Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasSobriedade e nobreza Bessa Luis, Agustina, A Sibila, Guimarães Editores, Lisboa, 1954 Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Ruralismo, 285 p.:19 cm. Cota: C-7-4-84 (IPOR) Agustina Bessa-Luís, nasceu em Vila Meã no concelho de Amarante a 15 de Outubro de 1922. Estudou no Porto e em Coimbra e fixar-se-ia definitivamente no Porto no ano de 1950. Agustina Bessa-Luís estreou-se como romancista em 1948, ao publicar a novela Mundo Fechado, mas só com a publicação do romance A Sibila em 1954 é que se afirmou, ainda jovem no panorama da literatura portuguesa. A Sibila representa também a inauguração e afirmação do seu estilo, memorialístico, histórico e realisticamente fragmentado e lacunar. Desempenhou algumas funções sociais e política relacionadas com a literatura e a cultura das quais destaco a direcção do Teatro Nacional de D. Maria II (Lisboa) e a participação como membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social. Vários dos seus filmes foram adaptados ao Cinema, entre os quais evidencio pela sua importância e sucesso: Francisca (Fanny Owen), 1981 e Vale Abraão. Do conjunto impressionante das suas obras refiro A Sibila (romance) de 1954, O Susto (romance) de 1958, A Brusca (contos) de 1971, Fanny Owen (romance histórico) de 1979, Um Bicho da Terra (romance histórico, biografia de Uriel da Costa) de 1984, Prazer e Glória (romance) de 1988, Vale Abraão (romance) de 1991, O Princípio da Incerteza: I — Jóia de Família (romance) de 2001, O Princípio da Incerteza: II — A Alma dos Ricos (romance) de 2002, O Princípio da Incerteza: III — Os Espaços em Branco (romance) de 2003 e A ronda da noite (romance) de 2006. O romance a Sibila inaugura ao mesmo tempo um percurso literário, um estilo e um tipo de literatura de ficção entre nós. O romance decorre no ambiente rural do norte de Portugal em finais do século dezanove e tem por décor uma propriedade e uma família. A propriedade é uma quinta há mais de dois séculos aforada à Coroa e a família é uma das muitas famílias de lavradores de Entre Douro e Minho, “uma espécie de aristocracia ab imo” como ironiza a autora através da fala de Bernardo Sanches. Provavelmente o cenário não andará longe das imediações de Amarante. Quem conhece o norte de Portugal sabe que o Entre Douro e Minho interior confina com O Minho e com Trás-os-Montes, quer dizer confina geograficamente mas também no plano da cultura e das tradições e sobretudo no plano dos modos de vida, até porque Trás-os-Montes e o Minho só se distinguem com nitidez se tomarmos como referência concelhos distantes, pois os concelhos limítrofes das duas Províncias apresentam mais sinais de semelhança do que de contraste. Mas regressemos ao diálogo que ocorre entre Germa (Germana) e o seu primo Bernardo, embora o que importa aqui é o facto de que o diálogo ao transformar-se em monólogo, uma vez que Germa passa a ignorar a presença do primo, serve para convocar pela primeira vez o nome de Quina, ou seja da Sibila, a personagem em torno da qual iremos assistir ao levantamento da Vessada, depois que durante a sua infância e sob os auspícios de seu pai Francisco Teixeira assistimos ao seu desmoronamento, tanto físico, como económico, como sobretudo moral. A narradora da história é Germa, filha de Abel, um dos irmãos de Quina e que com verosimilhança se aparenta, pela biografia, a Agustina Bessa Luís. Este romance é, muito provavelmente, o mais autobiográfico da autora. Quina foi uma adolescente buliçosa e iletrada, que desde sempre se ligou à quinta através do trabalho. Enjeitada pela mãe, Maria, procurava no trabalho do campo e no esforço constante uma compensação. Contrastava com os seus irmãos que conquanto muito mimados o que pretendiam era abandonar o meio rural, o que significava na prática romper com a casa e com a tradição familiar. Na trama profética do romance são determinantes dois episódios: o fogo que arrasta a Vessada para a sua ruína e a doença de Quina que quase a vitima. O primeiro assinala o fim de um ciclo marcado por uma decadência que se anunciava já há muito, ao mesmo tempo que assinala também, e anuncia, mas apenas como possibilidade, um ciclo de regeneração. O segundo, o episódio da doença, articula-se com o primeiro pois desde há algum tempo sentimos que a obreira da regeneração só pode ser Quina. Se ela morresse a Vessada estaria inapelavelmente condenada, na medida em que não se vislumbra em mais ninguém a capacidade regeneradora necessária. Mas Quina não só não morre como se assiste, no quadro da sua recuperação, à revelação de qualidades, sibilinas de facto, com as quais Quina levará por diante o enorme trabalho de superação que irá transfigurar um destino que se julgava traçado. No âmbito de todas os dotes de Quina a autora fará evidência dos que irão conferir à personagem uma capacidade de domínio e poder sobre os demais e sobre as dificuldades. Para mim, o aspecto estilístico mais interessante do romance prende-se com o facto de que nos encontramos sempre longe, quer de um panegírico, quer de uma diatribe condenatória. Percebe-se que a narradora possui uma língua viperina, mas nunca é gratuitamente que exercita as suas críticas truculentas e sobretudo fulminantes, porque inesperadas. Algumas personagens são melhores que outras mas são todas aceitáveis e condenáveis ao mesmo tempo. Por outro lado, Agustina Bessa Luís consegue integrar elementos económicos e sociais sem contudo pretender submetê-los a uma análise sociológica comprometida, sem fazer demasiados juízos de valor ideológicos ou políticos; como se a autora se limitasse através de um memorialismo histórico e etnográfico a dar a conhecer a realidade e as suas contradições, numa perspectiva sobretudo documental sem denúncias ou críticas enformadas por qualquer tipo de moralismo ou pretensiosismo científico. Eu saliento o elemento etnográfico, pois o culto do detalhe e o descritivismo dispersivo fazem sobretudo apelo dos sentidos e não de uma faculdade analítica. Ora a análise ideológica e política à maneira do neorrealismo por exemplo é sempre moralista e muitas vezes mesmo retórica e lamecha. Nesse sentido a Sibila é um texto de grande sobriedade e nobreza, sem excessos retóricos ou eflúvios sentimentais. É verdade que através de uma longa analepse Germana traz o passado ao presente, mas não me parece que seja para o condenar nem para o elogiar; parece-me que é essencialmente para que a realidade de um tempo seja mostrada, ainda que as formas de rememoração contenham sempre quer se queira quer não alguma nostalgia agarrada a elas. Contudo não se sente nunca mágoa pelo que se perdeu, nem também satisfação. Há grandeza e miséria em todas as épocas e as personagens no interior de uma época histórica elas próprias nunca simbolizam unilateralmente e de modo maniqueísta o bem umas e o mal, outras. Quina ou seja a Sibila, não foge à regra.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasDa notável arquitectura existencial Faria, Almeida, Paixão, Lisboa: Caminho, 1991. Descritores: Romance, Tetralogia Lusitana, Identidade, Memória, 972-21-0237-0, 199 p.:21 cm, Almeida Faria nasceu em 1943 a 6 de Maio em Montemor-o-Novo no Alto Alentejo. Estudou Direito e Letras e veio a formar-se em Filosofia, mas antes disso com apenas 19 anos publicou o seu primeiro texto de ficção, O Rumor Branco, obra à qual foi atribuído o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Entre 1965 e 1983 elaborou os romances da “Trilogia Lusitana” (A Paixão, Cortes, Lusitânia) e com o Cavaleiro Andante, encerrou de algum modo este ciclo. Pela mesma época estagiou como bolseiro nos Estados Unidos e na Alemanha Federal e leccionou Estética e Filosofia da Arte na Universidade Nova de Lisboa. Além de romancista, é autor de ensaios, contos e peças de teatro. Recentemente publicou, a partir de um conto seu, o libreto para a cantata de Luís Tinoco Os Passeios do Sonhador Solitário. Publicou ainda O Murmúrio do Mundo, relato ensaístico de uma viagem à Índia. Ao conjunto da sua obra foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora e o Prémio Universidade de Coimbra Em primeiro lugar dizer que Paixão é o primeiro da Tetralogia Lusitana. Enfim, no início era uma trilogia: Paixão, Cortes e Lusitânia; mas quando o Cavaleiro Andante chegou por fim e se juntou à tríade, achou-se e bem que ele por chegar atrasado, não deveria ficar excluído da família. Ele pertencia àquela saga, àquela família e ao seu destino sacro e profano. Tudo começa numa Sexta Feira Santa em plena Paixão. A Sexta-Feira Santa, ou ‘Sexta-Feira da Paixão’, é a Sexta-Feira antes do Domingo de Páscoa. É a data em que os cristãos “comemoram” a paixão, crucificação e morte de Jesus Cristo. Almeida Faria faz o que não sendo novo é revelador, estabelece uma homologia entre a vida de Cristo e a vida de qualquer cristão, pois a uma certa luz seremos todos cristos e em todos ocorre mais tarde ou mais cedo esta sequência paixão, sacrifício e morte. Evitei naturalmente a palavra crucificação, por modéstia. Contudo a Paixão de Cristo é exemplar, porque também os homens quiseram que assim fosse. Falar da Paixão de Almeida Faria é penoso, pois se há livros que leremos sempre são estes quatro livros da Tetralogia Lusitana, e é penoso falar ou escrever sobre livros que já lemos mas que ainda não lemos em definitivo, que ainda não colocámos de lado, com aquela satisfação de dizer, está lido. Almeida Faria escolheu bem o registo da sequência de monólogos interiores das personagens, pois confere à narrativa uma espécie de pudor narrativo e mais do que isso uma sacralização dos trabalhos, dos afazeres, das tarefas, um pouco à semelhança dos Trabalhos e os Dias mas em registo acentuadamente mais ontológico-metafísico. Nesse sentido também as personagens são paradigmas de simples formas de ser. Todos sabemos que o sagrado pré-existe às religiões, desconfiamos até que as religiões são formas históricas que há muito começaram a desgastar o universo do sagrado e nesse sentido acontece que é nos rituais profanos que de súbito podemos viver a epifania do sagrado na sua plenitude. Isso é o que a meu ver Almeida Faria pretende e julgo que muitas vezes o consegue. Pedro Sepúlveda fala assim: “Estes monólogos são interrompidos por breves diálogos e por intervenções de um narrador que se imiscui no universo da consciência das personagens. Descrito com recurso a uma imagética religiosa e mítica, neste universo perpassa o sentimento de um sofrimento sem redenção, repetido num ciclo temporal expresso na própria estrutura do livro: Manhã, Tarde e Noite desse dia que só sabemos ser de sexta-feira santa”. E eu permito-me estar em acordo com quase tudo, menos com isto: A imagética é profana e não religiosa e portanto é sobretudo mítica. É profana, mas não desligada do sagrado. O sagrado como disse permanece na vida quotidiana e em muitos dos nosso gestos, as referências ao cristianismo são contudo inevitáveis, pois para nós a cultura cristã, através de uma referencialidade litúrgica, é aquela em que o sagrado se reconhece, ou melhor é onde as criaturas reconhecem as homologias com o sagrado. Uma ceia sempre fará pensar na Última Ceia, uma mesa, como o lugar em que nos damos aos outros como banquete e se sagram os alimentos. Os próprios alimentos significam mais do que são: o pão e o vinho serão sempre o sangue e o corpo de Cristo e o cordeiro será sempre pascal e exprimirá sempre também a inocência e o sacrifício. Não existe uma memória dos gestos anteriores ou dos vocábulos, ou dos rituais, quando o sagrado ainda não era nomeado através de uma imagética religiosa, positiva e empiricamente determinada. Por outro lado, não perpassa no texto uma ideia de um sentimento de sofrimento sem redenção, mas bem pelo contrário um sentimento de redenção através do sofrimento. Porém esta redenção não busca legitimar-se de uma forma gloriosa, mas na linha das correntes mais radicais assenta numa resignação à imagem e semelhança de Job. Pedro Sepúlveda remete para um texto de Óscar Lopes. Talvez que as coordenadas ideológicas onde seguramente persiste uma certa ansiedade escatológica preferissem através da secularização do sagrado o triunfo da utopia. Almeida Faria contudo não professa um optimismo ontológico pois a sua posição, pelo contrário, é sobretudo pessimista. Na maior parte dos casos a narrativa prefere o neutro, aparentemente neutro deva dizer-se, pois o exercício reiterado do neutro deixa entrever justamente a necessidade do sagrado. O sagrado evidencia-se nas coisas mínimas, nas tarefas repetidas até à náusea, nas banalidades existenciais desprovidas de fulgor ou sucesso, onde tudo falta menos o mistério: “de madrugada ainda levantar-se, descer para a cozinha e enregar o trabalho reacendendo lume no fogão, lavar a louça que ficou da véspera com sobejos de comida, em monte sobre a pia (durante o inverno a água gela, corta os ossos da gente, faz doer às vezes até pelo braço acima — deve ser reumático — mesmo ao cotovelo) e só depois sair para o quintal em que os pardais já cantam sobre o carrapateiro, filhar da vassoura e, com ela, varrer a capoeira e aos bichos dar farelos e mais reção avondo (de manhã as capoeiras têm sempre um certo cheiro azedo como alguns quartos de homem) e também ao pintassilgo mudar a água para beber, pôr a tina do banho, dar-lhe ou alpista ou uma folha de alface ou atão ambas, retirar o papel que, ao fundo da gaiola, se enche de cagadelas dia a dia e de casca de alpista, (…)”. É manhã e é Piedade, seguramente Piedade não por acaso: “voltar depois ao quarto, lá em cima, a fim de pentear-se, pintar-se se ele espera, pôr arrelicas e se aparelhar do casaco comprido, cinzento e desbotado de dez anos, meter a carteira na algibeira, descer de novo a escada em caracol para a cozinha, botar a água ao lume já pegado, pegar na alcofa dentre cestos e cabanejos, bilhas, tarefas, potes grandes de azeite ou azeitona e alguidares com todos os tamanhos, vermelhos e vidrados, largos para a matança e para o sangue, tachos de cobre, fulvos, em pé contra a parede de fumo nunca escura, branca, branca, caiada e mais caiada, em seguida descer por vez segunda os degraus do quintal, abrir o pesado portão fechado à chave, soltar os cães esquentados da noite para a rua, ir pela rua velha e árida à derêtura caminho da praça do mercado, comprar o que de véspera a senhora, a cuja obediência ela está, com letra grossa na lista de papel pardo assentara: carne de vaca ou vitela para bifes, hortaliça, pescados o que houver, etc., o costume, comprar sem muito ou sequer nada refilar, porque não vale a pena, não lhe pagam palavras (trabalho tão-somente), meter dois dedos de paleio com esta e com aquela, mais apaniguadas, com o conversado se o tem pela altura (nos dois últimos anos teve vários, a frescura já foge) ou um outro algum pretendente que por acaso apareça a cheirá-la, cheira-lhe a carne forte, mamas fortes, voltar ao fim de meia hora, o máximo uma hora para casa, pousar as compras no portal de mármore, o peixe, as couves, latão, os alhos, ferver o leite e entrementes fazer torradas para os meninos (no tempo das laranjas espremer aí uma dúzia delas — os meninos são cinco), preparar caldo de maizena e vianda de leite, e os flocos de aveia, migar o pão prás sopas dos mais novos, esfregar chão de pedra da cozinha e a mesa da cozinha, antes de pôr a toalha aos quadrados azuis para o pequeno–almoço, tirar o grão e o bacalhau que ficaram de molho desde a véspera ou ir ao quintal uma vez mais, no qual agora o gato, estático, silencioso e muito atento, caça infrutiferamente borboletas, ir de faca em punho e debaixo do braço o alguidar (é preciso sempre ter cuidado, não bater com ele no corrimão da escada, assim partiu dois que teve de pagar e uma porrada de massa lhe custaram e este está rachado, talvez da água quente, com dois gatos grandes ali ao pé da borda), voltar com a galinha morta ou ferida de morte dentro do alguidar, a cabeça entre as asas como um sono, deitar-lhe água a ferver, tirar do lume leite, o caldo de maizena, guardar a louça que quase já secou, servir o dejejum aos meninos que gritam, depois de no quintal terem jogado um bocado ao botão ao berlinde, à pancada, ao pião, conforme a época do ano, ficando com feridas negras ou feridas de sangue nos joelhos, ou atão depois de serralha ao grilo cantarista terem dado, se em tempo deles é, que quer tanto dizer como na primavera, e quando finalmente eles se vão, meter mais louça suja na pia da lavagem, depenar a galinha, pô-la ao lume porque às vezes é dura, sentar-se enfim no banco de pedra ao canto da janela de guilhotina aberta, mastigando uma bucha de pão com queijo ou chouriço ou farinheira ou banha (o que houver) e entre os dedos húmidos um púcaro de lata com café de soja e com isto tudo hão-de ser dez horas e estômago a dar-lhe horas desde as seis, por isso anda largando o osso nesta bruta labuta todo o santo dia que inda vai no começo mas que um dia, espera, talvez quando casar, ou talvez não, há-de acabar; batem as sete; tem os olhos cerrados e, cansadamente, reconstitui os gestos gastos a fazer; o dia que se segue é-lhe memória negra; assim o percorreu: envolta em trevas, por semanas santas que duraram séculos e agora sabe apenas que no quarto existe alguma pouca claridade; entra pela fresta da janela o frio do sol nascendo; não há sombra de dúvida, isto tem de acabar; horas de pôr-se a pé; horas de início, horas de começar; são mais que horas”. Procurei debalde cortar tão longa citação. Cortar onde? Não fui capaz. É neste fluxo tão quotidiano de tarefas que se ilumina a existência e lhe é conferida a espessura de Ser, a soberana consciência dela. Para lá de qualquer exercício de consciência social, de aquiescência ou revolta são estes trabalhos de Hércules e de Sísifo que nos permitem aceder ao essencial das personagens. Elas, as personagens, são as suas tarefas, os seus pequenos projectos, as suas pequenas intrigas. Quando a arte de um romance consegue isso, consegue o que lhe é próprio, como disse Milan Kundera, consegue fazer aceder a uma certa dimensão da existência que mais nenhuma forma de arte consegue. Eu diria que esta dimensão é o lugar onde o sagrado e o profano se encontram. Algumas artes são da ordem do sagrado, outras da ordem do profano, a arte do romance é da ordem desta união das duas dimensões existenciais, união à qual se acede por caminhos simples, quotidianos, banais mesmo segundo uma leitura sem retórica. Mas isto só está ao alcance do génio: Dar, sem porém explicitar o achado e o seu modo de achar, a dramaticidade senão o próprio trágico que se esconde nesta rotina assustadora. Dizer assustadora neste momento é uma traição, pois ela é simples e lógica, e simplesmente decorre no caudal em que tudo decorre, vai na corrente sempre imparável, só mesmo o génio para nos mostrar o quanto ela é assustadora, na sua fatalidade inelutável comum a todos. Depois segue-se João Carlos e Arminda e Mãe e André e Tiago e Francisco e etc, todas as personagens com as suas cruzes, e as suas ilusões e mazelas e os seus sonhos e suas outras coisas e depois de novo Piedade e depois de novo, … até que a manhã chega ao fim. O autor consegue estruturar o enredo e dar a ilusão de continuidade narrativa usando por vezes diálogos acidentais e a erupção de um narrador que está sempre implícito nos solilóquios que só na aparência são monólogos. É um trabalho literário notável de arquitectura existencial. Não é a primeira vez que em sede de romance se usa um expediente semelhante, também Faulkner o usou no texto intitulado Na Minha Morte, mas atrevo-me a considerar que Faulkner dispõe desde o início de um elemento que subjaz à narrativa, que é justamente a pressuposição da sua morte e, como se estivesse morto e ao mesmo tempo não, visse e ouvisse as várias personagens contudo animadas na sua movimentação por um facto motor, justamente a morte daquela personagem a todos os títulos central. O texto irradia desse centro. Neste exercício de estilo, Almeida Faria não conta com um centro emissor, de onde as parcelas da narrativa descolem. Não há nenhum ponto de ancoragem. Pelo contrário as parcelas reúnem-se mais tarde e só no fim todas fazem sentido. Verdadeiramente só mesmo no fim do Cavaleiro Andante, quer dizer no fim da tetralogia. Notável! Finalmente uma última questão. No prefácio à 1ª edição de 1965, escrito por Óscar Lopes, e que prefácio brilhante, este autor alude a uma proximidade com o método fenomenológico à maneira de Husserl, o que Sepúlveda nega categoricamente. Para tanto Sepúlveda esclarece que “a fenomenologia está preocupada em revelar as estruturas essenciais da experiência humana, (enquanto) Almeida Faria descreve uma vivência, ou melhor, a consciência dessa mesma vivência. Essa descrição articula o singular e o universal de um modo que coloca o segundo ao serviço do primeiro. É por isso que o sentido simbólico de algumas descrições, assim como a imagética religiosa ou sociopolítica nelas contida, nunca as condiciona, porque essa descrição do humano que tanto tem de poético quanto de narrativo é o objecto primeiro e único do livro. Sinceramente não me parece acertado, pois se Husserl procura de facto, e é esse é o maior problema da fenomenologia plenamente desenvolvida, as estruturas essenciais da experiência humana, antes disso eu diria que ele procura recuperar uma experiência perdida, a experiência de uma relação não mediatizada pelos arquétipos conceptuais, de modo a permitir o trabalho imediato da consciência. Há assim uma fase em que a fenomenologia ainda não é uma fenomenologia transcendental e é apenas uma fenomenologia psicológica descritiva; e portanto, nesta fase, a fenomenologia ainda não pretende ser a ciência da essência do conhecimento, ou doutrina universal das essências. É só segundo esta perspectiva que a posição de Sepúlveda não está correcta, ele não teve em conta a evolução histórica da fenomenologia. Mas, é verdade, que no seu processo evolutivo Husserl passou das Investigações Lógicas (1900-1901) em que predominava uma ideia de fenomenologia empírica ligada às vivências, segundo o seu conteúdo, ou seja às vivências do eu que vive, para uma fenomenologia transcendental. É relativamente a essa fase que Sepúlveda tem razão. Porque é verdade que, a partir de certa altura, Husserl falará cada vez mais de uma consciência constituinte e transcendental. Isso será sobretudo a partir dos trabalhos de 1907 e de uma forma plenamente sedimentada sobretudo nas Ideen de 1913. Mas este foi a meu ver o passo fatal dado por Husserl, o que o afastou de uma fenomenologia para um idealismo transcendental. O que me permite continuar a falar da presença de Husserl na obra de Almeida Faria reside no facto de que para mim o essencial de Husserl reside nas suas intuições iniciais, no regresso às coisas, na epoché fenomenológica, além de que a própria redução fenomenológica promove um retorno à consciência e desse modo se preocupa com a revelação das estruturas essenciais da experiência humana, contudo não na perspectiva da constituição de uma ciência mas de facto de uma experiência. Eu penso ainda que mesmo nos seus piores momentos a fenomenologia mantém sempre alguma coisa das suas intuições originais.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasNeo-realismo microscópico [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]arlos de Oliveira nasceu no Brasil em Belém do Pará a 10 de agosto de 1921 e faleceu em Lisboa no dia 1 de julho de 1981. Apesar de nascer no Brasil veio com apenas dois anos para Portugal com a família, que se instalou em Cantanhede, perto de Coimbra, onde o pai exercia medicina. A partir de 1933 instala-se em Coimbra a fim de prosseguir os estudos, primeiro secundários e depois superiores, concretamente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se formou em Ciências Histórico-Filosóficas. É em Coimbra que dá os primeiros passos na actividade literária e no comprometimento político, tendo conhecido e feito amizade com membros do grupo neorrealista de Coimbra, Joaquim Namorado, João José Cochofel e Fernando Namora. É assim que publica o primeiro livro de poesia, intitulado “Turismo”, com ilustrações de Fernando Namora e integrado na colecção poética de 10 volumes do “Novo Cancioneiro”, iniciativa colectiva que, em Coimbra, assinalava o advento do movimento neorrealista. Ao formar-se troca Coimbra por Lisboa, vindo com regularidade à Gândara, na zona de Cantanhede. Em 1943 publica o seu primeiro romance, Casa na Duna, segundo volume da colecção dos Novos Prosadores, editado pela Coimbra Editora. No ano de 1944 surge o romance Alcateia, que viria a ser apreendido pelo regime. Participa com regularidade nas revistas Seara Nova e Vértice e em 1953 publica Uma Abelha na Chuva, o seu quarto romance, unanimemente considerado, uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX. Em 1968 publica dois novos livros de poesia, Sobre o Lado Esquerdo e Micropaisagem, e colabora na adaptação ao cinema de Uma Abelha na Chuva, filme realizado por Fernando Lopes. Em 1971 sai O Aprendiz de Feiticeiro, conjunto de crónicas e artigos, e Entre Duas Memórias, livro de poemas, com o qual lhe foi atribuído o Prémio da Casa da Imprensa. Finisterra, o seu último romance, sai em 1978, tendo como paisagem de fundo a sua Gândara. A obra proporciona-lhe o Prémio Cidade de Lisboa, no ano seguinte. Devo destacar ainda a publicação de os Pequeno Burgueses. Neo-realismo microscópico O romance anda à volta de duas tramas passionais, antagónicas e complementares; A relação entre Álvaro Silvestre e Maria dos Prazeres e entre Jacinto e Clara. As linhas relacionais são de vária ordem, social, mental e histórica que o autor entretece muito bem através do recurso a dois tropos apropriados porque centrados no tempo, a analepse e a prolepse. A mim porém interessa-me mais outra história que não estas de que o romance dá conta. Pessoalmente, interessa-me mais a história intelectual do autor, pois é ela que descodifica os momentos particulares. Procedo mentalmente à releitura da obra de Carlos de Oliveira, mas agora às avessas. Explico melhor. É através da leitura de Finisterra, último romance do autor, e da paixão intelectual que me suscitou que eu entrei no coração e no cérebro da obra deste muito particular romancista e poeta do neo-realismo português e que portanto encontrei a chave para ir de novo ao encontro dos seus livros mais importantes, como é o caso deste Abelha na Chuva. Portanto em resumo, eu descubro o autor em Finisterra e a partir daí sigo para a compreensão dos primeiros livros, que penso não ter compreendido na altura do meu primeiro contacto. A chave consistirá no seguinte. Há um título de um livro de poesia de Carlos de Oliveira que me aparece como sendo o núcleo da descoberta. Aliás todos os títulos e subtítulos da poética de Carlos de Oliveira abrem pistas para a compreensão da sua obra romanesca. Agora estou contudo a referir-me ao livro intitulado Micropaisagem. De facto, o prefixo micro do vocábulo é a luz que de repente alumia o caminho. Carlos de Oliveira é um neo-realista microscópico, o que quer dizer que realiza na sua obra o abandono do neo-realismo sem a intenção de o fazer. Carlos de Oliveira é um observador que percebeu que a realidade não se deixa ver à vista desarmada. A partir daí toda a sua panóplia de recursos se centra na análise e dissecação do detalhe, provavelmente como mais nenhum outro autor português. O que acabo de dizer aparece provocatoriamente explícito em Finisterra, logo nas primeiras páginas, perturbadoras diga-se de passagem. Só depois de o ter surpreendido neste livro percebi que afinal isso, a que me refiro, estava disseminado por toda a obra. Quando digo micro estou a subentender a aplicação exaustiva deste conceito a rigorosamente tudo: os cenários (as paisagens), o tempo, as narrativas, as caracterizações das personagens e até as próprias intrigas. É tudo constituído ao microscópio. O autor não gosta de ser enganado pela ilusão das aparências, ou seja pelo que parece e geralmente não é. O neo-realismo de Carlos de Oliveira deve portanto muito já às hermenêuticas da suspeita e em particular à obra de Claude Lévy Strauss: O conhecimento da realidade só se constrói através do acesso ao que a realidade parece negar ao senso comum. Mas a abordagem do autor da Gândara não se situa no plano de uma artificialidade conceptual, mas antes, permanecendo em solo realista, apertando a malha da rede de observação, até ao limiar do invisível, ou seja do microscópico. Fazem-me sorrir as interpretações dos romances considerados neo-realistas através da metodologia tradicional do marxismo, inventariando estereótipos sócio-económicos. É o tipo de análise que ultraja a inteligência de Carlos de Oliveira, a finura do seu espírito, que volto a insistir é ainda na poesia que se encontra incandescente. Releiam-se as micropaisagens e sobretudo os poemas de Entre Duas memórias, para se perceber melhor o que digo. A descodificação imediata dos signos, passando com ligeireza da sua dimensão denotativa para a dimensão conotativa e ideológica só pode provocar um sorriso. Exemplos retirados a esmo de sítios diversos da crítica: A tensão entre as personagens exprime a temática geral da opressão. A abelha simboliza a imperfeição, embora a colmeia seja sempre apresentada como uma organização quase perfeita. Não se percebe como. A antinomia mel/fel por si só também nada explica. A abelha também significa fertilidade e labor. Os signos são todos ambivalentes. Finalmente a chuva como força destrutiva. Poderá ser, mas também é a chuva que lava e remove os detritos acumulados e protege do perigo das águas estagnadas. Uma boa chuvada lava tudo e tudo remove, tudo leva na enxurrada. Parece-me a mim que na obra do poeta de Sobre o Lado Esquerdo os signos são de uma outra ordem, quer de grandeza, quer de significação. São a meu ver essencialmente poéticos e testemunhas de uma perspectiva ontológica que justamente não se reduz ao esquematismo da representação social. Uma Abelha na Chuva exprime imediatamente a precaridade existencial, a fragilidade da utopia laboriosa, o império de realidades que não se esgotam nas análises sociológicas, economicistas ou não. Há uma frase de Rosana Cristina Zanelatto Santos que não posso deixar de fazer minha: Tudo o que é real dissolve – se na chuva. Isto a propósito, claro, deste livro. E cheguei talvez ao ponto mais sensível da minha análise: Logo que um autor de génio aprofunda a descrição, análise e compreensão da realidade, faz estilhaçar imediatamente os quadros mentais da estética neo-realista. Aconteceu assim com Vergílio Ferreira e aconteceu assim também com Carlos de Oliveira. O génio particular deste autor reside no facto de que ao contrário de Vergílio Ferreira ele não abandonou o solo de um realismo radical, e antes pelo contrário aprofundou-o através de uma poderosa lente microscópica, que lhe permitiu ver muito por debaixo da exterioridade das coisas, nos sedimentos subcutâneos ínfimos que sustentam a realidade. A verdade é que é aí nos alicerces dessas colunas que mergulham profundamente o subsolo, que deixam de se ver as formas conjunturais das pertenças sociais e começa a ver-se um pântano difuso e vago onde mergulha a condição humana, mais do que a condição social. É claro que Carlos de Oliveira deixa ver e mostra as duas, a macroscópica digamos assim e a microscópica. Então porque é que esta é mais importante e eu comprometo mais o autor a partir deste objectivo. Por uma razão muito simples, porque esta é que é a marca da sua originalidade. Porque esta é a dimensão que ele inventou. Porque o seu trabalho tanto poético como romanesco se realizou nesta aposta. E não foi fácil, sabe-se, tanto que só se realizou plenamente no seu último romance; ou seja em Finisterra; daí o valor simbólico desse texto notável. Finisterra é o auge de uma poderosa intuição estética que só se concretiza à beira da morte do escritor. Mas antes tarde que nunca. Por vezes é o contrário que acontece, logo na primeira obra o autor concretiza a intuição e o génio. Agora se percebe por que é que eu aconselho a ler o Carlos de Oliveira do fim para o princípio, tanto a poesia como a prosa. Por motivos que não vêm agora ao caso, foi o que aconteceu comigo. O primeiro texto em prosa em que eu descobri Carlos de Oliveira foi em Finisterra e o primeiro livro de poesia foi Entre Duas Memórias. Só depois li ou compreendi, tendo voltado a ler, o resto da sua obra.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO Demiurgo incondicionado Ferreira, Virgílio, Até ao Fim, Quetzal, Lisboa, 2009 Descritores: Romance, Morte, Existência, Memória. ISBN: 9789725647745 Sinopse e Ficha Crítica de Leitura Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993). O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987. “Tenho ainda um bocado de vida a cumprir, foi-me guardado pelo destino. Sobrou do que me roubaram, o destino guardou-me como um bocado de pão.” Vergílio Ferreira, Até ao Fim. [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]história do romance, a intriga, é enquanto ponto de partida para a narrativa, muito simples, embora pouco óbvia, até porque pouco verosímil. É um pretexto. Um homem, Cláudio, vela o corpo do filho, numa capela sobre o mar. Está só, apenas ele faz o velório. Na sua solidão acompanhada pela presença-ausência do filho, ele passa em revisita a sua vida. É um balanço, que Cláudio quer partilhar, com aquele que já não partilha. A verdade é que partilhar ou não, não depende de Miguel, e sendo assim também a questão de poder considerar a obra como um longo monólogo interior ou um diálogo me parece uma falsa questão. Para mim trata-se de um diálogo, uma vez que é o narrador omnisciente que assim o decide. Este é um ponto em que o leitor pouco ou nada manda. Há um diálogo entre um pai vivo e um filho morto. Eles encontram-se ali justamente porque um está vivo e vela, o outro está morto e ouve, ainda que não ouça nada. Mas ouve até porque responde e responde porque Vergílio Ferreira o escreveu. Mas isso não importa. A partir de Para Sempre Vergílio Ferreira abandonou muitas das questões subordinadas aos critérios diegéticos tradicionais, como tempos, verosimilhança, diálogos fictícios e monólogos que possuem apenas a função de proporcionar os diálogos impossíveis, etc. Há recursos notáveis que o autor passa a cultivar e que continuará a usar até ao fim da sua vida e da sua obra. O mais interessante para mim tem a ver com o modo como os personagens entram e saem do cenário, vindos do seu exterior, às vezes vindo de uma exterioridade que não é apenas espacial, mas que é sobretudo temporal e muitas vezes mesmo vindos de uma outra dimensão da existência; da morte por exemplo. A erupção dos personagens atenta contra o tempo e é na maior parte dos casos anacrónica de forma múltipla. O modo como o autor os justifica e integra, o modo como os manipula e condiciona, a vida que lhes dá e a vida que lhes retira, o modo como os subordina ou não às questões de verosimilhança é o que de mais notável o autor inaugurou nesta fase do seu estilo, o chamado estilo tardio. Só com um estilo assim, um autor assume com plenitude o seu estatuto de demiurgo. A partir de Para Sempre Vergílio Ferreira torna-se um demiurgo incondicionado, absoluto, usando sem parcimónia todo o seu imenso império. O narrador possui os personagens tal como o bonecreiro possui os seus fantoches ou marionetas e dispõe deles como muito bem entende, contudo por vezes os bonecos parecem ganhar vida e agitam-se e dão sinais de querer entrar ou sair de cena de forma extemporânea pondo em causa a fluidez lógica da narrativa. O modo como o narrador os domestica, digamos assim, quase sempre com uma infinita tolerância e ternura, para os integrar na narrativa sentimental de uma maneira particular, constitui também um dos segredos estilísticos relevantes e em certa medida experimentais da última fase da obra de Vergílio Ferreira. No fim de contas acabamos por não considerar os personagens divididos em verdadeiros e fictícios, pois são todos verdadeiros e ao mesmo tempo todos fictícios igualmente. Isto que digo prende-se com a questão da ausência e da presença enquanto modos dinâmicos da realidade. No romance Na Tua Face, mais ainda do que em Para Sempre ou em Até ao Fim, Vergílio Ferreira desenvolve uma ideia nuclear, ou seja, a ideia de que o que vemos se complementa com o que nos olha, ou muito simplesmente a ideia de que aquilo que nos olha através do que vemos, pois é disso que se trata, configura um outro mundo que não se resume ao que ver acrescenta, mas antes ao que no acto de ver, convoca a partir do ser o que nos falta, aquilo que sendo ausência e vazio, possui uma existência inalienável. Eu quero aqui ressalvar estes dois aspectos de uma mesma realidade, este aspecto que acabei de referir e que possui uma dimensão ontológico e um outro que é o modo estilístico de lhe dar vida no interior de uma narrativa. Para Vergílio Ferreira estão todos ali, estando ali ou noutro qualquer lugar da Terra, estando vivos ou mortos, podendo estar ou não em função do tempo parcelar de cada parte da narrativa. Estão todos ali porque os presentes os convocam de forma irrecusável. Estão todos ali porque o narrador os faz entrar em cena na altura em que muito bem entende, faça sentido ou não. A verdade é que só depende do narrador que faça sentido ou não. O sentido aqui não é o sentido da lógica ou da verosimilhança, integra uma outra economia, puramente sentimental e rememorativa. Mas dizia eu, o modo como o autor entretém essa tensão entre a sua disciplina enquanto narrador e a agitação dos personagens, exige recursos que Vergílio Ferreira nunca terá usado antes. “Talvez venha a chamá-las. Mas não agora”. “Clara. Mas não é ainda tempo de haver sol. Não é ainda tempo de tu vires”. E muitas outras expressões, … espera, não é ainda a tua vez, … agora não, depois, agora ainda tenho outras coisas para dizer… e assim infinitamente… o caudal suporta e não suporta estas erupções, … Foi no Para Sempre que isto começou e começou em boa hora!
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasAquilino Ribeiro Ribeiro, Aquilino, Andam Faunos Pelos Bosques, Círculo de Leitores, Lisboa, 1983 Descritores: Literatura portuguesa, Romance, Ruralismo, Arcaísmo, 272 p.:21 cm Cota: C-8-5-168 [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]quilino Ribeiro nasceu na freguesia do Carregal no Concelho de Sernancelhe a 13 de Setembro de 1885 e faleceu em Lisboa a 27 de Maio de 1963. Da sua biografia consta como nota de destaque o facto de ter sido implicado no Regicídio de 1908. Consta também que frequentou o Seminário de Beja, o qual abandonou por falta de vocação e que entrou em 1907 para a Loja maçónica da Montanha do Grande Oriente Lusitano. Nesse mesmo ano foi preso por acusação de anarquismo, mas evadiu-se no ano seguinte, mantendo-se contudo na clandestinidade em Lisboa. Mais tarde, em 1910, foi para Paris e matriculou-se na Sorbonne, mas não viria a terminar o curso, regressando a Portugal em 1914 começando a leccionar no Liceu Camões. Entrou para a Biblioteca Nacional em 1917 e conviveu de perto com Jaime Cortesão e Raul Proença. Colaborou ainda com a Seara Nova, fazendo parte da direcção da Revista. Viria a ser julgado e condenado, mas à revelia, em Tribunal Militar em 1929, por práticas hostis ao regime, depois de ter sido preso e se ter evadido em 1927, por ter participado na revolta do 7 de Fevereiro e tendo reincidido na revolta de Pinhel em 1928. Mestria e Vitalismo Comecei cedo a ouvir falar de Aquilino do qual se dizia que era o grande mestre da língua portuguesa sendo assim considerado um escritor incontornável no panorama da História da Literatura Portuguesa da primeira metade do século XX. O primeiro texto que li de Aquilino foi nas edições Sá da Costa, uma introdução-prefácio ao Francisco Xavier de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira, e desde aí decidi que o leria, senão por inteiro, pelo menos o essencial da sua obra. O texto sobre o exilado Cavaleiro de Oliveira é caudaloso, tão expressivo e bem escrito que estimulou imenso a minha curiosidade pela restante obra. Trata-se de facto de um texto notável que vivamente recomendo como forma de entrar na escrita intensa e vital de Aquilino, como lhe chama José Carlos Seabra Pereira. Falando da obra de Aquilino, a verdade é que, apenas o essencial é extenso, pois em tudo o que escreveu o autor se situou num plano de grande mestria e qualidade. Ainda assim destaco o romance de estreia, A Via Sinuosa desde logo por isso, porque é bom caçar um escritor quando ele está mesmo a sair do ninho. Os romances de estreia são imperdíveis para mim, mas nesse plano Aquilino é um autor esquivo, pois a sua estreia é uma obra atípica; estou a referir-me ao folhetim A Filha do Jardineiro escrito em parceria com José Ferreira da Silva, obra de propaganda republicana. O Jardim das Tormentas, publicado alguns anos mais tarde, já pode ser considerado de estreia, mas é uma colectânea de contos. A verdade é que temos que ter em conta esses textos, pois esses é que são de juventude, escritos e publicados com a idade de 22 e 28 anos respectivamente e afinal o escritor tem já 33 anos quando publica o primeiro romance. De facto, quando se fala da obra de Aquilino Ribeiro há cinco títulos que ocorrem imediatamente e em catadupa como se constituíssem uma Pentalogia e são eles os romances, Terras do Demo (1919), O Malhadinhas (1922), incluído na colecção de contos A Estrada de Santiago, Andam Faunos Pelos Bosques (1926), A Casa Grande de Romarigães (1957) e Quando os Lobos Uivam (1958). Mas como se pode constatar, nem sequer são textos próximos no tempo. As Terras do Demo é uma obra de juventude, o autor tem 34 anos, enquanto A Casa Grande de Romarigães e Quando os Lobos Uivam são obras de maturidade tardia, escritas quando o autor já passou dos 70 anos. Devo começar por confessar que apesar de ser já intenção minha ler e escrever sobre Aquilino Ribeiro, no âmbito modesto destas minhas Fichas de Leitura, a ideia se reforçou imenso depois de ler o notável estudo da obra do escritor, recentemente publicado na Verbo por José Carlos Seabra Pereira e designada, Aquilino – A escrita vital. Nessa obra Seabra Pereira na linha também de Urbano Tavares Rodrigues evidencia como linha isotópica transversal a toda a obra aquiliniana a questão da luta de eros contra cronos; mas o que alimenta esta tensão é em Aquilino da ordem de um imanentismo vitalista hostil às formas, secularizadas ou não, de uma qualquer forma de providencialismo, em particular o providencialismo de matriz historicista. A mundividência aquiliniana é sempre desenganada e realista ao mesmo tempo. Seabra Pereira fala de um sensualismo redentivo, mas sensualismo neste caso afasta-se da vulgata hedonista para se colar a um vitalismo global que sendo do corpo também é do espírito. E é do corpo e do espírito simultaneamente porque em Aquilino a fórmula dicotómica tradicional nos aparece esvaziada. O homem aquiliano é uma totalidade orgânica determinada pela vontade sendo que esta vontade se insere num transe existencial dominado por um imperativo categórico que não sendo imoral é pelo menos não moral. E é justamente nesse plano que é absolutamente justo chamar-lhe vitalista. Ora o vitalismo é sempre muito mais individualista que gregário ou social e daí que as personagens de Aquilino pisem muitas vezes o risco mas curiosamente sem perderem quer o halo de autenticidade quer o halo de justiça admissível. Mesmo quando não são completamente justos os heróis de Aquilino impedem-nos de julgá-los por que eles se encontram em certa medida para além do bem e do mal. Mas só em parte. A maior parte das antropologias filosóficas centradas na dimensão ética e moral do homem, sobretudo, moral, aparecem estigmatizadas por um optimismo muitas vezes bondoso mas ingénuo. A dimensão da oikeiosis estóica, do conatus essendi espinosista ou da evangélica fórmula da perseveração do ser até ao fim, contudo tão naturais e espontâneas, é muitas vezes obliterada em ordem à prossecução de filosofias que sacrificam o indivíduo no altar social e comunitário. Seguramente que deve haver limites para a voracidade egoísta do amor de si, mas isso não obsta à autenticidade dinâmica daquilo que citando Ortega y Gasset, Seabra Pereira identifica como “desejo de ser” e aplicado a Aquilino aparece reforçado por uma instância libidinal activa. É aqui talvez que reside a propensão vitalista de Aquilino, ela é indissociável de eros e luta agónica contra a clausura do ser nas malhas de cronos. E talvez por isso a sua posição é ao mesmo tempo não escatológica mas também não historicista. Esta perspectiva é-me muito desafiante na medida em que eu sou mais sensível à tonalidade da bondade do ser e portanto ao argumento ontológico do ser para o bem, mesmo que isso possa sacrificar a pletora da expansão individual. É isso que encontro em Sócrates e é isso que encontro em Cristo. Esta assunção desenha em mim uma espontânea suspeita face às propostas que propõem formas expansivas do vitalismo do ser, como encontramos em Cálicles, no Górgias, em Trasímaco, na República, em Diderot no Supplément au Voyage de Bounganville e por maioria de razão em Sade e em Nietzsche, mas também, ainda que de modo mais timorato em “l’esprit parfaitement content et satisfait” de Descartes, na “Vera acquiescentia” de Espinosa ou até na Befriedigung hegeliana. Mas o curioso é que o vitalismo de Aquilino não chega nunca a possuir a marca ostensiva de uma expansão do poder ou para utilizar a expressão de Lévinas a promoção d’“Essa força que vai”. Contudo não podemos sonegar que o vitalismo mitigado, ou não, corresponde como nos diz Raymond Polin à procura de uma plenitude do ego e a um claro “accomplissement de tous les désirs”. Nesta perspectiva vamos no sentido do homem estético kierkgardiano e não da direcção de uma homanidade ética. A minha natural propensão vai para esta segunda perspectiva que é socrática e cristã. No âmbito da primeira estaremos sempre mais na linha de uma possibilidade de derrapagem dionisíaca em direcção ao universo irracional e herético da ubris e eu por mim prefiro adequar-me aos cânones do espírito apolíneo consagrados no célebre apotegma da deusa Nemesis: “Nada em excesso”, ou “Nada para além da medida” inscrito lapidarmente no Oráculo de Delfos. Se citei Hegel foi porém forçando uma dimensão que nele não é de modo nenhum dominante já que reconhecendo o carácter incontornável do querer ser ele não deixa de na filosofia da história salientar que todo o querer-ser é liminarmente ético (existentivo e ôntico) e metafísico (existencial e ontológico). Naquele tipo de posições é sempre a natureza que serve de modelo e que representa o valor por excelência e a referência obrigatória. No caso de Diderot é tão forte esta tendência que no Supplément, apesar de ele admitir a necessidade de uma moral de tipo universalista ao mesmo tempo pretende inferir o universalismo não na perspectiva de uma transcendência moral relativamente à natureza do homem mas justamente a partir da natureza do homem e, para cúmulo, fazendo da natureza do homem não a sua capacidade para ultrapassar as pulsões naturais primárias, porque só aí se pode encontrar a moral, mas antes justamente na natureza «tout court», fazendo jus a um naturalismo integral, já que só o artificialismo o poderia combater. Neste sentido o vitalismo de Diderot anuncia Nietzsche e pelo menos implicitamente Diderot é tão anti-Sócrates quanto anti-Cristo, tal como Nietzsche. E já que estou com a mão na massa, será talvez o momento asado para proceder a um esclarecimento estrutural sob a forma de uma quase declaração de princípios. É importante porque ela permite que se possam compreender melhor alguma das minhas opiniões aqui em sede de Fichas de Leitura, passadas e futuras. Ora a ideia esta: Independentemente de ser correcta ou não a ideia de que é com Sócrates que, através da sua radical reflexão ético-moral, o universo da norma se começa a sobrepor progressivamente ao universo da natureza, interessa ter em conta que este tipo de tensão dicotómica atravessa historicamente toda a história grega desde o princípio. Não vou (nem posso) alongar-me aqui sobre todos os momentos em que este conflito se manifestou de modo radical, mas não posso esquecer dois instrumentos culturais determinantes. O primeiro é a obra de Hesíodo, Os trabalhos e os dias, já que pela primeira vez se faz uma clara condenação da brutal desmesura e a apologia consequente da justiça e da medida e de resto como se justiça e medida fossem permutáveis. E o segundo é a cultura órfico-pitagórica, uma vez que é no quadro reflexivo desta cultura, que a cultura grega inaugura uma preocupação relativamente ao problema do bem e do mal. Aí se fala de um mal constitutivo da natureza do homem, espécie de mácula original e aí começa portanto a physis a sofrer os primeiros golpes e o caminho que conduz à norma a abrir uma clareira por onde haverá de irromper um dia. Deixo de lado agora as incidências escatológicas desta cultura, mas de qualquer modo deixo claro que a espiritualização da alma, a ideia de juízo e a procura da beatitude deixaram marcas profundas na tradição cultural do ocidente. Mas sobretudo o que é mais incontornável é o facto de que paralelamente à possibilidade de uma normatividade laica se enraiza a ideia de uma justiça transcendente assim como a ideia não menos pregnante de uma Théia moira (graça divina). Portanto começa a fazer o seu caminho a ideia de uma inseparabilidade, de um enlace decisivo portanto, entre moral e salvação. E é então quando, não as leis ou a tradição, isto é não Thémis, a diké ou o nomos mas sim os deuses, se tendem a tornar nos arquétipos personificados dos comportamentos éticos e morais que a dicotomia apolíneo / dionisíaco se torna analiticamente insubstituível. O facto de Dionísio aparecer no âmbito do orfismo intimamente associado a Deméter, deusa-terra-mãe, conferiu-lhe desde o início o estatuto de um deus que faz apelo das forças instintivas, subterrâneas, senão mesmo irracionais, por clara contraposição com Apolo, deus da claridade, da luz, da inteligibilidade e da razão. De facto, o apelo da terra-mãe é o apelo do indiferenciado, de uma pertença onde o eu extaticamente se dissolve (daí que também a oposição orgânico / individual seja tão determinante e decisiva na cultura ocidental contemporânea). Não vale a pena explorar a ideia, para mim errada, de que a desmesura do êxtase, o paroxismo, a catarse é aqui o caminho da sabedoria e da salvação. Interessa-me mais reter esta ideia de que todas as propostas vitalistas se confundem com o universo da ὕbriς. E o que eu sinceramente penso é que até aos nossos dias continua a fazer sentido esta profunda duplicidade da cultura europeia e ocidental. Portanto, às forças obscuras de Dionisos e Deméter pode-se continuar a opor a sagacidade exegeta das forças da racionalidade, da inteligibilidade e o mundo artificial de Thémis, ou seja o mundo da norma e da diké. E que é neste universo ideológico e mental que se joga de uma forma decisiva a secularização e a autonomia e a possibilidade de uma ética e de uma moral humanistas. Regresso a Seabra Pereira para começar por reconhecer que apesar da posição vitalista de Aquilino Ribeiro, em boa verdade mais espontaneamente poética, como Seabra Pereira ressalva, do que propriamente correspondendo a uma posição de fundo programática, a verdade é que o seu vitalismo nunca nos choca. Esse será provavelmente o maior mérito literário do autor, a capacidade de incluir no modus operandi e vivendi das personagens comportamentos de tipo libertino, sem que o sejam ideologicamente e sem que o conjunto da obra resulte como promoção do espírito libertino militante. Em boa verdade, e não posso deixar de comungar completamente com Seabra Pereira o entendimento explicativo reside no facto de que o voluntarismo de Aquilino, quer dizer das suas personagens, não é nunca uma “vontade de ter poder sobre outrem”, mas antes “vontade comum de poder fazer, de poder dizer, de poder fruir”. E, em boa verdade, nesta nuance aninha-se toda uma enorme diferença entre uma filosofia do domínio sobre as pessoas e as coisas e uma simples fruição lúdica das ‘coisas’ correspondendo neste plano a um libertinismo quase sem mácula, mais poético e lúdico do que outra coisa; o que Seabra Pereira designa: que é em geral apenas “vontade de expansão afirmativa e emancipante — desembiocada mas não declamatória”. O poder não aparece como um programa ou como tendência para a substituição de uma moral evangélica. Quase que poderíamos dizer que este hedonismo vitalista não sendo angélico também não é demoníaco. É ainda assim libertino, mas sem programa. Finalmente e o que provará a correcção tanto a da análise da obra aquiliana como a do notável texto de Seabra Pereira, vem este autor a plasmar e para mim de forma definitiva no seguinte: “tem ressonâncias nietzscheanas o irredentismo psicológico-moral que predomina na obra aquiliana, mas que se abstém das violências amorais da superação nietzscheana contra o humanismo judaico-cristão”. Ficará para outras núpcias este diálogo com Aquilino e Seabra Pereira, quando eu tiver lido a maior parte da obra do escritor. Por hoje vou dedicar algumas considerações particulares a esta obra que tenho em mão, Andam Faunos Pelos Bosques. Este romance é particularmente emblemático das considerações ideológicas que acabo de fazer pois ao mesmo tempo que não se coíbe de dar largas ao seu vitalismo erótico articula de modo por vezes magistral o demoníaco com o divino. A beleza faz corpo com eros e com a transgressão mundana porém legitimada pela função redentora do Fauno. Há semelhanças entre Fauno e Sátiro, mas a figura do Fauno embora seja associado ao prazer sexual perdeu a conotação bestial conquanto ainda possa ser representado metade humano, metade bode. Aquilino usa a simbologia do Fauno para dar largas ao seu vitalismo erótico ao mesmo tempo que compromete os padres que são quem faz as despesas da narrativa. O texto pretende também promover os cânones de uma sexualidade mais livre face ao conservadorismo rural na matéria. E a verdade é que as donzelas a dada altura por espontânea vontade se foram oferecer aos braços da inefável criatura, anjo, homem ou demónio: “Donzelinhas, mal a pojar dos seios, foram oferecer-lhe a flor temporã da puberdade. As casadoiras, no primeiro abrir mão da família, moscavam para ele”. A primeira reacção dos camponeses foi apanhar a fera e é espantosa a narrativa aquiliniana mobilizando todo o tipo de recursos geográficos, linguísticos e etnográficos para cantar a gesta da “Batida” heróica. Neste ponto, precisamente, poderá residir a eventual condenação do texto, uma vez que desde o léxico até à caracterização dos figurantes parece que se convoca um mundo fascinante mas desaparecido.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasSubjectividade, alteridade e ficção Braga, Maria Ondina, A China Fica ao Lado, Instituto Cultural, Macau, 1996. Descritores: Literatura portuguesa, conto, De longe a China: Macau na historiografia e na literatura portuguesas / coord. Carlos Pinto Santos, Orlando Neves, – 4 vol., p. 1545-1559 Cota: Mc/S234d [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]aria Ondina Braga nasceu em Macau a 3 de Janeiro do ano de 1932 e faleceu em Braga a 14 de Março de 2003. Estudou em França e Inglaterra, tendo-se licenciado em literatura Inglesa pela Royal Asiatic Society of Arts. Trabalhou vários anos como enfermeira durante o período dos seus estudos no estrangeiro. Entretanto viveu em Angola, Goa e Macau, tendo regressado definitivamente a Portugal em 1964. Fixou-se em Lisboa, mas no fim da vida regressou às origens, para a cidade que a viu nascer, Braga. Da sua obra destaco: O livro de crónicas, Eu Vim para Ver a Terra de 1965. Os livros de contos, A China Fica ao Lado de 1968, Amor e Morte de 1970, A Revolta das Palavras de 1975 e O Homem da Ilha e Outros Contos de 1982. A coleção de novelas, Os Rostos de Jano de 1973. E finalmente os romances Estátua de Sal de 1969, A Personagem de 1978 e Nocturno em Macau de 1991. Destas obras eu seleccionei os seguintes contos e crónicas: Angústia em Pequim de 1988, Chá de Jasmim, Coloane, Macau nos Longes do Tempo, Chinesinha, Mulheres de Letras na China Antiga, Macau Uma roda Cega, Nam Van, A Condição Feminina na Literatura Chinesa do Século XX e Porto Interior. Quase que me atrevo a dizer que escrever sobre Maria Ondina Braga me estava destinado com o sabor de um encontro e de uma fatalidade. E porquê? Desde logo porque os meus mais de dez anos de Macau fizeram com que os nossos caminhos se cruzassem (como eu gosto desta palavra, caminho, que intuitivamente se liga intimamente com andança, paragem, partida, diáspora, etc.). Não sou muito dado a leituras que não deseje e a cultos priveligiados de obras ou autores através de mecanismos de identificação obrigatória, seja pela nacionalidade ou pela língua. As minhas escolhas nunca suportaram esse tipo de condicionamento e não seria agora que o iriam suportar. Como tal grande parte do que se escreveu e escreve em Macau, não me interessa e nunca me interessou e não acabará por me interessar. Mas Maria Ondina Braga interessou-me desde sempre. A trajectória existencial da escritora de Angústia em Pequim, profundamente associada a deslocamentos geográficos constantes, por França, Goa, Angola, Inglaterra e Macau, colocava-a na órbita das minhas potenciais paixões literárias. Propositadamente misturei os lugares, sem nexo e sem fio codutor e sem linha de eventual continuidade histórica, para acentuar a matriz anárquica da deriva, da procura, da insatisfação, pois a haver um nexo, ele não será geográfico, mas ontológico, disso, pelo menos, estou certo. A obra de Maria Ondina Braga é inseparável desta flutução itinerante, desta viagem, deste processo de desenraizamento que me é tão caro. Não sei à partida o que é a causa e o efeito, se a biografia se o Eu. Não sei quem engendrou quem e provavelmente nem fará sentido esse tipo de escrúpulo analítico. A obra seguramente não irá deslindar o ovo da galinha, imbrincados como já estarão lá a vida e a arte, a ficção e a memória. Será a obra e a memória que a vida produziu que determinará a auto consciência de uma dispersão das modalidades existenciais, ou será essa dispersão nativa, autóctone e estrutural, diria, que dramaticamente estimula a vida às travessias, aos exílios e às diásporas reconfigurando no espaço e no tempo o que por si já aparece a si na sua vocação íntima acrónica e atópica, e, quem sabe, por uma demanda insatisfeita e agónica de uma eutopia soteriológica. O que sabemos de modo iniludível, por ser da ordem positiva dos factos é que Maria Ondina Braga, fez da fragmentação uma obra e da prossecução da obra uma vida fragmentada, porque não tenhamos dúvidas era a arte, que nela havia, o motor da sua insatisfação e esta a causa última e primeira do trânsito obstinado. A instabilidade estrutural do eu, ou seja dos eus, ou das suas fragmentações dispersas, encontraria no território da escrita a sedimentação possível de uma ilusão de permanência. Precária ilusão, acrescento sem medo, pois a ficcionalização do eu constitui a máxima artificialidade da ficção. A recriação da unidade do eu que passa primeiro por uma ideia de desdobramento entre a vida, através do exercício da memória, e a subjectividade aí espelhada, acentua ainda mais a inevitável não conformidade entre o ser e o devir. E portanto nesse sentido a ficção alimenta-se de uma ficção e torna-se a ficção suprema. Procuramos ouvir a nossa voz, na ilusão de que ela pode assegurar a transparência fenomenológica da consciência mas, simplesmente, a reelaboração da consciência e da memória nunca são a realidade. Essa realidade em que se acredita, esse modo de pensar que ‘é assim que as coisas estão a acontecer’, ou se passaram, é de uma ingenuidade tocante. A mobilidade territorial do eu, a sua inconstância, a sua alienação quer do ponto de vista da gnose, quer do ponto da afectividade falsifica as próprias modalidades da apropriação e portanto tudo se transforma ou numa forma cristalizada do vivido, que é sempre falsa, ou numa forma de representação onírica que é sempre fluida, projectada apenas como vaga nostalgia ou desejo. Entre estes dois pólos se move a escrita de Maria Ondina Braga. Vamos ver como. Vou centrar a minha abordagem no conto que transcrevo aqui em parte: “ (…) Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha… a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a antigas devoções… Todavia, vestira-se de gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse. O conto é manifestamente autobiográfico e o narrador que neste caso é também manifestamente omnisciente, embora não o pareça, é a própria Maria Ondina Braga. Isso pouca importância teria se não devêssemos exigir à autora um desdobramento que lhe permita o jogo lúdico de uma duplicidade hetero referencial. Nas narrativas autobiográficas o autor é obrigado a produzir dentro de si a emergência de um outro, uma figura da alteridade no seu próprio teatro interior, pois só assim se instala um universo ficcional completo. Muitas vezes nas crónicas essa dimensão especular não chega a aparecer e a narrativa persiste no âmbito de uma veracidade empírica de verosimilhança histórica. Nem o papel ambíguo da memória a salva, pois muitas vezes a salutar ambiguidade e até o anacronismo ficcional é substituído por um rigor positivista eventualmente conveniente na historiografia mas contraproducente na efabulação romanesca. O ideal neste domínio é justamente o contrário do rigor documental e da veracidade confirmável, mas antes o sentimento de dúvida e eventualmente de estranheza ou incredulidade. Será que as coisas se passaram assim? Será que isto é mesmo autobiográfico. Onde começará a ficção e acabará a realidade? Essa perplexidade surge neste texto? E como? Em minha opinião surge e é isso que faz a diferença entre a boa literatura e a Grande Literatura. Os textos de Maria Ondina Braga contêm aquilo que Mikhail Bakhtin considera imprescindível, o desdobramento da consciência em duas entidades que não coincidem. É a irrupção da alteridade no seio do mesmo que abre o caminho ao processo efabulador e ficcional. A dado passo ela diz: “A menina sabia… ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara. Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha…. E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo… Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria. Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta. Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas. (…) Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha? Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas. Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me acreditaria”. Acreditamos que tenha existido esta senhora Tung, mãe de uma freira de nome Chen-Mou e que viesse passar regularmente o Natal naquele colégio de freiras sub entendido e ainda que conhecesse suficientemente bem a Bíblia para discutir a virgindade de Maria, etc. Tudo é verosímil e provável, mas a narrativa, partindo de factos seguramente comprováveis possui a dimensão onírica de uma memória nubelosa à luz da qual, passe o paradoxo, as pessoas e sobretudo a senhora Tung adquirem uma dimensão de personagens que não possuíam na vida real. Trata-se de uma modulação mínima, que instaura os contornos de um universo poiético e que constitui o segredo da literatura. A senhora Tung existiu, vamos acreditar, mas esta senhora Tung, enquadrada do modo como Ondina Braga a concebe, é já uma personagem, enfim o esboço de uma personagem e é dessa personagem que nos começamos a aproximar e a afeiçoar. A senhora Tung só nos atrai e provoca curiosidade porque nos surge transformada pela retorta alquímica da escritora, que ao caracterizá-la fisica e socialmente não como o teria feito a Maria Ondina Braga que com ela contracenou, mas como o faz a escritora que agora no seu gabinete de trabalho a manipula levando-a a adquirir uma aura estranha e fascinante. Nesta mesma transformação é arrastada a própria autora que aqui contracena com a senhora Tung e que a senhora Tung seguramente não conheceu. Em boa verdade a mutação deu-se primeiro em Maria Ondina Braga e só depois por arrastamento em tudo aquilo que ela convoca, a começar pela senhora Tung, que seguramente também não se reconheceria a si mesma agora na pessoa de uma personagem.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasOs contos, os porcos e as pérolas Sinopse e Ficha Crítica de Leitura [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]João Aguiar nasceu em Lisboa, tendo passado grande parte da sua infância na Beira, Moçambique. Licenciou-se em Jornalismo pela Universidade Livre de Bruxelas, tendo trabalhado nos centros de turismo de Portugal em Bruxelas e Amesterdão. Regressou a Portugal em 1976, para se dedicar numa primeira fase ao jornalismo. Trabalhou para a RTP (onde iniciou a sua carreira em 1963) e para diversos diários e semanários como: Diário de Notícias, A Luta, Diário Popular, O País e Sábado. Em 1981, foi nomeado assessor de imprensa do então Ministro da Qualidade de Vida. Colaborou regularmente na revista mensal Super interessante, sendo membro do seu Conselho Consultivo. Foi ainda colaborador da revista Tempo Livre. Morreu aos 67 anos, vítima de doença prolongada. Das suas obras eu destacaria: A Voz dos Deuses (1984), Os Comedores de Pérolas (1992), O Dragão de Fumo (1998), O Rio das Pérolas (2000), Uma Deusa na Bruma (2003), O Jardim das Delícias (2005), O Tigre Sentado (2005, 2ª edição), entre muitos outros títulos. A obra que analiso aqui é O Rio das Pérolas do ano 2000, curiosamente o ano da transição da soberania de Macau para a China . Num certo sentido este pequeno livro de contos possui o valor emblemático de uma despedida de Macau e de uma nostalgia pelo carácter desta cidade misteriosa e sob muitos aspectos emblemática. Esta obra de João Aguiar é constituída por 4 (quatro) contos – Sândalo e Jasmim, O Deus dos pássaros, Sinal novo e o Princípio da compaixão – unidos por uma referência comum à cultura chinesa de Macau. Nestes quatro contos o narrador acossado por uma depressão persistente vai tendo encontros com personagens irreais. O pretexto, parece-me, é utilizar a ficção para dar conta de um conjunto de descobertas culturais e religiosas relacionadas com a estadia do autor. Melhor seria dizer, com as estadias do autor. Os contos exercitam assim uma dupla função lúdica e erudita, quase etnográfica, que nem sempre funciona plenamente mas suficientemente para justificar a leitura destes quatro contos. No primeiro conto, designado Sândalo e Jasmim, o narrador, o próprio autor seguramente, irá entrar em contacto com a deusa Sèong Ngó, ou seja a deusa da Lua. Aparentemente o autor desconhece quase tudo sobre Macau e usa um interlocutor, para tornar mais verosímil a narrativa que, sendo português, se encontra há vários anos em Macau, o que justifica os imensos conhecimentos de que dá provas. Mas a erudição, em boa verdade, não passa de um segredo de polichinelo, pois tudo se resume a uma saber generalista e que se pode encontrar em qualquer guia turístico ou na Internet. O que no conto despoleta a intervenção da deusa Sèong Ngó são as traquinices de uma criança que inopinadamente interpela o nosso personagem para no fim de contas lhe dar uma lição de sabedoria existencial. Claro que a criança não é nem podia ser uma criança qualquer, pois as crianças com três anos de idade não podem dar lições de vida seja a quem for. A criança em causa que se dirige ao nosso narrador, na praia de Hac Sa, lugar que como sabemos é muito visitado na noite do Tchung-tchao Tchit que é, nem mais nem menos, a grande festividade do Outono, mais conhecida pelo “Bolo Lunar”, festividade móvel e que ocorre sempre no décimo quinto dia do oitavo mês lunar. É uma festa que celebra o fim das colheitas dedicada à deusa da Lua. Ora foi como vimos a deusa da Lua que se aproximou da personagem para o poder esclarecer acerca dos ensinamentos sábios da criança Na Cha. E quem é afinal Na Cha. Vamos por partes e comecemos pelo seu habitat. Na Cha possui o seu templo próprio em Macau, ali na Calçada das Verdades, entre as travessas de Sancho Pança e de D. Quixote. É aí que se encontra um templo de dimensões muito reduzidas, o que se compreende, pois é habitado por uma criança. É tão pequeno que possui uma única parede e a sua cobertura é suspensa por pequenas colunas de pedras. Este minúsculo templo, mas tão “simpático” na sua simplicidade é dedicado a um deus criança, precisamente a criança Na Cha da história de João Aguiar. A narrativa de João Aguiar é neste ponto muito realista pois a criança aparece identificada tal qual como é descrita em qualquer panfleto de promoção turística. Assim o autor enfatiza o carácter traquina da criança, tão traquina que os pais o mantinham preso a uma argola, da qual se libertava, porém, a toda a hora. Mas sobretudo o autor acentua o seu desassossego, uma vez que ele está sempre em movimento de um lugar para outro, de tal modo que é representado com uma argola dourada na mão e rodinhas nos pés. Consta que esta criança não queria nascer, pois provavelmente sentir-se-ia muito confortável no ventre da sua mãe. O que andaria ali a fazer, na praia de Hac Sa, na noite de celebração do “Bolo Lunar”, esta criança tão abençoada, sobre isso o autor nada nos diz, mas é de crer que seria também para comemorar esta festividade tão importante, aproveitando já agora para comer um pedaço de bolo, pois sabe-se como as crianças são doidas por guloseimas, mas mais do que tudo, estou certo, para cuidar das crianças que nessa noite com a cumplicidade dos pais ficam a pé até mais tarde. É que Na Cha é uma Criança-Deus superiormente investida do estatuto de patrono para melhor proteger as outras crianças de males e doenças e por maioria de razão colocá-las ao abrigo das más influências dos espíritos malignos. Em todas as histórias há sempre qualquer coisa de surpreendente mas ao mesmo tempo erudito como já disse, salvo no conto intitulado O Deus dos Pássaros. Nesta história do pássaro vermelho artificial que o contador de histórias comprou na Rua das Mariazinhas e que meteu dentro de uma gaiola comprada junto ao Mercado Vermelho o que há de relevante é a justaposição de um costume com um desejo que, através do inconsciente, se transmuta numa desconstrução do costume em nome de um valor libertário, tão ocidental. E tudo isso através da subversão do desejo. É uma parábola sobre a liberdade mas também sobre o incondicionado dos deuses. Mas, para que o efeito libertário se tenha completamente consumado foi necessário que o desejo do homem pela liberdade fosse estimulado e desencadeado por uma espécie de transcendência onírica que na economia da narrativa desempenha um papel propiciatório. Os deuses propiciam e os homens agem. Num contexto temático completamente diverso do poema Infante da segunda parte da Mensagem: Mar Portuguez, este segundo conto faz plenamente justiça ao seu primeiro verso: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Que, contudo, este Deus não seja o nosso mas o Deus dos pássaros é o que acaba por contar muito pouco em minha opinião. O encontro com A-Mah, a deusa, tem os contornos de um prodígio. Aliás uma das personagens, Jasmim de seu nome, peripatética de profissão, quer dizer, que faz o trottoir, mas afinal avatar da própria deusa, diz a dado passo: “De vez em quando, convém renovar os prodígios, se não as pessoas confundem-nos com as lendas”. O conto termina no templo de A-Mah onde duas das personagens do conto se encontram para rezar e agradecer à deusa. Jasmim, que tinha embarcado com eles, o narrador e o seu tio Pac, foi afinal quem os salvou do terrível tufão de grau nove que se abateu sobre Macau e Ilhas durante um breve período, afinal o tempo de um passeio de barco desde o Porto Interior até para lá de Coloane e regresso. Finalmente o quarto conto narra o encontro desta predestinada personagem, com a deusa Kun Iam. Kun Iam é a encarnação feminina do Avalokiteçvara, o compassivo, o bodisatva mais venerado do Mahayana que representa essencialmente o princípio da misericórdia e da compaixão. Neste conto o autor explorou, e a meu ver muito bem, dois aspectos aos quais sou particularmente sensível, a questão da tolerância e no fim de contas do amor pelo próximo, ao mesmo tempo que explorou também a problemática do Outro, na perspectiva de que não se encolhe ao considerar que a compaixão, a misericórdia, não são expressão de nenhuma religião ou cultura em particular, mas fazem parte da natureza humana e são assim partilháveis justamente enquanto património comum, o que de algum modo explica as semelhanças entre a imagem da nossa senhora das Dores e a imagem da deusa Kun Iam que se encontra no templo de Kun Iam Mil e que ao que parece terá vindo de uma capela que havia em Pequim no século XVIII. O encontro do escritor com a deusa ou aliás com Avalokiteçvara tem metaforicamente os contornos de uma perseguição e digo metaforicamente pois a ideia que é ressalvada é a de que o sentimento de compaixão e misericórdia, mais ainda do que estar em nós é algo que nos persegue a vida toda. Desde há muito que a personagem se sente perseguida, em boa verdade por dois inimigos, um sentimento de revolta e de raiva, podemos dizer assim, e ao mesmo tempo, sem o saber, por este Avalokiteçvara que na trama dos seus sentimentos se virá a afirmar como compaixão.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasDa Modernidade Giddens , Anthony, Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta, 1995. Descritores: Modernidade, História, Holismo, Capitalismo Tardio, 148 p., ISBN: 972-8027-27-3 [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odas as obras sobre a problemática da Modernidade me interessam. A minha posição é de defesa quase incondicional da Modernidade, ou seja, reconheço as perversidades inerentes ao progresso mas não as atribuo à Filosofia das Luzes e portanto também não à Modernidade como a concebo, mas a uma contrafacção da Modernidade engendrada pelos seus detractores. Convém distinguir três variantes na análise da crise da Modernidade. Uma perspectiva centra-se na ideia de que a Modernidade já acabou e que vivemos agora segundo um outro paradigma, o da Pós – Modernidade. Outra perspectiva, enfatiza a ideia de que a Modernidade é um projecto falhado para a humanidade, um caminho mal escolhido e aí se defende um regresso ao passado, digamos assim, assinalando uma espécie de nostalgia pelas sociedades pré-modernas. Ora não me parece que assim seja. Nem num caso nem noutro. Finalmente muitos sustentam que a Modernidade é um projecto incompleto e que interessa continuar, como é o caso de Habermas. Em síntese a Modernidade é considerada como a crença na Verdade, alcançável pela Razão, e na linearidade histórica rumo ao progresso. Eu destacaria ainda a predominância do Paradigma Sociológico. Mas isso é muito discutível, pois as filosofias do sujeito contêm em si a possibilidade de um paradigma antropológico de orientação humanista. Dentro do leque de autores pós – modernos eu salientaria Jean François Lyotard, Gianni Vattimo, Richard Rorty, Jean Baudrillard, e talvez Michel Foucault. Comecemos pelos pós-modernos: Segundo Gellner “O pós-modernismo é um movimento contemporâneo. É forte e está na moda. E sobretudo, não é completamente claro o que diabo ele é. Na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos. Ele não apenas falha em praticar a claridade mas em certas ocasiões até a repudia abertamente… A influência do movimento pode ser discernida na Antropologia, nos estudos literários, na filosofia… etc. As noções de que tudo é um “texto”, que o material básico de textos, sociedades e quase tudo, é significado, que significados estão aí para serem descodificados ou “desconstruídos”, que a noção de realidade objectiva é suspeita – tudo isto parece ser parte da atmosfera, ou nevoeiro, no qual o pós-modernismo floresce, ou que o pós-modernismo ajuda a espalhar. O pós-modernismo parece ser claramente favorável ao relativismo, tanto quanto ele é capaz de claridade alguma, e hostil à ideia de uma verdade única, exclusiva, objectiva, externa ou transcendente. A verdade é ilusiva, polimorfa, íntima, subjectiva … e provavelmente algumas outras coisas também. Simples é que ela não é… Tudo é significado e significado é tudo e a hermenêutica o seu profeta. Qualquer coisa que seja, é feita pelo significado, conferido a ela…” Para o crítico marxista norte-americano Fredric Jameson, a Pós-Modernidade é a “lógica cultural do capitalismo tardio”, correspondente à terceira fase do capitalismo, conforme o esquema proposto por Ernest Mandel. O sociólogo polaco Zygmunt Bauman, um dos principais popularizadores do termo Pós- Modernidade no sentido de forma póstuma da modernidade, prefere contudo usar a expressão “Modernidade líquida” para designar este tempo apelidado de Pós-Modernidade uma realidade ambígua, multiforme, na qual, como na clássica expressão do manifesto comunista, tudo o que é sólido se desmancha no ar. Zygmunt Bauman é essencialmente um crítico da Modernidade, mais do que um teorizador da Pós-Modernidade. Mais próximo de uma teorização da Pós-Modernidade e segundo uma perspectiva original encontra-se Gianni Vattimo que a partir do conceito de Aufbhung dialéctica hegeliana, procura conceber o fim da Modernidade e a sua não superação, pois essa seria, embora com outra designação ainda, da ordem da Modernidade. Lipovetsky, como sabemos, embora identificado com a Pós- Modernidade, prefere usar o conceito de Hiper-Modernidade para identificar os tempos actuais. No âmbito dos nostálgicos eu identificaria sobretudo Leo Strauss, Eric Voegelin, Charles Taylor (Mal Estar na Modernidade), Alisdair MacIntyre (After Virtue), enfim entre outros. O mal-estar na Modernidade cola com facilidade a um mal-estar na Democracia e isso leva-nos naturalmente a uma crise reconhecida da Representação, que é em si considerada Pós- Moderna. Mas a crise da representação atravessa todas as formas da vida social desde as políticas às formas da representação no domínio da Arte. Há episódios e opiniões que possuem um valor inestimável. Leo Strauss considerava Cassirer, que o orientou em sede de doutoramento, um anão quando comparado com Heidegger. Percebe-se a influência nefasta que Heidegger desempenhou junto dele e de onde é que virá o seu reaccionarismo radical. A posição de Leo Strauss é a todos os títulos anti moderna. Dele se disse e com propriedade: “While modern liberalism had stressed the pursuit of individual liberty as its highest goal, Strauss felt that there should be a greater interest in the problem of human excellence and political virtue”. Conheço não só estas posições como conheço também as suas consequências. A sua posição de fundo propõe um regresso a perspectivas holistas, como se a mistura explosiva entre o holismo e o sagrado não estivesse intimamente associada, às hierarquias, às castas, isto é à desigualdade. E tudo isto significa aquilo contra o qual o Iluminismo se bateu. E tudo fica muito claro se atendermos às seguintes afirmações produzidas por Strauss: “Strauss taught that liberalism in its modern form contained within it an intrinsic tendency towards extreme relativism, which in turn led to two types of nihilism: The first was a “brutal” nihilism, expressed in Nazi and Marxist regimes. In On Tyranny, he wrote that these ideologies, both descendants of Enlightenment thought, tried to destroy all traditions, history, ethics, and moral standards and replace them by force under which nature and mankind are subjugated and conquered. The second type — the “gentle” nihilism expressed in Western liberal democracies — was a kind of value-free aimlessness and a hedonistic “permissive egalitarianism”, which he saw as permeating the fabric of contemporary American society. In the belief that 20th century relativism, scientism, historicism, and nihilism were all implicated in the deterioration of modern society and philosophy, Strauss sought to uncover the philosophical pathways that had led to this situation. The resultant study led him to advocate a tentative return to classical political philosophy as a starting point for judging political action”. Enfim, Leo Strauss justifica uma abordagem específica e sistemática, tal como Eric Voegelin. No âmbito dos que defendem a tradição da Aufklarung e da Modernidade saliento Habermas. O filósofo alemão Jürgen Habermas relaciona o conceito de Pós-Modernidade a tendências políticas e culturais neoconservadoras, determinadas a combater os ideais iluministas. E é no essencial o que eu próprio penso. Mas eu contextualizo essa reacção no quadro de um equívoco estrutural que identifica mal o Iluminismo. Trata-se portanto de um conjunto inarticulado: Segundo o francês Jean-François Lyotard, a «condição pós-moderna» caracteriza-se pelo fim das metanarrativas. E o fim das matanarrativas resulta do desmentido brutal que Auschwitz representa para as ilusões da Modernidade. Como pensar o progresso e o seu programa emancipador depois da calamidade moral do nazismo? Para Lyotard a pós-modernidade implica o abandono da crença num fundamento seguro do saber, e a renúncia à fé no progresso tecnológico da humanidade. Ela caracteriza-se pela falência das metanarrativas que nos permitiam situar dentro do processo histórico (A História), no qual o futuro é dotado de sentido e ainda de uma história em que nós nos encontramos num tempo que se situa entre um passado inteligível e um futuro previsível. A visão pós-moderna distingue uma pluralidade de saberes homogéneos onde a ciência não ocupa já o primeiro lugar. Para Giddens não estamos na perspectiva de entrar numa época pós-moderna mas antes num tempo de radicalização e extensão das consequências da modernidade. As doutrinas evolucionistas impediram-nos uma visão onde se deveria salientar o carácter descontínuo da modernidade. Mesmo o marxismo apesar de privilegiar as ideias de corte e de ruptura e das consequentes descontinuidades (revolucionárias) acabou por salientar a perspectiva de que a história possui uma direcção de conjunto governada por princípios dinâmicos gerais. CONTRARIEDADES Max Weber foi um dos primeiros grandes sociólogos a entrever os aspectos negativos da modernidade. Centrado na ideia de desenvolvimento burocrático (consequências da utilização da razão instrumental), que afecta a criatividade individual e a autonomia individual, como contraponto ao progresso material. Salientando que não se percebeu atempadamente, por exemplo, que o avanço das forças produtivas produziu um efeito destruidor sobre a natureza. Por outro lado evidenciou também que o reforço do poder político conduziu ao advento do totalitarismo e que esses fenómenos não seriam alheios à modernidade; tudo isto associado também à estreita ligação quase congénita entre a inovação e a organização industrial por um lado e o poder militar por outro lado, que é coetâneo das origens da industrialização. O que cintila no horizonte da modernidade é o sentimento de fim da fé no progresso, o abandono de uma historicidade ingénua, de um inevitável futuro mais feliz e seguro, etc. O sentimento de que a História não vai a parte nenhuma. Os elementos dinâmicos da modernidade: O capitalismo que justifica a emergência do fenómeno Marx… A divisão complexa do trabalho e o seu dinamismo próprio. A industrialização. A racionalização que contudo se metamorfoseia em burocracia, tanto no domínio tecnológico quanto no domínio da organização das actividades humanas. Mas para Giddens a modernidade é multidimensional. Não é possível reduzir a sua dinâmica a qualquer item em particular. Para ele De onde vem o dinamismo da modernidade: Dissociação do tempo e do espaço. Deslocalização dos sistemas sociais. Organização e reorganização reflexivas das relações sociais à luz dos implementos trazidos pelo conhecimento que entretanto afectam as acções dos indivíduos e dos grupos. PÓS-MODERNIDADE Tanto Nietzsche quanto Heidegger, a despeito das diferenças, possuem dois elementos em comum: Ambos ligam a modernidade à ideia segundo a qual a História se pode identificar a uma apropriação progressiva dos fundamentos racionais do saber. (p. 53) Cada um deles é atraído pela necessidade de se distanciar das fontes de legitimação das Luzes mas sem o poder fazer a partir de formas de legitimidade superior ou melhor fundadas. Eles abandonaram a noção de ultrapassagem crítica, o que de algum modo os manteria ainda dentro do quadro das Luzes. A verdade é que Giddens toca na ferida ao considerar que este tipo de posições se aparenta mais à perspectiva da compreensão da modernidade enquanto tal. Mas também diz que o triunfo da razão das Luzes se assemelha a uma recaída da Providência. A apologia da razão é homóloga da apologia da Providência. A razão recoloca a Providência. Não a substitui. Ela é providencial.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasRaymond Aron: Um clássico contemporâneo [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s Etapas do Pensamento Sociológico é um verdadeiro clássico da Sociologia contemporânea. Constituído por sete estudos sobre os fundadores da Sociologia – Montesquieu, Comte, Marx e Tocqueville – e sobre a geração da viragem do século XX, Durkheim, Pareto e Weber, procura investigar as origens da Sociologia moderna através da elaboração de uma galeria de retratos intelectuais. «Estes retratos são de sociólogos ou de filósofos? Não o discutirei», explica o autor: «Digamos que se trata de uma Filosofia social de um tipo relativamente novo, de um modo de pensar sociológico, caracterizado pela intenção de ciência e pelo visar do social, modo de pensar que desabrocha neste último terço do século XX. O homo sociologicus está em vias de substituir o homo oeconomicus. (…) Os sociólogos reclamam-se de métodos empíricos, praticam inquéritos por meio de sondagens, empregam um sistema conceptual que lhes é próprio, interrogam a realidade social de um certo ângulo, têm uma óptica específica. Este modo de pensar alimenta-se de uma tradição cujas origens esta galeria de retratos procura descobrir». Na impossibilidade de dar um resumo do pensamento de Raymon Aron sobre tantos autores incluídos nesta obra volumosa, destaco o que aqui se considera sobre um dos mais relevantes sociólogos contemporâneos, Max Weber. As grandes linhas compreensivas do pensamento de Max Weber, por Raymond Aron A citação (epígrafe) de entrada é desde logo muito compreensiva do sentimento de crítica da modernidade do autor: “A racionalização da actividade social não tem como consequência, de modo nenhum, uma universalização do conhecimento relativamente às condições a às relações desta actividade e conduz pelo contrário, muitas vezes ao efeito oposto. O selvagem (primitivo) conhece infinitamente mais e melhor, na maior parte dos casos, as condições económicas e sociais da sua própria existência, que o civilizado”. [Weber, Ensaios sobre a Teoria da Ciência, página 397 (A Sociologia Compreensiva), em Aron 1967 : 497]. Passo a referir-me aos Ensaios Sobre a Teoria da Ciência ( Gesammelte Aufsatze zur Wissensschaftlehre). Em Teoria da Ciência Weber distingue quatro tipos de acções: A acção racional relativamente a um fim (zweckrational); A acção racional relativamente a um valor (wertrational); A acção afectiva ou emotiva; e A acção tradicional. Evidenciam-se os radicais, Zweck que quer dizer finalidade, propósito e Wert que significa valor. Ora um dos problemas do nosso tempo resulta do facto de que praticamente todas as acções estão subordinadas a uma lógica Zweckrational. A racionalização deixa pouca margem de manobra para acções de outro tipo. A organização zweckrational criou um problema que é de tipo existencial, e que consiste em delimitar o sector da sociedade em que subsiste e deve subsistir uma acção de um outro tipo (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 501). Para Weber a pesquisa científica é ao mesmo tempo zwertrational e wertrational, na medida em que a acção é racional relativamente ao seu fim ou objectivo, mas sendo esse o objectivo, a verdade também é racional relativamente a um valor, o valor da verdade. Ora, pelo exposto, pode concluir-se que a ciência é assim um dos aspectos da racionalização característica das sociedades ocidentais modernas. As ciências históricas e as ciências sociológicas representam antes de mais um elevado esforço de racionalização, quer dizer de compreensão racionalizada do funcionamento e do devir das sociedades. E isto é uma preocupação genuinamente ocidental. Para Weber, e esse é um traço da sua modernidade, a ciência será sempre uma actividade inacabada, assim como o conhecimento que resulta dessa actividade. Inacabamento e objectividade são os dois traços por excelência da ciência ocidental. E caracterizam também o processo de racionalização. A ciência antiga visava os princípios das coisas e do Ser. Nesse sentido ela podia conceber-se como acabada ou visar esse objectivo. A ciência moderna ignora as proposições relativas ao sentido último das coisas. Ela está sempre em devir e sempre incompleta e inacabada. O reconhecimento desta condição precária do conhecimento é homóloga da descoberta da finitude do ser e da incompletude e precariedade ontológica e existencial. É, parece-me, uma atitude intelectual mais lúcida, mais conforme à realidade da natureza das coisas. Muito importante é ter em conta que nas ciências (humanas) sociais (históricas, culturais ou outras) o conhecimento depende ainda das questões que se podem colocar à realidade. Ora o progresso implica uma mutação constante e permanente dessa mesma realidade, logo a possibilidade de que novas questões possam ser colocadas e assim até ao infinito. O autor explora o carácter aberto do conhecimento, mas também a sua progressiva relativazação. Quais as grandes características (distintivas) das ciências (ditas) sociais (históricas e sociológicas)? São três: São compreensivas (Verstehen = Compreensão); são históricas e são conduzidas (ao mesmo tempo que incidem sobre) à cultura. O facto de os comportamentos humanos apresentarem uma inteligibilidade intrínseca (intrínseca mas não imediata), devido ao facto de os seres humanos serem dotados de consciência (e razão, diria eu), não legitima a crença ingénua numa compreensão imediata. O facto de os comportamentos sociais comportarem uma textura inteligível que as ciências da realidade humana são capazes de captar não desobriga o investigador social de todo o trabalho de investigação e estudo. Esta compreensão não é intuitiva mas elaborada. É sempre uma reconstrução. Quer dizer, o sentido subjectivo é sempre captável mas ao mesmo tempo equívoco. Weber deve muito a Karl Jaspers, o conhecido filósofo do existencialismo alemão, à sua psicopatologia, a ideia de compreensão. Jaspers considera que há uma clara diferença entre explicação e compreensão. De resto tal como Dilthey. Há um momento em que a inteligibilidade desaparece por exemplo dos fenómenos patológicos. Aí deve entrar a explicação. Importante: “Desse facto, o facto de que somos capazes de compreender, resulta que podemos ter consciencia dos fenómenos singulares (particulares) sem necessariamente termos de recorrer às proposições gerais (universais), (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 505). Há uma relação entre a inteligibilidade intrínseca dos fenómenos humanos e a orientação histórica destas ciências sociais (baseadas nos comportamentos humanos). As considerações de Weber sobre a historicidade e sobre a dimensão sociológica está errada como a escola dos Annales muito bem veio a demonstrar. Mas é importante reflectir sobre este tipo de erros. (Aron 1967: 506) “As ciências que incidem sobre a realidade humana são enfim ciências da cultura (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 506), se entendermos por cultura, não apenas a arte ou a literatura, mas também as leis, as instituições, os regimes políticos, as experiências religiosas, as teorias científicas. Portanto a ciência weberiana significa o esforço para compreender e explicar os valores aos quais os homens aderiram assim como as obras que foram por eles edificadas”. Ora as obras humanas são criadoras de valores ou são definidas, elas mesmas, através da referência a valores. Como é que pode haver uma ciência objectiva, isto é não falseada por juízos de valor (es), quando as obras sobre as quais a ciência incide, estão elas próprias carregadas de valor(es)? Se as obras são criadoras de valores, elas são assim criadoras de algo que as inviabiliza como possibilidade de que sobre elas possa incidir a elaboração de juízos de facto universalmente válidos. Ciências da cultura é assim uma contradição nos termos. Não pode haver ciência onde reina justamente a falta de universalidade… objectividade onde reina a subjectividade, etc. Os juízos de valor falseiam. Uma coisa é a relação aos valores (Wertbeziehung) que é constitutiva das ciências sociais e o juízo de valor (Wertuteil) que é antinómico do juízo científico, uma vez que é sempre pessoal e subjectivo. Raymond Aron nasceu em 1905 em Paris oriundo de uma família judia e burguesa da Lorena. Foi normalien, o que é um título de nobreza intelectual em França. Na École Normal Supériur de Paris, conviveu com Sartre, Marrou, Nizan, Canguillem, entre muitos outros espíritos brilhantes. Colaborou com Braudel na Escola de Altos Estudos e realizou cursos no Colégio de França. No domínio da política foi próximo de Malraux e De Gaulle. Faleceu em Paris em 1983. Além das Etapas do Pensamento Sociológico, Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville, Durkheim, Pareto, Weberm eu destacaria O Ópio dos Intelectuais de 1955 – Livro dedicado ao Marxismo e as 18 Lições Sobre a Sociedade Industrial de 1964.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasA emergência do paradigma antropológico Touraine, Alain, Um Novo Paradigma, Piaget, Lisboa, 2006. Descritores: Sociologia, Modernidade, Pós Modernidade, Individualismo Moderno. Paradigma Antropológico. Identidade, Actor, Sujeito, Moralidade, Subjectividade / Objectividade. Cota: A-6-3-10 UDC [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]os primeiros séculos da sua modernização, o ocidente descreveu e pensou a realidade social em termos políticos: a desordem e a ordem; o rei e a nação; o povo e a revolução. Depois, com a Revolução Industrial, o capitalismo emancipou-se do poder político. Então pensou-se e agiu-se em nome de um novo paradigma, económico e social, e falou-se de classes, riquezas, desigualdades e redistribuição. Hoje, na hora da economia global e do individualismo triunfante, a mundialização estilhaçou os antigos modelos das sociedades. Cada um de nós, presos na produção e na cultura de massa, esforça-se em escapar-lhes e em construir-se como sujeito da própria vida. O novo paradigma, pelo qual damos conta destas novas preocupações, é cultural. Testemunham-no as grandes interrogações da nossa época: que lugar dar às minorias? Deve a sexualidade estar no centro de tudo? Assistimos ao retorno das religiões? Os antigos paradigmas estavam voltados para a conquista do mundo, com o novo, é de nós que se trata. Enquanto tomamos consciência da decomposição de um mundo que era dirigido por homens, entramos numa sociedade de mulheres. Como sempre, em Alain Touraine, a preocupação de dar forma teórica às nossas práticas sociais é fecundada pela vida tal como é vivida e tudo o que neste livro é pensado reenvia para a experiência mais quotidiana do universo globalizado e no qual, doravante, evoluímos. Trata-se de uma análise da decadência e do desaparecimento do universo que chamamos de “social”, já que estamos marcados pela ruptura dos laços sociais e pela ascensão do individualismo. Sendo assim, vive-se a destruição das categorias “sociais” e passa-se a repensar as questões referentes a classes e movimentos sociais, instituições como família e escola. Os sujeitos necessitam de um conflito para que ocorra uma acção colectiva. E que a consciência do sujeito é composta por três componentes: uma relação a si mesmo como portador de direitos fundamentais, um conflito com as forças dominantes que lhe impossibilitam o direito de agir como sujeito e, por fim, cada um como sujeito, propõe certa concepção geral do indivíduo. O sujeito pode ser corrompido pela obsessão da identidade. Alguns problemas são sentidos pelo não-direito à diferença. A questão da limpeza étnica e religiosa é a mais comum e assustadora. O autoritarismo, a ignorância, o preconceito, o isolamento são obstáculos à produção de si mesmo como sujeito. A ideia de uma sociedade não social é abordada com mais propriedade na segunda parte do livro, onde as categorias culturais substituem as categorias sociais, o que leva à construção de uma nova representação da vida social. O ponto central que o livro pretende discutir é justamente a mudança de paradigma em nossa representação da vida colectiva e pessoal. Passamos a perceber a passagem de uma linguagem social sobre a vida colectiva para uma linguagem cultural. O autor ressalta que as colectividades voltadas para o exterior e para a conquista do mundo estão sendo substituídas por outras voltadas para o interior de si mesmas e de todos aqueles que ali vivem. A ideia de modernidade é definida pelo fato de dar fundamentos não sociais aos fatos sociais, de impor a submissão da sociedade a princípios ou a valores que, em si mesmos, não são sociais. A modernidade então é fundamentada em dois princípios: o primeiro é a crença na razão e na acção racional e o segundo é o reconhecimento dos direitos do indivíduo. Da análise da modernidade, conclui-se que uma sociedade moderna se funda nesses dois princípios apresentados, que não são de natureza social. Assim, a modernidade não é uma forma de vida social. Uma das tradições que domina a tendência contemporânea para a crítica da modernidade assenta na ideia de que o individualismo moderno se torna nos seus desenvolvimentos deletério relativamente ao social. O fim do social aparece como inseparável do individualismo desorganizador. E isso propaga-se de tal modo que a sensação que provoca é a de que a modernidade produz a ruína de todo o sentido. Essa articulação só pode levar-se a cabo através da sobrevalorização das sociedades e das culturas pré-modernas. O fim do social seria afinal homólogo do fim das sociedades baseadas no político e também antes delas das sociedades baseadas no religioso. O novo paradigma (anti moderno) pressupõe uma relação directa do sujeito a si mesmo sem a mediatização dos arquétipos meta-sociais que relevam da filosofia da história. E isto enquanto reacção ao paradigma sociológico. Como eu já tinha intuído o velho paradigma sociológico deu lugar a um paradigma cultural, centrado no indivíduo e nos direitos culturais. Mas Alain Touraine, embora referindo-se ao sujeito, é ao indivíduo que de facto se refere, pois pretende desligar a ideia de sujeito e a subjectivização que lhe é conforme de uma ideia, contudo para mim fundamental, de sujeição. Para mim só há sujeito em vez de indivíduo quando a mutação é acompanhada da ideia de sujeição. Pode pôr-se em causa a sociedade enquanto meta-estrutura que condiciona os indivíduos, mas não se pode pôr em causa a sociedade enquanto pacto originário. Logo a sujeição é transcendental à sociedade uma vez que é coetânea ao pacto. A questão essencial regressa à problematização já clássica da dicotomia Sein /Sollen. O domínio do Sein desligado do Sollen implica uma escravização do indivíduo à tirania da realidade e isso é insuportável no quadro de sociedades propriamente humanas. A humanidade é indissociável de valores. O mundo é sempre mundo de prevalência do Sollen, ou não é um mundo humano. O princípio da sujeição é e será sempre condição a priori da existência da humanidade, dado que só há humanidade com vida sócio-cultural. Um dos perigos do nosso tempo é a regressão a meu ver preocupante da sociedade em direcção às comunidades. O perigo da fragmentação da sociedade em comunidades é visível. Em boa verdade é por esse facto que eu rejeito liminarmente a estratégia do multiculturalismo. A própria palavra cultura é hoje para mim preocupante. O holismo apresentou muitas vezes sinais de grande equilíbrio. Mas esse equilíbrio era um equilíbrio inquinado uma vez que se baseava na hierarquia social e política, na descriminação, na desigualdade consagrada pela tradição. Era obviamente um mundo pré-moderno, de súbditos e não de cidadãos. Em larga medida o caos em que mergulhámos resultou da decomposição social de que já se fez menção. E é neste caos que se vai alimentando a obsessão identitária dos comunitarismos. Neste quadro também se percebe muito bem o apelo apaixonado e básico ao individualismo e de modo nenhum à sociedade no que diz respeito à reorganização das forças de resistência. Mas só o advento do sujeito pode ao mesmo tempo opor-se às formas impessoais da vida social que o desfiguram assim como ao individualismo que também adultera a sua intervenção cívica, cultural e política. O actor histórico nas sociedades actuais já não é o mesmo. A centralidade das classes sociais e das questões sócio – económicas ligadas ao trabalho desaparece e dá lugar a outro tipo de actor intimamente associado a outro tipo de temáticas: o planeta, o meio ambiente, a liberdade sexual, os direitos das minorias, a pobreza à escala planetária, a dignidade individual, a diversidade étnico – cultural e claro o sujeito. Touraine tem consciência de que a secularização foi incompleta em muitas culturas europeias da Ilustração. Aí subsistiram laços, muitas vezes fortes, entre a ideologia do estado e a moral cristã. Nos casos mais radicais a secularização conduziu a uma consciência puramente social da sociedade, a uma auto fundação da sociedade que assim manifestava uma crença ilimitada na sua capacidade de se transformar. Claro que este tipo de sociedades mergulha em raízes racionalistas, secularizadas não comportando nada das velhas comunidades (holistas). Tonnies terá sido o primeiro a opor de forma consagrada a oposição entre Sociedade e Comunidade. A ideia de modernidade proposta por Touraine opõe-se à tradicional concepção de que uma sociedade seria o fundamento da sua própria legitimidade. Pelo contrário a nova concepção reside no facto de que reconhece e defende a existência de fundamentos não sociais da ordem social (culturais, valores, princípios, o universalismo por exemplo). Ela faz apelo à universalidade da própria razão. Isto relativamente aos mecanismos de representação (que eu chamava de relação de reversibilidade entre a sociologia e os comportamentos sociais), que estão definitivamente caducos. As forças políticas representavam os indivíduos (que não eram os verdadeiros actores sociais) que por sua vez eram representados no seio das classes sociais, que por sua vez ainda eram definidos a partir do lugar e função na complexa estrutura das relações de produção. Ora tudo isso está ultrapassado! A concepção social da sociedade na qual todo o actor, individual ou colectivo, é definido através da sua situação social é coisa do passado. Daí o sentimento de abstracção (eu diria mesmo de artificialidade), de ausência de referências estáveis.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasElogio da Modernidade [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta obra de Jean Luc-Ferry e Alain Renaut é muito importante, uma vez que, embora centrada na análise política da obra de Heidegger, constitui também o princípio de uma crítica aos críticos da Modernidade. A ruptura permanente e constante com a tradição após o advento da modernidade abriu feridas profundas no plano mental, social e político. Qualquer crítica radical e destrutiva da modernidade implicaria também uma crítica dos valores democráticos. Este é de todos os critérios, o critério. Convém não esquecer que a Modernidade tal como a conhecemos é indissociável, dos direitos humanos, das sociedades abertas e da democracia simplesmente; além de que é também indissociável da ideia de progresso e da ideia de felicidade secularizada. O que não é de somenos. É contudo, um facto que o fim da tradição e os progressos do individualismo nos fizeram perder a possibilidade de nos referirmos a certezas estabelecidas. Isso originou um certo desconforto. Mas, em minha opinião, não temos como fugir a esse desafio. Mais grave, penso, é o carácter incompleto e por vezes titubeante da revolução que desencadeámos. O processo de secularização tem muitos inimigos. O humanismo também. O essencial do humanismo, para os inimigos do humanismo, consiste na atribuição ao homem de uma essência e de uma natureza. Ora nada mais falso. O que caracteriza o humanismo moderno é justamente o facto de considerar que o homem é um nada do ponto de vista da sua eventual natureza ou essência. O homem moderno tem como essência o facto de não ter natureza, o facto de não ter essência. Sabe-se que para lá de Heidegger ou Nietzsche, tidos como os alicerces da Pós-Modernidade, com quem os autores deste livro pretendem ajustar contas é com Foucault e com Derrida, entre outros. Já Rousseau dizia que “o homem aparece como sendo o único ser para o qual nem a história nem a natureza podem constituir códigos” Importantíssimo: Se há uma propriedade própria do homem, uma autenticidade (eigentlichkeit), só pode consistir nesta capacidade (chame-se-lhe transcendência ou liberdade, vai dar no mesmo), de se subtrair a toda as amarras de uma essência. Se o existencialismo é um humanismo, então é verdade que o humanismo é sempre um existencialismo, através do qual a existência do homem (ek-sistence=transcendance, a capacidade de se separar dos códigos) está sempre além de qualquer redução a uma essência. O homem visa o universal justamente enquanto nada, uma vez que não se deixa confundir jamais integralmente com nenhuma identidade particular. Ser capaz, ter o poder de se subtrair a todo e qualquer particularismo é nisso que consiste a possibilidade de visar a universalidade. É porque é nada que pode visar o universal. E é por isso que a inter subjectividade é determinante para a questão do humanismo. A crítica heideggeriana da metafísica (a sua leitura) consiste nisto: A metafísica é o apagamento das diferenças e de toda a alteridade, em proveito de um projecto fantástico de domínio total, exercido sobre o mundo tornado perfeitamente transparente e manipulável para o sujeito. E esta metafísica da subjectividade é a modernidade em si mesmo. Heidegger procura mostrar, à saciedade, que do nascimento da subjectividade ao universo da técnica, a consequência é inevitável. O problema, e não é um problema menor, é que condenar essa realidade assim radicalmente implica a pura rejeição da subjectividade, e o problema é que sem ela não haveria democracia, uma vez que a democracia mobiliza as energias de maitrise e de vontade que Heidegger tanto condena. É preferível condenar o homem ao estatuto de não poder ser o senhor e o autor da totalidade das suas acções e ideias. A verdade é que destruindo o sujeito se destrói a autonomia que construiu a vida social e política moderna, quer dizer democrática. Para mim o conceito de autonomia, no sentido kantiano do termo, e no sentido das filosofias contratualistas, é absolutamente vital. Sem subjectividade não há autonomia nem Crítica, e sem estas não há democracia e nem mesmo responsabilidade ética. Para Heidegger, técnica é igual a metafísica acabada. Mas a metafísica da subjectividade é desde Descartes uma antropologia ou seja um pensamento do homem como fundamento. Do ponto de vista prático o étant (ente) é dado como objecto para a vontade e radica na transformação kantiana do eu penso em eu quero. Tudo vai desembocar na autonomia da vontade kantiana. Mas para Heidegger o homem da modernidade não é mais do que o funcionário da técnica = Seigneur de l’étant (Senhor do mundo das coisas). Nesta perspectiva a metafísica moderna consiste em conceber o real como obedecendo aos princípios constitutivos do espírito humano, o que culmina na afirmação hegeliana da identidade do racional com o real ou à transferência ontológica leibniziana do princípio de razão para o próprio real, o que culmina na expressão de que nihil est sine ratione. Modernos e anti modernos O trágico da modernidade é inerente à própria dinâmica do individualismo democrático. E o individualismo democrático (eu diria já do sujeito) consiste na luta (eventualmente colectiva) dos indivíduos contra as hierarquias em nome da igualdade, e contra as tradições (heteronomia), em nome da liberdade (autonomia). Um dos rostos que resultam da crítica da modernidade aponta claramente para um retorno ao universo pré moderno da tradição. Depois de terem identificado a democracia, como subjectivização do mundo, ao universo da técnica que inevitavelmente resulta da própria subjectivização, é lógico que encontrem uma escapatória através da nostalgia pelas sociedades hierarquizadas segundo as normas da tradição. Sociedades holistas não democráticas, estamentais e enraizadas. O marxismo e o heidegerianismo fizeram um percurso comum centrado na crítica e na denúncia dos efeitos dominadores da razão instrumental. Na linha de Max Weber e Marx, Adorno e sobretudo Horkheimer empreendem uma verdadeira desconstrução desse mundo administrado (verwaltete welt), caracterizado essencialmente pela cultura de massa, à qual conduz inevitavelmente o império da razão técnica. Vamos de Max Weber e Heidegger até ao marxismo e à filosofia da Escola de Frankfurt com toda a naturalidade. Para todos estes autores, o mundo administrado não é mais do que o tornar-se mundo da metafísica da subjectividade, cujo ponto culminante é atingido com a Lógica de Hegel. Simplesmente na filosofia crítica de Frankfurt é em nome de um futuro pensado como razão objectiva e não em termos nostálgicos de um recuo para o passado que a crítica se exerce. Aliás na filosofia crítica a cultura de massa é descrita como alienação e não como maitrise, em termos de pseudo racionalidade e não enquanto racionalismo totalmente realizado (A metafísica acabada). Mas com o tempo Horkheimer foi descobrindo a natureza intrinsecamente dominadora da racionalidade, o que leva também a uma desconstrução da modernidade. Enfim seja pela via da tradição ou da utopia o que se critica é a modernidade. E para Heidegger tudo é humanismo: A Aufklarung e o romantismo, o individualismo e o colectivismo, o capitalismo e o fascismo, o nazismo, o estalinismo e a democracia. Os humanismos Três grandes tradições — A tematização da Aufklarung pela filosofia crítica de Rousseau, Kant e Fichte — A desconstrução romântica da Aufklarung, cujos prolongamentos vão ainda até Hegel. — A fenomenologia. A crítica romântica do humanismo das Luzes Sob muitos pontos de vista a crítica romântica da Aufklarung antecipa-se relativamente à desconstrução heideggeriana da metafísica da subjectividade. No fim de contas o que é denunciado, na ideologia das Luzes pelos românticos, é justamente a pretensão da subjectividade (do sujeito, do eu), entendida como consciência e vontade de reconstruir o mundo, fazendo tábua rasa da tradição (O seu artificialismo prometaico e radical, portanto). Uma das oposições maiores da filosofia das luzes é entre o direito natural (jusracionalista no caso das Luzes) e o direito positivo. [Entre o dever-ser e o ser, entre o sollen e o sein]. Estes direitos opõem-se tal como a transcendência à imanência. O universal ao particular. O direito das luzes pretende a universalidade face a um direito positivo e histórico que é sempre um direito particular. Para se perceber bem a evolução que se dá das Luzes para o Romantismo é necessário perceber muito bem o conceito nuclear de Vida (vitalismo); e para isso é necessário percorrer antes o trajecto que vai desde a Crítica da faculdade de julgar de Kant até aos primeiros trabalhos sobre a natureza (Naturphilosophie) de Schelling. Os românticos (Savigny) promovem uma ontologia vitalista. — Para os românticos o indivíduo é a comunidade nacional. — A rejeição do individualismo (do indivíduo, do sujeito, da liberdade enfim) e da transparência das normas, vão de par com o nacionalismo vitalista, daí que a crítica romântica tanto se adeqúe à crítica do pensamento contra revolucionário (De Maistre, De Bonald, etc.) O romantismo ao rejeitar o humanismo abstracto (centrado numa artificialidade absoluta) oferece do homem uma imagem em que o identifica à comunidade nacional da qual ele não é mais do que membro, uma realidade secundária. Ora é o contrário que é promovido pelas Luzes: A ideia essencial de Rousseau e de Kant segundo a qual o homem se caracteriza pelo contrário pela sua capacidade de transcender toda e qualquer definição particular, de ser capaz de se separar de todas as determinações históricas, biológicas, nacionais, para entrar em comunicação com outros homens, isso é que constitui o humanismo abstracto que é denunciado pelos contra revolucionários (Conforme Alain Renaut e Jean-Luc Ferry, Heidegger e Les Modernes, 1988: 162). Crítica fenomenológica e crítica criticista do romantismo Se por um lado a posição de Heidegger coincide com a crítica do humanismo abstracto a verdade é que o próprio romantismo aos olhos do filósofo alemão não é mais do que um momento da metafísica moderna. Heidegger percebeu bem através da fenomenologia de Husserl a crítica do psicologismo assim como de todo o vitalismo historicista. A lição de Husserl é límpida: Se a psicologia, a história ou a vida são concebidas como códigos que determinam totalmente os comportamentos humanos, a distinção entre humanidade e animalidade, quer dizer entre humanidade e coisidade desaparece. Volto a Insistir: É a partir da capacidade de se destacar das suas determinações (ou seja a partir da sua liberdade para usar a linguagem de Kant, ou da sua transcendência para seguir Husserl, ou ainda a partir da sua existência segundo Sartre ou finalmente da sua ek-sistência na expressão de Heidegger), dentro do nada entendido como a possibilidade de não ser definido através de um código em geral, que reside propriamente a humanitas do homem, o seu Eingentlichkeit. É o que Heidegger desenvolve na sua Carta sobre o humanismo: O que o homem é ou na linguagem tradicional da metafísica ocidental, a sua essência, repousa na sua ek-sistência, ou seja a faculdade que o homem tem como ente particular, de se separar do mundo dos entes, de transcender esse mundo, para colocar a questão do pensamento, ou seja a questão do Ser. O Da-sein é literalmente o aí do Ser, a abertura ao Ser, pelo que não são colados (agarrados) ao ente na procura maquinal e imperiosa (tirania do ciclo vegetativo, chamava-lhe Arendt) da satisfação das necessidades vitais. O contrário disto é o estado decaído da reificação como nos regimes totalitários, anulada que está a possibilidade da acção, o ser aparece como simples jogo da natureza na versão da raça ou da história ou ainda na versão da classe (paradigma sociológico. O poder de codificação social, a socialização, adultera a relação do homem com a liberdade de agir que, contudo lhe é constitutiva). Depois segue-se a bela digressão sobre a noção sartriana de que a existência precede a essência. Sendo essa a marca própria do homem. Contudo a narrativa criacionista introduz de novo a essência antes da existência. Deus é então o grande artesão e o homem a sua mais genial criação, mas ainda assim um objecto uma vez que a sua essência está de avanço determinada e nessa altura a existência é algo que se vem inscrever num molde já definido ainda que muito complexo, ou mesmo se. A inautenticidade é o esquecimento da sua própria transcendência, esta negação da liberdade que consiste em fazer como se fosse um ser (uma essência), como se a natureza ou a história pudessem tornar-se os nossos códigos. É Kant que traduz melhor e de modo coerente a visão da história que sustém este novo humanismo, segundo o qual o ideal de uma comunicação universal não é um modelo imposto, mas a consequência rigorosa da definição do homem como nada: “É ao arrancar-se à particularidade das identidades nacionais que o homem pode entrar em comunicação com outras culturas e atingir assim a universalidade”, (Conforme Alain Renaut e Jean-Luc Ferry, Heidegger e Les Modernes, 1988:170) Fenomenologia e criticismo: O ponto de clivagem. A crítica, a valorização e a desvalorização é já especificamente uma ideia moderna, na medida em que ela requer a instauração do sujeito como instância de avaliação.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasLiberalismo e Darwinismo Social [dropcap style=’circle’]R[/dropcap]obert Nozick nascido em Brooklyn, filho de um empresário judeu oriundo da Rússia, casado com a poetisa, Gjertrud Schnackenberg, Nozick morreu muito precocemente em 2002, após uma prolongada luta contra o cancro, e com menos de 40 anos. Os seus restos mortais estão enterrados no Cemitério Mount Auburn em Cambridge, Massachusetts. Robert Nozick pode ser considerado um filósofo, embora tenha confessado não ter encontrado grande prazer quando cursou filosofia no Columbia College. Contudo esta formação de base em filosofia permitiu-lhe continuar os estudos na Universidade de Princeton onde viria a doutorar-se com uma tese sobre a “Teoria Normativa da Escolha Individual”. E tudo isto lhe permitiu vir um dia a ser Professor na Universidade de Harvard. Se durante a época de Columbia se tinha tornado militante socialista, já em Princeton, na Pós-Graduação, teve contacto com as ideias neoliberais, o que modificou a sua posição política definitivamente: de socialista passou a ardoroso defensor do neoliberalismo. Veio a filiar-se, ideologicamente falando, no neoliberalismo libertário ou anarquista (corrente central do neoliberalismo), cujas raízes remontam a John Locke, Adam Smith, John Stuart Mill, David Ricardo, Paul A. Samuelson, Milton Friedman e Friedrich Hayek. No título do seu doutoramento estão delineadas as suas grandes paixões intelectuais assim como as suas preferências sociais e políticas. Nozick é hoje considerado um dos autores mais importantes do liberalismo contemporâneo para a defesa do qual procurou encontrar as fundamentações não apenas sociais e políticas mas também éticas e sobretudo morais. Robert Nozick desempenhou um papel fundamental na confrontação ideológica que colocou frente a frente, em particular na cultura anglo-americana, liberais e comunitaristas (comunitarians). Os liberais também são identificados nesta polémica como libertários (libertarians), no sentido de libertados da tutela asfixiante do estado, estou a referir-me a estes liberais, ultra individualistas, quase anarquistas (na linha de Murray Rothbard), uma vez que persiste outro tipo de liberais, os liberais igualitaristas (igualitarians) de tipo social-democrata. Na aproximação à sua obra devem ter-se em conta, desde logo as suas convicções liberais, depois o radicalismo da sua oposição ao comunitarismo e finalmente na sua obra nuclear, Anarquia, Estado e Utopia, o facto de ela representar uma reacção ao não menos importante livro de John Rawls, Uma Teoria da Justiça. O Respeito de Nozick por Rawls está acima de toda a suspeita. Ele leu com paixão o livro de Rawls e apesar da profunda admiração pela obra, não se sente identificado com os seus objectivos. Ele exprime-se nestes termos: “Uma Teoria da Justiça é uma obra de filosofia política e moral poderosa, profunda, subtil, de grande fôlego, sistemática, à qual nada se pode comparar desde os escritos de Stuart Mill, quando muito. É uma fonte de ideias luminosas, integradas num todo cativante. Os filósofos da política hoje têm ou de trabalhar no seio da teoria de Rawls ou de explicar por que não o fazem (NOZICK, Robert. 1991). A publicação de Anarquia, Estado e Utopia é justamente para Nozick explicar porque não pode nem quer trabalhar no seio da teoria distributiva de Rawls. A publicação é dividida em três partes. A primeira – intitulada “Anarquia” – busca justificar o porquê da necessidade de um Estado Mínimo; a segunda – “Estado” – apresenta a alegação de que nenhum Estado mais amplo pode ser justificado; e a terceira – “Utopia” – defende o facto de que a teoria apresentada pelo autor não busca impor uma maneira de comportamento que deva ser acatada por todos, mas antes que a sua teoria permita com que todos vivam as suas vidas da forma como bem desejarem, sem terem os seus direitos fundamentais violados. Neste livro, Nozick defende uma forma de liberalismo radical, na qual se promove, naturalmente, uma posição neutra do Estado, perante as escolhas voluntárias de adultos conscientes. O individualismo consequente e radical faz corpo com a concepção de um estado mínimo, como veremos. Para a coerência da sua posição liberal e individualista, Nozick parte, em primeiro lugar, de uma definição clara dos contornos do Estado, o que significa, das suas áreas de acção, definindo, portanto o papel (restrito) que deve ser desempenhado pelo Estado. Qualquer acção do estado, diversa daquela que está contida dentro dos seus contornos, pré determinados na sua definição, passará a ser considerada uma violação drástica dos direitos individuais dos cidadãos. E assim, esse estado mínimo terá como funções apenas: a protecção da liberdade contratual, a protecção do direito de propriedade e a segurança dos indivíduos. O direito de propriedade (O individualismo possessivo de que falava C. B. Macpherson, na linha de autores como Locke, Hobbes e Harrington, por exemplo), é inalienável e perante ele devem parar outras pretensões, mesmo a pretensão à felicidade, se for caso disso. Para opor o seu liberalismo ao utilitarismo, Nozick não hesita em argumentar à maneira kantiana, considerando que a protecção dos direitos individuais é da ordem do imperativo categórico, pois devem ser respeitados independentemente de todas as circunstâncias, ou seja, tal como em Kant, apelando à sua incondicionalidade transcendental. Ora o utilitarismo é um consequencialismo, eu diria mesmo um finalismo instrumental o que choca com o argumento de Nozick, que aponta para uma ideia de liberdade sem instrumentalização. Acima de tudo está a liberdade individual que não cede perante nada. Voltemos à natureza da génese deste livro. Porque é que Nozick enfrenta o neo contratualismo explícito na obra de Rawls, assim como as teorias distributivas e o estado social nelas contidas pelo menos implicitamente. A resposta está no livro, mas a base de toda a argumentação reside na ideologia libertária liberal que Nozick partilha com a grande tradição do pensamento liberal e individualista. Nota: Ter em conta o estado de Natureza de Locke, onde esse Estado de Natureza gerava extrema insegurança. E isso acontecia por que quando alguns direitos eram violados, os indivíduos não tinham nenhuma entidade à qual recorrer. A única maneira de fazer justiça seria pelas próprias mãos ou eles mesmos executando a lei que protegeria a propriedade individual.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e Ideias [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]mmanuel Levinas nasceu a 12 de Janeiro de 1906 em Kaunas, na actual Lituânia e faleceu em Paris no dia 25 de Dezembro de 1995. A sua biografia constitui um dos exemplos mais emblemáticos do tipo de intelectual desenraizado e cosmopolita. Sendo etnicamente de origem judaica e tendo nascido na Lituânia acabou a sua vida como cidadão francês de pleno direito, pela cidadania, pela língua e pela cultura. Entretanto na juventude foi um cidadão eslavo e até russo pela cultura, na qual desempenhou imensa importância a obra de Dostoievski, muito citado nas suas obras. Viveu largo período da sua vida na actual Ucrânia e a partir de 1923 fixou-se em Estrasburgo. A partir daí apesar de raides constantes a Friburgo e da profunda influência da filosofia alemã de Husserl e Heidegger, já o faz como intelectual judeu francês e de língua francesa. Coube-lhe a tarefa histórica de ter introduzido em França a Fenomenologia. Durante a II Guerra Mundial (1939), é capturado e feito prisioneiro pelos alemães. Exilado por cinco anos, não poderá mais esquecer a marca do ódio do homem contra o outro homem deixada pela violência nazi. No cativeiro foi escrita grande parte da sua obra De l’Existence à l’Existant publicada dois anos após o fim da guerra, em 1947. Durante alguns anos dirigiu a Escola Normal Israelita Oriental de Paris e é durante esse período que publica em 1961 a sua obra nuclear, Totalidade et Infinito. Da sua vasta obra, sendo difícil evidenciar, atrevo-me a fazê-lo: Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl, 1963; De l’évasion. Recherches philosophiques, Fata Morgana, 1982; De l’existence à l’existant, 1947; Le temps et l’autre. 1947; En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger, 1949; Totalité et infini. Essai sur l’extériorité, 1961; Humanisme de l’autre homme, 1972; Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, 1974; Ethique et infini. Dialogues avec Philippe Nemo, 1982; Transcendance et intelligibilité. Suivi d’un entretien, 1984; Altérité et transcendance. 1995. Uma boa parte da sua obra pode ser encontrada em língua portuguesa. Transcendência e Exterioridade Ninguém tem o seu lar/ aqui, além, o único espaço/ é o mundo, o interior do mundo/ que transportamos, passo a passo/ até às raízes silenciosas do céu (…) Helène Dorion (Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão ) “(…) É perverso e injusto o Eu que se fecha à interpelação do «outro-aí» e, pelo contrário, procura assimilá-lo; é violenta e alienante a Totalidade que recusa a priori a irrupção an-árquica do Infinito. Na raiz de tudo isto aparece o egocentrismo, esta propensão tão característica e natural do Eu que o conduz a englobar tudo na sua própria suficiência: << O Mesmo é essencialmente identificação dentro da diversidade ou história, ou sistema. Esta possibilidade que o pensamento tem de compreender tudo e tudo identificar conduziu-o a desejar a morte e a eliminação de tudo o que ameaça a sua auto-satisfação (...)". Guibal, … et combien de dieux nuveaux. Approches contemporaines II. Emmanuel Lévinas. Le visage d'atrui et la trace de Dieu, París, Aubier Montaigne, 1980, p. 85 Totalidade e Infinito de Emanuel Lévinas é um daqueles livros que aparecem de muitos em muitos anos. E constitui provavelmente a maior revolução filosófica da segunda metade do século XX. Com esta obra o filósofo francês de origem judaica e eslava, Emanuel Lévinas, constitui-se numa espécie de anti-Heidegger. Em larga medida Heidegger foi o último filósofo digno desse nome segundo os cânones da História da Filosofia e Lévinas já uma espécie de post-filósofo, no sentido em que pretende arruinar a tradição filosófica que vai de Platão a Heidegger através da desconstrução do conceito de totalidade. Antes dele outros a começar pelo próprio Heidegger visaram esse propósito, mas acabaram por não sair de dentro da gigantesca construção que a filosofia ocidental construiu. Dir-se-ia que a ontologia heideggeriana foi o último reduto dessa tradição, e a frustrada tentativa para lhe pôr termo. Era necessário sair para fora dela radicalmente. Heidegger centrou a sua análise e crítica naquilo que ele designou como a Metafísica do Sujeito, quando o problema não estava nem no conceito de metafísica, nem no conceito de sujeito, mas antes no conceito de autonomia. Se Heidegger criticou os poderes abusivos do Logos, não colocou contudo em causa a ideia de uma autonomia racional e jamais chegou a propor uma inversão radical das categorias do espírito, a razão e a sensibilidade. Ora Lévinas, através do conceito de alteridade, realizou essa inversão ontológica. O que se pretende dizer aqui é aquilo que Simon Plourde disse por outras palavras em 1996 na obra Emmanuel Lévinas. Altérité et responsabilité, Paris, Cerf, página 150: Lévinas conduziu ao seu termo uma saída do conceito e procurou no domínio do sensível o suporte da racionalidade. O problema da alteridade é, portanto, mais assunto do coração que do logos. O conceito central neste livro de Levinas, é o conceito de infinito, que o autor recupera da filosofia de Descartes, pois o pensamento do infinito serve de dois modos uma filosofia da alteridade e da transcendência: o facto da ideia de infinito conter mais do que ela pode conter, o facto de ser uma ideia de algo maior que a sua capacidade de conhecimento e nesse sentido resistente em absoluto ao esforço de redução da consciência no seu trabalho permanente de tematização e reconversão e por outro lado também porque sendo pensamento do absoluto que não pode ser atingido é a única ideia que não se prestando à finitude também não se presta à finalidade. Esta sua falta de finalidade faz dela uma ideia completamente des-inter-essada estabelecendo com a consciência uma relação sem influência sobre o ser e portanto sem subordinação ao jugo tirânico do conatus essendi (a perseveração do ser de que falava Espinosa, ou ao amor de si de que falava S. Tomás) no que é contrária à perspectiva pragmática (no sentido de instrumental, de ao serviço de) do saber e da percepção. O pensamento do infinito é então pela sua desmesura como salienta Lévinas um pensamento que não é mais nem visado, nem visão, nem vontade, nem intenção. É portanto na ideia de infinito e através dela que Lévinas concentra toda a sua defesa relativamente às pretensões totalitárias do pensamento ocidental. Se a razão que reduz o outro é uma apropriação e um poder, o que Nietzsche e Foucault dizem a seu modo, embora de modo diferente sobretudo no plano ético; se todo o pensamento ocidental é através da verdade e da liberdade esta odisseia de trazer ao domínio o que lhe aparece como estranho e diverso, era inevitável que Lévinas procurasse uma ideia absolutamente esquiva à conceptualização e à apropriação; uma ideia em que a liberdade do pensador sobre o qual não pesa nenhum constrangimento não possa agora exprimir-se através de um discurso de verdade. Enfim, um pensamento que pudesse resistir ao processo de imanentização, ou seja, muito simplesmente um pensamento da exterioridade absoluta e que desse modo resistente à imanência se pudesse tornar na ideia onde a transcendência se pudesse resguardar. Se, como se sabe, a filosofia se especializou nesse esforço de redução ao mesmo de tudo aquilo que pelo caminho lhe aparece como outro, então era absolutamente necessária ao pensamento de Lévinas uma ideia que pela sua natureza postergasse ad infinitum essa posse, e mantivesse a relação do mesmo com o outro sem que a transcendência da relação cortasse os laços e sem que ao mesmo tempo desaparecesse num todo. Era portanto necessário que uma ideia não transformasse o eu penso num eu posso. E é ainda com essa preocupação que Lévinas fará do infinito um instrumento fenomenológico mas sempre eminentemente fugidio. Se o infinito ficasse no plano em que o deixou Descartes, ele permaneceria no quadro de uma tradição abstracta da filosofia. Com Lévinas o conceito de infinito tornar-se-á concreto (carne-e-osso) e aparecerá representado no ‘próximo’, ou seja no outro-aí. Mas se no entanto se transformasse em categoria do espírito entraria mais tarde ou mais cedo no acervo de conceitos que pela tematização e pela narrativa destruiriam a transcendência. Daí a opção temerária de manter o infinito no âmbito de uma fenomenologia. E daí a opção pelo rosto. O infinito é rosto, ou melhor, o infinito é o que no rosto momentaneamente interrompe uma fenomenologia (ao tornar-se ausente). O infinito é assim a presença no rosto sempre a ausentar-se e desse modo único a fenomenologia a que se presta é uma fenomenologia da interrupção de uma outra fenomenologia. Esta outra fenomenologia é fácil de perceber, exporia o rosto do outro ao desgaste --- que é o que o dizer sofre, sempre que se converte, pela narrativa, em dito --- e expô-lo-ia ao crime que é no que a totalização se transforma quando deixa de ser um conceito dentro de uma aparentemente neutra ontologia para ocupar o lugar que estava subentendido e portanto lhe estava destinado num pensamento que dilui o indivíduo na totalidade.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasDinâmica das origens da nação [dropcap style=’circle’]J[/dropcap]aime Zuzarte Cortesão (Ançã, Cantanhede, 29 de Abril de 1884 — Lisboa, 14 de Agosto de 1960[) foi um médico, político, escritor e historiador português. Filho do filólogo António Augusto Cortesão, foi irmão do historiador Armando Cortesão e pai da renomeada ecologista Maria Judith Zuzarte Cortesão. Estudou no Porto, em Coimbra e em Lisboa, vindo a formar-se em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1909. Leccionou no Porto de 1911 a 1915, quando foi eleito deputado por aquela cidade. Em plena Primeira Guerra Mundial defendeu a participação do país no conflito, tendo participado como voluntário do Corpo Expedicionário Português, no posto de capitão médico, tendo publicado as memórias dessa experiência. [ ]Fundou, com Leonardo Coimbra e outros intelectuais, em 1907 a revista Nova Silva: revista ilustrada. Em 1910, com Teixeira de Pascoaes, colaborou na fundação da revista A Águia, e, em 1912 iniciou Renascença Portuguesa, que publicava o boletim A Vida Portuguesa. Teve igualmente colaboração nas revistas Atlantida[4] (1915-1920), Ilustração (1926-), Illustração portugueza (1903-1924)) e na revista Serões (1901-1911). Em 1919 foi nomeado director da Biblioteca Nacional de Portugal e a 28 de Junho desse ano foi feito Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.[5] Em 1921, abandonando a Renascença Portuguesa, foi um dos fundadores da revista Seara Nova. Participou numa tentativa de derrube da ditadura militar portuguesa, presidindo a Junta Revolucionária estabelecida no Porto. Por esse motivo foi demitido de seu cargo na Biblioteca Nacional de Lisboa (1927), vindo a exilar-se em França, de onde saiu em 1940, quando da invasão daquele país pelas forças da Alemanha Nazi no contexto da Segunda Guerra Mundial. Dirigiu-se para o Brasil através de Portugal, onde veio a estar detido por um curto espaço de tempo.[ No Brasil, fixou-se no Rio de Janeiro, dedicando-se ao ensino universitário, especializando-se na história dos Descobrimentos Portugueses (de que resultou a publicação da obra homónima) e na formação territorial do Brasil. Em 1952, organizou a Exposição Histórica de São Paulo, para comemorar o 4.º centenário da fundação da cidade. Regressou a Portugal em 1957. Envolvendo-se na campanha de Humberto Delgado, foi preso por 4 dias com António Sérgio, Vieira de Almeida e Azevedo Gomes em 1958, ano em que veio a ser eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores. Obras mais significativas: A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil (Lisboa, 1922); A Expansão dos Portugueses na História da Civilização (Lisboa, 1983 (1ª ed., 1930); Os Factores Democráticos na Formação de Portugal (Lisboa, 1964 (1ª ed., 1930); História da expansão portuguesa (Lisboa, 1993), colaboração na História de Portugal dirigida por Damião Peres, 1931-1934; Influência dos Descobrimentos Portugueses na História da Civilização (Lisboa, 1993), colaboração no vol. IV da História de Portugal dirigida por Damião Peres, 1932; Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses – A Geografia e a Economia da Restauração (Lisboa, 1940); Os Descobrimentos pré colombinos dos Portugueses (Lisboa, 1997 (1ª ed., 1947); Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (Lisboa, 1950); O Sentido da Cultura em Portugal no século XIV (Lisboa, 1956); A Política de Sigilo nos Descobrimentos nos Tempos do Infante D. Henrique e de D. João II (Lisboa, 1960); Os Descobrimentos Portugueses, 2 vols., (Lisboa, 1960-1962); O Humanismo Universalista dos Portugueses (Lisboa, 1965). Os “Factores Democráticos na Formação de Portugal” é uma obra de referência no que diz respeito à compreensão das origens de Portugal. O tema é controverso e tem merecido a reflexão de muitos intelectuais portugueses, desde o humanista da renascença André de Resende até a autores contemporâneos como José Matoso e Orlando Ribeiro, passando pelos grandes pensadores dos séculos XIX, Alexandre Herculano e Oliveira Martins e muitos cientistas sociais do princípio do século XX, que seria difícil enumerar. A obra de Jaime Cortesão é uma das mais complexas e portanto uma das menos dogmáticas e unilateraiss, já que ao invés da maioria dos autores não centra a sua interpretação numa única perspectiva, seja ela histórica, geográfica ou antropológica, mas num complexo de elementos civilizacionais de vária procedência. É verdade que valoriza antes de mais a dinâmica própria da sociedade medieval portuguesa associando-a ao movimento democrático dos concelhos, contudo não despreza os aspectos mais arcaicos, como seja o caso da romanização e até elementos pré-históricos. Os concelhos foram vivificados por uma população que abandonou a economia agrícola e doméstica e protagonizou o surto das cidades onde se desenvolveram o tráfico e as actividades artesanais fomentando o comércio marítimo, e sendo por ele estimuladas. Foram estas as tendências que se desenvolveram durante a Idade Média em Portugal que eclodiram e triunfaram definitivamente durante a revolução que levou o Mestre de Avis ao poder, o que determinou a formação do grupo social dominante, assim como a perspectiva histórica e o carácter da Nação. Relativamente à colonização romana, Jaime Cortesão salvaguarda a administração dos conventos romanos, associando o território nacional às fronteiras de influência dos mosteiros ocidentais: Bracarense, Scalabicense e Pacense, respectivamente, Braga ou seja Bracara Augustae, Santarém ou seja Scalabis e Beja ou seja Pax Julia. Porém relativamente à colonização romana, o autor salfaguarda também a construção de uma rede viária atlântica, que estruturalmente promoveu uma verdadeira atlantização do território que iria persistir até aos nossos dias. Relativamente aos elementos arcaicos o autor evidencia a existência de uma civilização megalítica dolménica e atlântica, a civilização dos menhires, antas e dólmens, mas também a existência na fachada atlântica de uma língua forjada no tempo, com características próprias, o designado Rimance Românico do Ocidente. Quando nos debruçamos seriamente sobre a conveniência ou inconveniência das fronteiras próprias destes fenómenos civilizacionais com as fronteiras actuais de Portugal, verificamos que não existe uma clara e inequívoca convergência com as fronteiras políticas da nação portuguesa e do território associado ao estado português, tanto medieval quanto moderno. As fronteiras interiores de Portugal não correspondem estritamente às fronteiras delimitadas pelos conventos ocidentais, assim como também não correspondem aos limites de influência tanto da civilização megalítica ocidental como da civilização linguística e literária evidenciada. E também não é menos evidente que a rede viária atlântica só muito aproximativamente estabelece uma linha de conexão entre o Norte e o Sul de Portugal, sendo que a Sul essa rede se interioriza em consonância com a situação geográfica da capital da Lusitânia, ou seja Mérida, na Estremadura espanhola. Contudo, atrevo-me a considerar que a teoria de Jaime Cortesão funciona bem como pista de trabalho e abre perspectivas dinâmicas para a compreensão dos enlaces estruturais entre a História, a Geografia e a Civilização e nesse plano cumpre de modo notável o seu papael de estímulo à multímoda reflexão sobre a originalidade de Portugal. Manuel Afonso Costa
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e Ideias“A revolução de 1383” de António Borges Coelho [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ntónio Borges Coelho é natural de Murça, distrito de Vila Real em Trás-os-Montes onde nasceu em 1928. Tendo-se dedicado a várias actividades literárias tais como a poesia e o teatro é porém como historiador que produziu as suas obras mais significativas. Dessa obra variada e multifacetada destaco, A Revolução de 1383, uma das primeiras obras do autor datada de 1965, As Raízes da Expansão Portuguesa de 1964, Portugal na Espanha Árabe publicada entre 1972 e 1975, Comunas ou Concelhos de 1973, obra de referência para a compreensão social do fenómeno das cartas de foral atribuídas em Portugal ao logo da Idade Média, A Inquisição em Évora de 1987, que constituiu o tema da sua dissertação de doutoramento, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Dedica-se actualmente à elaboração e publicação de uma História de Portugal da qual saíram já alguns volumes. Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago e recebeu o Prémio da Fundação Internacional Racionalista. A revolução paradigmática Para Borges Coelho, tal como para António Sérgio e Álvaro Cunhal, a revolução de 1383 foi sobretudo orientada pela burguesia comercial e marítima e em certa medida instrumentalizada por esta classe social. Apesar de nenhum destes autores utilizar o conceito de sobredeterminação ou de causa em última instância, é esse o tipo de compreensão que resulta. Para Joel Serrão, que se opõe às teses dominantes, a revolução foi essencialmente popular e a verdade é que houve momentos em que o povo foi mesmo o único braço a abraçar a causa da revolução sem ambiguidades, mas a verdade também é que o plano foi gizado por Álvaro Pais e que o apoio da burguesia foi determinante. Quer dizer, apesar do papel importantíssimo do povo, a revolução foi, às claras algumas vezes e na sombra outras, desencadeada e alimentada pela estratégia e pelos interesses da classe média, o que quer dizer que foi em última instância liderada pela burguesia e sobredeterminada pelos seus interesses. É justamente isso que nos mostra a obra de António Borges Coelho. Nota adicional: Borges Coelho seguiu de perto a crónica de Fernão Lopes. Porquê? Desde logo porque é o grande documento da época e provavelmente o mais fiável. António Borges Coelho defende Fernão Lopes dos seus «detractores». E porque é que são «detractores»? Porque «o que a muitos dói é o conteúdo revolucionário da crónica que é a história da primeira revolução burguesa nacional». Porquê esta defesa tão apaixonada de Fernão Lopes? Possivelmente porque, como Álvaro Cunhal tinha afirmado, «o testemunho de Fernão Lopes é uma contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução». Ou provavelmente apenas porque Fernão Lopes é um cronista em vias de o não ser e a sua modernidade teria que ser tida em conta. Borges Coelho não foi o primeiro a incensar Fernão Lopes e seguramente que também não foi o último. A verdade é que o processo complexo que agita a sociedade portuguesa na antecâmara da Idade Moderna possui os contornos inequívocos de um processo revolucionário e é isso que incomoda algumas consciências. E a revolução de 1383 foi até uma revolução muito paradigmática pois não excluiu o plano do afrontamento social e o plano do confronto não apenas ideológico mas com recurso a uma violência que não deixa margem para dúvidas relativamente ao seu carácter revolucionário e radical. O assassinato do Bispo da Sé de Lisboa assim como a coacção sobre muitos alcaides que hesitavam em tomar partido pelo Mestre de Aviz, e alguns deles foram identicamente assassinados, são a par da fuga para Castela de figuras gradas da nobreza da época, sinais claros de que a revolução de 1383 apresentou todas as características de um processo revolucionário de classe. Pelo que me parece portanto que a análise de Borges Coelho é acertada, tanto na ênfase revolucionária, como na sua característica subordinada à luta de classes. Quanto ao valor da crónica de D. João I e do próprio Fernão Lopes Borges Coelho não foge à questão e no prólogo à segunda edição da obra diz: “Em que base se apoia «A Revolução de 1383»? No poço sem fundo em que mergulharam e beberam todos os comentadores: a Crónica de D. João I de Fernão Lopes. E não se envergonha do facto. Não tem complexos por isso. Quem desdenha da Crónica ou é tolo ou tem medo das cargas explosivas que transporta no seu ventre”. Mas diz ainda referindo-se a outras fontes da sua obra: “Mas o livro não enjeitou outras informações nem fugiu, muito menos, à contraprova documental. Embora não tivesse hibernado nos arquivos, utilizou os cinco livros da Chancelaria de D. João I conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo; analisou numerosos documentos laboriosamente recolhidos por Silva Marques nos Descobrimentos Portugueses; por Gama Barros na História da Administração Pública em Portugal, por José Soares da Silva nas Memórias para a História…; por Caetano de Sousa na História Genealógica da Casa Real Portuguesa – Provas… E não só. Bebeu ainda, contestando, nos diferentes autores que abordaram o que alguns ainda hoje designam, pudicamente e por hábito, como «crise». Cito, em especial, as Crónicas de Pedro Lopes de Ayala e Jean Froissart, A História da Sociedade em Portugal no século XV de Costa Lobo, As Lutas Sociais em Portugal na Idade Média de Álvaro Cunhal, a História da Cultura em Portugal de António José Saraiva, o prefácio à Crónica de D. João I de António Sérgio, O Carácter Social da Revolução de 1383 de Joel Serrão, etc”. Com estas considerações o autor abre-se a uma ampla bibliografia sobre o estudo do tema e desse modo situa o seu livro no duplo papel de interpretação original a partir das fontes mas também o seu papel de síntese centrada nas múltiplas abordagens levadas a cabo pela historiografia e pelo ensaísmo nacional ao longo do século XX.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO medo da inscrição [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ilósofo e pensador português nascido em 1939, em Muecate, Província de Nampula, Moçambique. Após completar o ensino secundário na capital moçambicana em 1957 veio estudar para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde se inscreveu no curso de Ciências Matemáticas. No ano seguinte mudou-se para Paris, em França, onde prosseguiu os estudos em Matemática, no entanto, percebeu que a sua área preferida era a Filosofia e mudou de curso. Em 1968 concluiu a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras de Paris, na Universidade da Sorbonne. No ano seguinte fez o mestrado de Filosofia, com uma tese sobre a moral de Kant. Em 1982 concluiu o doutoramento com a tese Corpo, Espaço e Poder, editada em livro em 1988. Entretanto, já desde 1965 era professor de Filosofia num liceu, funções que manteve até 1973, com passagens por Vincennes e pela Córsega. A partir dessa altura foi coordenador do Departamento de Psicanálise e Filosofia da Universidade de Paris VIII. Em 1976 José Gil regressou a Portugal para ser adjunto do Secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica. Cinco anos mais tarde instalou-se definitivamente em Portugal quando passou a ser professor auxiliar convidado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Leccionou Estética e Filosofia Contemporânea e paralelamente deu aulas no Colégio Internacional de Filosofia, de Paris, numa escola em Amesterdão, na Holanda, e na Universidade São Paulo, no Brasil. A partir de 1996 passou a dirigir a Colecção de Filosofia da editora Relógio D’ Água. Publicou diversos artigos e ensaios científicos em revistas e enciclopédias de todo o mundo, destacando-se nas suas preferências a reflexão sobre o corpo. Em 2004 publicou Portugal, Hoje. O Medo de Existir, a sua primeira obra escrita directamente em português, que rapidamente se tornou um sucesso de vendas O medo da inscrição Em princípio, talvez a priori mesmo, seria tentado a opor uma imediata resistência à ideia do que a expressão “medo de existir” sugere, ou pelo menos pode sugerir. Mas uma vez lido o livro, devo dizer que compreendo a utilização do conceito e da expressão e com ambos me solidarizo. Afinal a expressão não é, sobretudo, para interpretar de uma forma literal. Não há qualquer coisa como um inequívoco medo de existir enquanto facto, mas antes do mais um medo da inscrição e sobretudo um medo difuso, enquanto sintoma, e por esse motivo um “medo entranhado, incorporado, medo sem objecto (…) e no entanto ubíquo”. Toda a obra de José Gil é aliás sobre sintomas e nesta perspectiva ela inscreve-se numa tradição antiga, que mergulha sobretudo na genealogia barroca. Porém essa inscrição na cultura barroca é incompleta na medida em que o livro de José Gil, não se desenvolve segundo os cânones de uma medicina, ou melhor de uma vocação terapêutica, mas antes apenas numa perspectiva semiológica. Claro que o momento da análise semiológica é já determinante para a elaboração de uma solução terapêutica, uma vez que esta se começa a esboçar sob a rede articulada dos sintomas e acabará por se expor na superfície do quadro uma vez constituído. Contudo o autor deixa as coisas no plano dos subentendidos inevitáveis e não passa à elaboração de uma grelha de soluções ou simples sugestões, como se o momento da elaboração do quadro clínico até ao momento do diagnóstico fosse um momento completamente separado do outro momento, aquele em que se elabora um receituário. Como se, no fim de contas, esse outro momento não interessasse ao filósofo. Mas como disse, muitas vezes não é necessário explicitar as soluções uma vez que o acto de elaboração do diagnóstico põe tudo em evidência. Por exemplo, no texto de José Gil fica muito claro que a não-inscrição, enquanto mal maior dos portugueses e do país, está particularmente associada à inexistência de um verdadeiro espaço público e que trabalhar no sentido de promover esse espaço, democrático, independente e livre representaria um duro golpe na não-inscrição estrutural dos portugueses. O conceito axial, portanto, o conceito que atravessa transversalmente o texto e suporta toda a análise do autor relativamente aos elementos idiossincráticos da sociedade portuguesa, é o conceito de não-inscrição. É a não-inscrição que fundamenta, tudo o resto, e que em última instância rói nos seus alicerces a própria vida democrática e até o futuro. E o que é a não-inscrição? É desde logo, nas próprias palavras de José Gil, a produção de não acontecimentos, ou seja “A não-inscrição é quando o acontecimento não acontece; e não acontece porque há uma espécie de buraco negro que suga o espaço público, entre o acontecimento e a vida privada do indivíduo. Por exemplo, no plano artístico e cultural, os portugueses não têm uma escala de valores para aferir o que é e o que não é importante. Eles vão buscar lá fora”. A não-inscrição exprime o permanente sentido do adiamento dos portugueses, na linha daquele verso do cantor rock “é prá manhã, bem podias fazer hoje”, associado sempre aos atavismos estruturais subordinados à hesitação, ao medo, a uma prudência excessiva e cautelosa, muitas vezes excessivamente cautelosa. Mas a verdade é que a inexistência de uma vida social e cultural dinâmica resulta numa falta de ideia de projecto. Como diz José Gil: “Não há apetência para a acção porque eu não vejo o efeito da minha acção, há uma série de barreiras que faz com que o tempo e a dimensão do futuro estejam quase ausentes do nosso presente”. Esta falta de câmaras de eco em que as acções, sobretudo intelectuais e artísticas, possam produzir um efeito, conduz ao isolamento, ao fechamento em relação aos outros. E se no tempo salazarista isso podia ser imputado à falta de liberdade, o mesmo argumento não pode ser usado agora; e a verdade é que havia mais tertúlia, mais polémicas, mais vida académica, mais recepções tanto da arte como da literatura nesse tempo salazarista do que agora, em que praticamente acabaram todos os fóruns de manutenção de uma vida intelectual e cultural com carácter social. Hoje tudo se passa mais ou menos em silêncio e em solidão. Um exemplo, que é significativo: Praticamente desapareceram as revistas de pensamento e cultura assim como os suplementos literários e culturais que animavam a vida social. Eu acedi, muitas vezes através dos suplementos culturais, às novidades literárias e acompanhei a actividade produtiva de quase todos os escritores portugueses da segunda metade do século XX. Em particular no domínio da produção poética podíamos aceder a tudo o que se ia produzindo através dos inúmeros suplementos literários de quase todos os jornais diários, matutinos ou vespertinos. Estou a lembrar-me do suplemento literário da Capital à quarta feira, do suplemento literário do Diário de Lisboa à quinta feira, do suplemento literário do Diário Popular à sexta, do DN Juvenil e do Suplemento do mesmo jornal à segunda feira de manhã. O Século e o Primeiro de Janeiro apareciam recheados de gordos suplementos culturais ao Domingo, etc. Hoje em dia até o Expresso e o Público praticamente acabaram com os seus suplementos culturais. Hoje em dia, mais do que em qualquer outra época da vida portuguesa todo os acontecimentos são, por assim dizer, esvaziados de substância, de conteúdo, restando deles a mera forma vazia e sem consequências. Salvo os pequenos grupos, as pequenas tribos, tudo o que acontece não transporta consigo uma visibilidade social. Existe em privado e não no espaço público, até por que esse espaço público não existe. A vida cultural funciona em guetos. Para José Gil, a explicação reside na não-inscrição, porque o tempo da não-inscrição é o tempo da repetição e do adiamento permanente, e eu acrescentaria porque esse tempo é um tempo privado, prudente e mesquinho. Sendo que esta prudência, este acanhamento, este modo de viver para dentro e não para a partilha, a discussão e a crítica se subordina ao medo. José Gil disse numa entrevista que, a situar esta obra no âmbito das ciências sociais se inclinava para a considerar na família dos estudos de mentalidade. Estou apenas parcialmente de acordo, na medida em que a tradição dos estudos de mentalidade têm vindo a desenvolver-se fortemente indexados à História, o que me parece louvável, pois sem o elemento de historicidade constitutiva dos comportamentos, eles terão tendência a esvair-se numa teia de estereótipos mais ou menos redundantes. Por outro lado a historicidade, ou mesmo neste caso a História “tout court” só o é na condição de ser social e não me parece que essa valência se evidencie neste, porém notável, livro do filósofo José Gil. Quero eu dizer que esta obra apresenta uma dimensão histórica escassa e limitada, limitando-se na maior parte das vezes a pôr em destaque o anterior regime. Ora, se alguma coisa caracteriza as reflexões sobre mentalidades é a sua natural propensão para se instalar no domínio da longa duração; não por capricho mas porque só ao nível das estruturas as questões de mentalidade podem ser apreendidas, quer na sua estabilidade tendencial, quer nas flutuações ou mesmo roturas eventuais que são sempre lentas e morosas, por vezes mesmo imperceptíveis. O domínio das mentalidades é como dizia Braudel uma lebre muito esquiva, difícil de apanhar e contudo o tempo das mentalidades é quase da ordem da inércia. Enfim um paradoxo, o que é por natureza lento em história pode ser o mais difícil de surpreender. De onde virá essa nossa tendência para a não-inscrição é algo que o livro não esclarece. Deixa no ar umas ideias relacionadas com factos recentes, mas a mim parece-me, os fundamentos são antigos e resultam de traços persistentes, uns de carácter, históricos outros. E para mim os históricos são sempre os mais importantes e de qualquer modo os que estão mais ao nosso alcance, mesmo que sejam, repito, justamente difíceis, esquivos e aparentemente escondidos, imbrincados que estão numa trama muito complexa de causas e circunstâncias. Voltemos ao conceito de não-inscrição e à sua enorme importância. Deleuze, no seu livro O que é a Filosofia? Afirma que a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Também Paul Veyne na notável obra, Como se Escreve a História faz sobressair como determinante para o sucesso das disciplinas sociais, eu diria que para todas as áreas do saber, a ideia de que o progresso do conhecimento é homólogo de um verdadeiro progresso conceptual. São os conceitos que progressivamente vão abrindo as portas de zonas obscuras do conhecimento. Nunca haverá nada como um conhecimento total, uma espécie de auto transparência, por maioria de razão nos domínios em que o objecto do conhecimento é o próprio sujeito desse conhecimento, mas à medida que novos conceitos iluminam e escancaram zonas que antes estavam na sombra ou na penumbra, um certo tipo de progresso desenha-se inequivocamente. É isso que se passa com o conceito de não-inscrição criado por José Gil, no contexto deste seu livro inovador e de algum modo revolucionário. Dele, se pode dizer que é uma verdadeira inscrição e que citando o próprio autor, na entrevista referida, depois do seu livro e da aplicação do conceito de não-inscrição “já não se pode escrever da mesma maneira”, agora aqui eu acrescento, sobre os portugueses. É esse o sentido maior da inscrição, produzir uma marca, deixar um rasto, um traço (trace em francês).
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasPortugal: acidente ou destino [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]amião António Peres nasceu em Lisboa no dia 8 de Julho de 1889 e veio a falecer na cidade do Porto a 26 de Outubro de 1976. Foi professor nas Universidades do Porto e Coimbra, depois de ter sido professor de liceu. Foi um dos fundadores da Academia Portuguesa de História, distinguindo-se ainda como insigne numismata. Do vasto conjunto da sua obra destacaria: Como Nasceu Portugal, História dos Descobrimentos Portugueses, Portugal na História da Civilização, Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil e a Monumental História de Portugal, conhecida como de Barcelos, que dirigiu e publicou. Dirigiu ainda a Monumental História de Portugal, dita de Barcelos, que dirigiu entre 1928 e 1954. A obra de Damião Peres, que hoje nos ocupa, intitulada Como Nasceu Portugal é constituída por duas partes distintas, mas complementares. Na primeira parte, para mim aquela que possui mais interesse, embora não seja absolutamente original, o autor aborda um enorme conjunto de teorias justificativas da independência e autonomia de Portugal no quadro das nações ibéricas. Na segunda parte o autor procede à narrativa dos factos, sobretudo políticos, da Formação de Portugal a partir da génese do Condado Portucalense. Neste tema não se coíbe de abordar também as questões sociais e jurídicas ligadas a assuntos polémicos, como a questão, por exemplo, do feudalismo. O tema da primeira parte do livro, sendo relevante e muito atractiva intelectualmente, não é contudo original, pois acaba por ser uma antologia das posições assumidas por uma grande variedade de historiadores, geógrafos, etnólogos e ensaístas sobre a história de Portugal. E nem sequer constitui uma abordagem única uma vez que depois dele foram muitos os autores e as obras que glosaram o mesmo tema. Estou sobretudo a pensar na obra de Francisco da Cunha Leão e o seu O Enigma Português, mas sobretudo, e volto a insistir, no facto de que o assunto está disseminado, pela historiografia, geografia e etnografia portuguesas em autores como: Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Jaime Cortesão, Amorim Girão, Orlando Ribeiro e José Matoso, se me ativer a alguns dos mais importantes nomes da cultura portuguesa, mas ainda em Elisée Reclus, Lautensach ou Schwalbach se pensar em autores estrangeiros que também se pronunciaram sobre o assunto. Para Alexandre Herculano a independência e a originalidade autónoma de Portugal nada tem a ver com as teses renascentistas de André de Resende, contidas na obra De antiquitatibus Lusitaniae, obra essa, em que se explora uma linha de continuidade com a Lusitânia e com os antigos lusitanos. Herculano coloca antes em evidência uma solução política ligada à vontade dos primeiros barões do Condado Portucalense, tese essa, ampliada e reforçada por uma verdadeira teoria do acaso em Oliveira Martins. Oliveira Martins na História de Portugal, cita Alexandre Herculano para, baseando-se na sua obra reforçar a sua tese: “Portugal, diz o Sr. Herculano, nascido no XII século em um ângulo da Galiza, dilatando-se pelo território do Al-Gharb sarraceno, e buscando até aumentar a sua população com as colónias trazidas de além dos Pirinéus, é uma nação inteiramente moderna”. Isto quer dizer que não tem nada a ver com a posição de André Resende. Contudo agora Oliveira Martins não enfrenta apenas os autores que afirmam a antiguidade de Portugal, enfrenta também aqueles que fundamentam a autonomia de Portugal a partir das características únicas da sua geografia, o que não deixa de ser uma falácia como muitos outros vieram a demonstrar. Mas Elisée Reclus, geógrafo francês, inclinou-se seriamente para essa perspectiva, logo negada por Oliveira Martins: “Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece na sua formação às ordens da geografia”. As fronteiras de Portugal foram até onde chegaram as espadas dos barões belicosos. Diz ele: “(…) os barões audazes, ávidos e turbulentos são ao mesmo tempo ignorantes de teorias e sistemas. (…) Com um retalho da Galiza, outro retalho de Leão, outro da Espanha meridional sarracena, esses príncipes compuseram para si um estado (…) Eles foram até onde foi a ponta das suas espadas: tudo lhes convém, tudo lhes serve, contanto que alarguem o seu domínio”. (Oliveira Martins, História de Portugal) Porém a melhor argumentação contra o papel da geografia relativamente à independência de Portugal, foi levada a cabo por um geógrafo de profissão, Amorim Girão. Mas há que reconhecer que os caboucos estavam já lançados pelo próprio Oliveira Martins que relativamente a quase tudo teve intuições geniais. Veja-se o que ele diz na sua História de Portugal a pretexto da geografia, ou pelo menos como ele começa a organizar a sua argumentação: “Quando se observa o retalho da Península, de que a história fez Portugal, separado do corpo geográfico a que pertence, desde logo se vê como a vontade dos homens pôde sobrepujar as tendências da natureza. Os rios e as serranias descem, perpendiculares sobre a costa ocidental, prosseguindo uma derrota e provindo de uma origem que se dilatam para muito além das fronteiras, até o coração do corpo peninsular. As cumeadas das montanhas e os vales extensos mudam de nacionalidade naquele ponto convencional que aos homens aprouve fixar. Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso próprio território, motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto pode a obcecação doutrinária! Diz um que essa separação dos litorais é uma regra; nega outro o carácter arbitrário da linha das fronteiras de leste, afirmando que essa linha coincide com os limites extremos até onde os nossos rios são navegáveis. Decerto nunca os viu quem tal afirma”. Mas, como dizia, é Amorim Girão que leva mais longe a argumentação contra a influência da Geografia. E fundamenta-a sobretudo valorizando o patriotismo e a genuína vontade dos portugueses em serem independentes contra todos os obstáculos. Para Amorim Girão não só não se vislumbram situações de descontinuidade junto à fronteira portuguesa com Espanha como pelo contrário se passa com total tranquilidade sem sinais de rotura geográfica do Minho para a Galiza, das Beiras Interiores, ou Alentejo para Castela ou para a Estremadura espanhola e do Algarve para a Andaluzia. E as zonas vizinhas de ambos os lados da fronteira apresentam características absolutamente idênticas, mas curiosamente, e isso é um argumento bem conduzido por Amorim Girão, existem reais diferenças entre as várias regiões de Portugal entre si. Portugal é mesmo, num espaço vital tão reduzido, um território extraordinariamente heterogéneo. É impressionante a variedade de situações geográficas, geológicas e paisagísticas que o país apresenta. Há muito mais semelhanças entre regiões vizinhas de Portugal e de Espanha que entre regiões de Portugal entre si. Amorim Girão pretende que se retire uma consequência disso, a saber que foi a vontade de autonomia e o espírito patriótico do povo português que foi determinante, sem as ajudas da geografia e de resto até contra ela. Mas este livro informa-nos ainda sobre as posições de outros geógrafos, como é o caso de Lautensach e Schwalbach, assim como de outros cientistas sociais como Jaime Cortesão, António Sardinha, Leite de Vasconcelos entre muitos outros. Valeria muito a pena analisar as interessantes posições dos dois eminentes cientistas sociais alemães, até por que remetem para teorias de valor universal e que de algum modo merecem acolhimento, mas não se justifica agora. Uma das teorias explicativas, promovidas neste pequeno livro de Damião Peres, faz referência a um autor consagrado, Jaime Cortesão, que na sua obra Os Factores Democráticos da Formação de Portugal congrega uma plêiade de argumentos ou de factores concorrentes, para ajudar a compreender esse mistério que é a independência de Portugal relativamente ao resto da Península. Jaime Cortesão associa as fronteiras políticas portuguesas sobretudo a outras fronteiras muito mais antigas e de outra inequívoca e distinta fundamentação. Assim as fronteiras de Portugal decalcariam, grosso modo, antes de mais, a fronteira da Civilização Megalítica Ocidental (Do Calcolítico), segundo a clássica divisão da Península Ibérica, levada a cabo por Bosch Gimpera, em três regiões pré-históricas com civilizações autónomas, a ocidental (a civilização dos dolmens e das antas), a central que corresponderia à região castelhana e a levantina que corresponderia à região da Catalunha. Em segundo lugar o autor considera a divisão linguística que acompanharia as fronteiras anteriores e que delimitaria a ocidente uma língua própria, aquilo a que ele designou por Rimance Românico do Ocidente. Finalmente Jaime Cortesão considera as consequências da colonização romana e associa o território nacional às regiões de influência dos três mosteiros ocidentais, o bracarense (de Bracara Augustae, hoje Braga), o scalabicense (de Scalabis, hoje Santarém) e o pacence (de Pax Julia, hoje Beja). O autor considera ainda, na sua complexa tese histórico-civilizacional, que esta ocidentalização teria sido reforçada pela atlantização do território a que não pode ser considerada estranha a chamada rede viária atlântica, criada pela colonização romana. Vale a pena ler este pequeno livro de Damião Peres para se poder passar em revista e de uma forma crítica todas estas teorias e muitas outras, igualmente cultas e pertinentes sobre uma ideia tão enigmática: A autonomia e a independência deste reino peninsular que é Portugal. Não se esqueça que de entre todas as periferias marítimas da Península Ibérica, só esta logrou separar-se da massa continental, embora outras o tenham igualmente tentado. Manuel Afonso Costa
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasForças de bloqueio. Uma questão antiga Vitorino Barbosa de Magalhães Godinho nasceu em Lisboa a 9 de Junho de 1918 e faleceu em Lisboa a 26 de Abril de 2011. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1940, tendo sido professor dessa Faculdade entre 1941 e 1944. Continuou depois os seus estudos e carreira universitária em Paris, onde se doutorou em 1959, tendo passado pelo CNRS (Centre National de Recherches Scientifiques ) entre 1947 e 1960. Regressou entretanto a Portugal para leccionar no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos entre 1960 e 1962. Virá a acabar a carreira na Universidade Nova de Lisboa, na FCSH no Departamento de Sociologia que fundou e coordenou entre 1975 e 1988. Do conjunto imenso da sua obra escrita e publicada em língua portuguesa e francesa destacari: Documentos sobre a expansão portuguesa, 3 vols, 1943,1945,1956; A economia dos descobrimentos Henriquinos, 1962; Os descobrimentos e a economia mundial, 2 vols, 1963-1970 (2ª ed. correcta e ampliada, 4 vols, 1982-1983); Ensaios de História de Portugal, 1967 (2ª ed. ampliada, 1978); A estrutura da antiga sociedade portuguesa, 1971; Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar (séculos XIII-XVIII), 1990 [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste livro de Vitorino Magalhães Godinho representa, em minha opinião, um papel muito importante no conjunto da sua obra. A par dos Ensaios II e dos documentos Sobre a Expansão Portuguesa, contém as intuições mais consequentes acerca da História de Portugal, sobretudo através da caracterização sociológica da nossa estrutura social de Antigo Regime. O autor gizou as interpretações mais consistentes para que se possa compreender o facto pelo qual a expansão ultramarina veio a desencadear na sociedade portuguesa poderosos factores de bloqueio ao progresso e ao desenvolvimento. São, hoje em dia, considerados clássicos os seus argumentos, em particular a chamada de atenção para a tendência para a anemia do sector Primário, a consequente hipertrofia do Terciário de Antigo Regime, o complexo fenómeno de entesouramento das ordens nobiliárquicas e finalmente a nobilitação da burguesia (As traições da burguesia de que falava Fernand Braudel). Em síntese: “ …ao contrário do que tudo levaria a supor, a população agrícola, o sector primário de actividades, não tem a maioria, nem mesmo se aproxima da metade, fica à volta de 1/3 . Ora numa economia de antigo regime, que …não dispõe …de meios de fomentar a produtividade agrícola por trabalhador e em que essa produtividade é extremamente baixa, se estamos perante uma sociedade em que o sector primário se encontra muitíssimo reduzido, não pode deixar de tratar-se de sociedade cujos mecanismos de crescimento e desenvolvimento estão bloqueados. E na verdade sabemos que a população da Espanha diminuiu em finais do século XVI e durante longas décadas do século XVII. O clero hipertrofiou-se, vimo-lo atrás. A percentagem do clero conjuntamente com os fidalgos eleva-se a …36,8%; se ainda lhe somarmos os servidores e ociosos, temos a percentagem, astronómica para uma sociedade anterior à Revolução Industrial, de 40,5% para as classes não produtoras da população (…) Por outro lado, formas conexas de mentalidade (conexas dessa estrutura) que permaneciam demasiado voltadas para o passado, arcaizantes, só de onde a onde se entreabrindo às tentativas isoladas e sempre frustradas dos estrangeirados”. Mas não se ficam por aqui os méritos desta obra. Ao colocar em cima da mesa de estudo a prossecução de um inquérito cerrado às causas explicativas para o falhanço da modernização de Portugal em tempo útil e na altura própria, o autor levanta muitas outras questões, e sempre de forma pertinente e lúcida. É o caso, por exemplo, da malha urbana do país, salientando o facto de que, comparativamente a Espanha, nos falta uma rede de cidades de média dimensão entre as duas grandes metrópoles, Lisboa e Porto. E isso, tal como tudo o resto, cava a profunda assimetria entre o litoral e o interior que é um dado estrutural da nossa história. Afinal a atlantização do território era já um argumento de Jaime Cortesão, nos Factores Democráticos na Formação de Portugal. Contudo, e volto ao tema essencial do livro, é na estrutura social de antigo regime que se encontra o nó górdio do bloqueio ao progresso e ao desenvolvimento. Porque é que não se deu a revolução agrícola e a consequente revolução industrial, tanto mais que em princípio havia todas as condições para isso atendendo à possibilidade da chamada acumulação primitiva do capital, condição necessária mas não suficiente. De facto, a hipertrofia do terciário de antigo regime causado pela corrida aos negócios coloniais, sobretudo na conjuntura oriental, desencadeou efeitos perversos de longa duração. Esta hipertrofia associada à anemia do sector primário foi fatal, segundo Vitorino Magalhães Godinho. (…) É que em termos económicos, apesar das excepções do Círculo dos Ericeiras e do Marquês de Pombal, o século XVIII se mantém muito próximo da estrutura social do século XVII, isto é, a estrutura de uma sociedade de ordens, estamental e hierarquizada com a cúpula ideológica da monarquia absoluta. Não admira que muito do barroco tenha persistido no século XVIII, uma vez que persistiram muitos dos seus elementos estruturais: — A economia é e continua a ser quantitativamente agrária, agrícola, rural. — É em torno da propriedade da terra que se estabelecem as relações sociais de poder, e se estrutura também o próprio regime, a monarquia absoluta assim como o complexo de interesses monárquico-senhoriais cobertos pela monarquia absoluta. Porém o sector dinâmico da economia é, todavia, de natureza mercantil, e é ele que é responsável pelas transformações que vão minando progressivamente o sistema, embora com grande lentidão porque as forças de inércia são muito pesadas. Essa erosão está associada à massificação urbana pela fuga de gentes dos campos para as cidades e aos fenómenos de traição social, através das nobilitações, mas também dos aburguesamentos, e da ‘proletarização’. “Sabe-se por outro lado, que a nobreza está profundamente mercantilizada, e sabe-se também que os grupos de mercadores e negociantes buscam por todos os meios integrar-se na ordem nobiliárquica: a realidade é o mercador-cavaleiro e o cavaleiro-mercador, o fidalgo-negociante e o negociante-enobrecido, não sendo por isso fácil a existência de uma burguesia autónoma, com seus valores próprios”, (em Godinho, obra em análise, p. 84). Este é um dos factores para o bloqueio, mas não o mais decisivo, uma vez que fundamentalmente o que prevalece são os bloqueios estruturais que sapam o processo de descolagem: absentismo, conservadorismo agrário, atrofia do sector primário e hipertrofia do sector terciário de Antigo Regime, como já referi. Como se sabe na viragem do século XVI para o século XVII e já a partir de meados da centúria de Quinhentos, transformações associadas ao comércio ultramarino ou colonial e que se traduziram por uma inflexão do centro de gravidade dos interesses portugueses do complexo histórico-geográfico do Índico para o complexo histórico-geográfico do Atlântico, mais concretamente pela desaceleração do comércio das especiarias e pelo dinamismo crescente da economia do tabaco e do açúcar, produziu-se uma reconfiguração da estrutura social com a revitalização da classe média (pequena e média burguesia), associada à reanimação e revitalização dos portos de província e de pequena escala às custas de uma certa estagnação, senão mesmo deflação (refluxo), do porto de Lisboa. Mas esse fenómeno estranhamente não se manteve como tendência na crista da linha de longa duração e em finais de seiscentos a nobreza e o clero tinham recuperado as suas posições. Relativamente a Portugal, nesta longa linha de tensão entre o imobilismo e a inovação, esta foi sucessivamente travada pelos ciclos dinâmicos do comércio colonial. Tinha sido assim com as especiarias, depois com o ciclo do açúcar e tabaco e agora com os diamantes e o ouro do Brasil, ainda por cima convergentes com a estabilização do comércio dos vinhos depois do tratado de Methuen. Porque de cada vez que a reanimação dos circuitos comerciais resolveu conjunturalmente os problemas da economia portuguesa isso traduziu-se num adiamento das políticas de colonização interna e de desenvolvimento, das políticas de fixação para utilizar uma expressão de António Sérgio. A falência da política económica do Círculo dos Ericeiras de orientação desenvolvimentista à margem do mercantilismo dominante, está intimamente relacionada com o comércio brasileiro e com a política dos vinhos. Ambas, no seu conjunto, favoreceram a hipertrofia do sector terciário de antigo regime, que já referimos, e ao mesmo tempo o reforço do Barroco. O domínio da Companhia de Jesus e a presença do Tribunal do Santo Ofício protegiam a manutenção da estrutura senhorial da sociedade portuguesa, que encontrava na corte a cúpula da sua lógica dos interesses monárquico-senhoriais, para me exprimir como Maravall. Mas isso é outra história.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasA oscilação das conjunturas Cortesão, Jaime, Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses – A Geografia e a Economia da Restauração, Lisboa, Seara Nova, 1940 [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om este autor e com este livro e finalmente com este texto sinóptico e analítico dou início a um conjunto de fichas de leitura subordinadas à ampla temática da cultura portuguesa entendida de uma forma ela mesma muito ampla, pois nela caberão textos de vária proveniência das ciências sociais com predominância da história da civilização. Começo assim com um autor que no quadro das discussões em torno da originalidade e autonomia de Portugal concebeu justamente uma tese complexa e com contornos eclécticos, carreando para a sua teoria materiais de vária ordem disciplinar e temática. Mas hoje não é esse o livro de Jaime Cortesão que trago aqui. Ele virá na altura própria. Hoje aborda-se um dos episódios mais dramáticos da vida nacional, o momento da perda e sobretudo recuperação da independência nacional. Nesta obra A Geografia e a Economia da Restauração Jaime Cortesão desenvolve uma das mais interessantes interpretações construídas em torno da perda da independência de Portugal em 1580 e da sua recuperação em 1640. Jaime Cortesão estabelece uma interdependência entre a história política e a história económica e social, e para esse efeito associa o período da História de Portugal do Antigo Regime, onde se integra a União Dinástica, aos ciclos coloniais da economia nacional sabendo que os ciclos económicos tiveram repercussões nos fenómenos de configuração e reconfiguração social. Quando a questão da independência se coloca em 1580, a sociedade portuguesa está exaurida e a classe média que tão importante tinha sido em 1383-1385 durante a revolução, quase tinha desaparecido, como resultado da proeminência do comércio das especiarias no contexto do Complexo Histórico-Geográfico do Índico. Este comércio, concentrado em Lisboa e na Casa da Índia tinha provocado a anemia dos portos de menor escala, assim como do comércio que os dinamizava. O resultado teve consequências graves pois faltava na sociedade portuguesa uma burguesia patriótica capaz de se opor às pretensões castelhanas. Depois em 1640 tudo se tinha alterado, uma vez que o comércio do tabaco e do açúcar com o Brasil no contexto do Complexo Histórico-Geográfico do Atlântico, pela sua natureza, tinha permitido a reanimação da classe média assim como das cidades (portos de pesca) de escala intermédia. Esta classe média patriótica começa a ameaçar o equilíbrio da União dinástica do qual foram expressão as Alterações de Évora em 1637, o Manuelinho de Évora, mas também as profecias do Bandarra, que agitava as consciências a Norte. As classes nobiliárquicas pressentindo o perigo de uma nova revolução à imagem e semelhança de 1383, resolveram agir patrioticamente. É esta pelo menos a interpretação de Jaime Cortesão, neste notável livro em que ele articula economia, sociedade e destino político.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO nefasto papel das paixões Antoine François Prévost, também conhecido como Prévost d’Exiles ou Abade Prévost nasceu em Hesdin a 11 de abril de 1697 e terá falecido em Courteuil a 23 ou 25 de Novembro de 1763. Foi um escritor francês, famoso sobretudo pela Histoire du Chevalier des Grieux et de Manon Lescaut, publicada em Amesterdão em 1731 como sétimo e último volume das Mémoires et aventures d’un homme de qualité qui s’est retiré du monde. A vida de Antoine François Prévost foi ela mesmo uma continuada aventura cheia de sobressaltos e momentos grandiosos. Foi noviço na Ordem dos Jesuítas, iniciou carreira militar, mais tarde depois de mais uma passagem breve pela Ordem de Jesus, ingressou na Ordem dos Beneditinos onde se tornaria Abade e finalmente padre em 1726, mas logo se fez expulsar em 1728. Em vias de ser preso fugiu para Inglaterra onde conheceu as delícias de uma paixão proibida o que o levou a fugir para a Holanda e finalmente antes de morrer subitamente voltou a França e ingressou de novo na Igreja Católica. [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]urante anos a minha imagem do Abade Prévost e da sua obra-prima Manon Lescaut esteve exclusivamente associada a um filme de 1968 com Catherine Deneuve, no papel de Manon e Jean Claude Brialy no papel de. Comete-se muitas vezes o erro de confundir a Manon Lescaut com Manon des Sources, filme sequela de Jean de Florette e que não tem nada a ver com Prévost, pois estes dois filmes baseiam-se na obra de Marcel Pagnol e toda a temática é absolutamente outra. Estes filmes são de Claude Berri, com Yves Montand, Emmanuelle Béart, Daniel Auteil e Gérard Dépardieu (le bossu), enquanto o filme baseado no romance setecentista que aborda em simultâneo a problemática do eterno feminino e o desejo de uma Vida Retirada se designa por Manon 70 e é de Jean Aurel com os actores já referidos e ainda Sami Frey. O romance do Abade Prévost é um dos muitos textos, contudo exemplar, das preocupações intelectuais típicas do século XVIII. Neste século encontramos repostas as maiores preocupações da cultura clássica, em particular o papel nefasto das paixões e encontramos também repostas as perspectivas que a cultura antiga elaborou tanto no período clássico, como no período helenístico, para tentar superar a aporia fundamental do tema: a auto reflexão sobre as paixões constitui um paradoxo, na aparência irresolúvel, pois se a paixão não existe não é possível pensá-la e quando existe e está presente, pela sua própria natureza, impede a clareza do espírito e obnubila irremediavelmente o pensamento. O pathos é inimigo da transparência a si do sujeito cognoscente. O pathos bloqueia a neutralidade crítica do espírito. É esta questão da relação entre a razão, a vontade e as paixões que atravessa grande parte do notável romance de Prévost, Mas o texto não é uma reflexão e por isso não pretende resolvê-la senão através do recurso ao retiro, o que é de todo o modo já um indício em si. Sabe-se que o tema mereceu soluções de vária ordem na antiguidade clássica, desde a metriopatia aristotélica até à solução radical dos estoicos propondo a completa extirpação dos pathe no quadro de uma apat(h)ia radical, passando pela solução, a meu ver a mais inteligente e sensata, do epicurismo que encontrava a solução através da moderação passional usando para esse efeito o papel de equilíbrio e harmonia que só a phronesis, mais tarde rebaptizada de prudência na cultura latina, pode levar a cabo, desde logo pela sua dimensão reflexiva e ponderativa mas também pela sua capacidade de iluminação transcendental. A phronesis aponta o caminho certo porque sobre ele calcula e pondera mas em boa verdade também porque antecipadamente o conhece. Não é o lugar aqui e agora para uma longa reflexão sobre as virtudes (aretai), mas percebe-se que sem o exercício delas, entregando-se o sujeito às paixões sem o auxílio do poder reflexivo do espírito e das suas faculdades práticas: a moderação, a temperança, a suspensão do juízo e da acção e finalmente a prudência; o sujeito facilmente se transvia. No século XVIII raras vezes encontramos posições ortodoxas que obedeçam a tradições intelectuais definidas. O Século XVIII é um século de síntese, de chegada e de descolagem para a modernidade e é por isso mesmo, na sua essência, marcadamente ecléctico e consequentemente o romance do Abade Prévost também o é. A própria vida do Abade exprime as contradições próprias do século e de algum modo as contradições da sua personagem, permanentemente dividida entre a embriaguez das paixões e uma vocação religiosa. No caso do romance o elemento nuclear gerador de toda a dinâmica dos acontecimentos é um encontro amoroso com todos os ingredientes de acaso e fatalidade. Os franceses exprimem este evento através da expressão afinal tão popular de “coup de foudre”. E atrevo-me a pensar que não haverá melhor expressão para caracterizar não só o facto fundador mas os desenvolvimentos inelutáveis. A personagem que sofre o efeito de um “coup de foudre”, fica como que enfeitiçado e de imediato fragilizado nas suas qualidades de resistência ao apelo tumultuoso da paixão. O narrador fará mais tarde uma análise retrospectiva procedendo a uma espécie de recuo e distanciamento, mas em boa verdade o trágico já se havia produzido e este expediente funciona apenas para salvar o romance de conotações libertinas. O romance não é uma promoção da sensualidade, da paixão e da embriaguez dionisíaca mas também está muito longe de ser um romance de promoção dos bons costumes e dos valores morais virtuosos e ascéticos. A dois tempos o romance mostra a vertigem, o apelo incondicionado da felicidade associada aos prazeres dos sentidos, mostrando a vulnerabilidade da condição humana acossada pelas paixões e ao mesmo tempo mostra a inevitabilidade funesta dessa entrega incondicional e cega. Tal como por exemplo Diderot, o Abade Prévost mostra o carácter expansivo e vital das paixões e de algum modo promove-as no sentido em que nos mostra, sob o efeito da paixão, um ser enérgico, corajoso, determinado, verdadeiramente transfigurado, como se a paixão operasse nele uma metamorfose do carácter e, da personagem pusilânime víssemos nascer uma personagem nova que entretanto passasse a ser governada por um élan vital empreendedor, gerador de poder, autenticidade e audácia. Mas é afinal tudo uma pura ilusão, pois a personagem não age no quadro das suas faculdades conscientes. Ele está como que hipnotizado, tendo sido golpeado pela fortuna e manipulado por um poder que o transcende e que ele não logra controlar. Faz sentido aqui utilizar a expressão francesa de ausência de maitrîsation. O ser não é mestre, não é senhor de si mesmo. As paixões logram essa metamorfose radical e muitas vezes trágica. Impõe-se uma pequena nota, escrupulosa, que faz toda a diferença relativamente à questão da ausência de maîtrise. Quando eu digo que a personagem não age no quadro das suas faculdades conscientes o que em última instância eu pretendo dizer é que a personagem não tem consciência da situação em que se encontra. Com este reparo eu regresso à aporia enunciada no início das minhas considerações. As paixões não podem combater-se quando não existem e não podem combater-se quando se apropriam de um ente determinado, porque a presença delas não se limita aos comportamentos que estimula e promove mas sobretudo porque provoca a obnubilação das faculdades que poderiam opor-se-lhe. Por isso no romance só mais tarde é que, depois da morte de Manon, e já, portanto, num momento de ressaca passional, a lucidez aparece. Esta lucidez aparece sempre a posteriori, ou seja, demasiado tarde. Agora, com o fogo extinto, é possível inventariar o que não devia ter acontecido, assim como a interpretação correcta do que aconteceu. Tal como na análise do processo histórico, as coisas ficam mais simples, mais fáceis e até mais compreensíveis quando sobre elas já decorreu o tempo. Apetece voltar a dizer o que eu disse em outro lugar a propósito de Marguerite Duras e citando Javier Cercas: somos sempre muito bons a prever o passado e eu acrescentaria, muito bons também a encontrar correcções retrospectivas, … ah! se eu pudesse voltar atrás e saber o que sei hoje…
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasLabirintos da Paixão [dropcap style=’circle’]L[/dropcap]awrence George Durrell nasceu em Jalandhar a 27 de Fevereiro de 1912, no Nepal aos pés do Himalaia e veio a falecer em Sommières no dia 7 de Novembro de 1990. Apesar de ter nascido na Índia é logicamente considerado um romancista inglês. A sua obra mais famosa é o Quarteto de Alexandria, uma tetralogia composta pelos livros Justine (1957), Balthazar (1958), Mountolive (1958) e Clea (1960). O Quarteto de Alexandria tem a particularidade genial para a época de todos os livros contarem a mesma história cada um na perspectiva de uma determinada personagem. O meu preferido é contudo o primeiro livro da tetralogia, designado por Justine, a personagem mais fascinante da obra. Enfim a mais fascinante no quadro das personagens representativas da intriga, pois o poeta Constantino Kavafis apesar de aparecer apenas a espaços acaba por contaminar os textos de um simbolismo que ilumina tudo com a sua luz própria. Em 1974, começou um novo ciclo de romances, o Quinteto Avignon, que seguiria os cenários e técnicas do Quarteto, sendo mais amplo no tempo, porém. Há também interessantes tramas paralelas, como a história do tesouro escondido dos Templários e a ocupação da França pelos nazis. Grande parte da sua vida foi passada longe de Inglaterra, em função da sua vida de diplomata e isso marcou a sua obra. Viveu na Grécia, em Chipre, no Egipto e na Argentina. Labirintos da paixão O romance Justine é outro dos acontecimentos literários da minha vida, como a Conversa na Catedral, O Lobo das estepes, O Danúbio, Os Passos Perdidos, entre outros a que me referirei, ao longo das minhas “Fichas de Leitura” sempre que me parecer apropriado. Devo ainda acrescentar que apesar da óbvia qualidade literária dos romances que marcaram a minha aventura intelectual e poética, há quase sempre elementos de outra natureza responsáveis pela importância e pela paixão que produziram e não raro são indissociáveis da minha própria vida. Atrevo-me a pensar que é sempre assim que as coisas acontecem, salvo talvez no caso dos leitores profissionais que marcam as suas preferências através de outras agendas biobibliográficas. Comigo acontece que posso evidenciar obras apenas pelo seu valor literário e pela importância que me parece que têm desempenhado na História da Literatura e ao mesmo tempo evidenciar outras pelo lugar simbólico que desempenharam na aprendizagem e evolução da minha paixão literária, quer em termos formativos quer apenas em termos lúdicos. A ordem de preferências sofre assim naturais oscilações. Daí que possa construir duas genealogias paralelas ainda que alguns textos pertençam muito naturalmente às duas famílias. Alguns exemplos muito ilustrativos: O Estádio de Wimbledon de Daniel de Giudice foi um dos textos mais importantes para mim nos anos oitenta mas não me atreveria a considerá-lo uma obra-prima nem a integrar o seu autor na lista dos autores de génio do século passado. A Montanha Mágica de Thomas Mann é seguramente um dos momentos chave da História da Literatura do século XX e contudo não desempenhou um papel decisivo na minha formação, enfim talvez tenha desempenhado esse papel no plano intelectual, mas não no plano emocional. Por isso nunca me refiro a ele com o entusiasmo com que me refiro a textos seguramente menos importantes mas muito mais apaixonantes para mim, como se houvesse em mim uma história do pathos ao lado de uma história formal. Uma em quanto professor e outra em quanto simples leitor. Mas as duas acabaram sempre por se intersectar no plano coloquial e não sistemático da experiência literária. O Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrel, será um dos casos em que converge a importância historiográfica do autor e da obra com a minha história pessoal e mesmo assim muito forçadamente pois a verdade é que a obra tem vindo a perder a importância que se lhe chegou a atribuir. Para mim contudo não a perdeu pois sobretudo Justine continua a ser para mim uma obra de culto. Todo o Quarteto se passa em Alexandria no período que decorre entre as duas grandes guerras, nesse ambiente excepcional de um cosmopolitismo exacerbado onde convivem pacificamente mas também perigosamente egípcios, gregos, sírios, judeus e ingleses entre muitos outros elementos étnicos. Justine, é o primeiro livro da tetralogia e aparece sobretudo centrado no amor e na paixão. É portanto um bom princípio, pois em boa verdade havendo um princípio de subordinação geral nas questões existenciais e vitais esse princípio só poderia ser ou o amor ou a morte, mas a verdade é que apesar de ambos se conterem e complementarem mutuamente; o amor é mais vital do que a morte. O romance desenvolve-se à volta da vida particular de Justine, a belíssima judia, esposa de Nassim, poderoso banqueiro copta. O narrador, chamado Darley, é um jovem apaixonado pela literatura e ele próprio pretendente à arte da escrita, que virá a conhecer a bela Justine na trama dos encontros e desencontros de um grupo de amigos da sociedade alexandrina. Nesse torvelinho de relações, encontros e desencontros Darley acabará por se envolver não apenas com a misteriosa e enigmática Justine mas também com a frágil Melissa. A partir destas relações subtis e complexas, vai o autor elaborando a rede de episódios sempre marcados por um denso erotismo, sensualidade e tensão. Pressente-se o perigo e o drama, e até o trágico em cada página. A cidade é ela própria, em si, um topos de grandes paixões e emoções, pois tudo nela favorece uma certa irracionalidade: o clima, a miséria, a história compósita, o carácter labiríntico do seu tecido social e étnico hostil às formas de sistematização racional e lógica. Ao acabarmos de ler Justine e depois o resto da tetralogia apetece de modo, também ele, irracional partir para Alexandria e viver lá as emoções que a obra nos promove de modo no entanto sobretudo alusivo ao sabor de uma interseccionismo complexo de elementos culturais, históricos, étnicos, compósitos e indiscerníveis através do logos e onde se vislumbra sempre, como num sonho, uma espécie de beleza prometida, irreal, mas eterna e sobretudo arquetipal.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasPlenitude e Nulificação [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]rimo Levi nasceu em 1919, no seio de uma família judia liberal, na cidade de Turim. Em 1934 entrou para o liceu onde foi aluno do filósofo Norberto Bobbio e do grande escritor Cesare Pavese. Primo Levi acabou os estudos secundários em 1937 e entrou para a Universidade de Turim, para estudar química, onde se formaria em 1941. Depois da fundação da República Social Italiana liderada por Mussolini, Levi juntou-se ao movimento da resistência, aos partisans portanto, designado Movimento Justiça e Liberdade. Primo Levi e muitos outros militantes da resistência, foram presos pelas milícias fascistas e enviados para o campo de detenção de Fossoli, perto de Modena; e em 1944 foram enviados para Auschwitz. Ao fim de onze meses terríveis Levi, tendo sobrevivido, foi libertado pelo Exército Vermelho. Dos 650 judeus italianos mandados para Auschwitz com Levi, apenas vinte sobreviveram. Assim que voltou à Itália, Levi começou a escrever sobre suas experiências no campo de concentração e sobre sua jornada de regresso a Itália. Desse trabalho ficaram dois clássicos: Se Isto é um Homem e A trégua. Publicou mais livros mas quase todos sem sucesso, salvo a obra O Sistema Periódico que foi considerado pela Academia de Londres o melhor livro de ciência alguma vez escrito. Levi morreu a 11 de Abril de 1987, depois de cair no vão da escada interna do prédio de três andares onde vivia, duvidando-se até hoje que não tenha sido suicídio. Sobre isso Elie Wiesel disse que “Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos antes”. Plenitude e nulificação Se Isto é um Homem de Primo Levi, deve ler-se com o estômago vazio e numa fase da nossa existência marcada pelo equilíbrio, pois o conteúdo desta obra pode revolver as tripas e perturbar de uma forma irreversível. Eu, com total sinceridade, nem me preocupo que o conteúdo deste texto esteja relacionado com o que se passou no âmbito da Segunda Guerra Mundial e portanto no quadro das práticas nazis. Isso para mim seria reduzir o significado do texto assim como a sua exemplaridade universal. Isto passou-se vezes sem conta e infelizmente voltará a passar-se. Penso que Primo Levi, apesar de confessar que jamais perdoou aos alemães o que passou e sofreu no campo de concentração de Auschwitz, não descreveu a sua experiência como forma de retaliação ou vingança mas na perspectiva da denúncia de que os homens podem atentar contra a humanidade quer na pessoa dos outros quer na sua própria pessoa. Tenho tendência a ler o livro na sua dimensão ambivalente. O homem que ali, desde o título é equacionado e posto em causa, embora com juízos morais distintos, inequivocamente distintos, é o carrasco e a vítima. É difícil aceitar como sendo homem aquele que submete o Outro (homem) aos tratos a que foram submetidos nos campos de concentração, e não apenas os judeus, mas também os russos e os ciganos, por exemplo. E é ainda difícil continuar a ver um homem na vítima destruída de toda a sua humanidade; na vítima reduzida a coisa, coisa que não conta para nada, coisa inútil. É evidente que o adjectivo ‘inútil’ é neste caso redundante quando nos estamos a referir a pessoas pois uma pessoa não pode nem deve ser instrumentalizada, na medida em que o respeito pela pessoa humana reside na liberdade da sua finalidade própria, como muito bem diz o Imperativo Categórico de Kant na sua segunda formulação. De facto os juízos são muito diferentes neste nosso caso. Por um lado, um ser humano, no caso o judeu e em particular Primo Levi, é esvaziado da sua humanidade através da violência e do sofrimento que lhe é infligido e que pretende anulá-lo, reduzi-lo a coisa sem o mínimo valor e por outro lado, outro ser humano, no caso os alemães, mas não só como mostra Levi, auto esvazia-se da sua humanidade através da imoralidade radical dos seus actos. Neste segundo caso a nulificação advém paradoxalmente do exercício de uma plenitude, a plenitude absoluta do mal. Vale a pena transcrever este curtíssimo texto de Primo Levi e que antecede a narrativa propriamente dita. Sem mais palavras: Vós que viveis tranquilos Nas vossas casas aquecidas, Vós que encontrais regressando à noite Comida quente e rostos amigos: Considerai se isto é um homem Quem trabalha na lama Quem não conhece paz Quem luta por meio pão Quem morre por um sim ou por um não. Considerai se isto é uma mulher, Sem cabelos e sem nome Sem mais força para recordar Vazios os olhos e frio o regaço Como uma rã no Inverno. Meditai que isto aconteceu: Recomendo-vos estas palavras. Esculpi-as no vosso coração Estando em casa andando pela rua, Ao deitar-vos e ao levantar-vos; Repeti-as aos vossos filhos. Ou então que desmorone a vossa casa, Que a doença vos entreve, Que os vossos filhos vos virem a cara. Parecem palavras bíblicas, mas são de uma outra dimensão. Esta mensagem é do homem e em nome do homem. Esta mensagem bem que podia encabeçar um dia um catecismo secular e humanista.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO espírito do Renascimento [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]arguerite Yourcenar (1903-1987), de seu nome, Marguerite de Crayencour, nasceu em Bruxelas a 8 de Junho de 1903, de pai francês e mãe belga. É uma escritora francesa naturalizada americana em 1947, autora de romances, contos e de obras autobiográficas, foi também poeta, tradutora, ensaísta e crítica literária. Da sua vasta obra que a autora confessa ter sido escrita “com um pé na erudição e outro na magia”, constam títulos como As Memória de Adriano, A Obra ao Negro, O Tempo, Esse Grande Escultor, Contos Orientais, O Golpe de Misericórdia – obra adaptada ao cinema pelo realizador alemão Volker Schlöndorff, Mishima ou a Visão do Vazio, entre outros. Considerada como a última dos Humanistas, Marguerite Yourcenar foi a primeira mulher eleita para a Academia Francesa, a 6 de Março de 1980. Morre na Ilha dos Montes Desertos, no Maine (Estados Unidos) a 17 de Dezembro de 1987, com 84 anos. Marguerite Yourcenar foi educada de forma privada e de maneira excepcional: lia Jean Racine com oito anos de idade, e o seu pai ensinou-lhe latim e grego em tenra idade. Em 1929, publicou o seu primeiro romance, Alexis ou o Tratado do Vão Combate influenciada pela leitura de Gide, escrito num estilo muito rigoroso e clássico. Trata-se de uma longa carta em que um homem, músico de largo reconhecimento, confessa à sua esposa a sua homossexualidade e a decisão de a deixar. Na década de 1930, escreve e publica Fogos (1936), composto por textos de inspiração mitológica e religiosa, em que a autora trata de diversas formas o tema do desespero amoroso e dos sofrimentos sentimentais, tema que foi retomado mais tarde em Le Coup de grâce (1939), romance curto sobre um triângulo amoroso durante a guerra russo-polaca de 1920. Em 1939, publicou os Contos Orientais a partir da experiência das suas viagens pelo Oriente. Em 1939, dez anos depois da morte de seu pai e com a Europa conturbada pela proximidade da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para os Estados Unidos, onde passou o resto de sua vida, obtendo a cidadania em 1947 e ensinando literatura francesa até 1949. As suas Mémoires d´Hadrien (Memórias de Adriano), de 1951, tornaram-na internacionalmente conhecida. Este sucesso seria confirmado com L’Œuvre au Noir (A Obra em Negro, 1968), uma biografia de um herói do século XVI, chamado Zénon, atraído pelo hermetismo e a ciência. Publicou ainda poemas, ensaios (Sous bénéfice d’inventaire, 1978) e memórias (Arquivos do Norte, 1977), manifestando uma atracção pela Grécia e pelo misticismo oriental patente em trabalhos como Mishima ou A Visão do Vazio (1981) e Como a Água que Corre (1982). O espírito do Renascimento A Obra ao Negro é o testemunho histórico de uma época – estamos no início do Século XVI – onde se cruzam alguns obscurantismos medievais e os conflitos dos tempos modernos, com a afirmação de novos regimes e Estados, perdidos em constantes guerras e conflitos. A visão de um Renascimento de luz é abafada, nesta obra de Yourcenar pelos conflitos em torno da questão religiosa, fruto da reforma protestante e da contra-reforma. Em A Obra ao Negro acompanhamos a vida de Zenão, médico, filósofo e alquimista, quando este, após levar uma vida inspirada no hedonismo, cultivada por uma profunda reflexão interior, temperada contudo pelo espírito pragmático do Renascimento, se estabelece em Bruges, sua cidade natal. Valendo-se de uma falsa identidade (a do médico Sebastião Theus), é perseguido pela Inquisição, e acaba por sofrer junto da mesa do Santo Ofício a condenação à morte. Tal como Sócrates, Zenão, na sua última expressão de liberdade, escolhe o suicídio em vez da dolorosa morte pelo fogo. Yourcenar retrata de modo ímpar diversos aspectos da história, da sociedade e da vida durante o Renascimento. No grande palco de A Obra ao Negro assistimos às rivalidades entre Francisco I, rei de França e de Carlos V, soberano do Sacro Império Romano Germânico, aos longos debates do Concílio de Trento, mas também aos conflitos nascentes entre os trabalhadores das tradicionais tecelagens flamengas com a chegada das inovações técnicas, e logo na primeira linha aos conflitos religiosos após o cisma que causou a Reforma e a importância da Inquisição cujo poder, à época, extrapolava a esfera espiritual, estabelecendo alianças temporais capazes de decidir o destino das sociedades. Convém notar que a História não é aqui uma tela de fundo, onde Yourcenar faz viver Zenão, o seu protagonista. Não é também uma mera ilustração da época, mas o próprio mundo em que age e pensa Zenão. Yourcenar explicita muito do esforço por ela empreendido para dar vida e cor a Zenão, na “Nota da Autora” que se encontra no fim do romance: “[…] para dar à sua personagem fictícia aquela realidade específica, condicionada pelo tempo e o lugar, sem o que o ‘romance histórico’ não passa de um baile de máscaras bem ou mal sucedido, [a romancista] não teve à sua disposição senão factos e datas da vida passada, isto é, a História” (p.319).
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasResíduos de uma diáspora interior [dropcap type=”2″]D[/dropcap]evo a referência a este autor e em particular a este livro ao escritor João Paulo Borges Coelho na sua passagem por Macau, quando ambos participámos na Rota das Letras em 2014. Confesso que ainda não tinha lido nada de W. G. Sebald e fiquei com imensa curiosidade face ao entusiástico elogio de João Paulo Borges Coelho. Depois em boa verdade não comecei pelo livro intitulado Austerlitz, mas antes pelo Campo Santo, Austerlitz chegou uns meses mais tarde. Resumo O professor de História da Arquitectura Jacques Austerlitz investiga a estação ferroviária de Liverpool Street, em Londres, coligindo materiais para uma pesquisa sobre arquitectura industrial, quando é tomado por uma visão que talvez o ajude a explicar não a ‘arquitectura da era capitalista’, mas o sentimento incómodo de ter vivido uma vida alheia. A partir dessa experiência as suas andanças pelas ilhas britânicas e pelo continente europeu, a sua mania fotográfica e a sua memória minuciosa adquirem uma importância que já não é académica mas antes biográfica e Austerlitz passa a procurar reconstruir a sua própria história. Para cumprir esse objectivo o herói do romance terá de viajar no tempo em muitos países e nos cenários mais díspares, tal como um lar protestante no interior de Gales e um internato britânico, lugares esses onde decorreu a sua criação e educação; uma biblioteca em Paris, fortificações, palácios, campos de concentração, monumentos e balneários públicos. No fim desta viagem, que acabará por converter a dimensão biográfica e íntima do professor numa outra realidade através de uma articulação com a história europeia do século XX, indo assim ao encontro dos primórdios em que tudo começou, com outros nomes, numa outra língua, numa outra estação ferroviária, quando os horrores da Segunda Grande Guerra começavam a ser anunciados. Reflexão Se há uma ideia axial através da qual podemos referir a obra de W.G. Sebald, essa ideia é a de hibridismo. Contudo o hibridismo caracteriza muitos autores contemporâneos e desse ponto de vista parece que a ideia nuclear seria apenas carência de pontaria. A verdade é que o carácter ensaístico e híbrido de uma parte da ficção contemporânea, se não predomina, pelo menos marca muitos textos de incontornável importância. Estou, em particular, a pensar em autores europeus como Cláudio Magris, por exemplo, que num texto como Danúbio, desenvolve a sua narrativa numa atmosfera, a qual, temos até dificuldade em enquadrar no domínio da literatura ficcional e romanesca, embora por outro lado se possa reconhecer que o texto é um espantoso romance histórico, geográfico e intelectual de uma parte significativa da Europa e da cultura europeia. A nossa opinião depende muito do posto de observação e de uma certa tolerância relativamente às fronteiras dos géneros literários. Só a título de exemplo: O que é As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, a Vida Material de Marguerite Duras ou o Fogo Pálido de Vladimir Nabokov, para só citar alguns textos que me entusiasmaram muito e sobre os quais se pode discutir amplamente o género. Porém o hibridismo de Sebald é mais complexo por um lado e radical por outro e apresenta-se tão bem doseado, que apesar da radicalidade nunca se perde o sentimento ficcional e romanesco. A todo o momento estamos a perguntar-nos se aquilo que acabamos de ler será memorialístico, autobiográfico, erudito ou ficcional em absoluto, embora isso pouco importe porque o prazer da leitura se sobrepõe. Como salienta muito bem António Barrento trata-se afinal de um trabalho oblíquo “sobre a memória pessoal e histórica (…) em que o ficcional se cruza com o biográfico e o documental”. Para levar a cabo este memorialismo pessoal o autor não hesita em introduzir nos seus textos pedaços dispersos de outras narrativas artísticas e de outros saberes, tais como fotografias, despojos arquitectónicos, conhecimentos técnicos de vária ordem, como a Medicina e a Engenharia, etc. «(…) por detrás dos quais se perfila a visão de uma Europa perdida, perigosamente enredada numa tragédia do esquecimento». O que acabo de dizer e citar, aplica-se tanto ao Austerlitz, como aos outros livros, mas é justo que se diga que Austerlitz pode ser considerado um modelo, atendendo ao facto de que aqui se duplica o sentido do esquecimento, uma vez que ele é ao mesmo tempo individual e colectivo. Para que o objectivo funcione, artisticamente falando, é porém necessário que as escolhas de Sebald sejam apropriadas, tanto no plano intelectual quanto no plano estético. Ora, em boa verdade, é isso que acontece sempre. O bom gosto de Sebald é notável, sobretudo porque não é nunca gratuito. Estou a pensar no modo como começa o romance Austerlitz. Começa como se sabe na Gare de Antuérpia. A Gare de Antuérpia é de uma imponência e beleza esmagadora. Eu estive lá pela primeira vez nos anos 80 do século passado e lembro-me de sentir o quanto aquele espaço era favorável a um ambiente romanesco. Por outro lado, não penso que a designação da personagem principal através do apelido Austerlitz seja uma designação fortuita, ela é como também se sabe o nome de uma Gare, parisiense no caso, ao mesmo tempo que consagra o nome de uma batalha, que foi por sua vez determinante para a consagração de Bonaparte, figura muito emblemática também, abordada por Sebald em Campo Santo e a verdade é que o romance para além de nos aparecer centrado na biografia de Jacques Austerlitz, constitui também uma reflexão sobre a monumentalidade própria das gares, enquanto lugares da sensibilidade nostálgica. As gares mais do que lugares de partida e de chegada, e isso já seria suficiente, são sobretudo nós de comunicação e encontro. Elas encerram uma ideia ou projecto que sustenta largamente a problemática cosmopolita da alteridade. Numa gare e por maioria de razão numa gare internacional invoca-se sobretudo o Outro, o que chega e parte e na sua mobilidade permanente se apresenta hostil à armadilha da apropriação nas tenazes indiferenciadas do Mesmo. O que justamente se apresenta como nostálgico em todos os livros de Sebald é uma espécie de diáspora interior que consagra territórios neutros ou neutralizados pela história e que só se tornam interessantes porque aparecem sempre sob a forma de vestígios, de resíduos ou de despojos, restos arqueológicos ou ruínas. Claro que muitas vezes estas ruínas não se apresentam em ruínas, fisicamente digamos assim, e quando isso acontece são mais ruínas ainda, são verdadeiras ruínas. Os monumentos são na maior parte dos casos ruínas sentimentais, ruínas morais do Espírito, desmentidos brutais das nossas maiores ilusões. E o que são as desilusões senão ruínas. Quando os monumentos aludem à História e aludem sempre, o sentimento de ruína é global, a desilusão é aterradora. É consagrada uma verdadeira terra de ninguém, espiritual, um não lugar da memória que só pode provocar nostalgia e até sofrimento. Contudo, após o estremecimento ontológico inicial desenha-se aos poucos um princípio de esperança. É preciso passar sempre pela prova das ruínas e da desilusão. É preciso passar pela prova da memória. Simplesmente em Sebald essa memória só pode tornar-se redentora nos planos ético e moral por um lado e político por outro, para poder ser motor de redenção histórica, se filtrar os acontecimentos e os factos assim como os vestígios a uma luz dolorosa e poética, de uma poética do ser que não pode ser nunca meramente festiva e comemorativa. A importância dos vestígios, dos resíduos e das ruínas é na aparência tautológica uma vez que é da natureza da realidade e não apenas da realidade histórica ser fragmentada e dispersa. O que se propõe é assim da ordem da resignação que se opõe à tendência do espírito para a denegação e para o recalcamento. Não obstante, resignação tem aqui o sentido não de uma desistência pusilânime mas antes de uma lucidez extrema. A aceitação resignada de uma realidade que é por natureza fragmentada prepara o Espírito para a cura e através dela para as bodas da superação reconciliada. Nota: Se ainda não o disse em letra de forma, será provavelmente a altura ideal para o fazer: o melhor da cultura europeia, da cultura literária desde logo, está muito ligado a uma tradição de desenraizamento, de diáspora, errância, deriva e exílio. Na tradição europeia os castiços produziram muito menos e de muito menor qualidade, o que se compreende. Aconteceu assim com a grande tradição intelectual da mitteleuropa, nos séculos XIX e XX, mas também em muitas outras latitudes e épocas. Se fizéssemos uma retrospectiva da literatura e do pensamento europeu contemporâneos seguramente que confirmaríamos esta observação que porém não cabe aqui na economia apertada desta recensão; porém aproveito para referir alguns autores em que entronca esta genealogia que hoje em dia engloba nomes como Sebald, Magris, Rushdie etc… Pense-se desde logo na filosofia em Kant, e na literatura em Kafka, Marai, Zweig , assim como Borges e Cortázar. Pense-se sobretudo nessa figura incontornável da problemática da alteridade que é Lévinas, judeu lituano, ucraniano e russo, em parte alemão pela cultura e finalmente francês, por adopção, linguística, mas não só. E o que dizer de Vladimir Nabokov ou Joseph Conrad, que escreveram em várias línguas; e Joyce que viveu uma parte importante da sua vida em Trieste, lugar paradigma de uma grande oscilação dos mecanismos de pertença e enraizamento, como sublinhou muito bem Cláudio Magris em Um Outro Mar. Em boa verdade quase tudo o que de inovador e vanguardista a Europa produziu, a partir do século XIX sobretudo, apresenta essa marca a que não é estranho, por exemplo, o facto do enorme sucesso dos intelectuais judeus (povo de diáspora por excelência), espalhados pela Europa. Os romenos Panaït Istrati, Tristan Tzara e Benjamin Fondane, abandonaram todos cedo o seu país e adoptaram o francês como língua literária. «Benjamin Fondane é o autor de uma «boutade» sobre a importância quiçá desmesurada da pátria de Chateaubriand, de Voltaire ou de Victor Hugo na cultura romena quando escreve que partia para França porque já não suportava viver numa colónia francesa e era portanto preferível ir viver para a metrópole. De facto a metrópole é sempre recomendável relativamente à província»: e a verdade também é que a maioria dos intelectuais ligados a uma cultura local ou nacional são quase sempre provincianos. E ser provinciano é no plano intelectual o pior dos defeitos e dos insultos. Na nossa tradição própria, os gigantes são de facto cosmopolitas ou desenraizados, como Camões, Eça de Queiroz ou Fernando Pessoa. Dois exemplos apenas: Sebald, W.G., Austerlitz, Quetzal, Lisboa, 2012Descritores: Literatura alemã, Ficção, Memorialismo, Ensaio,ISBN: 9789897220517 Relativamente a Simmel, é conhecido um importante, embora breve, texto sobre o assunto, designado apropriadamente Digressão Sobre o Estrangeiro. Porém sobre este tema, o estrangeiro, nada melhor se escreveu ainda que a obra homónima de Michel de Certeau. Simmel afirma que: «o estrangeiro é o que chegou hoje, mas não para partir amanhã, sendo antes aquele que chegou para ficar». O estrangeiro conjuga assim, na perspectiva de Simmel, a harmonia que resulta da distância e da proximidade, da generalidade e da diferença. E nesse sentido ele é o verdadeiro símbolo da Modernidade, pois ele é síntese e inovação, entre por um lado a diáspora e a fixação, funcionando como intermediário das pulsões ambivalentes da alma humana. No estrangeiro convergem tolerância e auto compreensão, alteridade e identidade, generalidade e idiossincrasia. O estrangeiro é o verdadeiro símbolo da modernidade mas também do cosmopolitismo. A reflexão de Robert Park, discípulo de Simmel, vai no sentido de evidenciar a figura simbólica do marginal das sociedades tardo industriais e pós modernas, sobretudo nas grandes metrópoles, exprimindo ainda a modernidade mas também a sua crise e desorganização, que andam afinal modernamente juntas. O marginal é também uma figura do cosmopolitismo, pois habita entre dois mundos, o que promove um desenraizamento agora não apenas cultural ou linguístico, mas também social. A figura do marginal é um estrangeiro multiplicado, pois acontece enredado entre duas realidades sociais, entre duas culturas e por vezes mesmo entre dois códigos linguísticos antagónicos. A subjectividade possui no marginal uma dimensão trágica, pois muitas vezes ele não consegue superar este divórcio que vive quase sempre de uma forma psicológica dissociativa. W.G. Sebald nasceu em Wertach im Algau, na Alemanha, em 1944, filho de uma família católica do interior da Baviera. Estudou Língua e Literatura Alemãs em Freiburg e leccionou em Manchester na Inglaterra, de 1966 até 1970. A partir de 1970, ensinou na Universidade de East Anglia, em Norwich, tornando-se professor de Literatura Europeia, em 1987, onde permaneceu até à sua morte, num acidente de carro, em Dezembro de 2001. De 1989 a 1994, foi o primeiro director do British Center for Literary Translation. A sua obra foi contemplada com numerosos prémios literários em vários países. Poeta, ensaísta e tradutor, Sebald é contudo reverenciado no mundo todo pelos seus livros de ficção. A Teorema publicou quase toda a sua obra: Os Emigrantes, Os Anéis de Saturno, Vertigens. Impressões, Austerlitz, História Natural da Destruição e Campo Santo. Entretanto a sua obra tem vindo a ser republicada pela Quetzal.