Clube da Solidão: ou sobre como ser solitário em grupo

Festa, meu Mocinho, é o contrário da saudade – Guimarães Rosa

No contexto do Festival de Artes de Macau, o espetáculo de dança Clube Solidão – Loneliness Club, em inglês – coreografado pelo israelense Nir de Volff, a partir das criações colaborativas propostas por um elenco de bailarinos de diferentes nacionalidades, apresenta uma imagem bastante cruel dos tempos contemporâneos. Com uma linguagem que se constrói nas fronteiras da instalação, da performance e do teatro, apresenta uma coreografia como imagens críticas de um momento em que nossa vida, no que diz respeito à constituição dos afetos, é atravessada pelo uso das tecnologias. Escancarando um mundo digital que tem produzido corpos adaptados a um único dispositivo mediador das relações, e que passamos a tratar como uma parte universal de nossas naturezas corporais: o telemóvel.

Nesse sentido, a imagem de abertura é muito significativa. Os bailarinos se apresentam um a um em uma espécie de fila evolutiva, retomando aquele desenho clássico em que temos numa ponta o australopithecus e na outra o homosapiens, e que em muitos memes da internet já ganharam versões com uma pessoa usando computador ou outros dispositivos tecnológicos. Na coreografia de Loneliness Club, a fila vai ser acrescida de um ser de nova espécie que poderíamos chamar aqui de homoselfies, representado pela presença de um bailarino que faz caretas e bate autorretratos com a câmera de seu celular. Num momento posterior, os indivíduos da fila evolutiva se movimentam, com os bailarinos nas posições mais ancestrais passando a formar pares, de modo que se tocam e se abraçam – eles se cruzam. Mas o homosapiens e o homoselfies não chegam a se relacionar de verdade: sua vida é mediada pela imagem, fazem pose e posam para retratos, mas não se cruzam. O corpo é abstraído na dimensão do avatar digital e o entrelaçamento físico-existencial já não é mais possível.

O vazio deixa de ser um campo aberto à experimentação com o outro, e se converte na inerte repetição de si mesmo. Ainda que habitemos o mesmo espaço, nos convertemos em ilhas – mas sem um mar em que nos naveguem.

Nesse caso, o vazio deixa de ser um espaço relacional a partir do qual podemos criar pontes ou rotas de fuga, e se converte na solidão definhadora de um náufrago que sequer experimentou a deriva. Contra todo um ruído que há em volta, temos um tempo sem tempo, em que as singularidades se deformaram nesse um silêncio insular.

Já não há contraste. O conjunto de corpos iguais, representados pelo figurino completamente branco, um collant que encapa o corpo dos bailarinos, aprofunda essa dimensão planificadora – produtos numa linha de produção. Nenhuma cicatriz, nenhuma marca, nenhuma memória, como os corpos imberbes, lisos e pueris produzidos pela Brazilian wax. A neutralidade das vestes nivela as pessoas – as padroniza – como que submetendo-as a uma espécie de “filtro”, planificando as aparências na vida mediada pelas telas. Não é à toa que a música a encerrar o espetáculo seja In this shirt do grupo inglês The Irrepressibles.

A despeito dos enormes “vazios que se apresentam” na cenografia deste clube dos solitários, temos a presença do plástico como material de destaque, estamos no mundo dos inorgânicos e dos sintéticos. Na cena principal, temos a representação de uma festa, com esses jovens – já não tão jovens – sentados em suas cadeiras industriais baratas de plástico rosa, cada um olhando para o próprio telefone, absorvidos pela pequenas telas, enquanto no ambiente, do lado de fora das suas cabeças, toca uma música alta. De modo voluntário, vivemos o transe do alienamento. No meio do salão, um grande coração inflável funciona como uma espécie de signo do amor artificial, encapsulado e sem carne, vazio e oco, que sobrevive bombeado por ar à custa de aparelhos: emocionalmente, estamos em coma.

O espetáculo nos remete muito à obra Alone Together da psicóloga norte-americana Sherry Turkle, uma intelectual que tem discutido já há bastante tempo a reconfiguração dos afetos e das relações num mundo permeado por tecnologias digitais. Em determinado momento do espetáculo, alguém perde o celular e entra em pânico. Vemos, nessa hora, a expressão da “no mobile phobia”, doença contemporânea já incluída nos manuais de psiquiatria.

Também temos um momento em que pensamos sobre o estatuto da fotografia e do ato de fotografar, representado como uma busca por algo que nos falta, como gesto ansioso de caça. E nos deparamos com o clique da fotografia como um gesto de atirar – um snapshot, como propôs uma vez a teórica Susan Sontag. Se no passado fotografar significava caçar ao outro, àquele que nos é diferente, hoje, entretanto, dar um disparo no clic da selfie pode apenas significar dar um tiro contra si mesmo, ou seja, cometer um suicídio. Pelo excesso da “repetição de si”, a profusão da autoimagem opera a morte do “eu mesmo”. Estamos frente ao suicídio da interioridade face ao triunfo da exterioridade. Somos um coração vazio de plástico no meio da festa de nossas vidas.

Mas há de haver esperança: é possível animar esses encontros. Há um movimento muito lírico em que um pequeno globo desce do teto e reflete, com suas centenas de espelhinhos, as luzes que atravessam o espaço, criando linhas conectoras entre as dimensões do vazio. No cerne da solidão, pequenos brilhos espocam: horizonte possível de uma nova festa. Enquanto habitarmos um corpo, poderemos sempre celebrar a vida.

Reorganizando o espaço, trocando o estilo da música, vamos permitindo que outras coisas aconteçam. Contra a repetição, o acontecimento. Aos poucos os figurinos brancos vão deixando revelar pernas e braços, pedaços de intimidade, e novas identidades vão se abrindo e se mostrando. Entra em cena uma mistura queer, conduzindo a diversidade para novas derivas. Rompemos a bolha e nos lançamos para experimentações além do previsível da própria ilha. A presença do corpo é que nos identifica, mas nós também somos produtores desses nossos corpos múltiplos e prenhes de identidade. Mais do que experimentar identidades, queremos que nossos corpos se toquem e se cruzem em nome de toda e qualquer possibilidade. Rumo ao arco-íris, há um caminho onde podemos nos encontrar. Love Me Tender, imortalizada na voz de Elvis Presley, se faz ouvir em algum ponto dessa trama: nosso desejo de ser amado com o corpo ainda vai nos mover em direção ao outro.

Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.

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