James Joyce | Metalinguagem, autobiografia e romance de iniciação

Joyce, James, Retrato do Artista Quando Jovem, Difel, Lisboa, 1989
Descritores: Romance, Literatura Irlandesa,  Autobiografia, Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 269 p.:23 cm, ISBN: 972-29-0031-5
Cota: C-10-7-36

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]enso que modestamente fiz a descoberta que se impunha para tratar este tema, ao inclinar a minha propensão para a obra de James Joyce, O Retrato do Artista Quando Jovem.  Até porque por via de um pequeno pormenor que é contudo de uma relevância substantiva. É que o texto converteu-se imediatamente na abertura para uma dupla exposição, por que a personagem central do Retrato vem a ser também uma das personagens centrais da obra maior de Joyce, o Ulisses, ou seja nem mais nem menos que o alter ego do escritor, o incontornável Stephen Dedalus.  Harold Bloom chega mesmo a considerar que é ainda Stephen Dedalus o narrador de alguns contos da colectânea, The Dubliners (em português, Gente de Dublin).

Eu estava em Aix-en-Provence em 1989 e inscrevi-me numa cooperativa de cinema de arte e ensaio, das poucas ainda remanescentes em França depois do grande surto dos anos sessenta e setenta e um dia vi anunciado o filme de John Huston, The Dead, em português, Os Vivos e os Mortos. O filme baseava-se no último conto e seguramente o mais famoso de Dubliners (Gente de Dublin). James Joyce tinha  25 ou 26 anos quando o escreveu, na mesma época em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo em 1916, com o título Um Retrato do Artista Quando Jovem. Os quinze contos de Gente de Dublin foram publicados dois anos antes.

Se Stephen Dedalus, o herói, ainda resultava informe, e o texto ainda frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostravam um Joyce que poderia ficar na história como um dos grandes do género, independentemente da sua reputação futura, Esta reputação e já o disse algures tem sido sobretudo calculada com base na capacidade de ruptura e na ousadia formal. São muitos os grandes escritores que nunca se renderam ao génio narrativo de James Joyce a começar pela sua conterrânea e contemporânea, Virgínia Woolf. Eu, com toda a modéstia também não.

Entretanto ainda em França, segui pela televisão uma entrevista a Margarite Duras numa época em que a sua doença fatal estava já adiantada. Foi provavelmente a sua última aparição em público. Lembro-me bem do sentido global da entrevista que glosava uma das suas obras mais emblemáticas, L’Écriture (Escrever), mas lembro-me sobretudo que a dada altura e a propósito de cinema ela ter confessado no seu estilo radical e truculento que não conseguia ver um filme até ao fim, tal a decrepitude e indigência da Sétima Arte, à qual ela esteve sempre ligada, não o esqueçamos, quer como guionista, quer mesmo como realizadora. Como guionista não posso deixar de referir o Hiroshima meu Amor, realizado por Alain Resnais e o incontornável Moderato Cantabile, com Jean Paul Belmondo e Jeanne Moreau, realizado por Peter Brook. A par disso foram muitas as novelas que escreveu que passaram ao cinema, a mais conhecida terá sido O Amante, realizado por  Jean-Jacques Annaud. Enquanto realizadora contam-se 19 obras entre curtas e longas metragens. Seria também uma injustiça não referir L’Homme Atlantique. Mas o que me trouxe a Marguerite Duras foi o facto de nessa entrevista ela ter referido que tinha aberto uma excepção, tinha ido ao cinema e tinha visto um filme até ao fim, e esse filme tinha sido justamente The Dead de John Huston baseado no conto homónimo de James Joyce da colectânea Dubliners, como já acentuei. Gostei tanto do filme que já o vi inúmeras vezes, que depois deste facto enchi-me de coragem pela segunda ou terceira vez e ataquei primeiro o Retrato do Artista Quando Jovem e mais tarde o Ulisses mas nunca o Finnegans Wake, que é ao que parece simplesmente ilegível.    

Voltemos agora ao Retrato e a Stephen Dedalus.

Stephen Dedalus apresenta uma importância múltipla como chave de acesso à biografia de James Joyce, o facto de ser, como já disse, o alter ego de Joyce, o facto de ser uma das metamorfoses narrativas ou mesmo da narratividade literária do autor, o facto de ser também uma personagem, neste caso, com a responsabilidade de ser o protagonista e finalmente o facto ainda de se assumir muitas vezes como uma espécie de anti-herói mostrando o lado obscuro e quem sabe recalcado do artista. É em qualquer dos casos uma personagem complexíssima e rica, homóloga, no mínimo, do universo complexo e perturbado do próprio James Joyce em todo o seu processo formativo. E por falar em formativo, é o momento de não esconder e muito menos negar que o carácter de bildungsroman de O Retrato do Artista Quando Jovem também me apareceu muito atraente e sugestivo, pois as biografias devem começar pelos balbucios informes e quiçá ainda inconscientes do artista, justamente naquela fase da vida em que o ser estrebucha por se descobrir, por se encontrar com o seu genius ou se preferirmos por achar a sua subjectividade, encontro esse que é muitas vezes fatal e decisivo. É que, deixem-me dizê-lo já com clareza, num romance de iniciação, e este não foge à regra, pode aparecer com toda a nudez não apenas o processo de descoberta existencial mas ainda toda a panóplia de questões que há-de perseguir o artista ao longo da vida: temas, possibilidades retóricas, modulações narrativas, idiossincrasias estilísticas, modos e modelos expressivos, preocupações metafísicas e ideológicas, etc.  Ora, é justamente isso que ocorre em O Retrato do Artista Quando Jovem do então jovem James Joyce. Muitos dos caminhos da sua obra e concomitantemente os caminhos de muitas das correntes do modernismo, ao longo do século XX, possuem aqui o seu momento inaugural. E para nosso gáudio, mas também para nosso desespero, encontram-se aqui em dédalo, isto é embrionários, no seio de um verdadeiro labirinto. Ou pensavam que o erudito e classicista James Joyce teria escolhido para personagem principal do seu primeiro romance a figura de Stephen Dedalus de modo acidental. Dedalus, ou Dédalo, possui uma riqueza multissémica que não foi alheia à escolha e onde eu ainda assim evidencio para além da ideia de labirinto, as ideias de enredo e de complexidade, sendo que ao mesmo tempo Dédalo pode ser capaz de sair das complicações em que se mete pois é também rico em artifícios e capacidades construtivas. Dédalo é um ser complexo e ambivalente como é toda a obra de Joyce.

Segundo Bakhtin (Julian Nazario) o Retrato do Artista Quando Jovem parece consistir, no plano da sua arquitectura estrutural, numa longa citação, embora apenas implícita, de A Divina Comédia, de Dante, quando narra os três momentos da vida do protagonista central, Stephen Dedalus: a sua infância, a sua adolescência e finalmente a sua maturidade, que corresponderiam respectivamente ao Inferno, Purgatório e Paraíso da genial obra de Dante. Esta, por sua vez glosa o cânone clássico da morte, descida ao inferno e ressurreição. Seja ou não assim, a verdade é que a alegoria é possível e é apenas enquanto alegoria que nos interessa. O texto, por essa via, assume a valência de possuir a dimensão de uma metalinguagem, que ao proceder à narrativa de uma história e ao proceder à narrativa de uma autobiografia, pelo facto de que o autobiografado é um artista e um artista experimental inovador e revolucionário, acabar por nos dar o laboratório alquímico da sua prometeica experiência. O próprio Joyce se referiu a isso quando ao referir-se à arte e ao artista colocou na boca de Stephen Dedalus o seguinte:

“A personalidade do artista, no início um pranto, uma cadência, um estado de espírito, e depois uma narrativa fluida e ligeira, refina-se no fim ao ponto de não existir mais, torna-se impessoal, por assim dizer. A imagem estética na forma dramática é a vida purificada através da imaginação humana e, por força desta, re-projectada. O mistério da estética como o da criação material, está consumado. O artista, como o Deus da criação, fica dentro ou detrás, além, ou acima de sua obra, invisível, aperfeiçoado e alheio à existência, indiferente, aparando as unhas” (James Joyce versus Julian Nazario)

Neste sentido o artista, verdadeiro rival dos deuses, demiurgo e criador de um mundo absolutamente novo, criado tal como na criação divina ex-nihilo, daria razão a Bakhtin, no sentido em que na fase final da sua obra teria superado todas as vicissitudes terrenas e infernais para, por pura purga ascendente, se alcandorar finalmente à dimensão do Olimpo, ou seja do paraíso dantesco. A ressurreição e a ascensão ao Olimpo é aquilo que o artista persegue através do sofrimento existencial mas também através do trabalho laborioso do alquimista que no seu laboratório põe em perigo a própria vida para um dia poder lograr o flogisto salvador do génio, avatar glorioso do divino.

Há um texto de Alfredo Margarido, que não cabe citar aqui, mas que, numa brilhante síntese, resume a dimensão experimental e portanto metalinguística da obra de James Joyce no seu todo e onde ele designa por  exílio o que eu designo por reino e Bakhtin por paraíso. Mas, em boa verdade todas estas palavras, no âmbito da criação artística possuem o mesmo significado enquanto arquétipos da busca solitária do caminho que conduz o artista à descoberta e à afirmação da sua voz. Porém, o reino dos artistas possui uma limitação, que é também a sua grandeza humanista, digamos assim, uma vez que  o que se visa através da arte é um mundo que só se torna possível a partir da viagem iniciática da formação do artista. Mas essa viagem e esse caminho começam por ser a demanda de Si, a descoberta  do Eu, e do Genius que o Eu alberga e só essa descoberta pode abrir as portas para a ‘transcendência’ e é por isso que o  Retrato do Artista Quando Jovem é mais do que uma obra autobiográfica. Ela é o relato da trajectória de um homem em busca do pleno conhecimento de si mesmo”, ou seja, da transcendência que o habita.

27 Abr 2017

Desacertos na recta do tempo

Santa Bárbara, 16 Abril

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] silêncio de um editor é sempre ofensa, falta de consideração, desrespeito, desatenção. De Profundis, diz o outro. «Não quero martelo e rima/Aqui no Largo da Graça/Quero ficar onde estou/para saudar a quem passa.»

Horta Seca, Lisboa, 18 Abril

Os dias andam tristes. Talvez nem tanto, apenas embrulhados em circunstâncias miúdas que não permitem abrir os braços e acolher de peito feito a cidade. Eis se não quando uma dúzia de páginas tintadas de azul e vermelho chegam pelo correio e impõem paragens. A história breve de uma solidão faz-se desdobrar por Bárbara R. em grandes planos e geometrismos e desacertos neste pequeno álbum auto-editado. O Sol da Sra. Azul celebra a vizinhança, a atenção ao outro, com simplicidade extrema. Detalhe: fá-lo assente na imperfeição. A impressão riso deste meu exemplar 51 em 90 torna-o único e não me canso de nele descobrir pormenores: de gente, de casas, de percursos. A gentileza de Bárbara deu-me a ver os velhos que ainda cruzam as ruas da cidade dos turistas cegos. Sim, ainda há velhos em Lisboa. Não sei se há sol ou Primavera.

Monumental, Lisboa, 19 Abril

Autismo, do mano Valério, dobra os 1500 exemplares em três anos bem medidos e atira-se em segunda edição. As sobras no armazém parecem desmenti-lo, mas há leitores para romances assim. De choque, dizem alguns. De rasgo, digo eu.

Horta Seca, Lisboa, 20 Abril

Faz 30 anos que Rui Baião, Al Berto e o mesmo Paulo da Costa Domingos, que passa a deixar-me prova de vida da frenesi, agora em edição viúva (!), cozinharam antologia que daria brado: Sião. Escolhas pessoalíssimas, a reinventar-se poema único de fôlego capaz de estabelecer correspondências íntimas de Antero a Fernando Luís Sampaio. «Nenhum detém uma ciência, sequer empírica, dos destinos da Poesia. Nenhum propôs a outrem cânone que não constituísse já a sua coluna vertebral e fado seu, irreversível». Palavras do ímpar editor, noutra ocasião comemorativa, de 1991, e que agora revela, entre outras mais ou menos provocatórias na brochura Sião – Doc. Interno, publicada a pretexto da exposição que comemora, na associação cultural do Porto, Sismógrafo, as tais três décadas da Sião. E que celebrava «o centro urbano, as sociedades nocturnas, pessimistas, decadentistas e que se afastavam da escrita agrária, bucólica do século XIX.» Numa altura em que surgem editoras como cogumelos, mesmos nos dias em que não chove, incautas que julgam que para editar basta imprimir livros, as reflexões suscitadas pelas dezenas de títulos postos a nu no chão ao longo da parede são de extrema importância. Contra o esquecimento, pela afirmação de uma ética. Uma editora faz-se, antes de mais, lugar de resistência pela reflexão, contra a vida, apesar dela, em nome de uma ideia de literatura que nos desarruma, que investe língua adentro, que experimenta, que pensa cada aspecto do não. O logótipo da faz-se «de um cabrito alado em silhueta, e era originalmente a asa de um recipiente persa, em ouro, talvez um jarro». A espiral foi inscrita pelo Paulo Costa Domingos e não deixou ainda de girar sobre si. A palavra vem de verso de Mário de Sá-Carneiro: «Um frenesi hialino arripiou/Pra sempre a minha carne e a minha vida.» A frenesi arrepiou. A frenesi arrepia. Basta subir, página a página, à última cidade do Armagedão.

Casa da Cultura, Setúbal, 21 Abril

E 30 anos passaram desde a morte do Zeca. Quantas décadas contém cada canção sua? As granadas de mão estão cheias de referências, supostas impurezas, nomes concretos, de lugares exactos, insultos dirigidos, asneiras de criar bicho, múltiplos sinais do seu tempo, que só tolos acharão passados pois são afinal palmos de terra sobre os quais se erguem cabanas, lares, fortalezas. Sopram nelas ventos que confluem em espiral, forças de assombrar futuros. Olha ele a cantar-me ao ouvido: «a fadiga é um dom da natureza/ Chiça!/ Com as minhas tamanquinhas/Com as minhas/ Com as minhas tamanquinhas/ P’ra quem não faz fortuna/ Mata as penas e faz covinhas». Desconfio, não tenho certezas, aprendi com ele a world music ou que o surrealismo era redondo vocábulo e isto de viver uma soma agreste. Utilidades, portanto. «Era um redondo vocábulo /uma soma agreste/revelavam-se ondas/em maninhos dedos/polpas seus cabelos/resíduos de lar». Onde andam os vinis da minha infância a querer-se outra coisa?

Mas Quem Vencer Esta Meta Que Diga Se a Linha é Recta comemora estes anos todos, os dele feitos meus. O mano José Teófilo [Duarte], que fez dele boa causa, comemorou o design na obra do José Afonso a partir da arte de José Santa-Bárbara, José Brandão, João de Azevedo, Alberto Lopes, produtores das imagens que me forram a memória. Venham mais cinco será o meu preferido? Ou antes Com as minhas tamanquinhas? Onde rodam os discos da minha infância pouco farta, mas rica? Conheci há pouco um velho amigo, o João Azevedo, que traz perfumes das quatro partidas do mundo, sendo nele mais intenso o de Moçambique, que por um triz não visito agora. As linhas não são todas rectas. O João vem de celebrar 50 anos de pinturas, em boa companhia de mais três nados na Figueira da Foz de costas para terra. Folheio o testemunho impresso, passeio pelas cores, pelos rostos. Invisto tempo nos Ícaros, divertem-me os crocodilos, céu apesar de quedas, horizontes que mordem. Pinta agora barcos apinhados de gente, refugiados. Parecem farpas as suas cores. Mas há sempre rostos, quase gritos. «A formiga no carreiro/andava à roda da vida/caiu em cima/de uma espinhela caída.» Mudemos de rumo.

26 Abr 2017

Protejam a moral chinesa tradicional 中国高校现反同性恋横幅

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a semana passada, duas estudantes da província de Hubei provocaram uma onda de protestos no campus universitário, e também online, no seguimento de se ter tornado viral nos media chineses uma foto de ambas a segurarem uma faixa com conteúdos homofóbicos. A faixa dizia: “Protejam a moral chinesa tradicional. Defendam os valores centrais do socialismo. Resistam à corrosão provocada pelo decadente pensamento ocidental. Mantenham a homossexualidade fora do campus.”

A foto foi tirada junto às linhas laterais de um campo de basquetebol, durante um torneio que se realizou na Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, em Wuhan (HUST- sigla em inglês). O treinador da equipa feminina de basquetebol, que tirou a fotografia, postou: “Este é desejo do público que eu trago sempre no coração.” Uma das mulheres fotografadas escreveu: “O basquetebol feminino era um desastre em termos de homossexualidade. Mas depois das reformas e de uma educação positiva, restam muito poucas lésbicas nas nossas equipas.”

A HUST, situada na China central, é conhecida por ter uma atitude relativamente acolhedora em relação aos homossexuais. Os estudantes exibem bandeiras com o arco-íris nas cerimónias de graduação e a escola promove eventos em que estão representados autores e artistas homossexuais. Até 1997 a China considerava a homossexualidade um crime. Mas nos últimos anos o país foi ficando gradualmente mais tolerante em relação a estas questões. Este incidente desencadeou uma discussão alargada sobre a discriminação nas escolas chinesas contra estudantes homossexuais, bissexuais e transgénero.

Mas qual é exactamente a “moral chinesa tradicional” que as jogadoras de basquetebol querem proteger?

Companheira perfumada《怜香伴》é uma peça de Li Yu, escrita em 1651.

A peça conta a história de Cui Jianyun, mulher de Fan Jiefu, um homem erudito. Madame Cui tinha ido ao templo queimar incenso para os deuses, logo a seguir ao seu regresso da lua de mel. No templo conheceu Cao Yuhua, filha de Lord Cao, dois anos mais nova do que ela. Cui sentiu-se imediatamente atraída pelo invulgar perfume de Cao. Cao sentiu-se atraída pelo talento poético de Cui. Apaixonaram-se e juraram que na próxima vida seriam marido e mulher. De forma a poderem viver juntas, Cui persuadiu o marido a enviar uma casamenteira a casa de Lord Cao, para, em seu nome, pedir a filha em casamento como segunda mulher. Lord Cao ficou enraivecido com a ideia de a filha se vir a tornar uma mera concubina. Expulsou a casamenteira e partiu imediatamente para a capital com Cao. Depois de inúmeras voltas e reviravoltas, Cui Jianyun e Cao Yuhua conseguem finalmente reunir-se. No final, o rei dá permissão a Mestre Fan de tomar as duas por legítimas esposas.

Li Yu (李渔1610–1680 DC), também conhecido por Li Liweng, foi dramaturgo, romancista e editor. É o presumível autor de Tapete da Oração Carnal (肉蒲團), uma comédia bem arquitectada e um clássico da literatura erótica.  Nos seus contos abordou o tema do amor entre pessoas do mesmo sexo. Li Yu foi muito lido e apreciado pela ousadia com que tratava este tema inovador.

As estradas da vida são muitas vezes distorcidas ou desmanteladas por pessoas que querem decidir que caminhos elas devem trilhar. Lamentável.

26 Abr 2017

Apresentação de Autismo (2ª Edição)

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ou começar a apresentação deste livro por um filme recente, de Tom Ford, Animais Nocturnos. Numa cena do filme, em que o casal ainda está junto, a mulher diz ao homem, acerca da sua escrita: “tu estás sempre a escrever sobre ti” e di-lo de modo depreciativo, mostrando-lhe que isso é entediante, com pouco interesse. Ao que ele contrapõe, deste modo: “todos os escritores só escrevem sobre si mesmos.” Anos mais tarde, muito depois dela ter terminado a relação com ele, o homem faz-lhe chegar um livro onde descreve o modo como ele viu a separação deles, mas pondo a cena num lugar e numa circunstância completamente distinta. Aquilo que o homem finalmente entendeu, e por isso escreveu aquele livro que agora tocou tanto a sua ex-mulher, é que um escritor não escreve o que lhe acontece; um escritor escreve com o que lhe acontece, o que faz toda a diferença. Esta introdução para dizer que Autismo de Valério Romão é as duas coisas. Ele escreve com o que lhe aconteceu, sem dúvida, mas também escreve o que lhe aconteceu. E é nesta dobra que o incómodo da leitura se instala. Ele é o livro que não é. Dito de outro modo: o livro é ele amplificado. Antes de mais, amplificado pela arte – e toda a arte é mais do que o indivíduo, é uma amplificação deste –, e também amplificado pelo que não aconteceu fora dele, mas dentro dele. Amplificado, não pelos factos, mas pela vida, isto é, amplificado pelo que sentiu e ninguém viu, pelo que pensou e não disse, pelo que imaginou e nunca manchou a realidade e ainda pelo que apareceu no mundo apenas literariamente. Por isso, podemos dizer que ele é o livro que não é.

A pergunta acerca da veracidade da narrativa é secundária. O que é que é verdade e o que é que é mentira, não tem qualquer importância para apreciação de uma obra literária ou para a fruição de um romance. Pois, onde há verdade, os factos recolhem-se com vergonha. Entenda-se verdade, aqui, não como qualquer ultimato religioso ou científico, mas como profundo, humano, entenda-se verdade como aquilo que é património de todos aqueles que carregam as suas próprias vidas ao longo dos dias. Por isso, neste livro, Autismo, o narrador sou eu. O narrador é cada um dos seus leitores. Evidentemente, isto acontece com quase todos os livros em que as narrativas são na primeira pessoa, como é o caso, mas principalmente acontece porque o tom do livro é trágico. E a tragédia, sabemo-lo bem, é a verdade, isto é, é o que é de todos. No fim do dia podemos não ter uma cama onde nos deitar, mas temos tragédia. Podemos não ter o que comer, mas temos tragédia. Podemos até ter tudo, pois a tragédia arranja sempre modo de aparecer: ou por um filho que se mata, ou que morre precisamente ao volante do bólide que lhe oferecemos, ou o próprio escuta a notícia de que tem uma doença incurável, e não consegue trocar o tudo que tem por dias de vida. Isto é a tragédia. Os negros do Mississípi do século passado diziam: this is the blues.

Voltando ao livro que aqui nos reúne, acompanhamos as desventuras do narrador, através da descoberta do autismo do filho, do fim do casamento e da ruptura com o pai. Caímos do narrador abaixo até ao medo de aquilo sermos nós ou de ser algo que nos possa acontecer, ou eventualmente que já nos aconteceu e só agora nos damos conta, que é o modo de ficar a saber mais traiçoeiro que existe. E isto, que acontece ao longo das páginas de Autismo, é a passada larga da tragédia grega. Não é uma tragédia, porque não há herói, mas o tema é sem dúvida o da queda. O tema é sem dúvida este: estamos vivos, logo isto vai correr mal. Pois se não fosse para correr mal não se escrevia, como os gregos antes de nós também já sabiam.

Há escritores que têm a capacidade de nos mostrar exteriores de um modo interior. Quando Valério Romão descreve a sala de espera num hospital ou um consultório médico, estes não ficam apenas palpáveis, concretos diante de nós, eles passam a ser partes de nós, recordações nossas. Hoje, posso dizê-lo já com dias de prova, quando recordo o meu tempo de espera nesses espaços, recordo-me das descrições do Valério no Autismo. Um grande escritor diz-se de muitas maneiras, mas a mais cruel de todas é esta: fazer das suas memórias trágicas as de todos nós. Nesses espaços, consultórios, salas de espera nos hospitais, a angústia, o sem sentido da vida, a miséria de estar ali cresce como os embondeiros nas florestas tropicais, rasgando o céu. A nossa vida, de algum modo, pelo menos a partir dos trinta anos, é uma espécie de sala de espera de um hospital. E o Valério Romão não só viu isso muito bem, como no-lo disse exemplarmente. Leia-se um excerto do capítulo “Urgências”:

“Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago, mas a rapariga dizia que dali lhe era impossível, tinha de lá ir ao local, perguntar, em suma, fazer pela vida, e Rogério saiu, despedindo-se com pressa, virandose apenas para apontar para uma direcção e perguntar se era por ali o caminho, se ia bem, porque a direita variava consoante se estava de costas ou de frente e ele não queria ir parar à radiologia, do lado oposto do complexo de edifícios, só por ter desprezado perguntar pelo norte a quem soubesse dele.

Rogério entrava por um complexo de veredas onde floresciam ocasionalmente umas placas com direcções e encaminhavase para as urgências. Passados alguns carreiros quase a correr, Rogério deu com um edifício corderosa, a modos que pequeno, e à entrada do edifício estava um segurança, fardado, a ocuparse, pelos vistos, da regulação do rádio. Rogério dirigiuselhe,

Olhe, desculpe, estou à procura das urgências, disseramme que era um edifí́cio assim como este, para não confundir com as urgências gerais, pode dizerme se é aqui, e onde posso conseguir informações, é que tenho o meu filho nas urgências, internado, sabe, um acidente.

O segurança, a manusear o rádio para vazar o vagar das mãos,

Sim, de facto é aqui as urgências, mas não lhe sei dizer se o seu filho está aqui, mas se conseguiu essa informação no balcão geral é porque deve estar. O melhor é esperar que entre ou saia alguém; aqui não há recepção, há uma campainha ali dentro,

e apontava para o interior do hall de entrada das urgências, uma espécie de corredor largo ladeado por cadeiras e horas de espera, onde as pessoas se deixavam afundar sob o peso da preocupação.

Pode experimentar tocar e talvez venha alguém abrir a porta e falar consigo, nem sempre acontece, eles são muito ocupados, sabe, estão sempre a entrar pessoas em situações muito urgentes, pelo que é preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.”

Toda esta longa passagem é memorável, mas acho esta pequena parte muito querida: “Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago (…)”. Como se na vida pudéssemos pedir mais elementos e como se ela não fosse vaga (um bocado é o lado humorístico do autor). E esta é a nossa tragédia, a de estarmos à espera. Estamos à espera de nós, e nós nunca chegamos. Estamos à espera dos que amamos e eles escapam-nos por entre a vida. Estamos à espera de notícias e elas são vagas. Estamos à espera. E, como se sabe, isto só pode dar merda. Pois sabemos bem que não se faz nada de bom quando somos obrigados a ficar à espera. Escreve Valério Romão: “É preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.” E eu digo-vos: é isto é a vida, quero dizer, o Autismo.

25 Abr 2017

Do obscurantismo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] recente surto de sarampo em Portugal fez com que a vacinação voltasse a ser discutida, sobretudo nas redes sociais. A vacinação é responsável pela erradicação, por exemplo, da varíola, que só no século XX matou cerca de quinhentos milhões de pessoas. Se somarmos à varíola as restantes doenças que as vacinas contribuíram para erradicar ou diminuir substancialmente, torna-se claro que as vacinas, a par dos antibióticos, foram responsáveis, de forma decisiva, para o maior aumento de população e longevidade de que há memória.

Ainda assim, e a despeito das evidências científicas e empíricas, ainda há quem não vacine os seus filhos. No princípio do século XXI, e surgindo sobretudo como hipótese explicativa para a incidência alarmante de autismo em crianças, surgiu uma corrente anti-vacinação relacionada com um preservante à base de mercúrio presente em algumas vacinas compostas, sobretudo nos Estados Unidos. O estudo que fundamentava essa recusa, de 1998, foi refutado em 2011, por apresentar evidências de manipulação de dados, e a licença do médico que conduziu esse estudo, um britânico chamado Andrew Wakefield, foi revogada. Entretanto, e mesmo depois de retirado o timerosal da composição das vacinas nos Estados Unidos, em 2002, os casos de autismo não pararam de aumentar. Ainda assim, seja pela crença de que a indústria farmacêutica – que em abono da verdade, faz por merecer a desconfiança do público – foi de alguma forma responsável pelo silenciamento do Dr. Wakefield ou pela convicção de que as vacinas são responsáveis por mais danos que benefícios, há quem continue a não vacinar as crianças que tem à sua guarda.

Na verdade, as correntes anti-vacinação são apenas um sintoma de uma corrente muito mais vasta e de certo modo transversal a todas as áreas do saber e que se caracteriza por uma profunda desconfiança relativamente aos produtos da ciência. Lembro-me de quando íamos todos morrer de cancro porque aquecíamos uma lasanha no micro-ondas, de como os telemóveis nos iam transformar num ápice numa sociedade de dementes precoces que fariam parecer os filmes de zumbis pós-apocalípticos uma matiné da Disney. Lembro-me também, por outra parte, de como o ginseng, a aloé vera, a geleia real de abelha e, mais recentemente, as bagas de goji nos iam prolongar a vida, debelar qualquer maleita e, sobretudo, livrar-nos da obnóxia dependência dos produtos da indústria farmacêutica. Guess what. Never Happened.

A gigantesca indústria das crenças alternativas labora na desconfiança que o sujeito tem relativamente à sociedade em que se insere. E nenhum de nós, por mais infra-paranóico que seja, é imune à suspeição de que as pessoas que dão a cara no exercício do poder não são realmente aquelas que mandam. Essa incerteza, muitas vezes justificada pela revelação jornalística dos interesses muito pouco transparentes que movem os políticos e pelas desocultação das relações que estes mantêm com uma espécie de governo paralelo, constituído por homens com dinheiro e poder, é a base da suspeição que os cidadãos têm vis-à-vis a sociedade em que vivem. E, crescendo de forma incontrolável, essa desconfiança alastra para tudo quanto o governo – o oficial e aquele “que efectivamente manda” – legisla, determina e regula. E embora as teorias da conspiração possam abarcar, de facto, qualquer evidência científica, transformando-as em véus destinados a nos cegar perante a verdadeira intenção daqueles que a produzem, as áreas da saúde, regra geral, são as mais propensas a sofrer este efeito de desinformação. E percebe-se porquê. Se os donos-disto-tudo pretendem instaurar uma “nova ordem mundial”, como advoga a maior parte dos teóricos da conspiração, dizimando grande parte da população ou escravizando-a de alguma forma, o meio mais adequado para o conseguir seria manipular as soluções que temos ao nosso dispor para salvar vidas no sentido exactamente inverso. Daí as teorias dos chemtrails, das vacinas incapacitantes, dos muitos e demasiado diversos planos para nos destruir ou amputar mentalmente para serem enumerados fora do âmbito de uma tese de doutoramento.

A verdade é que a haver uma ordem oculta, esta não precisa de gastar um tostão em implementar de forma encoberta uma maquinaria sofisticada capaz de administrar-nos químicos cuja finalidade é tornar-nos estúpidos. A forma como nos comportamos, a maior parte das vezes tão rudimentarmente emocional como acrítica, perante a informação que temos ao nosso dispor, é mais que suficiente.

24 Abr 2017

Os ramos da palmeira

O meu amado é alvo e rosado, distingue-se entre dez mil….são cachos de palmeira os seus cabelos …. «Cântico dos Cânticos» Procurar o Amado-ela- capítulo cinco versículo dez.

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]gora estamos na Páscoa que nos parece a época mais palmilhante de todas e aquela onde tudo se move, movimento de passagem – pessach- desta época tão repleta de aspectos provisórios que pela marcha se anuncia através da magnífica metáfora da entrada e da saída como forma móvel e precária da condição da vida. Desde a festa se Sucot à entrada de Jesus em Jerusalém, fixa, só a ideia de árvore, que nos vem dos ramos da palmeira, ela que nos lembram sempre os oásis, as deleitosas sombras por onde passam os sonhos e os dosséis feitos com a sua madeira onde se deleitam os amantes, e deve ser ela, e não outra, a verdadeira Árvore do Paraíso se tal houver. Mas é claro que esta natureza móvel é apanágio dos desertos, e a altura, a mais veemente miragem das suas naturezas. A visão que temos dela fora destes espaços, não rara, é triste- as decorativas- o seu uso ornamental não resulta em nada a não ser na visão de uma árvore bela, mas bela, só em outros contextos, no seu primitivo local, falta-lhes aquele “ramo” que um inominado insiste em sussurrar pelos desertos aos ouvidos do silêncio… que uma palmeira não é uma sarça, nem em cima dela aparecem coisas que dão nome a fenómenos tais que nos perguntamos: porquê ali? Azinheiras e outras mais… Quem são as criaturas que “aterram” em cima delas? O mundo, um conto vegetal que tem no topo o “brinde” que pode muito bem ser o inexplicável. As árvores são seres prodigiosos e hoje não passo por nenhuma sem o súbito apelo de as abraçar.

A ideia ascensional é uma vertente da palmeira, uma espécie de guindaste celeste por onde os sonhos das Páscoas se cumprem sem que nenhuma fique sem seus Ramos aos Sábados e Domingos, é um olhar da verticalidade esse culto transcendente onde na fundura geográfica do Oriente Médio inscreve um código perene, e, se se entra com eles nas cidades, fora delas fazem-se então as cabanas, que a frescura dos ramos ajuda a duras travessias e na Dança do Amor dos mesmos Cânticos, capítulo sete, versículo nove, aí está agora na voz dele:( …) Esse teu porte é semelhante à palmeira os teus seios são seus cachos- pensei- «Vou subir à palmeira, vou colher dos seus frutos» a alegoria final de uma fome que se redime em altura pela subida não deixa de nos impressionar pela vontade de ir sempre mais para além, e que belo se torna se a conquista se der trepando de forma a que uma queda não nos prostre definitivamente num solo duro sem vontade de continuar …. um lugar para cair, é um vasto território para continuar a subir.   Aqui o Amor é como trepar à palmeira e sabemos que nem sempre de uma só vez tal movimento é bem conseguido. Em redor dela parece que tudo o que é amor se cumpre e não será estranho que toda esta época que agora é o mês onde começa a mágoa, comece a nascer a mais terna das vantagens da nossa antiga natureza vegetal, uma certa frescura que só as sombras dão. Possível nada disto ter a mínima importância num mundo repleto de urgências tais que cada frase é ordem e cada pensamento um registo imperdível de conhecimento automático, mas, ainda não se sabe da forma de desenrolar os ciclos naturais neste lado do mundo que ditou tais emblemas oníricos, estes sim, tão grandes, que nos passaram por cima, em incompreendida forma de tédio perante o esqueleto de um mundo agora todo igual, todo banal, todo floral, todo…

Deborah, a profetiza, era debaixo de uma palmeira que falava e julgava, mostrando ao mundo que as suas folhas viradas para o céu eram todo um povo( porém, com raízes tais, pois que de todas as árvores são elas que as possuem com maior força, sendo por isso extremamente difícil a sua extracção) numa quase imponente ideia da vitória: sempre de pé, mesmo que passem tornados, ventos, intempéries bíblicas…e os Salmos avançam: o justo crescerá como a palmeira… 92: 12-15. Talvez seja tudo verdade e a verdade nasça sem precisar de grandes apanágios e nós que somos findos das remotas fontes por onde alongámos pensamentos e cumprimos vitórias, não estejamos agora presos a tais Ramos, e como plantas trepadoras nem chão agora tenhamos para morrer. Vamos para fora… vimos de fora… estamos fora disto tudo. Mas também o Berlusconi é vegan e ninguém achou estranho que andasse com cordeiros pascais na luta contra todos os carnívoros, são eles, por mais que nos custe, os novos Profetas, as nossas Páscoas, os nossos ídolos-que nós não vimos outros- certamente, e temo que possam sobrepor-se ao que um ramo de palmeira deu por milénios.

Saturados de igualdade, num mundo sem iguais, nós fomos fazendo tudo igual de modo a não termos que nos incomodar com as desigualdades crescentes que eram comportamentos desviantes… de viandantes…. e para que se saiba, mais vale o Berlusconi com um borrego pascal que um camelo a entrar por uma agulha num qualquer oásis onde sacra e fascinantemente, festejam outros, talvez, penosas salvações.

Mas, quando há Cânticos e as Ovelhas são comparadas a uma bela tiara de dentes, tragar é consubstanciar tais coisas, que de tão espantosas e simples a todos parecem confundir. E há palmeiras que se comem, e elas, crescem depois pelas nossas veias ficando nós uma seiva de sangue para as novas plantações. Dos seus ramos, os Domingos, das suas raízes estas lembranças, que as Ceias são bonitas, que o vinho é bom, e a Liberdade, um sonho sempre renovado.

24 Abr 2017

O liberal Pedro Alexandrino da Cunha e a sua época

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]edro Alexandrino da Cunha sucedeu como Governador de Macau ao Conselheiro e Capitão-de-Mar-e-Guerra João Maria Ferreira do Amaral, após este seu amigo ter sido assassinado a 22 de Agosto de 1849, por sete chineses junto à povoação de Mong Há. Um Conselho do Governo, composto pelo Bispo Jerónimo da Mata, o Juiz Joaquim de Morais Carneiro, Ludgero de Faria Neves, Miguel Pereira Simões, José Bernardo Goularte e o Procurador Manuel Pereira, tomou conta da Administração da Colónia até que, por decreto de 22 de Outubro de 1849, o Capitão Feliciano António Marques Pereira foi nomeado para o Governo interino de Macau. Seria exonerado a 5 de Novembro de 1849, quando por decreto foi nomeado o novo Governador, Pedro Alexandrino da Cunha, que na altura andava pelo Brasil numa missão comercial. Tomou ele posse em Macau a 30 de Maio de 1850, mas logo veio a falecer por doença trinta e sete dias depois. No dia seguinte, 7 de Julho de 1850 foi nomeado um Conselho de Governo, constituído pelo Bispo D. Jerónimo José da Mata (presidente), o novo juiz de Direito Sequeira Pinto, o Presidente do Senado José Bernardo Goularte, o Procurador Lourenço Marques, o Comandante da corveta D. João I Isidoro de Guimarães, o Tenente-coronel António Tavares de Almeida e como Secretário António José de Miranda. Este Conselho esteve à frente da Administração da cidade até 26 de Janeiro de 1851, quando desembarcou em Macau o novo Governador, o Conselheiro Capitão-de-Mar-e-Guerra, Francisco António Gonçalves Cardoso, nomeado, por decreto de 17 de Outubro de 1850. Veio de Hong Kong a bordo da corveta D. João I, a mesma que anteriormente transportara Pedro Alexandrino da Cunha e apesar de esta ter fundeado na Rada na sexta-feira, dia 24, só dois dias depois este desembarcou em Macau no cais do Governador. Francisco Gonçalves Cardoso também apenas exerceu as suas funções por um curto espaço de tempo, entre Fevereiro e Novembro de 1851, a que se lhe seguiu em 19 de Novembro desse mesmo ano Isidoro Francisco Guimarães, Governador de Macau até 1863.

Brilhante estudante

Pedro Alexandrino da Cunha, nascido a 31 de Outubro de 1801 na freguesia de Santos-o-Velho, Lisboa, era “filho único de D. Rita Tiburcia da Costa e do Primeiro Tenente da Armada, Jacinto Peres da Cunha, que em 1801 falecera em Argel das feridas mortais que recebera dos mouros, na ocasião em que por eles foi tomada a Fragata Cisne, onde se achava embarcado. Em Outubro do referido ano”, poucos meses depois da morte de seu pai, nasceu Pedro Alexandrino. Com 14 anos entrou no Colégio da Luz (Colégio Militar), onde foi um distinto aluno, “sobrepujando a todos os seus condiscípulos e camaradas, pelo transcendente talento de que a natureza o dotara para tal ordem de matérias”, como ficou referido no Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor de 1851, nessa altura redigido por Carlos José Caldeira e de onde retiramos muitas das informações aqui transcritas sobre a vida de Pedro Alexandrino da Cunha. Após completar o curso de estudos em 1819, logo iniciou a carreira militar e assentou praça na antiga Brigada Real da Marinha, onde por Portaria de 22 de Março de 1821 passou a Alferes integrado nos quadros do Estado-Maior do Exército, ficando a trabalhar no Arquivo Militar.

Em 1820 ocorrera em Portugal a Revolução Liberal e o Rei D. João VI encontrava-se no Brasil, para onde fugira em Novembro de 1807, na altura ainda como regente de D. Maria I, quando as tropas napoleónicas e espanholas comandadas por Junot se encontravam às portas de Lisboa. Durante treze anos ficou no Brasil, refugiado com a família real e toda a corte portuguesa, fazendo do Rio de Janeiro a capital de Portugal e de onde tratava os assuntos do império. Contra os invasores exércitos de Napoleão Bonaparte, em Agosto de 1808 a Inglaterra enviara um corpo expedicionário em auxílio a Portugal, a quem também fez um grande empréstimo de dinheiro e por Carta Régia foi o comércio nos portos brasileiros aberto aos países amigos.

“Napoleão obrigara à mudança da corte portuguesa para o Brasil, transferindo-se, assim, a sede da monarquia portuguesa em 1808 e transformando-se nos anos subsequentes a antiga colónia em metrópole. Tal atitude veio a ser referendada com a sua elevação a reino em 1815 (o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves), medida curiosamente sugerida a D. João (VI) por um dos seus avisados conselheiros, Silvestre Pinheiro Ferreira, em parecer de Abril de 1814, e também sugerida a Palmela por Talleyrand em Viena.

O antigo pacto colonial entre Portugal e Brasil fora também alterado com a abertura dos portos brasileiros e com os tratados celebrados com a Inglaterra em 1810, o que permitiu um crescimento económico diferente para o Brasil, ao contrário de Portugal. Era um mal-estar económico-social que invertia os termos da balança do Poder. Por outro lado, a partir de 1808 amplia-se uma situação de miséria económica em Portugal, com as fábricas em declínio, a agricultura em decadência, o que provocava nos anos entre 1808 e 1820 um colapso nas rendas públicas, que arrastava consigo a miséria, o desemprego e os atrasos nos pagamentos ao funcionalismo e aos militares. A esta situação acrescia o imobilismo governativo de uma regência deixada em Lisboa: os governadores do reino procuravam gerir uma nação empobrecida, desmoralizada e em situação de domínio militar sob a tutela britânica, depois de ter estado sob a tutela proteccionista francesa”, segundo Isabel Nobre Vargues, que refere “O pronunciamento militar de 24 de Agosto de 1820 deu origem a um dinâmico movimento de mudança na sociedade portuguesa, que pôs em causa as estruturas de um Estado de Antigo Regime e que é consagradamente conhecido sob o nome de Revolução ou Regeneração de 1820”. (…) “Com a instalação do primeiro parlamento liberal em Portugal – as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa -, a 26 de Janeiro de 1821, estava firmado o primeiro objectivo do movimento revolucionário de 1820”.

D. João VI, ainda no Brasil em Fevereiro de 1821, foi obrigado a jurar a sua adesão ao movimento liberal e como em Portugal Continental, o governo vintista chamava “a atenção para a influência que exerceria na nação portuguesa a presença de uma personagem real”, então o Rei por fim decidiu regressar, entrando em Lisboa a 4 de Julho de 1821. Três dias antes da sua partida, em 22 de Abril de 1821 nomeou como regente para governar o Brasil o filho D. Pedro. Com o regresso do Rei e de toda a Corte, perdeu o Rio de Janeiro toda a animação e o estatuto de capital do Reino, assim como voltava de novo o Brasil a ser apenas numa simples colónia. Segundo o que previa Silvestre Pinheiro Ferreira, <a partida do rei implicava a separação do Brasil>. Então, D. Pedro, filho sucessor do Rei e o único da família real que aí ficara, abraçando a causa liberal proclamou a Independência do Brasil em 7 de Setembro de 1822 e a 12 de Outubro desse ano foi aclamado D. Pedro I, Imperador do Brasil. No entanto, Portugal apenas reconheceu a independência do Brasil a 15 de Novembro de 1825, só para que fosse possível aos mercadores portugueses de novo aí permanecerem.

21 Abr 2017

Karadeniz: “Comigo o ódio acabava”

Introdução

Este livro aparece no seguimento das inúmeras conversas que fui tendo com o Karadeniz (que quer dizer Mar Negro, em turco), ao longo dos dois últimos anos que vivi em Istambul e de algumas vezes que fomos juntos para o Mediterrâneo. Karedeniz foi o seu nome profissional e não é o seu nome de cidadão, que aqui não é revelado, pois também não é esse que interessa a este livro, mas sim o mito que ele representou para as organizações, instituições e governos nas décadas de 50 e 60 do século passado. Conheci o Karadeniz em Istambul, na Avenida de Gumussuyu, junto ao consulado alemão, no Outono de 2001, umas semanas depois dos atentados às torres gémeas de Nova Iorque. Ele vinha a sair do prédio do barbeiro, em Gumussuyu, e eu ia a entrar, no preciso momento em que se dá o rebentamento de uma bomba junto ao consulado. O meu instinto foi derrubá-lo e protegê-lo. Felizmente a bomba não fez vítimas, exceptuando a rapariga que a transportava. Há já muito tempo que não havia atentados em Istambul, mas o 11 de Setembro parecia trazer de novo o terror à cidade. Embora não lhe tenha salvo a vida, depois de se levantar, e no meio dos gritos e da confusão generalizada, Karadeniz agradeceu-me com intensidade esse meu gesto reflexivo, convidando-me a ir a sua casa para tomar uma bebida. A sua idade e o seu reconhecimento impediram-me de rejeitar o seu convite. Haveria de ser o grande encontro da minha vida. Acabámos por conviver quase diariamente até ao dia da sua morte.

 1. O trabalho 

Nos dias que correm, em que o terrorismo se tem tornado uma instituição mundial, como é que vê a profissão que teve?

Detesto terroristas! Não têm respeito nenhum pela vida humana. Eu não fui um terrorista, fui um assassino profissional. A diferença é total!…

Como assim? Em que consiste essa diferença?

Eu matava apenas quem estava a mais neste mundo, a mais para um outro ser humano específico, ou uma organização específica. Era uma espécie de intermediário entre a origem do ódio e o fim dele. Comigo o ódio acabava. No fundo, fui um exterminador de ódio! (risos) Nunca matei inocentes! Nunca matei quem não devia matar.

Mas quem é que decide que alguém está a mais no mundo?

Quem tem dinheiro para pagar e coragem para viver com as consequências da decisão que tomou. Pode ser um governo, uma empresa, uma organização ou um indivíduo. Por outro lado, não há aqui qualquer desigualdade ou injustiça no uso desse dinheiro para matar, porque quem paga para que se mate alguém, não paga para que se mate alguém sem poder, mas alguém com poder igual ou superior, qualquer que ele seja.

Talvez não seja sempre assim tão linear! De qualquer modo, como é que o Karadeniz conseguia viver com essa sua actividade? Ou seja, como é que justificava, para si mesmo, viver de matar pessoas?

Pela própria natureza do ser humano: ele não é insubstituível! Depois, a partir de um certo momento, já não se procuram razões para aquilo que se faz. Faz-se e pronto! Tentamos aperfeiçoar-nos, tornar-nos cada vez melhor.

Pensa mesmo que o ser humano é substituível?

Claro que sim! Tudo e todos são substituíveis.

Acredita mesmo que um filho pode ser substituído por outro filho ou por outra criança? Ou que um pai pode ser substituído por um outro homem, nos sentimentos de um filho?

Vamos lá a ver: uma coisa é a pessoa, outra coisa muito diferente é aquilo que ela representa para uma outra pessoa. Se tu morreres, não vais ser substituído (a não ser talvez, num tempo futuro, se fores clonado), mas aquilo que representas para o teu pai ou para o teu filho pode ser substituído. As relações são substituíveis, ainda que os indivíduos isolados não sejam. Mas o ser humano isolado não existe, ele é um conjunto de relações.

O Karadeniz é pai?

Sou!…

E aquilo que me disse também se aplica ao seu filho?

Claro! Se o T. morrer amanhã, a minha relação com ele pode ser substituída pela minha relação com outro homem (acaso ainda houvesse tempo). Aquilo que sentimos não é infinito, Paulo. Não podemos estar continuamente a sentir coisas novas e diferentes. Imagina um homem com doze filhos, ele não sente doze diferentes amores filiais!… Dou-te um exemplo que talvez percebas melhor. Já encontraste alguma vez uma mulher que fosse insubstituível no teu coração, uma mulher que acalmasse o vazio de um desejo de prazer e de uma contínua insatisfação? Uma mulher que te transformasse para sempre?

Julgo que não!…

Julgas?! Claro que não, Paulo! E é disso que estou a falar. Ou julgas que se houvesse uma mulher que te transformasse para sempre, ela seria menos importante do que um filho ou de que um pai? Digo-te mais: o facto de não haver quem transforme as nossas vidas para sempre, é razão suficiente para aceitar pacificamente a vida que levei, de assassino profissional.

Eu nunca fui pai, mas dizem que essa experiência muda as nossas vidas para sempre. É verdade?

Não! Se fosse verdade, o mundo melhorava imediatamente com o nascimento do primeiro filho. Se fosse verdade, neste mundo cheio de filhos, o mundo teria de ser melhor do que é. Ou então, foi precisamente o nascimento do primeiro filho que transformou o mundo em algo que não consegue ser melhor do que isto. Quer dizer, quando um homem se torna pai, torna-se pior! Mas eu não acredito em nada disto, Paulo! Ser pai não transforma um homem em nada. Se o transformasse realmente, então ele seria diferente, olhá-lo-íamos de forma diferente, provavelmente nem o reconhecíamos. Mas não é isso que se passa, pois não?

Parece que não!…

Ser pai é como ser uma outra coisa qualquer que exija responsabilidade. Olha, é como ser assassino profissional! Há que ter responsabilidade, ter cuidado e não desiludir quem de nós espera o melhor. E, repara, que eu sou a pessoa que pode realmente falar com propriedade acerca desta comparação… Vamos lá a ver uma coisa: se um homem ou uma mulher mudassem realmente ao serem pai ou mãe então passariam a querer ser melhores do que eram. Passariam a querer ser o que ainda nunca tinham sido. Mas as qualidades deles não mudam, a qualidade não muda.

(continua)

21 Abr 2017

Bussaco candidato a Património Mundial da UNESCO

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] candidatura do “Deserto dos Carmelitas Descalços e Conjunto Edificado do Palace do Bussaco” à classificação de Património Mundial da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) foi apresentada na Bolsa de Turismo de Lisboa no passado dia 16 de Março pelo Presidente da Câmara da Mealhada, Rui Marqueiro, que vaticinou que a elevação do Bussaco a Património Mundial permitirá duplicar em três anos o número de visitantes, registando-se ainda uma subida de 15 por cento no número de alojamentos e 30 por cento em dormidas, garantindo a auto-sustentabilidade financeira da Fundação que gere a Mata Nacional (Fundação Mata do Bussaco). Num espaço de dez anos, a previsão aponta para números ainda mais impressionantes: 300 por cento no número de visitantes (250 mil em 2016), 100 por cento nas dormidas e 50 por cento em alojamentos. Segundo o presidente da Câmara da Mealhada, este é o projecto mais importante da autarquia dada a sua grandiosidade, e o objectivo final deste investimento é fazer da Mata do Buçaco e do concelho um local não só de visita rápida, mas onde os turistas permaneçam mais tempo. Para o autarca, fazer parte da rede de património mundial será um atractivo para chamar pessoas e turistas.

O Deserto dos Carmelitas Descalços e Conjunto Edificado do Palace do Bussaco congregam um património de incomensurável valor cultural, histórico, patrimonial, religioso, militar e natural.

A Mata Nacional do Bussaco situa-se no extremo noroeste da Serra do Bussaco, no concelho da Mealhada. Com 549 metros de altitude, a sua localização geográfica confere-lhe um microclima muito particular, com temperaturas amenas, elevada precipitação e frequentes nevoeiros matinais, que favorecem uma elevada biodiversidade. Nas encostas expostas a sul sobressai uma vegetação tipicamente mediterrânica e nas encostas mais a norte uma vegetação característica de clima temperado. Com 105 hectares, a Mata Nacional do Bussaco foi plantada pela Ordem dos Carmelitas Descalços no século XVII, encontrando-se delimitada por muros erguidos pela ordem para limitar o acesso. Possui uma das melhores colecções dendrológicas da Europa, com cerca de 250 espécies de árvores e arbustos com exemplares notáveis. É uma das Matas Nacionais mais ricas em património natural, arquitectónico e cultural, podendo ser dividida em quatro unidades de paisagem: Arboreto, Jardins e Vale dos Fetos, Floresta Relíquia e Pinhal do Marquês. A Mata Nacional do Bussaco encerra uma vasta diversidade de animais que, muitas vezes silenciosa, passa despercebida. Rodeada de monoculturas de pinheiro-bravo e eucalipto, a Mata providencia alimento, abrigo e refúgio para mais de centena e meia de espécies de vertebrados, entre as quais, algumas de grande valor conservacionista, como endemismos ibéricos ou espécies protegidas.

A Fundação Mata do Buçaco (FMB) tem à disposição do público uma oferta base de visitas e trilhos temáticos, com percursos distintos orientados por monitores da Fundação. São quatro os trilhos que podem ser percorridos: Trilho Floresta Relíquia, Trilho Militar, Trilho Via-sacra, Trilho da Água. As visitas são orientadas por monitores da Fundação e disponíveis em português, inglês, espanhol e francês.

Actualmente classificado como Imóvel de Interesse Público, o conjunto monumental do Bussaco apresenta um núcleo central formado pelo Palace Hotel do Bussaco (instalado desde 1917 num pavilhão de caça dos últimos reis de Portugal) e pelo Convento de Santa Cruz, a que se juntam as ermidas de habitação, as capelas de devoção e os Passos que compõem a Via-Sacra, a Cerca com as Portas, o Museu Militar e o monumento comemorativo da Batalha do Buçaco.

O edifício onde se encontra instalado o Palace Hotel foi projectado no último quartel do século XIX pelo arquitecto italiano Luigi Manini, cenógrafo do Teatro Nacional de São Carlos, trazido para Portugal pela Rainha Maria Pia de Sabóia, mulher do Rei D. Luís I. Contou ainda com intervenções, em diferentes fases, dos arquitectos Nicola Bigaglia, Manuel Joaquim Norte Júnior e José Alexandre Soares. Encontra-se classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1996. O edifício, em estilo neo-manuelino, exibe perfis da Torre de Belém lavrados em pedra de Ançã, motivos do claustro do Mosteiro dos Jerónimos, alguns arabescos e florescências do Convento de Cristo, alegando um gótico florido com episódios românticos em contraste com uma austera severidade monacal. No seu interior, destacam-se notáveis obras de arte de grandes mestres portugueses da época, desde a colecção de painéis de azulejos do mestre Jorge Colaço, evocando a Epopeia dos Descobrimentos Portugueses, nomeadamente Os Lusíadas, os Autos de Gil Vicente e a Guerra Peninsular, graciosas esculturas de António Gonçalves e de Costa Mota, telas de João Vaz ilustrando versos da epopeia marítima de Luís Vaz de Camões, frescos de António Ramalho e pinturas de Carlos Reis. O mobiliário inclui peças portuguesas, indo-portuguesas e chinesas, realçadas por faustosas tapeçarias. Destaque ainda para o tecto mourisco, o notável soalho executado com madeiras exóticas e a galeria real.

Os jardins e parque envolvente, o Convento de Santa Cruz do Buçaco, o Deserto monacal, o Sacromonte simbolizando Jerusalém e a paixão de Cristo, com os seus passos da Via Sacra, a Cruz Alta, as inúmeras ermidas e capelas, constituem o mais vasto conjunto arquitectónico edificado pela Ordem dos Carmelitas Descalços; o Vale dos Fetos e seus lagos, a Fonte Fria com a cascata artificial, de forte influência italiana pela mão de Maria Pia, e os miradouros românticos, são outras atracções.

Complementarmente, o Museu Militar do Buçaco convida a uma incursão no historial da Guerra Peninsular, com destaque para a batalha do Bussaco na qual, em 1810, as tropas anglo-lusas, lideradas pelo Duque de Wellington, derrotaram o exército napoleónico.

A empresa que gere a candidatura da Mata situada no concelho da Mealhada destaca vantagens de quatro tipos na classificação como Património Mundial da UNESCO: demográficas, ambientais, socioeconómicas e turísticas.

O aumento de visitantes é o impacto mais evidente, seguindo-se a “geração de valor identitário” das populações à volta da Mata e o crescimento da mobilidade e envolvimento das comunidades locais no eixo Luso-Buçaco-Mealhada. As vantagens ambientais passam pelo aumento da capacidade de preservação da riqueza florestal dos 105 hectares da Mata, pelo reforço das iniciativas de investigação, por uma maior capacidade na gestão dos recursos hídricos locais e pela potenciação da consciencialização ambiental. No processo de candidatura, é ainda destacada a capacidade de atracção que a Mata constituirá para a região, gerando riqueza através do consumo de produtos locais, fixando jovens com formação académica e profissional especializada e atraindo novos residentes e empreendedores. Por outro lado, a distinção da UNESCO vai contribuir para reforçar a posição da entidade regional Turismo Centro de Portugal, que hoje já conta com Coimbra, Batalha, Alcobaça e Tomar como membros da lista de Património Mundial da Humanidade. Estes tesouros culturais incluem o conjunto Universidade de Coimbra -Alta e Sofia, o Mosteiro da Batalha, o Mosteiro de Alcobaça e o Convento de Cristo, em Tomar.

A autarquia da Mealhada é actualmente o principal sustento financeiro da Fundação Mata do Buçaco, que mantém o seu orçamento equilibrado através das receitas de bilheteira e do financiamento comunitário de projectos de requalificação do património e espaço arborizado. As regras de candidatura a património mundial da UNESCO obrigam à criação de uma comissão que avalie o conhecimento e os projectos da Fundação Mata do Buçaco, estrutura que, segundo o seu Presidente, António Gravato, deverá ser criada em Julho e que envolverá as várias entidades que estão presentes no Conselho Consultivo da FMB.

Apesar do lançamento da candidatura a Património Mundial, a Mata do Buçaco continua a aguardar a aprovação do diploma de elevação a Monumento Nacional, que ficou pronto ainda durante a passagem de João Soares pelo Ministério da Cultura e que aguarda homologação em Conselho de Ministros, mas já se encontra inscrita, desde 2004, numa lista nominativa da UNESCO para efeitos de candidatura a património mundial.

Em Junho de 2015, a FMB e a Câmara da Mealhada anunciaram que iriam aproveitar os fundos comunitários do Quadro Portugal 2020 para recuperar e restaurar o património edificado da mata nacional com a intenção de preparar a candidatura a património mundial da UNESCO, que agora foi apresentada. De acordo com estudos existentes, a execução desses projectos terá um custo a rondar os 9 milhões de euros e o Programa Operacional do Centro obriga a entidade a assumir os encargos da componente nacional do projecto numa percentagem de 15% do valor global, verba essa que será assumida pela autarquia da Mealhada. Na altura, o presidente da FMB, frisou que as intervenções prioritárias serão no Convento de Santa Cruz (2,2 milhões) e na Via Sacra (1,7 milhões), confirmando ainda a conclusão do Plano de Gestão Florestal, fundamental para a elegibilidade das candidaturas.

20 Abr 2017

A lotaria do nada e da morte

15/04/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma dramaturgia respeitamos o ethos dos personagens mas introduzimos umas buchas. Como Os Pilares da Sociedade era para ser representada em Moçambique, onde campeia o machismo, eu puxei um pouco pelo feminismo já de si pioneiro de Ibsen e introduzi na emancipada Lona Hessel alguns juízos que lhe sublinham o carácter.

Quem ia representar Lona era Graça Silva, uma das fundadoras do Mutumbela Gogo,  que morreu de repente este fim-de-semana, aos 51 anos, sem que nada o adivinhasse, muito perto da estreia da peça. E eu tinha escrito algumas deixas para a voz dela e a clareza da sua dicção. Quem poderá agora projectar a voz, no tom e no timing certos, e explorando a fundo os seus efeitos no público, replicar com a mesma autoridade: «CÔNSUL BERNIK – Se olhares para dentro de qualquer homem, seja ele qual for, hás-de sempre encontrar pelo menos uma mancha que ele quer ocultar.

LONA HESSEL (olhando-o bem de alto abaixo, alteando a voz, escarnecedora)Um coalho! Um pobre coalho de sangue, urina, caca e presunção… E são vocês que se dizem os pilares da sociedade!».

É lamentável ser ceifada assim, aleatoriamente, uma artista que há trinta anos se entregava ao palco e tão à vontade nas figuras populares como em Gertrudes, a mãe de Hamlet. Pior num país que não cultiva a memória ou patrocina tantas vezes o popularismo fácil e o embuste, negócio a que ela sempre se furtou, preferindo ganhar menos e fazer melhor – um percurso que nem todos entendem. Ou ainda: um percurso que nem todos merecem.

Morreu uma senhora actriz, e apetece dizer: a vida é nesciamente merencória porque nos esmurra até que deixemos de distinguir entre o falcão e a garça!

16/04/17

O mecanismo do sorteio e a lógica do casino infiltraram-se no imaginário global. Talvez devido a que o homem, já não acreditando no equilíbrio das simetrias entre o trabalho e a recompensa, ou entre a boa-fé e a benignidade social, parece agora apostado em recuperar pelo jogo da sorte e do acaso uma ideia de destino.

No entanto, o sistema de sorteio já teve efeitos positivos na História dos homens. Em Atenas, na Grécia antiga, os 500 membros do Tribunal dos Heliastas eram eleitos por sorteio entre os cidadãos livres. E para minimizar aí qualquer juízo imponderado, associado ao risco de que o cidadão com mais de 35 anos chamado para o desempenho de uma função pública fosse imprestável, deu-se um impulso galvanizador à educação, em todas as áreas.

Hoje prefere-se produzir tele-sorteios ou programas de busca de “talentos”, promovendo a “lotaria genética”, a apostar previamente na formação.

Na semana passada um grupo de hackers fiéis ao DAESH, o UCC (United Cyber Caliphate) divulgou uma lista de mais de 8700 nomes e endereços de norte-americanos que espera ver mortos pelas mãos dos lobos solitários. “Matem-nos onde os encontrarem!”, incita.

A novidade é que a lista inclui nomes alegadamente escolhidos ao acaso, enquanto as listas anteriores se focavam em nomes de responsáveis, como políticos, chefes religiosos, etc. Agora não, veio o vento de Deus de que nos fala o Ezequiel e sopra de onde quer.

Quando a culpa fica indeterminada, o que atacamos? A inocência. É estranho que tal se arrogue em nome de Deus. Que já não se busque nem a justiça, nem quem determina. E em nada diminui o crime saber que os ossos do defunto são a consolação das violetas.

Entretanto, se pensarmos no que declarou David Altheide, professor jubilado do Arizona, ao DN: «Trump apelou a um passado que nunca existiu. Com o seu slogan “Fazer a América grande de novo” (…) quando foi isso mesmo? (…) De certa forma, Trump apresentou uma espécie de quadro em branco e as pessoas podiam preencher as suas próprias ideias acerca do que o ser grande era.», compreendemos que nos situamos num sistema de lotaria em que cada um já “imagina” o seu próprio prémio.

Miséria franciscana que redobra quando lemos: «A obra, intitulada “Votar nos Democratas: Um Guia Completo”, da autoria do jornalista Michael J. Knowles, tem 1235 palavras e 266 páginas… quase todas elas em branco. O livro tornou-se bastante popular no seio do Partido Republicano, incluindo junto do presidente Donald Trump», porquanto, sendo natural que a piada tenha tido sucesso, deprime constatar que isso celebra a suficiência com que se admite como ganho um zero de imaginação, tal e qual se depreende do que se segue: «O livro estará a ser um sucesso entre os conservadores americanos, depois de um outro livro de páginas brancas se ter tornado popular entre os liberais, de seu título: “Porque é que Trump merece confiança, respeito e admiração”.»

Afinal, entre os ganhos que só eu imagino, as páginas em branco, as convicções que eu alucino, a sorte e o descaso e o défice total de imaginação – rimos de quê quando a roleta rola?

18/04/17

Não era a lua quem cruzava a perna, era ela. E não havia nuvens naqueles joelhos. Que belo avental seria eu para a sua nudez, desejei. Chegou a minha filha ao café e baixou-me a gripa, desviando-me da sombra dos salgueiros, mangueiras e jacarandás, dos recônditos e miríficos leitos onde se escrutinam os buracos que existem numa agulha. Pai, posso ir passar o fim-de-semana a casa da minha amiga? A entrada da miúda já me tinha eliminado a vantagem inicial, agora, nas costas dela, via-la retirar-se, a dos joelhos cor de cobre, rompido o fio da oportunidade. Responde rápida, já estou atrasada; a minha amiga está no carro lá fora, com o pai, estão à minha espera. Percebo aí o sentido do verso de Rene Guy Cadou:”Je suis en retard sur la vie.” Crescer é isto: ficar em atraso com a vida. E então respondo: não, não podes! Mas porquê? Porque a prontidão do livre arbítrio é um dos direitos inalienáveis de ser pai!

Quem é o porco-espinho que me bufa junto à prata dos cabelos?

20 Abr 2017

Pessoas privadas

Facebook, 2 Abril

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] meu querido exilado de si, Alex Gozblau, anima nas etéreas paragens uma rádio íntima, The Unborn Radio (https://www.facebook.com/The-Unborn-Radio-881810651873520/). Hoje ofereceu-me uma lágrima. A voz de Kevin Rowland diz cantando que «It’s okay to be a private person, John… It’s okay – I don’t show much of myself in life, but in my music… I reveal all. (…)  I’m learning to operate in this world; I’m just learning, and so can you. // I’m learning about how to be true to an idea, it’s a beautiful thing. I’m gonna do it, Johanna, I’m gonna it. I’m gonna spread beauty to the best of my ability.» Isto de ser pessoa privada e ter que custosamente arranjar maneira de nos mantermos fiéis a uma ideia, uma ideia de nós, é terreno comum. Quantas figuras da criação, além da canção, contêm esta potência explosiva de nos unir (uns aos outros) e de nos partir (em pedaços)? Tantas ramificações, entre terra e céu, podiam ancorar nesta pérola perdida dos Dexy’s Midnight Runners, sempiternos parceiros de adolescência, essoutro nome para aventura. Acresce que esta demo esquecida de It’s Ok Johanna vem de par com o screen test de Andy Warhol para Ann, the Girl Who Cried a Tear. Ele há dias assim, que nos escorrem pelo rosto.

Mymosa, Lisboa, 7 Abril

Sendo a agenda slightly promiscuous girl, difícil foi fugir dos seus avanços a tarde toda. Quantos dias de conversa em torno de música surfei com o mano surfista Rui Garrido? Conversa? Quantos discos, concertos, bandas, projectos, histórias ou vozes o Rui me apresentou? Pois. A minha perspectiva foi sempre a do usuário-otário. No meu dicionário íntimo, música define fascínio: limito-me a arder no encantamento. Não toco instrumento algum, não canto nem uma nota, raramente reconheço melodias, esqueço as canções de que sou feito, às vezes grito, há quem diga que me viu dançar. Sinto muito… Não foi surpresa sabê-lo de corpo inteiro, depois de anos à volta dos rostos, a desenhar linhas de baixo em banda: Democrash. Claro, a capa do primeiro álbum homónimo (na ilustração) leva a sua assinatura, com aviso de que apenas uma cassete foi ferida e um martelo usado. O martelo está bem, dizem. A fita da tarde embrulhou-se ainda no abrasivo meio editorial. O Rui dirige o departamento gráfico de um grande grupo e na bateria bate o Francisco Camacho, outro distinto editor da praça. Maduros também os outros três, que foram de fazer agora banda de garagem onde celebrar a energia bruta da adolescência. Sem merdas. Com riffs. A cassete congelada não podia ser melhor metáfora. O espírito conserva-se. Com a batida, o sax e o verso I’m better writer when I’me down enquadrando explicações sacadas a livro de psicologia, Writer’s block diverte-me de modo agudamente festivo. Devo passá-lo doravante aos meus autores? Mas o tema, como se diz, que não me abandona chama-se delete me: «delete me when I’m over/ delete me when I’m over/burn all these words and more/forget all the jokes I made» (https://youtu.be/GKVc__3Lcbw). E o gozo continua, apesar das vidas e não sei quê. De qualquer modo, ao vivo tendem a ser mais o contrário de estar morto.

Horta Seca, Lisboa, 12 Abril

Talvez fosse ideia de antologia (que cabeça a do editor, que transforma qualquer coisa em livro-projéctil!), a selecção de textos capazes de definir as paisagens apocalípticas que atravessamos. Do martelo e da navalha, portanto. Ainda que nesse contexto, Tresmalhado, de Jorge Roque (ed. Averno), não deixaria de o ser. São inclassificáveis estes textos notáveis, contos breves de atenção ao quotidiano, à linguagem, invectivas políticas, invocações de memória, contabilidade do falhanço, avaliação de rumos e ponto da situação, tendo por fundo, em baixo contínuo autobiográfico, a voz, o olhar e a dor do narrador. «O que sinto não é uma ideia, um pensamento, uma filosofia. Grito. Irreprimível grito. Lâmina desarvorada. Corta, fere, rasga, ceifa. Nada vê, nada mede. Galga, salta, escoiceia. Silêncio. Imóvel, ressoante.» Um despojamento singular da escrita faz dela lâmina: corta, fere, rasga, ceifa. E se marca o seu corpo, não pode deixar de ferir outros, sargentos deste estar vivo que basta. Mais. Trabalhando na área cultural do Estado lida a cada dia com a falência ética da literatura. «A literatura, à escala da vida, é coisa de nada. A literatura portuguesa, à escala da literatura todos os dias praticada em cada recanto da terra, pelos milhões de bichos esquisitos que a povoam, um nada desse nada. Cada escritor dessa dita literatura, génio da língua, da oportunidade ou do bairro, da sua crença, da crítica ou do mercado, compreendidos, incompreendidos e errantes, amados, mal amados e ainda os que nem uma coisa nem outra, a quem coube uma verdade mais estreita, talvez mesmo verdade nenhuma para lá do tempo a esgotar-se, um nada desse nada desse nada.» Mandaria a prudência que não dissesse o quanto me revejo nesta solidão sem rebanho.

Outro capítulo, relembrado há dias no Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta/), pelo mano Valério [Romão], seria o poema-carta de veias abertas do Vasco [Gato]: Fera Oculta (ed. Douda Correria). Por ali sangra, além do lirismo de combate, photomaton do inferno doméstico, «este logro quotidiano/em que um homem e uma mulher/se esfalfam para manter à tona/a ampulheta instável dos seus nomes/quando esse punhado de areia/subtraído à erosão dos deuses/mereceria o sopro pleno/de um dia sem rodeios/um baptismo mais vasto e súbito/que não prendesse cada coisa/aos seus próprios pés». O puto, entretanto, nasceu e semeia desassossegos, apesar de. «Que se foda a época/digo-te já/que se foda a sépia dos futuros/eu quero aparecer no dia/dia do teu nascimento/desarmado como uma árvore/sem outra missão que não amparar-te o susto/e dizer-te baixinho/bem-vindo ao continente dos frágeis/podes parar de nadar»

Santa Bárbara, Lisboa, 15 Abril

Provavelmente não será verdade, pouco importa. O Teatro Amazonas, em Manaus, tem uma equipa a funcionar 24 sobre 24 horas para impedir a selva de engolir cada detalhe, das escamas de cerâmica da cúpula ao mármore das estátuas, dos lustres em vidro de Murano às paredes de aço de Glasgow, da boca de cena ao fosso da orquestra. A natureza reclama o seu, pouco importa que seja cultura. Alberto Carneiro (1937-2017) fez o mesmo, sem estrago, acrescentando na vez, com o alcance de uma sequoia e a elegância do bambu. Depois de lhe entrar obra adentro nunca mais vi da mesma maneira a cerejeira e o museu.

19 Abr 2017

Irmãs tórridas 说有这么一回事

Foto: Fotografia de Pan Yue

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a tarde de 21 de Fevereiro de 1932, Xu Qinwen saiu para acompanhar um convidado. Quando voltou a casa, encontrou o criado à porta. O homem vinha informá-lo que ninguém o ia deixar entrar. Aborrecido, tirou do bolso a sua chave, mas verificou que não abria a porta. Tocou várias vezes à campainha. Ninguém atendia. Xu ficou furioso. Deu a volta até à porta das traseiras, partiu o gancho de ferro e entrou no pátio. O silêncio era total. A seguir apanhou um choque, na relva jaziam duas jovens mulheres cobertas de sangue. Uma delas estava desmaiada. Era Tao Sijin, amiga da sua filha. A outra era a sua melhor amiga, Liu Mengyin, e estava morta. O crime aconteceu no Lago Oriental, em Hangzhou, um dos locais mais românticos da China. Este episódio tornou-se rapidamente um escândalo nacional e apareceu em todos os jornais do país.

Tao e Liu estudavam na Escola de Artes de Zhejiang. Eram companheiras de quarto e envolveram-se numa relação romântica. Ambas tinham combinado que nunca se casariam. Mas Liu veio a apaixonar-se por outra mulher, uma nova professora. Tao jurou que mataria uma delas. Entretanto as férias de Verão começaram e Tao e Liu ficaram em casa de Xu. Um dia Liu queria tomar banho e mandou o criado comprar-lhe um produto para a pele. Nessa altura, Tao trancou as portas e desencadeou uma discussão. Exigia que Liu terminasse a relação com a professora. A discussão descontrolou-se rapidamente e Tao foi buscar uma faca à cozinha. Matou a amante e a seguir desmaiou.

Tao foi condenada a prisão perpétua. Entretanto a II Guerra Mundial deflagrou e os japoneses tomaram Hangzhou. Tao acabou por ser libertada, e veio a casar com o juiz que tinha presidido ao julgamento, dando assim um epílogo bastante sumarento à história.

Na China, durante as décadas de 20 e 30, a homossexualidade era um fenómeno muito comum entre os estudantes, tanto do sexo feminino como masculino. No entanto, para as “novas mulheres” estava na moda ter uma relação lésbica. “Tórridas, irmãs homossexuais” era uma expressão que circulava entre as elites sociais.

Depois do escândalo Tao-Liu ter chocado o país, a influente revista feminina Linglong(《玲珑》Requintada apelou ao “fim” da homossexualidade, afirmando: ” […] a homossexualidade é ilegal, imoral e fisiologicamente errada. É um acto criminoso. Esta forma perversa de pornografia é por vezes perigosa. As raparigas devem ter relações heterossexuais e almejar uma vida feliz e brilhante.”

O assunto foi inevitavelmente abordado na literatura da época, fortemente influenciada pelas tendências ocidentais. Escritoras dissertaram longamente sobre as tórridas irmãs homossexuais. Por exemplo, no romance de Ling Shuhua’s (凌叔华 1900–1990) Romeu era uma rapariga (《说有这么一回事》), a escritora encoraja as mulheres a “livrarem-se das sombras impostas pelo passado e a embarcar em experiências fora do alcance da percepção e dos valores masculinos.”

Provavelmente Ling Shuhua será recordada pelo seu caso amoroso com Julian Bell, um jovem poeta pertencente ao Bloomsbury Group, e que escreveu sobre ela numa carta a um amigo: “…embora não seja bonita, sinto-me muito atraído por ela.” Perante isto, deixo uma questão aos meus caros leitores: expliquem-me como é que isto funciona? Por favor respondam-me por email.

19 Abr 2017

Cenas de um casamento

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma amiga foi convidada para tocar piano num casamento e, embora a profissão dela esteja de facto ligada à música, recusou por achar não ter nem talento nem tempo suficiente para se preparar para a ocasião. Acontece que quem convidou não estava disposto a aceitar um não como resposta, sobretudo porque o convite não envolvia retribuição financeira mas apenas a materialização da cortesia própria inerente às relações de amizade. Acresce o facto de ter descobrido – o que lhe causou tanto espanto quanto indignação – que os músicos cobravam para tocar, motivo mais que suficiente para continuar a insistir junto da minha amiga por uma solução simpática.

“Não posso casar a minha filha sem música, menina”, lamentou-se. A ideia de entregar a mão da sua única filha numa cerimónia que não fosse tal qual a que tinha sonhado era-lhe inconcebível. Há poucas alturas na vida de uma pessoa pobre em que esta tem a possibilidade, ainda que de breve duração e exaurindo totalmente a sua capacidade financeira, de sair por momentos do estatuto a que a pobreza a remete. O casamento é, provavelmente, uma dessas ocasiões.

A minha amiga tentou arranjar alternativas que fossem adequadas. Perguntou pelo sistema sonoro da igreja. Acaso tivessem uma aparelhagem, ainda que módica, seria fácil conseguir um cd da marcha nupcial para colocar aquando da entrada da noiva. Infelizmente, a aparelhagem – assim como alguma da pouca arte sacra que a igreja tinha – fora roubara dois meses antes. Felizmente, a miniaturização e portabilidade da tecnologia forneceram uma solução que, embora longe da fantasia romântica do organista impecavelmente vestido de branco, tinha forçosamente de servir, dado ser a única. Uma pequena coluna bluetooth e um telemóvel fariam as vezes do órgão de tubos e, contando com a generosidade da reverberação típica das igrejas, o som ganharia um fôlego e músculo que disfarçaria o tamanho diminuto da coluna.

O grande dia chegou e, com ele, a típica procissão de horrores que ocorre quando as pessoas têm, de algum modo, de fazer por parecerem excepcionais. Todo o tipo de exageros são permitidos – e bem-vindos – e nos cabelos, na roupa, nas unhas, no calçado e na maquiagem a única nota dominante e transversal a todos eles é o excesso. A minha amiga, por sua parte, chegara já em cima da hora à igreja, vinda de uma aula de ioga e envergando uma singela t-shirt, umas calças pretas e uns ténis outrora brancos a rematarem o conjuntinho, perfeito para o dia-a-dia típico de uma juventude urbana descontraída mas manifestamente insuficiente para a singularidade da ocasião.

Quando o fotógrafo de serviço passou por ela, esta apressou-se a apontar para a coluna e a fazer sinais com os dedos. “Não gaste cartão de memória comigo, também estou aqui em trabalho”, seria a tradução mais adequada para aqueles esforços gestuais. Convencido ou não, o fotógrafo seguiu o seu percurso. A minha amiga, por sua vez, apressou-se a testar telemóvel e coluna, dado a tecnologia sem fios ser tão conveniente como a espaços imprevisível e, se há dia em que as coisas deveriam, pelo menos, parecerem perfeitas, este era certamente o dia.

Fora os típicos problemas de conexão iniciais, a coisa parecia funcionar. No dia anterior, o do ensaio, tinha tudo corrido muito bem. O som, malgrado o tamanho modesto da coluna, era amplificado pela reverberação natural da igreja e, se todos fechassem os olhos, em jeito de prova cega, ninguém diria que aquele órgão de tubos provinha de uma coluna literalmente capaz de caber na palma de uma mão. Naquele instante, e com a igreja cheia, era mais difícil antecipar o resultado mas, não havendo quaisquer alternativas, o plano mantinha-se.

O momento finalmente chegou. A noiva, para comoção generalizada, dá os primeiros passos sobre a passadeira vermelha e a minha amiga espera pela indicação visual da mãe da noiva para dar voz à marcha nupcial. Esta assim faz, em jeitos de “já devia estar” e, sem surpresas, a aplicação falha. Não abre. De cada vez que vai ser lançada, colapsa num estrondo branco. A mãe da noiva, pouco sensível aos caprichos informáticos, grita com as mãos como um napolitano. A noiva, essa, não consegue desacelerar mais o passo sem parecer ser portadora de uma deficiência motora qualquer. A minha amiga, no meio do desespero, tem uma ideia redentora: o youtube. E lá se apressa a escrever “marcha nupcial” na barra de pesquisa e a carregar em play na primeira que lhe surge. A coluna finalmente ganha vida. Vai tudo correr bem.

Claro que ela não se lembrou, no meio daquela confusão, de que o youtube vive dos anúncios que coloca em muitos dos vídeos. São apenas 10 segundos, coisa breve e logo mascarada pela ocorrência da música escolhida mas, de todos os anúncios possíveis, calhar logo um promovendo um qualquer teste de gravidez, é algo na ordem do karma. A minha amiga diz que ninguém ficou chateado e que todos acharam alguma graça ao sucedido. Mas ambos sabemos, mesmo sem falar disso, que a carreira dela de DJ de casamento acabou ali naquele dia.

18 Abr 2017

A Guerra Perdida

 

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]enrique Manuel Bento Fialho é poeta e crítico de poesia. Tem uma dezena de livros publicados, desde 2000, e este, A Grua (volta d’mar, 2017), é o seu mais recente trabalho. Trata-se de um livro com vinte poemas, com os títulos de 1 a 20. A grua, que dá título ao livro, aparece em todos os poemas, como metonímia do humano. Do humano na sua solidão, no seu isolamento. Veja a última estrofe, do primeiro poema (p. 4):

(…)

não se mexendo

é apenas uma grua parada

a olhar trabalhos ao abandono

nada que agite os corações receosos

nada que provoque exaltações de espírito

pois tudo o que é melancólico

pode ser esquecido

pois tudo o que é triste

deve distrair-nos

e ficar para sempre parado onde ninguém ligue

onde ninguém dê por isso

bem no meio de nós

 

Através da grua vê-se melhor o humano. “há muito parada / a grua observa a obra” (p. 3) Há uma profunda desolação nas páginas deste livro. Mesmo quando aparece um faísca de esperança, ela surge apenas para que ilumine melhor a desesperança que habita um coração humano, a desesperança que habita este mundo de homens, como escreve o poeta no poema 12, à página 22: “(…) acredito nos homens / e na força das utopias / acredito nos horizontes que impelem à caminhada / para logo ao primeiro passo / tropeçarem no abismo / e das crenças e das utopias restar apenas / e tão-somente uma ideia vaga (…)” Pressente-se, ao longo destas páginas, a soar no fundo como se de um baixo contínuo se tratasse, que a vida humana existe para provar que tudo é desesperança. Aliás, poucos livros de poesia atingem este grau de desesperança que “A Grua” atinge, se é que algum se lhe pode comparar quanto à invocação desta erva daninha do humano. E aqui identifica-se dois tipos de desespero: 1) de todos aqueles à margem de uma vida boa ou dentro de parâmetros razoáveis, como se vivessem numa infra-humanidade; 2) a do poeta, aquele que, apesar de não partilhar essa infra-humanidade directamente, partilha através de uma consciência aguda, como se o poeta tivesse sido condenado a cantar a solidão e perfídia humana.

A grua também se torna num lugar de referência – poder-se-ia dizer de peregrinação – para os marginais deste mundo, pelo menos da parte do mundo próximo da grua, como o poema 4 é exemplo maior. Desde o sem-abrigo, logo no início do poema – “entre tapumes de chapa o sem-abrigo / fez a cama com caixão de cartão / e tapou-se com folhas de jornal” – passando pela máfia russa – “entre tapumes a máfia russa enterrou vivos / uma puta e um chulo da concorrência” – passando também pela puta – “e fechou os olhos enquanto a puta / o mamava a troco de vinte euros”– até à primeira vez do amor – “entre tapumes um casal de namorados / fez amor pela primeira vez”. E ainda esse isolamento maior que é ser-se só num mundo completamente diferente do nosso: “entre tapumes um chinês recolheu-se / a chorar com saudades de casa”. A grua onde habita tudo o que é o humano nas margens de si mesmo e dos seus temores, como no poema 3, à página 8:

ninhos de ratazanas

abrigos de drogados e prostitutas

 

indiferente a hábitos rastejantes

a cegonha não se queixa

prossegue o seu destino à margem das intempéries

sociais

que ateiam focos de discussão e raiva

 

No fundo, como nos versos do poema 6 (p. 12): “a grua era um farol a servir de referência / aos náufragos de uma cidade turbulenta.” A grua tem assim múltiplos sentidos, mas todos como metonímia do humano, em múltiplos modos de apresentação. E, por conseguinte, a miséria humana não se poderia dizer apenas nas margens, ainda que seja aqui que ela se faça sentir com mais eloquência ao longo do livro. A miséria humana é também a de todos aqueles que diariamente se dirigem ao trabalho, que repetem as suas acções quase mecanicamente ou, pelo menos, sem se perguntarem porque fazem isso, à imagem dos militares, que, segundo consta, não questionam as ordens dadas, como se lê no último poema do livro: “ainda nos comovem as sirenes / as mães com os filhos pela mão à entrada das / escolas / os homens fardados para o trabalho / com cara de quem vai para uma guerra perdida” (p.39), ou ainda “a caminho dos empregos como pregos” (p. 36). E a guerra já perdida para onde se caminha é a própria vida. Defender a vida, dia a dia, é essa guerra perdida. Perdida, não só porque não podemos ganhar, e sabemo-lo de antemão, mas também porque enquanto dura, a vida, estamos impedidos de fazer um gesto de paz, porque viver é estar continuamente em guerra. Percorre-se o livro com a sombra de que o mundo está podre, de que o humano é a grande doença do mundo, como fica bem claro no início do poema 14 (p. 26):

 

não quero saber

não me contem do mundo nem das suas mortes

desliguei-me de tudo

incluindo do cansaço com que me desligo

 

Perante esta evidência, a do mundo a cair, a do mundo ser um lugar de expiação, vive-se de modo a não nos cruzarmos com essa consciência. Este é o mundo onde se rouba sem ter fome – “ó ladrões sem fome” (p. 35) – principalmente porque não se tem fome, e como se de um mandamento tratasse. O mundo não é um lugar lícito. Viver é – sempre o foi, mas é-o agora cada vez mais – empanturrar-se de entretenimento, de diversão. E a grua, na sua inutilidade – “uma grua inutilizada no centro da paisagem / como tudo quanto respira / como tudo quanto existe” (p. 27) – aparece-nos como profeta, como o filho de deus, que recebe todos os enjeitados da vida, pois são eles que melhor a dizem, e ilumina o estado em que está o mundo. A grua é o filho de deus que nos falta, que não encontramos nas igrejas, nos templos, nos gestos das pessoas. A grua recebe todos, principalmente os que não têm nada e os que expõem os seus defeitos. E porque a poesia não é deste mundo, é ela que dá testemunho desta descida da grua ao mundo. No fundo, a poesia morreu e não sabe disso. A poesia não levanta sequer o rabo da cadeira, não tem força para nada, no mundo de hoje (e talvez tenha sido sempre assim). Leia-se estas duas estrofes do poema 20 (p. 38):

 

os poetas do meu tempo

sobretudo as raparigas

reivindicam grandes incêndios

falam com a boca cheia de labaredas

mas eu olho para eles e para elas

e mais não vejo do que fósforos inofensivos

a atear queimadas de entulho

raivas amenas pautam explosões de entusiasmo

e a paixão com que falamos uns dos outros

cai por terra como estrume

a fertilizar exíguos canteiros de alegria

 

Chegados aqui resta-nos terminar. Pois neste livro até o bem parece conversa e gestos de bêbado. Mas há alguma coisa boa neste livro? De outro modo, há alguma coisa boa que este livro nos mostre, para além da consciência cortante do estado miserável do mundo e dos homens? Há! Mostrar-nos que precisamos de ver. Não é urgente o amor. É urgente ver. É urgente a consciência da existência do fora de nós. Impossibilitados que estamos de nos olhar a nós mesmos, neste mundo que nos pisa, neste mundo em que o emprego nos suga as horas e a alegria e a possibilidade de pensar, e nos empanturra de entretenimento, é urgente olhar as coisas como se nos olhássemos a nós. Uma grua, um sapato, uma árvore que resiste nos baldios, podem despertar-nos para a nossa vida. Ver lá fora é preciso, diz-nos este livro. Talvez o diabo tenha criado o ecrán de televisão, o ecrán de computador, o ecrán, para nos impedir de ver o mundo, de ver as coisas, de ver os outros. Porque o mundo que nos aparece nos ecráns não é o mundo, mas um filtro do mesmo. No ecrán o que nos aparece é a distancia, uma distância em relação ao mundo. O mundo é o que nos é próximo. Embriagados de distância, afastamo-nos de nós e do mundo. Antes de terminar, com um poema de Henrique Manuel Bento Fialho, acrescento que a capa do livro foi concebida pela Inês Ramos.

 

14.

não quero saber

não me contem do mundo e das suas mortes

desliguei-me de tudo

incluindo do cansaço com que me desligo

 

acordo a olhar para ti e espanto-me

basta-me tal espanto

apontas para oeste

na direcção de um mar infindo

de aventuras perdidas

 

como o ponteiro de uma bússola

indicas-me os caminhos

do ocidente

e eu penso que nestas terras nunca o sol nasceu

 

não quero ocorrências

enterro-me nos lençóis com tudo desligado

nem música consigo ouvir

registo num pequeno caderno as últimas vontades

(ser transformado em cinza

e largado no lixo como se nunca tivesse existido)

e ensaio um possível epitáfio para os meus dias

(acidente

que não sonha

apenas delira

não dorme

apenas arfa)

 

não quero saber

se prescrevem poemas a quem como eu

olha os caminhos que indicas e vê

uma obra embargada

em edifício emparedado

uma grua inutilizada no centro da paisagem

como tudo quanto respira

como tudo quanto existe

 

simplesmente não quero saber

está vento

tenho frio

o céu nublado pesa-me nos olhos que fecho

enquanto enterro mais um pouco o corpo

por debaixo dos lençóis

18 Abr 2017

Ressonâncias: conversas com o meu gato

[dropcap style≠’circle’]- N[/dropcap]ão me digas que acreditas nessa treta das estéticas comparadas!

– Não é treta, existem leis comuns. Olha, neste verso de Eluard, «há nos bosques árvores loucas por aves», surpreendemos uma boa parte da mecânica do cinema. Não falo só dos processos, e citaria a «montagem das atracções» do Eisenstein, evoco uma das duas pulsões que regem grande parte das narrativas: neste caso o «segredo».

– E como é que desse verso partias para um filme? Não te entendo…

– O enredo do filme partiria da dificuldade (o motor de uma história é o que a estorva) em desenhar um mapa com as árvores que no bosque são loucas por aves. O antagonista seria o guardião de uns ovos de ouro maciço com inscrições em sânscrito, escondidos no bojo de uma figueira-da-índia quase milenária, os protagonistas um casal de ornitólogos aparentemente inocentes – ele tem um grave problema com o fisco que ainda não confessou à sua amada. O que lhe dá motivações secretas…

– És engenhoso, mas estás a gozar comigo!?

– Claro que brinco, mas inúmeras narrativas reduzem-se mesmo a dois modelos, o do segredo (aquilo que motiva a investigação), e o da viagem (a experiência que transforma as personagens no itinerário do auto-conhecimento). Blue Velvet é um bom exemplo para o segredo, Taxi Driver ou Apocalipse Now para os da viagem.

– Hum, ontem li uma página do Saramago, que me espantou. Foi nos Cadernos de Lanzarote. Tem uma entrada onde ele dá forte e feio no Drácula… do Coppola. Fala inclusive em embuste. Concordas?

– Olha, trabalhar no cinema é, e até mais do que contar as fábulas, fazer multiplicar as ressonâncias. Quanto melhor o filme mais elaborada ou subtil é a sua rede de ressonâncias entre os vários níveis de construção (plástica, diegética, sonora) que o compõem e que capturam a emoção dos espectadores. Às vezes os espectadores mais inteligentes não dão conta. Talvez nunca dispam a inteligência, será o caso do Saramago. Ora, esse Drácula tem, mesmo descontando o Keanu Reeves, pelo menos um raccord que vale o filme inteiro, bastariam esses sete segundos para o justificar.

– Explica-te…

– A expedição do dr. Van Helsing está de partida para a Transilvânia e a aristocracia londrina oferece-lhes uma festa. Convivem no jardim do palacete, na véspera da grande aventura. Dois pavões cruzam o plano e isso origina um olhar subjectivo que vai fechando o plano sobre uma das aves e a sua cauda até se enfocar num dos “olhos” negros. E de imediato vemos, já na Transilvânia, o comboio que os transporta a penetrar num túnel da montanha. A rima plástica do olho da cauda do pavão a penetrar no túnel com uma forma idêntica (o raccord) ganha uma transversalidade isomórfica (o isomorfismo é a similitude de estrutura que se dá entre fenómenos superficialmente muito diferentes): eles vão entrar no lúgubre curso subterrâneo das suas almas, de onde não sairão mais. E temos o jogo das ressonâncias a actuar em pleno.   

– E essa coisa das ressonâncias, onde a vês mais?

– Olha, na pintura oriental. Na poesia. Na poesia uma grande metáfora é como um passe vertical no futebol, atravessa de um só golpe vários níveis de realidade e abre novas perspectivas…

– O golo…

– Sim, uma metáfora bem concebida equivale a um golo…

– Dá-me lá um exemplo…

– Repara nestes dois versos do Amadeu Baptista: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar». Como é que se chega à ausência de uma praia, perguntarão os racionalistas. Provavelmente de pára-quedas, como os anjos. Mas esta questão é similar ao enigma que é discutido há décadas por físicos quânticos e monges budistas e que se resume ao seguinte: quando não há ouvido humano por perto, o galho da árvore que se parte faz barulho? Este enigma é o que desperta nos versos de Amadeu: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar.» Como é que dois versos escritos avulsamente, sem preparação prévia, se sintonizam com o que tanto perturba cientistas e monges? Que tipo de memória desponta nessa intersecção, onde mar, audição, sujeito e leitor se tornam um? É um caso de ressonância…

– Eh, pá! E servem-te para alguma coisa essas macaquices?

– Para nada, não fazem parir as lecas na conta bancária, não te habilitam a quatro quintos das posições do Kama Sutra… Não curam a sífilis. Só me dão um cansaço…

– Um cansaço?

– Sim, há cansaços benignos, que te fazem baixar as defesas, a censura… e propiciam a meditação… Quando trabalhava nos jornais, bebíamos muito. Hoje sei: era uma forma mecânica de baixar a guarda, de nos colocarmos sem censura nem pressão para que o texto aflorasse e se desenrolasse a si mesmo…

– Como a inspiração?

– Não, isso é um conceito romântico e perigoso, porque laxista. Mas existe uma espécie de inteligência não circunscrita, isso sim… E que actua por ti, se a deixares.

– O célebre daimon do Sócrates?

– Aí já te pões num plano de acareação com o divino, um tu cá tu lá… Sejamos humildes … E o teu inconsciente talvez não precise de tutela…

– São tretas dessas que vais ensinar no curso de guionismo que vais dar no mês que vem?

– Antes fosse, mas eles quase sempre só querem saber como é que se conseguiu dar três seios à mutante no Total Recall  Só se interessam pela cosmética…

– E há mais do que isso?

– Há um milhar de obras em todos os domínios que me faz crer que sim, há a experiência atestada de milhares de pessoas que me faz crer que sim…

– As coisas que tu pintas…

– Não pinto nada, são constantes. Quem quiser vê-las…

– Diz-me lá, que procura uma mulher no amor, que constantes?

– Um Don Juan cego…

– Sim?

– Alguém que venha pelo menos precedido pela fama de ser uma fera na cama e que como é cego a trate como se fosse única… E esta é a mais benigna ilusão do amor.

– Balelas…

– Talvez. Mas o meu epitáfio vai ser: “Eu que fui tantos, não fui aquele que mordeu o pescoço da Winona Ryder!” e isto é um lamento sério, diria mesmo que é cancerígeno.

13 Abr 2017

Os olhos e a carne

Álvares Cabral, Lisboa, 31 Março

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a dedicatória ao seu saborosíssimo «Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida» (com Carlos Pitella, ed. Tinta da China), diz o Jerónimo Pizarro que foi «uma noite de grandes palavras do caraças». Dou-lhe razão, que o debate regado fechou de boa maneira este mês desatinado. O Jerónimo abriu na fossa abissal dos estudos pessoanos uma lufada de ar fresco, com as ideias que trouxe, pela quantidade de trabalho e energia, além da generosidade, convém sempre sublinhar, de tão rara. Faça-se deste volume, aqui à mão, exemplo. Piscando irónico olho aos livros de auto-ajuda, oferece com grande rigor uma colecção de pinceladas, maiores e menores, que ajudam ao retrato sempre movediço do poeta da desdobra. Não deixa de me surpreender a quantidade de inéditos, de degraus que podem ser mundos, de minudências capazes de mudar a vida. A lista do inclassificável detalha, com bom gosto e humor, listas, muitas listas, claro, de projectos e livros e antologias, esquemas de passar tempo em namoro, as inevitáveis cartas astrológicas, mas também desenhos e ideias, traduções e episódios, correspondências que se cruzam e descruzam ora para divertimento ora para interpelação. Pessoa arde ainda em efervescências. Nada do humano lhe foi estranho. Nem o insulto, que jeito dá, por alturas em que as redes sociais se fazem cloacas: «De ti se suja a imaginação/Ao querer descrever-te em verso. Tu/Fazes dôr de barriga á inspiração.//Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo,/Tu fazes sempre mal. É como um cú,/Que ainda que esteja limpo é sempre sujo!»

CCB, Lisboa, 6 Abril

Mais uma conversa de estalo, a desta quinta, entre Mário de Carvalho e Valério Romão, gerida com a discrição habitual pela Maria João Costa, no ciclo Obra Aberta. Sobre livros, que outro assunto haverá? O Mário, invocando o esquecido Aquilino Ribeiro, defendeu o contacto com o difícil, seja texto ou autor, nos bancos da escola. Mas haverá, em período de mastigado didactismo, capacidade de atirar à cara dos educandos o enigma explosivo dos textos que nos resistem, que se impõem, que exigem regressos, que nos acompanharão pela vida fora? Mergulhei em apneia nas memórias que vou perdendo à procura do exacto volume que me abanou, irritou, encantou. Raul Brandão, talvez, o de Humus, em vetusta edição. O Fialho ou o Gomes Leal? Álvaro de Campos, com certeza, ilha no oceano Pessoa, que me foi apresentado nas aulas do liceu, sim, nas aulas do João Nogueira Costa, na Luísa de Gusmão. Aulas? Não sei se se deviam chamar assim, que aquelas sessões continham o espírito e a oficina do teatro, com cenários e figurinos, leituras em voz alta e pesquisas em voz baixa. Prolongaram-se de imediato para os intervalos e depois por longuíssimas horas e centenas de livros e cartas. Dá jeito que seja o Pessoa, mas de par veio o Sá-Carneiro e depois os surrealistas e o Herberto e. A vida mudou-se-me por ali, mas só o saberia décadas e milhares de páginas depois. Dito isto, se tivesse que escolher, punha nesta estante outro continente que o João me fez descobrir, essa deslumbrante continuação dos Lusíadas: as Quybyrycas – poema étbyco em oitavas, que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões em suspeitíssima atribuiçon de Frey Ioannes Garabatus. Não, Mário, mais importante que os clássicos era termos professores na escola.

Monumental, Lisboa, 7 Abril

Discutíamos ideias, desdobrávamos projectos, comentávamos os cactos, os vivos e os mais vivos pelo desenho do Manuel San Payo, ali sob o limoeiro, na primeira das grandes noites de Primavera. O olhar-câmara do mano Luís Gouveia Monteiro gravou-nos a ser percorridos pelas sombras. E derepentemente apanha-se um sentido, tal o perfume do limão, que abafa a dureza de não saber que responder a tantos, como pagar tanto ou o que resolver entretanto. Valha-me Pessoa: «O rio corre bem ou mal/Sem edição original./E a brisa, essa,/De tam naturalmente matinal/Como tem tempo não tem pressa.» (Como ser Livre, pág. 212)

CCB, Lisboa, 8 Abril

Tive o privilégio de entrever este impressionante projecto do António Gonçalves (detalhe na ilustração) em vários momentos da sua incarnação e subida ao altar. O esplendor da obra vista quase apaga a carpintaria do esqueleto onde as carnes se ergueram: os esboços e das maquetas, o cheiro das tintas e os cadernos, as madeiras e as dobradiças e o peso das folhas, a disciplina de trabalho, as hesitações e a indispensável dança em busca dos apoios. Fui contemplando particularmente, portanto, mas só agora vivi a experiência. Sendo pintura, ao relacionar-se com a escala e a tradição do sagrado, torna-se paisagem teatral. Uma sala, construída com este propósito a partir do desenho de Maria Eduarda Souto de Moura, para que fosse despida e neutra, nem igreja nem museu. No miolo, o vazio e a escuridão interrompe-se com o políptico, que se revela em crescendo ao longo do dia. Cada face apresenta aspectos distintos de um combate de carnes, coreografias das brutas musculações do desejo. Em ocasiões escolhidas, será tocada ao vivo a composição para piano de António Celso Ribeiro. A primeira afirmação do António diz respeito ao tempo. Precisamos parar, abrir lugar na agenda revolta dos dias para experimentar a Contemplação Particular. Na inauguração, o silêncio foi impossível, mas o restolhar dos sussurros e das movimentações espelhava bem o que acontecia perante os nossos olhos. Preciso voltar por causa do silêncio, que, temo, será sempre contaminado pelos turistas de época. Os turistas desta época tendem a perturbar-nos, essa será a sua santíssima identidade. Avancemos. Mergulhando raízes na leitura atenta de Tentações de Santo Antão, de Flaubert, o corpo desfeito em abstracções chega-nos logo pela temperatura de cor, depois pela textura até nos perdermos na dinâmica das volutas, que parecem em movimento perpétuo. Que há de erótico nisto? A visão do para além da pele, lugar onde perderemos o eu na paisagem do outro, a identidade no grande oceano dos corpos. O desejo faz-nos arder em absoluta liberdade, a de que o homem pode ser universo.

12 Abr 2017

A Máquina do Mundo

Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assim foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada

Os Lusíadas, Canto X.

  

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amões fala-nos aqui de uma mais que provável imagem mítica por si adaptada, mas que máquina é o Mundo nesta ideia maquinante que domina a nossa mente? A intertextualidade fala-nos de mecânica até aos mais recônditos dos tempos, mas que sabia o poeta dos seus movimentos bem explícitos na estrofe oitenta? Que a poesia é uma espécie de algoritmo? Sem dúvida, esses processos matemáticos que nos regulam sempre e cada vez mais fazendo parte do visionar a partir de dados recebidos, sabendo-se da capacidade de delinear variáveis a partir desses mesmos dados que é uma nova explosão na mente e na realidade humana. E que sabemos nós dos Camões que andam nesta máquina? Aparentemente pouca coisa, mas que eles à distância de séculos visionem o seu mecanismo não nos deve pasmar, já Ramon Lull (século XIII) – o poeta Ramon- fazia os seus poemas com números e com letras para com eles demonstrar a existência de Deus. Dante tem uma engrenagem espiralada em mecanismo e que todos eles tivessem estado no eixo da máquina não nos pode surpreender, rolando parada estava…. Vejamos a estrofe setenta e oito: / volvendo, ora se abaixa, agora se ergue/ qual a matéria seja não se enxerga/ Mas enxerga-se bem que está composto de várias orbes/ e talvez tenhamos chegado ao tempo do poeta vidente.

Se o possível é a verificação física do provável, o provável é a pré-existência do possível, pois que o Poema possui sempre outros recursos além do ritmo e do sistema de medida para se realizar como Poema. A poesia como arte inefável que faz parte dos desprotegidos e das sensações, queda, em queda…. por isso, será ela capaz de novo elevar-se como meio de conhecimento e de força renovadora da linguagem? Não sei. É uma questão cibernética às nossas reservas oníricas, poderá ela ressurgir intacta depois de vogar por aqui? Por estes tempos? Estamos na era dos Filhos do Homem, as novas máquinas do Mundo, da robótica, tendo ficado mais unidos, é certo, mas infinitamente mais apáticos, também, estamos agora nós programados para a máquina do Mundo por ela própria reinventada pois que sem ela a nossa humanidade já não é passível de se fixar perante os moldes que tínhamos como imperecíveis. Se a própria noção amorosa aos poucos se esgota pela cada vez mais ténue empatia, essa extensão continuada dos afectos, que nos sobra então de verdadeiramente humano que possa merecer a nossa atenção? Vamos substituindo pelas formas programáticas dos nossos correspondentes mecânicos: somos muitos, é certo, mas somos frágeis e não estamos fora do perigo da mordaça viral a grande escala feito por formas tão conscientes como o de produzir outras vidas. Sem dúvida que todo o labor poético sério seria agora mais do que necessário para a gigantesca metamorfose em curso, até porque a ideia de um mundo laboral tal como era concebido está prestes a findar e dever-nos-ia acordar para tudo o que se segue. A Revolução Industrial implementou o trabalho como medida de libertação, o trabalho físico, dando origem a novas classes sociais, hoje a Revolução é a da Inteligência Artificial e a noção de trabalho alterou-se na sua razão libertária. Não vai haver trabalho dentro em breve para um terço da população mundial, até já há “chips” que dispensam o carregamento de objectos…e gastamos agora os últimos pacotes dos medos porque infelizmente não tivemos acesso ao melhor da educação poética, aos que sonharam a Máquina do Mundo.

O rei Salomão tinha a sua Máquina Voadora e, se mistério oculta, sondemos a máquina do tempo. Também ele, escreveu amorosamente e foi cúmplice da linguagem de muitos saberes, também amou rainhas e plebeias e se prostrou reinante como o mais lendário dos homens. E para onde voava com sua máquina de sonhos? Fez Cânticos Maiores, maiores do que o amor terreno, foi terno como os cordeiros de seu pai David e ficou-lhe o respeito pela Noiva-Irmã, o eterno laço do seu saber. Não era um gigante, diz-se que foi um homem, mas que homens havia que a Máquina tirou do alcance dos naturais? Todas as questões são maquinações agora bem legítimas de envolvermos a nossa mente atraída pelos nossos Filhos, que talvez sejam os de um Deus Menor que somos nós.

Andar para trás e para a frente vai ser possível, fazermos dos tempos plasmas vários, ao invés do que foi andar de baixo para cima e de cima para baixo, tipo escada de Jacob. O plano parece mais plástico, ganhamos umas asas estranhas e não longe andamos do insecto de Kafka, ludibriamo-nos com a descoberta de poucos e somos muitos a não descobrir nada… em nossa alteração opomos resistências tais que estamos com cancros da dimensão de uma praga” vemos, ouvimos e lemos” e podemos ignorar. Podemos dar-nos ao luxo suave do esquecimento, dado que o cancro avança e o nosso corpo não tarda também é imortal, criopreservado até encontramos a cura. Até lá laboramos à boa maneira esclavagista não vá isto tudo descer…

Há um silêncio doce na Máquina do Mundo que requer o barulho das multidões, ainda, como mera energia de vapor…mas pode dela não vir a precisar, e o carvão e o aço somos todos nós a fazer trabalhar uma forma de vida que morreu, nós, os fantasmas, os duros na retirada.

“A poesia é a linguagem dos Iguais dispersos no Tempo […] a poesia ‘conhece’ e não sabe.” Almada Negreiros (de Prefácio ao livro de qualquer poeta, 1942).

12 Abr 2017

Voar em 1904: o primeiro romance chinês de ficção científica《月球殖民地小说》

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China lançou o primeiro satélite, o Dongfanghong, em 1970. Treze anos depois do Sputnik, nove anos depois do primeiro cosmonauta ter visitado o espaço e uma semana depois da Apollo 13 ter regressado da Lua.

A 16 de Agosto de 2016 a China lançou o primeiro satélite de comunicação quântica do mundo, baptizado de Micius, em honra do emblemático filósofo chinês Micius/Mozi, e concebido para teleportar dados para além dos limites do espaço e do tempo.

Tornou-se normal que a China esteja diariamente na origem destes títulos sensacionais, embora inconcebíveis e incompreensíveis. Mas quando é que terá tido o seu primeiro romance de ficção científica? Isto deu-me que pensar.

1904 estava destinado a ser um ano extraordinário para a literatura chinesa, mas acabou por ser esquecido. A China ainda é conhecida como o país da (finada) Dinastia Qing. Uma importante revista literária, a “Ficção Ilustrada” 《绣像小说》, publicou em fascículos 《月球殖民地小说》(Colónia: Lua), um romance de ficção científica, com uma estrutura narrativa clássica na literatura chinesa. O autor assinava 荒江钓鱼叟 (Velho pescador do rio agreste), mas a sua identidade permanece um mistério.

O romance inacabado contém 35 capítulos, com um total de 13 milhões de palavras impressas. Conta-nos a história do valente Li Anwu e do seu amigo japonês Fujita Tamataro, que ajudaram Long Menghua, do Distrito de Xiang na província de Hunan, a fugir de uma tentativa de assassinato e a reunir-se à mulher e ao filho, há muito perdidos. Long Menghua viveu várias aventuras à volta da Terra nas naves de guerra voadoras de Tamataro. No final, toda a família Long imigra para a Lua, para onde o filho vai, obviamente, estudar.  Como se fosse um símbolo mágico, em cada ilustração do romance aparece um balão de ar quente, que parece simbolizar a aspiração colectiva da Dinastia Qing: voar. No mesmo romance, o autor desconhecido também se pôs a reflectir sobre a relação entre a Terra e os outros corpos do sistema solar:

“Da sua nave espacial Fujita Tamataro observava que as naves do povo da Lua eram enormes, frágeis e brilhantes. Arrumou as armas e pensou: a Lua é pequena, mas que civilização tão avançada! Desde essa altura, Tamataro dedicou-se completamente à sua investigação. Queria inventar uma nova máquina voadora que pudesse voar livremente pelo universo.”

Piscadela de olho.

12 Abr 2017

Do ombro à ventania

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] livro Lisbon Blues foi publicado pela primeira vez em 2009, no Brasil, e reeditado em 2015, em Portugal, pela Abysmo, com mais três poemas e ilustrações de Pierre Pratt. O livro está dividido em três partes: “Mapas”, “Derivas” e “Último Cabo”, com um primeiro poema a servir de homenagem “À Memória de Hélder Gonçalves”.

Contrariamente ao último livro que lemos aqui, Manucure, de Rosalina Marshall – em que o título do livro remete para um poema de Mário de Sá-Carneiro e os títulos dos poemas são todos eles versos ou partes de versos desse poema, impondo que a leitura não se afaste desse farol – neste livro de José Luís Tavares a palavra “blues” no título do seu livro não concede de imediato uma evidência ao caminho da nossa leitura. De qualquer modo, e porque o título vem em inglês, “Lisbon Blues”, podemos arriscar que o poeta quer invocar essa música negra norte-americana, tão diferente, nas suas origens, da musica tradicional de Lisboa, o fado. E parece-me estar aqui, nesta diferença entre blues e fado, a chave para a leitura deste livro do poeta de Cabo Verde, radicado em Lisboa. 

Sem dúvida, trata-se também de um livro sobre Lisboa, não apenas pelo título dos poemas – “Rua do Sol ao Rato”, “Madrugada do Chiado”, “Balada do Cais do Sodré”, “Postal do Intendente”, etc. – mas os próprios poemas remetem para um encontro entre alguém que vem de fora, não só de Lisboa, mas também do país, da cultura deste país, e a cidade retratada. A chave do blues, ao invés do fado ou de uma qualquer expressão musical de Cabo Verde (a coladeira ou a morna, por exemplo), torna-se assim ainda mais pertinente, até porque não há em Lisboa qualquer tradição de blues, qualquer tradição no culto dessa expressão popular norte-americana e negra. E a palavra “negra” é aqui a chave. O blues não é apenas uma expressão musical com raízes negras, mas com raízes negras de origem escrava. Independentemente de a música de Cabo Verde vir ou não de escravos, a verdade é que para um europeu ela não é de imediato ligada a esse facto, do mesmo modo que o blues. Além de que, do ponto de vista musical, há muito mais influência europeia na morna ou na coladeira, por exemplo, do que há no blues. José Luís Tavares usa o blues como metonímia de preto, de africano, de alguém que é diferente ou olhado de um modo diferente, pela sua cor, pela sua raça. Escreve ele, logo no primeiro poema do livro (após o poema inicial, à parte, de homenagem), “Pela Mão De Cesário”: “pobre Cesário negro (…)”. Estabelecendo assim, e logo desde o início, uma ligação àquele que cantou a cidade de Lisboa como ninguém – como já Dante o tinha feito em relação ao poeta Vergílio – e também a si mesmo, negro, e por isso mais afastado dos outros que o poeta do “Sentimento dum Ocidental”. Porque a marginalidade mais dura não é aquela que se escolhe, quer seja pelo ópio, quer seja pela aguardente, quer seja pela pedofilia, mas aquela que nos é imposta. A história do blues é a história de marginalidades impostas, pelo menos até finais dos anos 60 do século passado (provavelmente até muito mais tarde). E no início deste novo século, escreve assim Tavares, na última estrofe de “Santa Catarina Outra Vez”:

“Detesto negros e turistas”,

disse o homem debruçado

no varandim da tarde.

Eu vou afundar-me no transumante

abismo dos póstumos abraços.

Por outro lado, a própria poesia de José Luís Tavares traz algo de marginal, não apenas na temática, mas principalmente na retórica, que nos parece a cada esquina uma poética de outros tempos. O verso é cuidado, limado, mesmo quando calca o dedo na nossa ferida, ao terminar o poema “Litania Para Um Domingo De Lisboa”: “o domingo é um tropo esvanecendo-se / num débil rufar de cinzas.” Ou mesmo quando esbofeteia, como é o caso do poema 16, da segunda parte do livro “Deriva”:

Quando é o rosto que recua,

como pode o delírio (tremens) curar-se

com a ginjinha, baixa ciência

que o hábito ergueu em lei?

Ninguém para contar do longo inverno

corrido sobre a alma, afeiçoado o corpo

ao umbral dos instantes em que um sol

baldio escurece a pele.

De vez em quando o fungar de um bairro

acordava-me para a forca da existência,

mas, perdoai-me, altas musas, eu soçobrei

a destinos mais prosaicos – algum álcool,

rasteiros versos onde tinha por (mau) costume

misturar deus vómito ressaca.

Agora cresceu-me esta pedra sobre o rim,

bebo muita água e pouco gin (é fácil ser-se virtuoso

quando a morte vela a dois haustos de distância);

demasiado tarde, dizem as cartas, nem futuro

ou redenção, tolo rapaz que acreditaste na arte

e agora vês o paraíso escurecer

sobre os teus pobres trinta anos.

Brilha ao longo de todos os poemas de José Luís Tavares um metal de outros tempos, palavras que nos aparecem como se de amigos há muito desaparecidos se tratassem. É, sim, também um livro revivalista. Um livro que usa a palavra como resistência. Mais: que teima em deixar a palavra cair; a palavra que ele pretende precisa, porque, escreve “(…) Não havia / outra palavra para esse naufrágio (…)” (“Castelo de São Jorge”, p. 34).

Há ao longo destes poemas uma nostalgia de um outro tempo, de um tempo ao mesmo tempo nosso e que nunca o foi, o tempo em que a poesia era acima de nós, quando tínhamos que subir as escadas para procurar palavras, para lhes abrir o sentido. O tempo em que o mistério chegava até nós pelo incompreensível de um verso, devido a uma ou mais palavras que nos obstruía o caminho. Este livro de José Luís Tavares, que além de percorrer a cidade de Lisboa, as suas paisagens e os seus personagens, à laia de Cesário – e de se encontrar com outros poetas, Pessoa e os seus heterónimos, Armando da Silva Carvalho, Alberto Pimenta –, encontra-se também com esta encruzilhada de tempos, em que se sente perder tudo aquilo em que mais se acredita “(…) como doeu a crua /  evidência de que a poesia tinha morrido.” (p. 83) E a nostalgia que sente no livro, e que é simultaneamente em relação ao tempo da nossa vida, ao tempo do mundo e ao tempo da poesia, surte efeito precisamente pelo uso quase arcaico da linguagem. É um livro que, em toda a sua extensão, vai, como ele mesmo escreve “do ombro à ventania” (p. 63). Pela palavra, pela métrica, pela nostalgia. Terminemos com a voz do poeta, no poema 19, da segunda parte do livro, “Deriva”:

Dispostos à morte, essa faca que o dia

escurece, embora de canções falássemos

na tarde de mormaço a que ainda hoje

associo o vinil das primeiras lágrimas.

Homem minado de dúvidas (assim perdi deus

amigos sinecuras) como doeu a crua evidência

de que a poesia tinha morrido.

(Disse-me o alberto pimenta que fora nero

o assassino.)

Agora rasuro os mínimos sinais que atestem

que na verdade andei por tardes ofegantes

a encher cadernos com essa obscura mistura

de acaso e cálculo.

E se a vida também não for nada disto

– a creche, os filhos, os juros algozes,

a forca do amor, domingos de manhã

em que bate a ressaca, a sabedoria

que só chega depois do erro?

Eu podia ter perguntado às ciganas do parque;

saber recusar, porém, todo o consolo,

eis o que poderia salvar destes vicariantes dias

em que seitas flibusteiras nos intimam

à felicidade. Mas há demasiadas canções

que nos fazem desastrados aprendizes da ternura.

11 Abr 2017

Da natureza da discórdia

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á duas semanas estava no Cais do Sodré a beber uma cerveja com amigos quando um homem, imiscuindo-se no grupo, me interpela acerca do assunto que discutíamos: o presidente Trump e a sua capacidade aparentemente inesgotável de fazer inimigos da esquerda à direita. O homem discordava da interpretação que dávamos a esse facto: para ele, a antipatia do sistema e de algumas elites tendencialmente conservadoras demonstrava que o recém-empossado Presidente dos Estados Unidos da América estava, de facto, a fazer a(s) coisa(s) certa(s) e a “drenar o pântano” em Washington, imagem que o próprio Trump usou como metáfora para um dos objectivos do seu mandato presidencial.

Discordámos e discordámos até concordarmos em discordar. Quando duas pessoas têm posições tão distintas acerca da interpretação a dar ao mesmo fenómeno, não é pela quantidade de argumentos e exemplos que uma delas vai convencer a outra. E a coisa vai ficando simultaneamente mais pobre em ideias e mais entrincheirada nas posições que cada um ocupa à medida que se vão acrescentando cervejas à conversa. Passámos da política para o cinema, área na qual, felizmente, encontrámos mais pontos de concordância que de conflito.

A certa altura, o homem – vamos chamar-lhe Rui, por conveniência – perguntou-me onde dormia. Pedi-lhe para repetir, pois o sentido não era de todo claro. “Onde dormes”, repetiu, “aqui nalguma rua do Cais Sodré?”. “Moro mais acima”, respondi, “perto da Rua do Poço dos Negros”. “Ah, tens uma casa, que bom”. E só aí percebi o que o Rui queria formular com aquela pergunta: ele achava que eu, como ele, vivia na rua, e estava curioso por saber onde. Laborávamos num duplo equívoco: eu convencido de que ele tinha uma vida semelhante à minha, no que concerne os rudimentos básicos da mesma, e o Rui convencido de que eu, tal como ele, não tinha uma casa onde regressar à noite.

A conversa arrefeceu um pouco depois de percebermos o engano. Continuámos a falar de cinema, sem nunca regressarmos ao assunto que causara aquele desconforto de sabermos habitar mundos inteiramente distintos. Passado algum tempo, um amigo do Rui chegou e partiram ambos, noite fora, cada um com uma cerveja pendurada pelos dedos como as crianças fazem com os baldes que usam na praia para edificar castelos. Eu regressei ao grupo de amigos onde estava e contei-lhes o que se tinha passado e falámos de como o nosso património de experiências, quando desfraldado, pode condicionar de forma decisiva uma conversa sem necessitar de ser parte dela. Algumas coisas funcionam como letreiros que aproximam ou afastam diferentes pessoas de diferentes grupos que, por vezes, se sobrepõem e se mesclam na construção do que chamamos, rudimentarmente, identidade social.

De certo modo, a minha percepção – ainda que muito limitada – da sua experiência de vida, dava outra luz à discordância que espoletou a nossa conversa subsequente. Para alguém como eu, com casa e uma existência relativamente estruturada, a chegada de Trump ao poder corresponde a uma forte possibilidade de destabilização da vida como a conhecemos. E a vida como a conhecemos, mesmo que não corresponda ao “melhor dos mundos”, de Leibniz, não parece ser tão insuficiente que mereça ser trocada por outra a que pode corresponder pouca ou nenhuma melhoria. Para alguém como o Rui, que vive de certo modo outra vida, nas margens mais ou menos confusas da sociedade, Trump pode representar um possibilidade de mudança efectiva. E mesmo que seja uma possibilidade remota, o Rui tem – aparentemente – muito menos a perder com a mudança do que eu. E o Rui, estando ao lado do sistema que é incapaz de lhe prover um tecto, sente que Trump, também ele de algum modo estranho ao sistema, o representa, politicamente, muito mais do que um político de carreira. A possibilidade de fazer um reset ao nosso modo de vida e esta empatia por alguém fora do sistema faz com que Trump tenha muito mais apelo para o Rui do que para mim. Se o Rui pudesse, teria votado Trump. Não porque acredite em Trump ou confie nele, mas porque a vitória de Trump corresponde à derrota do sistema. E mesmo que a derrota do sistema não corresponda a uma vitória do Rui, o Rui acha que se tem de começar por algum lado, e que a aposta vale a pena. Eu não tenho como o contrariar nisto. Afinal, sou parte interessada. Ainda tenho algo a perder.

10 Abr 2017

Jerónimo Pizarro: “Pessoa convida pessoas”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s hoje reconhecido como uma das autoridades mundiais sobre Fernando Pessoa. Se tivermos em conta as últimas edições e organizações da obra de Pessoa, tens organizado a obra do poeta de modo diferente, principalmente em relação a O Livro do Desassossego. Como aconteceu isso e em que difere a tua organização, das outras organizações? Tens também apresentado novas edições. A arca de Pessoa não tem fundo?

Na Tinta-da-china, no geral, as edições são todas diferentes. Caeiro está revisto como nunca, e completo; Reis está com uma organização mais inteligível, e completo; Campos é um volume enorme, e está completo. O Livro é diferente, porque só podia ser diferente (há tantos e haverá tantos!…). Mas o que mais destaco da edição da INCM que migrou para a Tinta-da-china é que permite ler o Livro pela ordem conjectural da sua escrita e que permite descobrir que Pessoa, tardiamente, descobriu Lisboa. Lisboa é uma descoberta poética, tal como a Rua dos Douradores, e isso não aconteceu na fase da «Floresta do Alheamento», mas depois. Num artigo recente digo que o «Narciso cego» da primeira fase – e este paradoxo de um Narciso que não se vê como uma realidade exterior foi belamente analisado por Eduardo Lourenço – foi iluminado, por volta de 1929, pela luz de Lisboa. Lisboa não estava no mundo dos sonhos iniciais, mas sim no Pessoa que queria voltar a escrever, já no fim da vida, como o Padre António Vieira, mas sem esquecer Verlaine…  Se a arca (ou arcas) não tem (ou têm) fundo? Eu acho que só o terão quando exista uma autêntica consciência patrimonial em Portugal. E isso, como se diz, não está previsto para breve. Desapareceu o projecto nacional de editar Pessoa e o Estado não está a tentar reunir os dispersos. Cada vez sinto mais que a auto-profecia de Pessoa estava certa: ele disse que só seria descoberto em 2198. Talvez nessa altura existam as suas Obras completas e uma maior consciência da sua grandeza.

Fernando Pessoa é sem dúvida o autor português com maior visibilidade no estrangeiro, apesar de ser poeta?

É, mas o seu cartão de visita é o Livro do Desassossego. Também alguns poemas, mas era o mínimo. Poemas como «Tabacaria» não se escrevem todos os dias e mesmo os não leitores de poesia ficam abalados… «Tabacaria» é quase um hino negro, encantatório da nossa modernidade. E Pessoa escreveu sobre os temas todos e interessou-se pelas áreas todas do conhecimento. Até foi inventor, astrólogo, charadista, autor de dicionários, publicista… Em princípio, qualquer pessoa encontra em Pessoa um aspecto que lhe é afim. Pessoa convida pessoas. 

És também o responsável por uma editora na Universidade dos Andes, na Colômbia. Gostava que falasses desse projecto, que tem traduzido e publicado autores portugueses e brasileiros.

Sou o coordenador de várias colecções em que se publicam, traduzidos para o espanhol, autores que escrevem em português. Eu fui aluno de Gonzalo Aguilar, que é um dos três responsáveis da colecção Vereda Brasil, e queria criar novas veredas. Surgiram então Lusitánia (Tragaluz Editores), Outras Letras (Taller de Edición Rocca) e Labirinto (Ediciones Uniandes). A última é a da minha Universidade. O importante é ter um leque significativo de autores de língua portuguesa para que os Estudos Portugueses possam crescer na América Latina. Eu não podia, por exemplo, dar a conhecer bem José de Almada Negreiros, sem o traduzir, nem convidar para um festival literário José Tolentino Mendonça, sem o editar. Hoje há mais ferramentas para ensinar língua e cultura portuguesas, e isso contribui para que o número de alunos interessados pelo português cresça. Eu apenas gostava de ter o tempo todo para ainda ver publicados muitas mais dezenas de autores, quer dos que convém resgatar, como Camões e Vieira, quer dos que convém descobrir, e a lista é enorme. Em Portugal existem esses milagres que são os apoios da DGLAB e do Instituto Camões, e eu tento não deixar passar um ano sem propor uma série de obras à direcção e ao instituto. E gosto de traduzir. Este Verão espero traduzir o Ricardo Araújo Pereira, mas se eu tivesse sete vidas traduzia sete autores. Como as não tenho, desdobro-me, e estou sempre à procura de bons tradutores. Ana Lucía de Bastos foi a última, e fez uma belíssima tradução da revista Orpheu toda para o espanhol, e não só.

7 Abr 2017

A meretriz Blanche Lachmann

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uitas são as versões fantasiosas e contraditórias da história de Madame Paiva, a mais bem sucedida cortesã parisiense do século XIX, que encheram as páginas dos jornais parisienses, “menos atarefada nos assuntos grávidos da política, da indústria e da sã moral”, segundo Camilo Castelo Branco.

Esther Blanche Lachmann (1819-1884) era filha de pais polacos judeus exilados na Rússia (pois, após este país anexar a Polónia em 1815, muitos foram os judeus que para aí se mudaram), apesar do historiador Padre Manuel Teixeira dizer ser “filha bastarda do Grão-duque Constantino, da Rússia”. Em Moscovo, com 17 anos casou-se com um alfaiate francês a 11 de Agosto de 1836, de quem no ano seguinte teve um filho Antoine. Afundada na pobreza, sem horizontes, numa monótona vida dura e de dificuldades, resolveu fugir e por volta de 1840, abandonou para sempre o marido e filho. Apareceu em Paris, instalada junto à igreja de Notre Dame de Lorette, onde se introduziu no milieu da prostituição, com o nome de Thérèse. A sua esbelta figura abriu caminho de capital em capital e em Berlim terá começado a actividade de espia ao serviço da Alemanha, passando por Viena e Istambul, onde foi a favorita do local Sultão. Por volta de 1841 chegou à estância alemã de Ems, onde encontrou Heinrich Herz, ela com 22 e ele 35 anos. Entre 1841 e 1847/8 viveu em Paris amancebada com esse famoso pianista e compositor e através do salon Herz, por ele anteriormente criado, ingressou no meio musical e intelectual, convivendo com artistas como Berlioz e Offenbach, tendo aí patrocinado a estreia de muitos jovens profissionais. Conheceu Franz Liszt e Richard Wagner e escritores como Théophile Gautier e Emile de Girardin, sendo então uma das mulheres mais atraentes de Paris. Influenciada por esse ambiente, aprendeu a tocar piano e com Henri teve uma filha, Henriette. Escondida como senhora Herz, aventurou-se a “sentar-se entre as duquesas nos saraus de Luís Filipe”, até que certo dia, ao chegar a um evento ouviu: <A madame enganou-se na porta>. Percebeu ter sido desvelado o segredo da sua concubinagem, sendo “expulsa afrontosamente dos círculos também falsamente carimbados de honestidade”, nas palavras de Camilo Castelo Branco. Este episódio terá acordado nela a voragem para as suas extravagâncias, com que lapidou a pequena fortuna de Herz. Tal obrigou-o em 1848 a partir numa tournée pelos Estados Unidos, que durou cinco anos, altura em que os pais de Herz a colocaram fora de casa.

Com os milordes em Londres

Sozinha e sem dinheiro ainda pensou em se suicidar, não fosse a ajuda de Teófilo Gautier, do jornalista Jules le Comte e da amiga Ester Guimont, que a apresentou ao famoso modista Camilo. Este aconselhou-a a ir para Londres e colocou-lhe à disposição toda a indumentária. Outra versão refere-a já na capital do Reino Unido, instalada numa pensão que hospedava mulheres da sua condição, mas sem grande sorte com os clientes. As parcas economias rapidamente desapareciam e mal alimentada, doente e desesperada, tomou como solução suicidar-se. Valeu-lhe a dona da estalagem, que lhe propôs adiar tal acto e ofereceu-lhe um camarote na ópera para aí se expor. Se não resultasse, teria o dia seguinte para o realizar. Assim, à sua fulminante formosura ajuntou um vestuário de espaventos e sentou-se langorosamente num camarote de Covent-Garden, onde logo conseguiu dez fortunas a seus pés.

Esse período em que esteve em Londres, de aproximadamente um ano, por volta de 1848-49, é vagamente descrito pelos autores que sobre ela escreveram e do qual Camilo Castelo Branco refere, “fez que o rio Pactolo, representado por alguns milordes, lhe lambesse os pés com as suas ondas de ouro”. O primeiro deles foi Edward Stanley, o 2º Barão Stanley de Alderley, seu amante por algum tempo, seguindo-se-lhe um diplomata e político francês, Antoine Alfred Agenor, que mais tarde se tornou o 10.º Duque de Gramont, amigo de Louis Napoleon. E continuando pelo que se pode ler no artigo La Païva, colocado na internet, uma ficção da argumentista americana Cornelia Otis Skinner, nascida já a protagonista da sua história tinha morrido, onde narra o episódio (talvez por ela inventado) mais interessante da Mad. Blanche no período da estadia na capital inglesa. Refere-se ao banqueiro Adolphe Gaiffe (apesar de na biografia aparecer como homem de negócios e jornalista político), que apostara com uns amigos conseguir ter relações sem pagar com a dita madame. Blanche aceitou, mas em troca teria ele que queimar vinte notas de mil francos, uma em cada trinta minutos durante a secção de amor. Substituindo-as por notas falsas, mesmo assim não as conseguiu queimar e foi ela quem tal fez, acreditando ser dinheiro verdadeiro. Assim, ganhou a aposta.

Com a estadia em Londres, Blanche Lachmann fechou para sempre o seu ciclo de pobreza material, pois diz-se ter aí conseguido presentes que totalizaram 40 a 50 mil libras.

Uma prostituta por esposa

Agora Thérèse Esther Blanche Lachmann, já 40 vezes milionária, encontrava-se de novo em Paris, a ser galanteada por “um dos cinco mil príncipes russos que dão mobília nova aos bordéis parisienses”, nas palavras de Camilo Castelo Branco. O seu marido, Antoine Hycacinthe Villoing vem de Moscovo para tentar reatar o casamento, mas ela repudia-o e este, num recanto desta cidade, nunca mais interferiu na vida dela, até que faleceu a 15 de Junho de 1849.

Continuava Thérèse em vigilante sedução, focada sobretudo nos homens de Estado e políticos, atenta aos deslizes confessionais escancarados por carnais desejos, a servirem a sua actividade de espia a favor da Alemanha. A esse mundo, encoberto pelo trabalho de prostituta, faltava apenas um título para conseguir dignidade na sociedade e por isso, já viúva, casou-se a 5 de Junho de 1851 com Albino Francisco de Paiva de Araújo. No dia seguinte à noite de núpcias ela disse-lhe: <queria dormir comigo, e conseguiu-o fazendo-me sua mulher; deu-me o seu nome, eu absolvi-me a noite passada; portei-me como uma mulher honesta – queria uma posição e consegui-a, mas tudo o que tem é uma prostituta por esposa. Não me pode levar a lado nenhum; não pode apresentar-me a ninguém. Por isso, devemos separar-nos; regresse a Portugal que eu fico aqui, usando o seu nome e continuando a ser uma meretriz>.

Não terão sido essas palavras, se realmente ela as pronunciou, que o levaram a dar o tiro pois, só vinte anos mais tarde, a 8 de Novembro de 1872 é que Albino, o boémio macaense, se suicidou em Paris, no patamar das escadas do prédio n.º 11 da Rue Neuve des Mathurins, onde então morava. Carregado de dívidas percebeu não ser mais necessário à diva o seu falso título de marquês, pois ela era já condessa, devido ao casamento um ano antes com um verdadeiro Conde, Henckel von Donnermarck. A luxuriante Paris das luzes já não tinha mais espaço para o Paiva. Triste destino, que então também estava a acontecer a Macau, com o aparecimento de Hong Kong.

7 Abr 2017

Pinturas de Batalhas

02/04/2017

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá a altura de revelar aos amigos de Macau que a mais atrevida representante da literatura feminina luso-macaense viveu vários anos em Lourenço Marques, nos anos 40 e 50, e provocou escândalos porque, além dos seus poemas serem incandescentemente eróticos, era publicamente suspeita de se ter entregado biblicamente a dois irmãos, Duarte Galvão e Bruno dos Reis.

Assinava a diva Lee Li-Yang e radiografou em poemas licenciosos o seu amor, sobretudo por Duarte Galvão, um poeta com uma voz à James Mason e propenso ao dom juanismo, e que despertava nela a sensualidade e a paixão mas igualmente a ira, o ciúme, a crueldade ou a ironia – provocados pela infidelidade dele. E tudo isto se grafa nos poemas.

Estes versos que, com escândalo, saíram em vários jornais e revistas da época foram finalmente compilados em livro em 2009 numa edição que prefaciei e foi publicada pela Escola Portuguesa de Moçambique, intitulada Meu Mar de Tochas Líquidas. Devido ao seu erotismo foram, de novo, motivo de desconforto. Eis breves excertos da sua pintura de batalhas, que explicam o embaraço:

“É nua sobre a cama que te espero noite/ e enquanto o diabo me não liberte/ não se perca e me perca este fito –/ meu frágil coração de anjo e bruxa/ reclama a quatro patas teu vendaval/ de carícias e saques os teus/ clarins de guerra.”; “Na minha extrema e endiabrada/ vulva de prazeres e contrições/ convulsiva vulva de frémitos/ redivivos e onde de luxúria e raivas/ vi nascer e morrer deus e o diabo/ vergas de sal cegas de furor/ geografias do infame do insólito/ e gemas do mais familiar decoro modulei os diapasões e/ fiz do impossível/ meu perdão”; ”Sei que no antes/ a meio e no final/ de cada assalto serei eu/ quem te estrangula e/ serás ínfima expressão do teu/ cadastro enquanto vista de cima eu sou/ o mastro e tu por baixo/ a vela”.

Lee-Li Yang foi um heterónimo do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, tal como os outros dois nomes mencionados (os seus amantes); um raro heterónimo no feminino, como posteriormente só me lembro com a Marichiko, uma jovem poeta japonesa que, em 1978, o americano Kenneth Rexroth (depois de ter feito várias antologias de poesia clássica japonesa) inventou, ou, em 1998, ou com Violeta C. Rangel, a prostituta espanhola que cavalgou uma centena de poemas do andaluz Manuel Moya.

02/04/17

Fascinam-me as pinturas de batalhas. Nos anos 90, vi uma enorme exposição de pinturas de batalhas no Prado, da qual nunca me arrependi o suficiente por não ter comprado o catálogo.

Procurando na net por um dos magníficos do género, Alphonse de Neuville, descubro que um dos seus quadros mais célebres, La Bataille du Cimetière Saint-Privat, é propriedade do Musée des Invalides, em França. Fascina-me este humor, igual só o das térmitas quando sabem a família em férias.

03/04/17

Assinei contrato para o meu terceiro livro de ficção a ser editado no Brasil, mas noutros países nada. Afinal, o que são e como são os leitores da estranja?

Não me imagino lido em inglês. Uma vez recebi um postal de Miami onde apenas constava, redigido em espanhol, “Me ha gustado mucho!”, e assinava um Chris (desconheço quem seja, se é macho ou femea), que não sei se me encontrou na esquina de um verso se nuns lavabos, e após anos a matutar, tanto a jusante como a montante, o meu sono ficou mais inclinado. Bom, e escreveu-me um professor de Oxford, “full of urgency”, ou algo semelhante. Quando lhe respondi, a carne aparatosa do silêncio impôs-se.

Também em francês os meus castanheiros nunca floresceram. Falo dos bonsais que cultivei em vários poemas e que já me saem em ramadas pelos bolsos, sem que um gascão se apiede e traduza. Fazia grande empenho em ver como se traduzem os meus bonsais na língua de Voltaire, mas continuo interdito, desde que o meu tio Manuel Domingues, emigrante, se perdeu no metro de Paris, estonteado pelo tufo de pêlos que uma normanda exibia nos sovacos e a minha tia amaldiçoou toda a família por várias gerações. Adoraria que me calhasse em francês (como ao italiano Sanguinetti) um tradutor com o apelido Marchand-Kiss.

Em flamengo tive fortuna e parece que foram muito elogiosos mas o meu entendimento da língua é uma locomotiva a vapor e antes de 2023 não conseguirei elucidar-me.

Em espanhol quis casar com a tradutora e o marido puxou da faca na liga. O outro tradutor, que soube depois ter um lábio leporino, não se mostrou tão dedicado.

Já o que me aborrece nos meus leitores chineses é que estejam sempre a descobrir vidraças rachadas nos meus poemas. Uma vez escrevi: “na China, as gotas que se formam na boca das torneiras são quadradas”. Também não é preciso acreditar em tudo o que um homem escreve. Recebi um milhão e meio de cartas, tive de mudar de casa. De outra vez, num artigo, lamentei que na China nenhuma saia se levantasse até ao ilíaco, pois na altura em todas as representações as chinesas vestiam as calças do grande timoneiro – afinal, quantos pares de calças tinha Mao no seu guarda-fatos? –, e foi um “suhyung xiravirá”. Conhecem a expressão? Significa: uma gestão seca de uma explosão de fluxos, e foi a única expressão que me ensinou uma rapariga de Macau, que me engomou uma camisa num hotel em Braga e que voltei a encontrar em anos recentes como empregada do café Nicola, em Lisboa. Bonita. Ou será “hai’ti schirati’ctin”? Já me falta a lembrança?

Em brasileiro saí muito e por felicidade minha nunca me mexeram na sintaxe nem me meteram os móveis no tecto, como já vi a alguns autores e em outras pinturas de batalhas.

Não tenho tido muita sorte com as traduções mas se pensar que a minha amiga Maria Velho da Costa nunca foi traduzida (há maior crime?), aí dou-lhe um bigode. E, como garantia Montale, ”é possível amar uma sombra, sombras nós próprios”.

Ah, isto consola-me!

6 Abr 2017

Sinónimos de configuração moderada

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o labirinto cada vez mais laborioso da palavra entram formas de aparente refinamento gramatical mas que nada acrescentam ao já denominado estado das coisas. Vamos elaborando anglicismos, muitos, dado que os galicismos se perderam quase até à extinção, e angariando para a língua novas composições bastante intrigantes. Algumas, que com o Acordo Ortográfico e o manejar de várias línguas de uma “cintura” de códigos encriptados, assinalam a nova linguagem que vai definindo as suas regras, rasando já uma certa algazarra de Torre de Babel e, não raro, damos por nós a procurar compô-la na sonora formulação de algo que se entenda. Sabemos o quanto o som desenvolve o cérebro, muito mais que a imagem que o torna compassivo e sem a mesma alternância plástica.

Na torrente, na cascata, na sede, na turbulência da informação, no uso indeterminável de signos linguísticos, no buscar de interjeições que despertem tudo em nós, quase não temos alucinações de outra ordem senão auditivas, que eram também muito comuns nos profetas: todos eles ouviam coisas, chamamentos, mensagens, todos tinham a informação disponível por meio da oralidade de uma voz que lhes ditava e mandava fazer coisas, o que se via não era demasiado relevante, ao ponto da própria voz de Deus ser apenas isso – uma voz. Moisés tinha de tapar o rosto, a voz era tudo, e ela indicava numa língua o Verbo que estes homens diziam escutar.

Sempre que a imagem era referenciada ela aparecia-nos não tanto como transcrição mas como sonho. A visualidade era o que se relatava dos sonhos; ora os sonhos são mais abstractos do que a provável e extraordinária voz de Deus. Dir-se-ia que a legenda da nossa época é desmesurada, dado que a palavra serve agora a imagem como se de uma versão do dizer e da comunicação se tratasse. E pode ser entendido como a agonia de uma componente linguística face ao martírio de ver a todo o instante, e, o não ser-se mais capaz de um estreito espaço onírico que se recrie em nós como necessidade estrutural.

Mas dado que a época está bastante eufemística vejamos alguns “ternos” exemplos:

Aborto – interrupção voluntária da gravidez.

Gangs étnicos – grupos de jovens.

Fábricas – unidades produtivas.

Analfabetismo – iliteracia.

Contínuos – auxiliares da acção educativa.

Operários – colaboradores.

Primeira e segunda classes – Conforto e Turística.

Crianças mal educadas – comportamento disfuncional hiperactivo.

Cego – invisual ( felizmente não há inauditivo para surdo)

Cábula, mau aluno – criança de desenvolvimento instável.

Eis então pequenos exemplos de designações improváveis mas que representam a compacta e estruturante capacidade que a linguagem produz para se travestir. São quase estruturas que se não forem pronunciadas com um certo ritmo podem produzir uma ressonância caricata face ao que anunciam. Mas esta extrema preocupação com as coisas simples fez torná-las estranhamente complexas, vindo da máxima proposição: simples é pobre! Pois bem, nada melhor então que enriquecer as designações, não tanto pela via criativa do barroco luxuriante mas pela via correctiva de um pensamento socialmente asséptico e polido.

Ora as pessoas querem adaptar-se ao último “grunhido” da espécie nem que seja para nele se inserirem, inserir estando, inserir ficando e, numa constatação crescente, vemos que elas depressa se adaptam mas algo fica sem muito significado: a carga vinculadora da palavra – ela deixou de fundar uma realidade – e a palavra mágica, a que curava, abria em nós canais, estreitava todo o ciclo dos encontros, foi rompida como se dela nem conhecimento haja. O que se diz, tanto pode ser aquilo como outra coisa. Ou diz-se e desdiz-se na mesma linha de pensamento, a linguagem não representa a sua origem primeira: ser um pacto que acrescente ao Homem mais Humanidade. A linguagem deixou de servir a causa, esse sopro primeiro, agente divino em nós, por isso que falhar para com ela seria a verdadeira falta de cada um.

Perdendo o seu dom maior creio que se pode pensar na corrupção da estrutura fonética tocada por funções que são agora tão vastas como os canos de esgoto gigantes das Nações. No meio da cidade de Lisboa, aberta à Babel, os restaurantes escrevem não importa como os menus que os não importa quem hão-de tragar, em cada recanto se assiste ao improvável, e, a antiga solidariedade de grupo que num processo de oralidade gratuita alertava o outro, dissipou-se. Nem uma “ASAE” linguística passa por ali!

As modalidades reformistas deviam ter tido sensibilidade inventiva para uma nova alvorada de tratamento compensado para as novas classes que saíram da mordaça dos séculos. Eles que fizeram as leis e aplicaram-nas, com muito se perderam, e creio mesmo que o grande cansaço mental a que parecem estar sujeitas se deve à ânsia de se adaptarem ao inverosímil que passa a ter carácter de modelação imediata. Nunca tanta gente se entendeu tão mal em locais estreitos como a vida pessoal e nunca o discurso esteve tão dirigido para os mesmos indicadores de interesse que são a economia e a diversão: ora são áreas onde a linguagem se perde caso não haja uma vigília muito grande e uma atenção permanente.

Creio que se deixou para trás aspectos como a retórica que o Direito possuía mas que a máquina de fazer advogados, engrossando o manto engordurado da Justiça, não deixa. E não tenho dúvida que se queremos que alguém fique derrubado isso se fará por uma certa oralidade onde falta a coragem a qualquer condenado para escutar o veredicto. Com tão pouco atraente panorama público liquidamos os dias pondo-nos em silêncio ou então tentando escutar de forma parcimoniosa o que cada palavra quer dizer e mesmo que não queira dizer nada e mesmo que a ponhamos nos locais e formas mais desaconselháveis à nova oralidade, elas podem ser benéficas e transparentes, elas podem fazer-nos bem. Há cada vez mais sons que nos matam, as imagens são mais fugazes e matam tão menos que podemos ver atrocidades de forma natural.

Terrorista é uma palavra que evolui… muitos são assassinos apenas e em cada um existe uma natureza bastante organizada. De fora parece-nos “comportamento sociopata desviante”, aqui convém não ser tão eufemístico dado que nos pode literalmente cair em cima em toada gigantesca. Apelá-los-íamos de “monstros” mas todos os dias existem homens que matam vizinhos, mulheres… o país transformou-se num campo de batalha quotidiano a que de forma bastante concisa se aplica a expressão: carniceiro.

Seria então sinónimo, vigília permanente, de separação: guardar distância do “coro dos loucos” que, numa ânsia de se livrarem do mal de ser, se adensam em ritmos de conversas desenfreadas, intermitentes. Seria este sinal o signo da nova consciência, o reverter ao silêncio esta esfera da psicótica alucinação de termos, do que nos explicarem em todas as direcções sem o mandato prévio do estritamente necessário, mas isso, esvaziaria talvez ainda mais a onda de choque que é a rede dos discursivos. Dorme-se mal porque não se sonha, o sonho paralisou e sem determinadas funções ficamos exangues. Inventar não é mentir nem adulterar o real: é acrescentar ao real outra substância e isso é o trabalho criativo que não deve recriar uma só das nossas inferiores fantasias. Mas como as esferas foram ameaçadas por roedores de fazeres à solta, nós prendemos as hastes a outras fontes, não vão elas ser esmagadas pela inconsequência de certas finalidades. E mais uma vez só o poeta poderá escrever isto:

 

Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não ervas. O vento é fresco; sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que o vento. Tudo o que sei já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o caminho. Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o próprio caminho. E com as palavras de vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.

António Ramos Rosa

6 Abr 2017