José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasBoémio macaense suicida-se em Paris [dropcap]C[/dropcap]om um tal título, penso não faltarem leitores interessados na história, hoje aqui com o seu início, mas não se apresse a concluir que tal aconteceu há pouco tempo. Não, o suicídio de Albino Francisco de Paiva de Araújo ocorreu a 8 de Novembro de 1872 e irá servir-nos para mais tarde podermos introduzir algumas famílias macaenses do século XVIII e XIX. Neste artigo, ainda não iremos focar esta personagem, que em Paris se suicidou, carregado de dívidas e rechaçado pela sua esposa, Madame Paiva. Nascera ele em Macau a 19 de Maio de 1824, segundo o Padre Manuel Teixeira, sendo filho único de um português nascido no Brasil e a mãe, proveniente de uma família rica macaense. Esta história mereceu a atenção de alguns escritores portugueses, como Camilo Castelo Branco, Bulhão Pato em ‘Memórias’, Dr. José de Campos e Sousa no opúsculo ‘O marido de Madame de Paiva’, Pinto de Carvalho em ‘Lisboa de Outros Tempos’ e do historiador Padre Manuel Teixeira, que se focou mais na mãe de Albino Francisco de Paiva de Araújo. Não faltaram ainda estrangeiros, caso de Voltaire, que levado pelo Fr., o crê frade saído da sua comunidade religiosa e lhe chama Fr. Araújo de Paiva. Também jornais estrangeiros sobre ele e a esposa escreveram fantasiosas histórias, assim como muitos são os livros que tratam acerca da vida de Mad. Paiva. Camilo Castelo Branco usou este título, Mad. Paiva, na crónica que dá início ao livro Boémia do Espírito. Pelas palavras deste grande escritor português, nascido em 1825 na antiga freguesia dos Mártires, actual Santa Maria Maior em Lisboa e se suicidou no ano de 1900 em S. Miguel de Seide, hoje freguesia de Seide, concelho de V. N. de Famalicão, ficamos a saber sobre a atenção com que foi seguindo a vida de Branca Lachmann. A tal Madame Paiva, marquesa, mais tarde, após o terceiro casamento, condessa Henckel de Donnesmark e que fora casada em segundas núpcias com Albino Francisco de Araújo. Refere Camilo, “Eu conhecia dos escritores de há vinte e cinco anos a opulência de mad. Paiva.” O facto é que Paiva de Araújo era de família rica e com esta polaca e outras como ela dissipou toda a sua fortuna Eug. Palletan na sua Nouvelle Babylone, derivando com falsa dedução a magnificência das meretrizes em sorte da corrupção de Paris, cita como exemplo a escada de onix do palácio de mad. de Paiva na praça de S. Jorge. Arséne Houssaye, em um dos tomos das Courtisanes du Monde, diz, com estas ou equivalentes palavras, que as senhoras honestas paravam deslumbradas quando viam passar no seu break mad. de Paiva, ao sol de Bois, faiscando as suas constelações de brilhantes. Ele, como era sua visita, disfarçava-se com um pseudónimo. Certo jornal conta que os seus palácios eram o confluente dos homens mais celebrados em artes e letras, velhos e moços, o bibliófilo Jacob, Emile Girardin, Theophilo Gautier, etc.. Não sei se algum destes era um dos grisalhos académicos que bebiam champanhe da tina em que ela se lavava. Não admiro. O asceta Lamennais beijava as plantas de G. Sand, e parece que ela, agradecida, descalçava as meias de seda neste acto devoto.” A madame Paiva Camilo Castelo Branco, na crónica Mad. Paiva publicada pela primeira vez no Jornal da Manhã de 13 de Julho de 1885, inicia-a, “A imprensa jornalística parisiense, menos atarefada nos assuntos grávidos da política, da indústria e da sã moral, comemorou, há dias, o trespasse de uma mad. de Paiva, marquesa de seu apelido, e em terceiras núpcias condessa Henckel de Donnesmark. Condensando a necrologia encarvoada de sujos episódios, dizem que esta dama Branca Lachmann, polaca de nascimento, deixara em Moscovo o marido, um alfaiate discreto que lá se ficou na sua terra alinhavando fundilhos de astrakan, enquanto a esposa airada, em Paris, penetrava nas opulências da vida dissoluta pela porta da miséria, que desculpa muitas dissoluções. Ligada primeiro a Herz, pianista célebre, sob a falsa estampilha de esposa, chegou a sentar-se entre as duquesas nos saraus de Luís Filipe. Depois, desvelado o segredo da sua concubinagem, foi expulsa afrontosamente dos círculos também falsamente carimbados de honestidade, e fugiu para Londres, deixando ou levando o pianista. Aqui, ameaçada por uma segunda catequese de fome, ajuntou a sua fulminante formosura um vestuário de espaventos, sentou-se langorosamente num camarote de Covent-Garden, e fez que o rio Pactolo, representado por alguns milords, lhe lambesse os pés com as suas ondas de ouro. Enquanto a onda não fazia a ressaca do costume, deixando-lhe sobre os pés as suas salsugens (N. detritos que flutuam próximo dos portos) imundas, a aventureira de New York regressou a Paris, aí por 1850, e, no ano seguinte, matrimoniou-se, já viúva do alfaiate, com um marquês da primeira fidalguia portuguesa, Fr. Araújo de Paiva, diz o Voltaire. Este marquês que pelo Fr. parece também ser egresso, suicidou-se daí a pouco, afirma outro jornal. A viúva, 40 vezes milionária, casou em terceiras núpcias com o conde Donnesmark, em 1875, ano que saiu de Paris para o seu castelo na Silésia, onde morreu, há dias, com 72 anos, dizem uns, e com 58, diz o marido.” Quem era Branca Lachmann? Com este título o Padre Manuel Teixeira refere, “O romancista encontra-se aqui de mãos dadas com o historiador. Que diz a história sobre esta aventureira? Branca Lachmann era filha bastarda do Grão-duque Constantino, da Rússia, sendo uma judia polaca. Foi favorita do Sultão de Constantinopla, espia da Alemanha e veio a casar com o alfaiate Francisco Hyacinthe Villoing. Abandonando o marido, amancebou-se com o célebre pianista Herz, começando então a frequentar a corte de Luís Filipe. Descoberta a sua mancebia, refugiou-se em Londres, onde a sua beleza fascinou os nababos britânicos, que lhe fizeram a corte, entre os quais o famoso Stanley. Tendo falecido o seu marido Francisco Villoing, Branca consorciou-se religiosamente, na capela dos Irmãos da Doutrina Cristão, em Passy, em Paris, com Albino Francisco de Paiva de Araújo, a quem ela apresentava como Marquês de Paiva. Alegava que este gentil-homem, decaído do seu primeiro esplendor de melhor aristocracia portuguesa, a procurara no Palácio de Pont Chartin. O facto é que Paiva de Araújo era de família rica e com esta polaca e outras como ela dissipou toda a sua fortuna. O casal de boémios desfez-se. Tendo obtido do Santo Ofício a anulação do seu casamento com o <Marquês> de Paiva a aventureira consorciou-se pela terceira vez com o Conde Henckel de Donnesmark, rei do cobre da Silésia.” Esperamos ter despertado a curiosidade para o próximo artigo e até lá uma boa semana. Para quem quiser aproveitar e ler o livro Boémia do Espírito (Porto, 1886) de Camilo Castelo Branco, saiba existir apenas um exemplar nas bibliotecas de Macau e esse encontra-se na do Leal Senado e pertenceu ao antigo Liceu de Macau.
Paulo José Miranda Em modo de perguntarMaria João Cantinho: “Não quero ser nada” [dropcap]T[/dropcap]ens uma obra dividida pelo ensaio e pela poesia, e ambas reconhecidas. Gostava que falasses acerca do modo como entendes cada uma delas, no teu modo de escrita, e também em relação aos outros, ou seja como vês essas escritas para além da tua. Creio que sou mais reconhecida no ensaio do que na poesia, pois tenho publicado poesia em editoras discretas. Hoje, a ideia de fronteira, relativamente aos géneros, está mais esbatida e temos uma tradição fortíssima de poetas que são ensaístas ou vice-versa, o que mostra que a escrita não pode ser tomada de uma forma monolítica. A concentração da poesia (e a sua exigência de rigor e de contenção) é compatível com a respiração do ensaio. Eu diria que são passagens que se abrem (ou se fecham) e que a poesia bebe nas margens do não-dito, do não-explicável, do que não é racionalizável, do imediato, da pulsão, ao passo que o ensaio procura a claridade e a explicação ou, pelo menos, a sua tentativa. Temos uma tradição forte, na poesia contemporânea portuguesa, de autores que são também ensaístas, estou a pensar no Luís Quintais, mais pertencente à nossa geração, mas também em poetas como António Cabrita, Luís Miguel Nava (cuja precoce morte não nos deixou senão um conjunto breve de ensaios) Manuel Gusmão, Helder Macedo, o jovem poeta Ricardo Gil Soeiro (a meu ver o caso mais consistente desse paralelismo nos escritores mais jovens) e Gólgona Anghel, já sem falar do genial Jorge de Sena, Joaquim Manuel Magalhães, entre outros. Mas parece haver ainda um certo preconceito, de ambos os lados, em relação a tal. O que une o ensaio e a poesia, neste caso concreto, é essa capacidade de leitura e de interpretação das potencialidades da linguagem, o conhecimento profundo da própria tradição e dos autores. De uma forma geral, os ensaístas são grandes leitores e isso faz muita diferença (a meu ver) na poesia. Não entram nela de forma ingénua e desavisada. Devo dizer-te, no entanto, que a poesia portuguesa, um pouco contrariamente ao que se diz, está muito viçosa. Não quer dizer que seja tudo igualmente bom e o tempo há-de acabar por separar as águas, mas entre tanta coisa que se publica, neste universo de pequenas editoras, como a Douda Correria, a Língua Morta, a Averno, a Mariposa Azual e muitas outras editoras pelo país, cuja distribuição nos dificulta o acesso (estou a pensar nas editoras do Porto e de Coimbra), há muita coisa de qualidade. Em movência, proveniente de vários filões. Muitos poetas jovens que estão a fazer um excelente trabalho e é preciso esperar a evolução deles para avaliar a qualidade. As tertúlias, o trabalho militante de lugares que já são hoje de «culto», como o Irreal, o Povo, terças-feiras clandestinas, etc., são notáveis pela esperança que vieram criar para a jovem poesia portuguesa e fomentam o diálogo e o espaço propício à criação. Respeito muito quem trabalha assim, de forma militante, à margem das «facilidades» das grandes editoras, que sempre tiveram um trabalho mais facilitado. A poesia é hoje, mais do que nunca, um espaço de resistência, de contra-poder. E isso é profundamente político. Outra das tuas actividades é a de coordenadora ou directora de um novo projecto cultural online chamado Caliban. Como surgiu essa ideia e como está a correr? Não gosto muito de escarafunchar em histórias tristes, tanto mais que a Caliban é a história muito feliz do que se faz com finais tristes. Não gosto do termo directora, é demasiado formal para o meu gosto, prefiro o de coordenadora, é mais feliz e mais justo. O nome partiu desse engenhoso poeta que ambos conhecemos, o António Cabrita, mas houve muita gente amiga que se associou imediatamente ao projecto, com muito entusiasmo, também do lado brasileiro, amigos como Marcia Tiburi, Rubens Casara, Bartira Fortes, Renato Rezende. Os outros foram chegando, para utilizar uma expressão brasileira. Energia positiva gera mais energia positiva. A Caliban é lida em Portugal e no Brasil. Creio haver ainda alguma suspeita num certo meio intelectual português, que torce o nariz ao online, mas que nos lê «às escondidas», o que me diverte. É bom sinal. Todos os dias se somam novos seguidores e num universo tão pequeno como é o da literatura (não é um jornal genérico), com conteúdos ligados à arte e à literatura, à poesia, crónica, etc., não é de esperar que haja uma adesão maciça. Mas somos lidos nas comunidades portuguesas e recebo respostas muito positivas de quem mora longe e não tem acesso ao que se vai fazendo por cá. Creio que teremos de abolir este preconceito contra a revista electrónica (que o Brasil já não tem, por exemplo, ainda que ame o suporte de papel) para vencermos a resistência do leitor bem-pensante. As redes sociais, por seu lado, ao facilitarem a divulgação do projecto, têm sido óptimas para a sua divulgação, pois até agora, ao fim de seis meses, só uma rádio se interessou por nós. Mas estamos de saúde, é um projecto democrático e que pretende, antes de mais, dar voz e dar a conhecer quem não passa no crivo dos jornais e das revistas literárias, mas que, nem por isso, tem menos qualidade. Temos colaboradores (que têm tanta autonomia como eu ou o Cabrita) portugueses e brasileiros (e deste lado é preciso dizer que contamos com ensaístas e poetas extraordinários, como Alberto Pucheu, Renato Rezende, Luciana Brandão, Ney Ferraz Paiva, Vicente Franz Cecim, Marcia Tiburi, Rubens Casara, Marcio Seligmann-Silva, Danielle Magalhães, Yasmin Nigri, Bia Dias, etc.) que tão generosamente se dispõem a colaborar. É o tipo de projecto que fundas e deixas crescer livremente, espero que em breve possamos conseguir, de alguma forma, financiar, se houver interesse. Tens um doutoramento em filosofia. Como entendes essa relação, em ti, entre a filosofia e a poesia? É uma relação de profunda inquietação. Não que acorde angustiada a pensar em problemas existenciais todos os dias (os meus são mais prosaicos como pagar as contas, etc.), mas a filosofia esconde-se nos interstícios de tudo o que fazemos, uma espécie de animal intruso e invisível, que reclama o alimento, mas que também nos indica algo a partir dela, dessa necessidade de compreender, dessa paixão autofágica, como sabemos. Faço parte de uma linhagem poética que consideraria metafísica, não tenho nada a ver com o que se faz (e que eu respeito) hoje, a poesia do quotidiano, sou sempre movida pelos meus autores, muito atraída pela uma tradição mística, mas sem me deixar vencer por ela, nesse sentido de querer ser uma mística. Eu não quero ser nada, deixo que as palavras me guiem, o meu prazer é o da descoberta, esse trabalho da contenção da linguagem e da sua força, um trabalho de homenagem permanente, de dívida para com os meus autores, os meus temas. Não sei se o doutoramento tem aqui algum peso, pois eu nunca penso nisso nem quero que a erudição transpareça em exercícios fúteis de estilo, isso não me interessa para nada. Eu diria que a poesia me mantém à tona dessa inquietação filosófica. Sem a escrita acho que não vivia bem, não sei sequer se sobreviveria, nunca me aconteceu estar longe dela, desde que me lembro. Que projectos para este ano? Para já, uma tradução, que penso acabar este mês. Mas tenho um romance, que sairá em Maio, pela editora Deriva. Depois, vou atirar-me a um livro de ensaio, que conto publicar na Documenta/Sistema Solar. Só estou à espera de ter tempo para me consagrar a ele. E o resto vai acontecendo, é o trabalho académico, os textos ensaísticos que vou publicando em revistas, as conferências planeadas, um congresso internacional que estou a co-organizar, sobre memória e arquivo, com os meus ilustres colegas da Nova (Comunicação e História de Arte) e da Clássica (Centro de Filosofia). E a Caliban.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA alma não se tem, faz-se! 16/02/17 [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]orreu Tzevan Todorov, o búlgaro exilado em Paris, um humanista com intuições de valor. Lembro-me desta: “O público prefere ler um romance a uma novela, prefere um livro longo a um curto, não porque ser longo seja em si um critério de valor mas porque o leitor, se lê uma obra curta, não tem o tempo de esquecer que se trata de literatura e não da vida”. É bem visto. Nos últimos anos, ele que começou como teórico de literatura, fazia uma cruzada contra os perigos em que a mesma se encontrava. E que se resumiam ao equívoco de que os programas de literatura nas escolas se centrem mais nos manuais que pretensamente ensinam métodos para ler os livros do que nos romances em si; sistema que, com razão, ele achava danoso porque só aumenta a rejeição à leitura. Talvez pelo mesmo motivo que não se explica o sarampo pelo telefone: ou se contrai a doença ou não se consegue imaginar a experiência da doença no corpo. 20/02/2017 Os poetas, coitados, estão pelas ruas da amargura, mas de vez em quando acertam. Ou sempre acertaram? Para Keats os homens tinham “chispas de divindade” no seu interior mas não seriam “almas” até que adquirissem uma identidade – o que exigia a descida de cada um a si mesmo. E assim, numa carta para os seus irmãos, chamava ao mundo o “vale fazedor de almas”. Nascíamos assim incompletos, num estado paródico – portadores de um vislumbre de alma, sob condição de a “fazermos”. Muito diferente de já a termos formada e de podermos corrompê-la à vontade. Estimo que se fosse ao contrário, como Keats preconiza, algumas coisas melhorariam. O Mugabe (que, com 93 anos, se mantém no poder desde 1980 e destruiu o país), por exemplo, não diria numa entrevista, como aconteceu esta semana, que não sai do poder porque não encontra “um sucessor aceitável”. Ah, e também se congratulou com as políticas nacionalistas de Trump que, jura, ecoam a sua posição de “Zimbabwe para Zimbabweanos”. Afinidades electivas. Fosse como defendia o Keats e o Mugabe a esta hora estaria a aprender acordeão debaixo de um baobá, a ver se ainda sintonizava com a música das esferas. Creio que a África Austral ganhava com isso. 21/02/2017 Não deixa de ser trágico e patético que o senado americano aprove a suspensão de uma lei que impedia pessoas com problemas mentais de adquirirem armas de fogo. Em nome da liberdade individual comete-se uma barbaridade em relação à sanidade mental comum, só para agradar ao lobbie pró-armas. Um negoçião. Grotesca, a atracção dos americanos pelas armas. Virá das cowboyadas? Têm para com elas um sentimento de estetas. Que é um esteta? O Moravia ajuda-nos: Alguém que tem uma visão exterior de alguma coisa. Quem vive por dentro um assunto, um pensamento, uma situação, nunca é um esteta. Um esteta considera belo, e talvez adore, algo que não conhece. Há escritores e poetas que cantaram a guerra, do lado de fora. Quem a viveu por dentro não a pode amar. Como não a amou Fernando Assis Pacheco, que escreveu um dos melhores livros de poesia em Portugal no século XX, “Catalabanza, Quilolo e Volta”, de 1972, mas de que poucos falam porque ele não deixa que a guerra não doa: «(…) Eu narrador me confesso./A guerra lixou tudo.// É curioso como se bebia/ água podre./ Não falando no vinho, muito./ Durante os ataques doía-me um joelho./ Estou pronto, pensei./ Ninguém me conhece./Os ratos são felizes.//Vocês não sabem como se perde a tusa./ De resto não serve para nada./ A melhor noite que eu tive/ em Nambuangongo foi com uma garrafa de whisky./Sei fazer versos mas doem./ Ninguém me conhecia dentro do arame.// O único joelho decente de Angola/ embebeda-se no Norte./ Vou para escrever e paro./ Deixei-me disso./ Sou feiíssimo ao espelho./ Recordação súbita duma litografia/ castelhana: o garrote./ Não vos perdoo.// Suponho que a violência tem os dias contados./ Se não é assim é parecido./ Eu vi-os sair do quartel/ com as alpergatas nas últimas./ Vai ali o Ocidente, escrevi./ Vai beber água podre.// E depois há um que pisa uma armadilha./ Houve um que pisou uma armadilha!/ Sei fazer versos. Ou seja: nada./ O coto em sangue./ Neste ponto o narrador sofreia a imaginação./ Ninguém disse que me conhecia./Conheço um rato, está em cima duma viga/. Serve para a gente olhar.» Um dia destes mais um doido entra numa escola em Orlando e mata 13. Nem tudo pode ser olhado só pelo prisma dos negócios. Urge que volte a ter vigência o que para a maioria das sociedades humanas foi uma trivialidade durante séculos: a submissão das actividades económicas a critérios morais. 22/02/2107 Desloco-me ao Instituto Camões, em Maputo, para a inauguração de uma bela exposição de trabalhos de arquitectura de José Forjaz e à volta para casa apanho um chapa e sento-me ao lado do motorista. Este observa-me, estala os lábios numa exclamação, morde mais o palito e atira: Como está o Bud Spencer? – lança uma gargalhada e justifica, piedoso: Ya, mulungo, és a cara chapada do Bud Spencer. Terá querido dizer Buda Spencer? Não, ele articulou o nome correctamente, sem o a final. O Spencer de Trinitá (um mega-sucesso local nas vendas de dvds piratas). Eis-me catapultado para a minha infância de grunho do mato, ignorante e irresgatável. A fita que levou o Sergio Leone quase ao desespero quando a viu, agoniado por perceber que o western spaghetti havia desembocado naquele enchumaço de peidos e bofetadas. Bud Spencer, não sei se hei-de rir ou chorar. A partir de tal parecença, vejo-me fora do baralho de qualquer apreciação esteta feminina. Rio. O irónico é que na semana passada vi um filme do Ermano Olmi em que o Bud Spencer faz de pirata envelhecido – um pirata com assomos intelectuais. Também tu, Brutus! – perguntei-lhe.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasQuatro clássicos, quatro espelhos 看中国人的四面镜子 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s quatro clássicos chineses são: O Sonho da Câmara Vermelha《红楼梦, Viagem ao Ocidente 《西游记》, Margem das Águas 《水浒传》 e Romance dos Três Reinos 《三国演义》。 Quatro romances. Quatro espelhos de uma realidade chinesa genuína e verdadeira. O Sonho da Câmara Vermelha (publicado em1791) representa o bom gosto e a elegância. Através da poesia, da música e das palavras, a cultura clássica chinesa é apresentada nos seus mais variados aspectos: arquitectura, gastronomia, culto dos jardins e arte. Quem se considerasse um literato haveria de discutir O Sonho da Câmara Vermelha, o que faria dele um Hongist. O Presidente Mao Tsé Tung foi um Hongist. Há quem pense que a China poderia continuar a existir sem a Grande Muralha, mas não sem O Sonho da Câmara Vermelha. Margem das Águas (compilado no séc. XIV) representa o culto chinês das boas maneiras, especialmente da virtude. Façamos o que deve ser feito. A ajuda deve ir para onde é precisa. A virtude é o pilar espiritual da cultura chinesa. Nenhum dos heróis de Margem das Águas dá importância aos bens materiais. Não podem ser comprados ou tentados, nem mesmo por belas mulheres. Os heróis chineses têm um déficit de genes românticos. Viagem ao Ocidente (publicado no séc. XVI) conta as aventuras de um monge budista e dos seus discípulos, mas não tem nada a ver com o Budismo. O sumo sacerdote do templo budista instiga as nossas personagens para uma corrida ao ouro, como faria qualquer “pecador” ganancioso e tomado de apetites vorazes. Não respeita o Taoísmo pois considera os monges taoistas desumanos e capazes de provocar o mal. Os chineses rejeitam todas as formas de religião. As convicções religiosas devem assumir forma palpável e trazer vantagens materiais. O romance também apresenta uma visão crítica, se não cínica, das qualidades chinesas; quem é (ou não) competente para o quê. Romance dos Três Reinos (publicado em 1522) fala-nos da China como nação unificada. O romance ignora praticamente os acontecimentos do dia a dia, as relações familiares ou as questões éticas. O autor estava centrado na governação, ou seja, na sobrevivência da China como nação. A China acima de todas as coisas. Eu diria que, “aspirar pela paz e pela unidade” é uma componente essencial da psicologia chinesa, inscrita no ADN deste povo. A “Política de Uma Só China” não é uma invenção dos comunistas.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasVencer a gravidade Possolo, Lisboa, 11 Fevereiro [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]elder Macedo veio lançar o estimulante «Camões e Outros Contemporâneos» (Presença), mas ainda teve tempo de ir ao Obra Aberta e à Escola de Escritas do mano Luís Carmelo, onde dissertou sobre a demanda que fez dele ensaísta, ficcionista e poeta. Demanda em busca de si, com passagem pelo Gelo e pelo Império, e do outro, sobretudo o obscuro feminino. Helder transporta-nos ao avesso dos orgânicos movimentos da inteligência que podemos ver em acção, putos fascinados na torre do relógio. Algumas traduções bíblicas, descobriu ele, investiam na palavra moça o sentido de alma. A outra luz se lê o «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», de Bernardim. De corpo e alma, partiu ela. De alma e coração, fico eu a ouver Helder Macedo. Horta Seca, 13 Fevereiro A Companhia Nacional de Bailado, ainda sob direcção da Luísa Taveira, foi convidando um grupo heteróclito de poetas para dançar. Quer dizer, para se sentarem a ver. Chegou hoje a antologia de inéditos da temporada de 2016. O inevitável desequilíbrio em nada mancha a boa ideia, depositada agora nas cadeiras de quem arrisque deixar-se impressionar pelo sublime esforço. De Fernando Luís Sampaio, ressoam-me «as canções mais tristes/do meu tempo» (…) «Canções queimadas por mil vozes, onde a língua se precipita». E tocou-me a agreste melodia de Margarida Vale de Gato atirada à filha: «Peço de ti o que não te ocorre perguntar e tenho/para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo./O mundo está cheio de mortos que não chegam/a cair, o mundo está cheio de mortos que são vivos/com pouca sede (…)» Pelo meu lado, lá consegui erguer a fio-de-prumo tristonhos versos, depois de horas no escuro a ver corpos erguer-se muito acima. De si e destes dias rasteiros. Teatro Nacional, Lisboa, 14 Fevereiro Era questão de tempo. Estou sempre a perder o combate com a agenda e costumo atirar-me para cima dela na velha táctica de peso morto para suster a vaga de golpes, mas desta vez ultrapassei uma linha qualquer. Ontem vi-me à porta de um Nacional na semi-obscuridade das segundas-feiras. A conversa aprazada entre Carlos Fiolhais, Miguel Loureiro e Gonçalo Waddington, em torno de «O Nosso Desporto Preferido – Presente», há muito estava marcada para hoje, São Valentim. Como bem notou o arguto e divertidíssimo Carlos, melhor dia não haveria tendo em conta a proposta radical da peça para alcançar civilização de tipo superior: a abstinência sexual. Precisava, portanto, vencer, qual bailarino com a gravidade, a lei da física que me impedia de estar ao mesmo tempo em dois sítios diferentes, aqui e no lançamento do Helder. Não consegui, pelo que fiquei a ouvir o Miguel ler na perfeição excerto dos mais interrogativos, em páginas de torrencial poesia onde ecoam os gregos, essa natural raiz das coisas. A língua é desbragada e precipita-se. Uma cadeira arma-se em personagem principal. Temos deuses a insultar-se e um Michel, que só pode vir de Houellebecq. Ninguém como o Gonçalo usa em palco a ciência como instrumento de perguntar futuro, no caso a possibilidade de livrar a espécie humana das necessidades básicas. O Carlos soltou leitura desconcertante e erudita, em torno do cientista enquanto ladrão do fogo dos deuses, que será hoje a decifração final do código genético. Mas também na qualidade de pateta aprendiz de feiticeiro. Em ciência, a utopia acaba quase sempre em distopia, disse ele que sabe. Na peça, a experiência tem tudo para acabar mal. Por aqui, a conversa continua: é uma tetralogia… Convento de Jesus, Setúbal, 15 Fevereiro Não tinha ainda atravessado estas portas manuelinas para o interior da justa recuperação de Carrilho da Graça, dado voltas ao claustro onde Zeca e tantos outros cantaram, mirado as gárgulas a quererem soltar-se dos calcários. Detalhes, neles se encontra Deus e um espinho da coroa de Cristo ou um osso de S. Sebastião. Queria tanto tempo para me perder! Somos senhores de grandes tesouros e deles tão pouco usufruímos. Perderia horas prestando vassalagem a Santa Gerturdes, esta representação do mistério em corações inflamados, o olhar desejando a luz, os lábios ardendo em oração. Ainda inebriado pelas visões, acabo em excelente companhia a usufruir de um divinal ensopado de pata-roxa, servido pelo castiço Luís Rebelo, n’A Casa do Peixe. Prosaicamente. Horta Seca, 16 Fevereiro Faz toda a diferença ver os originais do António Jorge Gonçalves para este seu livro que irradia «o esplendor dos corpos que dançam/Na órbita da morte», como escreve o Fernando Luís no seu poema. Em folhas de banal espessura e formato, desenhou a marcador em negativo. A cor acontece em folha separada com a transparência da aguarela. A combinação destes elementos aproxima a linguagem da gravura, mistura de tempos e tradições, fundo exacto para a dança da morte que coreografou. Cada imagem ganha peso de símbolo, abrindo para múltiplas leituras em jogo de espelhos. Mais um caso único, que merecia ser lido fora das fronteiras estritas do seu género. Na inauguração, tivemos casa cheia, sobretudo com as gargalhadas de Novo de Matos, o desenhador de bisturi que lhe salvou a vida. «A Minha Casa Não Tem Dentro», mas tem uma menina que desenha. E uma morte que anda com ela de comboio. Menina e morte as trouxeram de muito longe de regresso ao pai. S. Luiz, Lisboa, 18 Fevereiro Nisto, estou em palco rodeado de crianças a perceber que as minhas histórias para as mais disparatadas infâncias nascem do esforço de tudo e mais alguma coisa em ser outra coisa. Outra coisa um pouco mais que tudo. No Poesia-me, da Inês Fonseca Santos, circulou como arrepio a perguntinha: que queres tu? Pois, se o pretexto era o «Querer Muito», que tanto deve ao camaleónico talento do André da Loba. Às tantas, sobrou para mim. Costumo dizer a verdade do «astronauta», que me acompanhou longe no tempo, mas naquele instante quis ser «bailarina». Sem que tivesse dado por isso, sentada aos meus pés estava uma querídissima, de tutu e tudo. Ofereceu-se para dar lições, que começaram finda a sessão, ainda em palco para não perder minuto. Aprendi as três posições principais, mas não o nome dela. Tolo.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA tarde serena [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]rosseguimos calmamente num brando tempo que só tem anos e muitas ausências como companhia e, se a nossa vida iguala a vida de um outro ser vivente, é porém a nossa história que a assina como elemento único e triunfal, sem a noção de que vivemos por algo que valha a pena: as tardes, mesmo serenas, podem ser indizíveis abismos. Já não conseguimos aquela «Invenção do Dia Claro» nem aquela mãe que Almada não conhecera nos passa agora a sua mão pela cabeça onde em jeito de feliz instante fica tudo tão verdade! As mães dos homens têm uma realidade feliz quando passam a mão pelas cabeças dos seus filhos, cabeças que estremecem com a dor de épocas tão severas e a exigência de um mundo tão letal em cada um de seus pensamentos. Mas há quem nem tardes serenas no burburinho dos dias possa ter e dela tem consciência enquanto manifestação de serenidade. Há quem viva numa multitude de anseios tão continuados como se fora uma máquina operante no seio de toda a turbulência de forças que se anulam. Há seres muito desgraçados e que quase não entendem toda a vasta inutilidade de uma ordem social que os tende a projectar assim para o esquecimento inequívoco de si mesmos. Talvez que aqui não haja confronto ou projecção: o ser vive enfim a ordem do seu grupo como condição elementar e a vida é um roteiro de ínfimas possibilidades de autonomia e distinção. Vive-se num programa que acontece por dever e também um básico instinto de sobrevivência onde estão ainda inscritos os genes da fome. Os tempos da serenidade não serão aqueles cuja função seja abastecermo-nos mas, tão-somente, os de estar desperto sem casualidade alguma, sem esta autofagia que nos devora se a outros não comermos. Quem serena num período entre o nascer e o morrer, ainda aqui? Somos predadores e isso deixa-nos exaustos para retirar das tardes o bem-estar em outra forma que sabemos algures vir a ser capazes – sabendo pela mesma forma – de que não somos capazes ainda com esta forma. Se fazemos exercícios, auscultamos o que de nós é apenas um projecto sem a noção concreta dessa longínqua mudança. Em todo o caso, caminhar no tempo vai-nos desabituando-nos do movimento contínuo, porque o organismo se prepara remotamente para morrer: quando chegados, já deixámos o movimento num local tão longínquo que, por o termos esquecido, falecemos. Os antigos anacoretas do deserto não tomavam qualquer alimento antes do pôr-do-sol. Havia a ideia de que a combustão em pleno dia faria dos seus seres pessoas tristes e com súbitas angústias. As tardes deviam por isso ser amenas e de desejos carregadas para atravessarem a noite. Nela, não havendo matéria combusta em face dos solares raios, tudo lhes faria bem quando se afundassem nas areias do deserto. Estes homens viviam em condições absolutamente excepcionais e tendo em crer que o facto de não cansarem os órgãos e estando sem fontes energéticas alimentares durante o dia os tivesse predisposto a uma alegria e bem-estar que só os que interrompem o ciclo vital dão provas. As sociedades da abundância são altamente cancerígenas e a probabilidade de um contágio massivo implica cada vez mais a não permanência. Olhar o cancro gigante que tal como as economias se multiplicam por segundo em células e contaminam tudo, é sem dúvida um duro golpe na esfera da serenidade. Mais patético parece ser os que se passeiam com a doença por entre frases e amostras de partes “tratadas” é de facto um espectáculo tão degradante quanto para cada um que o contempla. Poder-se-ia pensar que as inúmeras populações reformadas usufruíssem de um espaço onírico, mergulhado já nas contemplações e na recusa ao imenso trabalho do movimento, mas não: elas movimentam-se para testarem a si e aos outros a evidência da sua destreza, mas os seus movimentos são tristes e ninguém consegue extrair daqui uma manifesta noção de bem-estar, correm tristemente, e ao vê-los, com seus fatos de ginásio, adensa-se-me uma angústia que não poderiam entretanto compreender. Depressa passamos para uma caricatura ambígua de criança e, sem nos lembrarmos da dignidade intrínseca daquilo que significou viver, os seres se entregam a uma orquestração que não é o local que o tempo talha para nós. A felicidade em torno de uma ideia aglutinadora resulta em bons encontros e intensificam laços entre aqueles que amiúde se contemplam numa intensa noção de partilha que pode bem ir desde um portão de jardim onde se arrozeira o muro que um amigo apara ou a uma leitura matinal como uma perdida oração de grupo. As formas de estar junto definem sempre o melhor do bem-estar. Chegados às tardes que serenam, ninguém, cujo merecimento conquistado seja um valor, deve arrastar a náusea do dever com horas marcadas para as actividades do dia. Dizia o velho anacoreta do deserto: “Nada é mais temível do que os movimentos desordenados que perturbam os corações.” Sem dúvida, e o exemplo está nos anciãos que o deserto amansa com suas finas areias e intempestivos ventos. Os arrebatamentos mergulham-nos no desregramento e não raro há uma certa bestialidade no escancarado sorriso das estranhas vitórias, que produzem sorrisos de morder, com placas de ouro fino onde se distende uma certa perversão… Somos tenazes quando sofremos, é certo, é uma compunção e isso arrasta-se mais que as coisas boas, é que a gravidade do mal nutre nas nossas consciências um efeito de expansão, quase nos esquecemos de situações fantásticas soterrados que estamos com tais pesares. Entre tão incipiente destino corre a maravilha, por nós, que carregados de outros não serenamos e, com tanta escolha, acontece-nos confirmar que não temos par. Talvez mesmo que uma das conquistas mais bonitas seja não ter opinião, preferências ou fazer julgamentos. A liberdade exige de nós a distância daqueles que a vão sempre buscar mais além. Por aqui, morre-se intranquilo. «Porém o aguardar, supondo que é essencial, fundamenta-se no facto de nós pertencermos àquilo porque aguardamos».
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasSingularidade e nada [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando chegamos ao Tártaro, aquilo que primeiro nos damos conta é da linguagem. Damo-nos conta de que ela existe como textura, como material, como algo que está diante de nós e é necessário apreciar, ou não, pois a linguagem neste livro está nos antípodas da linguagem do quotidiano, da linguagem que usamos no dia a dia, ainda que seja para expressar sentimentos profundos. O primeiro verso do livro mostra-nos logo isso mesmo: “É-se um pano impoluto / (…)”. Não estamos a falar do uso de palavras difíceis ou eruditas ou que a linguagem chegue mesmo a um hermetismo. Não. A linguagem é tão somente aquotidiana. A pergunta que agora faz sentido ser feita é: e esse aquotidiano da linguagem é somente um jogo retórico ou tem um sentido mais profundo? Parece que começamos a encontrar uma boa resposta com este verso: “Alma à escâncara, /(…)”. A alma, assim, à escâncara faz-nos parar. Não pela dificuldade da palavra, mas por ser incomum. Repare-se que não estamos diante de uma metáfora, estamos diante de um mostrar melhor a alma, de lhe encontrar um modo dela fazer sentido num poema. Se pensarmos bem, uma alma fica melhor à janela do que entre quatro paredes. Mas à janela não é o mesmo que à escâncara, porque nenhuma palavra substitui outra, como nenhuma pessoa substitui outra. Dizer as pessoas são todas iguais é como dizer que uma palavra substitui outra. Nesta poesia, de Catarina Santiago Costa, as palavras são insubstituíveis; nenhuma ocupa em nosso coração, no verso, o lugar de outra. As palavras aparecem estranhas para que reparemos nelas, para que reparemos melhor no que está a ser escrito. A estranheza tem esse poder de curto-circuitar o modo habitual de andarmos desligados do que nos acontece e do que lemos. Apesar da técnica, isto é, do modo peculiar da poeta tratar os seus poemas, o uso de palavras longe do seu uso quotidiano, ou mesmo do uso em poemas que não os dela, não se prende com musicalidade, com prosódia, com ritmo, mas com o sentido, apesar do verso “– ouço o que cantas, não o que dizes.”. O sentido é tudo, nesta poesia, embora à primeira vista, a um olhar mais precipitado, possa parecer tratar-se de retórica. Sem dúvida, a linguagem confere singularidade a este livro, mas a singularidade desta linguagem não é um jogo de linguagem, mas uma existência de linguagem, um existir na língua ao avesso do existir no mundo. E deriva daqui, deste avesso, esta técnica particular da linguagem. Não se inventam palavras ou artifícios linguísticos por desporto, por ser diferente, mas por se ver na linguagem do mundo, na linguagem dos dias a cara do mundo, a cara dos dias, que aterram, adivinha-se, a poeta. Por isso, a questão fundamental neste livro pode ser enunciada de modo interrogativo, nestas duas perguntas: como dizer a estranheza do mundo com as palavras do mundo? Como dizer o nada enunciando as coisas? Escreve no último poema: As coisas inexistem porque estamos não-aqui, (…) ao final de um dia qwertico.” Só assim, de um modo de quem se vira do avesso, Catarina dá conta do mundo, dá conta de si, dá conta da realidade que tem de carregar aos ombros de um corpo que lhe deram, ao ombros da consciência de ter um corpo que lhe deram e que tem de carregar pelos dia afora. Todos nós temos esse fardo, com maior ou menor consciência. E quem escreve para apagar-se a si e ao mundo, escreve assim: Esquecer não é mudar de pele, semear epiteliais no tapete, pelos lençóis, pelas almofadas, na água que me lava, não é passar um obsessivo pano onde os teus dedos pousaram, naquilo que pressionaram e vergastaram. Esquecer é cirandar com erupções tapadas, assustar memórias, despejá-las como a uma família cigana em propriedade alheia. É negar dias, negar filhas, recusar víveres, lacrar a vagina, engolir idioma e língua, fazer dos olhos salinas – ver nada, ver-me agora nada. O poema não começa nem termina na citação acima, mas dá para ver bem que o título do livro lhe assenta como uma luva, Tártaro, a parte do mundo onde se vive o pior, para onde os deuses enviam aqueles que odiavam. Negar tudo, a si e ao mundo, ver-se nada, é uma forma de viver o lugar que os deuses reservam àqueles que, como escreve a poeta, dormem com um cadáver (na página do livro aparece “Dormirás com um cadáver”). No fundo, e aqui é mesmo no fundo e do fundo que se fala, a vida é simples: “cada qual no seu reino de nadas.” Apesar de tudo, apesar do nada e suas manifestações em vários versos que percorrem o livro – “Daqui por diante, nada”, “– a desistência será o meu tributo.”, “cada qual no seu reino de nadas”, “Não há mais nada”, “Ignoro a morada do equívoco / mas ele é”, No entanto, tu e eu não arrulhamos nada” –, não estamos diante de um livro pessimista, muito menos de um livro de tom queixoso, umbilical, de alguém que carrega uma dor de corno da vida, ou da imagem que tinha de si na vida. Estamos diante de um livro que assume a vida como o lugar aonde se tem de ir, por onde se tem de passar apesar de tudo. Há que ir à vida, não há nada a fazer. Ir à vida é como ir trabalhar. Levantamo-nos, sem querer, e lá vamos ao trabalho, à vida, expostos intempérie dos sorrisos desastrados e das palavras porcas, de tanto se usarem sem serem lavadas, sem serem renovadas, sem serem pensadas. A vida para a maioria de todos nós é assim como ela a canta, um tártaro, porque a poeta não fala da vida dela, fala da nossa vida, daqueles que não têm privilégios, quer seja material quer seja ideal, de não se dar conta das dores de existir, por exemplo. E num dos poemas mais rente aos muros do quotidiano da linguagem, escreve: Ataviada com a touca branca, avental branco sobre a alva bata, a cozinheira frita as iscas ante os nossos fígados e vesículas atordoados com os copos, os salgados e a manteiga de alho de um recente passado (…) A manteiga de alho de um recente passado, ainda assim é muito melhor do que o destino da senhora “acantonada na fritadeira / nunca lhe vemos a cara / que imagino sob o signo da adstringência.” Mas a nossa tenacidade em arrancar sorrisos às pétalas, em não imaginar nada, distrairmo-nos de tudo, que é uma forma de imaginar poder haver um futuro melhor, faz-nos caminhar pelo tártaro como se não fosse o tártaro. “O dia é uma espargata, / uma ampla abertura de pernas por onde o sol desova, uma promessa de décadas (…)”. Antes de terminar com um poema de Catarina Santiago Costa, resta-me dizer que o livro não tem número de página e os poemas não têm título. A composição do livro é de Joana Pires, como usualmente nos livros da Douda Correria, e a capa é de António Poppe. És um merlo azul-ígneo, Os meus tímpanos vibram com os teus gorjeios – ouço o que cantas, não o que dizes. Pergunto-me se preferia ser magnólia pesada de folhas e flores gordas que terias por morada ou um parasita mínimo, alfaiate de bainhas de mielina, que se aconchegasse no teu cérebro, assomasse à escotilha do olho a ver-te o voo. Sairia depois pelo teu bico em sinfonia perguntando “queres que regresse?” e “sim” ou “não” seriam respostas boas desde que me mantivesses por perto. Mas é hora de chegar a termos com a dieta aérea E acolher o vazio infinito de Deus até ele forjar mar e terra.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasLuís Carmelo: “A escrita é um laboratório que me ajuda a traduzir o mundo” Ao longo de mais de 35 anos, publicaste 45 livros, entre poesia, romance, contos, ensaios, teatro, argumento de cinema, e manuais académicos. Para não falar do teu monumental projecto das cidades, que vens desenhando há outros tantos anos, desde os tempos de Amesterdão. Esta compulsão é uma necessidade académica, pois és professor, ou deriva de uma outra necessidade? Ser professor, para mim, sempre foi uma forma de ganhar a vida como qualquer outra, embora, com o tempo, me tenha afeiçoado à prática. Gosto realmente de dar aulas, quer presenciais (em tantos anos de universidade já devo ter leccionado, depois de me ter doutorado em 2005, umas duas dezenas de matérias diferentes entre a literatura, as artes, a semiótica e as teorias da cultura), quer online (criei há oito anos uma escola vocacionada para as escritas, a EC.ON – https://escritacriativaonline.net/ -, que é, hoje em dia, o meu ganha-pão essencial). Ser escritor é realmente algo de outra natureza, pois tem sido, desde os vinte e poucos anos de idade, um dos móbeis da minha realização profunda, poderia até dizer da minha possível redenção. De facto, estou sempre a escrever em três direcções. Por um lado, tenho sempre um romance a meio e um outro a iniciar-se (após a Trilogia do Sísifo, que concluí em Fevereiro de 2016, escrevi um novo romance que está agora em pousio, tendo já iniciado, em 2017, um outro). Por outro lado, tenho sempre (ou quase sempre) um ensaio em construção (este ano vai ser sobre a Tetralogia Lusitana do Almeida Faria, reatando um estudo que levei a cabo há três décadas). Por fim, desenvolvo ininterruptamente uma oficina poética (coisa muito mais recôndita e íntima). As cidades que desenho desde o início dos anos oitenta fazem parte de uma poética, essencialmente por se tratar de uma actividade (bastante reservada, sublinhe-se) que alia um lado lúdico a um outro inefável, sem tradução verbal ou figurada, e que, por isso mesmo, corresponde a uma pura ‘poiesis’ (uma linguagem que se inventou e que se gera a si mesma sem constrangimentos e sem uma auto-análise plausível). Resumindo: além do prazer (escrever, no momento em que estou a escrever, a criar e a descobrir, é, para mim, um prazer muito grande), a escrita, no meu caso, consiste num laboratório que me ajuda a traduzir o mundo e, portanto, a atravessar o enigma com uma venda a menos. Este exercício incessante, que é uma espécie salto à vara sobre a fogueira (ou sobre o abismo), não é apenas uma necessidade (como respirar o é), mas sobretudo um modo de tentar emendar ou consertar a finitude. O horizonte que a escrita literária me concede, seja como escritor, seja como leitor, é, ao mesmo tempo, centrípeto (em direcção ao mistério) e centrífugo (em direcção ao mundo que se vive). Um vaivém e também uma colisão em que busco todos os dias uma qualquer forma de superação, seja lá o que isso queira dizer. Curiosamente, ou talvez não, os teus únicos livros de poesia foram também os primeiros, em 1981, Fio de Prumo (Terramar, Torres Vedras), 1982, Vão Interior do Rio (Atelier 18, Amesterdão) e em 1983, Ângulo Raso, Atelier 18, Amesterdão. Desinteressaste-te pela poesia ou ela desinteressou-se de ti? Nunca me desinteressei pela poesia, sempre vivi com ela e sempre a escrevi e li apaixonadamente ao longo dos anos. No entanto, tenho uma certeza: no campo daquilo que passámos a codificar por literatura, há alguns séculos a esta parte, a poesia é a linha da frente (do mesmo modo que, numa religião, a clausura e o misticismo são linhas da frente). Eu sou um agnóstico de fundo teísta, ou seja, um tipo que não crê em receitas, nem em dogmas, mas que não enjeita (pelo menos radicalmente) uma feição imaterial no universo. Daí que, para mim, seja particularmente evidente que a poesia não é nunca apenas a poesia. A dimensão críptico-mágica que emprestamos ao sopro verbal vem de longe e soube-se metaforizar em todas as culturas humanas (é por isso que muitas mitologias, e não só, veja-se o início do Génesis, o celebrem como sobrenatural; por exemplo, no Sofista, Platão, dando voz ao Estrangeiro no diálogo com Teeteto, diz que o discurso é “a corrente que sai da alma pela boca sob a forma de som”). Razão por que sempre celebrei a poesia com prudência e na intimidade. É verdade que, em jovem, publiquei alguma poesia (três livros), mas isso deveu-se a um tipo de urgência que não partilho hoje em dia. No entanto, tal como aconteceu já com as cidades (que expus em Lisboa, na Galeria Abysmo, em Abril de 2015), estou agora prestes a publicar alguns poemas meus. Neste ano de 2017 vou ter poesia publicada, o que não acontecia desde 1982. Estou numa fase da vida em que certas camuflagens estão a perder o sentido. E eu limito-me a respeitar esse ímpeto interior. Quais as maiores diferenças que encontras no mercado, nos autores e nos leitores, desde que começaste a publicar, até hoje? Comecei a publicar na Vega nos anos oitenta. A Vega foi um ponto de encontro de onde saíram grandes escritores (Lobo Antunes e João de Melo, por exemplo) e existia num tempo em que a edição ainda publicava, de modo dominante, a pensar mais na descoberta literária do que no negócio. Nos anos noventa e no início da primeira década do século XXI, publiquei romances na Editorial Notícias e ensaios (e outras obras de feição escolar e/ou universitária) na Europa-América. Nesse período, viveu-se o início de uma certa concentração empresarial que coincidiu com o início do boom da livros da chamada – o termo é do Miguel Real – “literatura de mercado” (ou seja: o light que já existia fora de Portugal acompanhou, neste período, as lógicas de monopolização e do aparecimento dos grandes grupos, enquanto contribuiu para pressionar indirectamente, mas como uma tenaz – era preciso facturar acima de tudo! -, a tradição especificamente literária, razão por que muitos escritores se viram, de algum modo, apeados da ideia tradicional da ‘sua’ editora). Entre meados da primeira década do século XXI e o ano de 2011/2012, tornei-me em nómada (editando a espaços na Guerra e Paz, na Quidnovi, na Mareantes, na Hugin, na Quetzal, na Magna, etc, etc.), aliás em consonância com um período instável em que o mundo editorial se ia reestruturando, modelando-se de modo bipartido; de um lado os grupos económicos, do outro lado as pequenas e algumas pequenas-médias editoras que decidiram persistir, fazendo interagir os fundamentos do apego estético com a sobrevivência. A partir do princípio da segunda década do nosso século, tornei-me escritor da Abysmo em conformidade com esta lógica de relativa bipartição. Finalmente respirei fundo e passei a sentir que tenho um editor a sério e uma resposta adequada para os meus projectos. Finalmente respirei fundo e passei a ter ao meu lado um conjunto de outros escritores fraternos, cúmplices e extremamente estimulantes. Deixando a questão editorial e focando-me agora nos autores e nos leitores, concluiria que vivemos num mundo em que o escritor já não é um senador espiritual como o era Aquilino no seu tempo, por exemplo. Na nossa época, os heróis estão na imagem móvel, nas efígies digitais e no tempo real, não passando de figurações frágeis e efémeras (a própria inflação de festivais e de festas literárias ilustra este lado redundante da espectacularização). Por outro lado, como o objecto livro passou a ser anfitrião de muitos outros registos para além do literário (daí que o número de livros que se publica por ano seja descomunal), os escritores que fazem literatura e que trabalham plástica e inventivamente a língua portuguesa – uma extrema minoria – tornaram-se em matéria de nicho. Distantes dos palcos, dos holofotes e da procura de massa, os escritores regressam hoje à tranquilidade das pequenas arenas em que o encontro com os seus leitores se pode, por vezes, tornar mais autêntico, mais familiar e até mais próximo. Divides a tua vida entre a universidade em Lisboa, onde és professor, e a tua escola de escrita em Lisboa, a EC.ON (Escrita Criativa Online), onde além de cursos que ministras, desenvolves um programa semanal, aos Sábados, de encontro entre escritores e leitores. Quais as grandes diferenças entre o que ensinas na universidade e o que ensinas na EC.ON? As matérias que lecciono na EC.ON são directamente ligadas à escrita. A designação “escrita criativa” é de origem anglo-saxónica (remonta aos fins do século XIX, nos EUA, tendo tido um incremento muito grande depois da década de 50 do século XX) e corresponde a uma actividade que é genericamente vista com alguma ‘desconfiança’ no sul da Europa. Trata-se de um preconceito, na medida em que, ao falarmos de escrita, falamos, inevitavelmente, de um processo que promove um saber associado ao domínio da plasticidade da linguagem. Passo a explicar porquê. Todos os processos de escrita implicam quarto ordens: a ordem interpelativa (meramente transitiva e instrumental), a ordem estética (aberta ao poder metafórico, combinatório e rítmico), a ordem semiótica (ligada à capacidade metatextual) e a ordem do jogo (no sentido da expressão enquanto desejo/inscrição). Num laboratório de escrita, tal como acontece nos universos da química, é possível isolar cada uma destas três ordens e testar-lhes os limites. Uma tal prática oficinal pode e deve ser cooperativa (ou colaborativa), visando três objectivos claros: desenvolver potencialidades, incentivar a inventividade e alimentar a expressão própria. Ao percorrer estas três vias objectivas, a escrita criativa promove realmente um saber associado ao domínio da plasticidade da linguagem, enquanto expressão (pragmática) que desafia o sentido. Deste modo, o papel essencial da escrita criativa passará por entender a linguagem como uma plasticina moldável e, portanto, capaz de optimizar as ferramentas e as técnicas que processam a expressão. Não se trata, pois, ‘de ensinar a criar’ e/ou ‘de ensinar’ a ser escritor! Postular estas possibilidades seria algo, no mínimo, infantil. Na EC.ON, que é um projecto livre e aberto, oferecem-se hoje quase noventa cursos online (desde a escrita literária à escrita comunicacional, desde as escrita para crianças à escrita para a rede, etc.), sendo a maioria dos docentes escritores. As sessões presenciais que desenvolvemos nos sábados à tarde desde Janeiro de 2014, conhecidas como “Cursos Ícone”, convidam escritores a reflectirem sobre as suas oficinas literárias, sobre os seus processos criativos e sobre o seu universo de referências literárias. Quanto à universidade, devo dizer que abandonei a vida académica plena e activa há uns anos. Não me refiro a dar aulas, pois continuo a dá-las, mas sim aos pressupostos que implicam investigação organizada, arguições, orientações, reuniões e outras actividades que considero cada vez mais burocráticas, desmobilizadoras e redutoras (Bolonha criou virtudes de transversabilidade e de proximidade, mas contribuiu para baixar imensamente as fasquias nos dois primeiros ciclos de estudos universitários). Não tenho saudades da universidade.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOnde pára a estátua de São Tiago? [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]proveitamos um dia solarengo para numa caminhada nos inteirarmos das mudanças registadas na cidade. Desta vez, o objectivo era chegar ao local conhecido por meia-laranja para de novo olhar a estátua de S. Tiago e saber se o iríamos encontrar ainda com as botas enlameadas sobre o altar da capela existente dentro da Fortaleza de São Tiago da Barra. Pelo que refere Montalto de Jesus, “Tal como toda a cristandade, Macau podia vangloriar-se de muitas imagens com atributos maravilhosos. Contava-se que a estátua de S. Tiago, na capela do forte da Barra, gostava de patrulhar a praia à noite – daí encontrarem as botas enlameadas todas a manhãs”. Mas sabemos também que desde 1975 Macau deixara de ter ao serviço soldados portugueses e sem eles para pela manhã engraxar as suas botas, continuaria a estátua de S. Tiago a fazer as suas saídas nocturnas? Entretanto, apareceu-nos uma história com o título ‘O tributo das botas entre os frades bernardos’, que refere: “segundo o uso, cuja origem se perde nas primeiras dinastias da monarquia, quando algum rei visitava o Convento de Alcobaça, pertencente aos frades bernardos, entregava-lhe o D. Abade um cruzado e um par de botas. Decorriam já longos anos sem que esse costume fosse posto em prática, quando D. João IV (que subiu ao trono a 1 de Dezembro de 1640 e faleceu em 1656) ali foi. Não se contentando o rei com a economia dos frades, exigiu que lhe fizessem a entrega do cruzado e do par de botas, renovando assim o tributo a que a Ordem por tanto tempo se tinha esquivado”. Hoje aqui passamos ao lado da parte inicial desse passeio pois, já com o artigo escrito, ficamos a saber que a SJM decidiu fechar em Março a Pousada de São Tiago até terminarem as obras do metro realizadas à sua frente. Vai para mais de um ano o constante barulho das máquinas a retirar o sossego e paz aos hóspedes deste hotel de cinco estrelas, que abriu portas nos primeiros anos de 80 do século XX, ocupando as instalações da fortaleza com esse nome. Fortaleza de São Tiago da Barra Chegamos à Barra, na parte sul da península de Macau e em frente à fortaleza situada sob a Colina de S. Tiago, ali encontramos a esfera armilar que deixara a praça do Senado e em conjunto com uma reprodução mais pequena da escultura da flor de Lotus integra um monumento inaugurado em 2013 pelo então Bispo de Macau, D. Domingos Lam, de homenagem à diáspora macaense. A fortaleza de S. Tiago da Barra, muitas vezes chamada apenas Fortaleza da Barra por controlar a entrada do Porto Interior, pois, como refere em 1635 Bocarro, “A Barra desta cidade de Macao era antigamente muito larga porém os Portugueses moradores dela entupiram a maior parte a respeito dos Olandezes não poderem entrar com suas naus se não por um canal que fica ao longe do dito forte de Santiago, coisa de seis braças de largura e com fundo de três, ficando lá dentro em muito mais fundo (… onde) nela estão continuamente seis bancoes (juncos) de chineses da armada que são as suas embarcações que trazem dela para vigiar e saber o que fazem os Portugueses e se metem nações estrangeiras que é o de que mais se receiam e resguardam”. Assim todos os navios que desejavam entrar por esta barra tinham que passar necessariamente à distância de 3 ou 4 lanças (cerca de seis a sete metros) para chegar ao porto interior. O capitão deste baluarte era nomeado directamente pelo rei e apenas por ele podia ser destituído. A fortaleza do Monte era sem dúvida a maior, seguindo-se a de S. Tiago e da Guia. Segundo o Padre Manuel Teixeira, “Parece que o baluarte da Barra foi construído antes de 1613, mas certo é que já existia antes de 1621 na colina da Barra, um baluarte ou forte e não uma simples bateria e nesse ano aí se colocaram seis canhões comprados em Manila.” O Padre Queiroz menciona dois baluartes na Barra em 1622 e no ano seguinte, o Governador Francisco Mascarenhas mandou ocupá-los com uma companhia de soldados. “Estes baluartes foram ampliados em 1629”, data apresentada num padrão de pedra com as armas de Portugal, que se encontrava no ângulo exterior da Fortaleza de S. Tiago da Barra. Bocarro descreve este forte logo à entrada da barra como tendo “cento e cinquenta passos de comprimento e cinquenta e cinco de largo com que faz uma formosa plataforma que fica levantada do mar cinco braças com um muro fundado em vinte e oito palmos de largo e acabado em dezassete e esta dita altura é até os parapeitos que levantam os três palmos da dita plataforma”. E continuando com o clérigo historiador, “já Bocarro dizia em 1635: “. Logo a data existente na inscrição na passagem coberta que há entre a porta da casa da guarda, refere-se à reconstrução d’ “Estas casas (…) feitas no tempo do Sr. Manuel Pereira Coutinho, Governador e capitão geral d’esta cidade, sendo procurador José Alexandre D’Aragão, que as mandou fazer em 1740.” Também a Capela de São Tiago deve ter sido construída juntamente com a fortaleza e a data de 1740 que tinha no frontispício refere-se apenas ao ano da sua reconstrução pois, ela “existiu desde o início, sendo o titular da ermida que deu o nome à fortaleza”, como refere Manuel Teixeira que adita, “Venera-se ali a estátua de S. Tiago numa atitude de mata-mouros, revestido de cota e malha com o escudo na mão esquerda e a espada na mão erguida à altura da cabeça.” Segundo Jorge Graça, “Esta fortaleza sofreu muitas alterações, tanto no traçado como no tamanho. Em 1638 foi descrita como uma fortaleza <muitíssimo boa e resistente tendo a aparência de uma pequena cidade quando vista de longe…” A Fortaleza da Barra actualmente está reduzida a menos de metade do que foi outrora e já nos finais do século XVII se encontrava em ruína. Aí se fizeram obras de reparação mas, no início do século seguinte percebia-se ser ela, devido ao seu traçado e posição, completamente inútil para a defesa da cidade. Voltou ao seu estado de ruína muito devido aos tufões e por isso, em 1889 o Governador Teixeira da Silva pretendeu deitá-la abaixo por dificultar a possibilidade de construir a rede viária em torno da península. Escapou à destruição e conseguiu sobreviver até ser adaptada a hotel. Agora aí entramos e dirigindo-nos à ermida, para voltar a apreciar a estátua de São Tiago, o que encontramos foi um painel com a representação mal conseguida da sua imagem e as botas já não tinham as réstias de lama que na estátua ainda em 2011 tivemos o privilégio de ver. Por onde andará a estátua de São Tiago? Resposta que não obtivemos ao questionar os empregados que serviam na esplanada da Pousada.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO Tigre e a Neve 07/02/2016 [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ui crítico de cinema vinte anos. Escrevi doze filmes. Mas nunca deixei de crer na realidade, nunca usei a imagem como escape. Por isso eram-me insuportáveis os Festivais de Cinema e a sua fauna que transpira cinema e segue religiosamente o programa das festas, das 9h às 24 h. Eu escolhia dois filmes por dia e no resto do tempo flanava, ia às livrarias, demorava-me nos restaurantes, visitava galerias de arte, cafés, em calhando namorava. Uma vez em Berlim começou a nevar e achei mais interessante ir ao zoo ver os tigres na neve do que o filme da sessão das 15. Foi o filme que ganhou o Urso de Ouro. De outra vez, também em Berlim, a neve intensificava-se e entrei no primeiro vão de uma porta para me proteger. Vi depois que seria uma livraria hispano-americana. Estive dois dias sem ir às sessões, a ler os diários e os loucos ensaios de Luis Lezama Lima em restaurantes gregos e turcos, à luz de vinhos de nomes impronunciáveis. Claro que este era pecado inconfessável aos olhos dos meus amigos críticos. Penso que eles no fundo julgam que a morte não lhes toca – se estiverem dentro do filme. É o Rosa Púrpura do Cairo ao contrário. Infelizmente para mim, creio na infatigabilidade da morte, é o que nos separa. Não sei quem ganhará este ano o Festival de Berlim. O Francisco Ferreira, do Expresso, há-de dizer-me. Sei que nos últimos anos, se eu fosse realizador, só teria realizado três filmes: o Água, (da indiana Deepa Meth), O Tigre e a Neve (do Roberto Benigni), e o Youth (do italiano Paolo Sorrentino). Acho que não ganharam nenhum Festival (pelo menos desses principais). (A propósito: o La La Landa, é mesmo bola preta – Emma Stone à parte. Tantos prémios e indicações para os Óscares só significam o triunfo da puerilização do mundo). 10/02/2017 Vou iniciar o meu primeiro filme em Moçambique, com o cineasta bissexto Lopes Barbosa. A história do Barbosa, por si mesmo dava um filme. Fez uma longa antes do 25 de Abril, com o Malangatana e a comunidade deste, a primeira e única longa filmada em ronga. O produtor fica em pânico, o filme é absolutamente anti-colonial. Claro que a fita é proibida. Dá-se 74. O filme acaba por estrear finalmente num 7 de Setembro fatídico em que há uma «intentona branca» em Lourenço Marques para tentar segurar o poder. O golpe falha e o produtor foge com o filme. O realizador não soube mais dele durante trinta anos. Até que uma investigadora, a Maria do Carmo Piçarra, descobre há poucos anos uma cópia nos armazéns da Cinemateca, aonde o produtor, num rebate, o depositou antes de morrer. Chama-se o filme Deixem-me ao menos subir às Palmeiras e causa espanto nos Festivais por onde tem andado porque é de facto excelente. Um ovni. Há anos que o Barbosa insiste em fazer um filme comigo. Acedi desta vez porque o tema me interessa muito: a história de amor entre o jornalista e ideólogo Aquino de Bragança e a pintora Silvia Bragança, dois luso-indianos, uma soberba história de amor potenciada pelas circunstâncias e a qualidade das personagens. O Aquino foi uma figura activíssima em Paris, como estratega dos movimentos de libertação; sendo amigo do Melo Antunes e do Almeida Santos esteve por detrás das negociações para a independência, mas nunca aceitou prebendas nem cargos no poder e actuou apenas como assessor crítico de Samora enquanto na universidade fundava o Centro de Estudos Africanos. Acabou por morrer com o Samora no desastre de avião. A ligação entre a Silvia e o Aquino só pôde durar quatro anos mas é uma magnífica história de amor e o melhor meio para evocar a qualidade do Aquino como homem. Começamos a filmar esta quarta-feira, 15. Se este filme correr bem, farei de seguida outro sobre o pintor/poeta António Quadros/Grabato Dias. Curtas, que só temos a maquinaria e a vontade de fazer. 11/03/2017 Preparar as aulas levanta sempre lebres, que superam a ingrata tarefa de sensibilizar os indiferentes. Descubro que para o teórico de arte Rudolf Arnheim «o máximo de informação é directamente proporcional à sua inatendibilidade e precipita-nos na entropia». Eis resolvida por si mesma a velha dicotomia entre a comunicação e o conhecimento – por um equilíbrio homoestático menos comunicação nutre mais do que a saturação dela. O que a pintura oriental já ensinava há muito com os seus vazios e o primado na sugestão. No que à poesia diz respeito, para mim, o espanhol José Ángel Valente já dissera o essencial: «Entendo que quando se afirma que a poesia é comunicação não se faz mais do que mencionar um efeito que acompanha o acto de criação poética, mas que em nenhum caso se alude à natureza do processo criador (…) todo o momento criador é em princípio um acto de tactear no escuro. O material sobre o qual o poeta se dispõe a trabalhar não está clarificado pelo conhecimento prévio que o poeta tenha adquirido, mas antes espera, precisamente, essa clarificação». Quanto àquilo que se pode comunicar, associo-o sempre ao provérbio chinês que diz: “Tudo o que já sei deixa de me interessar”. 12/02/2017 Vocês sabem, aquelas peúgas que, irritantemente, escorregam para se meterem no calcanhar!? Era assim a pele dele, preta, passava a vida a cair-lhe da raiz dos cabelos até ao calcanhar, não porque fosse albino, mas queria imitar os tiques dos brancos (o que ele entendia por essa abstracção). Radialista. Um dia nas barracas do Museu, em ouvindo-me falar do problema das mulheres em Moçambique, comentou: “Gramo deveras, pá, ouvir-te falar sobre as mulheres… Até te levava ao meu programa, mas não posso, pá…via-se logo que és tuga…». E eu sosseguei-o, «Tens razão, a rádio não deixa escapar nada daquilo que se possa ver…». Disseram-me hoje que morreu. Ou foi cobrir alguma rebelião dos anjos, num beco lá para Orion. Não ouço rádio, não tinha dado conta. Paz à sua peúga!
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO filme que os chineses vêem no Ano Novo Lunar (e será que gostam?) 乘何方风破何方浪 Foto: Selecção de raparigas para uma Escola de Artes chinesa [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme é uma comédia para animar os espíritos, chamada Cheng Feng Po Lang, 乘风破浪,Título em inglês: Duckweed (Lentilhas). Estreou no primeiro dia do Ano Lunar Chinês (28 de Janeiro) e atingiu recordes de bilheteira num período de apenas seis dias. No quinto dia de exibição já tinha ultrapassado o limite anterior de 70 milhões de RMB. Ah! pois, têm razão, vocês nunca devem ter ouvido falar deste filme, nem tão pouco do realizador Han Han, que faz parte de um grupo de chineses super populares devido a um fenómeno local chamado “o cancro do heterossexual”. Há alguns anos atrás Han Han revelou-se, a si e aos seus desprezíveis sintomas: “Quando uma rapariga aceita um convite para jantar e ir ao cinema, significa que quer sexo. Quando traís a tua namorada o melhor que ela tem a fazer é calar a boca.” O Cancro do Heterossexual 直男癌é um neologismo chinês para designar um grupo de homens obstinadamente sexistas. Foi inventado por utilizadores das redes sociais em meados de 2014 para nomear chineses do sexo masculino que por palavras e actos menosprezam os valores femininos, ofendem os direitos das mulheres e combatem o movimento para a igualdade de género. Destacam-se, não só pela retórica misógina, mas também pela promoção da homofobia, uma higiene duvidosa, fraco sentido estético e pela violência doméstica. O termo surgiu na China continental para designar um fenómeno que se pode dever a uma economia fechada, a tradições que continuam a persistir, a uma preferência por filhos rapazes e ainda a outros factores, tais como sentimentos de fracasso pessoal e desconhecimento do estatuto da mulher. Agora deixo-vos o início da letra da canção do filme tão popular de que já vos falei: Antes de casares comigo / Há umas coisas que tens de dizer a ti própria /Talvez não gostes do que vou dizer /Mas mesmo assim tens de me ouvir / Porque estas são palavras que me saem do coração / só quando estou um pouco bêbedo / À noite nunca vais para a cama antes de mim/ De manhã nunca te levantas depois de mim / Tens de cozinhar óptimas refeições / E tens de te vestir à maneira / Vais viver em harmonia com a minha mãe e a minha irmã (e comer as bodegas que elas te derem) … E por aí fora. A progressiva afirmação das mulheres, quer a nível académico quer a nível profissional, conferiu-lhes papéis cada vez mais importantes na sociedade. No entanto, alguns homens recusavam-se a aceitar a alteração do estatuto social feminino. De acordo com o índex sobre a desigualdade de género, elaborado pelo programa de desenvolvimento das Nações Unidas em 2013, a China ocupa a posição 91 entre 187 países, pior que a do Irão e da Ucrânia. Isto fez-me lembrar o conselho de uma mãe chinesa à sua filha: “Rapariga, lembra-te sempre que és uma convidada em casa dos teus pais e uma estranha em casa do teu marido.”
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasFormas de dizer Museu Picasso, Paris, 27 Janeiro [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rouxe lições desta riquíssima exposição, a primeira a cruzar olhares, obras e percursos, enfim, a amizade e os desencontros dos «monstros» Picasso e Giacometti. Não precisava, bastava o deleite de saltitar de uma forma para outra, da enormidade para o detalhe, do delírio para o pensamento, do mundo para o corpo. Esmagado percebi que artista será apenas aquele que tome por matéria-prima a energia e se deixe atravessar pelo raio do desejo. As vontades dionisíacas e primitivas destes colossos viraram as formas do avesso em vagas incessantes de criação. Nem a tristeza os travou. Em fundo, invariavelmente o eterno feminino abrindo-se em V de vitalidade, para se estender campo de batalha e principal soldado contra a morte, esse disforme enigma final. Na Baigneuse alongée, de Picasso, de 1931, braços e cabeça entrelaçam-se num nó que, abraçando o espaço, lança e recebe o resto do corpo feito mar. Na praia, onde o encontro incessante dos elementos sussurrará para sempre. Giacometti, em 1929, diz que uma Femme couchée qui rêve faz-se de ondas paralelas mantidas juntas e esvoaçantes um pouco acima da linha de terra por colunas, uma delas encimada por volume côncavo, talvez uma cabeça. O vazio, sempre ele a desafiar-nos, a conter-nos, a definir-nos. Como bem revela G. na série Femme (plate I) e depois sucessivamente (plate II) e (plate III): pelo nada somos definidos. Sublimes platitudes. Ainda bem que fui a tempo, mesmo contra o tempo e o cansaço, sendo este primeiro sintoma daquele outro a roer-me, apertando cada vez mais nós. Na barriga, afinal onde, como dizia Manuel António Pina, deve ser o lugar do coração já que aí sentimos tudo, nervos como alegria, preocupação como desejo. Sofro de falta de tempo para me perder nele. Santa Bárbara, Lisboa, 29 Janeiro Nos anos 1930, Alberto G. compôs pequenas esculturas em palcos de branca fragilidade e fundos de silêncio, nos quais desenhou tensões e equilíbrios com sensibilidade a rasgar feridas, dando-nos a ver o gesto de as retirar à informe paisagem do ar com x-acto. (Note-se a ajuda que esta estranha palavra oferece com o cruzamento em alvo, chaga que acolhe a potência. E como nos faz falta o c para acentuar carnes). Uma delas chama-se Pointe à l’oeil: longa e orgânica forma cónica, afia-se em direcção ao exacto meio dos vazios que olhos ocupariam naquele pequeno crânio e costelas, esboço de corpo, espetado em solo níveo riscado de quadrícula e sulcos. Um prego negro de cabeça branca atravessa e sustenta a massa. Depois a luz dança de mil modos para não prejudicar as sombras que repousam. Quanta dor aqui se encerra e desvela? Dirão que exagero, mas tant pis: incluo Paysage Après la Bataille, de Éric Lambé e Philippe de Pierpont, nesta bruta linhagem. Este P aponta-se-nos aos olhos, extraído ao branco com requintes de bisturi, P de paisagem e de perda. Com magistral gestão do ritmo, a batalha de uma mulher contra a morte da filha entrança-se, sob pesado manto de neve, com mão cheia de outras figuras a desfazerem-se no entorno. O pano de fundo sobre o qual evoluímos faz-se de amor e amizade e custa-nos negar à morte a possibilidade de fazer da paisagem beco sem saída. Corpos e fundos, nesta coreografia de encontrões se joga o essencial do labor de Éric. Nunca o silêncio foi tão bem desenhado. Nunca o branco foi tão negro. Mesmo quando a cor se junta à melodia com substância de personagem. Acontecem desenhos de estonteante pureza. Nada foi deixado ao acaso, basta conferir a rima entre a capa e as guardas, que alude à colecção de despojos que se diz vida. A narrativa longa estende-se sem perder, em momento algum, fulgores de verso. Algumas sequências agravam enigmas. E nunca deixam de brilhar as pequenas histórias de cada um dos actores, tratados com comovente ternura. Respira-se aqui humanidade. A leitura de «P» pode bem mudar-nos. Pena de quem não sabe. Horta Seca, Lisboa, 2 Fevereiro Perde-se no claro-escuro da desmemória o encontro com o trabalho de Jorge dos Reis, primeiro na sua qualidade de compositor de alfabetos, logo na de investigador atento das nossas artes tipográficas. Admiro muito o seu esforço de projectar atenção à obscuridade das oficinas quando a pele do mundo era de chumbo. E vibro com o divertido jogo com que faz das letras formas do olhar. A exposição, «Fragas Falantes», que celebra vinte anos e vinte tipos de letra, ergueu-se na faldas da serra, na Universidade da Beira Interior, mas veio ver o mar às paredes da abysmo galeria. O livro, com o mesmo título e grande formato, transpira saber e sabor. Foi feito em velhas máquinas, mas propõe mostruário de seres vivos, que outra coisa não são tais alfabetos. Cada página afirma-se poster, afirmação a um tempo subtil e gritada, útil e abstracta. Ajuntou-lhes pequenos comentários de gente do mesmo ofício, mas não apenas. Curiosa coincidência, vários dos convidados viram música nas suas composições. Também ouvi melodia na que me dedicou (na ilustração ao lado): Baco, que me surge inspirado em correntes de bicicleta. Percebo o deus desbragado, já as bicicletas… só se for metáfora para o esforço de locomover letras.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA candelária [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistem no calendário católico aspectos extraordinários com elementos de impregnada redundância simbólica e nesta medição do tempo estamos assentes no Calendário Juliano e mergulhados no Gregoriano, calendários solares que entretanto colidem com esferas de festividades. Só que tem havido muitos ajustes dado que os mais remotos eram lunares e adaptar toda estas fórmulas foi um trabalho de centenas de anos, mesmo de milénios. Fevereiro dá-nos um momento muito rico em como na adaptação dos sinais e das fontes originais os efeitos se transmutam e, sendo outros, são os mesmos. Quase subliminares à prática dos povos, eles, no entanto, têm uma vida imensa que a memória não permite esquecer. Dia dois de Fevereiro festeja-se o dia da Candelária entre os católicos, claro está, candelária como o próprio nome indica vem de candeia, candeia e luz, mas ela é sobretudo a «Festa da Purificação da Virgem», estranha designação para a qualidade da sua condição mas, se aferirmos os dons da cronologia também lunar no efeito destas derivas, acontece que esta era uma festa ou um acontecimento praticado pelas mulheres hebreias quando eram passados quarenta dias do nascimento de um menino: iam ao Templo, apresentavam o menino e banhavam-se. A mãe estava assim purificada do período do pós-parto, o que na mesma linha vai dar ao Natal, daí ela ser em Fevereiro. Pratica-se de olhos fechados uma condição da mulher hebraica e, claro, não falta a eterna quarentena, que porá fim ao seu menstruo de parturiente. Creio bem que a leitura de tais factos possa ser irrelevante pela sua dimensão extemporânea, mas carregamos sinónimos que pensamos ser antónimos e grandes verdades que não passam de meras formas de adaptação de um grande sincretismo. Nós, os obreiros de tantas certezas, não seríamos tão ricos sem a junção de todos para preparar a nossa causa. Daí os tempos estarem neste momento tão ameaçadores, temos visto que a rigidez é como o não conhecimento, assente todo ele na sua defesa sem saber que a defesa de todos é ainda a melhor forma de estarmos individualmente defendidos. Purificar é também libertar o ser para uma nova etapa da sua vida. Neste caso do vínculo incubatório, o estado hibernante, que vem da escuridão dos dias de Inverno, é libertar o agente do pousio para a sua nova etapa agora que os dias parecem tender para uma nova esperança, crescendo e tornando a mobilidade uma presença. Mas foram as leis patriarcais que promulgaram isto? Não creio! Apenas registaram na sua «Tábua das Leis» uma evidência natural e há sem dúvida muitos abusos nesta matéria entre a observância e a imposição, aqui, apenas se legisla, o que – e estamos ainda em terreno litúrgico – aquilo que Deus concebeu como acto de sobrevivência. Estamos, não muito recentemente, é certo, a ponto de forjar uma natureza outra que não teve o mesmo cuidado pela estrutura feminina enquanto propagação de vínculos e que pensamos estar certa pela força da convicção, que libertando-a do seu superior anátema pudessemos neutralizar todas estas fundas temáticas. O patriarcado de que aqui se fala era um agente legislador mas, de forma subtil, sabemos que não era ele quem dava as “ordens”: era um ordenamento, menos que um desejo de ordenar, e toda a estrutura passa a severa com a ideia de uma Virgem geradora, começando a primeira grande distorção que põe a mulher como serva, o que dá como resultado o sacrifício do Filho. Talvez que o Carnaval, a festa da carne, se junte a todo este imenso roteiro de situações do fantástico e que a imundície já seja tanta que os puros precisem também eles de se purificarem, sem que se tenha muito bem presente o grau de conspurcação para ataviar tal condição, redundantemente a vamos vestir do seu desnecessário manto. É possível que a loucura more nos rebordos do paradoxo e, entre santos e loucos, estejamos no terreiro de um conflito programado com incidência para interpretações várias. Há mesmo uma fonte meteorológica, à boa maneira dos Almanaques, que diz isto: «quando a Candelária rir o Inverno está para vir», se chover acabou-se o Inverno! Rir, esse desassossego, neste caso feito de sacrifícios e desdobramentos vários que foi um esgar patético a que se reservaram nos confins de uma loucura imposta… Agora chove e, bem pelo fio das crenças, eu creio e espero, acabados os tormentos. Mas eles virão, tal como os anjos anunciadores de gestações improváveis, agora que os grandes tempos mudaram, quem sabe se para pior, a meteorologia é mais um adorno do final que nos espreita e assim, não muito convictos, cada um à sua maneira transforma em festa a “coisa” inteira: que será o vasto mundo calendoscopado em tantas ramificações de género, dado que se for menina o poisio antigo do Templo decretava cinquenta e dois dias, em algébrica lunar de setes. Isto, claro, são histórias do tempo crepuscular, em que o Homem era feito à imagem e semelhança de Deus, pois que vindo aí o Filho do Homem, essa máquina competente que fará melhor e maior a nossa escala, nos arrebatará já impróprios para a travessia dos tempos vindouros. Mas nós somos românticos, embora recalquemos com botas bem cardadas a condição quase ilegítima. Nós queremos continuar, puros, impuros, poucos, muitos, fechados, abertos, sentimos que todas as direcções se justificam para nos dar a ênfase de sabermos mais uns tempos prosseguir. Reaprendemos velhos adágios, interligamos as colunas, fingimos que não estamos mal, sorrimos para as caveiras enluaradas uns dos outros e quase nos sentimos imortais. Há meninos que nascem para isto, para nos lembrar que todos os meninos algures fizeram o mesmo percurso nos braços de suas mães, no tempo em que os homens não tendo licença de parto, partiam para a sua simples natureza. Por pior que nos pareça, não conseguimos melhor.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA cara do que não dura [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é porque Deus não existe, que o humano deixa de pensar. E entenda-se pensar em sentido kantiano, em sentido de um para além do conhecimento, um para além do que nos é possível conhecer. Assim, o verso “que vida tem afinal a morte” (p. 29), é um verso fincado num assombro para além do conhecimento, fincado nas inóspitas terras da metafísica. Esta breve introdução serve de pretexto para falarmos de um livro do poeta Miguel Manso, Supremo 16/70, Artefacto/Sr. Teste, 2013. À imagem de um livro acerca do qual já aqui foi lido, Fera Oculta, de Vasco Gato, também este é um livro escrito (embora este seja anterior ao de Vasco Gato) sob a égide de uma pessoa. No caso do poeta de Fera Oculta era o filho do poeta, que estava para nascer; neste caso de Supremo 16/70 é o avô do poeta, que acabara de morrer, “agora que ardeste / e nos choveu o cinzento do que foste” (p. 12). Parafraseando José Régio, só a morte nos guia e mais ninguém. E este é um livro que nasce desta consciência, e do confronto entre a acção e a memória, entre a alegria do amparo e a tristeza da perda. Acerca da alegria, em forma de memória, leia-se: XIII julgava ser isso a alegria: ver-te debaixo da parreira varrendo a farinha dos sapatos deixavas o ouro do teu ofício sobre a mesa abeirávamo-nos do almoço E leia-se um poema onde a perda se faz sentir, como uma lâmina: X herdei de ti a máquina de barbear (eu que não faço a barba) para enfrentar o terror de limpar os teus pelinhos póstumos escanhoei o rosto e durante semanas aleijei-o com o teu cheiro Toda a escrita, na sua essência, são cartas escritas a nenhures para nós mesmos, e este livro fá-lo exemplarmente. Mas fá-lo, não centrado (ou somente centrado) em si, na dor da perda, mas também na dor daquele que estava à beira de ser perda; centrado também na dor do avô. Muitos são os versos que captam ou tentam captar a dor do fim, a dor de estar a acabar-se tudo. Há uma dupla dor neste livro: a do narrador e a do narrado. O primeiro sente a vida através da perda, e mostra isso em inúmeros versos, o segundo sente (deixa-se sentir na pena do neto) a vida “tremendo de velhice” (p. 20) Neste livro precioso, Miguel Manso traça a vida do avô desde o seu abandono à velhice, “contemplas pretéritos a essa luz” (p. 20), passando pelo corpo sem vida, a aguardar o que se faça dele, “estás tão despido como no começo” (p. 33), ao momento em que se torna cinza “e nos choveu o cinzento que foste” (p. 12), até que finalmente se torna verso, “e o que nesse canto me ofereceste devolvo / pior no recanto tardio de uns versos” (p. 16). Tal como o poeta escreve no poema XII, “(…) como habitar este corpo / suspenso entre limites” (p. 26), trata-se também de um livro, como já havíamos visto na introdução desta leitura, que coloca as perguntas metafísicas da existência, para além de todos os detalhes e mentiras ou factos biográficos. Miguel Manso faz do avô, assim como mais tarde Vasco Gato irá fazer com o filho por nascer, um ser para sempre. Quando se lê um verso, que está entre aspas, sugerindo uma fala daquele que está a ser narrado ‘“já cá não estou a fazer nada’” (p. 13), sentimo-lo como sendo uma fala universal. Na verdade, é uma fala universal e impessoal, de todos e de ninguém, embora no poema seja a única fala pessoal, e que em algum momento feriu mais do que agora ao ler nos fere. Num poema os versos não são apenas palavras. O poema usa as palavras como a acupunctura usa as agulhas, como instrumentos para atacar os nervos. Entre os nervos e a intenção há uma agulha, um verso. O verso entrepõe-se entre o conhecimento e o pensar, entre aquilo que se pode saber, através da experiência, e aquilo que não se pode evitar pensar, ou porque nos angustia ou simplesmente porque nos rouba o ponto de vista usual do dia a dia. É o caso da morte de alguém próximo, é o caso de uma descoberta para nada, como entender que se quer dizer e não haver palavras com que dizer. Escreve o poeta, no seu último poema, o único poema vestido de prosa: “(…) Não entender, estender-se, no vazio. Ainda / tratamos por aqui de coisas imaginadas, imagináveis. / Dentro delas ou fora, dentro-fora, há inimaginações / insuportáveis, alargando em complexidade e alheias / (como assim?) à linguagem. (…)” (p. 39) O escândalo entre haver o que sente e não haver como dizê-lo, o escândalo de um verso iluminar este imaginado inimaginável, o escândalo da proximidade entre a morte (essa desconhecida) e a linguagem (essa estranha). E “Como assim?”, pergunta que revela o escândalo de não se saber o que se está a passar, fica ainda mais acesa entre parêntesis, como que indicando que o que é importante em nossas vidas é sempre entre parêntesis. É entre parêntesis que a vida se passa. É no parêntesis do quotidiano que as perguntas fundamentais são feitas. Leia-se o poema III, à página 15: paraste numa rua decaída como o Sol o abatimento da bengala tornando devagar a caminho de casa única cedência da alegria o perfume das laranjas o complô acriançado dos pássaros o branco fabuloso desses muros – se afastasses da ideia o aperto que arquitectam – alguém te chamou, olhaste saudou-te com um entusiasmo forçado e no fim trocou o teu nome pelo nome do teu pai (eu só te conheci a mãe) não corrigiste esse nem nenhum outro desacerto (o mais premente e perturbador de todos visto assim não tem cura) e seguiste à sombra do teu morto ainda mais calado O poema III mostra-nos aquilo que dissemos anteriormente, mas de um modo magistral, de um modo que só a grande poesia consegue, nesse seu modo particular de viver entre o dizer e o saber que é impossível fazê-lo, nesse modo que não é apenas o de um avô, mas o de todo aquele que está condenado a viver o seu melhor entre parêntesis, o modo de seguir à sombra do nosso morto, ainda mais calado. De que adianta corrigir o que quer que seja, se é a vida ela mesma que fará todas as correcções necessárias, principalmente as que não têm cura? Um dos versos que o poeta escreveu, logo no primeiro poema do livro – “e tem a cara do que não dura” (p. 12) – responde a esta e a todas as questões do humano, porque a finitude dói mais do que a ausência de Deus. Terminemos esta leitura com esta cara, a cara do que não dura, que não é só um humano na sua vida, mas também um humano na sua vida a ver e a sofre com outro, com um outro poema de Miguel Manso, à página 32, onde o poeta faz da dor do outro a nossa dor, mostrando claramente que esta não é menos que universal. XVIII o instante em que desligas a tv é tarde e todo o desgosto mal contigo tomba turvado nos teus braços e secaram-te as lágrimas.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasMais infinito, menos infinito [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias em que tudo me é estranho. Para ser rigorosa, todos. Tudo me é exterior, incompatível. Como nos transplantes de órgãos. A compatibilidade do D.N.A. chega aí. Mas depois é todo o organismo a tentar reconhecer a pertença. A nova pertença, qualificada e aconselhada. E mesmo assim reage. Às vezes. É o sistema imunológico que rejeita afinal o que é corpo estranho e mesmo para salvar, estranho. Ninguém sabe de facto o que nos salva, para além de probabilidades cientificamente analisadas, ou nem mesmo assim seguras. Até um ponto. O ponto de ruptura com o que é estranho. A morte. A morte é uma criatura estranha. Retratos de família. Amores-perfeitos. Existem? Sim, as flores. Cresce-se numa cadeia de muitos elos de estranheza, só porque é assim a família de que se parte. E só isso, sem se dar conta durante muito tempo, cria um bicho estranho também ele a crescer subterraneamente e a insinuar que por vezes somos matérias tão diferentes que não há ADN que explique o que nos liga senão uma tradição. E que daí ao amor vão léguas submarinas. Difíceis laços estruturados em rede, em que uns nos trazem outros agarrados por inerência inultrapassável. Proximidades a tornar nítido um desenho de incompatíveis formas. Desarmonias. Quando se tem a sorte de ter uma família grande, é bom. Há sempre aquela metade difícil. Dispersa por inúmeros ramos. Mas há a outra, também. E às vezes difícil. Também. E é talvez assim que se começa lentamente a delinear contornos de imperfeição, sentimentos ambivalentes e contraditórios e uma síntese progressiva entre uns e outros. Valiosa, essa. A aprendizagem da imperfeição. Dos amores imperfeitos. E entre aqueles que são mais infinitos, e aqueles que são menos infinitos, cresce a certeza de que um ou outro, são definitivamente finitos. Ter um avô que se suicidou pouco antes de eu nascer, não me levou nunca a levar-lhe a mal a desfeita. Falava-se pouco desse avô, como se dele pouco sobrasse para além disso. Uma ou duas fotografias minúsculas com aquele detalhe fino do contacto directo com o negativo. A luz desenhada com precisão. O recorte nítido. Mais nítido do que ficou em mim que dele pouco ouvi. Pouco entendi daquelas feições. Um rosto severo e cerrado de contrariedade. Idealismo, talvez. Uma questão de honra, dizia-se. De vergonha. Sítio pequeno. Cercado da vasta planície coberta daquela luz inclemente sobre tudo. E sobre esse talvez idealismo que o fez desistir. Tantos filhos e tantos netos, uma mulher honesta e trabalhadora, e deixou-se sucumbir pelo erro da única filha mulher. Rapariga de menor virtude do que as agruras do tempo e da terra – dele – admitiam. O meu pobre avô Custódio Augusto. Deixou-nos honestamente a culpa em herança. A sua. Não a sua vivida, mas a sua contada. Para se fazer significar. A de existir assim. E toda a outra culpa, que não a dele, sobretudo, e viva para sempre. Afinal. Honestamente e com toda a ternura que me causa esse avô desconhecido, para além do pouco contado – que pena não ter perguntado mais – e de duas únicas fotografias naquele fato preto das ocasiões, não por elegância, que no campo não fazia talvez o paradigma de um homem sóbrio e reflexivo como ele, mas da decência, seja lá o que for que isso é, valeu a pena? Eu digo, e digo com voz pequenina porque o universo é grande e eu não, que temos que olhar com a força possível aquilo de que gostamos, sem memória. Só olhar o momento talvez assoberbado por um sentimento se for maior. E chega para passar ao outro dia. Não ambicionar mais do que a profundidade honesta de um momento, como uma engenharia que não se sabe a que construção leva. Mas algo ficará construído. Na economia complexa da existência. Mas ele não teve a serenidade de aceitar e deixar passar o tempo sobre aquilo que não podia mudar. Mudou o que estava ao seu alcance. Não se conformando com uma realidade, menos do que ideal, real. E deixou que a culpa tomasse conta da vida e depois, da morte. Até muito depois. A culpa é um sentimento inútil à falta de outras qualidades. Sentimentos. As pessoas gostam da sua culpa como de um animal doméstico. Mau conselheiro, quando só. Aborrecido, incómodo, às vezes. Mas o seu animal de estimação. É mais fácil criá-lo do que a um animal desconhecido. Mas triste. Como o medo. O pior inimigo da liberdade. E a culpa, esse animal de estimação, bem alimentado leva longe. A menos-infinito. Como ao avô quase desconhecido, ao desconhecido. E nada mudou à face do universo com a herança que nos deixou. Não sei se é fantasia minha, ou se é a memória do meu próprio olhar ali solto em liberdade condiciona sobre as planícies, sobre o gosto árido das planícies, mas sempre me lembro de gente do Alentejo com uma espécie de olhar mais atirado para longe. Sem obstáculos. E a olhar directamente os olhos dos outros. Dantes. A perscrutar almas e vidas. Talvez a transparência entranhada entre muitas rugas de expressão ou de protecção da íris, daquela luz toda. A semicerrar pálpebras e a atirar mais fundamente o olhar para o espaço grande. No campo. Mas melancólico olhar, talvez. A gerar frio na alma torrada daqueles calores. Sem sombra para abrigo. Virada para dentro então. / Terra da cor dos olhos de quem olha! / A paz que se adivinha / Na tua solidão / Que nenhuma mesquinha / Condição / Pode compreender e povoar! / O mistério da tua imensidão / Onde o tempo caminha / Sem nunca chegar!…Miguel Torga, sobre o Alentejo. E porque não existe uma realidade constante. Mas, sim, estados de consciência, que definem o tom de um olhar nas coisas. Penso às vezes que é a lonjura do mar no interior. Que ali parecia não poder levar a lado nenhum. O tempo ou os passos. Sempre me intrigou o fenómeno do suicídio na planície alentejana. Deveria dizer planura, talvez. Ondulada e ampla. Arenosa, às vezes, e pontuada de sobreiros. Ou oliveiras, a intervalos, como se de propósito para deixar espaço ao desenho nítido das sombras. Nas dunas infindáveis sem mar à vista. Está mais que demonstrado que uma certa alternância nas vagas do sentir momentâneo salva de muitas prostrações, emoções variadas e megalomanias existenciais. Um momento depois, sabe-se, e o que era para ser nessa economia muito espontânea, já não é. É o que nunca era para ter sido senão como vislumbre. Maré cheia, maré vazia. E sempre alternando. Sempre me fez pensar essa melancolia atroz da planura das planícies. Uma espécie de insularidade não reconhecida, não pressentida. A moldar as disposições para a morte. País tão pequeno este e mesmo assim. E ela, pelo contrário, tão, tão resistente. Tão de infinitos. Ainda não passou um mês. Sobre minha árvore-mãe caída. E eu dela. Uma folha. Um lamento privado. De pessoa sem árvore, sem raízes, sem frutos. Um dia destes soube que tinha chegado a outra metade diferente da vida. A menor. Soube-o como folha caída abraçada a outra folha caída da mesma árvore. Ali, ambos, sós em frente à árvore – é bom ter um irmão – ela ainda ali caída e para sempre arrancada pelas raízes. Dias depois os dias começaram a chover e foi terrível. Saber que lhe entregámos o corpo à terra como era seu destino. De árvore. Estávamos ali, dois troncos quebrados à beira da árvore mãe e por momentos entrelaçados num abraço raro e de silêncio, e, na despedida inclemente, a sós. É bom haver um outro ramo da mesma árvore -caída, já disse – e enlaçado no outro único ramo da mesma árvore caída. Ele respondeu-me estamos todos. Cada vez mais sós. Disse como um ramo da árvore ao outro ramo menor da mesma árvore. Foi a coisa mais existencial que lhe ouvi em muito tempo. Morri para dentro um bocadinho e por ele quando disse. Com ele. É bom ter um irmão. Também ali em frente à nossa árvore caída. Já entregue a outra dimensão da cósmica destinação se a há. Ou senão, de um outro sentido qualquer no não sentido de não se querer sentir. Ser capaz. De continuar. E há qualquer coisa especial no facto de termos caído da mesma árvore. Árvore – tronco e raízes fundas, disfarçadas nos objectos que deixou. Tantas coisas que só eu sei por detrás dos sorrisos fixos nas fotografias. Que só eu vou lembrar porque espiava os seus males. Mesmo sem os querer. Saber. Há momentos em que o meu luto é de guerra. O negro é o que se faz por dentro e que nem sempre transpira nas roupas. Mesmo no riso. Estávamos ali. Ramos caídos mas num destino possível. Ou eu e uma folha do tronco ao lado. Ou do mesmo tronco. Com a mesma árvore a quem chorar, com as mesmas raízes soltas da terra. Estávamos ali. Ramos caídos da árvore. Mas estávamos ali, subtilmente entrelaçados para o resto da vida. E há vida. Voltando aos amores-perfeitos. Amores-perfeitos adubados e frágeis mesmo assim. Lindos e frágeis. De aparência. Mas fortes e resistentes. Frágeis e resistentes, como ela. Ao frio. Ao calor. Coloridos e aveludados e manchados de escuro como asas de borboleta. Será talvez assim que as atraem. E às abelhas. Mas duram uma vida de flor. Falo tantas vezes em rosas. Sempre me lembro de as termos em casa, em vasos. Amores-perfeitos, nunca. No entanto, infinitos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasPrevisão por anos de nascimento no Galo de Fogo [vc_row][vc_column][vc_column_text][dropcap]A[/dropcap]no emocionalmente complicado, por trazer muitos riscos, que devem ser evitados. Requer um grande esforço pessoal e exige que se saia da zona de conforto, pois refugiando-se aí, será um ano difícil, com desapontamentos e conflitos. Os quatro signos com melhores previsões para este ano, Galo de Fogo, serão os bafejados pela sorte Búfalo, Tigre, Rato e Serpente. Já os nativos dos signos de Galo, Coelho, Rato e Cão vão ter um ano de grandes mudanças, por se encontrarem num ano Fan Tai Sui, contra o Tai Sui (Deus do Ano), logo podem enfrentar mais problemas, mas há duas diferentes direcções mediante como se encaram as situações. Se forem lidadas positivamente… O caso dos nativos do signo Rato, encontrando-se contra o Tai Sui (Po Tai Sui), mesmo assim não há com que se preocuparem pois têm cinco estrelas da sorte a ajudar nas mudanças e estas, ao contrário do ano passado, vão ser muito positivas. GALO Crescer. Só pelo amor, a sua vida fará sentido e encontrará uma direcção. Será um ano de mudanças difíceis por se encontrar contra o Tai Sui. Para os nativos nascidos em: 1945 – Terá uma vida agradável, sem necessidade de se preocupar com nada e apenas tomar cuidado para não sofrer nenhuma queda. 1957 – O seu pensar traz uma agudeza inteligente, o que lhe permitirá uma posição importante e ser respeitado, tanto socialmente como no trabalho. Por isso, a sua carreira e os proveitos estarão no topo, mas tenha cuidado e não se esqueça da sua cara-metade. Faça planos, pois é bom ano para criar um negócio. 1969 – Se estiver na via cultural e artística terá um ano promissor e com hipóteses de ganhar coisas boas. 1981 – Com a carreia e o dinheiro numa fase estacionária, emocionalmente vai atrair os outros. 1993 – É promissora a sua vida material, mas facilmente lhe pode acontecer um acidente e para conquistar boa energia, celebre com uma grande festa o seu Aniversário. 2005 – Gosta de pensar e é criativo. Terá que ter cuidado ao usar objectos cortantes. O seu sentido de contradição é próprio da idade e dá continuidade ao conhecido por conflito de gerações. CÃO Esperar. Não importa trovoada, vento ou chuva, Sol no seu coração é suficiente. É um ano para esquecer. Para os nativos nascidos em: 1946 – Continuará a ter uma posição que lhe aufere grande respeito. Não necessita de se preocupar com o quotidiano, que não lhe trará problemas, mas cautela com a saúde. 1958 – Vai ser um ano muito activo e com muitos suportes. Aconselha-se aos seres masculinos fazerem uma Festa de Aniversário. 1970 – Com diferentes vias para desenvolver o seu trabalho, tenha cuidado com a saúde e com as lâminas. Faça uma Festa de Aniversário. 1982 – Apresente-se com um bom trabalho e assim a sua posição será confirmada. 1994 – Um ano normal, mas com grande actividade social. Cuidado com os acidentes de viação. Melhor estudar mais. PORCO Retornar. O Céu e Terra não são fáceis de mudar, mude-se a si. Será um ano difícil. Para os nativos nascidos em: 1947 – Com boas relações sociais, terá muitas ideias e sorte nos negócios. Precisa de fazer uma Festa de Aniversário e cuidar da saúde do seu parceiro conjugal. 1959 – Para quem trabalha em assuntos culturais e criativos será um bom ano, materialmente promissor. 1971 – Contará com a estrela da sorte Lu Shen, que trará um bom rendimento e boas relações públicas. Mas terá também uma má estrela Qi Sha e por isso, hipóteses de se magoar, ou ser mal entendido. 1983 – Será um ano estável, sem grandes problemas. 1995 – Ano para se deliciar com divertimentos, mas evite entrar em confronto com os outros. RATO Contentamento. Ouça o coração e o mundo mudará. É um bom ano. Para os nativos nascidos em: 1948 – Tire prazer com a sua existência e cultive uma nova actividade pessoal. 1960 – Boa hipótese de ser promovida/o no trabalho, logo, ganhará mais, mas, não se esqueça da saúde. 1972 – Serão bafejados na carreira e nos rendimentos auferidos pelo trabalho. 1984 – Trabalhando muito, conseguirá boas criações, mas demasiadas relações poderão trazer algo de errado; tenha atenção, não se canse em demasia. 1996 – Pessoas importantes o ajudarão e terá um ano muito criativo; tente algo de novo, negócio ou noutra área de trabalho, pois terá bons resultados. BÚFALO Imenso. Encontrando-se no cume, imagina-se a continuar a subir a montanha. Quando está no sopé, imagina-se a nadar no oceano. Juntando os dois, aparece a Sabedoria. Ano promissor. Para o nativo nascido em: 1949 – A mente estará limpa e os pensamentos fluem-lhe. Ano materialmente rico. 1961 – Estará no topo quanto à carreira e amor. Terá a estrela da sorte Lu Shen a ajudar na sua carreira, o que o levará a chegar a uma nova etapa e por isso, auferir um bom salário. 1973 – Cairá dinheiro nos seus bolsos devido à sua sorte, mas não se esqueça que, no jogo é preciso sempre saber parar. 1985 – O trabalhar árduo levará a ser promovido e para o sexo feminino, cuidado com os acidentes. 1997 – Estudando bem terá reconhecimento dos mais velhos, que admirarão as suas ideias e criações e assim, brilhantemente se prepara. TIGRE Florescente. Não seja o número 1, seja Único. Viver coloca-o a voar. Ano muito favorável. Para os nativos nascidos em: 1938 – Muitas pessoas irão tomar conta de si, não se preocupe com nada mais. 1950 – O seu poder e posição crescerão e muita gente o respeita. 1962 – Coloque no seu coração a carreira e conseguirá tudo o que deseja. 1974 – Muito criativo, mas cansado do trabalho; cuidado com a saúde. 1986 – Muitos planos para este ano e com bastante suporte e apoios; por isso pode investir de uma só vez em todos os lados. 1998 – Será protegido pelos pais, estudará muito bem e de repente, passará a falar muito bem. COELHO Espera. Com boa sorte, avance, mas com azar, fique quieto. Vai deixar algo e o novo tomará lugar ao velho. Ano não muito favorável. Para os nativos nascidos em: 1939 – Continua com uma mente clara e muita gente irá tomar conta de si. 1951 – A estrela da sorte Lu Shen ajudá-lo-á na carreira e por isso, receberá um bom ordenado. Terá uma vida social e emocional activa, o que o expõe e leva as pessoas a falar sobre si, bem ou mal, criando bastante ruído. Assim, quando decidir realizar algo, tome cuidado para não deixar a cauda de fora. Tome atenção à sua saúde. 1963 – Receberá um dinheiro extra. Use este ano para desenvolver um novo projecto, que lhe poderá abrir uma nova porta. 1975 – Com árduo trabalho conseguirá o que precisa, não abuse das horas extras pois precisa de pensar na sua saúde. 1987 – Terá imensas ideias e uma activa vida social; o Deus do Ano (Tai Soi) pode colocá-lo numa nova situação. 1999 – Terá riqueza material e será um bom estudante. Realize uma grande festa de Aniversário para evitar problemas. DRAGÃO Paz. Quando olha desde o cume, nada lhe retira a vista; abrindo o seu coração sente a pulsação, sendo daí que provem o Bom ou o Mau. É um bom ano. Para os nativos nascidos em: 1928 – Muitas pessoas irão tomar conta de si, não se preocupe com nada mais. 1940 – Respeitado pelas pessoas, não realize difíceis e árduos trabalhos. 1952 – Um bom ano para dinheiro e pode ter a sua carreira num novo patamar. 1964 – Apresente as suas habilidades para chefiar a sua carreira; é o centro do grupo. 1976 – É o ano apropriado para criar um novo negócio, pois conta com bastantes suportes; os seres masculinos necessitam de fazer uma festa de aniversário para precaver desastres. Cuidado com a cana do nariz. 1988 – Estude e será promovido pelo seu chefe, o que lhe trará riqueza material. SERPENTE Prestígio. Desconstrua a sua imagem para encontrar a verdadeira. Vai ser um excelente ano. Para os nativos nascidos em: 1941 – A boa estrela Lu Shen significa ter um bom rendimento e boas relações públicas. Cuide da sua vida emocional e não misture os sentimentos. 1953 – Terá dinheiro extra e variados investimentos dar-lhe-ão muitos proveitos. 1965 – Fará um muito bom planeamento e contará com uma boa qualificação para o realizar. 1977 – Com bastantes suportes, será muito criativo na sua carreira e de todos os nativos de Serpente, é quem conseguirá alcançar mais proveitos materiais; festeje o seu Aniversário e convide todos os familiares. 1989 – Muita gente tomará conta de si, não importa no estudo, ou no trabalho, mostrar-se-á em boa forma. Especialmente se trabalhar em arte, ou assuntos culturais, conseguirá fazer uma boa obra; ano que terá muitas coisas boas para comer. 2001 – Rico materialmente é ano para se apaixonar, mas não entre de cabeça na relação pois ainda tem muito para viver e experimentar. CAVALO Emocionante. É vencedor se não pensar no que ganha, ou no que perde. Para os nativos nascidos em: 1942 – Tem a estrela da sorte Zheng Cai, que o ajuda pelo trabalho a ganhar dinheiro. Vida segura e respeitável, assim como um tranquilo desenvolvimento. 1954 – Trabalhará duramente para criar um novo patamar, mas terá de cuidar da saúde, especialmente evitando noitadas. 1966 – Vai ter um novo desenvolvimento na carreira. Uma boa relação suporta-o, com uma vida social rica. 1978 – Muita gente o suportará, estude bem e o Amor é maior que o Céu. 1990 – Faça grande publicidade a si mesmo, pois terá muitos aplausos. Muito cuidado ao praticar desportos radicais. Será conveniente celebrar o seu Aniversário com uma festa. CABRA Tranquilo. O valor de uma pessoa não está conectado com o quanto tem, ou ganha, mas, quanto não gasta. Ano sem grandes problemas. Para os nativos nascidos em: 1943 – Bons rendimentos, tendo os outros a tomar conta de si. Vida estável e sem problemas. 1955 – Grande criatividade e de riqueza material, pois contará com um bom desenvolvimento nos negócios. 1967 – Um grande poder dá-lhe suporte, conseguindo ser promovido. Mas este ano poderá ver um familiar passar desta vida e por isso, deverá fazer uma festa de Aniversário para, pelas boas energias reunidas, evitar que tal aconteça. 1979 – É bom desenvolver o seu talento nas artes e cultura, o que lhe trará novos caminhos e rendimentos, assim como boas refeições. 1991 – Pensará apenas em fazer amizades e ficar apaixonado, mas a mente estará contra tudo o que lhe é proposto, o chamado espírito de contradição produto do denominado conflito de gerações, próprio da idade e que serve para se questionar e ao colocar em causa algo, permite pensar sobre isso. MACACO Florescente. Aceite as mudanças e não se prenda com pormenores. Ano razoável. Para os nativos nascidos em: 1932 – Este idoso macaco é rico e com a sua posição, imensas pessoas continuam a respeitá-lo. Não se esqueça de fazer exames à saúde. 1944 – Criativo, continuará a trabalhar arduamente, mas não até se sentir exausto e tome cuidado para não misturar as suas emoções. Se for solteiro, parabéns, pois terá uma nova relação sentimental. 1956 – Um novo patamar espera por si, com a ajuda dos seus colegas e amigos. Irá criar uma nova actividade/negócio. 1968 – Mostre talento e terá diferentes hipóteses no seu desenvolvimento. 1980 – Com boa apresentação, será promovido e terá um salário mais elevado. Tornar-se-á famoso na sua área, apenas precisando de ter cuidado para evitar acidentes; por isso, guie com cuidado. 1992 – Conseguirá o emprego perfeito como vem desejando. ….. Neste artigo seguimos as previsões feitas por Lei Koi Meng (Edward Li).[/vc_column_text][td_block_12 custom_title=”A NÃO PERDER” color_preset=”td-block-color-style-1″ post_ids=”-15511″ tag_slug=”ano novo chinês” limit=”3″ ajax_pagination=”next_prev” css=”.vc_custom_1486746193360{padding-bottom: 15px !important;}”][/vc_column][/vc_row]
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasPaisagem de mãos e rostos Facebook, 23 Janeiro [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e Freitas, mano maneiro que maneja o post como farpa, assinou: «anda tudo muito preocupado com o Trump e o caraças mas era importante lembrar outros flagelos, por exemplo, gajos que tratam os amigos por “Mano”.» Tem razão. Não sendo novo, as redes amplificaram muito este modo de dizer proximidade, intimidade, fraternidade. Mastigado em tique, ganha a vacuidade da pastilha elástica. Limpa o hálito, sugere um ar cool, pode até aliviar os nervos, mas acaba cuspida. Custa-me ver atirada assim palavra com espessura. Gosto muito de companheiro, o que partilha o pão. Estou longe de desdenhar camarada, o que partilha a camarata. Mano, contudo, desdenha a realidade prática e activa os cegos afectos, os da absoluta liberdade. Ainda que contenha mão e portanto gesto. Desenvolvendo a manobra, mano-a-mano propõe ainda a igualdade básica dos diferentes. Confesso, portanto: ainda que cada vez mais preocupado com Trump, ou talvez por isso, continuarei a manusear o flagelo. Desculpa lá, mano novo, em dias de peste, só a fraternidade de punhos no ar evitará mais cadáveres. Os de corpo e os de alma. Horta Seca, 25 Janeiro Vestia sempre de verde, em vários tons, mas apenas detectado por olhar atento. A suave discrição camuflava-o com cores pastel de uma aparente normalidade. E no entanto o seu verde-arco-íris era uma afirmação gritante. Mário Ruivo foi dos poucos portugueses que viveu voltado para o sítio certo: o oceano. Cruzou ciência e política, teoria e prática, com notável ponderação, sempre ao serviço da revolucionária ideia de desenvolvimento sustentável. Tudo isto muito antes do ambiente se ter tornado moda e, portanto, pronto-a-vestir. Demoraremos, como de costume, anos a perceber a dimensão exacta da sua herança, a originalidade da sua perspectiva, a inteireza do seu serviço público. Recordarei a generosidade de inúmeras partilhas, invariavelmente de sorriso nos lábios. Sem ele, o mar seria bem mais descolorido. Paris, 26 Janeiro Não percebi logo que a edição do Liberation que me recebia era aquela toda ela ilustrada, o que acontece assim há décadas por ocasião do Festival de Banda Desenhada de Angoulême, ideia que importámos para o Público, nos idos anos 1990, e, mais recentemente, para o Diário de Notícias. Cena doméstica japonesa com gato, desta matéria se faz a primeira, assinada por Minetarô Mochizuki. Folheio com fastio sem que a actualidade me apanhe até que. Eric Lambé, animador do grupo Mokka com Alain Corbel, ambos velhos parceiros, dá-se em entrevista por causa do recente «Paysage après la bataille» (Actes Sud BD/FRMK), que desenhou sob influência do argumento de Philippe de Pierpoint. Só em França um diário de referência oferece este destaque à bd e se permite tratar obras assim desta maneira. A protagonista, uma mulher em luto pela perda de um filho, surge muitas vezes de costas e sem rosto, o que suscita a curiosidade do jornalista. Eric explica então que «até ao fim do livro me perguntei quem ela era e qual poderia ser o seu rosto na “realidade”. Talvez seja isso um livro, procurar um rosto, procurar uma pessoa…» Confessa ter pensado redesenhar todos os rostos no final, mas percebeu que aquela figura depurada fazia parte da criação e que assim deixaria espaço à imaginação do leitor. Rostos que se procuram na planície da página, para que mais serve o gesto de criar? A mesma dupla assinou um brutal e doloroso «Alberto G.» (Seuil/FRMK), em torno do genial Giacometti, que também assombrou esta minha estada. Fundação C. Gulbenkian, Paris, 26 Janeiro «O máximo de presença com um mínimo de gritos», assim definia Ângelo de Sousa o seu programa, cuja obra se apresenta pela primeira vez em França nesta fulgurante «La couleur et le grain noir des choses», que faz também ela jus à premissa, «o máximo de efeito com um mínimo de meios». A mão estende-se aqui paisagem a perder de vista, seja em desenho ou fotografia, pintura ou filme. Corpo e objecto, coisa útil, portátil e sempre disponível, à mão de semear no olhar do artista. Omnipresente ou apenas adivinhada. Signo maior do gesto, o que traça a linha, o que dispara o obturador, o que recorta as pequenas esculturas. Nunca me senti tão atraído e empurrado de um lado para o outro. O ordinário e o efémero, o lixo e o prosaico, ratos mortos e ruínas convivem brutalmente com a abstracção e o sublime movimento da cor na pele da tela e a dança das formas do aço tintado ou das orelhas postas em irrequieto sossego. Nunca o belo foi tão feroz. Apetece gritar. «Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto». Fundação C. Gulbenkian, Paris, 26 Janeiro Soou incómodo ouvir, e agora, de algum modo, escrever, mas de que serve o pudor, quando estamos sós? Na biblioteca lusófona do bd de La Tour Maubourg, pela mão dita de Anne Lima, da Chandeigne, falou-se, pela primeira vez, não em França, mas em público, do modo como a abysmo se vem fazendo centro de uma intrincada rede de autores, que vai muito para além do tornar livro. Para o melhor e para o pior, têm explodido por aqui encontros de vários graus, leituras em voz alta, projectos partilhados, opiniões discordadas, antologias recolhidas e interpretadas, ensaios dirigidos, mergulhos em apneia nos manuscritos – mesmo no computador, é a mão quem mais ordena – de uns e de outros. Já tinha acontecido, apenas em perfume, em contos do Valério Romão, afinal o pretexto que nos trouxe a este «rencontre de la bibliothèque», mas este ano passará a um outro nível quando alguns autores se tornarem personagens. Que rostos virão a ter, na realidade?
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasActos de fé & Fumo negro 03/02/2017 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira vez que aterrei em Maputo, em 1995, encontrei à entrada do Hospital Central um amputado, de ambos os pés, que vendia sapatos só de pé esquerdo. Impecavelmente engraxados. Cem meticais por sapato. E o par, perguntava o traunseunte curioso. Há-de chegar… – jurava com aquele brilho fanático nos olhos que encontramos nos aficionados da agricultura biológica – o mister passa cá pra semana… e lhe garanto o par. O eventual comprador era convidado a um acto de fé. Ai de quem pusesse em dúvida a convicção de que o vendedor completaria a entrega da metade que faltava. Tão insubornável fé só a reencontrei num vendedor de cautelas em Cacilhas, no outro lado do Tejo. Ia apanhar o cacilheiro e apanhei-o a limpar com papel de jornal as lentes de casco de garrafa dos seus óculos, de haste presa à armação por um arame, enquanto a sua boca de um verdete desdentado, proferia para um tipo de fato Boss, sapatos italianos e pingente de ouro na gravata: Eu há vinte anos que jogo no mesmo número! Apanhei a frase no ar e desviei-me para um balcão, no fito de beber um café e de ruminar três minutos no absurdo de um maltrapilho tomar a miséria por oráculo. Gente que acredita cegamente em «factos alternativos», tal como Kellyanne Conway, a assessora de Trump, que, para justificar um decreto idiota, inventou um alegado atentado que nunca se verificou, o massacre do Bowling Green. Simultaneamente, e não é acaso se na moldura da comédia humana tais actos coincidem com a institucionalização dos «factos alternativos», foi destaque da semana a ímpia permissão que esteve quase a ser sancionada pelo parlamento romeno, o qual queria legitimar o desvio de fundos públicos, por abuso de poder, desde que não se ultrapassasse a irrisória quantia de duzentos mil euros. Esta piedosa imoralidade ganhou o seu primeiro argumento em plena Europa. Porque foi com certeza uma primeira tentativa e este novo guião para uma futura regulação política dos bens e dos erários públicos irá repetir-se e vingará, dado que cai como ginjas no estado pantanoso em que se locomovem inúmeros Estados. Lembremos o caso do Brasil. Há-de pois espantar-me o que li hoje nos jornais moçambicanos, sobre o ex-genro do ex-presidente Guebuza, o mesmo que assassinou a filha deste, há dois meses atrás? Relatava-se assim no novo «facto alternativo»: «Zofino Armando Muiane, segundo consta da acusação particular da família Guebuza, é um espião sul-africano que usava o nome de Washington Dube». Hesitamos, se rimos se choramos. A seguir, na grande maioria dos estados africanos, virá impor-se a nova lei, imitada da desenvolvida Europa. 04/02/2017 É uma coisa maravilhosa a força com que as mulheres sobressaem no actual momento da literatura portuguesa. Tanto na poesia – e bastam-me cinco nomes: Raquel Nobre Guerra, Joana Emídio Marques, Rita Taborda Duarte, Inês Fonseca Santos e Maria João Cantinho – como na prosa, aonde, dentro do que pude ler (e mais não refiro por não terem chegado a Maputo), dois nomes se destacam com livros recentes que são a todos os títulos excepcionais: Ana Margarida Carvalho, com Não se pode morar nos olhos de um gato, e Alexandra Lucas Coelho, com Deus Dará. A literatura no feminino dá cartas, aparenta ser um feixe de enorme energia que veio para ficar, o que não significará apenas uma afirmação individual como um insofismável avanço na paridade social, cunhada nos patamares simbólicos, E interrogo-me no mal-estar que estas mulheres emancipadas, inteligentes, maduras, poderão sentir perante a notícia de que a lei russa despenalizou a violência doméstica, mormente se o homem a não pratica mais do que uma vez por ano. É que tudo o que é mau, tende a repetir-se em todas as latitudes. Uma vez por ano, argumenta-se, não faz um agressor, é um mero problema de comunicação no casal, que muito carinho posterior pode atenuar. Bom, há casos em que a violência no casal pode ser mútua. Mas são minoritários. O que interessa é o pano para mangas que o retrocesso desta lei dá ao álibi, esquecendo que as relações assimétricas são claramente maioritárias. E ficando o agressor sem cadastro isso não dará azo a novas investidas? Ao fim de quantas vezes se considerará ser a primeira vez? O que me faz lembrar certas tradições rurais moçambicanas pelas quais se ensina a seviciar a mulher sem deixar marcas (consulte-se sobre estas e outras matérias o portal da Wlsa. Talvez por isso tenhamos assistido a esta aberração: a independência de Moçambique, durante 35 anos, não produziu uma única poeta à altura das duas que o colonialismo fez brotar: Noémia de Sousa e Glória de Sant’Anna. 07/02/2017 O que é um ateu? Agrada-me esta definição: alguém que é imune à idiolatria e que livre, até de si mesmo, não teme contradizer-se. O que autorizará o caso de ateus-que-são-intermitentes, como eu, no sentido em que têm fé, na graça epicurista do vestido amarelo que esculpiu o corpo da macua que passou agora à minha frente na esplanada, espalhando no ar uma intensidade que contamina, por exemplo, como num género de inteligência-não-circunscrita – sem que para isso necessitem de acrescentar um nome à origem dessa energia transpessoal. O Budismo, neste sentido, alheia-se da necessidade de nomear Deus. Vem isto a propósito de uma das palavras que mais tem inundado o imaginário popular dos últimos tempos e que está de facto a ter um peso terrorista: a apostasia e o seu praticante, o apóstata. Palavra que julgava banida. Considero insultuoso que metade da humanidade me considere um apóstata. O ateísmo e o laicismo tem sido vilipendiados, nestes últimos anos, e considero que um dos combates do século passará por recuperar o direito e o bom nome de uma espiritualidade sem Deus.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasDevolvam a dignidade às filhas do galo 为鸡平反 [dropcap style≠’circle’]“[T[/dropcap]rump é] em primeiro lugar um homem adulto e, em segundo lugar, alguém que esteve envolvido na organização de concursos de beleza e que como tal conheceu ao longo de muitos anos algumas das mulheres mais belas do mundo. Custa-me muito a acreditar que ele fosse a correr para se encontrar num hotel com raparigas de moral duvidosa, embora as nossas sejam sem qualquer sombra de dúvidas as melhores de todo o mundo.” E desta forma promove Putin o turismo sexual na televisão russa. Os cidadãos cibernautas de todo o mundo ficaram em choque com esta avaliação de cinco estrelas do Sr. Vladimir Bazófias. Apesar de tudo isto sinto-me tentada a disponibilizar aos meus leitores alguns factos alternativos (grin grin), lembrando as palavras eruditas de Lin Yutang: “Ninguém deverá menosprezar o importante papel desempenhado pelas prostitutas chinesas nas relações românticas, na literatura, na música e na política.” Na antiga China, as damas da nobreza não precisavam de ser inteligentes nem talentosas para ser respeitadas. “Uma mulher é virtuosa desde que seja ignorante” é um provérbio que remonta à Dinastia Ming (1368-1644). Uma boa esposa chinesa é obediente ao marido, dedicada aos filhos, responsável pelas tarefas domésticas, virtuosa e ignorante em todas as outras matérias. Como se esperava que as esposas e concubinas seguissem os códigos sociais, os homens ricos e proeminentes procuravam legitimamente parceiras intelectuais fora de casa. Agora aqui vai uma lista de prostitutas/poetisas famosas que deixaram uma marca na memória colectiva do povo chinês, e não só porque dançavam e cantavam para ganhar o pão nosso de cada dia. Algumas delas mudaram a história, para sempre. Su Xiaoxiao 苏小小 Também conhecida como Su Xiaojun, foi uma cortesã chinesa que viveu em Qiantang City (Hangzhou dos nossos dias) durante a Dinastia Qi do Sul (479–502). Morreu com apenas 19 anos de idade. Foi cortesã e também poetisa. Havia quem pensasse que ela não queria ser esposa nem amante de ninguém. Assim, ao contrário das mulheres que ficavam enjauladas nos casamentos, optou por partilhar os seus encantos. Li Shishi 李师师 Cortesã da cidade de Kaifeng, capital da Dinastia Song (960-1127), Li destacou-se pela sua incrível versatilidade. Era dotada para o canto, para a dança e para a poesia. O seu talento e beleza atraíram muitos escritores, poetas e oficiais abastados. O Imperador Song escapou-se do palácio numa noite de tempestade para ir ao seu encontro. Mais tarde veio a tornar-se viciado em laranjas descascadas pelas suas delicadas mãos. Os 108 heróis de a Margem Aquática não conseguiam conquistar uma posição na corte Song sem a interferência “entre lençóis” de Li. Chen Yuanyuan 陈圆圆 Chen Yuanyuan (1624-1681) foi uma prostituta muito conhecida que viveu durante os finais da Dinastia Ming e os inícios da Dinastia Qing. Foi concubina do General Wu Sangui. A captura de Chen por Li Zicheng, (o rebelde líder da revolta que depôs a Dinastia Ming), foi o motivo que levou Wu Sangui a abrir os portões da Grande Muralha para deixar entrar os Manchus. Liu Rushi 柳如是 Liu Rushi (1618–1664) uma célebre cortesã que viveu nos finais da Dinastia Ming (1368–1644). Foi considerada por muitos estudiosos como a prostituta mais respeitável da antiga China, devido à sua lealdade à família real. Recusou submeter-se aos Manchu, os novos senhores. Sai Jinhua 赛金花 Se ela não tivesse seduzido o Comandante Alemão do Exército das 8 Nações Aliadas durante a Revolta dos Boxer, não estou a ver como é que muitos dos artefactos chineses que estão actualmente nos Museus de Berlim, Londres, Paris e Moscovo lá tinham ido parar. Deveria ser nomeada para receber um prémio do Ministério da Cultura. Sai Jinhua (1864 – 1936) foi uma célebre cortesã dos finais da Dinastia Qing. Tornou-se prostituta aos 20 anos. Casou-se com um oficial imperial de alta patente como sua concubina e viajou com o marido pela Rússia, Alemanha, Austrália e Holanda, como embaixatriz. Depois do Exército das 8 Nações ter invadido Pequim, teve uma relação com o Comandante Alemão. Xiao Fengxian 小凤仙 Xiao Fengxian (1900-1954) prostituta afamada que conheceu os últimos anos da Dinastia Qing e os alvores da República da China. Foi a prostituta mais célebre do maior bairro de Pequim de “lanternas vermelhas”. Tornou-se amante do General Cai E, o líder revolucionário que pôs fim às ambições imperiais de Yuan Shikai. Sem a influência da sua alcova o General Cai não teria arriscado a vida e voado para Yunnan para declarar a independência. Os sonhos imperiais de Yuan Shikai teriam vingado e estaríamos a ajoelhar perante o neto do Grande Yuan nos dias que correm. Esta mulher foi sem dúvida o arquitecto da reconstrução da República. 2017 é o Ano do Galo. Da Franga para alguns. “Franga” é calão para prostituta no chinês moderno. Nas ocasiões festivas, um frango bem cozinhado é um dos pontos altos de todos os banquetes familiares. Um chef chinês que se preze passa horas a suar na cozinha para fazer jus às receitas de que tanto se orgulha, subtis, mas cheias de sabor, e que demonstram em larga escala invenção e criatividade. Ao contrário das preparações rápidas, típicas das cadeias internacionais de fast food, a cozinha chinesa trata com o respeito que lhes é devido frangos e … as “frangas”.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO Endovélico Oiseau de fer qui dit le vent. Oiseau qui chante au jour levant. Oiseau bel oiseau querelleur. Oiseau plus fort que nos malheurs. Louis Aragon [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira Lua-Nova de Janeiro começa para os chineses o Ano do Galo, donos de um bonito bestiário que define o seu calendário, diz a lenda que foi Buda que os convocou e lhes deu as características, havendo mesmo uma passagem graciosa na vasta hierarquia: escutando tal convocação, o Rato que se encontrava distante e último do bando, passa rapidamente todos os outros e se prostra aos pés de Buda. Este, achando graça, lhe dá então o primeiro lugar pelo dom da audácia e do encanto. Neste universo oriental não andamos distantes da frase bíblica, quando afirma «os últimos são os primeiros». Ano nosso de 2017, pois que outros se encontram em tempos vários, derivados a partir de alguém ou de alguma coisa, já que o tempo é um desmedido instrumento com que a nossa imponderabilidade se debate e nem Galos, nem Cristos, nem Egipto, nem Esferas, nem Ciclos, se nos impunham, caso fossemos imortais. É a efemeridade da vida de cada coisa e de cada um que dita os ritos de passagem. Sabemos que são os mais “parados” quem melhor maneja o tempo e Buda é aqui um princípio cósmico fabuloso e o nirvana um para lá de um instante muito físico do acto relativo do viver. O ser animal que aqui se trata é mundial, concreto, jactante, e para nós, a Ocidente onde a luz vem morrer, encontrou na Europa uma paragem onde estacionou o seu maior mito e devoção; eles são gauleses – País de Gales – Galiza, toda a mancha céltica em busca de uma pena e na crista do seu canto «Por-tu-galo Por-ti-galo» Graal … Galá-lo…. ! Eis-nos em romagem na zona funda do tempo Lusitano a um culto da Idade do Ferro, pagão, ctónico, relacionado com o submundo, com cabeça de Galo e corpo de homem, o Endovélico. Na região do Alentejo, mais exactamente no Alandroal, no Santuário da Rocha da Mina, onde o seu culto se mantém, passa um ribeiro chamado Lucefécit o topónimo sugere Lúcifer mas é mais provavelmente de origem árabe, oucif, negro, mas adaptado a “Lux”, luz em latim, tendo passado para uma conotação negativa a partir da era cristã, pois que estes são altares em plenas entranhas dos mais importantes cultos pagãos. E tanto assim foi que passou a zona proscrita e as Cantigas de Santa Maria referem-no como «um rio que per y corre de que seu nome não digo». Galo Negro. É à beira deste estranho rio que na primeira Lua-Cheia do Solstício do Verão alguns grupos se reúnem, soltam um galo de penas coloridas junto à pedra do altar sacrificial pedindo que em sonhos lhe seja restituída a imagem do deus e muitos afirmam tê-lo visto dormindo. Ainda na Rocha da Mina e escutando a sua mensagem e, talvez, até William Blake o tenha sentido quando na sua arte, a fonte mágica, nos lega em gravura tantas cabeças de galos em corpos humanos. Ele pode augurar também (e mudamos de registo) maus momentos: «hoje mesmo antes do galo cantar renunciar-me-ás três vezes». As coisas que se tecem num mesmo ser que passa o tempo em tantos sinais! A terra dos nevoeiros vive no fundo ofuscada pela altaneira e solar figura, que sendo germinativa, não deixa de elucidar acerca da necessidade de fecunda prole, mas onde ela se encontra e em que lugar, neste entardecer poente da Terra? As águas de um ribeiro não são as atlânticas, mas mesmo estas estão imbuídas das suas fontes e, claro, se os romanos tudo romanizaram e humanizaram na forma, mesmo assim os seus legados da figura Endovélica não deixam de atribuir as particularidades deste representativo macho das auroras. Vemo-lo ainda no topo das casas orientando os pontos cardeais… vemo-lo junto ao Tejo que pequeno fica com a sua escultura ao culto… vemo-los ao peito, mais junto do que nós ao coração dos que amamos, ouvimo-los cantar quando no Verão, mais a sul, queremos dormir, mas, exactamente, ninguém os vê. Percorri todo o povoado para lhes dizer que estava cansada desse canto e nada me foi dado certificar da sua existência. Seriam Endovélicos? Vem o Galo de Fogo! Ora isto requer ainda mais talentos, pois que fica pleonasticamente o elemento de si mesmo e nas sonoras forças que ainda nos puxam para terreiros onde a cristandade não passou ou passou de forma a tirar o canto à ave, nós sempre nos vamos reflectir nas águas fundas de um poço com a deidade que em nós ainda mora e fazê-la levantar voo para a luz. São caminhos sagrados, estes, que lá estão, e não sei se por serem oraculares não venham também os eflúvios que fazem desses vapores o lado alucinogénico das palavras proferidas. Ali não há incêndios. No entanto, o país evapora-se aos poucos num manto preguiçoso de fogos que lavram como línguas as devastadas terras lusitanas, onde por força da desdita morreram os nossos sonhos, calcinado e bonito, arrancaram-lhe a alma e ficou assim, como as estátuas dos gentios. Estamos sempre a desejar em muitas frentes, como nos fogos: Bom Ano, Bom Natal, Bom Aniversário, Boas Férias, Boa Viagem, e se uns se ateiam um pouco mais, há aqueles que não lembram ao Endovélico… não lembram nem a Lúcifer, o verdadeiro deus que faltava. Bom Ano a vós que a Oriente me escutais nesta miragem.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasLer mal poesia é como expulsar um homem da vida [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ouco se tem escrito acerca da poesia de Nuno Moura. E não devemos atribuir isso à falta de qualidade da sua poesia, mas antes, como muito bem escreveu o poeta e crítico Henrique Manuel Bento Fialho in “Antologia do Esquecimento” (13 de Dezembro de 2014): “A desfortuna crítica a que tem sido sujeita a poesia de Nuno Moura (n. 1970) concorda com a suspeição de uma cobardia latente nos recenseadores nobiliárquicos. Seria possível fundamentar uma censura da linguagem praticada pelo autor de Nova Asmática Portuguesa (Mariposa Azual, 1998; 2ª edição, 2013) ou simplesmente cair na ladainha laudatória e afectiva do costume, mas ignorá-la denota um incómodo que a singularidade de uma voz desde sempre diferente das restantes pode provocar mas não justifica. Não justifica, sobretudo, tão confrangedor silêncio.” Mais recentemente, a 17 de Dezembro passado, o também poeta e crítico Manuel de Freitas escreveu no Jornal Expresso acerca de um dos mais recentes livros de Nuno Moura, Clube dos Haxixins, Douda Correria, 2016. Escreve o crítico, logo no início da sua resenha: “O modo como Nuno Moura não leva a sério a poesia sempre me pareceu importantíssimo, coerente e apelativo. Reconheçamos, porém, que situar a sua dicção anarco-tardo-surrealista-lisboeta-até-ao-osso é tarefa tão inglória como decidir em que género musical se deve arrumar John Zorn.” A atribuição de uma singularidade de voz a Nuno Moura é comum a ambos os críticos. O que é a poesia para Nuno Moura só ele poderá responder, mas ao nos interrogarmos perante os seus livros, as suas várias editoras e a multiplicidade de eventos de poesia em que vem participando e promovendo ao longo de quase duas décadas, somos levados a crer que a poesia é a sua vida, ou que a poesia é o que há de mais sério na sua vida. A poesia é um modo de habitar o mundo, assim como o é a mecânica quântica ou a música. E o mundo de Nuno Moura é o mundo da poesia, ainda que a sua poesia possa ser muito diferente da poesia da moda, se é que a há, da poesia anti-moda ou até da poesia sem moda nenhuma; uma diferença que não tem medida, porque suspeito que não haja medida para a diferença. A Minha Casa é um livro que saiu pela primeira vez em A Voz de Deus, das Edições Mortas, em 2004, e foi agora re-editado, em 2016, pela editora Tea For One. E o terceiro verso do pequeno livro-poema de 12 páginas (o livro tem 15) é: “Desenho vestidos para a minha mãe fazer.” E este verso poderia muito bem ser o que melhor define a poesia de Nuno Moura: apontar caminhos para aqueles que ama; sonhar, não com quem se ama, mas com o que se deseja para aqueles que se ama. Um poema em Nuno Moura não é apenas um lugar de chegada, um bar onde nos sentamos, tiramos os casacos e bebemos um chá ou um whisky, com um ou dois dedos de conversa ou de leitura. Um poema em Nuno Moura é também um modo de se manter de pé, de copo na mão, falando com todos e com ninguém, como quando saímos de casa para ir à rua. Dito de um outro modo: apesar de um poema tentar inventar um mundo para aqueles que ama, ele habita o enorme mundo dos outros que não se ama e nem se odeia, o enorme mundo do desinteresse humano. É como se os poemas de Nuno Moura tivessem um pé no amor e outro no caralho “ta” foda. E escreve Nuno Moura à página 9: Pequeno Moura – Tenho os pés frios. Mãe Moura – É mentira tudo o que se fala do tempo, filho. O desconcerto dos versos de resposta, está tanto na palavra “mentira” quanto na palavra “tempo” ou na palavra “filho”. “Mentira” atinge porque desacredita a dor do filho, “tempo” atinge porque não podemos deixar de ver o tempo que passa ao invés do tempo meteorológico e “filho” porque esta palavra nos aparece no final destes versos falha de afectividade, ou pelo menos assim parece. Não podemos dizer que na poesia de Moura o que parece é. Nos poemas do poeta o que aparece é e o que não é passa a ser, como no exemplo do tempo, dos versos acima citados. Estamos sempre naquela encruzilhada entre uma afectividade gigante e um desinteresse maior, assim na vida como no poema. Aquilo que tu sentes não interessa para nada, e aquilo que eu sinto é o sol do universo. E de uma pequeníssima semente de atenção pode brotar uma árvore gigante, um casamento. Sérgio Godinho canta na sua canção “Caramba”, “já que o futuro vem / em peças separadas p’ra montar”, e na poesia de Nuno Moura sentimos que os próprios passado e presente também vêm em peças separadas p’ra montar; a vida vem em peças separadas p’ra montar, e a poesia de Nuno Moura é o reflexo maior disso mesmo. Tenho por vezes a sensação, se aparecer alguém e me empurrar contra a parede eu fico com os braços levantados e caio para a frente. Se eu cair no chão e disser “vou desmaiar” eu desmaio, se eu disser “eu vou para outro mundo” eu morro. Se alguém me amparar eu caso. Por outro lado, e também tal como na vida, não há elementos que não sirvam para um poema. Não há hierarquia na página de papel onde o poema se desenha. Números (528), datas (Natal de 1977), partidos políticos (pp, partido comunista), lojas de roupa (La Redoute), detergente de loiça (superpop), estações do metro (Sete-Rios), bifes, pneus, pilas, deus e, ainda, o diabo a sete; tudo serve para um poema. De um modo ou de outro, tudo faz parte da vida e o poema não deixa nada, do que é da vida, de fora. Tudo o que vem à rede pode ser poema. Porque é na fragmentação que se encontra o sentido. Dito de outro modo: a realidade aparece-nos estilhaçada a cada instante e o sentido, no poema, faz-se na projecção desses mesmos estilhaços, isto é, na invenção de estilhaços de modo a mostrar a multiplicidade de outros que habitamos. Não estamos diante de uma poesia fenomenológica, mas na sua antítese. E antítese, não enquanto tematização, mas enquanto sentimento do real, enquanto circunscrição ôntica e não ontológica. Pequeno Moura – I have no problems with Joyce. Mãe Moura – Melhor para ti, meu filho. Versos que iluminam bem o que dissemos no parágrafo anterior. Este “I have no problems with Joyce.”, em inglês para reforçar a ideia de que nenhuma dificuldade literária vale um pentelho de vida, é, antes de mais, uma posição poética da vida, que entende a poesia a léguas da literatura e do circo da mesma, com os seus elefantes amestrados, hebdomadários (como eu mesmo aqui), professores universitários e ensaístas. “I have no problems with Joyce.” O meu problema é, como ele escreve quase já no fim do livro, “(…) Finjo que te amo quando caminhamos / por uma zona onde podemos ser assaltados. / Eu finjo a coragem e o acolhimento.” É com a vida que o poeta tem problemas, adivinha-se. É com o amor, que se tem e não se tem – mas ainda assim temos de ter de alguma forma, porque mesmo sem amor amamos os outros – que o poeta tem problemas. É com “esta zona perigosa”, que pode ser um qualquer momento da vida, que o poeta tem problemas. Com Joyce? None! Nem unzinho pra amostra. E Nuno Moura estabelece uma tautologia sui generis, que identifica o mal, só possível para quem a vida é a poesia e a poesia é a vida: quando um homem diz a outro “vai-te embora” é um extremo de mal idêntico a escolher um livro de poesia para ler aos amigos e lê-lo mal. Ler mal poesia é como expulsar um homem de casa ou um homem da vida. Antes de terminar com os versos do poeta, lamento que esta edição tenha apenas 100 exemplares, mas fico muito contente por uma ser minha. Mãe Moura – Andam a bater bifes no prédio vazio ao lado. Grande Moura – O que é que se passa? Mãe Moura – Só se conhece um homem no seu extremo quando ele diz vai-te embora ou quando ele vai escolher um livro de poesia para ler aos amigos e o extremo é ele ler mal, mal, mal.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDa indignatite contagiosa [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á umas semanas, um amigo partilhou um excerto do meu romance Autismo no Facebook. Uma pequena passagem do primeiro capítulo no qual uma das personagens expõe, atabalhoadamente, a sua visão amarga da vida e do amor. Um rapaz da internet leu o dito excerto e desancou-o copiosamente. Estou certo de que lhe poderá ter ocorrido a possibilidade de o formato e a linguagem escolhidos serem os dispositivos narrativos mais adequados para caracterizar aquela personagem. A confusão e a grosseria não são um erro por si. A desadequação entre a natureza da criação literária e o formato pela qual se opta expô-la pode ser um erro. Ou pode ser um gesto técnico propositado. E pode resultar. Estou igualmente seguro de que o rapaz da internet sabe que o ponto de vista do autor não tem de coincidir com o ponto de vista das personagens, embora, em certos casos, possa. Mas fazer um retrato robot das motivações do autor por um livro parece-me tão excessivo quanto redutor. Fazê-lo tendo como ponto arquimédico um parágrafo de meia dúzia de linhas é um exercício tão profícuo e certeiro como ler o destino alheio nas borras do café. No entanto, o rapaz da internet não se coibiu de demolir o excerto em causa e, en passant, o livro. Daí até chegar ao autor foi uma penada. Um gajo que escreve uma coisa destas, uma espécie de ruído triturado, não pode ser um bom escritor. E um gajo que acredite nas teses expostas não pode ser boa pessoa. Case dismissed. Podemos fechar a internet por hoje. Moral da história: dados sermos ambos ilustres desconhecidos, tanto eu como rapaz da internet, nada de mal veio ao mundo. O Valter Hugo Mãe escreveu um livro – O nosso reino – que uma comissão designada para o efeito incluiu no plano nacional de leitura para o oitavo ano de escolaridade. O livro tem uma passagem que fala de sexo anal, algo que parece ter chocado com a moral e as intenções pedagógicas de alguns pais dos alunos da escola que seleccionou o livro para ser lido e comentado nas férias de Natal. Alguns jornais noticiariam o assunto. Daí à crítica demolidora do livro bastaram três partilhas no Facebook. Doze partilhas depois, já era a obra toda do Valter que estava a ser posta em causa. Da obra ao carácter do Valter foi questão de meia centena de partilhas. Bastaram três linhas descontextualizadas para entupir o feed de insultos. O Valter, enquanto autor, já há muito tinha sido desconvidado a participar da conversa que se seguiu, na qual o tom incidia, sobretudo, em dois pontos de vista, por vezes coincidentes: como é que alguém responsável pelas escolhas do PNL pode ter incluído aquele livro no catálogo de obras aconselhadas a alunos do oitavo ano e, por outra parte, como é que o Valter tinha coragem de escrever uma coisa daquelas para miúdos daquela idade? Relativamente ao primeiro argumento, concedo que a sensibilidade de cada um possa reagir de forma distinta a estímulos semelhantes. Um pai pode não querer que o seu filho seja exposto a uma realidade que considere desadequada à idade. Discordo dessa posição. Numa época em que mais ou menos qualquer assunto está disponível à distância de um ecrã táctil, a educação como sistema de filtros a serem retirados à medida que as crianças vão crescendo parece-me pouco proveitosa e, na maior parte das vezes, votada ao fracasso. Não existe forma de impermeabilizar a criança relativamente ao mundo. Nunca existiu. A curiosidade tem braços mais longos que o cuidado, e a curiosidade encontra sempre uma forma de se satisfazer. O que está nas nossas mãos, enquanto pais e mães, é o poder de contextualizar e de dar sentido a essa cascata permanente de experiências a que chamamos mundo e à qual os nossos filhos, a não ser que habitem uma versão da cave de Fritzl, estão e estarão continuamente expostos. O Valter, como é óbvio, não escreveu “aquelas coisas” para miúdos de oitavo ano, assim como não há qualquer obrigatoriedade de os miúdos as lerem. As escolhas do PNL são recomendações e são facultativas. E, pelo que foi posteriormente comunicado pelos responsáveis do PNL, terá havido um erro na atribuição daquele livro a miúdos daquela faixa etária. Mas nem por isso a indignação baixou de tom. A internet parece ter o estranho efeito de catalisar emoção e pensamento a velocidades radicalmente desproporcionais. De repente, ser apodado de escritor medíocre era a coisa mais benigna que se podia ler sobre o Valter. Confundindo a recomendação do PNL com uma deliberação intencional do autor, a indignatite grassava no pasto confuso onde se misturam obra e autor, estética e ética. De um lado, Valter, o porco. Do outro, as crianças do oitavo ano, carmelitas em excursão pelo mundo. Há, na verdade, um rol infinito de coisas nos escritores, e nas suas obras, passíveis de crítica. O facto de recomendarem os seus livros para inclusão no plano de leitura e o facto de eles escreverem cenas de sexo ou sobre sexo não me parece ser motivo para tanto barulho. Quer dizer, tendo em conta a qualidade das cenas de sexo escritas em português, talvez não fosse mau trocarmos umas ideias sobre o assunto.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasBranco-cinza. Cor de rosa [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma cidade submersa por detrás de cada frase. De cada pessoa. De cada paisagem estranha de sonho. Aquela quase brancura do céu nas noites de chuva mansa e monótona e às vezes acabada. Como a pele clara mergulhada na quase escuridão, de quase não pensar. É o quê, o corpo, senão uma imensidão branca e momentânea no resto da noite como o céu no resto da chuva. Um corpo a apagar. A acender, a apagar. A mágoa a apagar o que o corpo acende. Às vezes. Desvendar como aos olhos. Como se uma impossibilidade fosse visível na possibilidade de um corpo. Uma visão completa do que é para além. Dos espasmos. De uma respiração rouca. Gritos. Mesmo. Se mesmo, algo cruzasse nos sentidos todos, a fronteira fina da pele. Mas mesmo assim não há menos do que dois ou três, num. Sentir, olhar, pensar. O outro. E são quatro, já. Ali. Na mesma cama. Na mesma noite branca acinzentada, e de restos de chuva, ainda a escorrer de tudo. Intervalados ruídos frescos. Irritantes e cavos, dependendo do que tocam. Alguns. Outros, devagarinho, a envolver. Em insólitas geometrias secretas. Daqui e dali. A ecoar na noite. Branca, cinzenta, citadina, como só as noites. Sobre paredes, canos e vidros, e tudo ao negro, ou quase. Excepto a noite do céu. Clara e impiedosa a correr sem se dar por ela. A correr lenta. Clara. Clara e lenta e surda como só a noite. Na cidade real e adormecida. Ao lado do corpo. Cerra-se-me o silêncio como uma banda adesiva em torno de pensamentos e palavras de conclusão. Cerram-se as palavras em torno de pensamentos e penas. E como penas e penugens de asas friorentas sobre o corpo de uma lógica e uma não-lógica. E o frio. E provisório tudo. As pessoas viram o cérebro do avesso e mobilam a casa. Ou perder-me em auto-estradas de circulação restrita. Marear sem cuidado nem destino e voltar a casa ao Cabo da frustração. Mas é uma coisa perecível sempre. Cada tom e cada lugar e cada passo. Passou. Sei lá, às vezes o que fazer de ti, de mim. Na memória. Beijos. Como a terminar uma carta mas com a polpa de um lábio inferior nítida. Nítida e doce. Depois a flor. Já na almofada. Não sei se minha se no sonho, minha. E falar. Não é que tantas vezes não pense que me desenganei no ficheiro e cliquei no poema errado. Poema, loquema, fonema, criatema, problema. Coisas que nem existem. Abraço a almofada com força. Todos os dias até à noite, ou sobretudo aí aquela vontade teimosa de que ainda chegue algo consolador. E ao mesmo tempo que rejeitar a ideia de fechar o dia na noite da cama do sono e do fim, e nele, nela, a vontade do outro dia. Do seu desconhecido, do seu desconhecimento absoluto no que traz e no que retira. Fico entre portas na indefinição de querer e não querer ouvir. Ver. Perguntar, esperar. Acabar. Desesperar. De não ver. Sempre. E como se as palavras da escrita pudessem ter as cores de uma aguarela sóbria etérea e deslavada de qualquer colorido rico e definitivo, e dela sobrasse apenas uma memória fresca mas fantasmagórica da cor. Das cores. Das cores suaves de ainda não serem no esplendor do meio-dia. Da fantasmática misteriosa plenitude da meia-noite iluminada de lua, do desconhecido absoluto de uma noite sem luar, ou da misteriosa vida anunciada em declínio pelas cinco da tarde a reverberar como iluminadas por dentro as formas. É já uma madrugada nublosa daquelas em que a maior violência que se pode imaginar, para além de todos os pensamentos pendentes de outros dias, para aquém deles e dos dilemas, mais dúvidas do que dilemas, para além de tudo o que acorre de assalto no primeiro minuto vigilante, é ter que sair do esquecimento morno dos cobertores de lã. Em que há sempre ainda a esperança de retorno ao sono. Mas que já não volta até outro dia. E o apelo frio incolor da madrugada, ali, como um chamamento indeciso mas persistente. Avanço no campo de vimes e hastes a amarelar sem estação convicta. Rígidos e estaladiços. Discretamente crepitantes, frágeis na forma e espessura, mas que picam. Que arranham, que ferem discretamente a pele sem impedir de avançar, sem se lhe dedicar um pensamento mais do que ténue como as cores. Momentâneo como cada passo. E passo em frente com as árvores ao fundo sem saber porquê. Porque vou. E uma haste perdida no meio de tudo, uma pernada de roseira brava por engano. A diferença entre tudo o que se assemelha. No meio, bem no meio do que se assemelha. E, como por ilusão da vontade, vira uma corola coroada de pétalas frescas de cor suave mas cor. Vira para mim imperceptíveis milímetros das pétalas abraçadas entre si e penso que não são girassóis ali. Pergunto-me porquê. Que nada em mim tem o alo ensolarado e radiante matinal de um sol da terra. Mas avanço deslumbrada. Chego-lhe perto demais. E estendo a mão no encantamento de uma rosa no meio de silvas e outras agruras. E pergunto, recolhendo a mão posso…posso tocar…pergunto sempre e nunca sei a resposta porque é assim que eu sou. Para além dos olhos nada mais sei. Diria que me olhou ao chegar. Mas talvez não. Era talvez o meu desejo deslumbrado de a ver diferente e bonita. Ali. Talvez até nem estivesse ali ao fundo, mas por detrás dos olhos com que a desejei. Ver. Pressentir ao fundo. Alugar os meus passos até. E chegar. E perguntar posso. E vê-la ainda talvez amuada ou irritada da minha pergunta. Que faço demais. E olhar…Também. E perguntar. E olhar. E perguntar. E nunca saber ver. Sem perguntar sem saber. Quase jurava ver-lhe, se estava ali, um risinho sarcástico ou uma ironia imperscrutável do que diz claro que sim. Ou de quem diz claro que não. Estavas aí…a mesma resposta, claro que sim, a mesma resposta, claro que não. É assim que eu vejo o que vejo. Afasto com a violência desesperada de ter que ser, os lençóis brancos, os cobertores de lã branca quentes e afáveis que me não podem prender mais e por que tem que ser este arrancar brutal, este renascer diário para o mesmo que me espera. E que, brancos, me dão a calma que não tenho, como aquela rosa. E a as nuvens correm como em certos dias, as ventanias assobiam e passam, o mar revolve-se na sua eterna e igual violenta imaterialidade, as coisas nascem crescem e secam ou morrem. E eu estou aqui, sem voar de pés na terra e sempre com a mesmas dúvidas que me levam às rosas e trazem à matérica textura áspera mas calorosa destes cobertores em que às vezes sonho. E de novo aquela aprisionante sensação desesperada de nadar na espessura viscosa e densa das roupas de cama. Sem conseguir deixar o corpo afundar nelas e avançar na água. Que não podia ser mas se ansiava que fosse. Fecho os olhos ao ver que sonha. Que sonha uma que não sei se sou. Revolve-se nos mesmos rolos viscosos e cinzentos escuros da roupa e no mesmo sonho em que me vejo. Vista ou sonhada. Ou nada. Os olhos fechados não me permitem ver. Ver-me nesse sonho que não conheço. Ver quem sonha o sonho. Quem sonho e a quem sonho o sonho. Entendo sempre os meus sonhos de outros em mim. Nunca em mim me entendo nos sonhos de outros em mim. É isso. Os olhos fechados que não me veem e sonham. Será a mim. Ou não. Acordo e não está ali quem me sonhou no meu sonho. Ou porque não sonho. Levanto-me de dentro do sonho do sonho. Do sonho. Um acordar penoso e longo como um túnel. De reposteiros pesados e escuros a transpor com os pés fora da cama sobre o abismo. Os chinelos são a aterragem possível. Atamancada e tosca como a de uma ave pouco habituada. E o dia rende a noite em cinzentos também. Mas do céu e por ali abaixo. Que respiro mas percebo suaves. Hoje. E, por momentos não saber nada. E ser bom. E ali, longe, todos os meus anjos voam no céu. Inalcançáveis vigilantes. Tão longe, tão irredutíveis, tão abstractos. Tão dentro de mim. Só me resta olhar para cima. Seguir-lhes os olhos ausentes como um último fio que nos liga. Um grito surdo.
José Simões Morais h | Artes, Letras e Ideias立春 Li Chun – Princípio da Primavera [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, 3 de Fevereiro celebra-se na China a Festa do Princípio da Primavera e inicia-se o ano do Galo Solitário. Li Chun, ou Princípio da Primavera, comemora-se normalmente a 4 de Fevereiro, podendo por vezes ocorrer também no dia 3, ou 5, se houver ajustamentos e é o primeiro dos vinte e quatro termos em que está dividido o Calendário Solar do Agricultor. Com datas fixas, os termos estão directamente ligados à eclíptica do Sol e são indicadores das estações do ano, por isso conectados com a agricultura. Foi durante a dinastia Han (206 a.n.E.-200) que se resolveu celebrar no dia 4 de Fevereiro, o Princípio da Primavera, mas após muitas reformas acordou-se comemorar no primeiro dia do primeiro mês lunar também essa festividade, cujas datas são muito próximas uma da outra. O Ano Novo e o início da Primavera traduzem uma renovação e a combinação entre o calendário solar e o lunar, conhecido como calendário lunisolar, passou a ser usado na China. Combina os doze ramos terrestres com os dez caules celestes e cria um ciclo de 60 anos, que se vai repetindo. Em tempos antigos, quando a China tinha uma economia baseada na agricultura, esta festividade durava um mês e celebrava o final do Inverno, a estação de interregno para os agricultores e o início da Primavera, quando de novo a terra começava a ser trabalhada. Agora assiste-se a grandes festejos no primeiro dia da primeira Lua e não no Princípio da Primavera, apesar dos mestres da geomancia colocarem no Li Chun o dia da mudança para a regência do signo do ano. Este ano lunar chinês, que começou a 28 de Janeiro de 2017 e terminará a 15 de Fevereiro de 2018, vai ter treze meses, havendo um duplo mês, o da sexta Lua, sendo o primeiro denominado intercalar, ou adicional e o segundo sexto mês, chamado natural. Nele se celebrará por duas vezes a Festa do Princípio da Primavera, por isso auspicioso para o nascimento de crianças. Quando num ano lunar não se celebra nenhuma Festa da Primavera, isto é, quando o Ano Novo Lunar começa após o dia 4 de Fevereiro e no ano seguinte termina antes dessa data, diz-se ser um ano cego. O calendário solar do Agricultor Lichun, Princípio da Primavera, é a primeira grande festa solar e marca o início do ano agrícola, após um período de hibernação, quando a Terra desperta para um novo ciclo de vida. É o primeiro dos 24 termos solares de um sistema elaborado através dos tempos, a partir das observações feitas por astrónomos. Entre estes termos estão os dois solstícios, os primeiros a ser estabelecidos e depois, os dois equinócios. Pesquisas em torno do movimento aparente do Sol foram por isso necessárias para elaborar os calendários, sendo feitas de duas formas diferentes. Uma, pela medição da sombra do gnómon (instrumento que marca a altura do Sol pela direcção e comprimento da sombra de uma vara) ao meio-dia, assentando em tal medição o anunciar das estações e o determinar do ano trópico. A outra maneira era o estudo da variação aparente da velocidade anual do Sol e a averiguação do valor anual da alteração do ponto do solstício do Inverno observando a posição do Sol contra o céu, com a ajuda de instrumentos astronómicos. Anunciar a data precisa das estações era impossível sem uma identificação exacta da altura em que acontecia o solstício de Inverno. Mas já em 2317 a.n.E., durante o reinado do Imperador Yao, o ano tinha 365,25 dias e em 1100 a.n.E., mediante observações do Sol estabeleceu-se com uma aproximada exactidão a posição do solstício de Inverno. Estava encontrado o ano trópico, o período de tempo que transcorre desde o começo de uma Primavera, à outra, mostrando as mudanças sazonais anuais. Mais tarde calculou-se o equinócio da Primavera, que chega após 81 dias do solstício de Inverno. Os 24 termos solares gradualmente reconhecidos por volta do século III a.n.E., foram compilados por Lu Shi Chun Qiu, mas foi na enciclopédia Huai Nan Zi, escrita em 120 a.n.E., que todos os termos ficaram mencionados. Eis a lista dos 24 termos: Nome chinês: Tradução: Início: Lichun Princípio da Primavera 4 de Fevereiro Yushui Água da chuva 19 de Fevereiro Jingzhe O acordar dos insectos 6 de Março Chunfen Equinócio da Primavera 21 de Março Qingming Puro brilho 5 de Abril Guyu Chuva para as sementes 20 de Abril Lixia Princípio do Verão 6 de Maio Xiaoman Despontar da semente 21 de Maio Mangzhong A semente na espiga 6 de Junho Xiazhi Solstício de Verão 22 de Junho Xiaoshu Suave calor 7 de Julho Dashu Maior calor 23 de Julho Liqiu Princípio do Outono 8 de Agosto Chushu Limite de calor 23 de Agosto Bailu Branco orvalho 8 de Setembro Qiufen Equinócio do Outono 23 de Setembro Hanlu Frio orvalho 9 de Outubro Shuangjiang Queda de geada 24 de Outubro Lidong Princípio do Inverno 8 de Novembro Xiaoxue Leve nevão 23 de Novembro Daxue Grande nevão 7 de Dezembro Dongzhi Solstício de Inverno 22 de Dezembro Xiaohan Pequeno frio 6 de Janeiro Dahan Grande frio 21 de Janeiro Dos 24 termos solares, doze são chamados “jieqi“, enquanto os restantes se denominam “zhongqi“. Xiaohan, o 1º do grupo “jieqi” chega trinta dias antes do 2º, Lichun, o Princípio da Primavera. O intervalo entre cada um dos outros dez desta série é idêntico. O solstício de Inverno, Dongzhi, inicia a série “zhongqi” dispondo-se da mesma forma. Quando um mês que está para ocorrer não contém nenhum termo das séries do segundo grupo “zhonqi” esse mês será considerado um mês intercalar. Estes meses seguem-se ao mês a que estão associados. Os oito termos – os equinócios, os solstícios e o início de cada uma das quatro estações, são mais importantes que os outros, havendo um intervalo de mais ou menos 46 dias entre cada um deles. Este sistema, único no mundo, sugere o nível a que chegou a ciência da China antiga. Deixamos aqui agora votos de um bom Ano Novo – Kung Hei Fat Choi (Próspero Ano Novo), que só deve ser dito após se iniciar o novo ano lunar e Sun Tan Kin Hong (Boa Saúde), em mandarim: Gong Xi Fa Cai e Shen ti Jian Kang.