O armazém que verte lágrimas pelos anos 80

Os Milagres do Armazém Namiya (Namiya Zakkaten no Kiseki, ナミヤ雑貨店の奇蹟) estreou no passado dia 23 no Japão

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme, co-produzido pela Emperor Motion Pictures e pela Wanda Media, é baseado no romance homónimo de Keigo Higashino. No entanto, esta não é uma história típica de Higashino, autor japonês que ficou conhecido pelas suas obras de crime e mistério. Este belo romance ganhou a 7ª Edição do Prémio Chūōkōron e vendeu mais de 1,6 milhões de exemplares na China.

Três jovens fogem depois de um assalto e escondem-se durante algum tempo numa casa abandonada. Situada na periferia da cidade, numa zona com pouco trânsito, a casa tem uma parte residencial e um armazém. Por cima da porta do armazém está afixado um grande cartaz onde se pode ler: Armazém Namiya. Como é óbvio, a loja está fechada há muito tempo. Mas, enquanto os jovens estão escondidos algo de estranho acontece. No silêncio da noite, ouve-se cair uma carta na caixa do correio. O remetente é uma jovem atleta que pede apoio emocional e aconselhamento especializado para a sua participação nas Olimpíadas de 1980, que se irão realizar em Moscovo. A carta tinha sido escrita há 40 anos atrás! Os jovens gangsters decidem responder. E a atleta volta a escrever-lhes. À medida que a troca de correspondência continua, apercebem-se que o mundo dela começa a avançar a um ritmo acelerado, enquanto o tempo dentro da loja permanece virtualmente imóvel, desde que mantenham a porta fechada. Os três tomam consciência desta situação através do artigo de uma revista antiga que tinha sido abandonada dentro das instalações. Há perto de 40 anos, pouco antes da loja ter fechado, o velho proprietário, Yūji Namiya, tinha conquistado alguma notoriedade por dar conselhos prudentes e gratuitos a desconhecidos que lhos solicitavam. Depois da morte da esposa, percebeu que ajudar os outros a ultrapassar os seus problemas dava sentido à sua vida. Mas, extraordinariamente, Yūji Namiya tinha previsto que qualquer coisa  de semelhante viria a acontecer, e deixou escrito no testamento que a loja teria de ficar como a deixou…

Este filme, bastante nostálgico, leva-nos de volta ao Japão dos anos 80, antes de se ter deixado corromper por um estilo de vida consumista e stressante. Nessa altura, mesmo em Tóquio, quase não havia supermercados e as donas de casa faziam as suas compras nas lojas de bairro, como o Armazém Namiya. Hoje em dia, estas lojas de bairro, os banhos públicos e os restaurantes familiares foram substituídos por lojas de conveniência abertas 24 horas e por cadeias de supermercados. E por falar em cartas, quando é que foi a última vez que pegou numa caneta e se entregou a este singelo e antiquado ritual?

Veja o trailer aqui: bit.ly/2jUHPit

Os Milagres do Armazém Namiya

Realizador: Ryuichi Hiroki

Drama/ Fantasia | 129 min

Língua: Japonês

27 Set 2017

A primeira chinesa de mochila às costas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro guia chinês de viagens para a Europa e para os Estados Unidos foi escrito entre 1926 e 1927, pela primeira chinesa a correr o mundo de mochila às costas. Chamava-se Lü Bicheng. Foi também a primeira mulher chinesa a trabalhar como editora num jornal e a última escritora de poesia Ci.

O seu guia de viagens dá conta de um desfile de Carnaval em Paris, de um motim em Viena, e conta-nos a história de um americano desconhecido que a tentou seduzir numa rua de Roma. Mais à frente leva-nos numa visita a Beverly Hills, onde quis olhar as fachadas das casas de todos os seus ídolos do cinema. A seguir goza consigo própria por causa do choque cultural de toda aquela situação. Toque pessoal aparte, o guia fornece uma enorme quantidade de informações úteis sobre reservas, alfândegas, bagagens, câmbios, hotéis, gorjetas etc., tudo a partir da sua experiência como mulher e como viajante. Onde é que se pode comer um hotpot japonês em Londres? Quanto custa um prato de tofu? Onde é que se pode encontrar um restaurante chinês em Berlim? Será possível partilhar a comida de um companheiro de viagem, num comboio em Itália? (Ela tinha medo de ser envenenada e roubada por uma família italiana). Qual é a multa por cuspir num eléctrico em Nova Iorque? De Veneza a Viena é mais rápido ir de avião ou de comboio? No guia constam também listas infindáveis de monumentos e outras atracções, bem como os seus historiais. Este manual é também um registo único do Ocidente, situado numa bolha do tempo, os anos 20 do século XX. E tudo isto sem o Lonely Planet, o Google map ou as câmaras digitais. O que lemos é o resultado das experiências em primeira mão de uma mulher viajante, que testemunhou o aparecimento dos filmes sonoros e assistiu em directo à conquista do direito de voto das mulheres com menos de 30 anos no Reino Unido.

Esta foi a mulher que correu o mundo sozinha há 90 anos atrás.

Nascida em 1883, Lü Bicheng rompeu o noivado por causa da morte do pai. Nessa altura decidiu fugir de uma vida convencional. Tornou-se professora e fundou uma escola para raparigas. Mais tarde viria a ser secretária de Yuan Shikai, um Senhor da Guerra, que se auto-proclamou Imperador traindo assim o sonho de uma China republicana. Nessa altura Lü Bicheng abandonou-o, desiludida. Acabou por tornar-se uma empresária de sucesso e fez fortuna. Depois disso, em 1920, deixou a China e rumou à Universidade de Columbia, onde estudou Arte e Inglês. Durante este período traduziu para chinês A História Concisa dos Estados Unidos da América. Voltou a casa por um breve período e voltou a viajar em permanência entre 1926 e 1933. Todas estas viagens deram origem ao seu guia. Mais tarde foi uma acérrima defensora dos direitos dos animais.

Morreu em Hong Kong em 1943. As suas cinzas foram lançadas ao mar, de acordo com a sua vontade.

21 Set 2017

“Made in Abyss” a não perder

Foto: “Made in Abyss” banda desenhada online

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos perante a maior cratera inexplorada do mundo, chama-se Abyss. Tem um 1 km de diâmetro, mas ninguém conhece a sua profundidade. É habitada por várias espécies há muito extintas à superfície da Terra, e alberga relíquias e tesouros lendários. É um lugar perigoso e exótico que funciona com uma lógica muito própria. Para aqui são atraídos aventureiros e sonhadores, que acabam por morrer em busca da verdade e na senda dos tesouros. O perigo só aumenta a sua aura de mistério e deslumbramento.

E é então, que uma cidade se ergue em torno da gigantesca cratera, construída e habitada pelos exploradores. Estes homens são movidos por diferentes motivos. Alguns perseguem desafios, outros perseguem a fortuna.  Chamam-lhes Cave Raiders, e dividem-se em várias categorias consoante as experiências e as capacidades de cada um.

Rico é uma órfã de 12 anos que sonha vir a tornar-se exploradora, à semelhança da sua falecida mãe. Um dia conhece um estranho rapaz-robot chamado Regu que pode vir a ajudá-la nesta aventura.

A banda desenhada original Made in Abyss foi publicada pela editora digital Web Comic Gamma no website Manga Life Win.

A série de animação é realizada por Masayuki Kojima (Monster). Hideyuki Kurata é responsável pela banda sonora (belíssima e surpreendente) e Kazuchika Kise (Ghost in the Shell: The New Movie) coordena o desenho das personagens.

Não se deixem iludir pela naiveté das imagens. Made in Abyss é sem dúvida o melhor anime deste Verão. Na minha opinião vai ser com certeza a estrela do ano. É um épico e mostra que na maior parte das vezes, a verdade pode ser realmente, mas REALMENTE negra.

Veja o trailer aqui:

https://bit.ly/2eXY8cQ

E se for rápido, ainda pode ver um episódio com legendas em inglês antes que o apaguem https://bit.ly/2eXWEPF

14 Set 2017

O realizador chinês mais corajoso de sempre – Parte III

Três Irmãs, um documentário de Wang Bing

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]esta terceira parte vamos passar uma lista de filmes recentes de Wang Bing que vos recomendo.

Crude foi realizado um ano depois de He Fengming, em 2008. O documentário, com duração de 840 minutos, é um épico ainda mais longo que West of the tracks e ainda mais incrível. Com um total de 14 horas condensadas em apenas 20 planos, a câmara lança um olhar de grande pureza e naturalidade sobre a realidade duríssima dos trabalhadores que extraem petróleo no deserto de Gobi.

Dinheiro do Carvão estreou em 2009. O documentário acompanha o rasto do dinheiro gerado pelo negócio do carvão, manchado pelo sangue dos que trabalham nas minas. O realizador brinda-nos com a agudeza do seu sentido crítico: O coração dos homens é tão negro como o carvão.

2009 foi um ano muito produtivo para Wang Bing, para além de “Dinheiro do Carvão”, apresentou ainda mais dois documentários “hi pond” e “sem nome”.

O homem sem nome (2010) acompanha a vida de um vagabundo anónimo que, no entanto, tem um lugar para viver. Não se lhe pode chamar “casa”, porque não passa de uma caverna sem electricidade, sem água e sem sanitários. Um anónimo “homem das cavernas”, sem qualquer relação com o resto da sociedade, vive lá dentro. O director de câmara seguiu-o durante um ano e registou todas as suas palavras. É provavelmente o melhor trabalho de Wang Bing.

Em 2010, Wang realizou o primeiro filme de ficção, A Vala. Este filme é uma versão ficcional da história de He Fengming (Ver Parte II). A dureza da luta de classes e a fome tornaram a vida num purgatório.

Depois de terminar A Vala, Wang foi visitar a mãe. No regresso, cruzou-se acidentalmente com três crianças, e este encontro marcou o início do documentário Três Irmãs, focado na pobreza das zonas rurais de Yunnan. Mas será que o realizador nos deixa vislumbrar uma luz ao fundo do túnel?

Em Yunnan, Wang Bing filmou também Até que a Loucura nos Separe, um documentário de quatro horas sobre doentes psiquiátricos internados num hospital de reabilitação. Alguns são doentes mentais, mas outros são pessoas abandonadas, “doentes de solidão”. Nenhum deles consegue fugir ao estigma da loucura. Mas estes doentes não mostram medo nem quaisquer tabus quando enfrentam a câmara. É um filme deprimente, porque a objectiva revela um mundo implacavelmente “real”. Não se aproveita da miséria nem nunca cai no melodrama. É como uma escrita sem adornos, feita de frases cruas, onde cada palavra é fiel e, fielmente protege personagens despidas de qualquer encanto visual e que vivem existências sem nada para mostrar.

Às vezes, possivelmente com mais frequência do que gostaríamos, a vida é mesmo só isso.

6 Set 2017

O realizador chinês mais corajoso de sempre Parte II

[dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]ang Bing filmou o seu segundo documentário, He Fengming, em 2005.

Só com uma câmara, centrada numa mulher que sobreviveu aos horrores da era de Mao, Wang Bing conta uma história intimista, minimalista, quase privada. Antiga professora e jornalista, He Fengming relata de forma vivida, dolorosa e detalhada o pesadelo que viveu durante 30 anos, após a revolução.

A narrativa começa com Fengming a descer a rua coberta de neve que vai dar ao seu apartamento. Agora, sentada na sala, a mulher idosa, mais excepcionalmente bem conservada, fala para a câmara de Wang durante cerca de três horas, quase sempre em tempo real. A estratégia, totalmente não comercial, coloca o espectador numa humilde posição de receptor, quase como convidado de He. Estamos perante um estilo que preserva a pureza dos contadores de histórias. A narrativa nunca é interrompida por perguntas ou comentários. Durante quase três horas, esta mulher descreve os tormentos por que passou na prisão, num enquadramento decididamente não cinematográfico, mas sempre hipnótico. O olhar do realizador marca a forma como a história é contada, todo o seu drama e toda a sua tragédia. A abordagem totalmente estoica de Wang parece ser a forma certa e respeitadora de trazer ao espectador todo um mundo de emoções, embora este universo lhe seja desconhecido e nunca tenha imaginado sequer experiências tão degradantes.

He Fengming foi premiado no Festival Internacional de Cinema Documental de Yamagata em 2007.

Veja aqui uma entrevista com o realizador – a verdadeira natureza das histórias:

https://bit.ly/2xGebQ0

30 Ago 2017

O realizador chinês mais corajoso de sempre: Parte I

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hama-se Wang Bing e poucos o conhecem.

Muitos dos realizadores de documentários começaram como fotógrafos, Wang não é excepção. Diplomado pelo Departamento de Fotografia da Academia de Belas Artes Lu Xun, trabalhou para produções televisivas até 1999, altura em que filmou o seu primeiro documentário Tiexi Qu, West of the Tracks.

Tiexi é um imenso complexo industrial situado no Nordeste da China, na província de Shenyang. Construído durante a ocupação japonesa, foi restaurado com o apoio dos soviéticos após a 2ª`Guerra. Era o maior centro de manufactura do país. O período entre o pós-guerra e os anos 80 foi florescente, as fábricas no seu conjunto empregavam mais de um milhão de trabalhadores, mas, à semelhança de outras indústrias geridas pelo Estado, começou a colapsar a partir do início dos anos 90.

O documentário de Wang Bing mostra-nos a inevitável morte lenta do obsoleto sistema de manufactura. Bing filmou detalhadamente, entre 1999 e 2001, as vidas dos últimos operários, uma classe a quem foi prometida a glória durante a revolução chinesa. Esmagados pelas mudanças económicas, estes operários surgem como heróis comoventes neste épico moderno, que tem a duração total de 551 minutos, mais de 9 horas!

Reconhecido como “um dos melhores documentários chineses de sempre”, o filme é um retrato hipnotizante de uma sociedade chinesa em transição. Levou três anos para ser filmado.  Devido à sua longa duração, está dividido em três partes.

Parte 1 Ferrugem (244 minutos)

A câmara capta os derradeiros trabalhadores da fundição que laboram no único forno que resta, durante as suas actividades diárias. A falência parece ser inevitável e, desde o interior da fábrica até aos espaços de convívio, Wang Bing traça um retrato fascinante destas vidas moribundas.

Parte 2 Os Remanescentes (178 minutos)

Rainbow Row é uma favela construída em 1930, para albergar os trabalhadores do distrito de Tie Xi. Esta área era conhecida como a Cova das Criadas. Actualmente os seus residentes enfrentam o desemprego e salários em atraso.

A câmara acompanha o dia a dia de algumas pessoas; um jovem que após uma extração da Lotaria, procura bilhetes eventualmente premiados que possam ter caído ao chão; lixo e neve empilhados nas ruas geladas; jovens no mercado Cisne Feliz a pensar em esquemas para arranjar dinheiro e namoradas; crianças a recolher latas enquanto uma idosa assa tofu; jogadores de mah-jong que no Verão se reúnem no exterior das suas casas … Entretanto ficamos a saber que o bairro vai ser demolido para dar lugar a um condomínio privado. Toda a gente vai ter de sair dentro de um mês. Gradualmente o bairro esvazia-se, à medida que a neve o vai cobrindo.

Parte 3 Os Carris (132 minutos)

Um sistema de carris proporciona a circulação de vagões que transportam matérias primas e bens de consumo de, e para, Shenyang. A neve que não pára de cair e o fumo eterno criam uma atmosfera opressiva. Os sinais de vida são escassos à medida que o comboio avança através deste labirinto de fábricas praticamente abandonadas. Os trabalhadores cumprem as suas funções de forma mecânica, matando o tempo com mexericos, cartas e cigarros. Uma das suas maiores preocupações é armazenar carvão para poderem aquecer as salas geladas. Toda a gente teme o futuro, embora a Primavera tenha trazido algum alívio depois do penoso Inverno. O Outono sucede ao Verão. Em breve estamos na noite de Fim do Ano. Um pequeno fogo preso é ateado junto à casa e, lá dentro, os amigos bebem e conversam sobre amor e casamento. E toda a gente ajuda a fazer uma tachada de dumplings.

West of the Tracks deu início a uma nova era, a de um cinema lento e intimista. Quatro anos mais tarde, em 2005, Wang Bing filmou o documentário He Fengming. Mas esse fica para a próxima, ou seja, a Parte II desta crónica.

23 Ago 2017

O comboio mais longo da história

Se a Arca de Noé fosse um comboio teria 500 metros de comprimento, segundo o realizador coreano Bong Joon-ho.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]nowpiercer (2013) é um filme baseado na banda desenhada francesa Le Transperceneige. Bong Joon-ho descobriu esta obra nos finais de 2004 e ficou fascinado pela ideia de um grupo de pessoas encerradas num comboio a lutar pela sobrevivência.

Olhemos primeiro para a banda desenhada.

Le Transperceneige (The Snow-Piercer) é uma banda desenhada francesa de ficção científica com uma temática pós-apocalíptica, da autoria de Jacques Lob e de Jean-Mac Rochette. A primeira edição, de 1982, recebeu o título de Transperceneige, tendo sido posteriormente alterado para The Escape. Ao contrário de uma nave espacial, um comboio é um espaço que nos é familiar a todos. E é precisamente esta abordagem “comum” que faz com que esta história de ficção cientifica, sobre a luta pela sobrevivência após o “fim do mundo”, tenha um encanto ao qual podemos acrescentar a ideia da viagem, que nos é dada pelo comboio. Ninguém pode fugir para o exterior se quiser sobreviver, mas, lá dentro, todos os dias são deprimentes e privados da luz do dia. As pessoas estão prisioneiras do ritmo alucinante do comboio, que corre sempre em frente como um lunático, conduzido pelo Divino Motor.         

 Será um bocadinho forçado dizer que gostei particularmente da atmosfera sufocante deste Século do Gelo, que me foi dada pela banda desenhada?

Agora vejamos o filme.  Em primeiro lugar destacam-se os ambientes, impressionantemente lúgubres. Mas, por falar em lúgubre, a Tilda Swinton leva a taça (Deus do Céu, a cena em que ela tira os dentes! Se eu algum dia fizer uma entrevista ao Bong, tenho de ficar a saber tudo sobre o seu  fetiche com dentes!)

Em segundo lugar, o filme mostra de forma muito clara todo o horror da sociedade do comboio. As pessoas enfrentam condições tão primitivas, que têm de se matar umas às outras se quiserem sobreviver. As rebeliões são incentivadas e planeadas pela elite como forma de controlo demográfico e as crianças nascem para garantir que o Divino Motor continuará sempre a trabalhar. Será que isto vos faz lembrar qualquer coisa?    

Existem muitos detalhes fantásticos que vos podem escapar no meio das múltiplas sequências de acção, porque acontece tudo muito rapidamente. Por exemplo, numa carruagem estão todos a lutar e a matar-se uns aos outros, mas, de repente, param para celebrar o Ano Novo! No meio de tudo isto, as pessoas das classes mais baixas, (as que vivem na cauda do comboio) são mais simpáticas e mais normais do que os assassinos da elite.   Ah, outro pormenor, há uma cena com tochas que é filmada só com a luz das ditas.

Pessoalmente, não me agrada por aí além que o desenvolvimento da história siga uma abordagem tipo video game, os protagonistas vão percorrendo o comboio e cada carruagem representa um novo nível, até chegarem ao Ministro Wilford, o final boss. E depois acho o final muito optimista, talvez mesmo um bocadinho superficial se compararmos com o livro, mas também acredito que o desfecho pode ser encarado de muitas maneiras diferentes.

16 Ago 2017

Abriu a caça ao urso na China

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] sede de censura da China a tudo o que está online, fez a sua última vítima: Winnie the Pooh.

Para os media chineses, Winnie the Pooh passou nos últimos quatro anos de ursinho inocente a meme com conotações políticas. Como o ursinho aparece em todo o lado no Weibo, os censores estão outra vez muito ocupados a seguir-lhe o rasto, para apagarem a sua irreverente imagem. Esta ‘caça ao urso’, praticada online, fez do Little Pooh um símbolo da resistência à censura.

No passado dia 15, Wang Xiaochuan, Director Executivo do motor de busca chinês Sogou, postou uma imagem de Winnie the Pooh na sua conta do Weibo só com esta legenda, “Little Pooh, bora lá”. Dos 2,7 milhões dos seus seguidores, 500 fizeram gosto e 200 partilharam o post. Não parece nada de muito especial – mas durante os últimos anos, na China, o pequeno Pooh passou a ser um meme político mais do que simplesmente um urso fofinho da Disney.

As parecenças do urso com o Presidente chinês Xi Jinping, são assustadoras. É preciso tê-los no sítio para postar o Pooh, porque caso contrário arranja-se problemas para si próprio, para a família e para o negócio. Winnie the Pooh tornou-se de tal forma ameaçador que muitos posts com o nome do urso, ou com a sua imagem, foram retirados do Weibo e do Wechat. Também fez com que muita gente passasse a escrever posts que, de alguma forma, incluíam o Winnie só para testar se eram apagados.  Apesar do Financial Times ter anunciado com detalhes o processo de “supressão” do Winnie the Pooh na China, muitos destes posts ainda circulam, desencadeando discussões nas plataformas sociais sobre o que está e o que não está ‘harmonizado’ (censurado).

O bloqueio do Winnie the Pooh pode parecer uma jogada bizarra por parte das autoridades chinesas, mas na verdade faz parte da cruzada para impedir que os bloggers mais espertos contornem a censura institucional.

26 Jul 2017

A Cidade dos Amendoins e a classificação etária na China

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ahufa, um filme de animação chinês, estreado a 13 de Julho de 2017.

Com um argumento surreal e violento, Dahufa conta-nos a história de um atraente assassino que viaja até uma cidade estranha e opressiva, habitada por humanoides com cabeça de amendoim, em busca de um príncipe desaparecido. O governador da Cidade dos Amendoins é Anji o Velho, personificado por um dente de ouro. Todas as paredes da cidade estão cobertas com cartazes propagandísticos, que anunciam “O povo apoia o seu Grande Líder”. O governador tem um exército muito forte e bem treinado, que se dedica a executar todos os cidadãos-amendoim em cujos corpos crescem “cogumelos fantasma”. Neste país a vida vale o mesmo que nada.

Anji o Velho trata os cidadãos como se fossem gado. Deixa que o venerem, mas, quando lhe dá na gana, manda executá-los. No entanto, o povo amendoim tem ideias curtas e aceita o seu destino, vivendo submisso sob a constante ameaça de vir a ser executado pelos odiosos “guardas”. Ou, pelo menos, assim parece. Sob uma aparência de ordem, percebe-se que se conspira e que a revolução está prestes a acontecer. O povo amendoim não se atrevia a abrir a boca e a expressar as suas opiniões. Nem se atreviam a pensar por si próprios. Mas, no final, devido à tomada de consciência de alguns “amendoins”, são conduzidos até à estrada que desemboca num novo amanhã. Este é um conto de fadas negro, destinado a adultos e que apresenta alguns temas de forma séria e brutalmente explícita.

Os produtores de Dahufa tomaram a decisão de classificar o filme para M/13 anos, um aviso aos pais de que o filme poderia conter cenas impróprias para crianças com menos de 13 anos. Esta atitude sublinha o facto de na China não existir um sistema de classificação etária para os espectáculos. Por este motivo, aos produtores cinematográficos resta apenas uma opção: fazer filmes que sejam adequados para crianças. Os filmes que não encaixem nesse critério de universalidade ficam sujeitos aos cortes da entidade reguladora governamental.

A classificação etária pode funcionar como uma jogada de marketing, mas também deriva de uma noção de responsabilidade social. Apesar do aviso, alguns pais vieram queixar-se do filme na comunicação social, depois de terem levado os filhos a ver o que tinham pensado ser um filme de desenhos animados inofensivo.

O filme tem uma animação altamente estilizada, conteúdos contemporâneos e relevantes, e denota influências que vão de Van Gogh à pintura chinesa tradicional. Tem cenas de luta, aventuras fantásticas e uma animação fenomenal. As temáticas mais sensíveis não subestimam a inteligência do espectador.

Veja o trailer aqui:

bit.ly/2u0nEB3

19 Jul 2017

China Gate – o portão de entrada

China Gate, documentário realizado há seis anos e galardoado com diversos prémios internacionais

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á anteriormente tinham sido feitos alguns documentários sobre os exames de entrada nas Universidades, mas este tornou-se inesquecível pela angústia que nos transmite.

A história desenrola-se um três locais geograficamente distintos, onde se espelha a situação que a nova geração chinesa tem de enfrentar.

Em Huining, província de Gansu, os estudantes reúnem-se ao final do dia, para estudar numa zona recreativa do campus. Levam água e comida e só fazem umas curtas pausas para ir à casa de banho. Estão totalmente concentrados nas montanhas de trabalhos para preparação dos exames. Mesmo depois da meia-noite, hora do recolher, alguns continuam a estudar debaixo dos lençóis à luz das lanternas. E vocês perguntam porquê. Porque, para estes miúdos, este Exame é muito mais do que uma prova: é a sua única hipótese de ascensão social. Numa aula, um dos orientadores grita para os alunos: “Se vocês são demasiado burros para atingirem os vossos objectivos, mostrem-me ao menos que conseguem suar!”

Se entrevistássemos um destes jovens, ele diria: “Eu não nasci com os privilégios dos rapazes da cidade, mas tenho confiança em mim. Posso mudar o meu futuro.” Huining tornou-se famosa pela elevada percentagem de alunos que conseguem aceder à Universidade. Aqui, os estudantes aprendem para sobreviver. Para eles, o sistema de acesso à Universidade é sagrado. É como atravessar um portão inacessível e muito bem guardado. O vencedor do desafio entra na cidade consagrada e numa nova vida.

De Huining passamos para Pequim, o segundo lugar do documentário. Centenas de milhares de jovens acabados de se graduar reúnem-se em Tianjialing. Muitos vieram de zonas rurais e chegaram à capital por via do exame de acesso. Agora vão lutar para ficar. Têm à sua espera uns salários miseráveis que mal chegam para garantir as necessidades básicas. A próxima escolha vais ser: ficar ou partir. Todos partilham um sonho: “Pequim não é a minha terra, mas pode vir a ser a terra do meu filho.”

Vão fazer todos os esforços para ficar na capital. Se esta ambição se revelar impossível, resta-lhes, antes de se despedirem dos seus sonhos gorados, ir assistir ao ritual do hastear da bandeira e depois partir para casa, num qualquer lugar remoto do país. Para os que ficam, todas as preocupações, lamentos e a ansiedades diárias valem a pena, porque as melhores coisas da vida estão todas na capital.

O terceiro lugar é Xangai. Zhang Jie é oriunda de uma família normal, no entanto toca e dá aulas de piano para ganhar a vida. Tem ainda um segundo trabalho, mas o dinheiro continua a não ser suficiente para as despesas do dia a dia. Embora tenha nascido na cidade, a precaridade que enfrenta torna-a semelhante aos jovens provincianos.

Na China, desde há muito tempo, o sistema do exame de acesso à Universidade passou a ser a pequena janela de oportunidade para mudar o destino. É a única opção para a maior parte dos jovens que batem em desespero a este assustador portão de entrada.

12 Jul 2017

Okja: o E.T. boçal da Coreia do Sul

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando o filme mais recente de Bong Joon-ho acabou de ser exibido na última edição do Festival de Cinema de Cannes, a audiência aplaudiu de pé, mas quando o logo da produtora, a Netflix, apareceu no ecrã foi recebido com vaias. Okja é um filme maravilhoso e a primeira obra-prima da Netflix.

A história começa com uma apresentação encantatória da personagem que dá nome ao filme. Quem é Okja? Lucy Mirando (Tilda Swinton), uma entusiasmadíssima mulher de negócios, está ansiosa por contar a história. Lucy recorre a uma apresentação multimédia, para revelar aos jornalistas e aos accionistas da sua multinacional uma descoberta fantástica: uma nova estirpe de porco, um “super-porco”. Uma criatura estranha e gigantesca é apresentada como o futuro da culinária. Resultado de experiências genéticas, este enorme animal tem também um temperamento dócil e representa sobretudo uma enorme fonte de alimento. Mas a multinacional mente sobre a origem deste animal e alega que pertence a uma nova espécie encontrada no Chile, em estado selvagem.

Okja, uma fêmea premiada, é enviada para uma quinta na Coreia do Sul, no âmbito de um programa global desenhado para encontrar o melhor habitat para a espécie. Neste cenário a nossa “porquinha” vai deambular pelas montanhas durante 10 anos, comer o pasto e tornar-se a companheira inseparável da pequena Mija (Ahn Seo-hyun), neta do fazendeiro. E, neste panorama bucólico, vemos Mija e a sua gigantesca amiga passeando de cá para lá, sob o olhar protector do avô (Byun Hee-bong). No entanto, fica claro desde o início, a realidade vai entrar em cena e, quando entra, magoa.

Okja é uma espécie de E.T., mas mais boçal e, imaginando que o E.T. tinha corrido o risco de se tornar num produto para consumo alimentar das massas. Este filme fala-nos da perda da inocência, mas mais importante do que isso, fala-nos sobre o valor da inocência. A força do filme de Bong está na pureza do espírito de Mija, que pode servir de lição para muitos de nós (especialmente para os consumidores de carne).

Okja é, evidentemente, um ícone—os espectadores já sabem isso antes de lhe terem visto o focinhito. É um símbolo que representa todos os animais criados em quintas industriais, onde acontecem as maiores desumanidades, decorrentes da produção em massa e do comércio global. Mas o amor que Mija sente por ela não é superficial, nem se apaga facilmente. Mesmo a multinacional que a fabricou compreende o valor comercial deste afecto—e é por isso que Lucy tenta apresentar Okja como um animal doméstico, igual aos outros, de modo a que clientela não tenha medo de fritar o seu toucinho geneticamente modificado para o pequeno almoço.

Okja é o primeiro filme de Bong Joon-ho a participar num dos mais importantes Festivais de Cinema europeus. Bong não foi “acarinhado” pelo júri do Festival porque os seus filmes são considerados “comerciais”: o que ele faz é para ser visto e apreciado por grandes audiências. Inicialmente Okja não foi aceite para concorrer à Palma d’Ouro. Depois, Okja foi exibido na Netflix e acusado de ter um “problema de identidade”. Tudo isto não passa de um sintoma do eterno conflito entre a liberdade criativa e os diversos poderes instalados.

bit.ly/2qVaKpf

5 Jul 2017

A linguagem do cinema chinês: Idade 29 + 1

Hong Kong. Tempo: Presente.

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hristy Lam, interpretada por Chrissie Chau, é o protótipo da rapariga nascida e criada em Hong Kong. Aparentemente tem uma vida feliz. Tem namorado e é admirada no trabalho. No entanto, um mês antes de completar 30 anos, Christy fica a saber que o pai está gravemente doente e acabamos por perceber que afinal a sua vida amorosa não é nenhum mar de rosas. Para rematar, as coisas no trabalho sofrem um volte face muito negativo.

Wong Tin-Lok, interpretada por Joyce Cheng, também está à beira dos 30. Wong tem uma vida completamente diferente. É baixota, gorducha, não tem dinheiro, não tem carreira nem namorado. Os seus seios só foram tocados pelos médicos. Wong tem cancro da mama, mas apesar disso sempre encarou a vida com um espírito optimista. Com os 30 anos na linha do horizonte, toma uma decisão arrojada; pega nas malas e enche-as com os sonhos de infância. Pela primeira vez na sua vida sai de Hong Kong e apanha um voo para Paris.

As duas mulheres não se conhecem e as suas personalidades são diferentes como a noite do dia. Mas o destino intervém e Christy muda-se temporariamente para casa de Wong. Instalada no apartamento, Christy depara-se com o diário de Wong. Descobre que partilham a data de nascimento e começa a desvendar pedaços da vida da dona da casa. À medida que os seus laços virtuais aumentam, Christy dá por si a admirar a forma como Wong aborda a vida, de tal forma que se vai identificando cada vez mais com esta perspectiva.

A realizadora Kearen Pang彭秀慧 adaptou ao cinema com mestria esta peça de teatro, da sua autoria, estreada em 2005. Na versão para teatro as duas protagonistas eram interpretadas pela autora. Pang optou por manter a estrutura pouco convencional da história, o que mostra a sua auto-confiança, embora seguindo o registo mais realista do cinema. Esta transição foi facilitada por duas protagonistas perfeitas: Chau brinda-nos com um dos seus trabalhos mais sofisticados de sempre, embora Cheng acabe por arrebatar as atenções, com uma interpretação absolutamente tocante, cheia de alegria e de calor humano.

Para a maioria das mulheres, os 30 representam a “fronteira para o desconhecido”. A antevisão deste período da vida dá uma sensação de impotência, não só física como psicológica, devido a todo o tipo de pressões sociais.

A realizadora Kearen Peng usa a câmara como se fosse um aparelho de raio-X para explorar as emoções, o trabalho e a vida das protagonistas. A idade perturba as mulheres. E será que alguém tem o direito de limitar as mulheres colocando-lhes um rótulo etário, ou qualquer outro tipo de rótulo?

Kearen Peng abre graciosamente a sua alma a uma audiência mais vasta, com uma comédia repleta de sensibilidade e positivismo. O filme recebeu o Prémio de Melhor Realização no Festival de Cinema de Nice.

Veja o trailer aqui:

28 Jun 2017

As cores do arco-íris chinês 中国的颜色

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando um designer ocidental ou um produto querem agradar ao mercado chinês “vestem-se” de VERMELHO e toda a gente exclama imediatamente: uau fixe, isto é a China! Evidentemente os chineses aplaudem por simpatia, porque os chineses são pessoas educadas e nunca explicam que o vermelho é … bem, não é uma cor chinesa, nem o verde, ou o cliché da combinação verde/vermelho, a não ser na cozinha Sichuan que usa muitos pimentos destas cores.

De facto, a China tradicional não pintava tudo de vermelho. Durante milhares de anos os chineses colecionaram centenas de belíssimas cores. Espertos, não é verdade? Neste artigo vou falar-vos da sensibilidade cromática chinesa.

Por exemplo, estes nomes curiosos descrevem duas cores que vocês não vão conseguir adivinhar quais são:

竹月, literalmente “o mês do bambu”. Esta cor é descrita através da sensação que nos transmite um bambu erguido à luz de um luar prateado, metálico, com um toque de azul e violeta.

百草霜, literalmente “orvalho em cem plantas”. Pensei imediatamente num qualquer tom de branco, mas não. É cinzento escuro. O seu significado vem de uma mezinha da medicina tradicional, uma combinação cinzas com uma mistura de ervas. Estas cinzas resultavam da queima de certas plantas e são tão leves como o orvalho.

Na antiga China, o povo pintava toda a complexidade das suas vidas, incluindo a política e a religião, com cinco cores, que condensavam a visão chinesa do mundo.

Estas cinco cores eram: vermelho, amarelo, azul esverdeado, preto e branco. As cores apontam direcções e correspondem aos cinco elementos cósmicos. Os antigos chineses tinham uma imaginação cromática muito rica.

  • Por exemplo: o branco corresponde ao metal e aponta para Ocidente. É representado pelo tigre branco. O metal está associado às armas e à matança.

O preto é a cor do Norte, representa a água e o seu animal é a tartaruga negra.

O preto significa também “mistério” e “profundo”. É a cor que podemos divisar em torno de uma estrela cintilante num céu nocturno, profundamente misterioso e com um leve toque de vermelho.

E o azul esverdeado, como é que esta cor é percepcionada pelos chineses?

Cabelo azul esverdeado 青丝 significa cabelo negro. Céu azul, escreve-se青天 e relva verde, 青草。É por isso uma cor muito caprichosa. Mas imagine uma montanha coberta do viço verde de inúmeras plantas. Se olharmos de longe torna-se azul, mas quando colocada no horizonte longínquo veste-se de cinzento escuro.

A porcelana chinesa azul representa a cor do céu que se vislumbra entre as nuvens, depois da chuva torrencial. É um azul belo, delicado, nada berrante.

Os chineses coloriram o seu mundo com uma sabedoria muito peculiar.

Foto: Desfile da Victoria’s Secret em Xangai

21 Jun 2017

Venus terá sido asiática? 亚洲人是彻底的“女尊男卑” (Parte 3)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]abem o que quer dizer género BL?

Boys love (que é como quem diz Amor entre Rapazes) também conhecido por yaoi, é um género de cinema erótico dirigido a mulheres. Os fãs do BL apaixonaram-se por este género inovador e sexy. As personagens são todas masculinas; algumas pertencem ao tipo sério, outras ao espampanante, algumas são mais aristocratas e, finalmente, existem os efeminados. Mas também cabem neste género os que são mais heterossexuais que D. Juan.

As histórias variam pouco: rapaz conhece rapaz e apaixona-se por ele. Depois procura encontrar a melhor maneira de vir a ser aceite pelo seu amado, pese embora a discriminação que possam vir a sofrer, mas que os fará apelar a toda a sua perseverança. Sempre que querem exibir o seu amor em público, são impedidos porque os outros se sentem incomodados. No entanto, isso não os impede de continuar a fortificar a relação. O amor verdadeiro move montanhas. Assim, no sentido restrito, são romances gay. Tendo por pano de fundo fantasias muito pouco realistas, estas histórias deixam as fãs surpreendidas e excitadas, porque as narrativas se desenrolam em diversos planos e são multi-facetadas. Grande parte dos BL não se focam apenas nos romances gay, o que enriquece as histórias e as torna mais apelativas. Acabam por lançar vários tópicos que, de alguma forma, são filosóficos e falam sobre auto-descoberta e transformação.

Na China, as fãs do BL regozijam com as relações homossexuais explícitas entre rapazes e entre homens. Nestas histórias podem ser encontradas algumas das personagens ficcionais mais em voga, celebridades reais, ou personificações masculinas de objectos do dia-a-dia e de animais, bem como personagens originais. A cultura BL é dominada pelas mulheres, na sua maioria heterossexuais. A “ostracizada” comunidade de fãs tornou-se suficientemente significativa para captar a atenção dos média que têm estigmatizado o BL e as suas seguidoras em toda a China. Esta sub-cultura é constantemente apresentada de forma negativa e preconceituosa, por uma moralidade à beira de um ataque de nervos.

Vários factores contribuem para a estigmatização das jovens chinesas admiradoras do BL. Em primeiro lugar, a homossexualidade é silenciada porque continua a ser um tabu na sociedade chinesa, fortemente heterossexual e patriarcal. Em segundo lugar, as sequências revelam cenas de sexo explícito e este tipo de imagens são consideradas obscenas e doentias, ofensivas para a tradição e a cultura chinesas.

No entanto, esta é uma das contradições que eu adoro na China.  Nos últimos anos tem havido uma grande quantidade de produções BL, apesar da tentativa impedir a homossexualidade e da censura na internet. Deixo-vos aqui o link para o trailer de uma nova série para poderem dar uma espreitadela no universo do BL.

bit.ly/2r9qxx5

14 Jun 2017

Venús terá sido asiática? 亚洲人是彻底的“女尊男卑” (Parte 2)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os finais do século XX o Japão exportou para o mundo ocidental um universo visual que parecia naïve e a léguas de distância das artes gráficas tradicionais Ukiyo-e. Personagens animadas fofinhas, como o Pokemon e a Hello Kitty, foram amplamente adoptadas pela juventude ocidental e foram crescendo dentro da série manga da Nintendo. O ocidente começou então a criar bonecos inspirados nos japoneses. A Selfridges de Londres elegeu como mascote da loja uma boneca de olhos rasgados e cabeça grande para celebrar o tema “A vida em Tóquio”. Jovens designers começaram a incorporar alguns destes elementos nas suas criações e estas mascotes tornaram-se moda no ocidente. Os consumidores do mundo inteiro aderiram entusiasmados à novidade, até ter sido substituída pela “descoberta” seguinte. Contudo, no Extremo Oriente os bonecos fofinhos continuaram de vento em popa porque fazem parte de uma cultura cimentada ao longo da História, e não de uma febre consumista pontual. O gosto popular por bonecos fofinhos está enraizado numa estética tradicional e continua a desempenhar um papel importante no dia a dia das pessoas.

A série manga destina-se a todos – homens, mulheres e crianças – e inclui os temas mais variados, desde a comédia ao romance e da Filosofia à História. A “mania do boneco” vai muito além da cultura dos jovens porque dá às pessoas a hipótese de identificação. A aparência segura e ternurenta sugere o desejo de ser protegido. E as pessoas são protegidas quando não exprimem opiniões, que é um sinal de saberem o que é o “respeito”. Não dizer abertamente o que se pensa e o que se quer, significa que pomos as opiniões e as necessidades dos outros à frente das nossas. E este tipo de “respeito” mantém-nos seguros e fofinhos. A um ocidental dá seguramente a impressão de estar perante alguém que lhe lembra uma criança. E é aqui que está a diferença. Se lhe chamarem “fofinho” em Tóquio, querem dizer mais ou menos o mesmo que os tipos da Califórnia quando lhe chamam “cool”.

Entretanto os jovens fãs chineses fazem upload e remix dos vídeos de animação japoneses, criando um género AMV (Animation Music Videos). Extraem os pedaços de músicas e de filmes de animação japoneses de que gostam mais, e depois editam-nos em conjunto. A juventude chinesa desenvolve a sua sexualidade dentro do contexto de uma cultura consumista, porque as fantasias sexuais das pessoas são afectadas pela febre de censura da RPC. Os jovens vêem na abertura do estilo japonês uma fuga aos estigmas da cultura sexual chinesa, um misto de controle do Estado e de moral confuciana.

A seguir também temos a pornografia japonesa, exportada para o ocidente com grande sucesso, uma mais valia para a imaginação do homem branco. Por exemplo, os filmes pornográficos japoneses com mais saída dedicam grande parte do tempo a mostrar corpos femininos a serem beijados e acariciados. Parecem “gostar” mais das mulheres do que os seus congéneres ocidentais, que apenas as “exploram”.

Da próxima vez quero falar-vos de um filme pornográfico destinado às mulheres que se chama ‘Amor Entre Rapazes’ e que nos mostra o amor gay e outras aventuras. Este sub-género tem actualmente muita popularidade nos sites que partilham vídeos como o Youtube.com.

Termino com as palavras de Lemy Motörhead: “Não podemos ser só de uma cor. Para esta coisa do sangue vir algum dia a funcionar como deve de ser, temos de misturar as raças e fornicarmos desalmadamente até ficarmos todos mulatos.” Da próxima vez que se deparar com racismo, lembre-se destas palavras.

Noutra cidade, noutro lugar, noutra raça. Hasta la vista.

7 Jun 2017

Vénus terá sido asiática? 亚洲人是彻底的“女尊男卑” (Parte 1)

Raça e atracção

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]i recentemente uma série de artigos sobre um assunto fascinante. Aparentemente chegavam todos à mesma conclusão: os homens asiáticos encontram-se na base da “cadeia alimentar” sexual, enquanto os homens brancos e as mulheres asiáticas são considerados os “mais atraentes”.  Estas afirmações foram feitas a partir de diversos inquéritos realizados em sites de encontros e também de estatísticas da PEW. Estes dois últimos grupos encontram-se, portanto, no topo da “cadeia alimentar” sexual.

Será que me estou a meter num ninho de víboras?

Contudo, uma coisa tem de ser dita à cabeça. Os websites que mencionei são americanos, por isso uma pessoa não pode deixar de pensar que estes dados talvez tenham sido alterados.  Digamos que, se o website fosse chinês e operasse a partir de uma outra localização geográfica, não me admirava que a conclusão fosse diferente de alguma maneira. Além disso, quais são as mulheres asiáticas? As indianas? As filipinas? Claro que não, o que eles querem dizer, são mulheres do Extremo Oriente, ou seja, chinesas, japonesas e coreanas. Esta é uma temática que conheço bem demais, uma realidade que me parece tão…errada.  E, enquanto me dedico à tarefa de ser eu mesma, como sempre, escolhi alguns títulos que me vão ajudar a mim e aos meus leitores não-asiáticos a concretizar melhor estas ideias.

No livro Mitos Asiáticos: Mulheres Dragão, Jovens Geishas & As Nossas Fantasias sobre o Oriente Exótico, o autor Sheridan Prasso desenvolve a teoria apresentada na literatura de Edward Said sobre o Orientalismo, com um toque de histórias da vida real. Prasso analisa as raízes históricas dos “pré-conceitos” ocidentais sobre o fantástico e o exotismo orientais. Na realidade, poucos são os ocidentais que não vêem as mulheres orientais como um símbolo de sensualidade, decadência, perigo e mistério. Estes estereótipos criados pelo legado ocidental permanecem ícones universais: a servirem o chá, submissas, sexualmente disponíveis, em suma, um misto de Madame Butterfly e de lutadora de kung fu dominatrix. Pois é. E por que é que os brancos não hão-de continuar a ser enganados?

Pois como não sou bruxa fui pesquisar online algumas celebridades sino-americanas. Amy Tan, Connie Chung e Lucy Liu, todas casadas ou a namorar com brancos. Há quem recorra à Hierogamia (união entre deuses e humanos) para explicar este fenómeno: ou seja, as mulheres asiáticas elevam-se socialmente na “perfeição” casando com um tipo que está na moda, e, quanto ao tipo que está na moda, move-o a procura de aventura, de emoções e a necessidade de colorir a sua existência, ultrapassando os limites, o que é muito apreciado na cultura ocidental.

Agora estou provavelmente a meter-me num segundo ninho de víboras: classe e raça.  Altura em que é inevitável examinar um cancro muito antigo chamado discriminação.  Mesmo no fim do último capítulo do livro de Prasso fala-se do modo como a visão oriental das mulheres asiáticas ajuda a perpetuar estes preconceitos. O autor afirma que a percepção adulterada sobre o exotismo asiático, que se tornou generalizada, não é só culpa do Ocidente. De facto, reflecte uma realidade de muitos asiáticos. A dinâmica da estrutura social vigente utiliza a discriminação interna para pré-determinar papeis raciais (ficcionais). É um dos piores mecanismos sociais, um dos mais desagradáveis, mas infelizmente é um facto.

Da próxima vez vamos ver porque é que as miúdas asiáticas são giras. Terá a pornografia japonesa encorajado esta fantasia ariana a ganhar velocidade, montada numa kawasaki amarela? Só preciso de algumas boas perguntas e respostas sobre a “febre amarela” do fetichismo.

31 Mai 2017

Dez frases sobre a essência da China (Parte 3) 随时翻翻《红楼梦》(第三部分)

Estas dez frases vão ensinar-lhe mais sobre a China do que qualquer livro da especialidade

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]onho da Câmara Vermelha foi ao longo de todas as épocas um dos livros que mais vendeu. Escrito no séc. XVIII, é considerado uma obra-prima e um dos pontos mais altos da ficção chinesa. A Vermelhologia é um campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. Para dar um exemplo, o Presidente Mao tinha consigo um vermelhologista de renome. No entanto, eu não sou uma vermelhologista, vou apenas desfolhando este clássico só para preservar no meu ADN a marca da língua chinesa, eu que me tornei uma escritora de língua inglesa. Recentemente, coleccionei dez frases para partilhar com os meus leitores. Hoje só me interessa discutir o valor revolucionário da literatura clássica.

Sou um homem, meu amor! 抱诚守真

Oh, meu deus! Durante este tempo todo, os especialistas estiveram a tentar convencer-nos de que este clássico da literatura falava do amor platónico entre dois adolescentes, o jovem Baoyu e a sua apaixonada Daiyu. Outra teoria que circulava é que a obra abordava o karma. O karma é a experiência, a experiência cria memórias, as memórias criam imaginação e desejo, e o desejo volta a criar o karma. Digamos assim, se comprar um hamburger, isso é karma. O caro leitor passou a ter uma memória que pode dar-lhe o desejo potencial de comprar um Big Mac e entrar no McDonalds – e como os protagonistas são adolescentes, seria o cenário ideal – e lá vem o karma outra vez.

O desejo é o ponto de partida de todas as boas histórias, não é uma virtude, não é um valor, apenas uma nítida pulsão que tudo transcende. E o facto de eu estar a pensar estas coisas é a prova provada de que Sonho da Câmara Vermelha é uma obra-prima totalmente inovadora, que continua a ser apreciada hoje em dia pelos leitores do mundo inteiro: o autor assumiu que os chineses têm corpo.

E como é que estes corpos se apresentam? Pergunta difícil, sem dúvida.  Vim a descobrir que todas as personagens femininas têm o peito liso e, quando alguma não tem, o autor evita entrar em pormenores sobre a sua anatomia e prefere dissertar sobre outros atributos – o cabelo, as roupas de seda, o seu aroma ou o gosto refinado – ah, e sobre a sua força interior. É também um segredo de Polichinelo que algumas das partes mais sumarentas foram censuradas da edição oficial. Por exemplo, o escaldante caso amoroso entre Keqin e o sogro foi retirado porque o autor o mostrou a um certo “ancião sábio”. Então, o autor passou a relatar com pormenores romanescos a história da censura da sua história, esperando que os leitores pudessem compreender o seu desgosto. Esta foi a parte que eu achei realmente divertida. A partir daqui o autor aprendeu a lição e nunca mais mostrou os seus escritos a ninguém. E desde então as suas heroínas tornaram-se seres sensuais e memoráveis. E isto porque se assemelhavam a mulheres verdadeiras, apesar da sua aparência permanecer um mistério. Apesar disto, toda a sua chama criativa foi dedicada ao protagonista masculino, Baoyu e à descrição do seu corpo e suas expressões. Acredito que, desta forma acidental, Sonho da Câmara Vermelha libertou as mulheres e os homens chineses.

24 Mai 2017

Dez frases que revelam toda a essência da China (Parte 2) 随时翻翻《红楼梦》(第一部分)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]onho da Câmara Vermelha foi ao longo de todas as épocas um dos livros que mais vendeu. Escrito no séc. XVIII, é considerado uma obra-prima e um dos pontos mais altos da ficção chinesa. A Vermelhologia é um campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. Para dar um exemplo, o Presidente Mao, tinha consigo um vermelhologista de renome. No entanto, eu não sou uma vermelhologista, vou apenas desfolhando este clássico só para preservar no meu ADN a marca da língua chinesa, eu que me tornei uma escritora de língua inglesa. Recentemente, coleccionei dez frases para partilhar com os meus leitores. Trata-se de literatura, mas também de política (chinesa). Pode servir igualmente como uma Bíblia dos negócios. Aborde a coisa com cuidado (do género quando faz yoga).

Sê verdadeiro contigo próprio 不忘初心

A história: Miss Yiu é uma mulher apaixonada, ao contrário da irmã mais velha que não se atreve a tomar decisões. Sente-se atraída pelo Sr. Liu e decide esperar por ele o tempo que for preciso.

A certa altura, diz: “O amor não é um jogo de crianças. Também não é um negócio. Eu não sou o tipo de mulher que precisa de escolher um homem para ser feliz. Mas, se dependesse de ti, escolhias o homem mais rico que pudesse conquistar o meu coração. Que desperdício de vida!”

Miss Sexy é uma das mulheres mais memoráveis da câmara vermelha, contando com um total de 500 caracteres.  Ela põe-nos KO!

Distribui a tua atenção (igualmente) (e serás recompensado) 一视同仁

A história: A Tia Zhao (segunda mulher do chefe da Dinastia Jia) não cabia em si de contente quando soube que a jovem senhora Baochai tinha enviado presentes ao seu filho. Pertencendo à “segunda divisão”, estava habituada a ser ignorada. Por causa deste pequeno gesto, Baochai conquistou a sua eterna lealdade.

O coração dos que são maltratados é como um tesouro negligenciado, que não lamentamos ter recolhido porque um dia pode fazer-nos falta!

Nunca desafies a ordem 安分守己

A história:  Uma anciã que estava a cuidar da fruta quer ter uma conversinha com Xiren, um serviçal de posto elevado, e oferece-lhe um cacho de uvas.  Xiren repreende-a: “As uvas podem ainda não estar maduras, mas, mesmo que estivessem, não estamos autorizados a comê-las antes dos nossos patrões. Oh velha, perdeste o juízo?”

A obediência às regras é uma virtude chinesa tão profundamente enraizada que é praticamente impossível de eliminar. Por pensar nisto; é possível que a revolução cultural do Presidente Mao não tenha sido tão disparatada como pensámos?   

Não dês nas vistas 八面玲珑

A história: A poderosa Dama Wang Xifeng saúda a jovem senhora Daiyu, acabada de chegar, e elogia-a na presença da matrona, com uma voz emocionada: “É verdade o que os meus olhos vêem? Que bela rapariga, não acredito que pertença à “segunda divisão” (subtilmente lisonjeia a matrona). Parece mesmo uma das raparigas da “primeira divisão” (desta vez lisonjeia a jovem senhora).  Não admira que a nossa matrona esteja sempre a falar de ti. Pobrezinha, a tua mãe morreu tão cedo…” A seguir põe-se a chorar como se estivesse num velório, durante uma cruzada promocional.

A poderosa Dama Wang Xifeng é pura comédia.  Os seus improvisos são como uma taça de noodles, simples instantâneos e funcionais, se não mesmo, completamente originais.

Sê louco sempre que puderes 难得糊涂

A história:  A poderosa Dama Wang Xifeng quer agradar à matrona e põe-se a fazer pouco da velha Liu, uma parente humilde que estava de visita. Conseguiu que a matrona e a sua selecta entourage desatassem a rir às bandeiras despregadas. A seguir, Wang pediu desculpa pelo seu comportamento.  A velha Liu desvalorizou a situação: “Não estou zangada contigo. Sou uma prima da província. Não me importo de ser o bobo da festa por uma causa nobre. Podes confiar em mim.”

Que mulher tão esperta!      

A décima frase é um mistério. Ainda não consegui perceber se é sobre obrigações kármicas – um ponto de vista que os especialistas têm imposto aos leitores– ou sobre desejo sexual ardente. E este último, acho eu, é o motivo pelo qual a ficção clássica chinesa é um trabalho verdadeiramente revolucionário.  Não saiam do vosso lugar.

(Continua)

17 Mai 2017

Dez frases sobre a China 随时翻翻《红楼梦(第一部分)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]onho da Câmara Vermelha foi sempre ao longo de todas as épocas um dos livros que mais vendeu. Escrito no séc. XVIII, é considerado uma obra-prima e um dos pontos mais altos da ficção chinesa. A “Vermelhologia” é um campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. Para dar um exemplo, o Presidente Mao, tinha consigo um vermelhologista de renome. No entanto, eu não sou uma vermelhologista, vou apenas desfolhando este clássico só para preservar no meu ADN a marca da língua chinesa, eu que me tornei uma escritora de língua inglesa. Recentemente, coleccionei dez frases para partilhar com os meus leitores. Trata-se de literatura, mas também de política (chinesa). Pode servir igualmente como uma Bíblia dos negócios.

Sê um louco no meio dos loucos 入乡随俗

A história: Quando a nossa jovem heroína Daiyu chega ao palácio dinástico da família Jia, é recebida pela matriarca que lhe pergunta se sabe ler. Daiyu responde-lhe que aprendeu a ler com os Quatro Clássicos de Confúcio. Quis saber se as raparigas da família Jia também tinham aprendido. A matriarca respondeu que as suas raparigas poderiam não ser tão avançadas na leitura, mas que sabiam o suficiente para não serem cegas! Na cena seguinte, o nosso jovem herói Baoyu entra e quer saber quais foram os clássicos que Daiyu leu. Daiyu aceita o desafio e responde prontamente: “Eu não sei ler. Só sei reconhecer algumas palavras.”

O Poder é algo que não deve (não queres) mudar. Por isso esconde os teus talentos.

Que sejas um excelente situacionista 伺机而动

Um situacionista é basicamente um oportunista, embora no contexto chinês tenha uma conotação menos negativa.

A história: A poderosa Dama Wang Xifeng acena do alto da colina a uma serviçal, de seu nome Hongyu. Hongyu abandona prontamente a multidão e corre ao encontro de Wang Xifeng. Toda ela é obediência e sorrisos.  A Dama diz: “Hoje a minha criada não me acompanhou. Preciso de alguém que me faça um serviço. Mas como posso saber se estás à altura da missão?” Hongyu responde: “Senhora, estou completamente à sua disposição. Se a desiludir, castigue-me como bem entender!”

As oportunidades são raras. Agarra todas as hipóteses que se te apresentam com prontidão E, com toda a tua alma e as tuas garras.

Quando mentir é uma qualidade desejável避实就虚

A história: A concubina Zhao está a fazer os preparativos para o funeral do irmão e apercebe-se que uma das criadas não tem as roupas apropriadas. Além disso, a rua onde ela queria ir comprar o fato está toda suja. Então pede a Xueyan, uma serviçal com um cargo elevado, que lhe empreste os trajes adequados. Xueyan recusa-se com estas palavras: “Claro que era óptimo que as suas criadas usassem as minhas roupas, Tia Zhao! Mas as minhas roupas são guardadas por Zijuan (o meu superior), que também precisa da autorização da minha patroa. Não é que eu receie vir a ter problemas. É que a minha patroa está de cama, doente, e não é altura para a preocupar com esse tipo de coisas. Além disso, tenho medo que, se for andar para a frente e para trás para pedir autorização, a vá atrasar quando tem tanta pressa.”    

Aprender a recusar é uma via sinuosa. Aparentemente, os chineses apreciam quem sabe contar uma boa mentira.

Fica para sempre junto à cerca (e evita as colisões) 不偏不倚

A poderosa Dama Wang Xifeng está doente. Uma jovem senhora ficou a dirigir a morada dinástica em seu lugar e quer fazer algumas mudanças. Ping Er, a criada de Wang, ficou numa posição desagradável, porque não quer ofender a jovem senhora, mas também não quer ser desleal à sua poderosa patroa.   

A estratégia que adoptou foi a de louvar a jovem senhora pelas suas iniciativas. No entanto, ao mesmo tempo foi-lhe dizendo que a sua patroa também já em tempos as queria ter realizado, mas que ficou com dúvidas por razões de muito peso. Desta forma, elogiava a jovem senhora e louvava a sua dama. Voilá, já está bem lançada para a próxima promoção. Quando um dia chegar a chefe, ninguém espere dela uma opinião, porque ela conseguiu lá chegar precisamente por nunca expressou nenhuma.

(continua)

10 Mai 2017

O mocassin servia a Cinderela? 水晶鞋与男人花

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s versões francesa e alemã da história de Phyllis a montar o grande Aristóteles remontam ao séc. XIII, mas foi a versão em latim de John Herold – séc. XIV- que a celebrizou. Herold foi um monge dominicano que costumava coleccionar histórias para usar nos seus sermões como exemplos. De acordo com a sua versão, Aristóteles tinha avisado o seu discípulo Alexandre Magno para evitar contactos íntimos com a sua mulher Phyllis. Em vez disso, Alexandre deveria concentrar-se no estudo da Filosofia. Phyllis ficou muito perturbada por se sentir ignorada pelo marido. Ficou ainda mais zangada com Aristóteles e com as “orientações” do “velho sábio”.  Para se vingar, Phyllis começou a namoriscar o Filósofo e conseguiu seduzi-lo ao ponto de um dia o ter montado como a um cavalo, enquanto Alexandre os observava escondido atrás de uma porta. A cultura ocidental está inundada de histórias que revelam o medo da Mulher. Esse medo produziu inúmeros e inesquecíveis ícones femininos, revisitados incessantemente pela Arte e pela Poesia, como Eva, Dalila, Salomé, Medeia, entre muitas outras. As imagens destas mulheres resultam do “olhar masculino”, e Phyllis acabou por ser representada nua. A exigência do mercado de uma imagética profusa foi um motivo determinante para a repetição do tema, se não da ideologia.      

A série de fotografias experimentais da artista chinesa Pixy Yijun Liao, intitulada “Relações Experimentais”, acompanha a sua relação sentimental com o namorado japonês, cinco anos mais novo do que ela. Liao levou algum tempo a acostumar-se à ideia. A maior parte das mulheres chinesas cresce com certos pensamentos 1. Devem casar. 2. Devem casar com um homem mais velho, mais sensato e mais maduro, que as possa proteger e ser o seu guia. “Marido”, no chinês moderno e popular, escreve-se先生,que quer dizer “aquele que nasceu antes de mim”, “mestre”.  Depois de pesquisar uns sites chineses de encontros, deparei-me com umas instruções super aborrecidas sobre como encontrar um marido de elite.  Uma mulher de carreira com uma certa idade 剩女, é, não só um rótulo, como contém um estigma social e pode ser usado como um insulto.

Phyllis não foi a inspiração de Liao, tenho a certeza disso. Relações Experimentais subverte as expectativas do género e os papéis de poder no seu próprio contexto social, o que é muito significativo. Em poses estudadas, come papaia que colocou em cima do corpo nu do namorado, ou, completamente vestida, torce-lhe o mamilo, enquanto ele tem apenas vestidas umas cuecas. Também aparece montada às suas cavalitas, como uma criança nos ombros do pai. Fotografa-o a usar um vestido e ainda como um pedaço de sushi humano… A fotografia é uma arte visual e, para mim, o que importa é o visual. Será que a fotógrafa quis afirmar um “olhar feminino heterossexual”? Terá sido bem-sucedida?

PS: Ao pesquisar a história de Phyllis, deparei-me com uns posters feitos no início do séc. XX pela Donaldson Lithography Company, para serem usados por hipnotizadores e artistas de teatro nos seus espectáculos.

4 Mai 2017

Protejam a moral chinesa tradicional 中国高校现反同性恋横幅

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a semana passada, duas estudantes da província de Hubei provocaram uma onda de protestos no campus universitário, e também online, no seguimento de se ter tornado viral nos media chineses uma foto de ambas a segurarem uma faixa com conteúdos homofóbicos. A faixa dizia: “Protejam a moral chinesa tradicional. Defendam os valores centrais do socialismo. Resistam à corrosão provocada pelo decadente pensamento ocidental. Mantenham a homossexualidade fora do campus.”

A foto foi tirada junto às linhas laterais de um campo de basquetebol, durante um torneio que se realizou na Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, em Wuhan (HUST- sigla em inglês). O treinador da equipa feminina de basquetebol, que tirou a fotografia, postou: “Este é desejo do público que eu trago sempre no coração.” Uma das mulheres fotografadas escreveu: “O basquetebol feminino era um desastre em termos de homossexualidade. Mas depois das reformas e de uma educação positiva, restam muito poucas lésbicas nas nossas equipas.”

A HUST, situada na China central, é conhecida por ter uma atitude relativamente acolhedora em relação aos homossexuais. Os estudantes exibem bandeiras com o arco-íris nas cerimónias de graduação e a escola promove eventos em que estão representados autores e artistas homossexuais. Até 1997 a China considerava a homossexualidade um crime. Mas nos últimos anos o país foi ficando gradualmente mais tolerante em relação a estas questões. Este incidente desencadeou uma discussão alargada sobre a discriminação nas escolas chinesas contra estudantes homossexuais, bissexuais e transgénero.

Mas qual é exactamente a “moral chinesa tradicional” que as jogadoras de basquetebol querem proteger?

Companheira perfumada《怜香伴》é uma peça de Li Yu, escrita em 1651.

A peça conta a história de Cui Jianyun, mulher de Fan Jiefu, um homem erudito. Madame Cui tinha ido ao templo queimar incenso para os deuses, logo a seguir ao seu regresso da lua de mel. No templo conheceu Cao Yuhua, filha de Lord Cao, dois anos mais nova do que ela. Cui sentiu-se imediatamente atraída pelo invulgar perfume de Cao. Cao sentiu-se atraída pelo talento poético de Cui. Apaixonaram-se e juraram que na próxima vida seriam marido e mulher. De forma a poderem viver juntas, Cui persuadiu o marido a enviar uma casamenteira a casa de Lord Cao, para, em seu nome, pedir a filha em casamento como segunda mulher. Lord Cao ficou enraivecido com a ideia de a filha se vir a tornar uma mera concubina. Expulsou a casamenteira e partiu imediatamente para a capital com Cao. Depois de inúmeras voltas e reviravoltas, Cui Jianyun e Cao Yuhua conseguem finalmente reunir-se. No final, o rei dá permissão a Mestre Fan de tomar as duas por legítimas esposas.

Li Yu (李渔1610–1680 DC), também conhecido por Li Liweng, foi dramaturgo, romancista e editor. É o presumível autor de Tapete da Oração Carnal (肉蒲團), uma comédia bem arquitectada e um clássico da literatura erótica.  Nos seus contos abordou o tema do amor entre pessoas do mesmo sexo. Li Yu foi muito lido e apreciado pela ousadia com que tratava este tema inovador.

As estradas da vida são muitas vezes distorcidas ou desmanteladas por pessoas que querem decidir que caminhos elas devem trilhar. Lamentável.

26 Abr 2017

Irmãs tórridas 说有这么一回事

Foto: Fotografia de Pan Yue

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a tarde de 21 de Fevereiro de 1932, Xu Qinwen saiu para acompanhar um convidado. Quando voltou a casa, encontrou o criado à porta. O homem vinha informá-lo que ninguém o ia deixar entrar. Aborrecido, tirou do bolso a sua chave, mas verificou que não abria a porta. Tocou várias vezes à campainha. Ninguém atendia. Xu ficou furioso. Deu a volta até à porta das traseiras, partiu o gancho de ferro e entrou no pátio. O silêncio era total. A seguir apanhou um choque, na relva jaziam duas jovens mulheres cobertas de sangue. Uma delas estava desmaiada. Era Tao Sijin, amiga da sua filha. A outra era a sua melhor amiga, Liu Mengyin, e estava morta. O crime aconteceu no Lago Oriental, em Hangzhou, um dos locais mais românticos da China. Este episódio tornou-se rapidamente um escândalo nacional e apareceu em todos os jornais do país.

Tao e Liu estudavam na Escola de Artes de Zhejiang. Eram companheiras de quarto e envolveram-se numa relação romântica. Ambas tinham combinado que nunca se casariam. Mas Liu veio a apaixonar-se por outra mulher, uma nova professora. Tao jurou que mataria uma delas. Entretanto as férias de Verão começaram e Tao e Liu ficaram em casa de Xu. Um dia Liu queria tomar banho e mandou o criado comprar-lhe um produto para a pele. Nessa altura, Tao trancou as portas e desencadeou uma discussão. Exigia que Liu terminasse a relação com a professora. A discussão descontrolou-se rapidamente e Tao foi buscar uma faca à cozinha. Matou a amante e a seguir desmaiou.

Tao foi condenada a prisão perpétua. Entretanto a II Guerra Mundial deflagrou e os japoneses tomaram Hangzhou. Tao acabou por ser libertada, e veio a casar com o juiz que tinha presidido ao julgamento, dando assim um epílogo bastante sumarento à história.

Na China, durante as décadas de 20 e 30, a homossexualidade era um fenómeno muito comum entre os estudantes, tanto do sexo feminino como masculino. No entanto, para as “novas mulheres” estava na moda ter uma relação lésbica. “Tórridas, irmãs homossexuais” era uma expressão que circulava entre as elites sociais.

Depois do escândalo Tao-Liu ter chocado o país, a influente revista feminina Linglong(《玲珑》Requintada apelou ao “fim” da homossexualidade, afirmando: ” […] a homossexualidade é ilegal, imoral e fisiologicamente errada. É um acto criminoso. Esta forma perversa de pornografia é por vezes perigosa. As raparigas devem ter relações heterossexuais e almejar uma vida feliz e brilhante.”

O assunto foi inevitavelmente abordado na literatura da época, fortemente influenciada pelas tendências ocidentais. Escritoras dissertaram longamente sobre as tórridas irmãs homossexuais. Por exemplo, no romance de Ling Shuhua’s (凌叔华 1900–1990) Romeu era uma rapariga (《说有这么一回事》), a escritora encoraja as mulheres a “livrarem-se das sombras impostas pelo passado e a embarcar em experiências fora do alcance da percepção e dos valores masculinos.”

Provavelmente Ling Shuhua será recordada pelo seu caso amoroso com Julian Bell, um jovem poeta pertencente ao Bloomsbury Group, e que escreveu sobre ela numa carta a um amigo: “…embora não seja bonita, sinto-me muito atraído por ela.” Perante isto, deixo uma questão aos meus caros leitores: expliquem-me como é que isto funciona? Por favor respondam-me por email.

19 Abr 2017

Voar em 1904: o primeiro romance chinês de ficção científica《月球殖民地小说》

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China lançou o primeiro satélite, o Dongfanghong, em 1970. Treze anos depois do Sputnik, nove anos depois do primeiro cosmonauta ter visitado o espaço e uma semana depois da Apollo 13 ter regressado da Lua.

A 16 de Agosto de 2016 a China lançou o primeiro satélite de comunicação quântica do mundo, baptizado de Micius, em honra do emblemático filósofo chinês Micius/Mozi, e concebido para teleportar dados para além dos limites do espaço e do tempo.

Tornou-se normal que a China esteja diariamente na origem destes títulos sensacionais, embora inconcebíveis e incompreensíveis. Mas quando é que terá tido o seu primeiro romance de ficção científica? Isto deu-me que pensar.

1904 estava destinado a ser um ano extraordinário para a literatura chinesa, mas acabou por ser esquecido. A China ainda é conhecida como o país da (finada) Dinastia Qing. Uma importante revista literária, a “Ficção Ilustrada” 《绣像小说》, publicou em fascículos 《月球殖民地小说》(Colónia: Lua), um romance de ficção científica, com uma estrutura narrativa clássica na literatura chinesa. O autor assinava 荒江钓鱼叟 (Velho pescador do rio agreste), mas a sua identidade permanece um mistério.

O romance inacabado contém 35 capítulos, com um total de 13 milhões de palavras impressas. Conta-nos a história do valente Li Anwu e do seu amigo japonês Fujita Tamataro, que ajudaram Long Menghua, do Distrito de Xiang na província de Hunan, a fugir de uma tentativa de assassinato e a reunir-se à mulher e ao filho, há muito perdidos. Long Menghua viveu várias aventuras à volta da Terra nas naves de guerra voadoras de Tamataro. No final, toda a família Long imigra para a Lua, para onde o filho vai, obviamente, estudar.  Como se fosse um símbolo mágico, em cada ilustração do romance aparece um balão de ar quente, que parece simbolizar a aspiração colectiva da Dinastia Qing: voar. No mesmo romance, o autor desconhecido também se pôs a reflectir sobre a relação entre a Terra e os outros corpos do sistema solar:

“Da sua nave espacial Fujita Tamataro observava que as naves do povo da Lua eram enormes, frágeis e brilhantes. Arrumou as armas e pensou: a Lua é pequena, mas que civilização tão avançada! Desde essa altura, Tamataro dedicou-se completamente à sua investigação. Queria inventar uma nova máquina voadora que pudesse voar livremente pelo universo.”

Piscadela de olho.

12 Abr 2017

Fan Li o “Mau da Fita” e a inimitável mente chinesa西施与她的情人为何是中国最早的女权主义者?

Foto: O bailado contemporâneo Xi Shi

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]untem-se à minha volta gentis leitores e permitam que vos presenteie com a história maravilhosa e nunca antes contada de Fan Li 范蠡 – intelectual, estratega militar e homem de negócios bem sucedido – e de Xi Shi 西施, a sua famosa amante, uma femme fatale. Os dois ficaram conhecidos na História chinesa como um par de “maus da fita”.

Fan nasceu nos finais do séc. VI AC, num reino chamado Yue (a poucas horas de carro da actual Xangai). Filho de pais pobres, tornou-se amigo de um homem que reconheceu o seu talento e sabedoria e o levou consigo para a capital como conselheiro do Rei Goujian, que era inteligente e ambicioso. Pouco depois o Rei Goujian atacou o Reino de Wu e sofreu uma derrota memorável. Fan e o Rei foram feitos reféns e torturados durante longos anos pelos carcereiros do Rei de Wu, até serem libertados e mandados para casa carpir as mágoas. Quando lá chegaram, Fan começou a engendrar um plano de vingança – um plano que exigia um toque feminino.

Xi Shi, filha de um comerciante de chá e uma femme fatale entrou em cena, uma mulher que poderia ser recordada como uma das Quatro Grandes Beldades. Era tão atraente que os peixes do lago, onde ela ia todos os dias lavar as suas sedas, perdiam a capacidade de nadar e afundavam-se. Xi Shi cruzou-se com o engenhoso Fan Li junto ao lago, quando ele andava à procura de uma mulher inteligente e talentosa. Apaixonaram-se perdidamente um pelo outro.

O Rei de Wu tinha fama de mulherengo. Fan Li compreendeu que tinha encontrado o espião perfeito, ou melhor dizendo a espia perfeita, para derrubar o reino inimigo. Para ajudar o seu amante, Xi Shi aceitou ser enviada como um presente de Yue ao Rei de Wu. O libidinoso Rei ficou imediatamente rendido a Xi, dava-lhe presentes, construiu-lhe um palácio e colocava-a acima de todos as suas outras esposas. Durante os 17 (!) anos que se seguiram, ela foi-lhe aos poucos envenenando o espírito, minando a sua capacidade para governar e afastando os seus sensatos conselheiros, ou fazendo com que ele os mandasse executar. Em 473 AC, Yue voltou a atacar. Wu não estava preparado e sucumbiu. O Rei de Wu suicidou-se quando o seu reino foi anexado. Depois disto, Fan Li retirou-se do serviço público. Ele e Xi Shi desapareceram num barquinho, nas águas cobertas de nevoeiro do Lago Taihu. Foi nas margens do Taihu que ele lançou os primeiros alicerces dos negócios chineses: centrando-se na organização, abertura de espírito, honestidade e na observação astuta da flutuação dos mercados. Fan Li tornou-se um comerciante rico. Foi tão bem-sucedido que escreveu uma série de livros sobre gestão comercial. Já na reforma escreveu o primeiro texto de sempre sobre aquacultura, estabelecendo os princípios que iriam dominar nos próximos 2.000 anos a criação de viveiros de peixes na China. A China controla 70% desta actividade a nível mundial, baseada na reciclagem de nutrientes e no respeito pela biodiversidade. Paradoxalmente, hoje em dia a China está a ser afectada por uma quantidade assustadora de crises ambientais.

Por isso, se não consegue abarcar a imprevisibilidade do raciocínio chinês e a intrincada ramificação mundial dos negócios e investimentos deste povo, que quase parecem ser feitos ao acaso, a forma mais fácil de começar a desembaraçar este novelo é estudar Fan Li.

Fan Li também é conhecido por Tao Zhugong 陶朱公, um intelectual que se tornou o santo patrono dos homens de negócios.

5 Abr 2017