Flávio Tonnetti VozesO cômico como espelho: Teatro em Patuá e a celebração dos 30 anos de Dóci Papiaçam di Macau Como unga fula nacê aqui Na básso d’unga sol qui brilhâ assi Na verdi perfumado deste jardim Na casa qui sâm nôsso Nôs têm aqui Iou co vôs Miguel de Senna Fernandes “Eu sou maquista!”, dito em Patuá, aponta para o reconhecimento profundo desse sentimento de identidade que marca o coração de quem é macaense. Dito pelos atores, a frase catalisou fortes emoções no público que assistiu ao espetáculo Oh, Que Arraial! do grupo Dóci Papiaçam di Macau no encerramento do Festival de Artes. A apresentação, portanto, se revela como uma declaração de amor à cidade, com todas suas contradições e idiossincrasias, muito bem exploradas da cômica dramaturgia da obra, que conta a história de uma Macau que se abre novamente para os turistas numa era pós-pandemia, tentado realizar uma festa popular para revitalizar culturalmente um dos seus bairros mais tradicionais. Além de configurar uma homenagem à cultura macaense, o espetáculo Chachau-Lalau di Carnaval – nome original em Patuá – é uma celebração aos 30 anos de longevidade desse grupo teatral que mais bem expressa o sentimento de ser macaense. Sua existência, por si só, constitui um feito em uma época em que a continuidade e a longevidade já não representam um grande valor. Em termos de memória e crítica cultural, é importante reconhecer os signos mobilizados ao longo do espetáculo. Chau-cháu-lau-lau é antes de mais nada uma bagunça, uma mixórdia, uma confusão. Chau-cháu é o termo para se referir ao guisado à chinesa, onde todas as carnes se misturam. É esse termo que dá a dimensão cômica, mas também poética e política, do modo de existir maquista: a diversidade é o que nos identifica. O que é o mesmo que reconhecer que, em Macau, houve combinação. Sem que a essa combinação se faça um juízo imediato de valor, mesmo porque, no bojo da combinação convivem, muitas vezes, forças antagônicas e sabores duvidosos. Se cozinhar é a arte de encontrar o ponto, encenar é a arte de combinar as diferenças. Historicamente, sabemos que dessa combinação – desse guisado – saíram sabores e saberes que constituíram uma gastronomia própria, uma linguagem própria, uma arte própria. Manifestando formas de existir e sentir que se realizam pela síntese de uma diversidade que se entrelaça. A língua patuá, resultado desse encontro entre a cultura portuguesa com a cultura chinesa – mas também com as culturas malaia, espanhola, canarim de Goa e inglesa – é uma dessas sínteses de um ponto de fusão radical entre os diferentes que vieram aportar na Grade Baía, no delta do Rio das Pérolas. Muitas vezes chamada de crioulo macaense, o patuá, a despeito de seu valor histórico, tem sido classificado pela UNESCO como uma língua criticamente ameaçada, ou seja, que está em vias de extinção. Por essa razão, cresce ainda mais, em importância, o trabalho do grupo Dóci Papiaçam di Macau. Sua existência ganha um sentido mais profundo: ao encenar em patuá, vive para fazer viver. Existindo para dar continuidade ao que existe, incorpora em si o dilema de toda a cultura macaense. Não sendo mais Portugal – algum dia chegou a ser? – poderá vir a ser China? – alguma vez deixou de ser? Na encruzilhada entre o “não mais” e o “não ainda”, alcançará ser coisa própria ou deixará de ser tal coisa alguma? Macau vive a maldição dos híbridos, interface à espreita de interesses políticos, que dos ambíguos buscam tirar proveito: Macau é apresentada como uma plataforma multicultural a serviços das grandes potências e seus mandatários engravatados. A interculturalidade e o multilinguismo se manifestam na peça, com personagens que não se entendem em um espaço físico em que habitar não necessariamente significa conviver. E no qual a exploração de uns pelos outros pode compor a gramática dos encontros. Enquanto isso, no rés do chão da vida comum, os populares cuidam do ordinário: um barrigudo ergue a camisa para refrescar-se, uma moça alucina ser digital influencer, um estrangeiro oportunista busca emprego, um velho canta canções antigas e uma senhora leva nas costas o comércio que sustenta a família. Cenas tão cotidianas de uma Macau pedestre. O efeito cômico só existe, e toda gente ri, porque na caricatura estão os traços reveladores do que se vê na realidade. Quando os exageramos, podemos defini-los melhor. E o riso na plateia eclode frente aos absurdos que os tais traços revelam. Afinal, são personagens fictícios ou são nossos próprios retratos? Pelo exagero, os medos também se mostram: o medo de ter filhos imprestáveis, o medo de não ter sucesso, o medo de ser dominado, o medo de ser esquecido, o medo da contaminação pela doença. Entre o teatro de revista e a opereta, a peça comunitária se profissionaliza na discussão de grandes temas. Aqui também há palco para grandes tragédias. Macau, que vive do turismo, enfrentou o medo de desaparecer nos tempos de pandemia. Efetivamente, para muitos expatriados que aqui passaram décadas de suas vidas, Macau deixou de existir. Ex-maquistas, acometidos pelo infortúnio dos reveses da vida, retornaram a suas ex-pátrias. Duplicaram em si o impasse dessa pátria: habitam um lugar incerto entre o ser e o deixar de ser. Desencontros e frustrações também compõem nossa história. Do ponto de vista da linguagem, o espetáculo combinou trechos de projeções audiovisuais com atuação cênica, produzindo intermezzos cinematográficos em que esquetes cômicas foram apresentadas antes e após um pequeno intervalo dividindo a peça em dois atos. A inserção da linguagem audiovisual nos permitiu refletir sobre as modalidades intermidiáticas de comunicação e as formas de dizer mediadas pelas tecnologias. Jogando com gêneros jornalísticos e programas de variedades, muito presentes na internet e na programação televisiva de Macau, percebemos mais claramente as performances e encenações envolvidas experimentadas em formas cotidianas de dizer. Nesse caso, também lidamos com as máscaras e os fracassos dos processos comunicacionais de hoje em dia. Essa produção valoriza o esforço feito pelo grupo nos últimos anos, contextualizando inclusive o contexto pandêmico, de produzir e difundir vídeos no YouTube, com o mesmo caráter cômico e crítico à cultura macaense que já aparecia nas produções estritamente teatrais. Essa inserção no espaço das redes sociais, um ciberespaço sem fronteiras, reforça a missão do grupo de não apenas preservar o patuá, mas de projetar essa língua para além dos limites da ilha. O sentido de continuidade aparece também aí, na renovação de gêneros comunicacionais e artísticos. Mas nenhum deles é maior do que o sentido de renovação que aponta para a esperança de continuidade expressa nos comentários do diretor Miguel de Senna Fernandes quando olha para as crianças e adolescentes que atuam no espetáculo: a vida continua. Ao longo dessa história, vão se forjando novas identidades, complexificando ainda mais a paisagem. Nesse jardim onde as sementes foram plantadas, o futuro sopra seu perfume: como uma flor que nasce aqui. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte.
Flávio Tonnetti VozesXiao Ke: a história do grande país no corpo da pequena bailarina O espetáculo de Xiao Ke, cujo título da obra é seu próprio nome, não pode ser definido de outra forma senão como uma performance autobiográfica. Sozinha, coloca-se de pé no centro do palco, próxima ao público que aguarda uma dança. Ela efetivamente dançará, mas somente após ter dado início a narração de sua história. Sua dança vai, então, se colocando como intervalos que ilustram os acontecimentos descritos no curso de sua palestra testemunhal. Numa espécie de lecture performance, ela nos dá uma aula sobre a dança chinesa contemporânea, que se manifesta a partir da experiência pessoal acumulada na memória de seu corpo. É uma ode ao corpo da bailarina como testemunho da história. Sua silhueta escreve no ar, por meio de gestos, aquilo que ela verbaliza por palavras. Trata-se de um espetáculo com dramaturgia textual e direção cênica, em que a dança e o teatro se combinam, gerando uma experiência diferente e hiper pessoal em que as fronteiras da imaginação e da realidade se desarmam: vemos uma performer interpretando a si mesma. Portanto, não vemos uma atuação, mas uma ação de quem coloca o próprio corpo – a própria vida – em cena, para que a sagração do viver seja comungada pelo público. Por isso, é que não podemos dizer que assistimos a uma representação e, sim, a uma apresentação. Tampouco se trata de ficção, mas de documentação. Esse modo de compor, do monólogo autobiográfico, reforça a noção de retrato proposta pelo coreógrafo francês Jérôme Bel, idealizador do projeto em que Xiao Ke se vê inserida. Usando a biografia como matéria dramatúrgica, Jérôme Bel desafia coreógrafos a dançarem suas próprias carreiras – a exemplo do que já havia feito com a francesa Véronique Doisneau, do Ballet da Ópera de Paris, com o artista tailandês Pichet Klunchun, especializado em dança tradicional siamesa, e com o também francês Cédric Andrieux, da Companhia de Dança Merce Cunningham. Se apresentando de forma singela e radicalmente crua, Xiao Ke nos conta como a dança lhe tocou ainda na tenra infância, quando vivia com sua família numa vila militar, graças à carreira do pai. Nessa realidade em que os tempos de acordar, almoçar e descansar eram regidos coletivamente, na disciplina dos corpos, havia a presença das músicas, hinos e sinais que marcavam os ritos da caserna. Ela recorda a marcante memória de ter se apresentado aos 4 anos num enorme palco do batalhão, dançando sozinha num evento para soldados que mal podiam enxergá-la de tão pequenina. Enquanto vai nos contando essa memória, vamos ouvindo as músicas que compõem a paisagem sonora desse tempo histórico em que uma criança se desenvolve. É na infância que ela passa a integrar um grupo de danças folclóricas e tradicionais de Yunnan, orientando para as danças étnicas chinesas. Nos contando sobre as viagens que fazia com esse grupo, recorda de uma apresentação realizada em Beijing no ano de 1989, estando próxima à praça Tiananmen. Sua biografia pessoal, portanto, toca a história da China – ou é tocada por ela? Temos aqui a clara perspectiva do materialismo histórico estruturado como ciência: a sociedade é produzida por fatos objetivos que afetam a vida de quem participa dela. Conhecer a história é, portanto, fator determinante para que possamos conhecer a nossa própria vida, e para projetarmos um futuro melhor, tanto individual quanto coletivamente. Não há ser sem história. Do mesmo modo que não há indivíduo fora do tempo e do espaço que lhe deram origem. A existência só pode ser pensada socialmente. Numa sociedade de múltiplas faces, Xiao Ke nos fala da importância do rosto como elemento cênico nas danças chinesas, nos dando exemplos de como diferentes expressões faciais podem sugerir diferentes emoções. Na dança, a face é um recurso. A face é nossa máscara mais imediata. Xiao Ke também conta que aprendeu balé chinês, descrito por ela como uma mistura de ballet russo, ópera chinesa e artes marciais, nos dando novamente um excepcional exemplo do conjunto de suas técnicas, acumuladas em um corpo extremamente disciplinado. Olhando para o corpo diminuto de Xiao Ke, que vai, a partir dessas memórias, se acionando como uma versátil e plural máquina de guerra, somos facilmente conduzidos à pergunta dos deleuzianos: o que pode um corpo? No período universitário Xiao tenta dar um tempo em relação à dança como ofício, dizendo ter se cansado da dança tradicional, partilhando o desejo de querer experimentar a possibilidade de mover-se livremente, algo que para ela se dá nas festas juvenis pelo encontro com a disco music e a break dance. Novos horizontes de uma cultura que passa a entrar em contato com outras. Ouvimos uma música pop chinesa – exemplo de disco music chinesa dessa época – que nesse momento é performada com humor por Xiao Ke. No palco, apenas uma prancheta com anotações e uma garrafa de água – nos mesmos moldes mínimos de encenação proposto por Bel a Véronique Doisneau muitos anos antes. Mas não sentimos falta de mais nada. A vida, como potência que se realiza, é suficiente para ocupar todos os espaços. Ela volta então à dança para experimentar novas formas. Que ela nos demonstra – agora sem som. A liberdade é silenciosa. Descobre a Dança Moderna ocidental e pensa, aos 20 anos, em abrir sua própria escola. Seu estúdio fica popular, mas perde um apoio que tinha da universidade em razão de uma performance polêmica. Curiosamente, esse cancelamento oficial a torna cool e a insere num outro circuito artístico. Move-se para o underground. Busca trabalhar como jornalista, mas tem desilusões com essa carreira, acabando por arrumar um bom emprego na multinacional Johnson & Johnson que lhe paga o suficiente para poder, paralelamente, financiar sua carreira artística. Mas o dinheiro nunca lhe parece o suficiente e ela parte para uma atuação em uma dança mais comercial, aprendendo gêneros de sapateado e danças ocidentais que aumentem sua empregabilidade nesse mercado de produtos e eventos publicitários. Prospera, então, como bailarina e coreógrafa comercial, alcançando os meios para sobreviver apenas da dança: finalmente ganha a vida dançando. Com recursos que lhe permitem investir também em seus projetos de caráter mais artístico, e não comerciais, fala de sua parceria com o vídeo artista Zi Han e da experiência de criar um grupo experimental de teatro físico com artistas de diferentes vertentes e linguagens. Também divide connosco algo sobre seus relacionamentos amorosos, seus gatos e a intimidade de sua vida doméstica. Há frustrações e há alegrias. E tudo é tão tocante, porque, afinal, somos muito parecidos em nossas coreografias: a vida é uma repetição do nosso tempo. O que parece ser significativamente bonito é que possamos habitar o mesmo tempo presente dessa artista, cuja vida orientou-se para a expressão de um sentimento que sempre a ultrapassa. Por mais que desejemos driblar a vida, somos e sempre seremos a expressão de nosso tempo e de nossa cultura. Vivemos a vida como testemunho da vida maior: passamos pela vida e a vida passa por nós. Embora também seja certo que as grandes narrativas não existem sem as pequenas. Não há a grande história sem as micro-histórias. Não há nem a França, nem a China. O que há são pessoas francesas e chinesas, construindo a enorme teia dessas culturas. E por isso mesmo é que cada vida nos importa. Espelho multifacetado de nós mesmos, a composição de Xiao Ke, cujo retrato não é apenas de si mesma, mas de toda a Terra do Meio, nos importa muitíssimo.
Flávio Tonnetti VozesElectra: um tragédia grega em chinês No Festival de Artes de Macau, a tragédia grega antiga escrita por Sófocles ganha novos contornos na montagem chinesa proposta pelo Centro de Artes Dramáticas de Xangai, dirigida pelo grego Michail Marmarinos. Ainda que dirigida por um grego, a peça parte de uma abordagem cultural completamente diferente da do berço civilizacional do Ocidente, nos permitindo, pela via do Oriente chinês, iluminar alguns aspectos da peça grega, que ficam mais evidentes devido ao contraste intercultural. A tragédia grega conta a história de Electra, filha do meio do rei Agamenon, que está empenhada em buscar a vingança contra sua mãe, Clitemnestra, e seu padrasto, Egisto, responsáveis pelo assassinato de seu pai, Agamenon. Com a ajuda de seu irmão mais novo, Orestes, que retorna disfarçado para vingar a morte do pai, Electra planeja o assassinato de Clitemnestra e Egisto. A complexidade aumenta quando lembramos que a mãe Clitemnestra também tinha motivações legítimas para assassinar seu marido, que na condição de rei havia sacrificado a filha primogênita Ifigênia em busca de boa fortuna no curso da guerra. A partir desse enredo privado e familiar, a história alcança discutir questões universais, como o conflito entre justiça e vingança, a complexidade das relações entre pais e filhos, e a crise no amor e na lealdade que se instaura após um ato criminoso. Estamos diante de uma das peças teatrais mais significativas no que diz respeito a expressão de dilemas éticos, representado por conflitos para sempre irresolutos, que constituem a marca da condição humana. Sobretudo no que diz respeito às tensões entre indivíduo e sociedade, a peça nos faz refletir sobre como uma tragédia pode conduzir qualquer um à irracionalidade, conduzindo nosso estado de ser a transbordamento excessivo e descontrolado, que se caracteriza na língua grega pela palavra hybris. Em relação à experiência da tragédia, podemos nos perguntar de que modo a cultura chinesa poderia acrescentar camadas de sentido à dramaturgia grega. Da montagem da companhia de Xangai, gostaria de examinar alguns elementos que nos permitiriam situar melhor os níveis de complexidade da obra, numa perspectiva cultural comparada. Inicialmente, podemos retomar a importância que a família tem na cultura chinesa. Honrar pai e mãe – mandamento que conhecemos pela via cristã – é um valor que segue sendo absolutamente central mesmo na vida dos chineses mais jovens. Tensões e rupturas no seio familiar significam a negação da ancestralidade e a perda completa do chão existencial. Fazer parte de um clã, como signo de um poder maior e anterior que ultrapassa o indivíduo e o supera, segue sendo algo extremamente importante. Tendo isso em vista, podemos dimensionar o peso que essa tragédia grega assume no seio da cultura chinesa. Nada pode ser mais terrível do que desejar – mais do que isso, precisar – matar a mãe, no caso de Electra, ou ao marido, no caso de Clitemnestra. Nenhuma maldição pode ser maior do que a de pertencer a uma família em que a crimes contra o próprio sangue foram cometidos em nome do poder ou da glória. Os crimes paterno e materno, como um pecado original, geram uma mácula sobre toda a linhagem, que passa a ser condenada a uma eterna repetição da atitude criminosa, como efetivamente se dará. O genitor que sacrifica a própria filha, e a mãe, assassina do pai, condenam o futuro de seus descendentes, jogando-os num círculo vicioso de vingança. A tragédia, na Grécia como na China, ultrapassa a dimensão da existência individual, projetando uma sombra de infortúnio sobre o tempo expandido das gerações. A tragédia grega ganha um sentido adicional ao incorporar a forma de sentir chinesa. Aqui se sente um arrebatamento que talvez já não se sinta na Europa ou na América atuais, em culturas nas quais a família tem menor valor que o indivíduo. Na língua chinesa, os substantivos usados no cotidiano para designar irmão e irmã, diferenciam a ordem de nascimento dos filhos. Não se usa um termo geral para irmão ou irmã, mas sempre um termo que especifica irmãos e irmãs como sendo mais velhos ou mais novos. A palavra que usamos, portanto, informa nossa ordem hierárquica no interior da nossa família. Nesse sentido, a tragédia encenada em chinês nos ajuda a iluminar uma das dimensões presentes na tragédia de Sófocles: a percepção mais clara de que Electra é a filha do meio – numa encenação que se passa na Terra do Meio. Isso significa que ela não está nem tão próxima da defesa cega e absoluta do clã, como sua irmã mais velha Chrysothemis, nem tão distante da tradição como seu irmão Orestes, criado em outra cidade. É justamente esse distanciamento que conferirá a Orestes as condições morais para que seja ele o executor da vingança dos filhos contra a própria mãe. A hybris de Electra, portanto, não é nem o sentimento da passividade inerte, nem o da agressividade assassina, embora precise ser invadida por estes dois sentimentos extremos na elaboração da sua tragédia, que longe de ser uma tragédia meramente pessoal, busca expressar uma condição social mais ampla, como signo de uma sociedade que se degenerou. É como se no centro do Tao, ela se equilibrasse por entre violentas forças contraditórias, buscando elaborar um sentido de paz e libertação que não sirvam apenas de si, mas que possam restaurar toda uma sociedade, atualmente corrompida pelos mal feitos da nobreza. Neste ponto podemos, certamente, fazer uma leitura confuciana, a partir da qual podemos debater de que modo a conduta moral dos mais poderosos produz impacto sobre quem está hierarquicamente abaixo. Nos permitindo derivar um complexo conjunto de reflexões políticas sobre o significado da política na vida contemporânea, que é o tempo e o espaço representados pela cenografia: estamos em uma grande cidade com características metropolitanas. Como expressão do povo da cidade, o coro desempenha um papel importante nessa montagem. Na tragédia grega, o coro inflama a hybris e modula os humores, criando camadas de tensão. Na encenação de Xangai, o coro faz com que todos os sentimentos de tensão permaneçam contidos. Além disso, os personagens do coro, como signo da sociedade, dão suporte a Electra. Toda vez que seu corpo ameaça tombar ao chão, o coro vem socorrê-la, impedindo que desfaleça, oferecendo apoio para que suporte sua pena sem sucumbir à desgraça. O povo está com Electra. E sua busca por justiçamento é socialmente legítima. O sentido estrutural e de contenção afirmado pelo coro é possível graças a uma encenação que reelabora, em linguagem contemporânea, elementos provavelmente oriundos da ópera de Beijing e do teatro kabuki. Da ópera chinesa, a movimentação dos pés e a forma de disparar as ações; do kabuki, o modo de dizer e a forma de entoar as palavras. Na montagem chinesa, a tragédia está orientada para a interioridade, já que nenhuma manifestação de afetação exterior é capaz de comunicar uma dor que se experimenta em silêncio, na intimidade do ser. O que torna por exigir do espectador um grande nível de recolhimento e atenção, trazendo um grande desconforto para a audiência. O coro, com os rostos levemente caiados de pó branco, retoma a estética da máscara grega, mas também a das máscaras dos teatros orientais tradicionais ou a face branca do butô. Ocultar a face é a única forma de não perdê-la. Mostrando que tanto no Ocidente quanto no Oriente, o sentimento pertence a uma ordem mais obscura, a das emoções que nem sempre o rosto revela. Os sentidos de fusão entre a Antiguidade Grega e a Antiguidade Chinesa também aparecem na escolha dos instrumentos executados ao vivo, que criam sua trilha espectral: a flauta dupla grega – o duplo aulo – junto ao sheng – instrumento tubular de sopro. Os dois instrumentos, igualmente antigos, dão um sentido arqueológico comum a essas sensações, reforçam a experiência imemorial de uma sensibilidade partilhada. A cenografia também busca ressaltar essa dimensão temporal, estabelecendo camadas e níveis que nos permitem viajar por grandes tempos e espaços. Colocando em perspectiva a vida individual, finita, em relação à dimensão social, que a tudo conecta em escala expandida. Há um interessante recurso – que certamente poderia ser mais bem articulado do ponto de vista dramatúrgico – de projeção de vídeo ao vivo sobre o cenário, revelando a presença de elementos minúsculos no espaço da cena. Através da projeção, nos damos conta de que existem pequeníssimos bonecos dispostos na borda do palco, modificando nossa percepção de escala, produzindo reverberações que nos fazem oscilar entre o micro e o macro, entre o privado e o público, transitando do individual ao social, do material ao espiritual. O que contribui para o desenvolvimento sutil de nossa percepção, chamando a atenção para pequenas coisas presentes que talvez não percebamos muito bem, como os micro-sinais emergindo na face inexpressiva de quem dissimula os próprios sentimentos. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Flávio Tonnetti VozesClube da Solidão: ou sobre como ser solitário em grupo Festa, meu Mocinho, é o contrário da saudade – Guimarães Rosa No contexto do Festival de Artes de Macau, o espetáculo de dança Clube Solidão – Loneliness Club, em inglês – coreografado pelo israelense Nir de Volff, a partir das criações colaborativas propostas por um elenco de bailarinos de diferentes nacionalidades, apresenta uma imagem bastante cruel dos tempos contemporâneos. Com uma linguagem que se constrói nas fronteiras da instalação, da performance e do teatro, apresenta uma coreografia como imagens críticas de um momento em que nossa vida, no que diz respeito à constituição dos afetos, é atravessada pelo uso das tecnologias. Escancarando um mundo digital que tem produzido corpos adaptados a um único dispositivo mediador das relações, e que passamos a tratar como uma parte universal de nossas naturezas corporais: o telemóvel. Nesse sentido, a imagem de abertura é muito significativa. Os bailarinos se apresentam um a um em uma espécie de fila evolutiva, retomando aquele desenho clássico em que temos numa ponta o australopithecus e na outra o homosapiens, e que em muitos memes da internet já ganharam versões com uma pessoa usando computador ou outros dispositivos tecnológicos. Na coreografia de Loneliness Club, a fila vai ser acrescida de um ser de nova espécie que poderíamos chamar aqui de homoselfies, representado pela presença de um bailarino que faz caretas e bate autorretratos com a câmera de seu celular. Num momento posterior, os indivíduos da fila evolutiva se movimentam, com os bailarinos nas posições mais ancestrais passando a formar pares, de modo que se tocam e se abraçam – eles se cruzam. Mas o homosapiens e o homoselfies não chegam a se relacionar de verdade: sua vida é mediada pela imagem, fazem pose e posam para retratos, mas não se cruzam. O corpo é abstraído na dimensão do avatar digital e o entrelaçamento físico-existencial já não é mais possível. O vazio deixa de ser um campo aberto à experimentação com o outro, e se converte na inerte repetição de si mesmo. Ainda que habitemos o mesmo espaço, nos convertemos em ilhas – mas sem um mar em que nos naveguem. Nesse caso, o vazio deixa de ser um espaço relacional a partir do qual podemos criar pontes ou rotas de fuga, e se converte na solidão definhadora de um náufrago que sequer experimentou a deriva. Contra todo um ruído que há em volta, temos um tempo sem tempo, em que as singularidades se deformaram nesse um silêncio insular. Já não há contraste. O conjunto de corpos iguais, representados pelo figurino completamente branco, um collant que encapa o corpo dos bailarinos, aprofunda essa dimensão planificadora – produtos numa linha de produção. Nenhuma cicatriz, nenhuma marca, nenhuma memória, como os corpos imberbes, lisos e pueris produzidos pela Brazilian wax. A neutralidade das vestes nivela as pessoas – as padroniza – como que submetendo-as a uma espécie de “filtro”, planificando as aparências na vida mediada pelas telas. Não é à toa que a música a encerrar o espetáculo seja In this shirt do grupo inglês The Irrepressibles. A despeito dos enormes “vazios que se apresentam” na cenografia deste clube dos solitários, temos a presença do plástico como material de destaque, estamos no mundo dos inorgânicos e dos sintéticos. Na cena principal, temos a representação de uma festa, com esses jovens – já não tão jovens – sentados em suas cadeiras industriais baratas de plástico rosa, cada um olhando para o próprio telefone, absorvidos pela pequenas telas, enquanto no ambiente, do lado de fora das suas cabeças, toca uma música alta. De modo voluntário, vivemos o transe do alienamento. No meio do salão, um grande coração inflável funciona como uma espécie de signo do amor artificial, encapsulado e sem carne, vazio e oco, que sobrevive bombeado por ar à custa de aparelhos: emocionalmente, estamos em coma. O espetáculo nos remete muito à obra Alone Together da psicóloga norte-americana Sherry Turkle, uma intelectual que tem discutido já há bastante tempo a reconfiguração dos afetos e das relações num mundo permeado por tecnologias digitais. Em determinado momento do espetáculo, alguém perde o celular e entra em pânico. Vemos, nessa hora, a expressão da “no mobile phobia”, doença contemporânea já incluída nos manuais de psiquiatria. Também temos um momento em que pensamos sobre o estatuto da fotografia e do ato de fotografar, representado como uma busca por algo que nos falta, como gesto ansioso de caça. E nos deparamos com o clique da fotografia como um gesto de atirar – um snapshot, como propôs uma vez a teórica Susan Sontag. Se no passado fotografar significava caçar ao outro, àquele que nos é diferente, hoje, entretanto, dar um disparo no clic da selfie pode apenas significar dar um tiro contra si mesmo, ou seja, cometer um suicídio. Pelo excesso da “repetição de si”, a profusão da autoimagem opera a morte do “eu mesmo”. Estamos frente ao suicídio da interioridade face ao triunfo da exterioridade. Somos um coração vazio de plástico no meio da festa de nossas vidas. Mas há de haver esperança: é possível animar esses encontros. Há um movimento muito lírico em que um pequeno globo desce do teto e reflete, com suas centenas de espelhinhos, as luzes que atravessam o espaço, criando linhas conectoras entre as dimensões do vazio. No cerne da solidão, pequenos brilhos espocam: horizonte possível de uma nova festa. Enquanto habitarmos um corpo, poderemos sempre celebrar a vida. Reorganizando o espaço, trocando o estilo da música, vamos permitindo que outras coisas aconteçam. Contra a repetição, o acontecimento. Aos poucos os figurinos brancos vão deixando revelar pernas e braços, pedaços de intimidade, e novas identidades vão se abrindo e se mostrando. Entra em cena uma mistura queer, conduzindo a diversidade para novas derivas. Rompemos a bolha e nos lançamos para experimentações além do previsível da própria ilha. A presença do corpo é que nos identifica, mas nós também somos produtores desses nossos corpos múltiplos e prenhes de identidade. Mais do que experimentar identidades, queremos que nossos corpos se toquem e se cruzem em nome de toda e qualquer possibilidade. Rumo ao arco-íris, há um caminho onde podemos nos encontrar. Love Me Tender, imortalizada na voz de Elvis Presley, se faz ouvir em algum ponto dessa trama: nosso desejo de ser amado com o corpo ainda vai nos mover em direção ao outro. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Flávio Tonnetti VozesNa Substância do Tempo – dança, corpo e linguagem O programa de dança apresentado pela Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo no Festival de Artes de Macau, concebido para a comemoração dos 100 anos de nascimento da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, foi particularmente tocante. Primeiro, porque a escolha de uma companhia portuguesa que homenageia uma de suas maiores poetisas permite retomar as conexões históricas existentes entre Portugal e Macau em planos estéticos e simbólicos, mobilizando afetos e sensibilidades que nos tocam não no passado, mas na emergência do presente. Depois, porque o poema “Quando” de Sophia, que dá o mote à primeira peça do programa intitulada “Em Redor da Suspensão – e seguida por “Outono para Graça” e “Requiem” – fala justamente de transformação e transcendência, conectando imediatamente esse espetáculo europeu à versão chinesa da Sagração da Primavera de Yang Liping, cumprindo com a promessa de oferecer um Festival de Artes que nos permita, refletindo sobre vida no tempo expandido das longas jornadas, olhar para o futuro com afeto. No caso da coreografia portuguesa, também é sensível que o espetáculo tenha ocorrido na mesma data em que se comemora o dia da Língua Portuguesa, uma língua pluricêntrica cuja variedade de sotaques e modos de ser encontra em Macau uma vida própria. Que se homenageie, em Macau, essa língua com uma dança dedicada a Sophia, não me parece uma questão trivial por parte dos programadores dos eventos, tendo em vista, sobretudo, o cuidado com as escolhas e as articulações que percebemos emergir ao longo de toda a programação do Festival. O que temos, nesse caso, é o corpo do bailado como oferenda à língua feminina, que tudo gera e tudo conecta – que tudo transforma. A língua que cria realidades para além da realidade dada. Se a poesia, por ser ancorada na palavra, necessita de grande esforço tradutório, o mesmo não ocorre com a dança, mais universalmente acessível como linguagem. A caligrafia dos corpos que cruzam o ar em movimento é capaz de cruzar quaisquer fronteiras da sensibilidade. A dança, como linguagem, realiza aquilo que a nação portuguesa um dia pretendeu: lançar-se para além dos limites do próprio confinamento. Contra todos que um dia quiseram conquistar e dominar, impondo uma cultura sobre as outras, vemos no corpo da língua de Sophia uma mátria imensa acolhedora que, na coreografia de Vasco Wellenkamp, nos convida, em tons gentis, a girar em suas calhas de roda. E nossos corações sentimos vir se revelando: a leveza mais que a gravidade, a brisa mais que a umidade, o voo mais do que a ave. A dança da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, com sua gramática delicada de gestos, mostra uma Sophia como expressão máxima de uma cultura que sabe ser sedutora, que domina ao ser dominada, que vence ao ser vencida, que faz acender a luz na noite da madrugada. Dessa cultura ninguém deseja fugir, a ela queremos nos entregar na transcendência além do amor – e de toda morte. Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta Continuará o jardim, o céu e o mar, E como hoje igualmente hão-de bailar As quatro estações à minha porta. Outros em Abril passarão no pomar Em que eu tantas vezes passei, Haverá longos poentes sobre o mar, Outros amarão as coisas que eu amei. Será o mesmo brilho, a mesma festa, Será o mesmo jardim à minha porta, E os cabelos doirados da floresta, Como se eu não estivesse morta. Sophia de Mello Breyner Andresen Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Flávio Tonnetti VozesSagração da primavera Sofrer vai ser a minha última obra – Paulo Leminski A arte como florescimento da vida: desse modo abrimos o Festival de Artes de Macau em 2023, com o espetáculo de dança A Sagração da Primavera, coreografado e dirigido por Yang Liping. Uma peça comovente e forte para quem esteve recolhido ao longo de três longos anos de pandemia, reclusão e silêncio. Como se, ao fim dum rigoroso inverno, estivéssemos agora vivendo um novo momento: o de ver florescer as forças remanescentes, que podem eclodir num ciclo de renascimento. Nessa versão oriental, concebida por entrelaçamentos de perspectivas conceituais hinduístas, budistas, taoistas e xintoístas, somos apresentados a uma profunda reflexão sobre o significado da vida e da morte, reposicionando nossa impressão sobre os ciclos da natureza e o sentido das nossas existências. Podemos afirmar, sem qualquer receio, que estamos nos limites duma arte sacra. Na versão original do balé, coreografado em 1913 pelo russo Vaslav Nijinsky para o concerto de Igor Stravinsky, uma jovem é escolhida para um rito sacrificial de fecundação da terra, tendo como pano de fundo uma narrativa ficcional inspirada em ritos pagãos europeus e narrativas populares russas. A morte de um indivíduo – uma mulher, uma jovem – é o tributo sem o qual a vida coletiva não se realiza. Ainda que tenhamos elementos de uma espiritualidade, numa perspectiva ocidental pagã, trata-se de uma cosmologia completamente assentada na ideia de indivíduo – orientado por noções como raça, gênero e espécie – e na separação criada entre sujeito e mundo ou entre cultura e natureza. Na versão chinesa, o sacrifício é vivido por todos nós, presos ao ciclo de nascimentos e mortes, para o qual o sofrimento é condição inerente e verdade incontornável para qualquer ser que viva em um corpo, independente de qual seja. Todos nós somos sacrifício e oferenda, todos somos beneficiadores e beneficiados. E não há mal externo a ser combatido: as coisas são como são. E nesse eterno refazer-se do mundo, há o domínio da vida como manutenção da repetição: a vida é treino em campo aberto. Há por isso, nessa coreografia, uma vocação para o butô, ainda que em sua expressão coreográfica sejam mais facilmente reconhecíveis, do ponto de vista visual, elementos de danças indianas e indonésias – ou até mesmo da ginástica artística. Uma criança pequenina que assistia à peça em companhia de sua mãe portuguesa, que se entusiasmara com os saltos acrobáticos do solista, chegou mesmo a dizer que também sabia fazer aquilo na capoeira, gerando graça por sua percepção subjetiva, muito bem assentada em seu próprio repertório. Penso que temos de dar ouvidos aos miúdos. Parece muito pertinente pensar essa coreografia como uma luta, e muito significativo percebê-la como resistência. Só a noção do enfrentamento é que muda, porque o inimigo não está fora. Mas, afinal, a capoeira também não é uma luta que se dança em roda? Para o budismo que sustenta toda a estrutura dramatúrgica, o trabalho de vigília que temos de fazer é sobre nós mesmos, e a vida é nossa única obra, sobre a qual devemos nos debruçar sem apego. Isso reforça a presença de um monge tibetano ao longo de todo o espetáculo. Anti-dançarino da música mais silenciosa. Nesse terreiro, o monge também produz sua roda: uma mandala por entre, e por sobre, a qual irá dançar todo o corpo de baile. Essa mandala redonda – ovo, olho, universo – é feita por pequenas partes diminutas que formam uma delicada tessitura, como uma renda holandesa. Se as olhamos com atenção, vemos que cada uma delas expressa um caractere chinês próprio – 唵嘛呢叭咪吽 – que podem ser combinadas na revelação de mantras, em especial o mantra Om mani padme hum, enunciado como sentença de motivação para livrar do sofrimento a todos os seres sencientes. É, portanto, um mantra inscrito para fazer vibrar um bom carma, para gerar positivos méritos que não se acumulam apenas para si, mas se estendem a toda vida existente no cosmos. É na construção desse chão que se assentará todo o trabalho. É curioso pensar como, do ponto de vista plástico, essa mandala significa o universo atomizado, feito de pequenas partículas que se combinam de modo infinito. No taoísmo, essa fusão de forças, que produz um articulado conjunto complexo, pode ser pensada como uma energia em constante movimento, intuito por meio de uma imagem também circular, e com a qual já estamos bem familiarizados graças a enorme difusão do símbolo do Yin Yang: um círculo dividido em duas partes, uma branca e outra preta, cada uma delas com uma bolinha redonda na cor oposta, representando a presença do “diferente” no lugar do “mesmo”. Se animássemos essa imagem, dando a sua materialidade o movimento que ela conceitualmente expressa – em outras palavras, se a fizéssemos dançar! – dissolveríamos a sua estrutura polar em um infinito espectro de cinzas. Se acrescentamos a essa realidade um conjunto de cores, que se combinam e recombinam na experiência da luz e da sombra, então seríamos capazes de nos aproximar plasticamente da estrutura de mundo preconizada por esse misticismo budista-taoísta. Parece-nos que revelar artisticamente essa cosmogonia tem sido um dos esforços de Yang Liping, como seu trabalho cotidiano. Sísifo empurrando a pedra e dela se soltando a cada ciclo de escaladas… A qualquer momento em que decidamos assumir a tarefa repetitiva de ampliar a consciência dos seres sencientes para que se libertem do sofrimento gerado pela roda da vida, poderemos perceber que não há solidão. Nossa dança acontece num rito comunitário dos que dançam conosco em meio aos que se recusam à dança, numa rede de acolhimento que vai tecendo o suporte da vida para que os outros possam entrar. Na tarefa de produzir a auto-iluminação e compartilhá-la, contamos ainda com os mil braços de Avalokiteshvara, a divindade da suprema compaixão que, no espetáculo, se revela no corpo coletivo das bailarinas com seus belíssimos braços e mãos alinhados em fila, donde vemos emergir todos os milagres constitutivos da realidade viva, numa reconfiguração dessa que é uma das imagens mais potentes das danças espirituais do oriente. Outro elemento da cultura chinesa que aparece no espetáculo é a face do dragão, signo da transmutação, da renovação e da fertilidade, muito presente nas danças de passagem do ano novo. O artista possui a energia do dragão. O que significa dizer que o artista transmuta o mundo. Recolhendo e configurando a realidade em face da morte, cuja imagem da caveira, um dos ícones do budismo, está colocada como avesso do princípio ativador da vida, nas costas do figurino do solista masculino. E é potente que a morte esteja agarrada na figura daquele corpo que é em cena o mais forte, o mais viril, o mais atlético, mostrando-se como expressão de nossa transitoriedade, como convite ao desapego e como alerta em relação às seduções do ego. O céu fecunda a terra, mas é a terra quem faz crescer a vida. A mesma terra que dá, é a terra que toma. O terreno em que tudo se aglutina é o mesmo onde tudo se dissolve. Atividade e passividade se confundem como dinâmicas ambíguas. Como é possível caminhar nesse terreno em tudo movediço? Como é possível salvaguardar-se entre as forças polares geradoras e destruidoras da experiência vivida? Como o monge no chão, recolhemos e organizamos os elementos desse universo, criando nossa mandala efêmera, feita de repetição sem acúmulo, posto que será imediatamente desfeita tão logo nosso ciclo se complete. Estamos nesse círculo do samsara. Essa é a sabedoria de quem vive habitando a consciência absoluta da morte. Sabemos já que, na verdade, nada nunca se completa, não há princípio nem fim. Quando entramos no auditório, já lá está o monge: entre os trabalhos e horas há sempre um Outro anterior que permanece. A mandala está incompleta quando chegamos, e seguirá descompleta quando partirmos. Lágrimas escorrendo por sobre a barba branca, depois que os bailarinos se retiraram, fiquei após o final do espetáculo observando o monge silenciosamento. Um segurança veio retirar-me do auditório. Era hora de evacuar o lugar. Mas o monge lá permanecia. Outros provavelmente virão quando ele se for para estruturar a continuidade desse trabalho mínimo, invisível, estruturante de toda a malha da vida. Se penso nesse caminho como um ‘do’, imagino cozinheiras, jardineiros, professoras, agricultores… cada qual repetindo seus gestos num universo sem sentido e nele produzindo estrutura. Tudo é feito em movimento, ainda que não o percebamos, mesmo os agradecimentos são fluxo continuo: aproximação e dissolução, fazer-se e desfazer-se. Quando os bailarinos recebem flores e a querem entregar ao monge, ele completamente as ignora, nada o distraí do seu trabalho, nada pode elevá-lo para cima dos outros seres, não pode haver reconhecimento porque não há ego. É preciso compreender a radicalidade do conceito de igualdade, rebaixando-se – ou elevando-se – para o mesmo nível de todas as formas de vida, o que é o mesmo que entrar em sintonia com o cosmos. Fazer a mandala é participar da dança do universo. Desfazê-la também. Todo trabalho é em si mesmo absurdo, mas não devemos deixar de fazê-lo, porque viver é participar do chão da vida. Mas de que forma estamos pisando nela? E o que é que nela plantamos? Cada caracter depositado no chão dessa coreografia é uma semente que florescerá. Cada elemento desses mantras é signo de um auspício que alimentamos: generosidade, ética, paciência, diligência, renúncia, sabedoria. Ao dizer as palavras certas, ao executar os gestos apropriados, projetamos no mundo aquilo que queremos que nele floresça: fazemos nossos mantras e mudras e criamos fluxos de energia. Não há outra matéria a ser modificada senão a nós mesmos, num mundo que é em si mesmo mudança. A única forma de ir é entregando-se ao fluir de tudo aquilo que flui. Da pequenez do nosso ego individual nos prostramos à imensidão dos mistérios do universo. Apenas sobre o chão fértil dessa entrega é que poderemos bailar a dança infinita da vida. Nós é que somos a primavera. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Flávio Tonnetti VozesBibliotecas de Macau: A biblioteca do Mercado de São Lourenço Por Flávio Tonnetti Venho de um lugar com poucas bibliotecas, onde estudar é um luxo, ainda. No meu contexto de origem, as bibliotecas são espaços distantes do cotidiano da maioria das pessoas. Por isso me surpreendo com a quantidade de bibliotecas de Macau, e com o número de pessoas que as frequentam, cada uma com um interesse específico, não necessariamente o de ler livros. Em algumas delas chega mesmo a haver um horário de pico, quando encontrar um bom lugar para se sentar torna-se um desafio similar ao de achar vagas nos autossilos: é preciso girar um bocado até que se possa estacionar. De todas as bibliotecas de Macau, a do Mercado de São Lourenço é a mais próxima aqui de casa. Chego até aqui caminhando, subindo pelas escadarias das vielas da velha Macau até baixar ao centro médico que faz esquina com o Mercado. Acho inusitada essa encruzilhada: quando a medicina, a nutrição e a erudição se encontram. Habito essa fronteira em busca do que me nutra. Saindo por todas as portas do mercado, me incomoda o cheiro de peixe na altura da rua. A primeira vez que cá estive, atravessei os odores reparando com atenção nas cores de sangue, nas texturas das carnes, no brilho das escamas. E no barulho que os mercados de peixes invariavelmente tem, e que os distinguem de todos os outros mercados. Nada seria mais antagônico ao espaço silencioso e inodoro de uma biblioteca moderna. Cruzando o salão, subi ao segundo andar em busca de frutas e verduras, onde os perfumes nos atravessam de um jeito manso e gentil, podendo encontrar, no andar seguinte, uma praça de alimentação com enorme diversidade de cozinheiros vendendo pratos prontos, onde os cheiros do mercado se misturam totalmente, elaborando a síntese completa dos odores e sabores. Comparando com os mercados das minhas terras natais — ou com outros mercados asiáticos e latinos-americanos — me chamou a atenção o silêncio e o decoro dos senhores e senhoras que trabalhavam nos andares de cima do mercado. Um clima em tudo diferente ao das animadas e ruidosas feiras brasileiras. Nessa altura, já tínhamos, no São Lourenço, um mercado com sensação de biblioteca. Nessa primeira vez, subi por um dos elevadores e me atrapalhei um pouco até que eu pudesse encontrar as escadas que iriam por fim dar na altura da biblioteca. O que fez com que eu ficasse rodando pelo mercado até que achasse o caminho certo, um giro propício para que fizesse algumas compras. Já com a feira feita, com bananas, pêssegos, um pedaço de gengibre, uma cenoura graúda e algumas couves enfiadas na bolsa junto com o computador e meus cadernos, subi finalmente até o andar dos livros. Gosto de sentar próximo às janelas, me alimentar dessa luz que vem do exterior. Não observo somente os livros: gosto de perceber as pessoas. Nessa biblioteca, os pertences dos frequentadores são diferentes de todas as outras. Compondo a paisagem, há sempre sacolas de frutas aos pés das mesas. Pessoas que fazem a feira antes de subirem para ler o jornal. Homens que aproveitam a solidão da biblioteca para usarem a internet com privacidade antes de voltar com as compras para casa. Senhoras trabalhadoras que ali vão descansar depois do almoço. Mocinhas colegiais e suas mochilas com maçãs, nabos e pés de alface. Nessa biblioteca, o saber tem um sabor. E há um perfume, quase imperceptível, herdado dos campos, que emana sutilmente dos gêneros hortifrúti. Esses cheiros, bem diferentes dos das carnes do rés do chão, refrescam a nossa percepção. Aí passo as horas do meu dia. O tempo é relativo quando nos recolhemos no esquecimento da leitura. A noite cai e logo estou, à meia-noite, entre os últimos, a fechar a biblioteca. Entre uma couve-flor e uma berinjela, edito textos sobre cinema chinês e escrevo, minhas impressões sobre a cidade, ao editor de um jornal macaense. • Artigo escrito em português do Brasil • Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea
Flávio Tonnetti Manchete VozesBrasil e Macau: é possível pensar parcerias em termos culturais e de soft power? O ADIAMENTO da visita do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, à China, por motivos de saúde, abre uma oportunidade para que Macau possa tentar atrair Lula para uma visita a seu território, inserindo Macau em seu cronograma de atividades diplomáticas. Esta seria uma excelente oportunidade de chamar a atenção do mandatário brasileiro para a importância do fortalecimento de Macau como lugar relevante para o estabelecimento de relações internacionais qualificadas no interior da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) na Ásia. Talvez desse modo se consiga atrair a diplomacia brasileira para que dedique maior atenção ao Fórum de Macau como lugar estratégico para o desenvolvimento de soft power, visando, sobretudo, o estabelecimento de uma mais bem azeitada política de cooperação cultural, através da criação de pontes mais efetivas no campo dos negócios de turismo e cultura, aproveitando-se da especificidade lusófona que Macau possui. Historicamente, a atenção que se tem dado ao Fórum de Macau por parte do Brasil soa tímida. Isso talvez se deva ao fato de que o Brasil, que tem a China como seu principal parceiro comercial, possua acesso direto a Pequim, diferentemente de outros membros da CPLP, que efetivamente usam Macau como plataforma para o estabelecimento de redes e parcerias com o continente. Ocorre que esse tipo de relação comercial, que é quase sempre pensada como uma relação de trocas financeiras para a transferência de bens materiais, desconsidera o enorme mercado representado pelos bens culturais e simbólicos. Uma prova disso é que a comitiva de empresários brasileiros que acompanha o presidente Lula à China está composta basicamente por gente do agronegócio, ou seja, gente que sabe muito de agricultura e pouco de cultura. Se obrigado a apostar, eu diria que são pessoas mais interessadas em assinar contratos de compra e venda do que em estabelecer vínculos sociais mais duradouros e relevantes. Gente de muito negócio e pouco ócio. Parece-nos que o presidente Lula ganharia muito se pudesse ter em sua comitiva a Ministra da Cultura, Margareth Menezes, um dos nomes centrais da economia criativa e de turismo dessa que é uma dos maiores festas do planeta: o Carnaval da Bahia, um evento de massa que atrai ao Brasil turistas do mundo inteiro, que chegam à cidade de Salvador unicamente motivados pela cultura que ali se vive. Isso indica que tanto o Brasil quanto a China têm muito a aprender em relação ao lugar ocupado pelas artes e pela cultura na mediação entre os países. A fim de aprofundarem o entendimento de que cultura é um negócio poderoso, que interfere não apenas no futuro econômico, mas também político de uma nação – inclusive impedindo ou desarticulando golpes e guerras. Ambos os países poderiam observar com atenção o trabalho de relações internacionais e política cultural desempenhado atualmente pela Coreia do Sul, que transformou o imaginário cultural de seu país num gigantesco negócio de escala global, exportando desde bandas pop até cursos de idiomas, e atraindo para seu país uma legião de turistas unicamente interessados em seus bens culturais e estilo de vida. Para Macau, o fortalecimento de uma indústria cultural internacionalizada em novas direções, com o apoio de um gigante como o Brasil, detentor de uma indústria com artistas de renome internacional e muito celebrados não apenas no interior da lusofonia, poderia ajudar a projetar Macau como destino turístico entre pessoas de outros países fora do circuito Ásia-China. Sobretudo tendo em vista os países da América Latina, com os quais o Brasil possui interface, pegando carona e se expandindo em direção ao imaginário das culturas hispano-falantes, atraindo não apenas os turistas que falam português como porto de entrada para a China, mas também os que falam espanhol como língua materna e que, seguramente, se sentiriam mais bem acolhidos em uma primeira cidade que lhes oferecesse uma realidade linguística mais amigável às suas culturas de origem. Além disso, um trânsito maior com o Brasil poderia ser estratégico para Macau na perspectiva de contribuir para a continuidade da língua portuguesa como parte das línguas efetivamente faladas no cotidiano desta RAE. Sem a presença e circulação de bens culturais em língua portuguesa, vai ficando cada vez mais difícil para as novas gerações acreditarem na importância de manter viva a língua portuguesa como língua oficial macaense. Por sua vez, Macau poderia ajudar o Brasil a projetar seus bens culturais pela Ásia, alavancando outras manifestações além da telenovela, do samba e da capoeira, que representam apenas uma pequena parte do que o Brasil possui como bens culturais de exportação. O que poderia se dar, inclusive, utilizando a rede de cassinos para a concepção de uma rota de circulação de artistas em programações anuais consistentes e permanentes, com regularidade e agendas fixas, permitindo a estruturação de uma indústria cultural perene no território expandido de Cantão. Isso tudo, tendo em vista a possibilidade de pensar estratégias para negócios no campo do turismo cultural com grandes nomes da indústria cultural brasileira e latino-americana, apoiada na agenda ibero-americana e lusófona. No que toca aos interesses vindos da política continental, numa realidade dominada por algoritmos e fakenews, a China vem perdendo a corrida cultural contra EUA e Europa, sítios nos quais a sinofobia vem crescendo de forma espantosa. Isso tem significado um entrave simbólico para que a cultura chinesa possa ser melhor absorvida e compreendida no Ocidente. Macau, via língua portuguesa, pode cumprir uma missão de tradução intercultural que ajudaria em muito a China a virar esse jogo, utilizando as parcerias da CPLP, sobretudo as de Brasil e Portugal, para gerar uma imagem cada vez mais positiva sobre si nos continentes americano e europeu. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea. Escreve em Português do Brasil.