Tradução de André Bueno
(continuação)
330.
Quem não consegue ainda se controlar, deve afastar-se um pouco da confusão cotidiana, de modo que sua mente não veja o que a inquieta, e não se perca; assim, ele acalmará seu corpo e seu coração.
Quem consegue se dominar, deve voltar para a agitação da vida, pois sua mente vê, mas não se sente tentada ou atraída, e isso o ajudará ainda mais a superar as coisas do mundo.
331.
Quem ama silêncio, e detesta barulho, vai acabar buscando tranqüilidade fora do mundo cotidiano. Mas, sem o contato humano, a mente retorna ao seu estado original, e ela pode se inquietar e ficar ansiosa.
A quietude está na raiz do movimento;
Como compreender que eu e os outros somos um só?
Como esquecer a diferença entre quietude e movimento?
332.
Na montanha, a mente respira, e fica cheia de bons pensamentos;
Uma nuvem que passa, o canto das garças, isso incita a mente a voar;
Um riacho que murmura nas pedras, isso banha a mente em água cristalina;
Fazer carinho num zimbro ou numa ameixeira, isso dá um sentimento de segurança e retidão;
Com aves e cervos como companhias, a mente esquece imediatamente seus problemas;
Mas ao voltar ao mundo da agitação, uma pessoa não apenas volta a relacionar-se com as coisas, mas torna-se servo delas.
333.
Feliz, ande tranquilamente pelos pastos, descalço; as aves te acompanharão, e te farão esquecer seus problemas.
Deixe sua mente se fundir com a paisagem; sente sobre as pétalas caídas, observe as nuvens no Céu, e deixe o sentido de ‘eu’ desaparecer.
334.
Na vida, felicidade e tristeza surgem na mente.
Diz o Budismo: ‘a ganância é um fogo devorador, e um abismo de sofrimento’.
Ter desejos insaciáveis é como afundar num mar de amargura;
Mas apenas um pensamento bom é capaz de mudar o fogo para água;
Apenas um pensamento correto é capaz de levá-lo, como um bote, até uma margem segura.
Assim, os pensamentos são levados, de um lado ao outro, chegando aos extremos. Devemos, portanto, ser cuidadosos com a mente.
335.
Uma serra de corda corta a madeira, uma gota d’água fura a rocha; quem estuda o Caminho, deve ser constante.
A água que flui se transforma em canal, a fruta madura cai do pé; quem busca o Caminho, deve procurar a perfeição.
336.
Ao vencer os combates da vida, chega-se a um lugar em que a lua é clara, a brisa é suave, e a vida não é mais um mar de amarguras.
Ao limpar a mente das agitações, não se escuta mais o ruído dos cavalos e carruagens, e não é necessário fugir para a montanha para conseguir sossego.
337.
Quando as árvores e plantas murcham, os brotos nascem de suas raízes;
O inverno é gelado, mas quando o vento sopra e as cinzas voam, é porque o sol está voltando;
Mesmos nas solenidades funerais, pode-se perceber os sinais da vida;
Assim, apreciamos os espíritos do Céu e da Terra.
338.
Olhe a cor da montanha, quando chove; ela ganha uma beleza diferente.
Ouve o som de um sininho no meio da noite; ele fica muito mais claro.
339.
Vá para um lugar alto, e amplie sua mente;
Contempla a água, e deixe que ela leve seus pensamentos;
Leia um livro numa noite fria de inverno, e purifique seu coração;
Suba uma montanha, declame poemas para o Céu, e vá para além desse mundo.
340.
Para um coração aberto, dez mil tigelas são como uma vasilha de barro;
Para um coração mesquinho, um cabelo é tão grande como a roda de uma carruagem.
341.
Sem chuva, vento, flores e salgueiros, não existe a natureza;
Sem sentimentos, anseios, preferências e hábitos, não existe mente.
Somente quem controla as coisas, e não é escravo delas, tem sua vontade inspirada pelo Céu, e seus pensamentos encontram a justa medida.
342.
Somente quando uma pessoa compreende a si mesma, é que pode deixar as dez mil coisas se desenrolarem, conforme suas dez mil naturezas.
Somente quando se governa corretamente pela não-ação, sem reclamar méritos, mas deixando a natureza agir, essa pessoa pode ser dita sábia.
343.
Numa vida ociosa, pensamentos estranhos chegam como ladrões.
Numa vida ocupada, a natureza humana não pode ser percebida.
Não afaste totalmente as preocupações com o corpo e a mente, mas não evite, por completo, as preocupações com a natureza.
344.
A mente se perde em meio ao caos e a confusão;
Mas em silêncio, ela se esvazia por completo;
Ascende ao Céu, voa longe com as nuvens;
Refresca-se com as gotas de chuva;
Alegra-se, e entende o canto dos pássaros;
Acalma-se, e pondera sobre a queda das pétalas das flores;
Esse não é o paraíso?
Como compreender a verdade do mundo?
345.
Quando nasce uma criança, a mãe corre risco; riquezas guardadas atraem ladrões; assim, onde há razão pra comemorar, há que se preocupar também.
A pobreza ensina a simplicidade e a diligência; a doença ensina a cuidar da saúde; assim, onde há razão para se preocupar, há aprendizado também.
O sábio olha sorte e azar como coisas iguais, e esquece a diferença entre alegria e tristeza.
346.
O Ouvido aprende escutando; ouve os ventos sibilarem nos abismos e ravinas, mas depois que passam, tudo fica em silêncio.
Os estados da mente são como a lua refletida no lago; quando o céu está vazio, não se vê nada.
Assim, se esquece a diferença entre “isso” e o “eu”.
347.
Quando o coração está enredado em honras e benefícios, tudo o que se faz ou se diz no mundo termina em tristeza;
Não se conhece as nuvens brancas, o vento puro, o rio que corre, as pedras amontoadas, o rosto das flores, a alegria dos pássaros, ou o canto do lenhador que ecoa no vale.
Mas quem as conhece, se acalma; e a tristeza vai embora, pois foi ele mesmo que sossegou sua mente.
348.
Observe as flores quando estão pra desabrochar; beba vinho somente até ficar um pouco tonto; dessa forma, aproveita-se muito mais as coisas.
Observe as flores em todo o seu esplendor; beba até ficar bêbado; dessa forma, tudo que é bom fica ruim.
Quem tem uma alta posição, deveria refletir um pouco mais sobre essas coisas.
349.
As plantas crescem nas montanhas, sem que alguém lhes dê água ou estrume, e seu sabor é delicioso;
As aves voam pelos campos, sem que alguém as crie ou lhes dê comida, e seu sabor é incomparável;
Dá-se o mesmo com quem convive com o vulgar, mas não é contaminado por ele, mantendo sua pureza original. Tal pessoa não é um exemplo?
350.
Cultivar flores, plantar bambus, brincar com as garças, observar os peixes, tudo isso deve ser feito com atenção.
Quem o faz de forma vazia e displicente, sem perceber a beleza da natureza, é aquele que os confucionistas chamam de ‘superficial’, e os budistas de ‘ pretensioso’.*
O que pode haver de bom nisso?
*no original, ‘pessoa de boca e ouvido’ (=superficial); e ‘pessoa ignorante e arrogante’ (=pretensioso). [O primeiro despreza conhecer; o segundo ‘pretende’ que conhece.]
351.
O Educado que vive nos bosques e montanhas leva uma vida austera, honesta, simples, e está sempre satisfeito;
O camponês dos prados leva uma vida simples e ignorante, mas conserva sua ingenuidade e pureza;
Quem foge do mundo das coisas pra depois voltar a ele, se transforma num mísero negociante; seria melhor ter morrido nos campos, sem contaminar seu corpo e alma.
352.
Tome cuidado quando ganhar fortunas sem razão, ou desfrutar de alegrias não-merecidas; pode ser um teste, uma tentação imposta pelo Céu.
Há gente de visão limitada, que sempre cai nessas armadilhas.
353.
A vida humana é como uma marionete:
Se as cordas estão em suas mãos, livres, desembaralhadas, e você pode movê-las como quiser;
Então, você controla sua vida, e nada pode manipulá-lo;
Só assim livra-se das cordas do mundo.
354.
Vantagens e desvantagens surgem juntas; quem sabe disso, abaixo do Céu, entende que a felicidade é a não-ação.
Um antigo provérbio diz:
‘Aconselha o soberano a deixar de lado suas conquistas, pois apenas uma vitória deixa dez mil crânios apodrecendo no campo’
E também:
‘Deixa em paz todas as dez mil coisas abaixo do Céu, e não se importe se sua espada enferrujar na bainha por mil anos’.
Quem compreende essas palavras, pode amansar um coração impulsivo e violento, como se o refrescasse debaixo do sol.
355.
Uma mulher indócil pode corrigir-se, e virar monja; um homem mesquinho pode controlar-se, e seguir o Caminho num templo.
Por isso, os templos servem para o refúgio e a correção dos perdidos.
356.
Quando as ondas chegam até o Céu, quem está no barco não se assusta, mas quem está de fora, fica amedrontado;
Quando acontece um tumulto numa festa, quem está no salão não se impressiona, mas quem vê de fora, fica apavorado;
Por isso, o sábio, quando está dentro de alguma situação, projeta sua mente para fora dela.
357.
Aja menos, erre menos;
Menos amigos, menos confusão;
Fale menos, menos equívocos;
Preocupe-se menos, menos aporrinhação;
Menos astúcia, mais integridade;
Quem mais trabalha* todo dia, sem cessar, forja grilhões para si mesmo, por toda a vida.
*[Planeja, ambiciona, executa ações em proveito próprio, busca proveito, etc. Outro sentido possível é o de não esgotar-se, mesmo sendo o trabalho digno.]
358.
Calor e frio podem ser evitados em qualquer estação, mas a inconstância das pessoas não;
A inconstância pode ser controlada, mas não cura a irascibilidade;
Quem controla a inconstância, e cura o coração irascível, alcança a paz no coração e a calma do espírito, como se lhe soprasse uma brisa primaveril.
359.
Meu chá não é o melhor, mas eu sempre tenho um bule cheio;
Meu vinho não é o mais fino, mas sempre tenho uma botija cheia;
Meu alaúde é simples, mas toca bem;
Minha flauta é pequena, mas não é desafinada, e me alegra;
Em viver a vida de modo simples, eu não sou tão bom quanto Fuxi, mas me contento em dizer que chego perto de Jikang e Ruanji.*
*Fuxi, primeiro sábio das eras primitivas chinesas; Jikang e Ruanji são integrantes do mítico grupo dos sete sábios do bosque de bambu, ascetas desapegados da vida social, e dedicados a uma vida despojada.
360.
O budismo ensina: ‘siga a natureza’;
O confucionismo ensina: ‘siga o apropriado’;
Esses ensinamentos são a bóia com que atravessamos o Mar da vida.
Os caminhos do mundo são vastos e ilimitados;
Busque o Topo, e você terá mil dificuldades;
Acostume-se com sua vida, sem pretender altas posições, e você viverá em paz de espírito.
* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas.