro lado através de um meio adequado para o efeito.” De facto, pensei, é também assim que eu concebo o teletransporte, enquanto possibilidade de um futuro por acontecer. “O teletransporte assemelha-se muito mais a uma cópia, na verdade. O sujeito está do lado de cá, passa por uma espécie de scanner que o lê e, do lado de lá, é reconstruído. Mas não é a mesma matéria que passa de um lado para o outro, é como se o resultado do transporte fosse, na verdade, uma versão dois de ti próprio, um clone.”

Um clone. Se nos focarmos no processo leitura e recriação, tal como a Inês mo descreveu e que corresponde, de resto, ao modo como a física quântica o teoriza, é difícil não pensarmos nas implicações que uma tecnologia deste tipo teria ao nível daquilo que postulamos ser a identidade. Mesmo que não seja possível termos – como de resto não o parece ser, pois a leitura quântica é de carácter destrutivo –, num determinado instante, dois sujeitos exactamente iguais coexistindo – mesmo que por fracções de segundo –, ficam algumas dúvidas inquietantes.

Cada teletransporte corresponderia, na verdade, a uma espécie de suicídio. O sujeito – ao contrário do que acontece, por exemplo, num elevador, no qual a pessoa que entra e que sai é a mesma – entraria num compartimento e, no processo, seria destruído para poder ser reconstruído noutro local. De certo modo, isto reconfortava a Inês. Era garantia de não poderem existir, em simultâneo, duas criaturas absolutamente idênticas. Mas a questão da recriação criava outros problemas, nomeadamente a questão das versões.

A Inês não estava de todo confortável com o facto de cada transporte ser uma espécie de progressão aritmética de versões de si própria. Afinal, e mesmo sem a possibilidade de existir outro eu para além de mim, pela natureza específica do processo, o sujeito tinha forçosamente notícia de a sua existência corresponder, na verdade, a uma recriação de um original que já não era ele. Para mim, no entanto, este pensamento não era inquietante. Para existir um clone, insistia, tem de existir um original. Se o original é destruído no processo de cópia, a questão não se põe.

Da nossa discordância acerca da natureza filosófica do teletransporte passámos para outro tipo de considerações. “Imagina”, sugeri-lhe, “que o processo de leitura não era destrutivo. Imagina que te conduziam para dentro de uma sala, completamente às escuras, e que te clonavam. Imagina que o processo era instantâneo e que, quando acendiam as luzes, estavam dezenas de sujeitos exactamente iguais a ti, da roupa às memórias, do corpo à capacidade de se auto-nomearem. Haveria alguma forma de podermos distinguir, com certeza, o original dos clones? Mais importante ainda, haveria alguma forma de o original saber que o era?”. Ficámos o resto da noite nisto. Talvez a quantidade de passos dados dentro da sala pudesse ajudar o sujeito a determinar em que posição estava quando se deu a clonagem. Se, de algum modo e sem se mexer, estivesse numa posição inteiramente diferente da distância que imaginava ter percorrido, saberia com certeza que não era o original. Mas era fácil ultrapassar isso. Se o sujeito fosse de cadeira de rodas, teria uma notícia muito mais difusa da distância percorrida. Ou se a sala fosse antecedida por um corredor extenso que dificultasse a leitura da distância às cegas. O facto, indesmentível, é que todos os sujeitos pensariam ser o original e que todos eles nutririam, mesmo não o verbalizando, a mesma dúvida: e se eu for meramente uma cópia?

Não conseguimos resolver o paradoxo. Nem sei se tem resolução. Mas temos de jantar juntos mais vezes.

14 Mar 2017

A vertigem de nunca estar a ser 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Ver no Escuro, terceiro livro de poesia de Cláudia R. Sampaio, editado em 2016 pela Tinta da China, o título dá-nos de imediato uma pista. Ver no escuro pode querer dizer várias coisas, entre elas a situação literal de alguém que, em casa ou na rua, se esforça por ver o que está diante de si, envolto no escuro. Por outro lado, ver no escuro, e como título de um livro de poesia, pode muito bem querer dizer-nos, indicar-nos que estamos prestes a entrar num espaço, o do livro, onde alguém escreve como se o mundo estivesse fechado num breu e a linguagem o iluminasse.

Por outro lado, e de um modo mais literal, ver no escuro também é o modo como a autora termina o livro: “fazendo-me ver no escuro” Mas eis a última estrofe do livro: “Agora mato-me escrevendo / e aqui ressuscito em rua beijando pés / Eu sou esta verdade / Sou a desorientada concentração / das noites desertas / E ascendo-me, grata, / com a poesia dançando entre a / vida e a morte, magnífica / tapando-me a boca toda, / fazendo-me ver no escuro” (p. 78) Parece claro, este ver no escuro, para a poeta, é o próprio acto da poesia, o acto de escrever poesia. E, contrariamente à poesia de Catarina Santiago Costa e ao seu Tártaro – lido aqui semanas atrás –, Cláudia R. Sampaio não se vira do avesso, nem convoca uma linguagem à revelia da linguagem dos dias, à revelia da linguagem que levamos à rua. Em Ver no Escuro deparamo-nos com a mesma linguagem que levamos à rua a passear, a mesma linguagem com que agradecemos a quem nos acende o cigarro, mas com uma eficácia poética conseguida através de um desequilíbrio sintáctico. Aqui, é o verso que repõe a dimensão metafísica da linguagem e não a palavra. “Tragam-me um homem que me levante com / os olhos / que em mim deposite o fim da tragédia / com a graça de um balão acabado de encher / tragam-me um homem que venha em baldes / solto e líquido para se misturar em mim / (…)” (p. 39) São inúmeros os versos ao longo do livro, onde a distorção da linguagem ilumina partes escuras da existência. Deixemos aqui apenas mais um exemplo, que se prende com o próprio sentido de ver no escuro, que a poeta quer que se veja, independentemente de nos deixar a liberdade de vermos outros, que nos parecem até mais pertinentes: “Passei todo aquele poema a viver.” (p. 63)

Mas Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento. Quando alguém morre, o seu esquecimento dói muito a quem o amou um dia, e continua a amar. Os primeiros tempos de luto, vive-se no paradoxo de lembrar e da dor da lembrança, que nos faz querer esquecer, e este querer esquecer quantas vezes não faz nascer uma culpa inconfessável? Como se não fôssemos dignos, não estivéssemos à altura do amor que nos foi dado. Ou, na tese mais forte e, paradoxalmente, mais calmante para a existência, como se nada pudesse ser feito contra o esquecimento de quem um dia nos amou tanto. “E no fim são todos cinza” (p. 7), canta a poeta no final do primeiro poema. Mas o esquecimento do outro, para nós e para aqueles que compõe o mundo, não é o único esquecimento que dói, a única ausência que faz vibrar a existência, contorcendo-a de uma dor que parece não existir de facto, uma dor que não é uma pedra sobre um rim, uma pedra sobre um braço, uma pedra sobre a fronte. O esquecimento é uma pedra sobre a existência. Uma pedra a dizer para onde vamos, para onde todos caminhamos. Todos os dias se morre: “Os  dias começam com a despedida / de qualquer coisa / nem a água dura para sempre / nem a cova impiedosa deste colchão” (p.40) Todos os dias o mundo caminha para o seu desaparecimento. Tudo está a desaparecer diante dos nossos olhos. Escreve a poeta, este poema à página36:

Morro todos os dias

especialmente depois do lanche

quando pego no regador fininho

onde despejo o dilúvio dos olhos

e vou regando as plantas

à espera de descendência.

A dor que mais parece macerar a existência, neste livro, é o esquecimento de si mesmo. Tudo caminha, não apenas para deixar de ser, mas para o esquecimento de ter sido, que é não o não-ser, mas o buraco negro do ser. Quem consegue deixar um pai morto transformar-se num buraco negro de ser? Uma mãe, uma avó, um irmã ou uma irmã? Quem, como Orfeu, em podendo, em tendo forças, não vai ao mais fundo dos infernos resgatar o esquecimento desses que o amaram? Resgatar do esquecimento quem o amou é resgatar o próprio amor. Aqui, neste livro, a tentativa de resgate é a do próprio. Orfeu desce ao Hades, não para resgatar a sua amada, mas a si mesmo. Somos nós, cada um de nós, que está morto para si mesmo. Cada um de nós, vivos, ou assim o julgamos, arrasta-se pelo Hades em busca de si mesmo – já tínhamos visto aqui, semanas atrás, algo semelhante no Tártaro, de Catarina Santiago Costa. Escreve Cláudia R. Sampaio: “Estou viva. / E penso que para além de mim / não há quem o saiba.” (p. 62) Estes versos, que ecoam Álvaro de Campos, sublinham a dor de esquecimento que nos assalta e que pode ter estas formulações: se ninguém me sabe viva, estarei eu viva? Se ninguém me lembra, lembrar-me-ei eu de mim mesma? “Existo até à memoria / como um peixe às voltas” (p. 65)

Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento

A memória é tudo. Aqui, Deus é a memória de todos. Só Deus se lembra de tudo e de todos. Só Deus transporta em Si o que alguém foi; não apenas o que é, mas o que foi. E é aqui, neste lugar místico, que o sentido da poesia em Cláudia R. Sampaio aparece. O poema é uma imitação falhada de Deus. Imitação, porque toca os interstícios da existência e faz dela memória; falhada, porque nenhum poema nos leva a nós, a um eu que preste, é sempre uma ficção de eu, uma possibilidade de eu. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63)  Ou ainda, como ela mesma canta acerca do amor: “E agora sou uma esponja e encolho / porque ainda estamos a reduzir-nos / em violentíssimo eco / Adeus, eus, eus” (p. 33) E o que diz acerca do amor pode ser dito acerca de cada um de nós e da poesia, como ela mesma escreve neste verso, à página 58: “não adianta escrever se não somos”. Esta redução do humano à impossibilidade de permanência, ver o humano pelo que não pode, atravessa todo o livro. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) O humano é o que não é, a não ser em relâmpagos. Pior: o humano é o que já foi, e não há memória que nos salve. “Sou instante.” Mas não se segura o instante. Ninguém é o que é. O humano é aquele que vai sendo. A poeta, nos seus poemas, vive esta vertigem de nunca estar a ser, de sempre ter sido, e de estar arrastar a morte pelos dias até ao desaparecimento completo, até ao buraco negro do esquecimento. “E tudo é outro nome que não este.” (44), termina assim um dos poemas mais longos deste livro. O esquecimento é, podemo-lo dizer agora, apenas o outro lado de não se estar a ser, mas de sempre termos sido. É a parte angustiante do ter sido, o futuro do ter sido. Mas um futuro que não trará uma memória, não trará um passado. O nosso fim, o fim daquele que é ter sido, é um infinito buraco negro. Esta é a vertigem que percorre este livro de Cláudia R. Sampaio, propositadamente ad nauseam. Terminemos com um poema da autora (pp. 70-1):

Sou instante.

É assim que escrevo, com a alma enfiada nos dedos

ou os dedos enfiados nos olhos

miraculosamente sentada, respirando,

sendo a faca cortada ao meio

sendo a coluna um pouco torta perto de

uma janela quase sempre aberta

como se daí viesse tudo.

Talvez a cabeça enfiada neste corpo seja

um grito que vem de outra boca,

ou de asfaltos, ou de peixes voadores.

Talvez este desencontro inscrito em mapas venha

de pássaros desajustados bicando planetas.

Eu devia ser a água vertida em bebedouros imundos,

tornando-os úteis

devia ser a noite de sexo incendiada, em que o fôlego

fosse altar

devia ser do espaço onde me coubesse eu-só

devia ser trocada por três côdeas

ou por um livro do Cesariny

ou por um pranto

Qualquer coisa que me levasse daqui.

Porque eu descalço-me antes de caminhar sobre mares.

Com estes dois pezinhos aprendizes, assim me

vou até ao fundo

e no meio das convulsões e dos impulsos que

me calçam, deverei existir

Que a minha verdade me seja entregue por quem

me entrar no infinito:

ninguém

Não duvido de que ficarei sozinha

e há tanta beleza nisto que tremo toda

enfiando um dedo na eternidade

Podemos ser abandonados por todos

mas seremos imortais por conta própria.

14 Mar 2017