Xiao Ke: a história do grande país no corpo da pequena bailarina

O espetáculo de Xiao Ke, cujo título da obra é seu próprio nome, não pode ser definido de outra forma senão como uma performance autobiográfica. Sozinha, coloca-se de pé no centro do palco, próxima ao público que aguarda uma dança.

Ela efetivamente dançará, mas somente após ter dado início a narração de sua história. Sua dança vai, então, se colocando como intervalos que ilustram os acontecimentos descritos no curso de sua palestra testemunhal.

Numa espécie de lecture performance, ela nos dá uma aula sobre a dança chinesa contemporânea, que se manifesta a partir da experiência pessoal acumulada na memória de seu corpo. É uma ode ao corpo da bailarina como testemunho da história.

Sua silhueta escreve no ar, por meio de gestos, aquilo que ela verbaliza por palavras. Trata-se de um espetáculo com dramaturgia textual e direção cênica, em que a dança e o teatro se combinam, gerando uma experiência diferente e hiper pessoal em que as fronteiras da imaginação e da realidade se desarmam: vemos uma performer interpretando a si mesma. Portanto, não vemos uma atuação, mas uma ação de quem coloca o próprio corpo – a própria vida – em cena, para que a sagração do viver seja comungada pelo público. Por isso, é que não podemos dizer que assistimos a uma representação e, sim, a uma apresentação. Tampouco se trata de ficção, mas de documentação.

Esse modo de compor, do monólogo autobiográfico, reforça a noção de retrato proposta pelo coreógrafo francês Jérôme Bel, idealizador do projeto em que Xiao Ke se vê inserida. Usando a biografia como matéria dramatúrgica, Jérôme Bel desafia coreógrafos a dançarem suas próprias carreiras – a exemplo do que já havia feito com a francesa Véronique Doisneau, do Ballet da Ópera de Paris, com o artista tailandês Pichet Klunchun, especializado em dança tradicional siamesa, e com o também francês Cédric Andrieux, da Companhia de Dança Merce Cunningham.

Se apresentando de forma singela e radicalmente crua, Xiao Ke nos conta como a dança lhe tocou ainda na tenra infância, quando vivia com sua família numa vila militar, graças à carreira do pai. Nessa realidade em que os tempos de acordar, almoçar e descansar eram regidos coletivamente, na disciplina dos corpos, havia a presença das músicas, hinos e sinais que marcavam os ritos da caserna. Ela recorda a marcante memória de ter se apresentado aos 4 anos num enorme palco do batalhão, dançando sozinha num evento para soldados que mal podiam enxergá-la de tão pequenina. Enquanto vai nos contando essa memória, vamos ouvindo as músicas que compõem a paisagem sonora desse tempo histórico em que uma criança se desenvolve.

É na infância que ela passa a integrar um grupo de danças folclóricas e tradicionais de Yunnan, orientando para as danças étnicas chinesas. Nos contando sobre as viagens que fazia com esse grupo, recorda de uma apresentação realizada em Beijing no ano de 1989, estando próxima à praça Tiananmen. Sua biografia pessoal, portanto, toca a história da China – ou é tocada por ela?

Temos aqui a clara perspectiva do materialismo histórico estruturado como ciência: a sociedade é produzida por fatos objetivos que afetam a vida de quem participa dela. Conhecer a história é, portanto, fator determinante para que possamos conhecer a nossa própria vida, e para projetarmos um futuro melhor, tanto individual quanto coletivamente. Não há ser sem história. Do mesmo modo que não há indivíduo fora do tempo e do espaço que lhe deram origem. A existência só pode ser pensada socialmente.

Numa sociedade de múltiplas faces, Xiao Ke nos fala da importância do rosto como elemento cênico nas danças chinesas, nos dando exemplos de como diferentes expressões faciais podem sugerir diferentes emoções. Na dança, a face é um recurso. A face é nossa máscara mais imediata.

Xiao Ke também conta que aprendeu balé chinês, descrito por ela como uma mistura de ballet russo, ópera chinesa e artes marciais, nos dando novamente um excepcional exemplo do conjunto de suas técnicas, acumuladas em um corpo extremamente disciplinado. Olhando para o corpo diminuto de Xiao Ke, que vai, a partir dessas memórias, se acionando como uma versátil e plural máquina de guerra, somos facilmente conduzidos à pergunta dos deleuzianos: o que pode um corpo?

No período universitário Xiao tenta dar um tempo em relação à dança como ofício, dizendo ter se cansado da dança tradicional, partilhando o desejo de querer experimentar a possibilidade de mover-se livremente, algo que para ela se dá nas festas juvenis pelo encontro com a disco music e a break dance. Novos horizontes de uma cultura que passa a entrar em contato com outras. Ouvimos uma música pop chinesa – exemplo de disco music chinesa dessa época – que nesse momento é performada com humor por Xiao Ke.

No palco, apenas uma prancheta com anotações e uma garrafa de água – nos mesmos moldes mínimos de encenação proposto por Bel a Véronique Doisneau muitos anos antes. Mas não sentimos falta de mais nada. A vida, como potência que se realiza, é suficiente para ocupar todos os espaços.

Ela volta então à dança para experimentar novas formas. Que ela nos demonstra – agora sem som. A liberdade é silenciosa.

Descobre a Dança Moderna ocidental e pensa, aos 20 anos, em abrir sua própria escola. Seu estúdio fica popular, mas perde um apoio que tinha da universidade em razão de uma performance polêmica. Curiosamente, esse cancelamento oficial a torna cool e a insere num outro circuito artístico. Move-se para o underground. Busca trabalhar como jornalista, mas tem desilusões com essa carreira, acabando por arrumar um bom emprego na multinacional Johnson & Johnson que lhe paga o suficiente para poder, paralelamente, financiar sua carreira artística.

Mas o dinheiro nunca lhe parece o suficiente e ela parte para uma atuação em uma dança mais comercial, aprendendo gêneros de sapateado e danças ocidentais que aumentem sua empregabilidade nesse mercado de produtos e eventos publicitários. Prospera, então, como bailarina e coreógrafa comercial, alcançando os meios para sobreviver apenas da dança: finalmente ganha a vida dançando.

Com recursos que lhe permitem investir também em seus projetos de caráter mais artístico, e não comerciais, fala de sua parceria com o vídeo artista Zi Han e da experiência de criar um grupo experimental de teatro físico com artistas de diferentes vertentes e linguagens. Também divide connosco algo sobre seus relacionamentos amorosos, seus gatos e a intimidade de sua vida doméstica. Há frustrações e há alegrias. E tudo é tão tocante, porque, afinal, somos muito parecidos em nossas coreografias: a vida é uma repetição do nosso tempo.

O que parece ser significativamente bonito é que possamos habitar o mesmo tempo presente dessa artista, cuja vida orientou-se para a expressão de um sentimento que sempre a ultrapassa. Por mais que desejemos driblar a vida, somos e sempre seremos a expressão de nosso tempo e de nossa cultura. Vivemos a vida como testemunho da vida maior: passamos pela vida e a vida passa por nós.
Embora também seja certo que as grandes narrativas não existem sem as pequenas. Não há a grande história sem as micro-histórias. Não há nem a França, nem a China. O que há são pessoas francesas e chinesas, construindo a enorme teia dessas culturas. E por isso mesmo é que cada vida nos importa. Espelho multifacetado de nós mesmos, a composição de Xiao Ke, cujo retrato não é apenas de si mesma, mas de toda a Terra do Meio, nos importa muitíssimo.

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