O Simbolismo do Caos. Demanda ou Vazio?

Pynchon, Thomas, V, Fragmentos, Lisboa, 1989
Descritores: Literatura Americana, Romance, 422 p.:23 cm, tradução de Rui Vanon
Cota: C-10-7-45

Thomas Ruggles Pynchon, Jr. Nasceu em Long Island no dia 8 de Maio de 1937. Frequentou a Oyster Bay High School, de onde saiu em 1953. Estudou Engenharia em Cornell, prestigiada universidade da chamada Ivy-League, mas abandonou o curso no segundo ano para se alistar na marinha americana. Mais tarde, em 1957, voltará a Cornell para estudar inglês, tendo-se formado em 1959. Além de V, livro de estreia e logo premiado, eu destacaria o célebre Leilão do Lote 49 de 1966 e O Arco-Íris da Gravidade  de 1973, considerado a sua obra prima.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s etiquetas valem o que valem e por vezes não valem nada. Costuma considerar-se Thomas Pynchon como um dos maiores expoentes do pós-modernismo. A verdade é que desde que a designação foi cunhada por Jean-François Lyotard (sobretudo) mas também por Frederic Jameson e outros, começaram a aparecer atribuições de pós modernidade a muitas obras que não o eram antes. De algum modo tornou-se moda designar uma obra de pós-moderna. Porém, penso que no caso de Thomas Pynchon a atribuição é pertinente. Eu penso que é mais fácil identificar o pós-modernismo em outras artes ou em outras áreas do pensamento e da cultura do que na literatura seja ela ficção ou poesia, mas não será impossível.
No caso de Pynchon, a fragmentação discursiva e narrativa, a miríade de personagens superficialmente tratadas, as múltiplas histórias e intrigas paralelas, o carácter caótico da narrativa, dispersivo e muitas vezes anacrónico onde sobressai uma valorização das relações light e soft e dos episódios puramente circunstanciais e evanescentes consubstancia de facto uma estética que decorre de uma teoria do conhecimento que evita as chamadas metanarrativas. V-thomas-pynchon-290
Além disso a dispersão temática, enciclopédica mas superficial, por áreas como a física, matemática, química, filosofia, parapsicologia, ocultismo, banda desenhada, cinema, música pop, etc., com tratamento humorístico, pouco sério, senão mesmo provocatório e jocoso, assim como o relativismo axiológico que daí resulta, conduz a uma clara atitude de desvalorização de temas considerados nobres pela Modernidade. No entanto, em toda a obra de Thomas Pynchon, pressente-se através do Stream of consciousness que lhe é peculiar, sobretudo no ‘V’, a presença tutelar de uma grande figura da Modernidade, que é James Joyce e o seu Ulisses. Toda a obra de Pynchon pode ser assim considerada paradoxal no plano da sua construção estética, com um pé na Modernidade e ao mesmo tempo em ruptura, afinal como toda a chamada pós modernidade. É essencialmente por saturação referencial e pela valorização das estruturas micronarrativas que os seus romances se colocam no caminho performativo do pós-modernismo. Nada que se compare com William Gaddis ou Donald Barthelme onde a ruptura é sobretudo estilística e temática.
Pessoalmente sou sensível, na obra de Pynchon, à sua dimensão paranóica, que resulta sobretudo da sobreacumulação informativa. Este excesso entrópico funciona, no entanto, às avessas, transformando a sua narrativa num imenso discurso sobre o vazio. O relativismo axiológico a que me referi perspectiva uma redução niilista integral, por decepção. A única escapatória para a decepção integral é o riso. Contudo, para mim, a própria obra de Pynchon resulta numa enorme decepção. Talvez que eu seja demasiado moderno. Admito.
Thomas Pynchon é considerado, como disse, um dos principais expoentes do romance pós-moderno, ao lado de outros autores consagrados, como sejam William Gaddis, John Barth, Donald Barthelme, Don Delillo e Paul Auster. Mas se aceito a companhia de Gaddis, Barthelme ou Barth, tenho muita dificuldade em aceitar que Don DeLillo ou Paul Auster integrem este grupo. Em 1988, Thomas Pynchon foi premiado pela Fundação MacArthur. O crítico literário Harold Bloom nomeou mesmo Pynchon um dos quatro romancistas de língua inglesa “canonizáveis”, juntamente com  Don DeLillo, Philip Roth e Cormac McCarthy. Enfim, opiniões. Discordo profundamente com a integração nesta lista de Cormac McCarthy mas sobretudo de Don DeLillo. E pergunto, e porque não incluir Raymond Carver, provavelmente o maior génio da prosa minimalista e o maior especialista americano em shorts stories without story, a par de Joyce Carol Oates. Mas menos discutíveis ainda são John Updike, no registo burlesco e John Barth que nascendo em 1930 abre esta geração nascida na década de 30 (… é por isso o fundador do pós-modernismo na ficção norte americana), da qual fazem parte os autores referidos e ainda Donald Barthelme, como já disse.
Mas vamos ao texto. Tendo acabado de obter dispensa da Marinha, Benny Profane contenta-se com uma existência ociosa passada entre os amigos, onde a única ambição é a de ser perfeito na arte do engano, e onde a palavra «responsabilidade» é considerada obscena. Entre os seus amigos, chamados Whole Six Crew, está Slab, um artista que parece ser incapaz de pintar outra coisa que não seja queijo dinamarquês. Mas a vida de Profane muda dramaticamente quando ele se torna amigo de Stencil, um jovem ambicioso e activo com uma missão intrigante, a de descobrir a identidade de uma mulher chamada V, que conheceu o seu pai durante a guerra, mas que desapareceu repentina e misteriosamente.
O livro é portanto centrado nesta demanda simbólica da misteriosa ‘V’ que jamais saberemos quem seja até percebermos que simplesmente não existe e talvez nunca tenha existido, tal como o ‘K’ de Dino Buzzati. E isso descobre-se cedo o que arrefece muito o interesse do romance, relativamente a um pequeno entusiasmo inicial, até porque o interesse literário é escasso; sobrevive no texto algum sentido de humor, mas se comparado com autores como Bruce Chatwin e mesmo Salinger, não passa de um bocejo. Entretanto pelos caminhos dessa procura insensata de Nova Iorque até Malta passando pelo Cairo e Alexandria, entre outros lugares, cruzamo-nos com espiões, filósofos, vagabundos, intriguistas, etc. Porém tudo acontece de modo muito anárquico e sem sentido e muitas vezes fastidioso. Pynchon foi, para mim uma grande decepção, como Don DeLillo ou  Jonathan Franzen, porém por motivos claramente distintos. De DeLillo ressalvo, contudo, a primeira meia centena de páginas de Submundo. Nem todos os autores podem escrever livros com mais de quatrocentas páginas como Thomas Mann, Tolstoi, Stendhal ou Musil, entre outros, mas não muitos. A lista de livros gordos, pretensiosos, mas falhados, é enorme. Dentre os mais recentes tenho presente os calhamaços de Franzen, apesar das críticas favoráveis, o 2666 de Bolaño, apesar de tão incençado, mas para mim impropriamente, o Cosmopolis de DeLillo e outros onde os autores se ficaram pelas boas intenções. Mas para além dos autores já referidos que escreveram romances grandiosos em todos os sentidos e nem me lembrei, por exemplo, das Almas Mortas de Gogol, ou do Herzog de Saul Bellow é justo dizer que o formato não impede que se possa atingir o estatuto de obra prima …. Que não se pense que trago aqui uma opinião caprichosa na sua essência, pois acredito mesmo que os autores tanto quanto os livros possuem em si uma dimensão intrínseca, no caso dos romances, e um fôlego ou uma respiração própria, no caso dos autores. Alguns são sprinters e outros são corredores de fundo e meio fundo, digamos assim. Um editor russo disse-o por outras palavras a Nabokov. Vou citar este e não o editor que nunca o terá escrito: “Um editor disse-me uma vez que cada escritor traz gravado dentro de si um número determinado, isto é, um número exacto de páginas que nunca ultrapassará em nenhum livro. O meu número era, salvo erro, o 385. Tchekhov nunca poderia escrever um verdadeiro romance comprido” por exemplo, mas já Tolstoi, podia e devia, digo eu. Depois Nabokov continua assertivamente com acerto, como era seu timbre. No que disse sobressai a ideia de que o escritor “nunca ultrapassará” o seu número. Isso seria verdade se o escritor o soubesse e a verdade é que, para sua desgraça, deles, a maioria esmagadora dos escritores não faz ideia de qual seja, pelo que acontece que ora fiquem aquém desse número, ora o ultrapassem largamente. Quando ficam aquém, quase nunca é tão grave como quando o excedem largamente, excedendo assim a dimensão fixada pela providência. Eu lembro-me que ao ler Saramago dizia: — e na época ainda não tinha lido as magníficas Lectures on Russian Literature, publicadas pela Harvest Books de Nova Iorque em 1982 — se ele fosse controlado por editores à moda antiga, e bons, pois os houve, os seus romances teriam, na sua melhor fase, a fase do Memorial, do Cerco ou da Jangada, menos cinquenta páginas pelo menos e alguns teriam ficado verdadeiras obras primas, assim…  ficaram apenas livros muito bons, mas ligeiramente desequilibrados. O caso mais gritante é a História do Cerco de Lisboa. Mais tarde finalmente o escritor encontrou o número de páginas certas e adequadas, mas salvo algumas excepções as ideias é que já não eram tão boas. Ora, regressando ao motivo deste meu excurso, o problema das obras de Thomas Pynchon é esse, não um número excessivo de notas como o arquiduque da Áustria terá, pleno de aristocrática idiotice, dito a propósito de uma partitura de Mozart, mas um número excessivo de páginas, esperando eu não estar a ser tão idiota quanto o outro. Nesta questão da dimensão da obra, que sinceramente sempre me preocupou, esqueci-me de referir Norman Mailer e John dos Passos, mas sobretudo de uma obra prima de um escritor, aliás escritora, o Midlemarch de George Eliot.
Repare-se no élã do primeiro parágrafo de Middlemarch:

“Miss Brooke had that kind of beauty which seems to be thrown into relief by poor dress. Her hand and wrist were so finely formed that she could wear sleeves not less bare of style than those in which the Blessed Virgin appeared to Italian painters; and her profile as well as her stature and bearing seemed to gain the more dignity from her plain garments, which by the side of provincial fashion gave her the impressiveness of a fine quotation from the Bible,— or from one of our elder poets,— in a paragraph of to-day’s newspaper. She was usually spoken of as being remarkably clever, but with the addition that her sister Celia had more common-sense. Nevertheless, Celia wore scarcely more trimmings; and it was only to close observers that her dress differed from her sister’s, and had a shade of coquetry in its arrangements; for Miss Brooke’s plain dressing was due to mixed conditions, in most of which her sister shared. The pride of being ladies had something to do with it: the Brooke connections, though not exactly aristocratic, were unquestionably ‘good”.

Ora, isto não roça a perfeição ou mesmo o sublime. Isto é da ordem da perfeição e do sublime. Raras vezes em toda a minha vida me foi dado ler um arranque de romance tão perfeito e de resto a literatura inglesa possui muitos. Eu, que infelizmente não domino a língua inglesa como gostaria atrevi-me depois desta primeira página a ler directamente o Middlemarch na sua língua original, pois de facto sente-se que seria uma pena traduzir esta página e afinal tudo o resto. A leitura de Middlemarch curou-me momentaneamente da decepção que foi Thomas Pynchon. Depois deste cheirinho, não acham que terei razão. Provavelmente foi uma imprudência minha ter ido ler o Middlmarch a meio de leitura de romances como o V de Thomas Pynchon ou o 2666 de Bolaño. Agora acho que nunca irei chegar ao fim da leitura de ambos e que outros aparentados já não irão merecer sequer que os comece, a não ser que tenha de ser, por motivos profissionais.
Vou finalmente regressar ao V, prometendo já que é para pôr fim a esta crónica. É verdade que Profane ao fazer ioiô ao longo da costa leste se vai cruzando com uma fauna humana por vezes interessante. É verdade que o narrador arranca pedaços de prosa com qualidade aqui e ali e cito salpicadamente: “Profane dobrou a esquina. Como sempre acontecia, East Main, caiu-lhe em cima sem aviso prévio”. Eu percebo o que o aviso, quer dizer, pois a mim já me aconteceu as ruas cairem-me em cima com aviso e sem aviso. Assim, quando fiz o Costa a Costa desde S. Francisco até Nova Iorque subindo e descendo para não evitar os desertos e os canyons, foi com aviso prévio que caí em cima e dentro da Bourbon Street em Nova Orléans, mas já foi sem aviso prévio que me caiu em cima a Beale Street em Memphis. Na altura lembro-me muito bem que o episódio da Beale Street me fez pensar na pequeníssima evocação do que é a vida, feita pela Marguerite Yourcenar num texto da colectânea, O Tempo Esse Grande Escultor, quando, explorando a ideia de transitoriedade, fugacidade e precariedade escreve pela boca de um ‘thane’, chefe de clã, poeta e visionário:

“Creio que a vida dos homens na Terra, quando comparada aos vastos espaços de tempo de que nada sabemos, se assemelha ao voo de um pássaro que entrou pela janela de uma grande sala onde arde ao centro uma lareira (…), enquanto lá fora reina a invernia, com as suas chuvas e neves. O pássaro atravessa a sala num ápice e sai pelo lado oposto; vindo do Inverno, a ele regressa, perdendo-se aos teus olhos. Assim também a efémera vida dos homens de que não sabemos o que havia antes e o que vem depois”.

Obviamente que, com as devidas distâncias, assim me senti momentaneamente engolido para dentro de um cone de luz e conforto, vindo da noite e à noite regressando. Foi um puro instantâneo que porém depois prolonguei, estacionando algures e regressando à Beale Street para comer qualquer coisa ouvindo a boa música do sul e ouvindo uns tipos absolutamente anacrónicos a falar de blues, Muddy Waters, BB King e Elvis Presley: Confesso que foi hilariante e inesquecível.
Como a tripulação do contratorpedeiro USS Scaffold estava ausente, pois o navio tinha zarpado em direcção ao Mediterrâneo, andavam caras novas a servir nos bares da cidade “praticando os mais doces sorrisos de puta”, enquanto a essa hora o navio lançaria pelas chaminés negros flocos sobre os futuros ou já presentes cornudos. Por esse motivo teve Profane direito à sua Beatrice, mas a verdade é que os marinheiros chamavam Beatrice a todas as empregadas, tal como bebés indefesos, e todas as noites tinham direito a beber cerveja por torneiras de espuma de borracha em forma de seios, a que se chamava a grande mamada. Mas em menos de duas páginas entrou em cena a Pig que tinha uma Harley que nenhum polícia apanhava e uma Paola da qual saíam histórias, cada uma mais rocambolesca que a anterior, mas que Profane só acreditava pela metade porque, como ele dizia, “uma mulher é apenas metade de qualquer coisa que tem habitualmente dois lados”. Profane, ficou com ela apenas uma noite, o suficiente, no entanto, para lhe ensinar uma canção de um paraquedista francês, que era baixo e tinha a estrutura de Malta, isto é: “rocha e um coração imprescrutável”. Acreditem, isto é apenas o princípio. Há no texto muito mais pérolas como estas, mas, … quer dizer, o problema são as páginas, muitas, através das quais se multiplicam como moscas multidões de personagens masculinas e femininas além de ruas, bares, cidades, lugares, encontros e desencontros e acontecimentos de variadíssimo género, com outras narrativas dentro e essas também multiformes como a narrativa principal, numa proliferação neoplásica, e claro o que é demais cansa, até que desistimos. Eu desisti por volta da página 351 numa edição com mais de quinhentas. Por favor não me venham dizer que deveria ler o livro todo e sobretudo não o façam invocando questões de natureza ética, ou assim. Em jeito de compromisso direi que vale a pena ler uns capítulos desgarrados até por que se o leitor tiver lido as primeiras cem páginas por exemplo, depois já escusa de ler a eito. Vá lendo respigando aqui e ali porque irá sempre encontrando belos achados, provocatórios e inteligentes por vezes mesmo incandescentes. É o conjunto que desilude, como se não houvesse arquitectura prévia. É isso, ou eu sou talvez moderno de mais, para esta literatura, chamada pós-moderna. Que me perdoem.

11 Ago 2016

O que é a História?

Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica Linguagem e Política, Relógio D’Água, Lisboa 1992
Descritores: Filosofia Alemã, Ensaio, História, ISBN: 9727081770

[dropcap style=’circle’]W[/dropcap]alter Benedix Schönflies Benjamin, nasceu no seio de uma família judaica no dia 15 de julho de 1892 e suicidou-se em Portbou, 27 de setembro de 1940. É tradicionalmente e com alguma razão à designada Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, onde pontificaram outros grandes vultos da cultura alemã, mais tarde na diáspora, como Adorno Horkheimer, Eric From, Herbert Marcuse. Na sua obra, de espantosa originalidade, vislumbram-se as influências de autores marxistas como é o caso de Brecht, do marxismo em geral mas também de Heidegger e ainda do místico judaico Gershom Scholem. Profundo conhecedor da língua e da cultura francesa traduziu obras tão importantes como os Quadros Parisienses de Charles Baudelaire ou o  Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. A sua obra onde se combinam ideias aparentemente antagónicas do idealismo alemão, do materialismo dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo original para o pensamento contemporâneo, de ano para ano mais relevante. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica  de 1936 e as Teses Sobre o Conceito de História de 1940. Além destes textos e atendendo ao carácter, hoje incontornável da sua obra revolucionária e iluminada, eu destacaria ainda: Paris, Capital do século XIX (inacabado); A Modernidade e os Modernos, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975; Origem do Drama Barroco Alemão, trad. e pref. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984; Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação, 3ª ed., trad. Marcus Vinicius Mazzari, São Paulo: Summus Editorial, 1984; Estéticas do Cinema, ed., apres. e notas Eduardo Geada, trad. Tereza Coelho, Lisboa: D. Quixote, 1985; Obras Escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. S.P. Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1985; Obras Escolhidas, v. II, Rua de mão única, trad. de R.R. Torres F. e J.C.M. Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987; Obras Escolhidas, v. III, Chrales Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, trad. de J.C.M. Barbosa e H.A. Baptista, São Paulo: Brasiliense, 1989; Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos escolhidos, introd. Willi Bolle, trad. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, São Paulo: Cultrix, 1986; Diário de Moscou, pref. Gershom Scholem, ed. e notas Gary Smith, trad. Hildegard Herbold, São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Histórias e Contos, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 1992; Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por Volta de 1900, pref. Susan Sontag, Lisboa: Relógio d`Água, 1992; O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, trad. pref. e notas de Márcio Seligmann-Silva , São Paulo: Iluminuras/ EDUSP, 1993; Correspondência: Walter Benjamin, Gershom Scholem, rev. Plinio Martins Filho, São Paulo: Perspectiva, 1993; Benjamin, Walter. Kafka. Trad. e introdução Ernesto Sampaio. Lisboa: Hiena Editora, 1994; Os Sonetos de Walter Benjamin, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1999; Leituras de Walter Benjamin, org. Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: FAPESP, 1999; Origem do Drama Trágico Alemão, ed., apres. e trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004: Imagens de Pensamento, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004; Passagens, org. W. Bolle, São Paulo: IMESP, 2006; Benjamin, Andrew, A Filosofia de Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997.
Da sua obra permito-me glosar livremente um célebre texto sobre o que é a História.

«A história é um anjo que voa de costas em direcção ao futuro».
(É uma imagem sedutora pensar a História sob a forma de um anjo voando. É também uma imagem apropriada porque imediatamente nos transmite o carácter fabuloso da História). 4816P10T1

1º ANDAMENTO

O anjo às vezes voa devagar, outras vezes depressa. Quando o vento, que sopra do Paraíso, sopra com mais força, o anjo bate mais as asas e muitas coisas caem, pessoas e não só; mas o anjo continua, embora não impassível. A verdade é que não pode deixar de continuar voando, sempre em direcção ao futuro. Pois toda a gente sabe que o vento que o empurra ou aspira é o vento do progresso.
O destino do anjo é como o das nossas vidas. Ele aliás é a nossa vida e todas as vidas de todos os tempos e lugares. E afinal todos nós vamos para o futuro agarrados às asas de um anjo. Todos, contudo, num dado momento caímos e rolamos desamparados para o imenso abismo do passado. O mais que podemos esperar, e já não será pouco, é que o anjo incline para baixo o olhar e uma lágrima sua possa rolar pelo angélico rosto.
O anjo voa de costas. Inevitavelmente. O vento forte que sopra do Paraíso empurra-o permanentemente para diante, isto é, em direcção ao futuro, mas ele voa de costas porque a História é a omnipresença do passado nos seus olhos alucinados. A História, sem desprimor, é a lucidez que só o passado pode ter…
Todas as vidas são também o seu passado e o passado é essa massa enorme de detritos, destroços e escombros, tudo isso que o anjo deixa para trás e fica a ver, umas vezes longe, outras vezes perto. E a imensa sombra que ele deixa atrás de si e que é visão perpétua nele, só pode visitar-se na imaginação.

2º ANDAMENTO

Ainda bem que assim é. A História só nos apaixona porque fala de tempos e de lugares que não podemos visitar realmente. Em boa verdade, comove-nos mais o teatro da História do que a realidade. Face ao real ficamos paralisados, incapazes de reagir ou até de chorar, mas face à arte sentimos toda a revolta moral e todas as grandes emoções estéticas que sendo também éticas educam a nossa consciência. É por isso que a História sendo arte é tão importante na formação da consciência cívica e moral da juventude.
A História é o passado, e o passado deixa em todas as vidas um lastro existencial, afectivo e nostálgico, que não se esgota e que alimenta a incerteza do presente e do futuro. Há coisas que não se podem olhar de frente, disse La Rochefoucaud: a morte e o Sol e provavelmente o futuro, acrescentaria eu. O futuro deve ser um clarão medonho, um clarão vazio e assustador, já que o próprio anjo entra nele sem o ver. Quando o vê é já passado.
Mas não se pense que é por medo ou falta de coragem que o anjo empreende esta viagem para o futuro de costas, de modo a poder ver apenas o passado. É que o anjo simbolizando a História simboliza a própria alma humana. O enorme peso das experiências acumuladas e sempre a acumular-se, torna-se um fardo tão pesado que na alma saturada não há espaço para as experiências do futuro, porém inevitáveis. A saturação da alma só pode resolver-se explodindo em nostalgia e memória.
Diz-se que o anjo gostaria de voltar para poder consertar as coisas. Diz-se ainda que no Princípio o anjo está parado, suspenso no ar, de asas desfraldadas. E que é o progresso, quer dizer o vento que sopra do passado em direcção ao futuro, que o empurra contra a sua própria vontade. De um anjo é mais próprio o repouso. Os anjos deviam ser contemplativos como são os deuses. Eu penso porém que o anjo não quereria ficar para arranjar as coisas e muito menos regressar. Para poder simbolizar a História, ele não pode ser senão esse olhar magoado sobre o passado, essa imensa consciência do mal, essa visão do abismo e das trevas, a que não pode fugir, nem fechar os olhos, nem desviá-los, pois essa é a sua condenação, o seu destino, quem sabe. A História é feita de angústia e lucidez. É preciso uma enorme tristeza, para ressuscitar, dos escombros e dos abismos, a sabedoria amarga que vai omnipresente e cristalina nos olhos do anjo.

3º ANDAMENTO

O passado é um lugar onde se concentra uma grande energia sentimental. No fundo o paradigma de todos os passados, o passado por excelência está na alma. É a alma. E daí a Saudade.
Podemos imaginar, agora, a nostalgia do olhar do anjo, abraçando o passado e nele vendo todo o sofrimento, sabendo que voa para dentro do futuro, como quem é aspirado para dentro de um cone de luz onde de repente se faz treva. Ele voa, deixando para trás a imensidão de uma catástrofe, que se torna primeiro penumbra e depois se transforma em sombra. Continuamente. A História, quer dizer o anjo, não quer que essa sombra se transforme em treva definitiva, em definitivo esquecimento. E por isso o anjo para ela olha com os olhos fixos.
Em tudo o que o anjo vê se esconde um princípio de explicação e de compreensão. «Nada daquilo que alguma vez aconteceu deve ser considerado como perdido para a história». Louvada seja a concentração do anjo, pois é no passado que estará a redenção. Daí a Saudade de novo.
Mas o anjo voa velozmente. A verdade do passado é um clarão que logo desaparece. A boca iluminada dos historiadores «no próprio instante em que se abre fala já no vazio». A atenção do anjo, sobre o passado, a atenção que se deve ao anjo, nunca será excessiva.
Que perigos nos espreitam? Só o passado, só a visão aterradora do passado que brilha nos momentos de perigo, sob a forma de uma recordação súbita, pode proteger-nos, «Diante do inimigo, nem os mortos estão seguros».

E PARA O ANJO É SEMPRE AGORA, SOB OS SEUS OLHOS ESCANCARADOS, QUE TUDO ESTÁ A ACONTECER. ELE TAMBÉM PARECE MEXER OS LÁBIOS COMO SE FOSSE FALAR, MAS PRESUME-SE QUE ESTEJA PARALISADO PELA EVIDÊNCIA DA CATÁSTROFE E PELA ACUMULAÇÃO DE POEIRA QUE DOS DESTROÇOS SOBE AO CÉU.

Ser agora seria ser talento e hora.
Mais tarde ou mais cedo será hora.
Tarde ou cedo o Ser será Agora.

*Variações em torno de um tema de Paul Klee, Walter Benjamin e Laurie Anderson

4 Ago 2016

Ajuste de contas

Chatwin, Bruce, Na Patagónia, Quetzal Editores, Lisboa,1989
Descritores: Literatura Inglesa, Literatura de Viagens, Literatura de Aventuras, Literatura de Memórias, 286 p.:23 cm, tradução de Jose Luis Luna.
Cota: 821.111-992 Cha

[dropcap style=’circle’]B[/dropcap]ruce Charles Chatwin, nasceu em Sheffield no dia 13 de maio de 1940, vindo a falecer em Nice a 18 de janeiro de 1989. Bruce viveu a sua infância em West Heath, nas West Midlands, em Birmingham, onde seu pai era advogado, e estudou no Marlborough College, no Wiltshire.
Depois de deixar o Marlborough College em 1958, Chatwin mudou-se para Londres, a fim de trabalhar como porteiro no departamento de obras de arte do leiloeiro Sotheby’s. Graças à sua apurada acuidade visual, tornou-se depressa um dos peritos da Sotheby’s em particular no domínio da arte impressionista. Acabaria por ser nomeado, mais tarde, director da empresa.
No final de 1964, Chatwin começou a padecer de problemas de visão, parecendo-lhe que isso deveria ter relação com a análise detalhada das obras de arte. Foi-lhe diagnosticado estrabismo latente e recomendado um período de descanso de seis meses. A conselho do seu oftalmologista, viajou até ao Sudão. No regresso, Chatwin desinteressou-se do mundo da arte, voltando agora a sua atenção para a arqueologia, pelo que deixou a Sotheby’s no início do Verão de 1966. Em Outubro do mesmo ano, matriculou-se na Universidade de Edimburgo para estudar arqueologia.  No entanto, apesar de ter ganho o Wardrop Prize pelo melhor projecto de primeiro ano, achou o rigor do estudo académico da arqueologia muito enfadonho, tendo permanecido apenas dois anos na cidade e abandonando a Universidade sem se licenciar. Em 1972, Chatwin foi contratado pela Sunday Times Magazine como assessor para os temas de arte e arquitectura. A sua contribuição para a revista permitiu-lhe cultivar as suas competências de narração e viajar para escrever artigos sobre temas como emigrantes argelinos ou a Grande Muralha da China e ainda entrevistar personalidades tão diversas como André Malraux em França e Nadezhda Mandelstam na União Soviética. Nadezhda Mandelstam foi casada com o grande poeta russo Ossip Mandelstham, fundador do acmeísmo, sendo ela própria uma escritora importante, autora da célebre memória sobre os últimos anos do marido no campo de concentração estalinista, onde faleceu, memória essa que ficou imortalizada pela frase, Esperança contra esperança. 21716P14T1

Ajuste de contas

Em 1972, Chatwin entrevistou a arquitecta e designer Eileen Gray, então com 93 anos, no seu atelier de Paris, onde reparou no mapa da Patagónia, na América do Sul, que ela tinha pintado. “ Sempre quis ir até lá”, disse Bruce. “Também eu”, respondeu ela. “Vá lá por mim”. Dois anos mais tarde, em Novembro de 1974, Chatwin voou para Lima, no Peru, e um mês depois estava na Patagónia, onde se demorou seis meses. Essa viagem resultou no seu livro Na Patagónia (1977), que o lançou como reputado escritor de viagens. Mais tarde, contudo, os residentes da Patagónia viriam a contrariar os eventos descritos no livro de Chatwin. Seria a primeira vez, mas não a última, que conversas e personagens descritos por Chatwin, foram alegadamente ficcionalizados.
Trabalhos posteriores incluíram O Vice-rei de Ajudá (The Viceroy of Ouidah), um estudo ficcional sobre o traficante de escravos Francisco Félix de Souza – que, no livro, é chamado Francisco Manuel da Silva – e as suas actividades no Benim. Para The Songlines, Chatwin viajou até a Austrália no intuito de elaborar a tese de que as canções dos aborígenes australianos são resultantes do cruzamento de um mito da criação, de um atlas e da história pessoal do homem aborígene. On The Black Hill situa-se nas colinas das quintas das fronteiras do País de Gales, descrevendo as relações entre dois irmãos, Lewis e Benjamin, que crescem isolados da história do século XX. O livro ganhou o James Tait Black Memorial Prize. Utz, o seu último livro, resulta da observação ficcional da obsessão que leva as pessoas a coleccionar objectos. Situado em Praga, o romance descreve a vida e a morte de Kaspar Utz, um homem obcecado pela colecção de porcelana de Meissen.
Chatwin estava a trabalhar num conjunto de novas ideias para futuros romances, incluindo um épico transcontinental, provisoriamente intitulado Lydia Livingstone, quando morreu, em 1989. As suas cinzas foram espalhadas perto da capela bizantina de Kardamyli no Peloponeso  — perto da casa de um dos seus mentores, o escritor Patrick Leigh Fermor.

Falar de Bruce Chatwin é convocar o mais importante dos escritores de viagens e trazer aqui o texto Na Patagónia, significa começar pela sua melhor narrativa. A obra não é mais do que “uma viagem comovente pela Patagónia e Terra do Fogo para descobrir que o fim do mundo não existe. E que a aventura recomeça”.
A remota Patagónia, uma terra «no fim do mundo» é habitada por figuras errantes e exiladas, desde gaúchos a foragidos, de mineiros peculiares até aos índios da Terra do Fogo. “Fascinado por este sítio desde a infância, o autor atravessa toda a região, desde o Rio Negro até Ushuaia, a cidade no extremo sul da Argentina e do continente, captando o espírito da terra, da sua história e da sua gente, e conferindo-lhe uma expressão poética e intensa”.
Num escrita prodigiosa, plena de descrições maravilhosas e histórias intrigantes, Na Patagónia narra as viagens de Chatwin através desse lugar mítico e remoto, elaborando ao mesmo tempo narrativas paralelas que tornam o livro inclassificável.
Este livro de Chatwin, livro que é como já disse, mas reitero, a sua obra prima, faz parte do Plano Nacional de Leitura em Portugal e eu considero que se trata de uma óptima escolha. Desde dinossauros até à inesperada Calamity Jane tudo aparece ao longo desta narrativa e sempre de forma surpreendente, para não dizer por vezes hilariante. Calamity Jane, aliás Martha Jane Canary-Burke, foi provavelmente quem mais gostei de encontrar neste livro, dada a minha memória juvenil de livros aos quadradinhos de cowboys, pistoleiros, xerifes, aventureiros, garimpeiros e outros pioneiros americanos. É que se considera, a tradição pelo menos outorga-o, que a Calamidade terá sido casada com Wild Bill Hickok, aliás James Butler Hickok, que é nem mais nem menos que o celebérrimo, pelo menos para mim, xerife de Kansas e Nebraska; que a dada altura se juntou ao não menos célebre Bufalo Bill, aliás William Cody, que os índios designavam por Pa-e-has-ka, ou seja o ‘Cabelos Compridos’ e que o acompanhou até nos seus espectáculos por circos, rodeios e feiras. Que Búfalo Bill fosse o Pa-e-has-ka, isso a mim sempre me provocou alguma perplexidade e confusão, ou mesmo ciúme, por interposta pessoa, claro, pois Kit Carson, não tinha os cabelos menos compridos que Búfalo Bill ou que o próprio Wild Bill Hickok, e até foi casado com uma índia de nome Waa-nibe, mas enfim, preferências…
A verdade é que não é bem assim, pois os factos provam que Kit Carson foi demasiado mitificado pela banda desenhada e afinal não tinha aquele ar de cavaleiro romântico, bem pelo contrário, além de que o seu comportamento militar, em particular contra os Navajos, não foi nada de acordo com os valores do heroísmo propagandeado, mas antes de um verdadeiro anti-herói, cobarde e cruel. Por outro lado, e volto a Hickock, também se terá celebrizado por se envolver amiúde em tiroteios e duelos, explorados pela imprensa sensacionalista, e terá morrido, ao que consta, durante um jogo de poker num saloon em Dakota o que acrescenta uma nota mítica e romântica à sua vida e à sua lenda. Ao que parece, quando foi assassinado tinha na mão um par de ases, uma dama e um par de oitos, mão essa que ficou para sempre conhecida como a Mão do Homem Morto.
Que seja desculpado este austero ajuste de contas tardio com os meus heróis juvenis; se a vingança é um prato que se serve frio a verdade é um prato que se prova tarde, portanto sempre um pouco requentado. Aproveito para confessar que a desilusão foi completa pois os meus maiores ídolos que na banda desenhada eram desenhados de uma certa maneira não tinham nada a ver com a realidade. É o caso de Davy Crockett e Jim Bowie que nos livros aos quadradinhos nos apareciam como heróis solitários, abnegados e amigos dos índios e depois afinal estiveram todos ao serviço do exército americano, do general Custer e de outros colaborando no enorme genocídio hoje sobejamente conhecido e documentado. Parece que, no caso destes dois, morreram ambos na célebre batalha de Álamo, às mãos dos Navajos, justamente. Haja Deus! 21716P14T1
Na minha galeria salva-se Matt Dillon, o Marshal de Dodge City, mas Matt Dillon nunca existiu e a sua vida resulta da criação ficcional de John Meston representada por William Conrad na rádio e James Arness, na televisão. Matt, era assim um herói à medida de um público tal como Roy Rogers por exemplo ou Buck Jones, o xerife de Alkaly City. Mas foi talvez o herói americano do Oeste mais à minha medida. Tanto na rádio como na televisão, Matt Dillon permaneceu firme, honesto, absolutamente incorruptível, e dedicado à causa de impor a lei genuína na região de Kansas, à época verdadeira fronteira entre a América “civilizada” e as pradarias violentas e selvagens do oeste americano. Ele raramente agia de forma impetuosa, além de que era invariavelmente justo e imparcial no exercício das suas funções, mesmo quando era necessário subordinar os seus pontos de vista pessoais relativos a pessoas ou factos. Eu devo confessar, porém, que só conheço o Matt Dillon, dos livros aos quadradinhos, onde penso que ele aparece ainda mais genial, embora e muito a meu gosto, mais sombrio, mais pessimista e sobretudo mais triste. Ele é um dos alter egos da minha adolescência juntamente com o Lobo das Estepes de Herman Hess.
Voltemos a Chatwin e ao Na Patagónia pois estes não desiludem. O livro é um obra que estimula intensamente a nossa sede de aventura, o nosso imaginário juvenil, a vontade de partir à descoberta no fim de contas de nós mesmos. E no caso de Bruce Chatwin isso é muito evidente uma vez que o que desencadeou a viagem exploratória foi o facto de o nosso escritor ter encontrado um pedaço de dinossauro no espólio do avô que também teria andado, quando era jovem, pelas Terras do Fogo, no extremo sul do Continente Americano. Bruce Chatwin encontrou assim esse espólio no espólio do avô e a partir dessa pesquisa tudo se vai desenrolar para nosso gáudio de modo surpreendente, sempre misterioso e volto a insistir, hilariante. Chatwin manipula como ninguém o espírito da viagem, o espírito moderno e contemporâneo do desassossego. O bom gosto e o culto agónico do fait divers, fazem dele um mestre no género. Na Patagónia lê-se com um sorriso rasgado e uma lágrima ao canto do olho. O que é que se pode esperar mais de um livro de viagens que é ao mesmo tempo um livro de memórias e de aventuras.
Como a Patagónia e as Terras do Fogo sempre foram um lugar dilecto dos aventureiros da América do Norte, o que é muito compreensível, o autor vai cruzar-se imaginariamente com as figuras mais improváveis da mitologia americana, conseguindo contudo tornar as suas memórias verosímeis. A dada altura a propósito de Evans e Wilson, dois conhecidos assassinos que terão matado entre outros Llwyd ApIwan, conhecido pioneiro galês em terras da Patagónia, onde foi engenheiro, agrimensor, e explorador incansável, muito ligado à colonização galesa na Argentina, Bruce Chatwin põe-nos no encalço de Butch Cassidy e Sundance Kid. É que Wilson, que era mais novo que Evans, mas melhor com as armas, teria uns 25 anos e media 1,75 e era esbelto, de cabelos claros, queimado do sol e nariz curto e recto e que para cúmulo caminhava com o pé direito voltado para fora e finalmente que, tudo leva a crer,  tinha sido companheiro de Duffy (Harvey Logan) na Patagónia e em Montana. Este Wilson terá estado envolvido num assalto a um comboio; o que, para Chatwin, só podia ter sido o assalto ao Comboio Wagner, do dia 3 de Junho de 1901. Daqui parte, ele, para uma elocubração fantástica sobre a parte final da vida dos dois aventureiros lendários, Butch Cassidy e Sundance Kid, imortalizados no filme homónimo de George Roy Hill por Paul Newman e Robert Redford. Agora o que eu não esperava era vir a encontrá-los nas páginas desta obra de Chatwin, mas como neste livro tudo é possível… depois de Calamity Jane só mesmo Butch Cassidy e Sundance Kid.
Os pormenores são, como se desconfia, de ir às lágrimas e é aí que a meu ver reside o génio do nosso narrador. A mistura entre o documental ficcionado e o ficcional documentado excessivamente, confere à narrativa um sabor a incredulidade extasiada que é deveras surpreendente, acreditem.

21 Jul 2016

A vida é um palco

Tchekov, Anton, Contos e Narrativas, Estúdios Cor, Lisboa 1972
Descritores: Literatura Russa, 402, [3] p.:20 cm, Tradução Lopes Azevedo
Cota: C-11-4-235

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]nton Pavlovitch Tchechov, nasceu no dia 29 de janeiro de 1860 e faleceu na Floresta Negra em Badenweiler, no dia 15 de julho de 1904. Cursou e exerceu medicina toda a vida, considerando que a ciência médica era a sua mulher legítima enquanto que a literatura, a que se dedicou também toda a vida, era uma espécie de amante. Abençoada amante, apetece dizer.
Dentro da literatura evidenciou-se a sua arte de dramaturgo e contista, genial em ambos os registos. Há duas notas prévias que se devem considerar quando se pretende tentar escrever sobre Tchekhov. Uma é o facto de que a sua técnica do uso do fluxo de consciência é absolutamente original e precursora e aparece na obra com uma naturalidade, única na história da literatura, que a torna imperceptível. A outra é a deliberada ausência de juízos morais o que produz nos textos a aparência de uma espécie de inércia, do ponto de vista axiológico, embora jamais a tenham. Como é que ele o consegue!? Aí residirá o maior mistério da genialidade da sua forma de expressão.
Tchekhov é considerado um dos maiores contistas de todos os tempos mas, para mim, o seu teatro não lhe fica a dever nada. Do seu teatro eu destaco além da Gaivota: O Tio Vânia, As Três Irmãs e O Cerejal. Alguém falou de um teatro de humores e de uma vida submersa no texto; nada mais certeiro. Tolstoi detestava o teatro de Tchekhov, mas detestava de igual modo Shakespeare, ora como sabemos, no melhor pano cai a nódoa.
Possuo o sentimento de que não sou capaz de escrever sobre Tchekhov. Seguramente saberei e serei capaz de falar de Tchekhov e de escrever sobre ele na generalidade da sua vida e obra, daquilo que se tornou trivial acerca dele. E ainda lhe poderei acrescentar muito do que é possível ler sobre ele e que é vasto, e às vezes muito bom, como os textos iluminados de Nabukhov, por exemplo, mas escrever sobre ele de um modo absolutamente pessoal, tenho sérias dúvidas. E não é porque não o compreenda, ou porque não goste, ou outro tipo de sentimentos assim. É uma espécie de bloqueio que resulta do facto de que o compreendo tão profundamente, como nenhum outro escritor, e por isso não sou capaz e portanto não sei. A impotência é uma forma de sabedoria da não sabedoria.
A parte da obra de Tchekhov que é responsável por esse bloqueio, por essa impotência, é o teatro, que é também a parte da sua obra onde o indizível se apresenta mais nítido. Um indizível nítido parece um paradoxo, mas não é, atrevo-me a dizer.
O teatro de Anton Tchekhov que já li abundantemente e que também já vi no palco e no cinema interpela-me com tal intensidade que fico reduzido a uma pura emoção, mas a uma emoção vencida e jamais triunfante. Uma emoção que promove a desistência e o silêncio. Eu sei o que ele quer exprimir, nem tenho dúvidas sobre isso, mas não sou capaz de o definir pacificamente. Em última análise porque o que ele quer dizer e exprime, à sua maneira, é justamente o que a vida não pode exprimir senão assim: um arrepio sem palavras, um cenário omnisciente sem legendas. A minha paralisação verbal é quase da ordem do respeito cerimonial. Faço, pode-se dizer, um silêncio expressivo, um silêncio que diz tudo. 14716P13T1
A primeira peça que li dele foi a Gaivota e depois disso já vi a Gaivota, tanto no teatro como no cinema e a sensação foi sempre a mesma, aquilo é a vida, não a vida concretizada, realizada e também verbalizada, mas a vida do desejo não realizado, do sonho apenas entrevisto, de um sentimento muito vago do falhanço, da perda, do irreparável. Parece que Tchekhov deixou de se dedicar ao teatro depois da péssima reacção à apresentação de Gaivota. Eu compreendo a má reacção, pelos mesmos motivos que enformam este meu texto. A Gaivota é provavelmente o texto do escritor em que tudo o que tenho vindo a dizer e espero dizer ainda até ao fim deste breve excurso, se confirma de modo sublime. A Gaivota é todo o mistério do génio de Tchekhov condensado, a sensação poética e existencial do ‘por viver’. Este ‘por viver’ não remete para um futuro ou um passado, é sempre no presente que a falha está presente e presentifica a vida com esse sentimento de falhanço antecipado.
Essa é a sensação de todas as outras peças também, verdadeiras epifanias do que é evanescente, volátil, que a vida anuncia e nos rouba, e isto permanentemente ao longo dela, … não é sempre o mesmo o que se adia, o que fica suspenso, o que se perde, ou mesmo só o anúncio reiterado dessa perda. Não é sempre o mesmo empiricamente falando, mas é de facto sempre o mesmo, enquanto metamorfose ontológica da incompletude e da carência. É sempre o mesmo, no fim de contas. E é sempre a mesma a emoção não dramática dessas perdas sucessivas. O dramático reside na ausência de dramatismo, nas peças de Anton Tchekhov, e isso consubstancia uma suavidade sofrida, uma tristeza não convulsiva, … E é esta ausência de pathos que me intriga e me perturba e me paralisa.
Eu evidencio a Gaivota em detrimento do Tio Vânia, por exemplo, apenas porque a questão da arte está na Gaivota de forma mais explícita. Pressente-se em toda a obra de Tchekhov uma certeza: só a arte poderá, se é que pode, superar as aporias existenciais. A vida é um novelo embaraçado que a vida não desembaraça. A arte vem em seu auxílio, procurando superar as antinomias irresolúveis, porém percebe-se que a fronteira entre a arte e a vida não é nítida e que a arte, ela própria, se embrulha em outras antinomias tão irresolúveis quanto aquelas. O novelo existencial prevalece agora num plano sublimado, onde as metalinguagens não logram o efeito de distanciamento procurado e esperado. É sempre a vida que cobre o campo de todas as referencialidades …
Contudo esse Tio Vânia que usei como exemplo para contrapor A Gaivota, é provavelmente a peça onde o que referi a propósito do sentimento de perda é mais expressivo e melhor conseguido. Os anseios fazem corpo com as frustrações, as tentativas de regeneração, condenadas ao malogro, exprimem-se em ideais de fuga e abandono e por fim o desgaste acaba por conduzir ao triunfo da rotina, que exprime o sentimento de derrota, de um epos dos vencidos, pois o que se perde jamais se resgata e apesar das alterações, que são sempre superficiais, prevalece o rumor profundo do que não muda e se torna asfixiante.
Sem falsa modéstia talvez tenha acabado por escrever sobre Tchekhov aquilo que de facto será o essencial da sua obra literária justamente na sua essência, uma essência não substancial, despida de ênfase ou retórica, aparentemente banal e prosaica mas de uma intensidade dramática avassaladora e tanto mais estranha quando e porque é plenamente conseguida com tão escassos recursos. Aí reside o génio absoluto do dramaturgo e contista russo. No fim de contas acaba por se tratar de uma ironia extrema, num autor que cultivou a ironia como provavelmente mais ninguém.

Manuel Afonso Costa

14 Jul 2016

Minimalismo e realismo

Carver, Raymond, A Catedral, Teorema, Lisboa 1987
Descritores: Literatura norteamericana, Contos, Stories without story, minimalismo, Tradução de Carlos Santos, 191, [5] p.:21 cm
Cota: C-10-5-222

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]aymond Carver nasceu no dia 25 de Maio de 1938 em Clatskanie no estado de Oregon e faleceu a 2 de Agosto de 1988 em Port Angeles, Washington DC. Cresceu em Yakima, Washington. Carver estudou por um tempo com o escritor e teórico John Gardner na Chico State College em Chico, Califórnia. Publicou um grande número de contos em diversos periódicos, incluindo The New Yorker e Esquire, contos que mais tarde foram reunidos em livros. As suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes colecções norte-americanas, como Best American Short Stories and O. Henry Prize Stories. A escrita de Carver é normalmente associada ao minimalismo e ao chamado realismo sujo (Dirty Realism). O seu editor na Esquire, Gordon Lish, foi fundamental no processo da escrita minimalista de Carver. Por exemplo, quando Gardner aconselhava Carver a usar 15 palavras ao invés de 25, Lish aconselhava Carver a usar 5 no lugar de 15. Durante este tempo, Carver também submeteu suas poesias a James Dickey, então editor de poesia da Esquire.

Minimalismo e realismo

Da obra de Carver destaco os contos que em Portugal apareceram em colecções com títulos muito originais: Queres Fazer o Favor de te Calares, De Que Falamos Quando Falamos de Amor, além da Catedral, e de Três Rosas Amarelas, título de um dos contos desta colecção, provavelmente o melhor conto de Carver e que glosa os últimos dias de vida de Anton Tchekov, na cama de um hospital em Badenweiler, na Floresta Negra. A sua mulher, Olga narrou assim os momentos finais: “Anton sentou-se extraordinariamente erecto e disse em voz alta e clara (embora ele não soubesse quase nada de alemão): Ich sterbe (“Estou morrendo”). O médico acalmou-o, pegou uma seringa, deu-lhe uma injecção de cânfora e pediu champanhe. Anton tomou um copo cheio, examinou-o, sorriu para mim e disse: ‘Fazia um bom tempo que não bebia um copo de champanhe. “Ele bebeu, e inclinou-se suavemente para a esquerda, e eu só tive tempo de correr em sua direcção e de colocá-lo na cama e chamá-lo, mas ele tinha parado de respirar e estava dormindo tranquilamente como uma criança”. Mas o final, quer dizer as últimas dez páginas de Três Rosas Amarelas, é simplesmente sublime.
Mas não é desse livro, nem desse conto que se trata agora. Agora é de um realismo mais sujo e de contos mais minimalistas e mais americanos. Três Rosas Amarelas, provavelmente por causa do tema é uma digressão pelo realismo à maneira de Tchekhov, existencial mas limpo, minimalista o quanto baste, irónico, subtil, contudo intensamente lírico, como só o génio russo pôde dar. Os contos da Catedral são até literariamente mais difíceis de lograr, porque lhes falta o tema, nem me estou sequer a referir à elevação do tema. Não! Apenas ao tema tout court, quer dizer, um assunto simplesmente. Os contos da Catedral são sobre nada e coisa nenhuma, são sobre o vazio existencial, sendo eles mesmo vazios. Então como é que produzem um efeito não só literário como emotivo. Onde nos tocam, por onde nos tocam e como nos tocam os contos de Carver? Era sobre isso que eu gostaria de tentar dizer qualquer coisa. Não tenho sequer a ilusão de chegar a um porto desta vez, o deserto é imenso e é preciso atravessá-lo em condições difíceis. 7716P14T1
Ezra Pound disse algures, eu sigo umas notas avulsas que andam por aqui no meio dos meus livros, disse, dizia, que: “a precisão sem concessões é a única moralidade da escrita”. Ora nisso estaria Raymond Carver de acordo e o seu editor ainda mais, por maioria de razão. Quando portanto, e volto a repetir, Gardner disse a Carver, a propósito da análise de um parágrafo concreto de um manuscrito qualquer, que usasse 15 palavras em vez de 25 e o editor o aconselhou a usar apenas 5, estariam ambos a empurrar a obra de Raymond Carver para o domínio estético circunscrito pelo aforismo poundiano. Parece-me que ficamos assim conversados acerca desse ponto, do minimalismo e do rigor. Mais do que rigor é de puro ascetismo e disciplina que se trata.
A mim o que me cativa em Carver é assim o que fica por dizer, os buracos na narrativa, muitas vezes explícitos e essa pobreza quase ostentatória que tanto me comove. Há por outro lado brechas, rasgões por onde entra o frio e isso além do mais incomoda e pode fazer sofrer, talvez a meias com um desconforto tímido, porém as brechas no discurso acordam-nos e estimulam uma resistência ao cansaço e uma vontade de participação. Estou a ser lacónico, pois o que me cativa em Carver é afinal tudo e por isso ele ocupa um lugar nuclear na minha relação com a literatura contemporânea. Há uma época da minha vida, cujos contornos existenciais se adequavam às características destas short stories without story, na medida em que também a minha experiência vital ia no sentido de uma deriva com episódios inconclusivos. Quando por acaso os acasos me colocavam na senda de uma narratividade mais consistente e mais densa eu próprio me encarregava de a sincopar ou de a esvaziar até. Foi o tempo em que para além de Raymond Carver eu lia David Leavitt e Bret Easton Ellis e saía de salas de cinema a meio para voltar e acabar de ver os filmes dias mais tarde. A desestruturação da realidade, a sua desconstrução em partes, conferia ao meu modo de vida um sentimento que eu pensava na época que era mais intensamente poético. Mas de tudo o que ficou de uma forma mais perene foi afinal a leitura de Raymond Carver, e através dos seus textos, a cristalização de uma ideia de radical incomunicabilidade dos sentimentos, em particular e por maioria de razão, do sentimento de solidão.
Em Raymond Carver, nunca há foguetório e muito menos suspense e clímax final. O texto vai-se deixando ler por desfastio, porém deixar de ler nem pensar, como se o ‘nada acontecer’ fosse uma droga. Como, não sei. E já terei dito quase tudo o que sou capaz. Carver vai entrando e vai forçando uma conversa interior, um monólogo; as suas propostas são muito abertas e precisam de nós para adquirir, ganhar sentido, quando damos conta estamos atolados até ao pescoço. O conto, a Catedral, que dá nome ao conjunto é muito emblemático pois o personagem principal é cego e sendo amigo da mulher de Carver vai a sua casa para conversar. Carver não está nada à vontade a falar com um cego. Durante algum tempo os três, o anfitrião, a mulher e a visita, interagem, comendo, bebendo, fumando e conversando, depois a mulher adormece no sofá e ficam apenas os dois homens disponíveis para continuar a conversar, o anfitrião e a sua estranha visita. Nesta altura a interação torna-se mais complicada sobretudo quando a propósito de um programa de televisão em que se fala de catedrais, o cego interpela o anfitrião no sentido de que ele lhe fale de como são as catedrais, … É aí que a incomunicabilidade tão cara às personagens de Raymond Carver explode, mostrando neste caso que aquele que vê não é menos cego que o cego. É aliás o cego que, a dada altura, lhe guia a mão, para que ambos desenhem uma catedral de olhos fechados, digamos assim. De facto, o anfitrião fecha os olhos para conseguir adquirir a sensação de não estar dentro de nada, o que é muito expressivo, uma vez que é isso o que as personagens de Carver parecem exprimir habitualmente, que estão sempre à beira de naufragar, embora dentro de nada, ou seja, à beira de naufragar dentro do vazio, de um fluido que não existe e contudo, ao mesmo tempo, rodeadas de um excesso de tudo, de ruídos, de destroços, de objectos, de sentimentos excessivos, de frases sincopadas, de pedaços de comunicação apócrifa, metrópoles de adereços descontextualizados, de puros detritos sem sentido.

7 Jul 2016

Segredos da existência

Roy, Arundhati, O Deus das peguenas coisas, ASA, Porto, 1999
Descritores: Literatura, Índia, 301 p., ISBN: 9724119378 Cota: 821.21-31 Roy

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]elo e comovente, “O Deus das Pequenas Coisas” é a história de três gerações de uma família de Kerala, Índia. Os gémeos Estha e Rahel, a sua mãe, avó, tio, prima e Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. Mas, numa noite de Junho, os fantasmas regressam à casa da História.
A história começa no estado de Kerala, no Sul da Índia, onde coabitam grandes fés: cristianismo, hinduísmo, islamismo e marxismo. Ali, em 1969, na estrada para Cochim, um Plymouth azul fica retido no meio de uma manifestação de trabalhadores. No carro estão os gémeos Rahel e Estha, então com sete anos – e assim começa a sua história. Os dois crescem entre caldeirões de geleia de banana e pilhas de grãos de pimenta, na fábrica da avó cega. Armados com a inocência invencível das crianças, tentam inventar uma infância à sombra da ruína que é a sua família; a mãe, a solitária e adorável Ammu, o delicioso tio Chacho, a inimiga Baby Kochamma e o fantasma de uma mariposa que um dia pertenceu a um entomologista imperial. Rahel e Estha descobrem que As Coisas Podem mudar num só dia, que as vidas podem ter o seu rumo alterado e assumir novas, e feias, formas. Descobrem que elas podem até deixar de ser para sempre.
Aqui vai um cheirinho delicioso de O Deus das Pequenas Coisas:
“Rahel chega a Ayemenem numa tarde chuvosa de Junho – as monções começaram. Maio já vai longe e o cheiro dos frutos maduros também. A vegetação parece subir enroscada nas paredes quando Rahel entra em casa, uma casa vazia com «a varanda da frente deserta». «O Plymouth azul-celeste com barbatanas cromadas ainda estava parado lá fora e Baby Kochamma ainda estava viva lá dentro».
Rahel regressa a casa, vinda da América, para uma viagem pelo passado, as memórias que marcaram para sempre a família que a amou e a desprezou. Para lembrar a mãe, Ammu, que amava de noite o homem que os filhos amavam de dia – Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. E para reencontrar Estha, o irmão gémeo – «gémeos biovulares; ‘dizigóticos’, chamavam-lhes os médicos» –, que se refugiou numa pesada mudez desde que «tudo» aconteceu”.
Assim começa O Deus das Pequenas Coisas, …
Mas quem é esse Deus das Pequenas Coisas? “O deus das pequenas coisas é a inversão de Deus. Deus é uma coisa grande e está sempre numa posição de domínio e de controle. O deus das pequenas coisas pode ser a forma como as crianças vêem as coisas ou a vida dos insectos nos livros, os peixes ou as estrelas – é um não-aceitar do que pensamos ser as fronteiras dos adultos”, explica Roy.
Em resumo, O Deus das Pequenas Coisas é portanto a história de três gerações de uma família da região de Kerala, no sul da Índia, que se dispersa por todo o mundo e se reencontra na sua terra natal. Uma história feita de muitas histórias. A história dos gémeos Estha e Rahel, nascidos em 1962, por entre notícias de uma guerra perdida. A de sua mãe Ammu, que ama de noite o homem que os filhos amam de dia, e de Velutha, o intocável deus das pequenas coisas. A da avó Mammachi, a matriarca cujo corpo guarda cicatrizes da violência de Pappachi. A do tio Chacko, que anseia pela visita da ex-mulher inglesa, Margaret, e da filha de ambos, Sophie Mol. A da sua tia-avó mais nova, Baby Kochamma, resignada a adiar para a eternidade o seu amor terreno pelo Padre Mulligan. Estas são as pequenas histórias de uma família que vive numa época conturbada e de um país cuja essência parece eterna. Onde só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas permanecem por dizer. O Deus das Pequenas Coisas é uma apaixonante saga familiar que, pelos seus rasgos de realismo mágico, levou a crítica a comparar Arundhati Roy com Salmon Rushdie e García Márquez, e lhe valeu o Booker Prize.
Eu lembro-me da época em que eu próprio descobri a metafísica avassaladora das pequenas coisas e a paixão que passou a acompanhar-me nessa vertigem de nomear e descrever a realidade anódina e anónima, esse mundo que exige a nossa vocação para se tornar real, para existir enfim. Em boa verdade esse é o segredo da literatura no sentido genérico de poiesis. Novalis dizia que quanto mais poético, mais verdadeiro. E é este mundo das pequenas coisas, das coisas aparentemente sem importância que é o mais poético e até o mais autenticamente nosso. Ter acesso a esse mundo, aos segredos minúsculos da realidade é ter acesso aos segredos da existência, aos mistérios do mundo. Toda a grande poesia contemporânea, que é agora sempre uma poética da média rés, explora as criações demiúrgicas dos deuses das pequenas coisas. Arundhati Roy teve esse mérito, o de mostrar, sem equívocos, uma tendência generalizada da arte contemporânea, em particular das artes efabulatórias onde o dizer mais se confunde com o nomear, no sentido literal do verbo que será sempre como dar vida e evidenciar um mundo esquecido, apagado por detrás dos acontecimentos mais espectaculares embora muitas vezes redundantes no seu fulgor.
Vale a pena trazer aqui e agora a panóplia das coisas às quais muitas vezes pouco ligamos distraídos que estamos com as “grandes coisas”, digo-o ironicamente pois a minha vida enriqueceu-se com essas coisas como o cheiro dos frutos ou a memória de como chovia naquele certo dia em que muitas mais coisas aconteceram, grandes e pequenas, mas o que ficou foi a intensidade da chuva, a luz que ao chover se dissipava. As pequenas coisas são também as que por se dizerem impediram que outras se dissessem e ao adquirirem uma eleição votaram outras ao silêncio. Aqui para nós, as pequenas coisas acabam por ser as coisas que a argúcia e a imaginação promoveram e nesse sentido deram vida e é justamente por isso que um escritor é sempre um demiurgo, mas também um iconoclasta e um ser apocalíptico.

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]icenciada em arquitectura, Roy Arhundati nasceu em Kerala, na Índia, em 1961. Cedo se dedicou à escrita de guiões para cinema. O Deus das Pequenas Coisas, que foi publicado em 1997, é o seu primeiro romance e por enquanto o único e com ele a autora recebeu o Booker Prize do mesmo ano. “Este prémio é sobre o meu passado. Não sei se escreverei outro livro. Estou à espera que o barulho na minha cabeça pare”, disse, em várias entrevistas. Apesar de não ter, ainda, escrito e publicado mais romances ou novelas é abundante a sua actividade intelectual como o demonstra a sequência de obras que refiro a seguir:
The End of Imagination. Kottayam: D.C. Books, 1998. ISBN 81-7130-867-8; The Cost of Living. Flamingo, 1999. ISBN 0-375-75614-0. Contém os ensaios “The Greater Common Good” e “The End of Imagination”;
The Greater Common Good. Bombay: India Book Distributor, 1999;
The Algebra of Infinite Justice. Flamingo, 2002;
Collection of essays: “The End of Imagination”;
“The Greater Common Good”; Bombay, 1999;
“The Algebra of Infinite Justice,” Flamingo, 2002. Collection of essays: “The End of Imagination,” “The Greater Common Good,”,  “Power Politics”, “The Ladies Have Feelings, So…,” “The Algebra of Infinite Justice,” “War is Peace,” “Democracy,” “War Talk” e “Come September.”
“Power Politics”, Cambridge: South End Press, 2002;
“Power Politics. Cambridge: South End Press, 2002. 
Foreword to Noam Chomsky, For Reasons of State. 2003. 
An Ordinary Person’s Guide To Empire. Consortium, 2004. 
Public Power in the Age of Empire Seven Stories Press, 2004. 
The Checkbook and the Cruise Missile: Conversations with Arundhati Roy. Entrevista por David Barsamian. Cambridge: South End Press, 2004. 
Introduction to 13 December, a Reader: The Strange Case of the Attack on the Indian Parliament. New Delhi, New York: Penguin, 2006. 
The Shape of the Beast: Conversations with Arundhati Roy. New Delhi: Penguin, Viking, 2008. 
Listening to Grasshoppers: Field Notes on Democracy. New Delhi: Penguin, Hamish Hamilton, 2009. https://pt.wikipedia.org/wiki/Especial:Fontes_de_livros/9780670083794
Segredos da existência

30 Jun 2016

Romance interminável

Zweig, Stefan, Caleidoscópio, Livraria Civilização, Porto, s/d
Descritores: Ficção, Literatura Austríaca, Tradução de Alice Ogando, 177 p.:19 cm
Cota:  A  LIT/Z960c.2

  

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vi o Grande Hotel Budapeste, mesmo não tendo ficado a morrer de amores pelo filme, houve qualquer coisa de vago que me intrigou no sentido de um fascínio inconclusivo.
Acontece – me muito agora, e só pode ser da idade, que confundo por vezes de uma forma que não deixa de ser atraente, memórias pessoais, com pedaços de sonhos, alguns visitam-me com regularidade, o que é obsidiante mas estranho também, e além disso trechos de romances que li e que não li, assim como planos-sequência de filmes que vi e que não vi também. Já disse, que só pode ser da idade, acho que isto, deste modo, não me acontecia quando era mais jovem, pelo menos assim. Quando vi, portanto, o filme de Wes Anderson, senti que o universo de Stefan Zweig estava todo ali. Eu não li tudo deste autor, nem pouco mais ou menos, a sua obra é vastíssima, dispersa por muitos géneros, mas se ficarmos apenas pelo género romanesco, e romanesco é uma palavra-conceito que assenta como uma luva a Zweig, tal como a Sandor Marai, por exemplo, e vocês sabem em que é que eu estou a pensar, ainda assim a obra do escritor judeu austríaco é vasta quanto baste. Mesmo não tendo lido tudo, o que li é o suficiente para ter tido esta espécie de sinestesia. Mas Zweig é muito cinematográfico e esse poderia ser um interessante tema de reflexão, o porquê dessa relação entre Stefan Zweig e a tela. Talvez seja justamente o seu lado romanesco e uma paixão, que é muito de época, pelos cenários interiores.
O conto Carta de uma Desconhecida inserido na colectânea Caleidoscópio de contos foi levado ao cinema pelo menos quatro vezes e uma delas por Max Ophuls, com Joan Fontaine no papel principal de Lisa, que é um daqueles filmes lendários que João Bénard da Costa terá considerado um dos filmes da sua vida, mas que pelo menos considerou o mais magoado papel de Joan Fontaine.
Eu sei que não devia, mas caramba a minha admiração, tão grande, por Bénard da Costa, autoriza-me a não acabar esta ficha de leitura e deixar que o acesso ao livro seja feito a partir do filme e no caso através da pluma do mestre:
“Lisa é uma rapariga da classe média que sonha ser artista. Na mesma casa onde ela mora, vive um pianista célebre, Stefan Brand (Louis Jourdan) um bom bocado mais velho do que ela. Quase desde criança, ela apaixona-se por ele: o grande artista, o génio. Nunca lhe fala, poucas vezes o vê, mas alimenta-se dele e da música dele. Tanto e tão loucamente que, quando cresce, recusa qualquer casamento. Só pode casar-se com o seu pianista, pianista que nem sabe da existência dela e quase todas as noites tem uma mulher diferente.
Mas um dia encontram-se e conhecem-se. Fazem uma grande viagem num comboio que não sai da estação num parque de ilusões em Viena. Quando virem o filme, perceberão que essa mágica viagem a levou até ao fim do mundo. Nessa noite, Lisa quebra todas as regras do seu jogo virginal e torna-se amante de Stefan. O céu dura pouco: Stefan tem uma tournée, daqui a uns dias estará de volta. Despedem-se na estação de comboios, que sempre foi o lugar das despedidas para nunca mais. Nunca mais Stefan voltou e nove meses depois quem chega é o ‘filho do pecado’.
O destino deu segunda hipótese a Lisa. Um senhor rico, muito rico mesmo, que gostava dela e até aceita ser o pai da criança. Mas, nestas histórias, há sempre, uma vez, outra vez. Na ópera, durante uma ópera de Mozart, Lisa reencontra Stefan, aliás assaz decaído. Tudo parece reatar-se e a tal ponto, que, apesar do marido ser magnânimo, Lisa sai de casa para outra noite de amor com Stefan até descobrir, no princípio dela, que Stefan nem se lembra que ela existiu e lhe repete o mesmo número que jogara anos atrás na noite mágica.
Não interessa muito contar que Lisa morre, mas interessa saber que, se sabemos toda esta história, e se a sabemos pela boca e pelo olhar de Lisa, é porque ela escreve do leito de morte a carta de uma desconhecida. Para além da carta, só ficamos a saber que o que Stefan esqueceu nunca foi esquecido pelo criado mudo dele, que acompanhou toda a história e percebeu todo o drama muito antes dele. Só ficamos a saber que Stefan, que se preparava para fugir ao duelo para que o desafiara o marido de Lisa (histórias de honra não eram para gente como ele) depois de ler a carta acaba por aceitar o duelo. O desfecho é imaginável. Ah! Uma dica para o sucesso cinematográfico de Stefan Zweig, quer dizer, dos seus contos e novelas: ora, antes de tudo o mais as intrigas e os enredos, que são simultaneamente exteriores e interiores, ou seja, psicológicas. Essa fusão do mundo com a intimidade mais profunda e tantas vezes insondável do Eu é seguramente uma das chaves do sucesso. Não é seguramente acidental o facto de que Zweig e Freud alimentaram durante uma boa parte das suas vidas, uma sólida amizade baseada numa indesmentível admiração recíproca. Freud chegou a salientar a dimensão psicanalítica das novelas do grande escritor austríaco, hoje em dia um pouco esquecido, ele que chegou a ser, nos anos trinta do século passado, o mais traduzido escritor à escala mundial.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]tefan Zweig (1881-1942) faz parte da nata da intelectualidade judia vienense. Amigo de Richard Strauss, de Freud e de Artur Schnitzler, foi escritor, romancista, poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Deixa a Áustria em 1934 com a chegada do nazismo e refugia-se primeiro em Londres e depois no Brasil, onde se suicida, a 23 de Fevereiro de 1942, deprimido com a expansão da barbárie nazi pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Stefan Zweig foi, a partir da década de 1920 e até à sua morte, um dos escritores mais famosos e mais vendidos do mundo. Stefan Zweig estudou Filosofia na Universidade de Viena onde se viria a doutorar apresentando uma Dissertação sobre Taine.  Apesar da sua fidelidade ao judaísmo a verdade é que a religião nunca desempenhou um papel central na sua formação. Manteve-se sempre próximo e apaixonado pela grande cultura europeia e fiel à língua alemã, apesar do nazismo e do consequente exílio americano. A sua admiração pelas literaturas francesa e inglesa levou-o a traduzir para alemão Keats, Morris, Yeats, Verlaine e Baudelaire. Além disso privou de perto com grandes intelectuais franceses e naturalmente austríacos do seu tempo. Fizeram parte do seu círculo, Rimbaud, Romain Rolland, Rainer Maria Rilke, Thomas Mann e Sigmund Freud, com o qual se correspondeu entre 1908 e 1939. Durante o período áureo e feliz de Salzburgo, entre 1915 e 1930 escreveu as biografias de Dostoievski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi e Stendhal e escreveu alguns bons romances como Amok de 1922, Angústia de 1925 e Confusão de Sentimentos de 1927, baseados na psicanálise. Zweig foi um consequente pacifista desde a sua maturidade e defensor da unificação europeia. Em 1934 Stefan Zweig já no seu segundo casamento abandona o seu país e parte para Inglaterra onde se torna cidadão britânico e depois em 1940 segue para os Estados Unidos e finalmente para o Brasil onde se viria a suicidar. A partir de uma determinada época a diáspora de Zweig tem os contornos de uma fuga à Barbárie.

23 Jun 2016

Obsessão e vulgaridade

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara mim, quer dizer, literalmente, o que a literatura é como qualquer coisa que me é endereçada e enquanto direito de apropriação que pode ser vitalista, ao ponto de, glosando a Natália Correia, se poder comer. Para mim, dizia, escrever sobre ela é, por esse motivo, em larga medida vomitar. Meu deus, que coisa chocante! Agora a literatura dá vómitos, … Em que é que ficamos? Nada disso, o que eu quero dizer é que a literatura não é nunca um entretenimento, um fait divers para passar (consumir) o tempo, pelo contrário, é sempre coisa orgânica e vital. Fiquemos assim entendidos. E regresse-se ao Para mim. O que a expressão quer dizer é que não há neutralidade e pelo contrário, puro egoísmo, pura expressão, quase doentia de uma posse, de uma exclusividade, eventualmente até infantil, se se quiser, no sentido do carácter egocêntrico e do sentimento de posse da criança. Em resumo, na maior parte das vezes e dos casos, a obra foi escrita essencialmente para mim. Ora se foi criada para mim, expressamente, então é minha, posso fazer dela o que bem entender, até comê-la como dizia, (…)
O Para mim não significa portanto Em minha opinião, é algo de muito mais metabólico, aliás essencialmente metabólico e por vezes mesmo exclusivamente metabólico. Perceberam!? Voltemos ao vómito. Há aqui uma ambiguidade estrutural que é preciso dilucidar. Penso que serei capaz de demonstrar que o vómito é da ordem das sinestesias básicas, ou seja dos sentimentos ambivalentes. Eu não vomito a literatura, nem o autor, nem a obra, em particular ‘os’ ou ‘as’ de que mais gosto. Eu vomito o facto de ter de partilhar com idiotas a literatura e o facto de que hoje em dia a literatura se confunde com o que é digno de vómito e passa por ser literatura. E o mesmo acontece com muitas outras manifestações culturais ou pseudoculturais.
O que em geral provoca o vómito é biblicamente como se sabe, o morno, o que não é quente nem frio, o que é por natureza neutro. A Vox Populi costuma dizer de qualquer coisa que provoca desprezo, quiçá mesmo náusea, que não aquece nem arrefece. O fundamento é seguramente o mesmo que no Apocalipse:
Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca. Apocalipse 3:15,16
Interessa-me guardar este sentido, de que a literatura se pode vomitar, pois não sendo o meu, acaba por se insinuar em mim, através dos outros, das suas sabedorias estultas, das suas auto-satisfações académicas ou coloquiais, sabedorias essas, que não vislumbram sequer a maldição da poesia. A poesia e a arte em geral é e será sempre a única praga capaz de conspurcar as boas consciências e lançar dúvidas demoníacas em todos os crédulos. Por outro lado interessa-me reter também uma outra dimensão ainda mais radical, embora já implícita no que acabei de dizer. Como o cão torna ao seu vómito, assim o tolo repete a sua estultícia. Provérbios 26:11.
Assim vós que falais de literatura como coisa morna, nem quente, nem fria, acabais por ser os verdadeiros apóstatas da beleza, da arte e da poesia. Eu vos vomito. Podeis, como os cães voltar ao vosso vómito, ou como os porcos voltar a revolver de novo na lama.
Vem isto a propósito da leitura dos contos de Axilas e outras histórias indecorosas do escritor brasileiro, autor de uma obra prima designada a Grande Arte. Uso aqui esta citação de propósito e de forma acentuadamente irónica, pois a grande arte de que fala o autor é o homicídio. Adiante. Estes contos mostram uma obsessão com a decadência física e com a deficiência nas suas mais variadas formas, sempre assumidas por personagens impiedosos consigo mesmo e principalmente com os demais. Citemos o autor: “Um homem apaixonado é uma espécie de louco. É tipicamente um sentimento doloroso e patológico, porque, via de regra, o indivíduo perde a sua individualidade, a sua identidade e o seu poder de raciocínio”. O pensamento do narrador do conto “A Mulher do CEO”, um dos dezoito contos incluídos na antologia Axilas e Outras Histórias Indecorosas, resume bem a obra de Rubem Fonseca.
As narrativas de Rubem Fonseca exploram o pathos do calor e do frio, não são nunca mornas, tépidas, vomitáveis, e o que é mais importante impregnam no leitor a sua visão extrema, sem contemplações. É quando lemos obras como estas que melhor percebemos os estereótipos delicodoces, melodramáticos, abusivamente cheios de retórica sentimentalóide e nesse sentido indecente. É a pretensa decência que esconde e branqueia, que ignora a enorme miséria do mundo, que é a autêntica indecência. É o politicamente correcto que é criminoso nas suas mentiras descaradas, é a retórica artificial da bondade e da beleza que escamoteia as imensas pústulas, visíveis no entanto a céu aberto, que provoca desdém e repugnância, é o romantismo serôdio dos Nicolas Sparks, ou o erotismo burguês e de pacotilha das Sombras de não sei o quê e que afinal nem são sequer sombrias, que representam hoje a pornografia disfarçada. Perante uma obra como a de Rubem Fonseca, apetece dizer, eu vos vomito, vós que não sois nem frios, nem quentes, mas somente mornos.
Falemos agora do estilo. Dizer que é certeiro, rápido, incisivo, talvez se adeque. O autor cultiva a economia, de recursos e de páginas. Todos os contos são curtos. E não são assim os melhores contos desde Tchekhov a Raymond Carver? Os contos ao mesmo tempo que são curtos, directos e sucintos, são porém quase sempre desconcertantes. Contudo o que mais me atraiu neste conjunto de contos foi a vulgaridade estrutural dos personagens, protagonistas de quotidianos enviesados mas banais. Nem um só que fosse, poderia servir para ilustrar uma enciclopédia moral e de bons costumes. Eles não são paradigmas de coisa nenhuma, a não ser de uma certa indigência. A antologia é no fim de contas um bestiário não moral nem exemplar, tão somente de gente vulgar, às quais podem, no entanto, acontecer coisas invulgares, mas como se o não fossem; mas não é isso que as pessoas são na generalidade? Então perguntar-se-á porque razão, sendo aparentemente morno, este universo, nem frio em excesso e muito menos exaltante, não será a justo título vomitável. Por uma razão que em pleno o justifica: a autenticidade. Aqui não há modelos de plástico, caricaturas, aqui há a vida tal como ela é ou pode ser e na maior parte das grandes metrópoles, é mesmo, imenso universo de seres claudicantes, para não lhes chamar coxos ou rengos, e também de corcundas, vesgos, prostitutas, proxenetas, enfim deficientes numa panóplia de deficiência de largo espectro. E esse realismo sem dó, nem compaixão, nem mentiras é de uma luminosidade tão intensa que queima. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Não há na prosa de Rubem Fonseca digressões intelectuais, fluxos de consciência, que valha a verdade são por vezes tão aborrecidos e até mornos, não há também problematizações sociais de conveniência e morais muito menos. Pouca carne e muito osso, e um estilo direito à dor, que se faz tarde. Nós os leitores ficamos com os ossos moídos e com a alma cabisbaixa, mas literariamente exaltados, em fogo; com algumas cintilações obscenas, para quê negá-lo.

17 Jun 2016

Uma profecia serial

Faria, Almeida, Rumor Branco, Assírio & Alvim, Lisboa, 2012.
Descritores: Romance, solidão, iniciação, Poesia, ISBN: 9789723716481, 160 páginas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lmeida Faria nasceu em 1943 a 6 de Maio em Montemor-o-Novo no Alto Alentejo. Estudou Direito e Letras e veio a formar-se em Filosofia, mas antes disso com apenas 19 anos publicou o seu primeiro texto de ficção, O Rumor Branco, obra à qual foi atribuído o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Entre 1965 e 1983 elaborou os romances da “Trilogia Lusitana” (A Paixão, Cortes, Lusitânia) e com o Cavaleiro Andante, encerrou de algum modo este ciclo. Pela mesma época estagiou como bolseiro nos Estados Unidos e na Alemanha Federal e leccionou Estética e Filosofia da Arte na Universidade Nova de Lisboa. Além de romancista, é autor de ensaios, contos e peças de teatro. Recentemente publicou, a partir de um conto seu, o libreto para a cantata de Luís Tinoco Os Passeios do Sonhador Solitário. Publicou ainda O Murmúrio do Mundo, relato ensaístico de uma viagem à Índia. Ao conjunto da sua obra foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora e o Prémio Universidade de Coimbra.

Começo por citar Pedro Mexia, pois parece-me que ele encontrou o registo certo: “Mais «romance novo» do que nouveau roman, Rumor Branco é uma representação do mundo português de 1962 enquanto náusea”. 
Mas Almeida Faria consegue provar que pode haver náusea e poesia ao mesmo tempo, portanto é de uma poética da náusea que se trata. Contudo a náusea é apenas a atmosfera em que acontece aquilo que de mais importante acontece; pois para além disso Almeida Faria tinha já percebido aos dezanove anos que um homem é sempre “o primeiro homem. Porque o seu mundo é a reinvenção do mundo, a sua voz uma voz original”. Isto é o que dele disse Vergílio Ferreira, no prefácio da 1ª edição, mas isso é o que o romance diz de múltiplas formas embora fragmentadas.
O recurso ao fragmento edifica a história a dois tempos. Há um tempo que é o dos materiais concretos que se sobrepõem assim como a sobreposição de tijolos edifica uma parede e há um outro tempo que é o tempo dos interstícios, dos espaços em branco que eram antes da narrativa povoados pelo silêncio e dos quais agora no tempo da execução da voz fazem ouvir o seu rumor.
No processo complexo de dar voz a um mundo, o autor assiste com espanto ao nascimento da sua própria voz. Para mim o que é genial nesta obra inaugural de Almeida Faria é o facto de ela simular exemplarmente o nascimento do mundo e do demiurgo dentro dele. Para Almeida Faria o mundo nasce quando nasce o demiurgo, são ambos demiurgos recíprocos. Não existe uma separação entre criador e obra e nenhum pré-existe ao outro, criação e criador são a mesma coisa embora desdobrada ontologicamente. Não nos interessa se é assim que as coisas se passam ou se como pretendia Bocanegra o homem não é mais do que um copista e jamais um demiurgo.

É assim que a oração começa: “uma voz existe intersticial. Há trevas à tua volta e tu não és.” E continua, mas os primeiros versos serão ainda durante algum tempo proféticos mas hesitantes, por vezes a visão parece claudicar e todo o trajecto até ao fim do primeiro fragmento é o caminho de um homem que começa dobrado e se vai levantando até que já completamente levantado vai dizendo, como um desafio “vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar”. Exactamente dez vezes.
A publicação de Rumor Branco fez correr muita tinta, em larga medida por causa do prefácio de Vergílio Ferreira, atendendo ao facto de este autor ter desertado pela mesma época, enfim uns anos antes, das fileiras do neorrealismo, inaugurando de algum modo a ficção de matriz existencialista em Portugal, com o romance Aparição. A polémica desencadeou-se a partir da publicação do romance de Almeida Faria, através de Alexandre Pinheiro Torres e do próprio Vergílio Ferreira, tendo-se depois alargado a outros vultos intelectuais contemporâneos. Lida hoje, a polémica dá conta de muitos equívocos, mas do ponto de vista documental e histórico mostra a realidade intelectual do tempo. Em boa verdade a maior parte das grandes discussões intelectuais e literárias em Portugal durante o período de vigência do Estado Novo tiveram o neorrealismo como pano de fundo, o que se compreende porque o neorrealismo foi a ideologia literária oficial do marxismo em Portugal e em particular do Partido Comunista Português e portanto ele era um reflexo da relevância deste partido na resistência ao regime. O neorrealismo nunca se pôde libertar da sua circunstância histórica, sobretudo em Portugal.

O romance de Almeida Faria é que não tem culpa nenhuma, até porque relido hoje em dia à luz de outras ferramentas teóricas e de outras utensilagens mentais, verifica-se que não se adequava nada às reivindicações ideológicas da época e por isso muito mais certeiro se afigura o que dele diz Pedro Mexia quando enfatiza a sua vocação serial: “a fragmentação, a pontuação escassa, a sintaxe ousada, uma partitura dissonante e ofegante de provérbios, palavras de ordem, neologismos, clichés. Uma música pós-musical, como a de Stockhausen a que o título alude”. Estou inteiramente de acordo quanto à atonalidade constitutiva do romance e ao seu carácter pós musical, ao seu ritmo assimétrico e claudicante, mas sempre luminoso e poético.
Li pela primeira vez este texto de Almeida Faria quando tinha vinte anos e se há uma obra de um autor português que me assombrou foi esta. Mais tarde voltei a ter o mesmo sentimento apenas uma vez, foi com o Silêncio de Teolinda Gersão. Estou a referir-me a obras de ficção portuguesas e de autores ainda não consagrados à época em que os li. Existem entre elas algumas similitudes. São ambas narrativas intensamente poéticas e soturnas, verdadeiras litanias espectrais da solidão. Rumor Branco é da ordem do “Nocturno” e o Silêncio é apesar de tudo mais solar, mas ambas esburacam o ser até ao lugar em que já não se ouve a sua voz, apenas silêncio e rumor.

2 Jun 2016

Não há repouso para o amor

Ferreira, Virgílio, Em Nome da Terra, Quetzal, Lisboa, 2009.
Descritores: Romance, Memória, Morte, Corpo, Envelhecimento, Amor, ISBN: 9789725647912.

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.
Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

O romance Em Nome da Terra é uma longa carta de João para Mónica. Mónica já morreu e João é um juiz reformado e enclausurado, por vontade dos filhos, numa casa de repouso. A casa lar é assim uma preparação para o repouso eterno, um treino, uma transição suave para o irremediável. Será talvez um purgatório, mas sem um significado religioso, de que não estou certo. 26516P15T1
A carta é uma declaração de amor, esse sim eterno e sobretudo sem repouso. Para o amor ou para a memória dele não haverá nunca repouso. Provavelmente repousar do amor será desistir de tudo. Nem mesmo no purgatório, João desiste. A carta é também um pretexto para que João se encontre através do que perdeu, mas também através do que sobrevive. Não se pense que ele perdeu apenas Mónica. Não, ele perdeu a juventude, ele perdeu a fé, a ilusão, a esperança. Ele perdeu-se no meio de tantas perdas que foram acontecendo que talvez tenha perdido a própria identidade. Então como recuperá-la, partindo do princípio que é possível recuperar o que se perdeu. São muitas perdas, é verdade, mas há também o que persiste, mesmo se persiste apenas na memória. É o que persiste que permite o exercício de reflexão. O que permite recuperar ou salvar para que se possa levar a cabo o exercício de preservação da identidade e a auto consciência de uma vida, é a memória, contudo não uma memória enciclopédica e avulsa de tudo e de nada, mas sim a memória do amor. A carta é, portanto, também pragmaticamente uma terapia. Através da carta, João resiste e de facto o que dentro da carta constitui o tema em torno do qual se organiza a resistência contra a alienação, contra o esquecimento, contra a morte é o amor. O amor é tão poderoso que a sua simples memória pode, se não salvar, pelo menos adiar o que se augura inevitável e fatídico, ou seja o fim.
A consciência do fim é contudo mais poderosa que a esperança e as forças de resistência, e daí que não se possa evitar o sarcasmo, a ironia e até um certo desespero. O desespero seria porém avassalador, à margem deste exercício amoroso da memória. Assim, é um desespero mitigado por uma ironia, paredes meias com a mágoa.

“Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o que é grande acontece. E não me digas diz lá porquê. Não sei. O que é grande acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma iluminação, deves ter ouvido. Ou se bate forte com a cabeça. Pelo menos comigo foi assim. Ou como quando se dá uma conjunção de astros no infinito, deve vir nos livros. Ou mais provavelmente esse tempo nunca pôde existir, que é quando realmente existe o que vale a pena existir. Vou pensar melhor a ver se eu próprio entendo. Ponho-me a lembrar o que passou e o que me lembra é só a tua presença forte ao pé de mim. E depois acabou. Deves ter achado que era de mais e então acabou. Foste para não sei onde e estás lá fixa quando te lembro. Na realidade foi tudo muito mais devagar. Mas tudo quanto foi acontecendo foi o modo circunstancial de haver agora eternidade acima dessa circunstância — expliquei-me? Querida. Na realidade houve o nosso encontro terrestre e houve …”

O texto organiza-se assim em torno de três ideias fortes, a memória, o corpo, e a morte e acima delas e de algum modo à margem, como se não fosse dali, o amor. A memória é o instrumento, aquilo de que o autor se serve para alimentar o ludíbrio, uma vez mais; o autor, o narrador, o personagem, aqui como paradigma de qualquer pessoa, como acontece sempre aliás. O corpo é a outra face da morte, o corpo representa a vida. É natural que exista entre eles uma enorme tensão. Irreconciliável diria eu. Sempre que a beleza do corpo está a morte não consta e vice versa, em cada atentado ao corpo, ao seu poder e à sua beleza, ouve-se imediatamente o riso escaninho da morte.
Finalmente há o amor. A memória se não trouxesse consigo o amor, seria redundante. A memória de uma vida sem o amor lá dentro, é coisa de arquivistas, amanuenses, exercício de deve e haver, fait divers sem substância, nada. Só o amor traz de volta a transcendência, o sonho, a utopia, a ideia de uma escatologia salvífica tornada imanente e humana.

26 Mai 2016

A utilidade da morte

Saramago, José, As Intermitências da Morte, Caminho, Lisboa, 2005.
Descritores: Morte, Sentido da Vida, Igreja, Estado, Ordem, 214 páginas, ISBN: 972-21-1738-6.

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]osé Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

Esta obra evolui através de três tempos bem demarcados.
— Num primeiro instante a surpreendente constatação de que ninguém morre.
Este fenómeno, a todos os títulos incrível e inesperado provoca uma série de elocubrações intelectuais bastante interessantes e bem logradas por parte do autor. Trata-se enfim de explorar as consequências imprevisíveis de um acontecimento provocatório. Qualquer pessoa pode pensar, eu pelo menos já pensei, nos termos de como seria a existência se a morte não existisse. Todos podemos compreender que é a temporalidade e a finitude que conferem à vida o seu carácter de urgência e a sua importância radical. Tudo, as carreiras, as preocupações com a saúde, tão em voga hoje em dia, as ambições, o amor, tudo mesmo, se relativiza e perde a sua dimensão de necessidade, transformando-se em desejo muito vago se a morte não existisse e se portanto a vida fosse eterna. A vertigem existencial só existe porque a vida é breve, porque o tempo passa, porque o fim espreita. Em boa verdade a grandeza dos projectos, a própria ideia de projecto, a beleza, o sublime esvair-se-iam e tudo se tornaria redundante. 19516P14T1
O autor não deixa de explorar o tema, desta forma: Sendo a vida eterna, um dos desejos mais constantes e antigos da humanidade, o da vida eterna, porque é que afinal o seu desaparecimento pode ser tão conflituoso e provocar tanto desassossego. Porque como já salientei o grande sentido da vida reside na sua brevidade e a condição ontológica mais estável esteja afinal na finitude.
Contudo, ainda que José Saramago, aflore também, este tipo de explorações do tema, centra mais o seu texto, nas questões ideológicas de vária ordem, relacionadas com outro tipo de assuntos, estou a pensar nas preocupações dos políticos e dos dignitários da Igreja, por exemplo. E centra também a narrativa nas questões práticas e processuais inerentes ao tema, ou seja nas instituições que seriam afectadas com o fim da morte: As companhias de seguros, os agentes funerários, os asilos, os hospitais, por motivos, mais ou menos óbvios. Mas sobretudo, convenhamos, as religiões. O que seria das igrejas, seja de que credo forem, sem a presença benigna da morte. Como salienta Saramago:

“(…) a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfêmia como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido”.
— Depois, numa segunda parte, mais à frente, a morte anuncia o seu regresso, mas agora com novas regras:
“a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios (…) ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre (…) a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.
Durante 50 páginas o autor diverte-se a explorar este novo sistema e as suas implicações controversas. Mas em boa verdade escapa-lhe de novo a ideia nuclear e que consiste no facto de que a morte só vale pelo seu carácter inesperado. O sentido existencial, na sua precariedade constitutiva não aceita nenhum tipo de previsões empíricas. A componente trágica da vida exige que ela conviva (paredes meias) com uma ideia difusa de eternidade. Todos somos apanhados de surpresa, independentemente de todas as variáveis prudenciais e de lucidez relativa. A vida é uma aventura carregada de perigos, mas que é vivida como se cada momento fosse eterno, apesar da consciência lúcida da finitude. É de um paradoxo que se trata e não adianta exacerbar as certezas ontológicas. Sabe-se da certeza da morte, mas a vida possui esse poder avassalador de a adiar sempre até ao derradeiro instante.

— Depois finalmente a terceira parte:
Para muitos leitores e críticos a terceira parte do romance, a partir do capítulo 10, chamemos-lhe assim, constitui o momento mais alto do texto, o momento da personificação da morte, que é aliás a personagem maior desta ficção. Compreende-se que o autor a queira personificar, isto é, humanizar. Ela é no fim de contas a heroína, até porque diante dela não haverá heróis dignos desse nome.

Uma nota pessoal:
Os livros de José Saramago, nesta fase mais recente, muitos deles posteriores à atribuição do Prémio Nobel, resolveram o que para mim era um dos problemas maiores na obra de José Saramago, o da economia de processos narrativos. Os livros da sua primeira fase, eram invariavelmente livros muitos volumosos, estou a pensar no Memorial do Convento, no Levantados do Chão, na Jangada de Pedra, na História do Cerco de Lisboa, no Ano da Morte de Ricardo Reis, etc. Nesse livros, a par de páginas de génio José Saramago dava por vezes a sensação de obedecer a um formato. Ora, curiosamente a partir de uma certa época, os seus livros tornaram-se mais ágeis e em larga medida mais objectivos, não perdendo porém a sua capacidade de efabulação.

19 Mai 2016

O poder de efabulação da ignorância

Calvino, Ítalo As Cidades Invisíveis, Teorema, Lisboa, 1993
Descritores: Literatura Italiana, Fantástico, Fábula, Apólogo, Simbólico, Moradas, Espírito, 160 p.:21 cm ISBN: 972-695-171-2, Tradução José Colaço Barreiros

[dropcap style=’circle’]I[/dropcap]talo Calvino é um dos escritores italianos mais representativos da literatura italiana do pós-guerra e de todo o século XX. Nasceu em Cuba na cidade de Santiago de las Vegas a 15 de outubro de 1923 de pais italianos que logo regressam a Itália; vindo a falecer em Siena no dia 19 de setembro de 1985. Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Tendo-se formado em Letras, dedicou-se à política desde cedo e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Italiano, Veio a abandonar o partido em 1957, através de uma carta de desfiliação que se tornou célebre. A sua primeira obra foi este Atalho dos Ninhos de Aranha em italiano designado Il sentiero dei nidi di ragno publicado em 1947, ainda sob a influência da estética e ideologia neorrealista e da sua militância comunista e de resistência. Uma das suas obras mais conhecidas e mais genial são As Cidades Invisíveis, ou seja Le città invisibili  de 1972; onde se evidenciam as personagens históricas de Marco Polo e Kublai Khan. Quanto a mim a sua obra mais importante é contudo o não menos famoso livro Se Numa Noite de Inverno um Viajante.

O poder de efabulação da ignorância
A estrutura de base das Cidades Invisíveis assenta numa hipotética, porém apresentada como factual, conversa entre o grande aventureiro e viajante Marco Polo e Kublai Khan, imperador mongol, chinês da estirpe dos tártaros. Marco Polo, supostamente, descreve ao imperador as inúmeras cidades do império do Meio que conhece e visitou e que o imperador não conhece. A imensidão do império inibe o seu conhecimento empírico. Isso incomoda o imperador, como incomoda toda e qualquer ignorância, mais ainda quando como neste caso a ignorância é provocada pelo estímulo do que de nós se esconde e guarda um mistério que ao longo do tempo se transforma em enigma. Marco Polo inteligentemente estimula esse enigma efabulando longamente sobre o que o imperador não conhece e ele também não. É aqui que reside a meu ver o golpe de génio de Calvino, efabular a partir do poder de efabulação da ignorância. O que não se sabe, o que não se conhece, é sempre infinitamente mais apaixonante e estimulante que o que nos é próximo e que é de nós conhecido e que dentro dessa proximidade se torna banal senão mesmo vulgar, no sentido literal do termo, mas também no seu sentido valorativo. Porém, se aquilo que se ignora possui um valor acrescentado, estranha-se que porfiemos em destruir essa reserva de prazer, esse el dorado, essa pérola de valor inestimável, procurando conhecer. Não obstante, até se percebe, se atentarmos no facto de que é no processo de desocultação que o prazer atinge o rubro. Podemos assim imaginar o gozo que deve ter dado ao imperador, a narrativa fantástica de Marco Polo, a mim deu-me e não sou dono de cidades de nenhum império; mas sabendo eu que a narrativa assenta em bases irreais, porque é que deu tanto prazer, a Kublai Khan e a mim por intermédio dele, a narrativa disso. Porque, como disse Saint Exupéry, o essencial é invisível ao olhar. Eu, até preferia dizer que o invisível é essencial ao olhar, invertendo a lógica da expressão, para assim poder enfatizar que desde logo o invisível existe e que portanto um outro tipo de olhar o vê. Essa visão é que é essencial. A grande cegueira é não ver esse invisível que nos habita de modo imemorial e eterno. 12516P614T1
Voltemos ao texto. A estrutura de base não assenta portanto numa hipotética conversa mas antes numa inventada hipotética conversa o que é apesar de tudo um pouco diferente no plano lúdico. Quando se chega a saber o que se desejava saber, pois é no plano da libido que estes conhecimentos se colocam, o fascínio desmorona. Desmoronaria para os actores e desmoronaria para nós, os leitores, por maioria de razão. Neste caso das Cidades Invisíveis não. E porquê? Porque rapidamente, mal a narrativa começa, se percebe a cumplicidade entre os dois intérpretes e porque para nós imediatamente passa a ser de outra ordem, que não a da verosimilhança, o que pretendemos saber. As cidades não nos interessam, a bem dizer nunca nos interessaram, mas interessa-nos aquilo em torno do qual se dá um acordo e uma cumplicidade entre os dois mentirosos. Chamo-lhes assim, ironicamente e por conveniência da minha própria efabulação. Eles sabem ambos que é de um excesso de verdade que se trata quando falam e se ouvem. Este diálogo poderia aliás ser interminável e aliás é interminável a não ser que num certo momento da nossa atenção lhe possamos e queiramos pôr termo.
O que é que se passa então? Um diálogo apócrifo em que uma personagem fala do que nunca viu e outra finge acreditar no que ouve, quando tudo leva a crer só lhe interessa o modo de dizer, ou seja o modo de falar do invisível, do que não existe. Kublai khan representa-nos simbolicamente. Representa aquilo que em nós resiste à realidade do mundo; resistindo na nossa inesgotável imaginação e na insaciável necessidade de ilusão que sentimos dentro de nós. Por isso As Cidades Invisíveis são um dos textos mais alucinogénios da história da literatura, embora se saiba que a boa literatura nunca é outra coisa, senão uma droga dura, imaterial e abstracta.
Desde o princípio se percebe que a cidade não é aqui de modo nenhum um conceito (e já nem escolho o semantema ‘realidade’) geográfico, pois desde o início que o jogo jogado entre os dois efabuladores procura na sua interacção a complexidade do modo de habitar o mundo, na lógica de uma simbologia da existência humana dentro das suas moradas invisíveis. O que seria de nós sem estas moradas inexpugnáveis. A que perigos não estaríamos sujeitos se nos faltassem as ameias e as muralhas espirituais.
Ítalo Calvino disse a dada altura qualquer coisa como isto: “Se o meu livro As cidades invisíveis continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar num único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjecturas”. E esse símbolo só pode ser o invisível.
Na problemática dos géneros eu seria levado a considerar As Cidades Invisíveis no domínio do Apólogo e da Fábula poética, ainda que não haja apologia de coisa nenhuma, mas antes qualquer coisa de onírico e vago. Todos sonharam este texto: Kublai Khan pelo desejo, Marco Polo como ambiguidade da memória, uma lembrança vaga e nós os leitores porque na primeira vez em que o lemos nos fica a sensação de já o termos lido ou mesmo de já termos falado aos amigos de cidades que tais como estas não existem. Mas tudo o que a obra é aparece nos seus subtítulos, o simbólico, a memória, a fronteira, o desejo, etc.
Nem sei por que estou eu a escrever sobre As Cidades Invisíveis. Elas são infinitas e obsessivas, elas estão em nós e até às vezes fastidiosamente, elas são a nossa vida real e a imaginada, mas também morte e tédio e redenção, não acabam nem começam, desde sempre nos habitam com uma nitidez doentia e incómoda, uma morrinha, mas por outro lado também, de uma maneira sombria, esquiva, povoada de relâmpagos, … Habitam-nos a nós que somos parte delas e que sem nós elas não existiriam, mas nós também não, sem elas… É por isto, agora sei finalmente, que gostamos daqueles que nos perguntam pelos lugares que nos habitam e se mostram tolerantes relativamente às mentiras que urdimos. Para nós, que vivemos neste longínquo Oriente, não é a verdade ou a mentira dos lugares que nos preocupa é antes o podermos ou não ser capazes de corresponder à expectativa daqueles que nos interpelam, ávidos de mistério, sedentos de ser enganados tal como Kublai Khan. Seremos capazes de pelo menos uma vez sermos dignos de Marco Polo ou Calvino? Eu, por mim, já descobri mesmo em Macau, cidades como Leónia, Cecília, Pentesileia. Se me fosse dada a possibilidade de falar sobre as minhas cidades a oriente eu poderia organizá-las não segundo o critério de Calvino que explorou tópicos como: “as cidades e a memória”, “as cidades e o céu”, “as cidades e o mortos” etc., mas antes, de acordo com as minhas obsessões, em tipologias literárias ou cinematográficas, do género “As cidades com Lanternas Vermelhas”, “As Cidades com Aquários”, “As Cidades de Casas Vazias”, “As Cidades dos Candeeiros”, “As Cidades com gaiolas de Areia”, etc. De algum modo já as visitei e portanto poderei falar sobre elas. Talvez um dia o faça.

Manuel Afonso Costa

12 Mai 2016

Ruptura revolucionária e cosmopolitismo

Cardoso Pires, José, Alexandra Alpha, Dom Quixote, Lisboa, 1992
Descritores: Literatura, Romance, Portugal, Anos sessenta, Revolução, 447 p.:21 cm, ISBN: 972-20-0086-1

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]2 de Outubro de 1925, nasceu José Cardoso Pires em São João do Peso, no concelho de Vila de Rei, na parte beirã do Pinhal. Frequentou o Liceu Camões e a Faculdade de Ciências onde, porém, nunca se viria a formar em Matemáticas. Em 1945 alistou-se na Marinha Mercante, mas também não foi muito bem sucedido nesta actividade tendo acabado por se tornar jornalista. A dada altura tornou-se director das Edições Artísticas Fólio onde promoveu alguns escritores nacionais e estrangeiros que marcaram a literatura do século XX. O Delfim, é geralmente considerado a sua obra-prima. Faleceu em 1998 e repousa no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Do conjunto da sua obra destaco a novela O Anjo Ancorado de 1958, o ensaio de 1960 intitulado A Cartilha do Marialva, O romance O Hóspede de Job de 1963, em homenagem ao irmão falecido em acidente de aviação militar, o livro de crónicas na antecâmara da morte De Profundis, Valsa Lenta e finalmente o aclamado romance A Balada da Praia dos Cães de1982.

Modernidade e Cosmopolitismo. Anatomia de uma Revolução Cultural

Conjuntamente com o Delfim e a Balada da Praia dos Cães, este romance Alexandra Alpha faz parte da trilogia das obras primas de José Cardoso Pires.
O Delfim simboliza a figura do cacique ou marialva do país rural, arcaico e paternalista, vagamente heroico, mas serôdio, no seu desajustamento com a realidade. O romance é contudo mais premonitório que realista e sobretudo através das suas micronarrativas ideológicas onde se confrontam dois mundos, aquele que é mostrado através do olhar irónico, do escritor urbano, culto e progressista, e o mundo da Gafeira baseado só em preconceitos. Muitos intelectuais progressistas e urbanos entretinham este tipo de relações com o mundo rural, através de laços familiares ou de relações de amizade e podiam portanto exercitar sentimentos críticos, contudo não radicais e almofadados sempre por um desencanto suave. Cardoso Pires mostra bem com ironia quanto baste o espectáculo de um mundo em declínio que procura agarrar-se a pedaços de retórica ideológica e axiológica, sobretudo moral, e que estrebucha para explorar ainda, mas já em desespero, as contradições inerentes ao progresso. Ora isso sendo da ordem da modernidade e das suas contradições, é também e já um dado da nossa cultura pós-moderna. Nesse sentido o Delfim é o romance de um mundo que terminou, e cujo anacronismo levou à desintegração do próprio discurso do narrador, o que é uma característica do pós-modernismo (Seleste Michels da Rosa). jcp
A Balada da Praia dos Cães será provavelmente o retrato do regime enquanto sombra, sombra fria que só pode desocultar-se com a mesma frieza. Tudo aquilo se passou em tempos que foram tão sórdidos e tão inqualificáveis do ponto de vista moral que só podem ser investigados com a mesma objectividade e frieza com que um anatomopatologista disseca um cadáver putrefacto. A primeira página do romance, o relatório da descoberta do cadáver, é a este título exemplar e o facto de o cadáver ter sido descoberto por cães amplifica este sentimento de desprezo. Que a isto se tenha chamado uma balada, apresenta-se como o clímax do requinte em termos de sarcasmo. Um sarcasmo corrosivo, contudo frio. Um sarcasmo à Cardoso Pires.
Finalmente Alexandra Alpha mostra o país dos paradoxos, o eclectismo de um tempo em que o novo e o diverso coabitam com as sobrevivências grotescas do passado. É um tempo de transição que integra já os ideais e os sonhos utópicos dos anos sessenta asfixiados porém num universo de valores que lhe era hostil mas também a utopia social e política que alimentará a revolução. A desmontagem dos mitos continua mas agora, muito curiosamente, os mitos do regime aparecem lado a lado com os mitos libertários, eles também diluídos no seu tempo e tratados igualmente sem contemplações. Entretanto o 25 de Abril vem pôr isto tudo em cacos através da súbita emergência do pathos.
A personalidade que faz a ponte entre estes dois mundos é uma das melhores personagens da galeria de José Cardoso Pires, a publicitária de sucesso, Alexandra, a publicitária da Alpha Linn. Alexandra não é apenas a personagem que faz a ligação entre dois mundos, ela é verdadeiramente o lugar geométrico que tal como numa estrutura de articulação confere coerência à gravitação das personagens, assim como às oscilações que simbolizam. Em Portugal os anos sessenta e os anos setenta aparecem mediatizados pela transformação política. Como seria se essa mutação não tivesse ocorrido, isso nós não sabemos. Mas ela aconteceu e tornou-se motriz de todas as outras tendências ou erupções súbitas.
Quem viveu esse tempo em plena maturidade e juventude sabe dar o valor às personagens deste romance, pois de facto todas elas significavam um segmento da sociedade portuguesa no, doloroso para uns, exaltante para outros, processo de rotura. O autor poderia ser mais agressivo na composição dos personagens e poderia ter implementado outras figuras emblemáticas, mas isso provavelmente exigiria uma distância que ele ainda não teria na época em que escreveu o romance. Muito provavelmente o romance da rotura, em Portugal, estará ainda por escrever. Estou a referir-me ao grande romance. Alexandra Alpha será provavelmente um dos melhores que se escreveu a par seguramente do Cavaleiro Andante de Almeida Faria e do Auto dos Danados de Lobo Antunes. Estes são mais localizados, enquanto Alexandra Alpha será talvez mais cosmopolita. No caso do Cavaleiro Andante há ainda a considerar que ele estava agarrado à visão de conjunto da Tetralogia e no caso de Lobo Antunes ressalve-se o facto de que ele não escreveu sobre esta época apenas um romance, mas vários, como é o caso do Fado Alexandrino, por exemplo.
No romance de José Cardoso Pires, são personagens notáveis por exemplo, o marialva do Alentejo (o tio Berlengas) e o marialva de Trás-os-Montes (Sebastião Opus Night), dois remakes do Palma Bravo de O Delfim, mas que metem o Palma Bravo num chinelo. A verdade é que a realidade era agora muito mais quente e havia muito mais a perder ou a ganhar, além de que o autor já possuía agora uma tarimba que os romances e os ensaios anteriores lhe haviam fornecido.
E que dizer dos outros: A bonecreira Sophia Bonifrates, a Maria, professora revolucionária, Bernardo Bernardes, na pele do intelectual típico da época… Cada personagem capta a realidade nos seus desígnios óbvios ou secretos, o melhor e o pior de um certo tempo, enriquecido pelo facto de que o autor não cai no maniqueísmo, pois todos os sonhos e ideais assim como os desesperos e cegueiras radicais são atravessados por um olhar irónico, distanciado e sereno. Em boa verdade só Alexandra se salva. Ela é a heroína por excelência de um tempo que prometia muitos heróis mas que com o tempo se eclipsaram. Talvez por isso a sua heroicidade não seja social e política, mas antes da ordem da mutação mental e dos costumes; pois essas é que são as grandes revoluções, as que ficam, as que sendo lentas, são contudo eficazes e perduram no tempo.

5 Mai 2016

Exílio e Desgraça. A Ruptura Trágica

Coetzee, J.M., Disgrace, Penguin Books, New York, 2000.
Descritores: Literatura Sul Africana, Ficção, O Politicamente Correcto, 220 p., ISBN: 0-14-029640-9.
Cota: 821.111(68) -31 Coe

 

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]escritor sul-africano John Maxwell Coetzee nasceu no dia 9 de fevereiro de 1940 na cidade do Cabo numa família de origem alemã e inglesa e recebeu o prémio Nobel de Literatura em 2003, sendo o quarto escritor africano a receber esta honraria e o segundo no seu país depois de Nadine Gordimer, em 1991. Coetzee estudou Língua Inglesa e Matemática e veio a doutorar-se em linguística das línguas germânicas na Universidade do Texas, em Austin, com uma tese sobre os primeiros trabalhos de Samuel Beckett no ano de 1968. Actualmente depois de ter leccionado na Universidade em Búfalo no Estado de Nova Iorque, fixou-se na Austrália ensinando na Universidade de Adelaide. Era filho de um advogado e de uma professora primária e cresceu num meio afastado da vida urbana, marcado por alguma rudeza, no seio de uma família disfuncional, como são afinal quase todas as famílias, e é disso que nos dá conta no livro, Infância. As suas obras mais importantes são porém no domínio da literatura de ficção e delas eu destacaria: À Espera dos Bárbaros, Vida e Tempo de Michael K .” (Booker Prize de 1983), Desgraça” (Booker Prize de 1999), Homem Lento, Diário de um Ano Ruim e Verão.

Disgrace, em língua portuguesa desgraça, não me refiro ao título do livro, mas ao conceito, subentende uma perda da Graça. A Graça não é uma palavra ambígua. Procede do termo latino gratia, gratus, que como se sabe nobilita aquele que a possui, como se fosse um dom. Em todos os casos os conceitos ganham a dimensão semântica do que lhes é simétrico e sendo assim a graça é qualquer coisa que se recebe e ao mesmo tempo a gratidão que se exprime, como no caso do nome recebido pelo baptismo. A Graça é o dom que se recebe mas que se exprime como se fosse nativo. Em qualquer dos casos não tem preço nem valor de troca, é inalienável e grátis. É grátis e gratificante. O conceito de Graça anda muitas vezes na perspectiva de uma compreensão da condição feliz ligado ao conceito de Ventura, pelo que aquele que a perde passa a ser um desgraçado, cúmulo de desventura e infelicidade.
A desgraça exprime portanto uma situação radical e não é um conceito ligeiro numa fenomenologia da condição humana. É provavelmente o conceito mais radical para exprimir uma perda irreparável e até definitiva, pois o Estado de Graça é da ordem da estruturalidade do Ser. Coetzee mediu bem as consequências da sua escolha. A África do Sul há muitos anos que não vivia em estado de graça, provavelmente nunca terá vivido, mas só agora no período post apartheid soltou os demónios que a habitavam e mostrou a sua imensa e constitutiva Desgraça. Esse é o momento em que ontologia e história se reencontram nos indivíduos sem os mecanismos ideológicos e repressivos de amortecimento, sem os alibis justificativos. Disgrace é portanto mais do que uma narrativa com agentes sociais determinados, é o relato de uma epopeia numa situação post lapsária acompanhado do relato das várias formas de sobrevivência perante a desgraça ou a queda. Como é que indivíduos desgraçados lutam ainda pela dignidade numa sociedade doente, decadente, desgraçada ela também. Talvez que seja essa a intriga — no sentido de intrigante —, do romance. O romance ocorre no ambiente pós-apartheid, mas o que o justifica é ainda a presença tutelar do mal que o apartheid simbolizava.
Este é considerado o melhor romance de J. M. Coetzee. O livro conta a história de David Lurie, um professor de literatura que não sabe como conciliar a sua formação, o seu desejo e as suas frustrações com as normas politicamente correctas e portanto hipócritas da universidade onde lecciona. Disgrace navega portanto no mar turbulento das relações sociais, de género e de raça no ambiente agora clarificado da sociedade da República da África do Sul.
Os elementos mais presentes na estrutura de Disgrace são a inversão de forças ocorrendo em várias situações, cujos resultados são as muitas perdas e o deslocamento da identidade dos brancos em oposição ao fortalecimento dos negros; a associação da figura do protagonista com imagens demoníacas; e o reconhecimento do fim do apartheid e seus resultados como consequência da circularidade da história, levando a um pessimismo revelado na análise que o autor faz da sociedade branca sul-africana e do futuro que a espera. 28416P10T1
Percebe-se que os elementos possibilitadores do mal presentes em outros do seus romances se reposicionam, transmutam-se, vestem outros discursos, mas não desaparecem. Constrói-se uma nova abordagem, em que há a reversão da história construída pelos mais fortes, cujo resultado havia sido o apagamento ou a distorção da história dos mais fracos. Desgraça leva o leitor a perceber que não importando de que lado se está, a vitória de uns significa a derrota para outros. Isso implica não só a reescritura da história, mas a redefinição dos discursos permitidos e daqueles proibidos. Coetzee, no romance em questão, reconhece a culpa histórica dos seus antepassados, mas retrata uma sociedade em que as inversões se deram em todas as esferas, inclusive na agência da violência, o que acarretou profundas transformações na subjectividade dos sujeitos envolvidos nesse processo.
Observa-se no romance de J. M. Coetzee a figuração de uma tragicidade possível no mundo contemporâneo, porém com incidência distinta dos exemplos gregos (sem, contudo, perder pontos de contacto). Quando se fala em trágico, aqui, remete-se ao termo conforme a acepção moderna, formulada no romantismo alemão, que em linhas gerais se refere à afirmação da individualidade ante o mundo. Tal afirmação resulta quase sempre no aniquilamento do indivíduo. Em Desgraça, o cenário desse aniquilamento (o evento trágico) é a África do Sul pós-apartheid.
Ao ler este livro não pude evitar o sentimento de que algures existiria uma certa semelhança com a Mancha Humana de Philipe Roth e contudo não existe nenhuma proximidade de tempo e lugar, quer dizer relativamente ao tempo global, sim, é o mesmo, mas o tempo global é uma abstracção, é sempre de espaço tempo que se trata. E, nesse plano as diferenças são enormes. Ainda assim o destino das personagens principais dos dois romances, ambos curiosamente universitários e ambos apanhados na ratoeira da nova ideologia do “politicamente correcto”, é parecido.
Gostaria ainda de deixar aqui uma pista sobre o meu próprio texto que possa ajudar o leitor a descodificar melhor o breve excurso sobre a questão da ‘Graça’. Para lá da inevitável relação com a literatura teológica, sobretudo patrística e com Santo Agostinho em particular, tive muito em conta um texto de Giorgio Agamben, do livro Profanações, intitulado Genius. Existe na relação de cada pessoa com o seu Génio uma gravidade e um cuidado que em mim conecta com o sentimento de perigo (trágico) associado à eventual perda da Graça. Vivemos, provavelmente, nesta fronteira, tão precária, por vezes de modo algo leviano e porém o essencial da nossa vida estará eventualmente aí, nessa relação misteriosa com uma forma de transcendência que nos é constitutiva. “Os latinos denominavam Genius o deus ao qual cada homem se encontra confiado no momento do nascimento. A etimologia é transparente e permanece ainda visível na proximidade de ‘Génio’ e do verbo engendrar” (Agamben). O tema é muito exaltante e através dele podemos fazer esse itinerário que vai ao encontro do conceito de ‘Graça’, passando naturalmente pela célebre frase de Heráclito: “O carácter de um homem é o seu Daimon” (ethos anthropó daimon). Heidegger viria na Carta Sobre o Humanismo a explorar esta frase num sentido mais próximo da ideia de Graça cristã ao dizer que o “homem mora enquanto homem na proximidade de Deus”. Isso resulta do facto de que Heidegger ao procurar encontrar uma fundamentação ontológica para a ética, isto é para o ethos, conferindo-lhe a dignidade de um lugar, melhor de uma morada, isto é, de uma relação de vizinhança, forçou talvez o sentido heraclitiano da frase, mas seguramente não muito tendo em conta que o sábio de Éfeso gostava de se exprimir na proximidade da linguagem dos Mistérios e ele mesmo atribuía ao carácter o sentido da morada mais íntima do homem. O estado de graça confere essa vizinhança e essa morada, radicalmente, a sua perda adquire portanto a conotação de uma expulsão da morada e portanto de um exílio, etc. etc. Ora uma das palavras que na cultura grega exprimia e exprime ainda a ideia de felicidade, é Eudaimonia, que justamente exprime a ideia de um bom Daimon. Assim se percebe portanto a relação que pretendemos estabelecer entre a transcendência e o mundo, entre a ontologia e a ética. Os romances que citei exploram ambos esta problemática. Quando alguma coisa se rompe e não se devia ter rompido, quando um elo se quebra e uma vizinhança vital se deteriora, algo de trágico pode ocorrer…
Em Disgrace e na Mancha Humana é de exilados que se trata. Agora, porém, trata-se de um exílio sem a ambivalência construtiva que eu geralmente lhe atribuo, mas de uma queda, de uma perda da vizinhança com o Génio ou o Daimon. O ser desconecta da Graça… e portanto o que pode sobrevir é da ordem da Desgraça.

28 Abr 2016

O tempo e a estética

Ferreira, Virgílio, Mudança, Quetzal, Lisboa, 2009
Descritores: Romance, Rotura, Suicídio, 263 p.:21 cm, ISBN: 9789725647745

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.
Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

O tempo e a estética

Será Mudança o romance de Vergílio Ferreira que assinala a mudança de campo, do Neo-realismo para o Existencialismo.
Mudança poderia muito bem ser até para tornar o título mais emblemático. Mas seria muito prematuro, pois é de 1949. Para mim, de facto, nem é nada prematuro. Vergílio Ferreira apresenta sinais da sua voz, a voz que triunfou, desde muito cedo, eu diria desde sempre, e a verdade é que se sente que em Mudança, alguma coisa muda ou começa a mudar. O romance foi escrito para ser exemplar do ponto de vista da estética dominante, mas a voz do autor, tudo leva a crer, começava a impor-se ao próprio autor. Seria muito interessante elaborar uma odisseia das vozes nas vozes de todos os autores. Tentar descobrir o que é na elaboração de uma obra é da ordem do inconsciente em luta contra as disposições intencionais e programáticas da vontade. No caso de Vergílio Ferreira, sabe-se, é o tempo, o modo como é tratada essa variável determinante e a memória da infância os vectores através dos quais se começam a minar os alicerces neo-realistas. Com o tempo aparecerão nas suas obras progressivamente a náusea, a angústia e o absurdo.
Carlos, o personagem principal, oriundo de uma família desafogada e ele mesmo advogado, casa com uma jovem muito simples e muito prática, que é justamente aquilo que ele não é. Após a falência dos negócios do pai irá desencadear-se uma turbulência existencial que contudo começará por uma crise de marasmo e indolência. É a partir daqui que a vida de Carlos irá mudar radicalmente promovida por um regresso ao interior de si mesmo e à consciência culpabilizadora. O suicídio desenha-se num horizonte não muito distante.

A Questão do Estilo

Uma questão que atravessa, como já insinuei e aludi, a recepção da obra de Vergílio Ferreira é o tema da fidelidade estética. Mas se havia pouca paciência para ouvir os arautos das manhãs que cantam em plenos anos cinquenta e sessenta, imagine-se agora. As críticas estéticas rapidamente se tornavam ideológicas, naquela época, e portanto libelos contra a liberdade e a consciência e verdadeiros processos de intenções. Qualquer intelectual ou artista que não seguisse escrupulosamente as regras da cartilha dominante mergulhava imediatamente numa espécie de índex, agravado pelo facto de que esse índex continha censura não apenas política mas sobretudo ética e moral, pois para que o ostracismo fosse verosímil e justificável, impunha-se que ele fosse também uma condenação ao nível da consciência. Isso favoreceu uma ampla literatura a montante onde se inventariavam as taras sociais e mentais que favoreciam a traição.
Só o marxismo era considerado um método científico e só o proletariado era considerado uma classe revolucionária e digna. A suspeita era portanto sempre lançada a priori sobre as bases pouco científicas do pensamento quando se tratava da cultura das ciências sociais e sobre o estatuto de classe quando se tratava da arte. Mas esta última análise não se aguentava por si e era reforçada por uma análise mais psicológica do que económica ou sociológica. Era aí que entravam os conceitos de pequena burguesia, tão na moda, assim como de má consciência e de superioridade moral.
Vergílio Ferreira esteve debaixo de fogo como estiveram muitos outros submetidos à lupa ideológica, porém travestida de ortodoxia científica. Não vou aqui deter-me na ingente questão da oposição estrutural entre ciência e ideologia desenvolvida de forma contrastiva por Althusser e Ricoeur, na mesma época e com uma larga história onde pesa sobretudo a obra de Karl Manhein. Diria apenas por agora que o clímax da ideologia reside no facto de ela se pretender uma ciência. Quando um pensamento que não pode ser senão ideológico se procura legitimar através da caução científica, pode-se dizer que esse pensamento atingiu o máximo estatuto ideológico que uma ideologia pode almejar. A ciência não aparece aqui como ciência mas apenas como má fé, ou seja de facto, agora sim, como má consciência.
Esta pequena digressão serve apenas para dizer que não me interessa nada se a obra de Vergílio Ferreira evoluiu ou involuiu do neo-realismo para o existencialismo e, sobretudo a ser verdade essa trajectória, que também não me interessa saber em que momento a rotura deve ser assinalada. A maior prova da sua redundância e pouca seriedade reside no facto de que se referem várias obras para ser a charneira desse processo. Para uns o romance que assinala a transição, ou seja a traição, o desvio, etc. é Aparição, mas para outros é justamente Mudança e para alguns Manhã Submersa, e para outros ainda … e podia continuar. Depois há que considerar que o autor começa a desviar-se em romances que apesar de serem publicados depois começaram a ser escritos antes de Aparição, que é de 1969. Estou a referir-me ao Apelo da Noite e ao Cântico Final.
Enfim, isso de facto interessa pouco, o que interessa mesmo é ler Vergílio Ferreira e começar a lê-lo com Mudança, não me parece nada mal. Deixem que vos diga uma coisa: do que eu gosto mesmo, e muito, em Vergílio Ferreira é da tetralogia final da sua obra, ou seja dos romances Para Sempre, Até ao Fim, Em Nome da Terra e Na Tua Face. Mas ler os anteriores será muito bom, uma vez que ainda ficaremos a apreciar mais o autor, a sua capacidade de superação permanente, até à morte.

21 Abr 2016

Realismo, mito e melopeia encantatória

Riço Direitinho, José, Breviário das Más Inclinações, Asa, Porto, 1994.
Descritores: Romance, Portugal, Tradição, Identidade, Ruralidade, Memória, Pathos.

[dropcap style’circle’]J[/dropcap]osé Riço Direitinho nasceu em Lisboa no mês de Julho de 1965. Formou-se em Agronomia, e desenvolveu estudos em Economia e Sociologia Rural. A sua primeira produção significativa no plano literário foi a A casa do fim, obra que imediatamente revelou um escritor poderoso e original. Esta obra foi lançada em 1992, tendo-se seguido com curto espaço de tempo mais dois romances elaborados na mesma linha do romance de estreia e que foram os romances Breviário das más inclinações, em 1994, e O Relógio do cárcere, em 1997. José Riço Direitinho situa a sua obra romanesca num registo que oscila entre o realismo rural e o mítico; e é essa mistura de cultura popular com um sabor etnográfico, com uma memória que tende a mitificar as personagens que lhe confere a sua grande originalidade. Não será demais referir também uma poética do maravilhoso, ainda que ancorado num enorme acervo de superstições e crenças populares.

Realismo, Mito e Melopeia Encantatória

O livro começa muito bem como devem começar os bons livros, para aguçar o apetite e sobretudo estimular curiosidade e dúvida. O princípio de um livro pode tornar a sua leitura inevitável. Tudo deve ser dito e ao mesmo tempo nada. E isso não é fácil. Só os grandes livros, como o Pedro Páramo de Rulfo, a Conversa na Catedral de Llosa ou Heróis e Túmulos de Sábato, para só citar autores sul-americanos, com os quais Riço Direitinho tem afinidades. É verdade que tem também afinidades com autores galegos, como Valle Inclán ou Camilo José Cela e até mesmo com o transmontano Torga… O livro começa assim:

“Depois de se ter deitado com um homem, lavava-se sempre numa infusão de folhas de arruda, apanhadas ao luar, e bebia tisanas com sementes de funcho e de sargacinha-dos-montes, para que as regras não lhe faltassem. De maneira que nos dois meses seguintes à noite em que encontrou na eira uma maçaroca de milho-rei, não acreditou que estivesse grávida…” (p. 11). 

Assim começa este romance que narra a vida e a morte (aos 33 anos, como Jesus) de José de Risso, um homem de virtude que nasceu marcado nas costas com um sinal em forma de folha de carvalho. Pelo meio há o enorme lobo de Espadañedo, um lobisomem que descia da serra quando a Lua lhe estava de feição; há receitas de chás e de tisanas que curam do mau-olhado, da má-sina com as mulheres, dos amores infelizes, das galhaduras, dos maus pensamentos; há chás e tisanas que fazem recobrar os ímpetos aos homens; há também Purísima de la Concepción, a muito bonita e alegre viúva galega, de quem se dizia (sem se ter a certeza) que encomendara a morte do marido a um matador de touros andaluz a quem as mulheres casadas chamavam, com disfarçado fervor e muita paixão contida, Niño del Teso. Este romance de José Riço Direitinho, o Breviário das Más Inclinações, destacado pela crítica e premiado com o 7416P12T1Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores-APE, fala sem problemas de crenças, superstições e mundos envolvidos por atmosferas obscuras e estranhas. Jogando com efeitos elípticos e recorrendo a prolepses e analepses permanentes, as primeiras anunciadas no texto apócrifo que serve de guia para a acção, uma vez que todos os capítulos são precedidos de uma curta passagem de um outro texto, em edição fac-simile, intitulado Vida e Morte de José Risso, de autor anónimo, o nosso autor consegue pôr de pé uma história envolvente; insólita mas verosímil.
Mas os livros de José Riço Direirinho começam várias vezes pois a sua ideia estilística de base assemelha-se às melopeias populares que circulam pelas feiras, ou circulavam, e que conferiam às histórias uma inequívoca aura mítica e ao mesmo tempo plenamente realista.
O personagem central deste romance é José de Risso marcado por eventos que lhe conferem o estatuto. Antes de mais ele é fruto de uma única noite de amor de sua mãe. Depois essa noite de amor ocorre com um estranho, um estrangeiro digamos, que a engravida e a abandona sem saber que a engravidou. Depois ainda a mãe morre durante o parto, José de Risso nasce portanto já órfão, totalmente órfão, e finalmente nasce estigmatizado por um estranho sinal nas costas, como se fosse marcado à nascença, por uma mancha vermelha em forma de folha de carvalho. E é tudo isso; a que se acrescenta uma também estranha propensão para lidar com plantas medicinais e curativas; que compõe a sua aura e a sua sina, ou seja uma fama de curandeiro abençoado mas também de desgraçado e vítima de mau olhado. Um estatuto ambivalente que o autor do romance explora sempre muito bem.
Por exemplo: “Nasceu com a cabeça envolta nos âmnios. Há-de ser sempre feliz e terá o dom da adivinhação”, isto apesar de ter nascido “no dia vinte e quatro, dia de S. Bartolomeu, em que o diabo anda à solta”.

Pequena antologia de dizeres:

Depois de saber que estava grávida, procurou cumprir tudo para que a criança nascesse sem problemas: deixou de usar o cordão de ouro ou outro qualquer fio, para o bebê não nascer com o cordão umbilical enrolado à volta do pescoço, que é sempre sinal de morte prematura […]. (p. 12)

“antes de sair de casa, no começo desta noite irremediável, bebera chá de romã e loureiro para que o fel das entranhas não lhe subisse à boca. Esqueceu-se que essa infusão era também a mezinha das mulheres estéreis” (17).

A mulher acordou com um pesado bater de asas sobre as telhas. Dormira toda a noite. Ao abrir os olhos viu, pelas frinchas das tábuas do telhado, a primeira claridade do dia. Sobressaltou-se com o rumor dos pássaros, e logo depois com a ausência do marido: a cama não tinha sido desmanchada do lado dele. Só nessa altura conseguiu perceber que os grifos tinham voltado a Vilarinho dos Loivos, e que, quase sempre, deviam estar a voar em círculos largos sobre um corpo morto, à espera. (p. 41)

“uma insólita nuvem de pirilampos cobriu, pelo lado de fora, a janela do quarto.[…] Enterraram-na no final da tarde do dia seguinte, no canto do cemitério onde as mandrágoras e as beladonas teimavam em crescer durante todo o ano” (p. 61-62).

7 Abr 2016

Condição Humana: A Artificialidade do Espírito

Calvino, Ítalo, O Barão Trepador, Teorema, Lisboa, 1999
Descritores: Literatura Italiana, Realismo Fantástico, Antepassados, Tradução de José Manuel Calafate 310 p., ISBN: 972695-357-X
Cota: 821.131.1-31  Cal  

[dropcap style=’circle’]Í[/dropcap]talo Calvino é um dos escritores italianos mais representativos da literatura italiana do pós-guerra e de todo o século XX. Nasceu em Cuba na cidade de Santiago de las Vegas a 15 de Outubro de 1923 de pais italianos que logo regressam a Itália; vindo a falecer em Siena no dia 19 de Setembro  de 1985. Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Tendo-se formado em Letras, dedicou-se à política desde cedo e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Italiano, Veio a abandonar o partido em 1957, através de uma carta de desfiliação que se tornou célebre. A sua primeira obra foi este Atalho dos Ninhos de Aranha em italiano designado Il sentiero dei nidi di ragno publicado em 1947, ainda sob a influência da estética e ideologia neo-realista e da sua militância comunista e de resistência. Uma das suas obras mais conhecida e mais genial é As Cidades Invisíveis, ou seja Le città invisibili  de 1972; onde se evidenciam as personagens históricas de Marco Polo e Kublai Khan. Quanto a mim a sua obra mais importante é contudo o não menos famoso livro Se Numa Noite de Inverno um Viajante.

Condição Humana: A Artificialidade do Espírito
Este livro como os que imediatamente o antecedem e depois se lhe seguem denunciam uma evolução estranha em Calvino, relativamente à sua estreia como romancista, que num espaço de tempo muito curto passa de uma espírito de aggiornamento de partisan para uma atitude misantrópica anti-histórica e até aparentemente anti-humanista; e nesse sentido pós moderna inequivocamente, no sentido em que a pós-modernidade se opõe às metanarrativas da modernidade para me exprimir como Lyotard nas suas obras sobre o tema, em particular a Condição Pós Moderna e a Pós Modernidade Explicada às Crianças, este no quadro de uma intensa polémica com Jurgen Habermas, o que quer dizer que pondo em causa as grandes metanarrativas da modernidade, o autor põe consequentemente em causa a questão do sujeito, do sentido e a questão do humanismo. 31316P20T1
Foi provavelmente a perda das convicções e crenças do resistente e do militante que empurrou Calvino para este distanciamento relativamente à realidade acompanhado pelo culto de um non sense disruptivo, desagregador, irónico, céptico ou mesmo niilista e portanto a substituição de um realismo tout court por uma forma hilariante de realismo fantástico e absurdo.
Ítalo Calvino insere-se numa linha genealógica da evolução da Teoria do Romance que favorece uma ideia de personagem reflexiva e de narrador problemático. Os romances de Calvino são sempre ao mesmo tempo ensaios brilhantes que exploram de maneiras diversas a condição humana, histórica ou não. Algumas vezes sente-se a tensão diacrónica nos textos mas outras vezes o autor abandona-se a uma reflexão estrutural sem pudor de mergulhar nas águas límpidas da metafísica, da ontologia e da ética; embora os seus textos não percam nunca um sabor absolutamente ficcional e romanesco. É ele mesmo que, auto consciente de uma intencionalidade explicitamente heurística, nos diz, no prefácio aos Nossos Antepassados, que pretendeu com essa trilogia inventariar tipologicamente modos da aventura e experiência humana. Esta tipologia é conceptual e simbólica e não empírica. No Visconde Cortado ao Meio perpassa a consciência de que a vida humana é marcada por uma contingente incompletude disfarçada de estrutural, necessária ou constitutiva. Devem ter-se em atenção os mecanismos ideológicos de reificação e alienação travestidos de inevitáveis e dogmáticos. Aí se mostra portanto o caminho para a superação das mutilações impostas pelos condicionalismos sociais e, eu acrescentaria, e ideológicos. Em O Barão Trepador problematiza-se a sociabilidade e o conflito sempre latente entre o indivíduo e a sociedade e portanto os modos de procuração de uma completude que não aliene um dos elementos em jogo. E no Cavaleiro Inexistente evidencia-se a questão mais radical do Ser e os modos ao alcance do ser particular de poder alcançar uma plenitude existencial.
Todas as questões modernas das hermenêuticas da suspeita se equacionam na sua obra, em particular nesta trilogia de que O Barão Trepador faz parte, algumas de uma forma genialmente pré monitória.
Voltemos ao Barão Trepador.
Sinopse: Cosimo, um jovem nobre italiano do século XVIII, revolta-se contra a autoridade paterna e resolve trepar a uma árvore, depois passa de árvore em árvore e aí permanece durante o resto da sua vida. É espantoso e hilariante ao mesmo tempo o modo como ele se adapta a uma existência aérea. Ele consegue fazer tudo em cima das árvores: caçar, semear e colher; namorar, divertir-se com os amigos que vivem no chão e mais ainda. Lá de cima do seu poleiro arbóreo o barão assiste a tudo no seu tempo. Em boa verdade o barão trepador não se revolta apenas contra o pai, ele revolta-se contra a humanidade do seu tempo, quer dizer contra os valores, as mentalidades e a cultura do seu tempo.
Este romance de Calvino é para mim de uma importantíssima relevância ideológica. O homem é para mim, apesar do seu suporte biológico, um ser essencialmente artificial e artificioso, quer se queira, quer não. A sua capacidade de adaptação é notável, eu diria mesmo, absoluta. Nesse sentido o homem não tem natureza, ou seja, o próprio da sua natureza é não ter natureza, a essência própria do homem é a sua existência e a capacidade de adaptação a todas as situações que a existência lhe coloca. O barão que decide e consegue viver em cima das árvores é um bom exemplo. Não há limites à capacidade artificial da humanidade. O barão não aprendeu a voar, mas tê-lo-ia conseguido, mais tarde ou mais cedo, se precisasse, como veio a acontecer com os seus descendentes. Um dia a humanidade irá viver em outro lugar do Cosmos como Lyotard intui ao abordar o tema da sobrevivência da humanidade no quadro do desaparecimento do nosso Sistema Solar, no célebre livro, O Inumano. Mas isso ainda vem longe. Relativamente ao livro de Lyotard, como facilmente se percebe, eu só não estou de acordo com o título do livro que me parece absolutamente errado. Não há nada de inumano nessa possibilidade, bem pelo contrário.
O barão desencadeia ainda outro processo tipicamente humano, o do distanciamento. É um sonho humano permanente, o da superação e da distância. O facto de ser para o alto não é desprezável e ainda menos desprezível. A procura de um corte com as amarras, de um soltar das tenazes que prendem à terra e que no caso visa a altura, tem os contornos de uma sublimação e de uma elevação em direcção ao céu, enquanto metáfora salvífica e paradisíaca. Se fosse possível todos os humanos viveriam um tempo, ou sempre, longe do chão. Só nas alturas em rotura com as formas de vida em que nos encontramos mergulhados no lugar em que vivemos enclausurados em horizontes limitados e estreitos, como numa cela, seríamos talvez melhores; procurando portanto uma descentração relativamente às amarras geocêntricas e geomórficas é que se pode ver o Mundo e adquirir uma perspectiva panorâmica e globalmente livre. No fim de contas é o que sempre fez o Espírito. Por outro lado o processo de auto individuação dinâmica pressupõe ir do local e familiar para o universal e estranho, ir do Mesmo para o Outro. Do Ego para o Mundo. Então provavelmente um dia ir da terra para o ar e a água.
O Barão Trepador coloca de facto muitas questões e representa múltiplos desafios. Cosimo percebe que a sua ousadia terá um preço, ou pelo menos descobre-o, e que sair da convencionalidade de um mundo da necessidade e da segurança que ele oferece para entrar deliberadamente no domínio precário da contingência significa trocar a felicidade mesquinha, pela dúvida, pela improvisação, pela imprevisibilidade trágica do aventureiro, geradora quase sempre de incompreensão e mesmo de hostilidade. Com isso vem a solidão mas é assim a vida de todos os aventureiros e de todos os visionários e são eles que marcham à frente da humanidade, triunfantes.
A solidão de Cosimo é a solidão de todos os que se afastam da banalidade, da vulgaridade, da domesticidade e assumem os desígnios próprios da sua humanidade. Esta fuga não é uma alienação da condição humana mas a procura da verdadeira condição humana, aquela que volta costas à natureza para entrar deliberadamente no universo abstracto e artificial do Espírito.

31 Mar 2016

As pessoas e as coisas

Saramago, José, Objecto Quase, Caminho, Lisboa, 1997
Descritores: Contos, Insólito, Maravilhoso, Reificação, Alienação, ISBN: 978-973-21-0524-8.

José Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.[

As Pessoas e as Coisas

Este conjunto de contos intitulado Objecto Quase, publicado em 1978, resulta de uma abordagem simbólica à realidade decadente e em crise da sociedade capitalista. A opção pelos objectos e pelas coisas denota uma perspectiva sarcástica, desde logo, acerca dos mitos heróicos, das sociedades burguesas: as mercadorias. A corruptibilidade homóloga das pessoas e das coisas arruína os alicerces do mito capitalista. Neste livro, as pessoas confundem-se com as coisas e as coisas possuem um halo que as humaniza e dignifica. O que acontece no mundo acontece nas pessoas e nas coisas, como se houvesse uma mão invisível a conduzir os factos. O Anobium, esse coleóptero que se insinuou na cadeira para se alimentar, acabaria por fragilizá-la a um ponto tal que provocaria o seu desabamento, o seu desmoronamento, ou a sua simples ruína, tal como acontece nas pessoas, que também caem e desabam e se desmoronam, … Há em tudo isto uma solidariedade compósita que não é alheia ao ‘processo sem sujeito’ que a história é em última instância. Para lá disso existirá mesmo uma vontade cega, da ordem quase dos instintos, que as coisas partilham com as pessoas. Não se anda muito longe também do conceito de alienação marxista, do tempo dos Manuscritos Económicos e Filosóficos, obra que sempre fez as delícias de todos os marxistas. Saramago leva muito longe aqui esse conceito de reificação, em várias destas narrativas curtas, mas em particular no Embargo, onde perdemos a noção de quem é a pessoa e quem é o objecto, ou seja, a coisa, mas também na Cadeira, providencial herói à falta de melhor.[
Em A cadeira, alusivamente o assento do ditador, o que deveria representar o seu lugar, a consistência de um apoio, representa afinal a traição, a falência do conforto. Paradigmático objecto que na sua falência conduz à falência do regime e abre um caminho misterioso para a história. Nestes contos, o mundo, na sua consistência ontológica, funde objectos e pessoas, irmanando o destino de ambos, eu diria, inexoravelmente. O trágico está sempre anunciado e previsto intelectual e moralmente. É só preciso ver e perceber.
[

“A cadeira ainda não caiu. Condenada, é como um homem extenuado por enquanto aquém do grau supremo da exaustão: consegue aguentar seu próprio peso. Vendo-a de longe, não parece que o Anobium a transformou, ele, cow-boy e mineiro, ele no Arizona e em Jales, numa rede labiríntica de galerias, de se perder nela o siso”.

Claro que o conto pode ler-se também na perspectiva de que a cadeira é metonimicamente o próprio ditador. Então, segundo esta possibilidade, a ditadura foi derrotada por um simples escaravelho, não da batata, como a lógica, mas antes da madeira, o que provoca o tombo e a subsequente ruína do regime, trazendo um benefício para as pessoas. Assim se urde a história das pessoas (as palavras) e das coisas.
No Embargo, o automóvel adquire uma consciência radical da crise petrolífera e age à sua maneira, dotado de uma vontade própria. O caos só se instala nas narrativas quando o binómio pessoa / coisa se altera. Ora, simbolicamente, é o capitalismo que procede estruturalmente a essa mutação. Num mundo em que as pessoas perdem a autonomia é natural que os objectos possam adquiri-la. Porque é que um dos fenómenos há-de ser considerado mais extravagante que o outro. Preso dentro do carro, o homem sente que a sua dignidade se perde, sem autonomia o homem transforma-se num escravo, num fantoche na maior parte dos casos. O ser que não conduz a sua vida, acaba por ser conduzido.

“ (…) de madrugada, por duas vezes, encostou o carro à berma e tentou sair devagarinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altura de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixá-lo sair a bem, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir”.

Pode também explorar-se o tema do conto Embargo, à luz, mais ténue, de uma dependência dos homens relativamente aos objectos, tema esse que será sobretudo desenvolvido no romance a Caverna. Seria porém empobrecedor, tal como pobre é a Caverna. A ambivalência dos textos de Objecto Quase remete antes para uma aliança em vias de se perder. Se de um lado temos o enquadramento capitalista da produção de mercadorias e a sua fase agónica, no capitalismo tardio das sociedades pós industriais, temos por outro lado uma possibilidade de leitura que embora não completamente divorciado desta remete mais para uma análise da Coisa segundo o enquadramento heideggeriano de uma metafísica dos objectos. É a meio caminho entre o conceito de alienação marxista e o conceito de metafísica da subjectividade, cara a Heidegger, que se situam estes contos, pois a lógica própria da ficção favorece esta eventual deriva na ortodoxia do autor. Se José Saramago tivesse usado a mesma ambiguidade e a mesma ambivalência na Caverna teria evitado aquilo em que esta obra se tornou, um panfleto vulgar sobre a sociedade de consumo.
O melhor conto desta colecção, lida segundo o modo que explanei sumariamente é o texto designado Coisas. Deve deixar-se incólume à curiosidade do leitor. Deixo apenas aqui esboçado o modo como simbolicamente termina: “Agora é preciso reconquistar tudo. E uma mulher disse: Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas”.

24 Mar 2016

O ovo da serpente: secularização e progresso

Broch, Hermann, Os Sonâmbulos, Edições 70, Lisboa, 1989
Descritores: Literatura, Austríaca, Romance, Império Austro-Húngaro, Primeira Guerra Mundial, Valores, Crise, Fascismo, trad. de António Ferreira Marques, 167, [1] p. 2 v.:23 cm
Cota: C-4-4-259,260

Hermann Broch, de origem judaica, nasceu a 1 de Novembro de 1886 em Viena, à época capital do Império Austro-Húngaro. O consagrado escritor veio a falecer nos Estados Unidos da América em New Haven no estado de Connecticut no dia 30 de Maio de 1951. Teve como a maior parte dos judeus daquele tempo uma vida atribulada, tendo sido preso pelos alemães logo após a anexação da Áustria à Alemanha em 1938. Conseguiu contudo ser libertado, através da intervenção da comunidade intelectual, em particular de James Joyce, e depois acabou por emigrar primeiro para o Reino Unido e finalmente para a América. Durante anos dedicou-se a uma vida de aventura e boémia durante a qual se casou e separou várias vezes. Casou primeiro com Franziska von Rothermann e mais tarde com Milena Jesenská. Por causa de Eva Von Allesch, jornalista, ex-modelo nu e designada a Rainha do Café Central, Broch rompeu o casamento com Jesenská, que, ao que parece começou uma relação com o escritor Franz Kafka. Antes do seu primeiro casamento tinha-se convertido ao catolicismo. Pôs termo a esta fase da sua vida vendendo os seus bens e dedicando-se completamente aos estudos e à literatura. Estudou Matemática, Psicologia e filosofia na Universidade de Viena entre 1926 e 1930 e conviveu com insignes escritores, como Rainer Maria Rilke, Elias Canetti e Robert Musil. Da sua obra destaca-se justamente A Morte de Virgílio considerada a sua obra prima, mas também Os Sonâmbulos e Os Inocentes no domínio da ficção. No domínio do ensaio merece menção honrosa, o Geist Und Zeitgeist: Essays zur Kultur der Moderne, que reúne seis ensaios do autor. Em língua portuguesa apareceu com o título Espírito e Espírito de Época— Ensaios sobre a Cultura da Modernidade, onde se discute, em particular, a questão do kitsch na modernidade.

O romance Os Sonâmbulos consta de três volumes, a saber, Pasenow ou o Romantismo: 1888; Esch ou a Anarquia: 1903; e Huguenau ou a Objectividade: 1918.
O primeiro volume mergulha arqueologicamente no século XIX. Tudo leva a crer que foi aí que a crise começou. Terá sido aí que um certo mal estar civilizacional começou a fazer o seu caminho. E nesse primeiro volume o que interessa ressalvar é a brutal ascensão das massas, o Ovo da Serpente, associada à inevitabilidade da defesa dos valores da Modernidade, ou seja, progresso, felicidade para o maior número, ascensão social, democracia e direitos. Alguns intelectuais terão pensado levianamente que era possível promover tudo isto, que representava uma rotura imensa com a tradição e que ao mesmo tempo o sistema axiológico se mantivesse incólume e, ainda, que no fundo fosse possível adequar a nova ordem ao espartilho da ordem antiga, hierarquizada, disciplinada, diferenciada, portanto holista numa palavra, quando deveria ser óbvio que a revolução individualista e de massas exigia uma ordem nova, com valores de outra natureza, desde logo porque o equilíbrio e harmonia orgânica seriam abalados desde os seus alicerces e pressupostos e a primeira fase da fragmentação alucinante iria produzir como não podia deixar de ser e veio a acontecer, intranquilidade, desespero, insegurança e sobretudo vazio político mas também axiológico. Foi esse vazio que as modalidades endurecidas da modernidade exploraram sob várias formas, que aqui não vêm agora ao caso.
Esch simbolizará premonitoriamente o esforço de organização do caos e nesse sentido o esforço de reconfiguração dos valores desmoronados. Tenho para mim que Esch, quer dizer Broch, não assumiu tanto quanto devia uma crítica ao tempo ultrapassado e portanto persiste sempre neste tipo de exercícios uma vontade de regeneração pelo regresso que embaraça em vez de desembaraçar e portanto a superação inclui o removido mas não à maneira hegeliana enquanto aufbhung dialéctica mas enquanto nostalgia.
Como não há uma proposta de superação radical assente numa crítica e condenação das sociedades de antigo regime constitutivamente iníquas e moralmente decadentes abre-se a porta à reificação ideológica dos modelos que a história removeu, a formas de tirania agora sem a caução que a metafísica lhes conferia. O fascismo e o comunismo mais não são do que o holismo antigo imposto de forma autoritária.
O terceiro volume consagra o arrivista sem valores, niilista, ou seja o arauto de uma expansão vitalista de uma ideia de poder e de domínio. Trata-se do individualismo mal interpretado, levado às suas últimas consequências. Mas Broch nunca compreendeu o individualismo senão na sua versão deletéria de independência e egoísmo, na sua versão leibnitziana de mónadas sem portas nem janelas, de gerador portanto de fragmentação e caos e jamais na sua perspectiva emancipadora da autonomia assente na ética kantiana. Nunca se perceberam muito bem, ou não se quiseram perceber, os motivos pelos quais Kant foi tão coerentemente anti eudemonista e as razões pelas quais a sua deontologia ética e moral promove o imperativo categórico, à margem da mínima suspeita de sentido do interesse egoísta, ao mesmo tempo que remete todo esse universo para um avatar do individualismo na sua versão hedonista e utilitarista.
Herman Broch não percebeu ou percebeu, mas ao desafio complexo da Modernidade, com as suas inevitáveis crises de crescimento, prefere o retorno a um mundo mais estável, mais disciplinado, como se de resto isso fosse ainda possível. Coerentemente ao menos foi buscar as causas da sua ideia de decadência onde elas de facto, sejamos justos, se começaram a manifestar, ou seja naquela época da história em que o edifício da secularização, da autonomia, da liberdade e portanto do humanismo se começou a construir, quer dizer no Renascimento. Ele é corajoso no diagnóstico, ainda que esteja completamente errado:

A origem da crise está n’ “Aquela época criminosa e rebelde que é chamada de Renascimento, aquela época que cindiu a estrutura de valores cristã em uma metade católica e outra metade protestante, aquela época em que, com o desmoronamento do órganon medieval, principiou o processo de dissolução dos valores que duraria quinhentos anos e no qual se deitou a semente da modernidade, (…)”

Notável a clareza do equívoco. E mais lucidamente ainda Broch não deixa de salientar que não obstante não se pode nem deve imputar a responsabilidade a nenhuma das partes do complexo sistema, seja o individualismo, seja o protestantismo, seja a revolução humanista e científica, seja lá o que for. A culpa para Broch reside, usando uma ideia de episteme à maneira de Foucault, no puzzle conceptual moderno, no modo como as mesmas categorias se organizaram de modo diverso e para ele calamitoso.
Eu penso modestamente que sei, mas penso que Herman Broch não sabia, provavelmente não o poderia saber: que a transformação nuclear que fez desmoronar o órganon medieval e no plano social esse organon é holista e corporativo, não foi o Renascimento, nem a Reforma, foi a revolução epistémica desencadeada no interior da própria Idade Média e protagonizada por Dun Scoto e Guilherme de Occam. É a posição do nominalismo na Questão dos Universais que promove a dissolução da harmonia social medieval. Provavelmente até o Renascimento é já um epifenómeno e uma consequência da revolução nominalista. Mas, e não pretendendo adequar-me excessivamente à cartilha ideológica marxista da teoria do reflexo entre o domínio económico-social da infraestrutura e o tecto da superestrutura, quem se atreverá a não reconhecer o papel determinante, na corrosão do holismo corporativo medieval, das transformações económicas e sociais que começam na baixa Idade Média com as sucessivas revoluções económicas, em torno das actividades agrícolas, artesanais, comerciais e demográficas que culminarão na revolução urbana que aos poucos vai modificar a configuração social da Europa e onde acabarão por se evidenciar dinamismos revolucionários deletérios relativamente à ordem tradicional e propiciadores de uma reconfiguração social de tipo novo e inédito, de algum modo. Afinal o individualismo emergente que o nominalismo consagra no plano intelectual possui os contornos de uma transformação sistemática dos modos de vida, das relações sociais e de poder, às quais não foi estranha a revolução das comunas ou dos concelhos. Para quê tapar o sol com a peneira da ignorância, quando qualquer estudo sistemático e integrador das múltiplas dimensões do processo histórico aponta para modificações estruturais e, parece-me, irreversíveis. A modernidade não foi uma opção, a Modernidade era o nosso destino.

18 Mar 2016

A Comédia Trágica de Paixões e Virtudes

Balzac, Honoré de, Eugenia Grandet, Livraria Chardon, Porto, [s.d.].
Descritores: Literatura Francesa, Romance, A Comédia Humana, Realismo literário e burguês, tradução por Joao Grave, 246 p.:16 cm.
Cota: A  PED/B158e.2 

Honoré de Balzac nasceu em Tours no dia 20 de Maio de 1799  e faleceu em Paris, no dia 18 de Agosto de 1850. Foi educado durante sete anos no colégio oratoriano de Vendôme, onde imperava um modelo de educação muito rigoroso e severo. Nesse colégio acumulou experiências que ajudaram a fabricar o grande escritor em que se tornou. Desde logo a sua paixão literária, pois enviado inúmeras vezes para uma espécie de solitária, aproveitava para ler tudo o que podia. Mas acumulou também lições desagradáveis, a começar pelo sentimento de degredo e exclusão e a culminar no desprezo dos seus colegas. O balanço dessa fase é de inadaptação e indisciplina e quiçá de revolta íntima. Depois de um novo período de grande infelicidade, agora em Paris, em que chegou a tentar o suicídio, entrou na Sorbonne onde teve a sorte de ter sido aluno de Guizot e Victor Cousin. É mais ou menos assente que é na sua obra que se dá ruptura com o Romantismo e é por isso considerado o fundador do Realismo na literatura moderna, porém ficou célebre pelas sua profundas análises psicológicas timbradas de finas perspectivas históricas tanto sociais quanto económicas e finalmente políticas. Foi, nesse plano o verdadeiro cronista dos costumes da sua época. Estou a pensar no período histórico posterior à queda de Napoleão Bonaparte em 1815, época em que se assiste em França ao desenvolvimento da economia capitalista e ao florescimento da burguesia e às suas primeiras dissensões e clivagens. Foi provavelmente o mais prolífico escritor de todas as literaturas e de todos os tempos. A sua Comédia Humana consiste, pelo que se apurou, em 95 textos literários, romances, novelas e contos. Alguns tornaram-se clássicos da história da literatura universal e de leitura obrigatória, como são os casos de, por ordem de minha preferência: As Ilusões Perdidas de1839, Eugénia Grandet de 1883, que analisamos aqui, o Père Goriot de 1834 e a Mulher de Trinta Anos de 1832.

Lamentavelmente a Biblioteca Central de Macau não tem o livro de Honoré de Balzac, As Ilusões Perdidas, do ciclo a Comédia Humana, e digo lamentavelmente pois era sobre essa obra que eu mais gostaria de escrever. Terei assim que providenciar no sentido de que esse magnífico romance venha a enriquecer o espólio da Biblioteca o mais depressa possível para depois poder escrever sobre ele. Não podendo escrever sobre a obra prima referida decidi-me a escrever sobre o romance Eugenia Grandet que é seguramente a par do Père Goriot, do Coronel Chabert, da Mulher de Trinta Anos e de Esplendores e Misérias das Cortesãs uma óptima alternativa.
Passemos agora finalmente à Eugenia Grandet, essa jovem provinciana que aos vinte e três anos conhece de forma fulminante o fogo da paixão. Quando aparece assim, a paixão é sem recurso e de uma violência tal que pode consumir uma vida ou simplesmente redimi-la. Sendo filha de família abastada, enriquecida no negócio vinhateiro, à jovem estava destinado um dos muitos pretendentes da região de Saumour, nas margens do Loire, pois a sua fortuna e a sua beleza lhe davam o direito de poder escolher pelo nabal abaixo, tal era a fartura. Não obstante tudo se complicou com a chegada de um primo de ascendência aristocrática, de nome Charles Grandet, filho de um homem carregado de dívidas. A paixão pelo jovem —- distinto e educado pelos padrões urbanos da capital, que logo a seduziram, ela que era provinciana e imatura —- foi, como disse, fulminante, mas rápida e esclarecida também foi a oposição de seu pai, homem avisado e avaro por natureza. O romance é também sobre a avareza extrema deste ex tanoeiro enriquecido através do casamento. Tudo isto acontece no período da Restauração, época favorável às mais variadas formas de arrivismo. Eugénia, pelo contrário, é dotada de enorme candura e bondade e terminará a sua existência promovendo a caridade e a beneficência.
É preciso dar um passo atrás e deixar por agora a questão do enredo e dos temas que daí relevam para nos fixarmos no plano ideológico do romance. Aproveito para dizer que essa estratégia passa em mim por um acrescentado respeito pelo potencial leitor, o que significa não abusar da sinopse. Uma sinopse deve ser o mais parcimoniosa possível e portanto ser capaz de estimular a leitura de um livro sem roubar o posterior prazer que no caso de um romance será sempre indissociável das vicissitudes da história. É por isso que em todas as minhas recensões eu evito ser demasiado exaustivo em relação ao enredo.
Considera-se que na obra de Balzac, o romance que funciona como precursor do Realismo e desse modo como elemento nuclear da trama da transição do Romantismo para o Realismo, mas ainda no contexto epocal e eu diria sentimental do Romantismo, é justamente este Eugenia Grandet e sendo assim ele é um romance muito emblemático, tanto na obra de Balzac, como mais especificamente na História da Literatura. Nesta perspectiva a heroína do romance é uma personagem inaugural. Sabe-se que Balzac traz para os seus romances todos os grupos sociais, embora se tenha tornado exímio a caracterizar o modo de vida burguês, que é a classe que se começa a tornar dominante no seu tempo. Ora, tratar o tempo presente e trazer para os romances as contradições do seu tempo, assim como os sentimentos, as virtudes e os valores, é uma das características maiores do realismo literário. Além disso triunfa também o gosto e até a obsessão, pelo descritivismo de tudo o que habita o romance sob a forma de décor e cenário, ou seja de tudo aquilo que compõe a riqueza variada da realidade. Tudo isso se irá consumar em Flaubert mas já está anunciado em Balzac ou Dickens, por exemplo.

É preciso perceber que a entrada pormenorizada e exaustiva da realidade se conjuga com as crenças positivistas e evolucionistas da época plasmadas nas obras quer de Augusto Comte quer de Darwin. O homem é um produto do seu meio. A relação complexa dos seres com o seu meio determina formas de adaptação dinâmicas e não nos esqueçamos que é neste contexto também que a historicidade faz a sua entrada fulgurante na cultura, na filosofia e nas mentalidades, embora à época ainda muito influenciada pelo historicismo romântico de um Thierry ou de um Guizot, que como sabemos foi mestre de Balzac na Sorbonne. Daqui decorreu também sob a influência do objectivismo positivista uma inusitada paixão pela análise objectiva da realidade social onde os seres humanos são entrevistos à luz dos seus complexos sistemas de adaptação e confronto um pouco como os demais seres vivos.

Não andaremos longe de um certo organicismo social para cuja caracterização rigorosa importa não deixar escapar nada. Daí que tal como para os sentimentos, instrumentais no processo adaptativo, o que interessa é a sua análise preferencialmente objectiva e sobredeterminada pelas condições ambientais, assim também para a caracterização externa da personagem interessa valorizar o que a liga ao seu enquadramento social e histórico-epocal. E portanto tudo é trazido para a narrativa: os locais, os lugares, os interiores das casas, o vestuário, os adornos, etc.
Enfim, estou a referir-me às questões de Tempo e Lugar, variáveis por excelência da estética realista. Para além disso, nos romances de Balzac, as personagens não representam estereótipos sublimados mas antes pessoas comuns, tais como o médico, o gráfico, o jornalista, o comerciante, o funcionário, o banqueiro, o libertino, o poeta, a cortesã, o advogado e sendo assim o que justamente os caracteriza é o seu modo de vida, a sua actividade social e os valores que daí decorrem. A arte do Realismo literário, torna-se naturalmente muito sociológica e historicizante como reflexo da contaminação naturalista das ciências sociais.

Pode-se dizer que Balzac trouxe para a vida social burguesa e popular os temas reservados anteriormente às classes aristocráticas. Num certo sentido ele democratizou o drama e a tragédia. A expressão Comédia Humana é extremamente feliz. Anteriormente o trágico e o próprio drama estavam reservados às elites. Ao povo restava apenas a desacreditada comédia. Designar por Comédia Humana o que no fim de contas é o drama e o trágico, foi um golpe de génio, pois o termo ‘comédia’ aparece ironicamente e quase como expressão de uma crítica implícita mas através da cópula com o elemento ‘humana’ procede-se a um alargamento de campo revolucionário e ao mesmo tempo a uma desconstrução do significado do semantema ‘Comédia’ que de uma forma subtil passa a representar toda a dimensão da vida humana na sua natureza polimórfica e polissémica avessa à compartimentação. A concepção é burguesa e moderna. A obra de Balzac aparece no seu escopo mais fundamental com uma vocação universalista. Longo foi o caminho percorrido desde que a plebe grega dos hoplitas do Demos exigiu ter também acesso ao paraíso. E eu diria que neste plano simbólico culmina com esta democratização da tragédia levada a cabo pela cultura contemporânea. A igualdade reina agora finalmente na terra e no céu, e eu acrescentaria: e também no inferno.

17 Mar 2016

Quando os Fins Justificam os Meios

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]riedrich Durrenmatt nasceu a 5 de Janeiro de 1921, em Konolfingen, Suíça e veio a falecer a 14 de Dezembro de 1990 na cidade de Neuchâtel, Suíça. É tradicionalmente identificado pela sua obra de dramaturgo como por exemplo A Visita da Velha Senhora de 1956, embora as suas novelas sejam de valor inestimável sobretudo pelo seu estilo entre o absurdo e o surrealista. Pressentem-se relações estilísticas com Dino Buzzati, por exemplo. Friedrich Durrenmatt, para além disto consegue reunir nos seus romances e em grande plano, astúcia narrativa, o poder fascinante da intriga e capacidade reflexiva, ao ponto de os seus romances serem de algum modo inclassificáveis o que só acontece com os grandes escritores. Das suas obras mais importantes assinalaria, Está Escrito e O Cego ambas de 1947, , A suspeita de 1953, A avaria de 1956, A promessa de 1958, Os físicos de 1962, a Justiça de 1985 e justamente O juiz e o Seu Carrasco de 1952.

Nos romances policiais de Durrenmatt os representantes da justiça não são dados a grandes escrúpulos morais, como se os fins justificassem os meios. O comissário Barlach não foge à regra. Sendo um paladino de valores à moda antiga não deixará de usar meios ilícitos para levar a água ao seu moinho ou seja conseguir fazer justiça, mesmo se por ínvios caminhos.
Numa pequena cidade suíça, a morte de um polícia respeitado pela comunidade de nome Schmiedt, coloca Barlach na resolução do caso. Barlach é já um homem em elevado estado de decadência e encontra-se numa situação que parece terminal em termos de saúde, mas mantém incólume a sua obstinação assim como os valores (contravalores por vezes) que o destacaram no meio policial. Ele tem uma ideia do Bem que não se alterou com o tempo e em vez de se submeter aos dados da investigação procede de tal modo que a investigação se adeqúe à sua sede de justiça, e sobretudo nos termos em que a entende. Aos poucos, os factos ajustar-se-ão à sua concepção da Verdade e conduzirão a um desenlace inesperado, ao mesmo tempo trágico e cruel. 10316P13T1
O Juiz e o seu Carrasco, primeiro romance policial do grande escritor suíço Friedrich Durrenmatt, é um exemplo acabado da sua mestria de narrador, capaz de transformar uma história anódina numa obra-prima de inteligência e de imaginação. Mais do que uma história policial o romance é uma dissertação sobre a comédia humana e as suas, por vezes, precárias fronteiras entre o Bem e o Mal, a verdade e a justiça.
Não obstante, nada disto é ainda o que o romance mais profundamente significa, pois de facto o romance consiste, na sua essência, num ajuste de contas entre Barlach que de uma forma heterodoxa, mas autêntica, simboliza o Bem e Gastmann, que de uma forma real mas também simbólica representa o Mal. É a obstinação do ajuste de contas que legitima as práticas heterodoxas de Barlach.
A proeminência subliminar do ajuste de contas, que contudo não é nunca uma vendetta, ou não pretende ser, mas a consagração da vitória do Bem sobre o Mal, ilude a própria natureza do romance policial, no sentido em que parece que o texto se situa nos dois planos clássicos do género, a saber, a história do crime e a história da investigação e no caso de O juiz e o Seu Carrasco, mais investigação do que crime. Esta era a dualidade clássica do chamado Romance de Enigma, para retomar aqui a conceptualização tipológica de Todorov. Durrenmatt respeita-a formalmente e aparentemente mais do que formalmente pois na economia da sua obra ela pesa e de que maneira. A verdade é que só pesa aparentemente e a aparência está paradoxalmente à superfície, porque em subterrânea profundidade desenha-se outra história e outra dimensão narrativa. Há desse modo duas ausências, uma que é conatural ao género, a ausência do crime porque ele é sempre antecedente e até aqui tudo bem, e outra que é a ausência do leitmotiv do romance que afinal percebemos que não é a resolução deste crime concreto e que resultaria desta investigação concreta, mas a resolução de uma pendência estrutural que remonta a mais de 40 anos e que está completamente ausente pois a anterioridade é esmagadora relativamente aos factos em consideração.
Quando o autor de romances policiais funde na sua história, a história da investigação com a história do crime podendo fazer surgir novos crimes que estão sempre em potência, ou seja, na eminência de acontecer, passa-se para o domínio do Romance Negro ou de Suspense. Mas também não é isso que faz Durrenmatt, isso seria para ele uma cedência a um gosto demasiado popular. O romance de enigma é retrospectivo, essencialmente cerebral e portanto um puro exercício de inteligência, enquanto que o romance negro é prospectivo, daí o suspense, e portanto essencialmente emocional, daí a sua popularidade. Ora o romance de Durrenmatt, este em todo o caso, não é uma coisa nem outra. Ele põe em cena não apenas duas histórias mas três, as duas histórias clássicas mas ainda uma história subterrânea, sendo que afinal é essa história oculta, à qual o autor se furta durante a maior parte do texto, ou não fosse ela oculta, que justifica o romance. Esta história é a história do ajuste de contas entre o comissário e o criminoso. Esta história só tarde se percebe, durante quase todo o tempo nem sequer se pressente.
Barlach vai, em precárias condições de saúde mover uma caça sem quartel ao seu inimigo de estimação, paradigma moderno do criminoso nas sociedades em que o mal aparece mediatizado pelo poder plutocrático, pelo poder político, pelo poder ambivalente dos Media, pelo poder enfim metaplásico das redes de interesses e influências.
O recurso às isotopias da caça e da animalidade selvagem mostra o génio de Durrenmatt que rapidamente com poucas pinceladas transfigura o que era, aparentemente repito, um simples romance policial clássico, racionalista e transparente, num poderoso exercício sobre as metástases modernas do mal, e sobretudo sobre as mutações modernas do seu combate, aproximando-se de uma desconstrução da tardomodernidade, por um lado, mas promovendo ao mesmo tempo a ideia de uma luta sem quartel em que o justiceiro baixa ao patamar do criminoso. É esta metamorfose, assente no regresso de uma lógica antiga de olho por olho, dente por dente, de luta de vida ou de morte, sem lugar para regras entretanto engendradas pela civilização, que configura uma inequívoca crise da Modernidade.
No combate ao mal, vale tudo até o próprio mal. Barlach, diminuído fisicamente consegue mobilizar astuciosamente Tschanz, o assassino de Schmiedt, contra Gastmann e será a fúria daquele que porá termo ao símbolo demoníaco do mal. Simplesmente ao conduzir o romance para este final, Durrenmatt enterra neste romance policial a lógica do romance policial clássico. Tudo se arruína quando o comissário de polícia não está interessado em descobrir o assassino de Schmiedt, ou, descobrindo-o, de o culpabilizar, mas antes de usar o criminoso para fazer justiça, assassinando um outro criminoso, desligado porém deste caso, mesmo tratando-se de uma personagem essencialmente maligna. Barlach não quer saber da justiça relativamente ao polícia exemplar Schmiedt que fora assassinado; a sua concepção de justiça é menos fáctica e mais simbólica. Ele quer a cabeça de Gastmann, que para ele é o rosto do crime e do mal em absoluto e para isso desculpabiliza o assassino do caso que foi chamado a resolver, Tschanz, levando-o, fera contra fera, animal criminoso contra animal criminoso a assassinar Gastmann. Ele comporta-se tal como Gastmann se comporta, ao usar do seu poder de influência e do seu poder policial para se desviar do caminho da justiça. Ou não? Questão de resposta muito difícil. Justiça, ou afinal vingança?

10 Mar 2016

Diáspora do Desejo, Milan Kundera

Kundera, Milan, A Ignorância, Asa, Lisboa, 2001
Descritores: Literatura Checa, Nostalgia, Emigração, Exílio, Comunismo, Identidade, Democracia, Liberdade, ISBN: 9789724125862

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]ilan Kundera nasceu no dia 1 de Abril em Brno, na antiga Checoslováquia, hoje República Checa. Foi em tempos militante do Partido Comunista Checoslovaco do qual viria a ser expulso em 1950. Em 1956 foi readmitido, mas finalmente em 1970 foi expulso, desta vez definitivamente, desta vez teve por companheiros de (in) fortúnio, entre outros Vaclav Havel. Claro que esteve envolvido na Primavera de Praga em 1968, o que significa que as suas posições há muito tempo tinham deixado de ser ortodoxas se é que alguma vez o foram. Lembre-se que a Brincadeira data de 1967. Durante o período de ocupação do território pelas tropas do Pacto de Varsóvia, com Havel e outros participou num movimento de carácter reformista socialista mas contra o totalitarismo soviético, do qual desistiu em definitivo em 1975, ano em que abandonou a Checoslováquia para se exilar em Paris. Veio a tornar-se cidadão francês em 1980. Pode-se considerar que o estilo de Milan Kundera vai no sentido de uma tradição da Europa Central e em particular do eixo Viena-Budapeste e que muito deve a autores como Robert Musil e Herman Broch, mas também a escritores ingleses como, em particular, Henri Fielding, pelo modo como tece uma imensa tapeçaria de digressões e ensaísmo filosófico. Para além da sua obra-prima eu destacaria os romances, A Brincadeira, A Imortalidade e o ensaio A Arte do Romance entre muitas outras obras. Nenhum dos seus livros de ficção alcança a grandeza e a mestria de A Insustentável Leveza do Ser. Uma obra-prima só ocorre na vida de um escritor uma vez.

Diáspora do Desejo

Estamos sempre a aprender. Isto não é um dístico de vaidade ou arrogância, é mesmo e pelo contrário a assunção de uma humilde autocrítica, que me seja perdoado o recurso a esta expressão com conotações tão obscenas. Vem isto a propósito da leitura de mais um livro de Milan Kundera, incontornável autor de uma brilhante e vasta obra.
Repito-me por vezes insistindo sobre o facto de que as melhores obras de literatura da Europa Central possuem um sabor ensaístico que as distingue da maior parte da literatura de ficção da Europa Ocidental e mais particularmente ainda uma tonalidade acentuadamente cosmopolita e de vanguarda. Comparativamente à literatura francesa e mais ainda à literatura anglo-saxónica que contudo só se torna inequívoca na sua versão norte americana, as literaturas da Mitteleuropa, austríaca, húngara, checa e balcânica, em particular, apresentam sempre sinais de uma dimensão extra romanesca; ou seja, histórica, ensaística, e mesmo filosófica. Neste texto, de Kundera, ensaio ou novela que talvez seja o que ainda assim melhor se lhe coaduna, estamos sempre a ser surpreendidos por considerações que colidem com a nossa interpretação e sentido da conveniência entre os factos históricos e culturais. Feito depois um balanço final chegamos à conclusão de que afinal o edifício das nossas certezas não é assim tão abalado quanto isso, mas o choque e a surpresa não podem deixar de ser assinalados.
Vamos ao nosso caso concreto para melhor nos entendermos. Tenho para mim e já o disse aqui nas páginas deste jornal, nos textos que tenho vindo a publicar, que o melhor da cultura europeia do século passado e já na transição do século XIX para o século XX podia ser associado aos intelectuais da chamada Mitteleuropa e em particular aos intelectuais judeus. É espantoso o número de artistas e escritores e até filósofos com esta característica étnica, digamos assim com brevidade, que se evidenciaram nas suas actividades com assinalável mérito e brilho. 3316P14T1
Isso não pode ser desmentido, nem é o objectivo destas minhas considerações, por todas as razões, intelectuais, estéticas e até afectivas. Claro que a afectividade é multiforme e não se justificaria eventualmente se não contivesse os pressupostos de uma profunda solidariedade ideológica inseparável dos conceitos de alteridade, diáspora, exílio e desenraizamento. Desde logo porque estes conceitos são a matriz e os alicerces da minha própria posição sobre os temas que podem ser trazidos à colação: identidade, cosmopolitismo, concepção artificial e não orgânica da sociedade e do Estado. Provavelmente não sou só eu que se habituou a relacionar os judeus com uma cultura profundamente cosmopolita, assente em mecanismos de Identidade reduzidamente nacionalistas e até no limite a rasar os informes de uma cultura apátrida. A segunda guerra mundial e a perseguição que lhes foi movida com a consequente diáspora confirma-o e inscreve-se como um dos maiores fenómenos históricos do nosso tempo contemporâneo, com implicações inquestionáveis. Para o Mal e para o Bem.
Vem ao caso a digressão, a meu ver notável, que Kundera faz sobre o judeu austríaco, Arnold Schoenberg, a propósito de algumas questões que sibilinamente lhe foram colocadas por um jornalista americano, já o músico e teórico da escala de doze tons se encontrava há catorze anos afastado da sua pátria. A pergunta ia no sentido de querer saber se Schoenberg sentia saudades da pátria. A pergunta era sibilina pois sendo a Áustria a pátria do músico de Viena, a verdade é que o artista sempre identificou a Alemanha, a cultura alemã e a língua alemã, como a sua pátria espiritual. É nesse ponto que a posição de Schoenberg nos parece atípica pois exprime uma pertença muito vincada, enquanto judeu, relativamente à pátria de acolhimento e de resto nem sequer a essa mas a uma pátria culturalmente mais alargada e englobante o que o identificaria com a velha estirpe teutónica, o que afinal não corresponde à verdade. O que é verdade é que a germanização de Arnold Schoenberg foi consistente ao ponto de ter renegado o judaísmo e se ter convertido ao cristianismo na sua versão mais alemã, o luteranismo. Viria contudo a regressar à religião judaica em Paris no contexto da primeira fase do exílio, em consequência do nazismo, que o levará finalmente até à América, como a tantos outros.
Não foi para mim surpreendente o facto de Schoenberg, ter assumido a sua nacionalidade europeia, muitos judeus da diáspora assumiam as suas nacionalidades migrantes quase sempre com grande galhardia. Já é mais estranha a sua tão grande fidelidade à Alemanha e à cultura alemã, uma vez que os seus antepassados próximos eram originários da Hungria, já europeus, portanto, mas não alemães. Seguramente que a inserção de Schoenberg, pela educação musical, no espaço da tradição da língua alemã e isso aconteceu com muitos outros, artistas, músicos e escritores em particular assim como filósofos, poderá ter desempenhado um papel importante na redefinição de uma pertença acima das oscilações identitárias ligadas aos espaços físicos e políticos. Teríamos assim uma redefinição do quadro: Primeiro judeu, do ponto de vista étnico e histórico, depois húngaro pela origem familiar recente, mas por esta pertença já enquadrado num espaço germanizado, uma vez que a Hungria se integrava no espaço geopolítico do Império Austro-húngaro de que Viena era a capital. Aliás foi justamente em Viena que o músico nasceu a 13 de Setembro de 1874. Finalmente por esta via vienense acabaria por se ligar à língua alemã e finalmente à cultura alemã.
Milan Kundera explora estas contradições da vida espiritual de Schoenberg, fazendo-o de uma forma articulada com conceitos e com vidas de personagens, em particular Irena, ou seja a personagem principal. Se o conceito motor de A Insustentável Leveza do Ser era a compaixão, o conceito motor deste romance, A Ignorância, é a ideia de nostalgia, que o autor trata etimologicamente na sua complexa evolução histórica e linguística e ainda na sua diversificação semântica. A personagem principal do romance, Irena, é uma checa há alguns anos a viver em Paris, para onde emigrou na circunstância da ocupação da Checoslováquia pelas tropas comunistas do Pacto de Varsóvia, como aconteceu aliás com o próprio Milan Kundera. Irena, a fazer fé pelos dados cronológicos terá saído de Praga logo na época da invasão em 1968, pois agora, no romance claro, está há mais de 20 anos emigrada. Estaremos portanto em 1989. A sua grande amiga Sylvie espera entretanto que no contexto revolucionário que começa no leste da Europa a partir de 1988, Irena deseje voltar à pátria; seja pela pátria seja pelo menos pela revolução.
Sylvie, a sua amiga, é animada, ainda, pelo espírito da chamada Grande Marcha, tal como Franck o era em A Insustentável Leveza do Ser. Esta crença da marcha para a liberdade é um avatar ideológico de longa duração, uma das muitas metanarrativas da Modernidade, expressão de um sentimento tão europeu e francófono, herdado da Filosofia das Luzes. Só a título de curiosidade, foi justamente essa crença nas Grandes Marchas, pelo progresso, pela liberdade e pela paz que determinou que a cultura europeia tivesse entrado em crise na segunda metade do século XX.
A crise foi em larga medida estimulada pela falência das metanarrativas, falência essa, ditada, justamente, por eventos como a segunda guerra mundial e o nazismo mas também paradoxalmente acelerada pela débacle do Império Soviético. O Império Soviético, o seu colapso, tão abrupto e rápido, levou consigo, pelo menos durante um certo tempo, o sonho igualitário do Comunismo. Provavelmente nada de mais ambivalente aconteceu na Europa em toda a sua história. O fim do comunismo representou o colapso de um mito, de uma crença historicista enraizada na Europa, e representou também a agonia de uma perspectiva escatológica, embora secularizada, que produzira sentimentos tão contraditórios e apaixonados.
O fim do comunismo foi para muitos, o fim de um sonho e para outros tantos, o fim de um pesadelo. Em boa verdade, e eu já o escrevi num texto sobre a pós-modernidade, o fim do comunismo encerrava em si mesmo a dupla dimensão de um sonho e de um pesadelo em simultâneo. Só na dinâmica diacrónica da história é que o fenómeno se desdobrou e pôde ler-se como um sonho que degenerou em pesadelo, que afinal há muito já tinha degenerado em pesadelo, conquanto mantivesse ainda uma enorme aura de esperança e sonho. Eu digo paradoxalmente, de facto por isso mesmo, porque apesar do que na realidade e na prática representava, o comunismo era ideologicamente ainda para uma boa parte da consciência ocidental, embora cada vez menor, uma ideia emancipadora e revolucionária, ou seja, uma metanarrativa e uma Grande Marcha.
É balizado por estes pressupostos que Kundera desenvolve numa digressão longa, para minha surpresa, um longo artigo de reflexão sobre a figura de Schoenberg. O desenvolvimento teórico é apaixonante, mas isso não é nada surpreendente, pois Kundera que estudou música a sério é um largo e profundo conhecedor da matéria. A surpresa radical estala quando o autor me coloca perante uma declaração de Schoenberg, em que este teria afirmado na sequência da sua invenção da escala dodecafónica, que “graças a si, a dominação, (não disse ‘glória’, disse Vorherrschaft, ‘dominação’), da música alemã, (ele, vienense, não disse música ‘austríaca’, disse alemã) estaria garantida, durante os próximos cem anos” (p. 14).
Como se sabe, alguns anos depois estaria exilado em Paris, banido e ostracizado por essa mesma Alemanha de cuja Vorherrschaft se ufanava e cuja glorificação quisera garantir com a sua própria arte. Mais surpreendido fiquei, mas convencido, por agora, quando Kundera exacerba um dado absolutamente inesperado para mim e que é a ligação da arte de Schoenberg a mecanismos de enraizamento no solo alemão, a fazer fé que o músico teria usado esta expressão. Ora, usou mesmo, o que para mim é aviltante pois sempre li a obra de Schoenberg, e cito tantas vezes o poema de Jorge de Sena, na Arte de Música em que o poeta glosa literariamente o Concerto para Violino e Orquestra do célebre músico vienense, afinal alemão, como sendo a grande expressão de uma modernidade cosmopolita e quase apátrida. Para mim o concerto é a expressão de uma sensibilidade desenraizada, pessimista e agónica dos balbuciamentos de uma modernidade que sofre os efeitos da primeira crise intelectual e moral ao mesmo tempo que assinala o triunfo de um individualismo decadente e desiludido. Mas pelos vistos as coisas não se passavam assim na consciência finissecular de Schoenberg e em vez de se sentir como eu sempre o vi, e Kundera também, como alguém que estava a escrever o fascinante epílogo da História da Grande Música Europeia ter-se-ia sentido antes o prólogo de um glorioso futuro.
Confesso a minha enorme estranheza e perplexidade.
Mudemos de assunto. Sempre soube de uma forma sobretudo intuitiva que alguma coisa me incomodava nas estratégias identitárias e nos seus cultos repetitivos e reiterados. A obsessão pelo mesmo, a invocação exaustiva de memórias sempre as mesmas que constituem por exemplo a argamassa de coesão dos grupos sedentários, as tertúlias dos cafés de bairro, os clubes que se frequentam sempre para as mesmas actividades, as inevitáveis conversas redundantes e circulares, das quais nunca se sai. E também por um processo intuitivo me apercebi das vantagens ontológicas da rotura, do abandono, da recusa do quotidiano, da fuga para longe ou em última instância mesmo para perto, a procura de um escondimento quando a fuga não é possível. Nunca fui de grandes rotinas e de grandes fidelidades. É vital e visceral em mim desaparecer para me salvar das tenazes da repetição viciante, da acédia, das monotonias que preparam o logro das grandes armadilhas, as teias de aranha dispostas nos recantos, o pratinho de mel envenenado sobre a eterna mesa sempre posta e ali à mão. Não vale a pena explorar os elementos ontológicos e metafísicos da fuga, do retiro ou da aventura, eles são sobejamente conhecidos e explorados pela literatura e pelo cinema até à exaustão. Deixemos isso portanto de lado agora. Já escrevi de sobejo sobre o tema, lathe biosas, hoc erat in votis, redi ad cor, purga, sublimação, ascese etc. Centrar-me-ei antes na problemática levantada por Kundera nesta novela: a questão da narrativa. A questão central e dramática da necessidade da narrativa. Diz o autor que Ulisses, que lhe serve como paradigma homológico e fac simile, se aborrece infinitamente pois todos lhe falam de Ítaca, quando o deveriam interpelar, no sentido de o estimular, sobre a sua odisseia! Não fora o caso de que antes de acostar a Ítaca ter sido levado para o País dos Feácios por causa de um naufrágio e teria morrido intoxicado de acontecimentos sem ninguém para desabafar, o termo só pode ser este. Ora no núcleo claustrofóbico das relações identitárias só podemos desabafar a redundância da nossa história partilhada, comum, aquela que no fim de contas é menos idiossincraticamente nossa a título pessoal e privado, ensimesmados em torno de lugares comuns exaustivamente partilhados até à náusea. Isso é o que justamente acontece nas comunidades fechadas, nas comunidades emigrantes por exemplo, em que os dispositivos identitários adquirem os contornos de uma tara, narrativa tautológica, obsessiva, onde jamais pode brilhar a disfuncionalidade de uma outra narrativa puramente individual, única, inovadora, capaz de por si fazer estalar o verniz e a argamassa do idêntico, instituindo a perversão da surpresa e do inesperado, o escândalo do imprevisto, a agressão disfórica do inusitado. É deste modo que eu sou levado a entender por exemplo a necessidade do Imperador Kublai Khan mas também a de Marco Polo, nas Cidades Invisíveis de Calvino. Precisam ambos daquele suplemento vital. Não é nada difícil aceitar que isso aconteça mais facilmente no contexto da diáspora e na relação entre estranhos, desconhecidos. Não podendo por ora dizer mais do que isto, penso que se percebe que tudo isto caracteriza o poder da efabulação, o poder comunicativo inaugural da paixão amorosa, da descoberta, do encontro acidental, o poder afinal do desejo. Só o estrangeiro, só o estranho, só o desconhecido, provocam de forma radical o nosso ínsito desejo ficcional e efabulatório, quando, tal como provavelmente o Rei dos Feácios terá feito com Ulisses e Kublai Khan fez pela mão de Calvino, e vindo ao nosso encontro, nos diz: Quem és tu? De onde vens? Conta! Narra-nos a tua vida, a tua história, pois ela será tal como todas as vidas, única e exemplar. Em todos os seres humanos está adormecido um efabulador e um aventureiro. Só no quadro de uma relação de alteridade é possível furar a carapaça da identificação ao mesmo, romper as fronteiras rígidas da rotina, da tirania quotidiana, previsível, programada, que nos amarra como uma armadilha.
Note-se como, e não deixa de ser muito esclarecedor, em várias línguas o sentimento de desejo nostálgico, ou saudoso mesmo, se estrutura em torno, em simultâneo, dos conceitos de falta ou ausência e de estranheza, no sentido em que o estranho é o estrangeiro e marca central de alteridade. Na língua inglesa o sentimento exprime-se através do verbo to miss, em português faltar. Dizer que me tens feito falta é o mesmo que dizer que sinto saudades de ti. Mas em castelhano é ainda mais interessante a denotação, pois é mesmo estrañar que exprime imediatamente saudade ou nostalgia, …. Tenho-te estrañado tanto, significa que me tens feito falta, que sinto saudades da tua presença, etc.
Os dados estão assim lançados para que se possa ligar de uma forma dinâmica e mesmo dialéctica, a alteridade, o amor, o estrangeiro (estranho) e a narratividade. Para mim só neste contexto dinâmico faz sentido estudar e desenvolver o conceito bem português da saudade, ou seja enquanto potencialidade narrativa do desejo.

3 Mar 2016

A mancha humana

Roth, Philip, A Mancha Humana, Dom Quixote, Lisboa, 2005
Descritores: Literatura Americana, Ficção Psicológica, Afro-americanos, Judeus, Identidade, Racismo, Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, 377 p., ISBN: 972-20-2577-5.
Cota: 821.111(73) -31 Ro

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]hilip Milton Roth é um escritor norte-americano de origem judaica (mais um) que nasceu em Newark, Nova Jersey (Onde nasceram outros grandes escritores americanos), a 19 de Março de 1933. Actualmente diz que deixou de escrever e que Nèmesis é o seu último romance. Trabalha, ao que parece, na elaboração da sua biografia com Blake Bailey. Philip Roth publicou uma extensa quantidade de livros, dos quais destacaria Good Bye Columbus de 1959, por ser a primeira obra reconhecida pelo público e pela crítica; O Complexo de Portnoy de 1969, por ser a obra que lhe deu celebridade e a sua primeira obra-prima; O Teatro de Sabath que de algum modo é o clímax deste ciclo marcado pelo desejo sexual, embora em boa verdade todos os romances de Philip Roth apresentem esta marca a par dos temas que reflectem os problemas de assimilação e identidade dos judeus americanos. Destacaria ainda A Mancha Humana de 2000 pois culmina a trilogia americana, em que Roth desconstrói a ideologia americana (politicamente correcta e do politicamente correcto) e embora os outros dois, ou seja A Pastoral Americana e Casei com uma Comunista, de 1997 e 1998 respectivamente não sejam negligenciáveis, são a meu ver demasiado à maneira de Saul Below. Destacaria finalmente o ciclo mais recente onde se evidenciam, sob o signo do envelhecimento e da perda, os romances, O Animal Moribundo, Indignação, Humilhação e Nèmesis. Os temas deste ciclo final não apareceram de súbito na cabeça do autor pois, em boa verdade, ele já os tinha abordado em obras mais antigas como nos textos Homem Comum ou O Fantasma Sai de Cena onde já se enunciavam e exploravam os temas do fim da vida com todas as suas misérias físicas e espirituais. 25216P16T1

Politicamente Correcto: Inquisição e ditadura

Philip Roth é um autor fácil de ler, pelo menos para mim, mas muito menos fácil de analisar, aliás muito difícil mesmo. Vou contudo tentar fazer o inventário das linhas de orientação do programa de Philip Roth, qual a intencionalidade pragmática e problemática da sua narrativa e as coordenadas ideológicas diluídas na poética da comunicação, desde logo neste livro mas também no conjunto da sua obra, a partir dos textos que estão ao meu alcance na Biblioteca Central de Macau. Ainda que a sua obra se tenha vindo a estruturar por ciclos distintos tanto no plano temático como até no plano estilístico, não deixa de ser também verdade que persistem, em toda a sua obra literária, elementos comuns e estruturais.
A última fase da sua produção, por exemplo, através dos títulos emblemáticos, Humilhação, Indignação, Animal Moribundo e Nèmesis, constitui, em si mesmo, uma unidade, de preocupações, de significação e de horizonte de sentido claramente mais pessimista que o resto da sua obra, que nunca é contudo senão pessimista. Se numa primeira fase o escritor explorou a temática da sexualidade sobretudo explícita em livros como O Complexo de Portnoy e o Teatro de Sabbath, mais tarde acrescentou-lhe uma linha de orientação que visava a desconstrução sistemática da ideologia americana e toda essa evolução culmina justamente em A Mancha Humana, romance de articulação entre todas as fases e provavelmente a obra que define o autor por antonomásia.
Na fase final, quer dizer actual, os seus temas vão mais no sentido alargado de desconstrução do mal num plano mais universal, o da humanidade, entrevisto numa lógica de fim de ciclo vital. Philip Roth foi assim do particular para o geral, como convém. Nesta inteligente organização dos seus temas e preocupações o autor faz coincidir as suas reflexões finais com a universalidade da condição humana e objectivamente com o seu próprio ciclo de vida. De uma forma que não me parece acidental o autor justapõe o existencial ao biológico, desenvolvendo de uma forma orgânica a evolução da obra homologicamente com a evolução da sua vida numa perspectiva que não anda longe da evolução das próprias civilizações à maneira de Spencer.
Quando li A Mancha Humana, senti interiormente uma imediata satisfação: finalmente alguém escreve de uma forma inteligente sobre a deriva, aliás mais errância que deriva, da orientação da cultura do nosso tempo. Sob a capa da vigilância democrática que mais não é do que um desvio puritano ao sentido da liberdade começa a ganhar terreno uma nova forma de inquisição, muito mais sofisticada que a anterior, mais diluída e portanto não hard mas antes soft, cool mesmo, mais discreta mas no fundo muito mais eficaz e que pode pôr em perigo a democracia e a liberdade. É uma inquisição fria, exteriormente pouco repressiva mas condicionadora no plano íntimo da consciência. Para se tornar mais explícita a mensagem da sua obra Philip Roth convoca imediatamente o exemplo libidinoso de Clinton, num pano de fundo em que se percebem os movimentos fantasmáticos da sórdida intriga, moralista e ridícula. A verdade é que foram muito poucas as vozes que se levantaram contra a sordidez inquisitorial. Num conto das Histórias dos Mares do Sul de Somerset Maugham, já ficou provada a sordidez desses inquisidores, desses objectores de consciência agora entretanto transformados em inquisidores e paladinos da moral. Nesse mesmo ano, um intelectual sério e honrado, um judeu, que afinal não era, é condenado à expulsão de uma universidade por causa de uma expressão que numa acepção poderia ter uma conotação racista, mas que na sua versão mais denotativa e original era incólume.
Os inquisidores são atraídos sempre para onde cheira a sangue ou a esterco. Eles sentem a necessidade disso como uma espécie de alimento para as suas consciências esvaziadas, reduzidas a uma forma. Eles representam o mal radical no sentido kantiano e justamente porque radical, inapreensível pelo comum das pessoas. Eles pervertem a norma na raiz da norma conquanto a respeitem na sua formalidade exterior e visível. Assim fizeram a cama a Coleman Silk e só não a fizeram a Clinton por uma unha negra. Incomoda-me denominar este tipo de inquisição pela ditadura obscena do politicamente correcto, mas a verdade é que não se trata de outra coisa.
O politicamente correcto tem os contornos do preconceito, não é de resto outra coisa senão preconceito, mas pela primeira vez na história a classe esclarecida, a classe culta domina o universo dos preconceitos e faz com ele o que sempre se fez, só que desta vez o preconceito possui um inusitado poder condicionador pois é esgrimido pela mesma classe que historicamente encabeçou todos os combates e se bateu contra os preconceitos. Pela primeira vez na história o universo preconceituoso não aparece solto, fragmentado, esgrimido pela parte da sociedade ultrapassada pelo progresso e pela história, mas aparece sistematizado, como uma ideologia da classe culturalmente dominante e democrática, aquela que rasga os caminhos da modernidade. Essa classe guardiã da justiça, da liberalidade, da saúde colectiva, essa classe securista e protectora, vigilante de todos os dogmas do progresso, começa a exercer no nosso tempo a mais nefasta ditadura de que há memória. É ténue a fronteira entre a liberdade e a repressão.
Quando as forças de rotura real, as forças do progresso, do espírito de emancipação real se ausentam ou entram em crise, a estrutura ossificada da classe dominante traspõe essa fronteira, de modo silencioso e, o horizonte repressivo, aparece então de modo inapelável. Torna-se cada vez mais difícil definir um espaço de liberdade onde a procura da identidade não encontre o obstáculo da ossatura politicamente correcta. E volto a dizer, tudo isto em nome da liberdade, do progresso, das minorias, dos humilhados, dos desprotegidos, os marginalizados, seja de que natureza for.
As personagens de A Mancha Humana esbracejam neste casulo, neste espartilho claustrofóbico. É o caso de Silk entalado entre discursos identitários adversos, pois por puro acidente não é negro, sendo contudo filho de negros, acaba por fugir do ghetto em que sentia que se estava a aprisionar, assume uma identidade judaica, talvez para compensar o sentimento de traição e má consciência e por via desse travestimento acaba por ser julgado como racista anti negro, quando afinal ele mesmo o era geneticamente falando. Faunia que vive o mesmo problema mas no plano social e por isso se envolve com Silk, muito mais velho num plano estritamente sexual, Delphine Roux que abandona o país e os pais para ser autónoma e independente e assim por diante. Todos pagam claro por abandonar o rebanho. Sobretudo todos pagam por não pretenderem ser o que não querem ser no quadro desta irmandade puritana e hipócrita.

25 Fev 2016

O fim de um mundo

Pires, José Cardoso, O Delfim, Moraes Editores, Lisboa, 1978.
Descritores: Literatura, Romance, Mudança, Contraste, 362, [1] p.:19 cm.

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

A 2 de Outubro de 1925, nasceu José Cardoso Pires em São João do Peso, no concelho de Vila de Rei, na parte beirã do Pinhal. Frequentou o Liceu Camões e a Faculdade de Ciências onde, porém, nunca se viria a formar em Matemáticas. Em 1945 alistou-se na Marinha Mercante, mas também não foi muito bem sucedido nesta actividade tendo acabado por se tornar jornalista. A dada altura tornou-se director das Edições Artísticas Fólio onde promoveu alguns escritores nacionais e estrangeiros que marcaram a literatura do século XX. O Delfim publicado e republicado em 1968 é geralmente considerado a sua obra-prima. Faleceu em 1998 e repousa no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Do conjunto da sua obra destaco a novela O Anjo Ancorado de 1958, o ensaio de 1960 intitulado A Cartilha do Marialva, O romance O Hóspede de Job de 1963, em homenagem ao irmão falecido em acidente de aviação militar, o livro de crónicas na antecâmara da morte De Profundis, Valsa Lenta e finalmente o aclamado romance A Balada da Praia dos Cães de1982.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s personagens do Delfim sendo personagens de ficção e podendo ser tidas em conta por arquétipos sociais de um mundo que desapareceu ou estaria à época em vias de desaparecer, a verdade é que existiam mesmo e continuaram a existir, num país que demorou a abandonar os valores de uma cultura pré capitalista e pré moderna. Possuíam uma existência anacrónica, se pensássemos nos estereótipos sociais da capital, mas não era necessário andar muito em qualquer direcção para encontrarmos os Palma Bravo deste (daquele) país à sombra de privilégios de Antigo Regime mas sobretudo gozando de estatutos completamente desajustados do seu tempo, no entanto em Portugal plenamente vigentes ainda. Eu diria que subsistiram muito para lá da industrialização e das alterações jurídicas e políticas contemporâneas. Fala-se, a propósito desta gente, de fidalgotes e marialvas, quando em boa verdade o que melhor lhes assenta é o estatuto de caciques. A província portuguesa que começava quase logo às portas de Lisboa, mas que se adensava à medida que nos afastávamos da capital mantinha uma rede de relações de poder e formas de mentalidade e cultura inerentes, típicas das sociedades de ordens e de potlach, como se o tempo não tivesse passado por elas. E não era necessário mergulhar no país profundo do interior e do norte. Ele mantinha-se resistente mesmo em cidades de escala média. Não havia em Portugal vila ou cidade que não possuísse famílias como sendo o equivalente dos Palma Bravo. Mesmo, e a título de exemplo, em cidades como Coimbra que contudo era uma das maiores cidades universitárias do país. De facto esta cidade, e não esquecer que a dou a título de exemplo, ainda na segunda metade do século XX se mantinha organizada no seu tecido urbano em castas, suportadas estas por formas de convivialidade que salvaguardavam formas de tratamento, estatuto social e protocolo, típicos de antigo regime. Portugal era ainda um país de coutadas com um peso significativo de esferas privadas em detrimento de uma vida pública cosmopolita, democrática e moderna. No entanto o caciquismo, o potlach, os privilégios, as desigualdades não constituíam uma tara, qualquer coisa como uma excrescência paradoxal numa realidade outra. Eles estavam, de facto, enquadrados por formas de vida, de cultura e de mentalidade absolutamente afins, e eram normais e dominantes na maior parte dos casos. No Delfim a figura do engenheiro ou infante simboliza muito bem e encarna na perfeição a sobrevivência de uma mentalidade de antigo regime: o orgulho, o complexo de superioridade relativamente ao povo que no entanto é olhado sempre através de uma sentimentalidade paternalista e magnânima. É assim a cultura do potlach, é assim o aristocratismo serôdio do caciquismo. O antigo regime persistente mantém os valores antigos, mas já lhes falta garbo e coragem.
E uma das explicações, talvez a mais consistente é a de que o regime que resultou do golpe de estado de 1926, cristalizado depois no Estado Novo e na constituição de 1933, regime impropriamente designado por fascista, apostou num conservadorismo arcaizante e na manutenção de uma ideia de estaticismo social, determinado em larga medida pelo medo das transformações sociais que no caso da vizinha Espanha iriam conduzir a uma terrível guerra civil. O regime salazarista foi essencialmente um regime atávico, medíocre, conservador e mesquinho, ao qual sempre faltou o sentido do risco e a grandeza do desafio e do perigo. Por isso o narrador não lamenta o colapso deste mundo, pois para ele esse mundo é já obsoleto e já insignificante. Todos os valores continuam como se nada tivesse acontecido, mas agora sob uma forma caricatural e quase obscena.
José Cardoso Pires instala-se nesta realidade em mutação, em estado final, segundo um modelo de transformação estrutural a que não será alheia a transformação conjuntural do regime, do salazarismo para o marcelismo, com as suas pequenas grandes reformas. O romance é contudo mais premonitório que realista e sobretudo através das suas micronarrativas ideológicas onde se confrontam dois mundos o que é mostrado através do olhar irónico, do escritor urbano, culto e progressista, é o mundo, baseado em preconceitos, da Gafeira. Muitos intelectuais progressistas e urbanos entretinham este tipo de relações com o mundo rural, através de laços familiares ou de relações de amizade e podiam portanto exercitar sentimentos críticos, contudo não radicais e almofadados sempre por um desencanto suave. E muitas vezes eram práticas como a caça que permitiam estas fugas de uma realidade, ela também pouco satisfatória, para estes guetos parados no tempo. O espectáculo de um mundo em declínio que procura agarrar-se a pedaços de retórica ideológica e axiológica, sobretudo moral, explorando em desespero as contradições inerentes ao progresso, é porém um dado da nossa cultura pós-moderna. “O Delfim é o romance de um mundo que terminou, e cujo anacronismo levou à desintegração de tudo, até do discurso do narrador, e isso é uma característica do pós-modernismo”. (Seleste Michels da Rosa).
Eu diria antes, de um mundo que estrebuchava, por não terminar e que no caso português durou ainda algum tempo até se desintegrar por completo. Só apenas a título de pista sociológica de trabalho, eu penso que mais do que a acção política e as transformações económicas, foi o complexo fenómeno da emigração em massa que, alterando de forma radical a estrutura social do mundo rural, apressou o fim desse caciquismo que sabia tão bem tirar partido do poder que resultava da pobreza e da miséria cristalizados em relações pessoais de dependência e subserviência.

18 Fev 2016