O olhar persistente de Zachmann 永别了,中国

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]urante mais de 30 anos, o fotógrafo francês Patrick Zachmann estudou aprofundadamente a China, que descobriu em 1982 através do cinema.
Das tríades de Hong Kong, nos anos 80, ao renascimento de Pequim ou Wenzhou, dos protestos dos estudantes de Tiananmen, em 1989, ao terrível terramoto de Sichuan, Zachmann contou as pequenas e as grandes histórias de um país em rápida mudança e fixou para sempre a preto e branco esses momentos. Frequentava os cafés de Pequim para conhecer fotógrafos locais e aficcionados, com os quais discutia técnicas de fotografia. 28916p17t1-c
Espinha dorsal da Magnum, em termos estéticos, Zachmann é um herdeiro da clássica fotografia europeia, mas o seu trabalho também explora a profundidade das personagens e dos ambientes. No entanto Zachmann não ficou preso à tradição europeia, foi mais longe à descoberta de um novo estilo documental, inspirado numa “intuição crítica” e na prática no terreno.
Nascido em 1955, tornou-se fotógrafo freelancer em 1976. Desde essa altura, focalizou o seu trabalho em três tópicos principais: identidade, amnésia, imigração global e outras questões culturais. Recentemente, com a ascensão da China ao primeiro plano da política internacional, Zachmann regressou para revisitar o seu velho tema, e tentar definir a nova identidade chinesa: “Na China mudou tudo de forma drástica, menos Cui Jian; Cui Jian é eterno!” 28916p17t1-a

Patrick Zachmann: “Tornei-me fotógrafo porque não tenho memória. A fotografia ajuda-me a reconstituir os álbuns de família que nunca tive. As imagens omissas são o meu motor de busca. As minhas folhas de contacto são o meu diário.”

Aqui encontram-se três folhas do diário: homens, mulheres e cidade.

28 Set 2016

Uma breve história do beijo “吻”之影史

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stava eu hoje a surfar na Internet, quando me deparei com o beijo mais demorado da história do cinema: o filme – No final do Outono (2010), tem como protagonistas Hyun Bin, actor coreano, e Wei Tang, actriz chinesa, que se beijam longamente numa cena que dura dois minutos e meio.
A China produziu o seu primeiro filme em 1905, 10 anos após os irmãos Lumière terem projectado, pela primeira vez, uma sequência de imagens em movimento para uma audiência que pagou para assistir. Nos 100 anos seguintes, foram realizados neste país pelo menos 7.000 filmes. Alguns deles marcaram a vida das pessoas e influenciaram a sua forma de olhar o mundo. Por volta de 1909, a China, com uma população de cerca de 400 milhões de almas, começou a ser vista como o maior mercado mundial para o cinema, mito que ainda hoje persiste.
Em Xangai, o empresário russo-americano, Benjamin Brodsky, fundou a Asia Film Co., a primeira empresa chinesa produtora de filmes. Com o capital e os estúdios cedidos pela Asia Film Co., Zhang Shichuan e Zheng Zhengqiu, duas figuras de topo dos primeiros anos do cinema chinês, realizaram Dificuldades no Matrimónio (1913). É considerado o primeiro filme chinês de ficção. Na altura, não era permitido às mulheres representarem, nem no teatro, nem no cinema. Mas em menos de um ano, Yan Shanshan virou a comunidade artística chinesa do avesso, quando ingressou num mundo dominado por homens, e desempenhou o papel de uma jovem no filme Os Ciúmes de Chuang-tzu, produzido em Hong Kong. Mais tarde Brodsky levou o filme para os Estados Unidos, pelo que foi o primeiro filme chinês a ser visto no estrangeiro. É um facto que são as mulheres que continuam a mexer com o coração das audiências na China, e não os Kung Fus nem os Pandas.
Um dia, um rapaz chamado Long que, quando era pequeno, só via pessoas a beijar-se nos filmes ocidentais, perguntou ao pai: “Porque é que os estrangeiros estão sempre aos beijos?” O pai respondeu, impaciente: “Porque são estrangeiros. Só os estrangeiros é que fazem isso.” Os tempos eram outros quando Long fez esta pergunta. É claro que as pessoas também se beijavam nos filmes chineses no início dos anos 30; as pessoas já se beijavam na literatura clássica! Nos anos 60, a Paramount encarnava a “luta de classes”. Considerava-se à época que beijar e abraçar eram comportamentos capitalistas e degenerados!
Quero agora relembrar alguns momentos em que actores chineses se beijaram na tela.
Em 1936, Fang Peiling realizou Metamorfose de Uma Rapariga. Neste filme, a protagonista feminina era uma rapariga que se vestia de rapaz desde pequenina, porque o avô queria ter um neto. Até que um dia uma amiga se apaixonou por “ele”. As duas raparigas beijavam-se apenas no rosto, mas este beijo teve um grande impacto porque foi o primeiro da história do cinema chinês.
Romance na Montanha Lushan, produzido em 1980, foi considerado num artigo da Agência France-Presse, como “representativo de uma nova tendência na moda e na filmografia chinesas”. De facto, este filme não trouxe nada de verdadeiramente novo, mas aos olhos das audiências chinesas de então, culturalmente esfomeadas, Romance na Montanha Lushan Mountain foi um festim. A heroína mudava de roupa dúzias de vezes no topo da montanha.
Para além do guarda-roupa, Romance tocou o coração das pessoas por causa de um pequeno beijo. A jovem protagonista, de fato de banho, com um olhar selvagem, dizia ao rapaz, “És tão tonto, mas tão adorável,” e a seguir pressionava os lábios contra a sua face. Na altura isto era novidade absoluta. Embora o beijo estivesse presente nos filmes feitos nos anos 30 e 40, depois de 1949, quando a República Popular da China foi fundada, estas manifestações de afecto foram erradicadas da tela. Romance trouxe-as de volta. Trinta anos mais tarde, Zhang Yu, actriz que desempenhou a protagonista, confessou: “Estava tão nervosa que não consegui encontrar os lábios dele. Porque a ideia era beijá-los nos lábios!”
Antes de Romance, o filme Reflexos de Uma Vida, estreado em 1979, tentou quebrar o tabu do beijo no cinema pós-Revolução Cultural. Contudo, o realizador não se atreveu a mostrar o beijo na integra às audiências. Quando os dois jovens estavam quase a despedir-se com um beijo, a mãe da jovem subitamente abre a porta e.… adeus beijo. Desta forma o realizador escusou-se a críticas.
Por fim, aqui vai o maior beijo da história do cinema. Desfrutem!

21 Set 2016

Cuidado com a Luxúria 魔鬼调教的张爱玲

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] romancista chinesa Eileen Chang 张爱玲 morreu a 8 de Setembro de 1995 em Los Angeles. Mas será possível celebrar a morte de alguém? Eu decidi que sim, porque ela se encontra entre os poucos romancistas chineses contemporâneos que continuo a ler hoje em dia. Eileen Chang repousa ao lado de Lu Xun no meu altar literário, só um bocadinho mais esquecida.
O filme Cuidado com a Luxúria 色、戒, produzido em Hollywood e realizado por Ang Lee, baseia-se num conto publicado em 1979, em Taiwan (ver foto). O trabalho de Chang desenvolve-se em torno de dois temas: a vida do dia a dia no período pré-comunista, marcado pelo encontro entre o Oriente e o Ocidente, e o cosmopolitismo da autora. Em Cuidado com a Luxúria, Lee demonstra ter-se apaixonado por ambos.
A escrita de Chang parece ser o produto natural da sua educação. O pai era a imagem do aristocrata decadente dos finais do Império, a mãe o tipo perfeito da “Nova Mulher”, ocidentalizada e adepta da reforma cultural. Educada e independente, chegou mesmo a deixar a família durante vários anos para viajar pela Europa e esquiar nos Alpes Suíços. Depois do divórcio dos pais, tinha Chag dez anos, a jovem iria crescer no universo contraditório de Xangai, durante o período pré-comunista, dividida entre o moderno apartamento da mãe e a casa aristocrática do pai, que se tinha tornado num covil de ópio. A transição cultural da China evidencia-se nas suas observações acutilantes.
A maior parte da sua obra foi escrita nas décadas do meio do séc. XX, um período de grandes convulsões políticas. A Dinastia Qing tinha sido deposta por uma revolução democrática em 1911, nove anos antes do seu nascimento. Contudo, passado cinco anos esta democracia viria a soçobrar e a transformar-se numa espécie de ditadura militar e, o período entre a década de 20 e a de 40 foi marcado por um aumento de violentas lutas pelo poder de controlar e remodelar a China. Estas lutas culminaram na sangrenta Guerra Sino-Japonesa e na guerra civil entre os Nacionalistas, de direita, e o Partido Comunista Chinês. Enquanto muito escritores consagrados responderam a estes conflitos reafirmando o seu esquerdismo e escrevendo sobre ideais como a Nação, a Revolução e o Progresso, Chang focou-se num tema mais mundano, como as interacções e as relações entre os homens e as mulheres. Cuidado com a Luxúria, é disto o exemplo máximo e, uma das poucas obras onde ela deixa a política conduzir a história. Parece ter sido a resposta de Chang a quem a criticava por tratar a guerra de forma demasiado banal.

Escolhi cinco frases do livro para partilhar com os meus leitores, que passo a citar:

– Se uma mulher não conquistar a admiração nem o amor dos homens, também não será respeitada pelas mulheres.

– Quando te ris, o mundo ri contigo. Quando choras, choras sozinho.

– A fotografia é a concha da vida. O tempo passa, devoras o interior e só tu conheces o seu verdadeiro sabor. A concha vazia é o que sobra para mostrares aos outros.

– Adoro o dinheiro e nunca compreendi que mal pode ele trazer. Nunca ninguém me demonstrou a sua iniquidade, fui-me sempre apercebendo como o dinheiro é bom.

– A Humanidade é o livro mais interessante que existe, nunca acabarás de o ler.

14 Set 2016

Bela e casta será a esposa do cavalheiro 美

O cisne crocita no banco de areia;
Bela e casta será a esposa do cavalheiro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste poema de amor tem quase 3.000 anos e está incluído no Livro das Odes, um dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos editados (leia-se: censurados) por Confúcio. Confúcio dedicou a vida a explicar ao mundo a importância do carácter e da moralidade na vida do povo chinês. E no fim de contas, damos mesmo importância.
A China foi através dos séculos a casa de uma miríade de mulheres belas e, muitos e diferentes padrões de beleza foram eleitos pela amplitude dos seus conceitos estéticos. Algumas mulheres são louvadas pelos dons no canto e na dança, outras pela natureza virtuosa e ainda outras pela habilidade na intriga política.
Xishi 西施, Wang Zhaojun 王昭君, Diaochan 貂蝉 e Yang Yuhuan 杨玉环 são as chamadas Quatro Beldades, quatro mulheres ancestrais que se destacaram por terem sido “Beldades a Bem do Povo”.
Hoje em dia são ainda recordadas pelo papel significativo que tiveram na História. Quando o Estado de Yue estava na iminência de ser atacado pelo Estado de Wu, Xishi aceitou a missão de seduzir o rei de Wu e induziu-o a mandar matar o seu comandante. O seu patriotismo ajudou Yue a vencer Wu. Diaochan é uma personagem ficcional dos Três Reinos. Ela derrotou um senhor da guerra, um traidor, atraindo-o para uma armadilha e garantindo assim a salvação do seu povo. Wang Zhaojun ofereceu-se para casar no Norte com o bárbaro Khan para garantir a paz do seu povo e, finalmente, Yang Yuhuan enforcou-se para parar um motim.
Estas mulheres foram heroínas, mas acima de tudo, foram figuras trágicas. Os chineses choraram por elas e admiraram-nas por terem sido “boas mulheres”, e uma boa mulher chinesa caracteriza-se ou pelo seu heroísmo, ou pela sua amarga solidão.
A concepção estética chinesa privilegia, mesmo hoje em dia, a virtude sobre a aparência.
Não menos belas eram Daji 妲己e Baosi 褒姒. Mas estes dois nomes provocam aversão e não admiração. Daji, concubina e cúmplice do rei tirano Zhou de Shang, foi cruel para o seu povo. Baosi, foi concubina do rei You de Zhou, e ficou conhecida por raramente sorrir, o que despertava no rei o desejo de a fazer feliz. Um dia o rei ordenou que se acendessem fogos de alerta no cimo dos postos defensivos, enviando aos seus duques um sinal falso de invasão inimiga. Os duques, acompanhados dos seus exércitos, precipitaram-se para a capital onde acabaram por perceber o logro. Baosi estava muito divertida com o caos que tinha causado e, sorria. Mais tarde o inimigo lançou efectivamente um ataque, mas porque o rei, como Pedro, tinha gritado “lobo”, os duques ignoraram os fogos de alerta e o rei acabou por ser morto.
Estas duas mulheres são consideradas a escória das suas nações e dos seus povos. Não são certamente “Beldades a Bem do Povo” e nem chegam a ser uma boa diversão.
Do ponto de vista etimológico, o caracter chinês para beleza é 美 – que é composto por duas partes: 羊 + 大— que quer dizer literalmente “grande ovelha”. Este caracter na sua forma original poderia querer dizer “um sabor delicioso”. Confúcio não se deu ao trabalho de nos explicar.

7 Set 2016

Chauvinismo e um poema “我是武则天。”

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Matou a irmã, chacinou os irmãos, assassinou o regente e envenenou a mãe. O choque provocou a morte do próprio filho,” assim relata o cronista.
Wu Zetian 武则天, a única mulher que ascendeu a Imperador da China, teria sido injustamente acusada destes crimes? Para ser breve, a resposta é, sim! E porquê? Porque a História oficial é escrita por homens. Depois da sua morte, o Imperador que lhe sucedeu organizou a uma campanha de difamação para lhe destruir a imagem. É possível que entre todas as mulheres que já dirigiram Nações, ela tenha sido a mais controversa e a mais poderosa, no entanto, o seu carácter e a sua obra permanecem obscuros, sob camadas e camadas de olvido. Na China do séc. VII e, depois de 3.000 anos de História, esta mulher tornou-se a única a governar o Império por direito próprio.
Senhora de excepcional sabedoria e de enorme talento Wu não foi uma heroína complicada. Corajosa e confiante, implacável e decidida, estabilizou e consolidou a dinastia Tang numa altura em que evidenciava sinais de decadência – um feito notável, já que o período Tang é considerado a Era de Ouro da civilização chinesa. Viria a atingir os seus objectivos de forma legítima, mas também com jogos de enganos e intriga palaciana. Seja como for, obteve resultados políticos e diplomáticos surpreendentes e a China alcançou mais poder em termos globais. Budista devota, optou por sistemas de governação mais liberais e benevolentes, rodeou-se de pessoas talentosas, promoveu o desenvolvimento da economia e sabia responder a críticas e vozes dissidentes de forma positiva. Durante o seu reinado a estabilidade social e o desenvolvimento económico criaram condições para lançar os alicerces do que viria a ser conhecido por “Era do Florescimento Kaiyuan”, nos finais da dinastia Tang. Durante este período as mulheres gozaram de uma independência nunca antes vista e, na capital, participavam em exames estatais, montavam a cavalo e usavam roupas masculinas. Li Po, o grande poeta da Dinastia Tang, considerou-a um dos “Setes Sábios” da época, possivelmente devido a sua acção a favor da Imprensa, o que foi muito benéfico para a divulgação da poesia. Wu também deu início à diplomacia dos Pandas, oferta de pandas gigantes a dignatários estrangeiros, ainda hoje adoptada pelos os dirigentes comunistas.
Este foi o lado político desta mulher. Mas como é que ela (ou qualquer outro dirigente chinês do passado) exercia o poder? Uma coisa sabemos, antigamente qualquer chinês culto era também um poeta. Wu não foi excepção. Vejamos um excerto da sua escrita.

Amanhã vou visitar o Parque Shanglin,
e, num repente, hei-de intimar a Primavera:
os botões devem florescer de madrugada,
Não esperem que sopre o vento da manhã!

O poema tem um tom quase controverso. A Imperador Wu fala sobre as suas plantas durante um passeio pelo parque. Tem uma métrica irregular e não rima, o que evidencia a sua natureza informal. Contrasta claramente com o estilo inicial em que preferia uma forma mais regular e mais rígida.
Dizia-se que gostava de criar mitos sobre a sua pessoa e que os usava para manipular a opinião pública. A imagética a que recorre quando intima a Primavera é semelhante à hipérbole mítica de uma rapsódia. É possível que tenha usado este poema para mostrar que o seu poder não se limitava ao mundo dos humanos, mas que se estendia à Natureza. Pelo tom informal do poema, patenteia a uma suprema confiança no seu poder, implicando que possui poderes vedados aos simples mortais. A posição que sempre tomou em defesa do Budismo, e o uso que fez da a religião para justificar posições políticas, podem indicar que este poema se destinava a reforçar a sua reputação de líder divina.
Todos estes séculos após a sua morte, a pedra tumular erigida em seu nome parece dizer-nos: Não faz mal que julguem e demonizem esta mulher, sei que o vão fazer.

31 Ago 2016

Particularidades da China 此照片获中国新闻摄影奖

[dropcap style=’circle’]“[/dropcap]Estas terras já pertenciam à minha família durante a Dinastia Qing. No tempo da República continuaram nossas. E assim permaneceram durante a invasão japonesa! Como é possível que tenham passado a ser vossas quando vocês (os comunistas) tomaram o poder? Eu não percebo de todo a vossa lógica!”
Na sequência das desapropriações e das novas disposições habitacionais, que ocorreram de uma ponta à outra da China, um homem velho e teimoso processou três vezes o governo local e ganhou! O homem prescindiu de advogado e defendeu a sua causa em Tribunal. O fotógrafo captou o momento em que ele se dirigia aos jurados e proferia o seu contundente discurso. Calçava botas de borracha cobertas de lama. A foto recebeu o Prémio de Fotojornalismo do Ano (2015).

A noção de “estado de direito” (依法治国yifa zhiguo) tem grande significado, quer na China, quer a nível internacional e serve para justificar as reformas mais dispares. Consegue ser simultaneamente um valor político digno de ser defendido e um motivo de preocupação; é um ideal intrinsecamente transtornante e transformado por quem o menciona, por quem o defende e por quem o crítica. Por este motivo, o próprio termo “yifa zhiguo” tem sido traduzido de maneiras diferentes por diferentes pessoas, “estado de direito”, “governar pelo direito” e “governar o país de acordo com a lei”. Illustra
O conceito de “estado de direito” passou a ser uma peça fundamental do vocabulário político-legal chinês a partir do período da reforma, sob a liderança de Xi Jinping e, desde então, tem vindo a aumentar de importância. Desde que Xi tomou as rédeas do poder em 2012, adoptou precisamente esta expressão para modelar as suas políticas e justificar os seus planos de acção. Mas a forma autoritária com que o conceito tem sido utilizado até aqui, de muitas e variadas maneiras, tem provocado interrogações e algum desencanto quanto ao futuro do sistema legal chinês. 
Um certo número de elementos que compõem a campanha de Xi a favor do “yifa zhiguo” podem vir, no futuro, a revelar-se muito úteis para aumentar a transparência e a credibilidade políticas. Mas o conceito de “yifa zhiguo” não pode por si só produzir uma melhoria geral das relações entre o Partido-Estado e a sociedade (ou mais precisamente entre “o Partido” e “o povo”). E isto, porque o próprio objectivo do “yifa zhiguo” é promover a ideia de que a lei é a manifestação da vontade e dos interesses do povo e que o Partido existe para proteger esses interesses. Ao abrigo da ideologia ‘yifa zhiguo’, o povo não pode desfrutar de quaisquer direitos, ou ter quaisquer interesses, que não estejam abrangidos pela alçada da liderança do Partido, cuja função é desenvolver e proteger os direitos e interesses do povo (que sejam da iniciativa do Partido).

24 Ago 2016

A China e os Jogos Olímpicos 奥运先驱

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s primeiros Jogos Olímpicos da actualidade realizaram-se em 1894. O Comité Olímpico Internacional enviou um convite à China, dirigido ao Imperador representante da Dinastia Qing, a última que deteve o poder neste país. A China ignorou o convite porque os administradores imperiais não faziam ideia do seu significado. Em 1904, muitos jornais chineses deram grande cobertura aos Jogos desse ano e, em 1906, uma revista chinesa publicou, pela primeira vez, um artigo sobre a história dos Jogos Olímpicos, falando sobre os seus antecedentes e sobre o espírito que lhes preside.
A 24 de Outubro de 1907, o famoso pedagogo Zhang Boling proferiu um discurso que fez história, na cerimónia de abertura de um evento desportivo em Tianjin. Na sua intervenção Zhang Boling salientava que, embora muitos países europeus tivessem poucas hipóteses de ganhar medalhas de ouro, não deixavam por isso de enviar atletas para participar nos Jogos. Defendeu activamente a ideia de que se deveria formar uma equipa chinesa para integrar as Olimpíadas.
Depois dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908, um jornal de Tianjin voltou a abordar o tema dos Jogos. O jornal apelava à participação da China na próxima edição dos Jogos, enquanto organizava uma série de palestras e debates em torno dessa ideia.
Entre 18 e 22 de Outubro de1910 realizou-se a primeira edição dos Jogos Nacionais em Tianjin, onde se exibiram slogans, como “Participação nos Jogos Olímpicos!”, “China, o próximo país organizador das Olimpíadas!”. E então, em 1913, os primeiros Jogos Olímpicos do Extremo Oriente tiveram lugar em Nanking. A China foi um dos promotores e os atletas chineses obtiveram bons resultados e provaram o seu desportivismo. Posteriormente, em 1915, o Comité Olímpico enviou um telegrama aos organizadores dos Jogos do Extremo Oriente a reconhecer a Associação Desportiva do Extremo Oriente e a convidar a China a participar nas próximas Olimpíadas e na reunião do Comité Olímpico.

Em 1922, o chinês Wang Zhengyan foi eleito membro do Comité Olímpico. Em 1924, três jogadores de ténis participaram a título pessoal na oitava edição, que teve lugar em Paris. Finalmente em 1928, durante a nona edição em Amesterdão, a China enviou um observador oficial, Song Ruhai, para comparecer no evento. Esta presença marcou o primeiro acto oficial da China nos Jogos Olímpicos.

O Pólo é um desporto muito antigo na Ásia, conhecido entre os chineses por Jiju击鞠. Os nobres da Dinastia Tang (618-907) adoravam bater bolas de madeira com um bastão feito de crina de cavalo. Dos 19 imperadores, 11 foram fanáticos. Dois deles morreram mesmo em acidentes durante jogos de Pólo. Diz-se que o jogo foi introduzido pelos Persas e pela Dinastia Tubo do Tibete, e era muito praticado pelas antigas damas chinesas. Por vezes, era mais do que recreativo. Quando o Imperador Xizong teve dificuldade em escolher entre quatro candidatos à chefia militar da região de Sichuan, a decisão foi tomada a partir de um jogo de Pólo. O candidato de classe mais baixa, mas que era um excelente jogador, acabou por conseguir o lugar.

17 Ago 2016

Imagens da liberdade: alguns momentos privados da Revolução 自由的身影:抗日战争中的摄影家沙飞的两张作品

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]fotógrafo Sha Fei 沙飞 registou imagens da violenta guerra que assolou a China durante os anos 30 e 40. Formado pelo Instituto de Artes Vocacionais de Xangai, entre 1936 e 37, Sha Fei conhecia as tendências artísticas ocidentais e sentia-se atraído por ambientes pictóricos. Influenciado por fotógrafos e outros artistas seus contemporâneos, tanto chineses como ocidentais, Sha Fei foi um dos pioneiros do modernismo. A sua obra inicial reflecte a paixão por paisagens semi-abstractas, onde detectamos a influência de fotógrafos proeminentes como Edward Steichen e o seu “país de nuvens” e de Lang Jingshan que trabalhou a fotomontagem. Em 1936 Sha Fei conheceu o escritor Lu Xun. Este encontro viria a mudar a sua vida. O seu trabalho passa a ser marcadamente político, publica em revistas conotadas com a esquerda e torna-se famoso com as fotos de Lu Xun, em Xangai. Pouco depois, passa a colaborar com o Governo Nacionalista e muda-se para Taiyuan, na zona da fronteira de Chin-Cha-Chi, com o 8º Exército de Infantaria. Instala-se na frente de combate e passa a dedicar-se totalmente ao fotojornalismo. Image 1
A partir de Agosto de 1937, começa a fotografar com fortes contrastes de luz e sombra, soldados, pescadores, camponeses e trabalhadores em poses heróicas, à semelhança de muitos outros modernistas. Destaca-se deste conjunto a fotografia do comandante Nie Rongzhen com a rapariguinha japonesa à sua guarda (1940). Por causa de todo o seu potencial teatral esta foto foi usada pela propaganda comunista. Os documentos de Sha Fei deste período, com os seus close-ups de figuras humanas colocadas numa paisagem quase monótona, lembram muitas vezes os instantâneos de figuras revolucionárias. Uma visão magistral do homem e da natureza foi a marca do seu trabalho, fotos hipnotizantes que pareciam querer fazer-nos esquecer a guerra por uns momentos.

Escolhi duas imagens para partilhar convosco, dois momentos que me fizeram lembrar as personagens de Brokeback Mountain.

Imagem 2: O comunista canadiano Norman Bethune, cirurgião de profissão, representado como uma figura cosmopolita a chapinhar nas águas cintilantes do rio, no cume de uma montanha. Sha Fei e o Dr. Bethune eram amigos próximos. Image 2
No Verão de 1939 Sha Fei fotografou uma série de nus usando Norman Nethune como modelo, quer fosse a banhar-se nas águas do rio, quer fosse a tomar banhos de sol no majestoso cume da montanha. Os nus já apareciam na arte chinesa tradicional, no entanto, ainda era um assunto controverso na China dos anos 30.

Imagem 3: A guerrilha ataca sorrateiramente as posições inimigas. Este era o lema do exército anti-japonês, com base em Hebei ocidental. Nesta foto de 1939, Sha Fei mostra-nos a poética paisagem fluvial do sul da China sob a ameaça da guerra iminente.

10 Ago 2016