Fernando Sobral h | Artes, Letras e IdeiasO Jogo das Escondidas – Capítulos 81 ao 90 81 Um ligeiro ruído despertou-a. Olhou para a porta. Percebeu quem se aproximava, antes dele entrar. Benedito Augusto penetrou na sala. Aparentava estar bem disposto: – Está muito bem instalada, menina Palha. – Vou tentar. Tenho de viver. – Eu sei. E por isso decidi vir visitá-la. Sofia não disse que pressentira que ele surgiria, para vasculhar entre os despojos e as cinzas algo que fosse valioso. Ou seja, ela. – Conheço-o, padre Benedito. Sei dos seus jogos. Duplos, triplos. Jogando às escondidas com Deus e com o Diabo, na mesma mesa. Não sei como ainda não perdeu. – Há sempre um quando, não tenho dúvidas sobre isso. Mas, até lá… Ela deu uma gargalhada. Depois disse: – Somos ambos sobreviventes, não é verdade? – É verdade. E estes tendem a unir forças. – Sim, este é um tempo de tristeza. Mas também de esperança. Só que podemos partilhar muita coisa, menos… – Menos o quê? – O essencial. – Não quero o seu corpo, menina Sofia. Posso tratá-la agora assim, não? – Como preferir. Eu também não tenho o meu corpo à venda. Mas, aqui, ninguém pertence a ninguém. É bom que perceba isso, padre. – Não se iluda. Não é isso que quero partilhar. – O que quer é um quinhão dos negócios futuros. – Sim. É mais ou menos isso. Mas tenho uma proposta que a vai seduzir. E eu sei que gosta da sedução… Ela franziu as sobrancelhas: – Qual? – Uma percentagem do negócio da heroína. – Não percebo. Esse é o negócio de Max Wolf. – Ainda é. Mas não será. Neste momento o senhor Max Wolf deve estar a nadar para se salvar. Mas isso será difícil no meio do mar. – Como? – Foi o que me disseram. Os amigos de Fu Xian pensam que Wolf o traíu. E querem vingança. Sofia olhou para Benedito. Subestimara o homem que, de vez em quando, vendia informações ao seu marido. Incluindo algumas sobre os movimentos do tenente Félix Amoroso e da chinesa Ding Ling. – Resolvido esse assunto, sei quem é o representante dos senhores que dominam o negócio da heroína em Xangai. As sombras do horizonte escureciam cada vez mais. E Sofia Palha sentia-se, naquele momento, incapaz de vislumbrar o futuro. Mas sabia que não lhe agradava. (continua)
Fernando Sobral h | Artes, Letras e IdeiasO Jogo das Escondidas – Capítulos 71 ao 80 71 Esperou por Amoroso. Sabia que ele viria. Iria inquiri-la e tentar colocá-la contra a parede. Conhecia a táctica psicológica do torturador: dividir o mundo entre “nós” e “eles”. A crueldade desencadeada na vítima é sempre promovida por o torturador necessitar de acreditar que o seu mundo é justo. As vítimas merecem o que lhes está a acontecer, segundo eles. Era uma boa defesa. Mas o tenente Amoroso não era um santo, nem um justo. Olhou para o relógio de bolso de ouro de Joaquim Palha, que trouxera. Precisamos de relógios para nos lembrar que somos apenas mortais. Era verdade. Nós passamos pelo tempo. Os relógios ficam. Sentiu que o tenente estava atrasado. Finalmente ouviu um ruído. Eram passos. A criada estava a indicar o caminho a Amoroso. Escutou a porta a abrir-se, sem aviso. Através do espelho, viu um corpo a aproximar-se dela. Ele parou e ficou a olhar para as suas costas e para a sua face no espelho. – Boa tarde, senhora Palha. Seguiu-se um breve silêncio. – Sabe o que me traz aqui. – Boa tarde, tenente. Presumo que sim. Ela não se virou e ele puxou uma cadeira para que ela pudesse ver a sua cara através do espelho. – Escuso de lhe recordar que o seu marido morreu. Aparentemente, suicidou-se. Sabemos que Max Wolf fugiu. E também temos a certeza que ambos eram sócios com um chinês, Fu Xian, para colocar heroína à venda em Macau e Hong Kong. Isto para além do seu marido conspirar para que, se Macau fosse vendida à Alemanha, lucrar com isso, algo que é pouco patriótico. Resta-nos resolver duas coisas. Quem matou o seu amante, João Carlos Silva? E até que ponto estava a senhora ao corrente de tudo isto? Sofia Palha levou um lenço aos olhos, como se uma lágrima traiçoeira ainda estivesse por ali. – Meu caro tenente, aqui em Macau temos a nossa terra e o nosso mar. E a nossa energia. Acreditei demasiado nesta cidade. E nas suas pessoas. E, claro, no meu marido. Seguiu-o como se faz a uma luz que ilumina o nosso caminho. Nunca me questionei sobre a bondade das suas decisões. 72 – Isso não a impediu de cobiçar outros homens. – Esta cidade é pequena. Há sempre rumores de infidelidades. Uns verdadeiros, outros falsos. O meu marido sempre teve conhecimento deles. E, olhando para a sua cara, o tenente também os ouviu. Só um é verdadeiro. E já me confrontou com isso. Sabe que tive uma relação com João Carlos Silva. Vivia um momento de fraqueza. De insegurança. Precisava de ter um ombro amigo onde pudesse descansar. Encontrei-o. Não o amava. Mas escutava-me e confortava-me. Nunca sentiu essa falta, tenente? Foi esse pecado que o meu marido não me perdoou. – Foi Joaquim que matou João Carlos Silva? – Eles tinham negócios, tenente. O meu marido sabia o que se passava no Governo através dele. O João Carlos era viciado no jogo. Devia muito. Mais do que ganhava. E queria ganhar mais. Houve um momento em que o Joaquim perdeu a cabeça. Eu ia para a cama com o João Carlos e isso fragilizava-o. E depois não estava disposto a dar mais dinheiro a ele. A chantagem e o ciúme levaram à sua morte. – E como aconteceu isso? – Suponho que o Joaquim contratou um chinês, um pirata qualquer, que o matou. Eu quase enlouqueci, mas sou resistente. Percebi, depois, que eu não era a culpada. Era o dinheiro. Joaquim estava disposto a fechar os olhos à minha relação com o João Carlos desde que terminasse. E tinha terminado quase duas semanas antes da sua morte. Sofia Palha levantou-se, voltou-se e olhou fixamente para Amoroso. A sua face estava contraída, como se estivesse prestes a ser vencida pelo choro. Este levantou-se. Ela continuou, numa voz sumida: – Eu não sabia quais eram as suas lealdades e os seus negócios. Mas sei que, mesmo jurando, não acredita em mim. Aproximou-se do tenente até ficar a pouca distância dele. A sua voz era doce: – Não acredita em mim, tenente? Amoroso não respondeu. Sondou a face dela. Parecia sincera, mas algo não batia certo. Sofia Palha não poderia ser alheia a todas as conspirações cruzadas que tinham a impressão digital do falecido marido. Ela não poderia ser cega, surda e muda. A forma como ela o abordara no hotel Boa Vista provara isso. Sabia manipular os homens e as suas emoções e fragilidades. Mas não existiam provas contra ela. 73 – Veremos o que nos dirão as investigações em curso, senhora Palha. Tem mais algo para dizer? – Tenho, senhor tenente. Preciso de fazer o meu luto. E saber o que irei fazer no futuro. – O senhor Palha deve ter deixado um bom legado. Não terá problemas financeiros, por certo. Se estiver inocente de tudo isto… Ela fez um ar de espanto, sentindo que duvidavam da sua honestidade. Uma lágrima escorreu pela sua face. Amoroso tentou manter-se frio. Ela parecia aguardar um abraço acolhedor. Mas ele não o fez. Não o podia fazer. Pensou apenas: este é o momento em que ambos fingimos que Sofia Palha não está a mentir. 19. Parecer inofensivo é uma vantagem, disse Benedito Augusto. Os seus olhos estavam cansados, mas a voz estava tão viva como quando desaparecera, há quase duas semanas. – Parecer inofensivo é rentável, porque as pessoas inclinam-se perante quem não parece ter armas para as ferir. Ocultar-se é uma delicadeza. Quem é inofensivo tem o dom de conseguir a escassez de reacções. Esconde-se perante o olhar de todos. Falava como se nada se tivesse passado. Ou se quisesse esquivar-se a isso. A ausência era uma boa desculpa. O tenente Félix Amoroso vigiava-o com o seu olhar inquiridor. O padre regressara, segundo dizia, de Xangai. Acabara por não ir até Singapura, como tinha combinado com Fu Xian para cumprir um acordo secreto entre ambos. Mas, na cidade chinesa, mudara de ideias e regressara a Macau. Estavam numa taberna do Porto Interior, frequentada por marinheiros, piratas e batoteiros, como era habitual naqueles locais soturnos. O aspecto de Benedito confundia-se com o de muitos deles, com a sua cabaia negra muito suja, o cabelo desgrenhado e a barba por fazer. Dava-lhe um ar mais velho e duro. Amoroso não fazia parte daquele ambiente e era olhado com desconfiança. Não se sentia muito seguro ali. A sua mão direita estava junto da pistola, apenas por precaução. Porque Benedito era ali conhecido e respeitado. Talvez temido. Mesmo num mundo de homens que perderam a fé, um padre merece sempre algum respeito. Porque nos momentos mais terríveis, tem de se acreditar em algo. Nos deuses ou no Céu. Numa salvação qualquer. 74 – Porque é que decidiste regressar, Benedito? – Senti que algo se passara. Às vezes antecipo os acontecimentos. – Ou tens informações que te permitem tirar essas ilacções… Benedito fez um esgar. Agarrou no copo de cerveja e levou-o à boca. Desviou a questão. – Estava cheio de sede. A cerveja aqui é melhor. Amoroso não se conteve: – Qual é o teu jogo, Benedito? Este mostrou-se espantado: – O meu jogo? Conhece-me, meu caro tenente. Procuro sobreviver. E tenho sido leal consigo. Às vezes fico quieto para não espantar os demais. – Espanta-me que saibas tanto sobre a vida de Sofia Palha e do João Carlos Silva. E tão pouco de outras coisas. – Que outras coisas? Sei agora que a tua amiga Ding Ling montou uma cilada ao alemão e a Fu Xian. Sobre este fez-me um favor. Desapareceu um problema. Deixei de ter uma dívida para pagar. – Sim, ele fazia chantagem sobre ti. Sobre as tuas aventuras amorosas. E talvez sobre outras coisas que eu não sei. Mas saberei em breve. Mas como soube Ding Ling da táctica de Max Wolf para assaltar o vapor? Benedito encolheu os ombros e bebeu mais um pouco de cerveja. O tenente tamboriou os dedos da mão esquerda na pequena mesa de madeira suja que estava entre ambos. – Saíste mesmo de Macau? – Duvida disso? – Duvido. Acho que foste tu que contaste os planos de Fu Xian e de Wolf a Ding Ling. Esta resolvia-te um problema. Benedito deu uma gargalhada. Amoroso não esboçou sequer um sorriso. – Meu caro tenente, estive em Xangai. E nem sequer conheço Ding Ling. – Isso não sei. E também não precisas de conhecer Ding Ling para lhe fazeres chegar qualquer informação. Benedito olhou fixamente para Amoroso. A sua voz endureceu: – Meu caro tenente, ninguém é inocente aqui. Todos fugimos de algo. Sobretudo do nosso passado. É o que fazemos em Macau, não é verdade? Eu fugi do meu passado, mais escuro do que o que conto, é verdade. E o tenente, faz o quê? Fugiu do seu passado na guerra, no cemitério de França. E foge do seu passado recente, aqui mesmo, não é? Quer esquecer isso? 75 Amoroso sentiu um tremor. Mas Benedito continuou, ameaçador: – Abriu a caixa dos fantasmas, tenente. Agora é tarde para a tapar. Recorda-se do que aconteceu o ano passado? O que se ia passando em Macau, com a agitação levava a cabo pelos agentes de um senhor da guerra de Cantão contra os portugueses? Onde se situaram então os apoiantes de Sun Yat-sen? Estavam no meio e arriscavam-se a ser trespassados. Que sucedeu então? Amoroso engoliu em seco. Naquele momento desejou levantar-se e sair dai. Ou então, puxar a pistola e… – Quer matar-me, tenente? Esteja à vontade. Mas até lá tem de ouvir e engolir o resto. Fez uma pausa, antes de continuar: – Eu sei o que se passou. No meio da confusão, em Junho do ano passado, aconteceu algo que quase passou despercebido. Entre mortos por causa da sublevação organizada por Wong Pik-wan, a soldo do general Ch’en Chiu Ming, também pereceram inocentes. E houve lugar a ajustes de contas. Mesmo que alguns fossem por causa do seu apoio aos que atraiçoavam Sun Yat-sen. Lembra-se tenente, de corpos encontrados em diversas casas de Macau? Uns nunca foram identificados. Presumia-se que eram piratas, ou elementos das tríades, ou infiltrados por cada uma das facções. Não interessavam para as autoridades portugueses. Mas houve um caso que me mereceu a atenção… Parou propositadamente, suspendendo a respiração. Sondou a cara de Amoroso. Este estava calado, preso às palavras de Benedito. Os seus olhos pareciam blocos de gelo, que nem o calor dentro da taberna derretiam. – Lembra-se tenente? Encontraram um casal dentro da sua casa. Mortos a tiro. Sabe quem eram, não sabe? Amoroso acenou com a cabeça. – Claro que se lembra de tudo. Apesar de estar profundamente apaixonado na altura. E de estar muito dependente do ópio. Nada de anormal em tudo isso. Mas voltemos às nossas comuns recordações. A polícia não deu relevância ao caso, porque estava mais preocupada em conseguir que a paz fosse restabelecida em Macau. Mas eu sei quem era esse casal. Ele chamava-se Huang Sen e ela Lu. Tinham bons negócios em Macau e Xangai. E odiavam Sun Yat-sen, por razões que desconheço. 76 Benedito continuou: – Mera coincidência era, claro, eles serem os tios de Ding Ling. E de esta ter herdado tudo o que lhes pertencia. Incluindo o “Noite Tranquila” e as lorchas e juncos que traficam ópio para Macau. Eu fui ver. Mesmo assim fiquei de boca caada. Não hava armas para eles se defenderem. Mas tu disseste que tiveste de disparar em legitima defesa. Não te recordas do que disseste? O olhar de Amoroso ia-se tornando cada vez mais incandescente. Mas continuou sem responder. Benedito insistiu: – O que nos leva à questão mais importante. Quem os matou? Foi Ding Ling? Era rapariga para isso. Tem fibra. Gosto dela. Mas não foi. Foi o tenente. Matou-os para a proteger, acredito. Mas liquidou-os a sangue frio. Ele não tinha a arma na mão, pois não? Tenente, não julgo que, moralmente, esteja ao abrigo do Inferno. – O que te leva a dizeres-me isso? Isso não é verdade. – É. E o tenente sabe-o. E, curiosamente, todo o jogo se virou a seu favor. Tornou-se quase chefe da polícia secreta. Tudo parece uma comédia. Perguntas-me muitas vezes o que faço. Eu escondo-me nas sombras. E isso não é o que faz o tenente desde esse dia? Eu não quero iluminar esse mundo de trevas onde vives, Amoroso. Mas não te admito que atires coisas à minha cara. Elas fazem ricochete. Suspirou, antes de dizer: – É a ironia do destino. O tenente tenta esconder os seus próprios segredos, enquanto procura descobrir os dos outros. Xeque-mate, costumava dizer-se numa partida de xadrez. Era assim que Amoroso se sentia. Derrotado. Benedito não parecia gozar a sua vitória, porque também ele era um derrotado pela vida. Ou parecia sê-lo. Mas ainda conseguia guardar uma última palavra, como se quisesse enterrar o punhal na terra: – Eu compreendo-te melhor do que me entendes a mim, tenente. Eu sei que uma mulher fatal, como Ding Ling, é a que se vê uma vez e se recorda para sempre. E tu não a querias ver uma única vez na vida. E assim entregaste a tua vida nas suas mãos. Mesmo ficando as tuas cheias de sangue. Chama-se a isso uma coisa: amor. 77 Não era um momento fácil para Félix Amoroso. Mas Benedito não parecia querer tirar dividendos do que sabia. – Sabes que não será necessário encontrares desculpas se ninguém te pedir que as dês. Podes continuar a falar e a disfarçar, sem dizer a verdade ou parte dela. Não te preocupes. Eu olho para o outro lado. Era confortável, mas o tenente continuava sem perceber qual era o verdadeiro jogo de Benedito Augusto. Talvez nunca o viesse a saber. Ou só viesse a descobri-lo tarde demais. 20. A tarde estava muito quente. E muito húmida. Não se levantara sequer uma ligeira brisa para acalmar os corpos e as almas. O governador Ricardo José Rodrigues trazia um leque para se abanar. É da minha mulher, desculpou-se. Mesmo à sombra a varanda do hotel Boa Vista não era o local mais convidativo para se estar a conversar. Mas era calmo e discreto aquela hora. Félix Amoroso sentia-se exausto, mesmo sem ter feito muito para o justificar. O empregado serviu-lhes duas limonadas frescas, que poderiam servir para arrefecer os corpos. O governador levou o copo aos lábios e depois virou a sua atenção para o tenente: – Parece que estamos a chegar ao fim de um ciclo, meu caro. Os alemães foram afastados de cena. Os conspiradores morreram ou estão exangues. Lisboa tem, entretanto, outros assuntos políticos e militares que a animam. E que vão minando a República. Mas isso são outros temas que não são agora chamados para esta nossa pequena conversa. Sabe, ainda tenho dúvidas sobre quem matou João Carlos Silva, mas penso que dificilmente chegaremos a uma conclusão. Não lhe parece? – Acho que sim, senhor governador. Não tenho certezas, ou provas, sobre se foi Joaquim Palha ou Max Wolf que o mandaram matar. Mas um está morto e não nos vai responder. E o outro está em fuga. – Pensa que ele já estará em Xangai? – Possivelmente conseguiu fugir para lá. Mas a sua situação não deve ser muito confortável. Alguém investiu muito dinheiro naquela heroína. E vai querer que Wolf lhe preste contas. Não deve ser fácil. Nem heroína, nem dinheiro. Nada numa mão. Nada na outra. – As apostas são assim. Arrisca-se e pode-se ganhar ou perder. E ninguém gosta de perder. 78 O governador olhou para o horizonte. Talvez estivesse a pensar em algo que não era para ser partilhado. – Sabe tenente, tenho a certeza que o futuro é como o xadrez quando é mal jogado. O xadrez não é um jogo de intuição. Tem a ver com a memória. Mas não deixa de ser curioso que todos o disfrutemos mais se for intuitivo, porque só assim acontecem coisas novas. Uma vez tive o prazer de conhecer um mestre xadrezista que esteve em Lisboa, um russo, e perguntei-lhe se era possível antecipar dez ou vinte movimentos. Ele espantou-se e disse que não fazia isso, apesar de todos nós pensarmos que é isso que fazem os profissionais. Ele disse-me que cada jogada era fruto do momento. Acho que é assim que também se constrói um país ou uma cidade: movendo algo ao sabor de uma intuição, de um momento. Preocupando-nos com o presente. Amoroso acenou com a cabeça. Parecia-lhe uma meditação sensata. – Vamos ter de estar com os olhos e os ouvidos atentos, tenente. E, nesse especial aspecto, conto consigo. Há muitos desafios que se nos colocam nos próximos tempos. Sabe, está a terminar o acordo que nos permite importar ópio da Índia. Sabe a dependência que temos das receitas de produção de ópio em Macau. Elas são muito importantes para a nossa saúde financeira. O certo é que têm vindo a decrescer nos últimos anos, até porque há muito contrabando. Algum vindo das colónias francesas. Como é evidente estamos de mãos atadas: por um lado precisamos do ópio e das suas receitas, por outro o ópio cria dependência, transformando muitas vezes os homens em vegetais. É uma questão moral. Assim, o que pesa mais na nossa balança? O seu olhar era vivo e dirigiu-o na direcção de Amoroso. Também este tinha um dilema entre mãos. Era consumidor, embora de forma moderada. Por outro lado, uma das grandes fontes de rendimentos de Ding Ling era proveniente da venda do ópio, a maioria importado clandestinamente da Indochina francesa. O governador continuou: – O certo é que, segundo as informações que tenho, as críticas na Sociedade das Nações à nossa posição é de crítica moral. Mesmo vinda de nações que, nas sombras, lucram com o negócio do ópio. 79 – Chegue à China e verá os lençóis de papoilas espalhados por tantos sítios. Irão cortar essas papoilas? É duvidoso. E os ingleses e os franceses vão deixar de fazer negócio nas sombras, tendo a Índia e a Indochina. Quem é que pagou a revolução industrial dos ingleses, meu caro tenente? O ópio vendido aos chineses. Parou um momento, antes de prosseguir: – A política também é isto. Hipocrisia. Mas temos de viver e sobreviver com isso. Que faremos então, tenente? – Confesso que não sei, senhor governador. – Não sabe ou não quer saber porque também é parte interessada? Amoroso notou o sorriso irónico de Ricardo Rodrigues. Ele conhecia os seus dilemas. – A propósito, como vai a sua amiga chinesa, tenente? A frase era mortal. Mostrava que o governador estava atento. E já tinha fontes de informação próprias. – Vai bem, senhor governador. Conseguiu vencer todas as adversidades, incluindo a morte de uma sua estimada colaboradora. – Eu sei. Sinto muito. Dê-lhe as minhas condolências. Mas a vida continua, não é verdade? Tem de continuar. Amoroso não respondeu. Depois voltou a beber um pouco da limonada. Já estava quente. – Senhor governador, desculpe a pergunta, e a senhora Sofia Palha? – Ainda tem suspeitas sobre o seu comportamento, tenente? Nunca se sabe, é verdade. Mas agora está calma. Era uma mulher que não se amedrontava perante gigantes ou moinhos de vento. Acho mesmo que era mesmo ela que soprava o vento, se o posso dizer. – Compreendo-o. Tenho a mesma dúvida. – Ela é como Portugal. Este é um país milenar e labiríntico, um país que tanto é novo como velho. Mas que ama a vida. Ela também. Se não houver provas contra ela, sossegará e renascerá. Aqui em Macau ou em Lisboa. Quais são os seus planos? Ela sempre usou conceitos abstractos para se esquivar à realidade. Fala de convivência, de concórdia e de diálogo da mesma forma que fazem muitos políticos desejosos de ter o poder concentrado nas suas mãos. O senhor Palha julgava dominá-la, mas pelo pouco que conheci de ambos, era ele o dominado. – Não consta que ela alguma vez tenha feito reféns. Nem o senhor Palha, nem o senhor João Carlos Silva. 80 O governador deu uma pequena gargalhada. – Ninguém, é verdade! Por isso penso que, no seu olhar inocente de viúva ainda jovem, se escondem muitos desejos. Não acredito que não mantenha ligações aos capitalistas chineses que dominam o monopólio dos jogos e que utilizam portugueses ou macaenses como máscara. Há muito dinheiro em jogo, do monopólio do fantan à da lotaria da Misericórdia. A senhora Palha, se mantiver o escritório do seu falecido marido a funcionar, poderá ser uma aliada preciosa para muitos destes negócios. E nós pouco podemos fazer. As receitas do jogo são para nós tão essenciais como o oxigénio. – Estamos condenados a ver com um olho e a fechar o outro, não é senhor governador? – São as leis da política e das finanças, meu caro tenente. E são elas que mandam em simples mortais como nós. 21. Sofia Palha sentou-se na confortável cadeira que pertencera a um administrador da VOC e, depois, a Joaquim José Palha. Abanou-se com o leque e, olhando para o tecto, decidiu que uma das suas primeiras medidas seria colocar uma ventoinha. Era preciso fazer circular o ar. O calor, ali, tornava impossível utilizar o cérebro. Estava na altura de se considerar vítima de si própria e dos seus desejos. Agora os homens olhavam-na como se ela transportasse consigo o céu e o inferno, ou o amor e o ódio, ao mesmo tempo que arrastava para o abismo todos os que se aproximavam dela e do seu mundo. Mas eles não compreendiam nada. O que parecia emoção, na sua relação com os homens, era apenas tensão. Não amara Joaquim José ou João Carlos. Ou amara, à sua maneira, de forma desprendida. Sempre se considerara uma bailarina entre crocodilos. Iludia a fome deles com a sua graciosidade. Agarrou na carta que recebera de Max Wolf. Ele sobrevivera e ainda vivia em Macau, ao contrário do que se supunha. Escondera-se entre os amigos de Fu Xian, naquela selva de juncos e lorchas que enchiam o Porto Interior. A cidade flutuante, alguém lhe chamara. Seria difícil descobri-lo ali. Mas não impossível. Ele dizia-lhe que precisava de dinheiro para regressar a Xangai, para recuperar o crédito junto dos que lhe tinham colocado a heroína nas mãos. Sofia Palha fechou o leque e bateu com ele, levemente, na face. O que deveria fazer? (continua)
Fernando Sobral h | Artes, Letras e IdeiasO Jogo das Escondidas – Capítulos 61 ao 70 61 15. Nas histórias chinesas de amor muitas vezes um ou ambos os amantes morrem ou nunca se juntam. Mesmo assim consideramos isso um final feliz, porque o que conta é a grande paixão que os uniu, algo que a sorte e o destino permitiram, disse calmamente Ding Ling, apesar dos seus olhos estarem estranhamente incandescentes. As suas mãos tremiam um pouco quando passaram pelo corpo deitado à sua frente. A bela Wei Zi ali estava imóvel. No cheongsam que vestia notava-se, à altura do coração, um orifício, sinal visível do punhal que rompera a sua pele e penetrara no coração. Bei Li estava de pé, com os olhos fechados, aparentando uma serenidade que não tinha naquele momento. O tenente Félix Amoroso sentiu um amargo na boca e a sua mão direita cerrou-se. O assassinato de Wei Zi acertara também no coração de Ding Ling. Não sabia como ela iria reagir. Quem a matara? Porquê? O choque emocional ia-se desvanecendo e Amoroso via surgir a visão mais lúcida do facto, mais fria, lógica e racional. A sua própria vida também estava em jogo. Wei Zi fora morta dentro da “Noite Tranquila” por um cliente que a acompanhara até aos lugares mais reservados. Ele saíra tranquilamente e, só depois, tinham dado com o corpo dela. O eficaz golpe, que a matara imediatamente, fora obra de um profissional. Era uma vingança. Para pagar o que ela descobrira. Para mostrar a Ding Ling que Max Wolf ou Fu Xian utilizariam todos os meios para espalhar o medo. Para a assustarem, porque sabiam que fora ela que incendiara o armazém onde tinham os seus pacotes de heroína. Perderam muito dinheiro. E a face. E homens como aqueles não tinham duas caras. – Esta é uma terra em disputa. A partir de agora muita coisa pode acontecer. As palavras de Ding Ling eram firmes. – Eu sou boa para aqueles que são bons. Mulheres como ela têm o poder da persuasão, pensou Amoroso. Os olhos dela estavam cravados nos seus. Ele não baixou os seus. Ela ficou com a convicção que esta não seria ma luta dela. Nem de Bei Li. Seria também dele. 62 – Há um tempo para guardar o silêncio. E outro, bem diferente, para actuar. Mesmo o silêncio pode ser uma arma. Importa saber ver, quando mais ninguém o consegue. Isso é que nos traz a vitória. Wei Zi nunca esperou morrer de velha. Dormir com um olho aberto e saber que cada dia pode ser o último, era uma das condições para trabalhar comigo. Ela sabia-o. E não se importou. Os homens podiam atraiçoá-la por um punhado de patacas, os inimigos poderiam seguir os seus passos, mas ela seguiu sempre em frente. Mas não esperava que o seu fim fosse assim. Aqui, na minha própria casa. Com ela cercada de amigos. Não há intocáveis, pensou Amoroso. Gota a gota enche-e um copo, até que ele transborda. Era o caso. A paciência desaparecera dos olhos de Dng Ling. Mas isso não queria dizer que ela iria deixar-se atraiçoar pelas emoções. Os seus inimigos tentavam-na, mas ela não cairia no seu jogo. Esperaria o momento certo. Ding Ling roçou o seu corpo pelo de Amoroso e começou a andar. Ele seguiu-a até a um local discreto de onde podia ver grande parte do “Noite Tranquila”. Nada parecia estar diferente mas, na realidade, tudo mudara. – Sabes que a palavra Qing significa claridade ou pureza? E o certo é que aquele que foi o último reinado imperial andes da República nunca foi nada disso. É por isso que sigo Sun Yat-sen. Quero conhecer a pureza que há nas pessoas. Há quem diga que a morte é um mistério. Mas, na realidade, o que é verdadeiramente misterioso é a vida, não achas, querido tenente? Quem somos? O que fazemos aqui? A única certeza que temos é que morreremos. Como é que dizem os católicos? Pó eras, em pó te converterás? Amoroso via homens a jogar, sem pensar no pó em que se tornariam. Via-os a beber, sem procurarem, no fundo do copo, uma resposta para as suas atitudes. Cobiçavam raparigas que cirandavam entre eles, sem terem remorsos. Ding Ling passou-lhe os dedos pelo pescoço e, depois, tocaram-lhe na orelha. Ficaram ali durante segundos, os suficientes para ele sentir um arrepio de desejo. Olhou-a e ela agarrou-lhe na mão e puxou-o. 63 Caminharam os dois até ao pequeno quarto que ele tão bem conhecia. Aí, na escuridão quase completa, Ding Ling abriu o seu cheongsam e deixou-o cair. Ficou completamene nua e aproximou-se dele. Foi-o despindo e quando acabou de lhe tirar as roupas encostou-se a ele. Sentiu o desejo de Amoroso. Afastou-o e ficou a olhar para ele, até ue se deitou na cama e lhe fez sinal para que ele se colocasse em cma dela. Ding Ling entregou o seu corpo, vibrante, mas os seus olhos estavam molhados. O prazer misturava-se com a dor, num daqueles mometos em que a bondade e a maldade travam um duelo final. Naquele momento Amoroso percebeu que entre ele e ela não havia absolutamente nada, excepto a obstinada independência dela. O laço forjado no passado deve amarrar-nos mais do que um juramento, sussurrou ela. E ele tinha a certeza disso. 16. O mundo está cheio de ciladas. Aprendemos a viver com elas e a utilizá-las. Sabe-nos bem, quando os outros caem nelas. Clamamos contra a injustiça, quando elas nos fazem tropeçar. Joaquim Palha sentia-se atraiçoado pelo destino. A estratégia fora cuidadosamente montada, desde há muitos anos. Tudo corria bem, dentro da ambiguidade onde se movia como um dançarino. Saber dançar como poucos ajudara-o no mundo dos negócios e da política. Conhecia os ritmos todos, os compassos de espera, a força de fazer bailar o seu par. Mas há sempre algo que não se controla. E isso só poderia ser devido a uma traição. Alguém o traíra, ele que estava habituado a enganar os outros. Não era justo, pensou Joaquim José Palha. Os dedos contorceram-se e as unhas, bem tratadas, cravaram-se na carne. Para doer. Para perceber que tudo o que estava a acontecer era real. Traídos. Joaquim Palha amaldiçoou o mundo por ser assim. Esqueceu-se, claro, de pensar que ele era construído por pessoas como ele. Max Wolf andava na sala, de um lado para o outro. A sua face estava vermelha e a respiração parecia indicar alguém que estava prestes a deixar sair os pulmões pela boca. Por fim, explodiu: – Tem a noção real do que aconteceu? 64 Os olhares dos dois cruzaram-se, como num duelo. Nenhum deu parte de fraco. No escritório de Palha fez-se um silêncio ensurdecedor. Este mudou de posição na cadeira, num esforço inútil pra ficar confortável depois de ouvir as notícias que Wolf lhe trouxera e que confirmavam os rumores que que se escutavam junto ao edifício do Leal Senado. Todo o castelo de cartas que tinham construído nos últimos meses desmoronava-se defronte dos seus olhos. Primeiro, tinham ficado sem a heroína, que se desintegrara em cinzas. Agora o assalto ao vapor correra mal. Tudo correra ao contrário do planeado. Quando Wolf lhe começou a dizer o que se passara, Palha arregalara os olhos, como se estivesse diante de um fantasma: – Não pode ser! Mas era. Wolf, fora de si, só abanava a cabeça e cerrou os lábios. Não havia muito a dizer. E o melhor era não tentar dizê-lo, apesar dos esforços de Palha para o fazer falar. Por fim, foi dizendo: – O que sei foi que se fez o assalto ao vapor Sui-An, como estava planeado. Este partiu de Macau e dirigia-se a Hong Kong. Não era a primeira vez que os piratas o tomavam e roubavam o que havia de valor a bordo. A tripulação estava habituada as estes infortúnios e, para salvar a pele, deixava-se ficar tranquila. Mas, desta vez, como sabíamosmos, o barco levava algo especial: o cofre com dinheiro e ouro que tinha como destino o Hong Kong Shanghai Banking Corporation. Era uma verba considerável que alguns comrerciantes de Macau queriam transferir para Hong Kong e por isso a sua segurança revestiu-se de cuidados especiais. Iam vários guardas armados a vigiá-lo. Sabíamos tudo isso. Como estava planeado, as lorchas de Fu Xian surgiram de repente e cercaram o vapor. O funcionário do Banco Nacional Ultramarino, que seguia a bordo, estava confiante no poder de fogo dos seguranças, mas, para espanto deste, estes nada fizeram e os nossos homens ocuparam o navio. – Até aí nada de novo. Era essa a nossa estratégia delineada com Fu Xian. Os homens da segurança tinham sido substituídos por fiéis nossos ou subornados. Mas o que é que sucedeu a seguir? 65 Wolf encolheu os ombros. – Só há relatos contraditórios de alguns passageiros e do funcionário do BNU. Mas o que se percebe é que uma série de passageiros tiraram as armas que tinham escondidas na roupa e os seguranças que eram homens de Fu Xian viraram as suas espingardas e pistolas contra os piratas deste e cmeçaram a disparar. Mataram-nos todos. Não queriam testemunhas. Quem podia contar algo, morreu. A polícia portuguesa está no Porto Interior a ouvir os passageiros. Mas a maioria está confusa ou, então, cala-se. Quem lá está também é aquele teu amigo, o tenente Amoroso. Palha não acusou a indirecta e questionou: – Isso não faz qualquer sentido. E Fu Xian? – Pelo que consegui saber também foi morto. Os piratas e os seguranças levaram o seu corpo para as lorchas deste, assim como o cofre, e desapareceram rumo a uma das ilhas que há por ali. Palha perdera, naquele momento, a serenidade: – Quem são estes homens? São de Ding Ling? – Ninguém sabe. A polícia está a investigar. Mas é como te digo, deveriam ser. Ou de outra tríade. Sei lá. Quem sabe ou está morto ou desapareceu. Palha rosnou: – Deve ser uma vingança dela. Puxámos demasiado a corda. E matar a miúda chinesa também não ajudou. Mas foi ideia de Fu Xian. E não podíamos dizer que não. Foi demasiado sangue. Mas como é que ela conseguiu subornar os homens de Fu Xian? Em caso de sarilhos aqui é fácil subornar a polícia. Mas comprar os homens de Xian… Tentou fazer um sorriso conspirativo, mas estava demasiado nervoso para isso. E tudo resultou num esgar rancoroso. – E agora? – Tenha calma, doutor Palha. Este revolveu o corpo na cadeira. Wolf continuou: – Eu vou voltar para Xangai. Preciso de falar com os meus sócios. Explicar-lhes o desapaecimento da heroína. E também não tenho dinheiro para lhes levar. Contava com os valores que estavam no cofre. – E eu? Max Wolf fez um olhar sórdido: – Tu? Que achas? Não há-de faltar muito tempo para o teu querido tenente aparecer aí para te prender. Se ainda aqui estiveres. Essa, de resto, foi uma bela ideia tua. Suborná-lo… – Ele parecia estar convencido. – Parecia. Deve ter sabido o que planeávamos. E deve estar conluiado com aquela bruxa chinesa. 66 Palha estava embaraçado. Wolf não confiava nele. Nunca confiara. Agora largava-o como caça, enquanto ele fugia. O alemão talvez tisse certezas. Daquelas que resolvia com uma pistola. Não lhe era conveniente confrontá-lo. – A guerra é a guerra. Alguma vez combateu, doutor Palha? – Eu? Nunca. – Eu estive na guerra. Combati em França. Nas trincheiras. Escondia-me enquanto os obuses passavam por cima de mim ou explodiam ao meu lado. Vi morrer muita gente. Hoje não me faz confusão. Temos é de manter os olhos abertos e saber sobreviver. É isso que planeio fazer. Voltarei. Palha franziu a testa. – Desaparecer é a melhor opção. Vou deixá-lo, doutor Palha. Tenha um resto de bom dia. Ao dizer isto, piscou um olho. E desapareceu. Palha ficou atónito. Tinha de tomar uma decisão rápida. O tempo corria depressa. Demasiado, para o seu gosto. 17. O sol ainda não se tinha posto quando Félix Amoroso chegou ao “Noite Tranquila”. Li Bei esperava-o. Ele sabia porquê. Os seus espiões eram mais rápidos do que ele. A luz, à entrada, era melancólica, como se aquela fosse uma noite como as outras. Não era. Lutar e não ceder, era o que transmitiam os olhos dela por detrás do seu ar enigmático e doçura meditativa. Parecia ter o sorriso de uma estátua em jade de um Buda khmer que lhe tinham trazido da Indochina. E que ele guardava no seu quarto. Ela aproximou-se dele e disse: – A vida é amoral. E é sempre violenta. Por vezes temos de atacar não apenas as forças do inimigo, mas a sua força moral. É aí que verdadeiramente vencemos. Não esperava resposta. Fez-lhe sinal para que o seguisse até à sala onde estava Ding Ling. Também ali a luz era mortiça, e não deixava ver bem os contornos da face dela. Mas Amoroso não duvidava que a serenidade, a sensualidade e a sensação de dever cumprido se uniam no seu olhar. Ela aproximou-se e finalmente Amoroso conseguiu ter uma imagem mais nítida da cara dela. Nunca lhe parecera tão bela e radiante. Ele tocou-lhe, como se ela fosse irreal. Não era. Sentia o calor do corpo de Ding Ling, a milímetros do seu. Dela imanava uma força que o invadia e conquistava. Ding Ling, naquele momento, era a civilização chinesa no seu esplendor: a harmonia pura. Tentou afastar a magia que o deixava inerte: 67 – Como boa deusa, a Fortuna, esteve do lado dos deuses. – Esteve. Tal como nas melhores óperas de Cantão, as máscaras que usámos representaram diferentes emoções até atingirmos o nosso objectivo. Encenámos da melhor maneira a nobre arte da paciência e do engano. Quando julgavam vencer, os traidores foram vencidos. E com eles desmoronou-se o sonho de Max Wolf e dos alemães. Não há ouro e dinheiro para subornar, nem heroína para corromper. Os portugueses ficariam felizes se algum dia soubessem o que fizémos. Com a heroína Wolf teria conquistado o submundo de Macau e o poder ruiria sem disparar um tiro. Quem controla a escuridão, domina a luz que os outros julgam ser sua. Os alemães teriam Macau, mesmo que em Santa Sancha existisse uma bandeira portuguesa. Ding Ling aproximou os seus lábios dos de Amoroso. Bei Li observava, muito perto. Os seus corpos pareciam sombras inertes, mas repletas de vida por dentro. – Sem ti, querido tenente, não teríamos conseguido uma vitória justa. O inimigo não se teria distraído o suficiente. Não teria achado que, por matarem os que nos são queridos, quebraríamos como um tronco de madeira. Somos feitos de bambu. Vergamos. Não quebramos. A voz de Bei Li não quebrou o encantamento: – Muitas das histórias que terás escutado talvez tenham ofuscado as tuas ideias, tenente Amoroso. Agora que a luta terminou, não tens de ter receio de nenhuma de nós. Apesar de ela também ser a tua batalha. Era a escolha do nosso verdadeiro inimigo. Do teu verdadeiro inimigo. O seus olhos fecharam-se, como se a ténue luz lhe ferisse a visão. Continuou: – Tinham fraquezas. Os homens de Fu Xian sempre estiveram à venda. São mercenários, que escutavam promessas de riqueza. E, até agora, viam poucas recompensas. Não confiamos neles. E eles não confiam em ninguém. Só no dinheiro que lhes pagámos. – Todos temos as nossas dúvidas, gentil Bei Li. Duvidamos de nós. Da justiça. Dos outros. Do bondade do mundo. Bei Li sorriu. A sua missão agora tinha terminado. Disse apenas: – Pensas em espiões, não é, querido tenente? Nós não precisamos de espiões, enquanto a verdadeira China existir. É melhor ter amigos. 68 Fechou os olhos e rodou o corpo, confundindo-se com a penumbra. Amoroso, que voltara a olhar para Ding Ling, não a ouviu sair da sala. Esta disse: – Quem vem da escuridão tem mais resistência ao sofrimento. E nós voamos lado a lado. Não o esqueças. – As deusas quebram promessas? – Nunca o fiz e nunca o farei, seja por força do Bem ou do Mal. Sabes que a minha missão é ajudar Sun Yat-sen. Contra as potências que retalham a China. Contra os seus inimigos internos. Só isso. Estou serena. As sombras podem agora dançar à volta da alma de Zu Wei. Os seus lábios tocaram os de Amoroso. As suas mãos percorreram o corpo deste. Muitos minutos depois, estavam juntos na cama. A luz deixava ver os bilhantes olhos dela e os lábios cerrados. Parecia estar prestes a chorar mas isso, claro, não aconteceu. Ele passou a mão pelas costas dela e foi descendo até encontrar o início das pernas. Mas Ding Ling agarrou-lhe na mão e levou-a até junto ao seu seio, não o deixando mexer-se. Ficaram assim a olhar um para o outro, pensando no que queriam fazer a seguir. Tudo ou nada? Troca os meus desejos pelos teus, parecia dizer ela. O desafio era intolerável e o seu corpo sabia. Afastou a mão e comprimiu o seu corpo contra o dele. O sol passava entre duas nuvens e mostrava o seu esplendor. Era uma metáfora queDing Ling muitas vezes partilhava com ele, quando, após um momento de tristeza e incerteza, a energia renascia e a tentação do sexo estava viva. Era o que estava a acontecer, enquanto os seus corpos chocavam e ambos murmuravam coisas que ninguém percebia. Naquele momento o rosto de Ding Ling era meigo e simples, como se não tivesse nada a esconder. E, no entanto, ambos sabiam o segredo que compartilhavam. E de que nunca mais tinham falado. 18. Sofia Palha conhecia a versão mais tortuosa de Joaquim José. Se dissesse que mentira, não estava a mentir. Se dissesse que não mentira, estaria a mentir. Não importava agora. Os seus sonhos estavam comprometidos, pelo menos em Macau. Ela poderia dizer que não sabia de nada. O seu único ponto fraco era a relação com João Carlos da Silva. Tudo o resto eram suposições, teorias, imaginação. Não existiam provas. Enquanto se dirigia para o escritório do seu marido, arquitectava um plano. 69 Para Joaquim Palha a derrota de Fu Xian e de Max Wolf deixara-o num beco sem saída. Tinha agora a certeza que o tenente Amoroso fizera o jogo dos seus inimigos, o Governador e Ding Ling. Como conseguira ele ser tão dúplice? Max avisara-o para não confiar nele. E Sofia, que sabia ler os homens como ninguém, também. Mas ele confiara nas suas capacidades de persuasão, testadas durante anos em Macau com os melhores resultados. Sabia que nada contara a Félix Amoroso sobre o que planeavam fazer. Como teria ele descoberto? O seu caminho estava agora bloqueado. A discussão com Max Wolf mostrara-lhe que lhe restava pouco espaço de manobra: ou o ódio dos governantes ou o desprezo dos seus opositores. Ou se fazia invisível ou seria erradicado. Que fazer? Fugir de Macau? Meios não lhe faltavam para fazer isso, mas seria era a vida que coroaria todos os seus sonhos? Poderia sobreviver a tudo mas não ao gozo dos seus antigos amigos, que se rapidamente tornariam inimigos. Poderia voltar a Portugal e recomeçar de novo. Mas as notícias chegariam a qualquer parte. Renegar o amor à pátria onde nascera e aliar-se a um alemão para conseguir benefícios contra os interesses de Portugal, quaisquer que estes fossem, não tinham forma de ser apagados. Os mexericos venceriam o que dissesse para se defender. Regressar a Portugal era impossível. Restava-lhe fugir para uma cidade qualquer da Ásia. Ou então tomar a decisão final. Quando Sofia Palha chegou ao escritório de Joaquim este estava deitado de forma grotesca na cadeira. A pistola caíra para o chão. A cabeça tinha sofrido o impacto da bala que o matara. Nada a impressionava. Quando soube o que acontecera no vapor, Sofia sabia que se tinha despoletado o início de um caminho trágico. Não havia remédio. Ficara em casa e abrira uma garrafa de vinho tinto Periquita e fora bebendo e olhando pela janela, de onde se viam as águas calmas do mar. Assim esteve até ao momento em que recebeu a mensagem da secretária de Joaquim a dizer-lhe o que tinha acontecido. Foi como um relâmpago que interrompeu a sua letargia. 70 Tinha construído uma ficção de vida. Até aí pensava habitar num mundo ordenado, estável, que ela própria ajudara a construir com precisão matemática. Tinha um fim previsto. Os meios para lá chegar poderiam ser pouco morais, mas o poder ou o dinheiro nunca se tinham preocupado com pormenores dispensáveis. Todos, conhecidos, amigos, aliados, eram peões de um jogo mais vasto. A sua fria ambição permitira-lhe guiar as ideias e as acções de Joaquim José. Mas a tempestade regressara forte, como sempre acontecia em Macau. Devia ter antecipado possíveis acontecimentos futuros que pudessem fugir às suas rédeas. Só que era impossível suster o vento com as mãos e os furacões surgiam do nada, indomáveis. Em Macau deixavam sempre um rasto de destruição. Vasculhou as gavetas da secretária de Joaquim, mas nada de incriminatório encontrou. Depois ordenou que informassem a polícia do que se passara e voltou a casa. Sentou-se defronte do espelho e vislumbrou-se demoradamente. Continuava bonita e atraente. Era ainda capaz de conquistar qualquer homem. Talvez o seu futuro não estivesse completamente traçado. Estranhamente não sentira nada perante o corpo de Joaquim. Reagira como se se tivesse libertado de um fardo. Agora só tinha a certeza que o mundo de amáveis monotonias tinha-se esfumado. Sentia isso, mas não chorava. Só quando o amor não existe é que se costuma sentir a sua ausência, pensou. Só lhe interessara, até aí, o luxo do domínio e do poder. Odiava o tenente Amoroso, o Governador e a sua mulher, Max e as suas promessas, a sinuosa chinesa Ding Ling. Odiava Macau. Suportara aquela cidade porque queria voltar a Lisboa como uma senhora rica e poderosa. Franziu a testa. Talvez ainda fosse possível. Afinal, para ela, o adversário de hoje poderia ser o correligionário de amanhã. O amigo de amanhã podia ser o inimigo de hoje. Seguiria o ritmo do vento, conforme soprassem as circunstâncias e as conveniências. Um dia Joaquim dissera-lhe que ela tinha menos luzes do que um barco pirata. Sorriu com o pensamento. (continua)
Fernando Sobral h | Artes, Letras e IdeiasO Jogo das Escondidas – Capítulos 51 ao 60 51 Ouviu a voz de Benedito: – Foi em Singapura que tive a oportunidade de ler, pela primeira vez, os livros de Homero, a “Odisseia” e a “Ilíada”. Identifiquei-me com Ulisses, não sei porquê. Talvez pelas duas fases da vida que ali são retratadas. Fazem sentido para mim. Sabes, quando penso nos espiões lembro-me de um episódio que é contado nesses livros. É uma lição de vida. Nele, Ulisses encontra um espião troiano, Dólon, que ia espiar os gregos. Convence-o que a sua vida pode ser poupada se cooperar e revelar tudo o que sabe sobre as tropas troianas. Quando as dá, Diomedes diz que tem de matar Dólon. Porque se o libertar ele regressará, ou para espiar os gregos ou para os combater. Dólon pede clemência, mas a espada de Diomedes mata-o. Benedito susteve a respiração, antes de continuar: – Que lição podemos tirar daqui, meu caro tenente? Não podemos confiar em ninguém. Nem nos que nos prometem o que quer que seja. E na espionagem há sempre a hipótese de não escaparmos com vida. – Eu sei, padre. O fundamental de qualquer actividade clandestina é poder escapar ao olhar alheio. E eu isso não consegui fazer. – Aprendi uma coisa com um agente meu. Um chinês do interior. Dizia-me ele que quando um espião deixa de saber qual o seu caminho no meio da escuridão, deve sentar-se, observar o céu e ver as estrelas entre as nuvens. Talvez seja agora uma boa lição. Para ti e para mim. – Sim, essa talvez seja a melhor estratégia. E também, como me ensinou Ding Ling, converter-me no inimigo. Colocar-me no lugar de quem me pode fazer mal e sondar o seu coração e as suas razões. Preciso de conhecer as suas ambições e intenções. E então saberei quem me quis matar. – Sim mas tens de ter muito cuidado. Eles estão dispostos a calar-te. Quando se caminha de noite por caminhos iluminados pela lua, deve utilizar-se as zonas de sombra. Continuaram a falar, enquanto não muito longe dali, a batalha fora rápida. Bei Li desviou o olhar dos corpos estropiados por balas e facadas e que estavam caídos no chão. Eram quase todos homens de Fu Xian, mas este não se contava entre os mortos. Tinha conseguido fugir. 52 O edifício de pedra esverdeada estava conquistado. Ding Ling, com olhar decidido, passou com a mão pelos contentores de madeira que continham sacos de heroína. Os seus homens esperavam, ansiosamente, ordens. Por fim ela disse: – Queimem tudo! Eles assim fizeram. Os contentores foram-se transformando em fogueiras enormes. Saíram rapidamente do local. O fumo começou a sair pelas janelas e pela porta. Ding Ling olhou para o céu. A lua estava com uma luz poderosíssima. Era uma visão maravilhosa. Por momentos julgou ver a sua face reflectida naquele círculo que iluminava Macau e que, em conjunto com as chamas que agora saíam do prédio, lhe davam um aspecto demoníaco. Ding Ling disse, enquanto começava a caminhar: – Nesta guerra a melhor arma é o medo que provocamos nos nossos inimigos. Bei Li não disse nada, mas seguiu os passos de Ding Ling, como se fosse a sua sombra. 13. A ventoinha rodava lentamente no tecto. Fazia um ruído estranho, o que poderia ser um sinal de que estava quase a deixar de funcionar. O governador Rodrigo Rodrigues, sentado no seu cadeirão, olhou para lá, enquanto soprava o fumo do cigarro para o ar. No seu olhar havia algo de resignado, como se finalmente percebesse que nem sempre era fácil mudar o que fosse em Macau. O Palácio do Governador, onde estava, era um local onde os silêncios, muitas vezes, diziam muito mais do que as frases e os sussurros se impunham às vozes mais audíveis. – Com este calor é fácil perder o hábito de agir. As palavras do governador soavam a indiferença, mas Félix Amoroso sabia que ele tinha muitas ideias para a cidade. Circulava em voz baixa no Grémio Militar, que estava a tentar colocar, pela primeira vez, representantes da comunidade chinesa local no Conselho do Governo, algo que não era do agrado das entidades mais conservadoras. Por outro lado tinha convidado o bispo de Macau, D. José da Costa Nunes, a fazer parte do mesmo Conselho. Parecia uma forma de ele, um maçon, mostrar que a República era a casa de todos e de tentar gerir interesses contraditórios. Era como construir um castelo de cartas. Bastava um sopro mais forte e tudo caía. 53 Ainda assim, sabia a sua força, porque o poder estava formalmente concentrado nas mãos do Governador, representante de Lisboa. Mas, na prática, isso era um equívoco. O governador tinha sempre de gerir os interesses dos senhores locais mais influentes e, por isso, muitas vezes as suas ideias diluíam-se numa sopa sem sabor ou aroma. Na Taipa, era o comandante militar, que mandava em Amoroso, que fazia as suas próprias leis. Não que a sua força fosse muita. Recentemente o general Gomes da Costa tinha passado por Macau para ver como se encontrava a situação militar e partira desolado. Em Macau tudo se sabia. Não era uma cidade muito grande para ser possível guardar segredos. Rodrigo Rodrigues insinuou: – Nunca se deve tentar agradar a todos, porque no fundo estamos apenas a transferir para o futuro o verdadeiro duelo. – Quem tem paciência acaba por vir a governar o mundo, senhor governador. – Isso não sei. Mas tenho a convicção de que não estarei muito tempo em Macau. Amoroso sondou a face do governador, mas esta manteve-se impassível e serena. Rodrigues tinha a virtude de saber esperar. E de não ter esperanças infundadas sobre o futuro. A voz do governador voltou a soar: – Estou a pensar reforçar o patriotismo em Macau. Apelar aos sentimentos nacionais, mostrando o que nos une e não o que nos divide. Que acha da ideia, tenente? – Parece-me boa. E como quer fazer isso? – Penso que Luís de Camões diz muito às pessoas de Macau. E a Portugal. Foi o homem que serviu para juntar os portugueses em redor dos republicanos e contra a Monarquia, quando os ingleses nos humilharam com o Mapa Cor-de-Rosa. Os republicanos souberam recuperar Camões e “Os Lusíadas” para vincar o nosso patriotismo e fazer renascer o nosso sentido de honra. Estou a pensar instituir uma romagem à gruta de Camões no Dia de Portugal. Amoroso acenou com a cabeça. Notara que, pouco depois de ter chegado a Macau, Rodrigo José Rodrigues deixara de andar fardado, apesar de ser miltar. Usava roupas civis. Dizia-se que era uma pessoa sociável, que gostava de se sentar debaixo de uma árvore quando estava calor e de ver os chineses mais velhos a jogar mahjong nas ruas. Às vezes, à noite, percorria as ruas da cidade, sem escolta. 54 O governador bateu com um dedo no tampo da mesa, quebrando o silêncio. – Tem de ter cuidado, tenente. Penso que não seria o primeiro português a apaixonar-se por uma chinesa e por causa disso nunca mais regressar a casa. – Porque diz isso? – Sei que a menina Ding Ling é a sua, como direi, protectora? Se não fosse a sua acção, poderia ter perecido na tentativa de assassínio. Ou estou enganado? – Não está, senhor governador. Como diz uma outra amiga minha chinesa, “como um pássaro no rio, como um peixe no ar, um estrangeiro é um homem com problemas na noite de Macau.” O governador deu uma pequena gargalhada. – E ela, com essa frase, também se refere aos portugueses? – A alguns. Não a todos. Muitos portugueses conhecem Macau e amam esta cidade. É a sua casa. Tenho aprendido isso. – Não duvido. A minha mulher está a encontrar muita inspiração aqui para a sua poesia. Quando me for embora será um problema. Seguiu-se um novo silêncio, antes de Amoroso questionar: – Como está a vida política em Lisboa? – Um pântano, como sempre, segundo o que vou lendo no “Diário de Notícias”. Vão desaparecendo os melhores, como o Carlos da Maia, que foi aqui governador. Assassinados ou afastados. E nascem, como cogumelos venenosos, os arrivistas, os lambe-botas e os que desejam apenas o poder. É difícil respirar ali. Não tenho muitas saudades. Isto pode parecer um exílio, mas aprecio-o. As intrigas demoraram algum tempo a chegar aqui e a ter um efeito nefasto. O tenente puxou de um cigarro e acendeu-o antes de responder: – Parece evidente que Portugal não vai vender Macau à Alemanha. Os chineses também não gostariam da ideia, porque a primeira coisa que a Alemanha faria era pôr aqui uma base militar a sério. Já lhes basta terem de aguentar os interesses de franceses, ingleses e americanos em Xangai e noutras cidades. – Também me parece o caso. Sabe, em Lisboa, passam a vida a discutir a questão das colónias. Sobre Macau, só se faz isso em momentos de fúria nacionalista. De resto ninguém olha para aqui. Nem, diga-se, para lado nenhum. 55 O governador continuou: – Estive a reler o dossier que tenho sobre o assunto e já em 1896, foi muito comentado um boato sobre a cedência da Lapa à Alemanha pelo governo chinês. Um escândalo que durou dois ou três dias até as atenções se focarem na nova marca de charutos disponível na Havaneza. Mais tarde um deputado, Franco Frazão, quis delimitar o que achava que devia pertencer a Macau, e isso ia do forte do Passaleão às ilhas da Lapa e D. João e mesmo à de Hian-Chan. Queria aproveitar-se de um daqueles momentos em que a China foi submetida pelas potências ocidentais. Queria uma fatia do bolo. Depois discutiu-se o porto franco e a alfândega chinesa. Mais foguetes políticos. E ninguém apanhou as canas. Sabe como é. E há quem esteja sempre a dizer para vendermos esta fonte de problemas, tal como Timor ou Goa. Só se houver vantagens económicas para alguém é que se discute o assunto com um pouco de seriedade. O tenente esticou as pernas. Sentia-se confortável, apesar da ligeira dor que ainda tinha no braço. E o governador estava numa daquelas tardes em que, sem compromissos, podia e queria falar. Porque, ao mesmo tempo, encaixava os seus pensamentos dispersos. – E o governador, permita-me a pergunta, nunca teve ambições políticas? Rodrigo Rodrigues sorriu e olhou para o tecto. Continuava fascinado pela ventoinha. Nela via a vida política portuguesa. Ia rodando, apesar do ruído incomodativo. Um dia cairia do tecto. Apontou para ela: – Acha que um dia me pode cair na cabeça? – Não sei. Isso poderia e deveria ser evitado. – É como a vida política. Nunca se sabe se não nos pode acontecer o mesmo. Tive sonhos. E depois chegaram os pesadelos. Não sou propriamente amigo de Afonso Costa. Nem aliado. E ele, com a sua longa mão, que tudo toca, não esquece isso. Por isso afastei-me. E, confesso, acho que eles não se importaram muito com isso. Assim não têm de se preocupar comigo nem com o que faço. Sabe, Macau fica suficientemente longe do Terreiro do Paço e do Chiado. 56 – Sabe, tenente, quando alguém deseja mesmo ser imperador precisa de traçar um círculo no solo, fechado à sua volta, para que ninguém mais entre ali. Mais tarde deve fazer outro círculo concêntrico onde está a sua guarda pretoriana, um punhado de conselheiros que não lhe dêem conselhos e que cumpram a sua função de recipientes vazios onde vertem a sopa das suas próprias convicções. Soldados obedientes, que não leais, e só fiéis à luz que irradia sobre eles a partir da liderança. Outro círculo mais amplo se pode criar, com uma boa quantidade de súbditos complacentes, sem ânimo para questionar as coisas e que não tenham memória ou sequer confiem muito nela e que a reescrevam em função da versão preferida do imperador. Não ganham nada, ou muito pouco, mas lutam entre si para caminhar à sombra do seu senhor. – E o governador não é assim. – Desejo não ser assim. Tal como o tenente. Se assim não fosse porque é que o teriam enviado para Macau? – Não sei mas um dia regressaremos a Portugal. O que faremos? – Não sei. Portugal disse adeus ao passado. Amoroso sorriu. Como se não fosse o passado a dizer-nos adeus a cada instante. Mas talvez o governador quisesse dizer outra coisa. Mais complexa e terrível. Talvez: Portugal disse adeus ao futuro. – E Macau? Podemos mudar esta cidade, tenente? – Eu penso que o governador acha que é possível tornal reais algumas ideias. Tem a convicção que esta cidade pode ser transformada, para ser lucrativa para todos e ser redimida aos olhos de Lisboa. Mas está a pensar fazê-lo só com os interesses locais e sem ter qualquer ajuda de Lisboa. Seria um milagre. Mas é possível para que algum dia, no futuro, alguém aqui acenda o seu cachimbo e conte aos filhos a história de um sucesso. De que ninguém estava à espera. E começarão a história com o nome de um homem com coragem. Seria um motivo de orgulho para si. Rodrigo Rodrigues sorriu enquanto apreciava as palavras do tenente. Depois disse: – Eu acho que temos uma oportunidade única para que os habitantes de Macau controlem o seu futuro. Talvez depois pudesse chegar a Lisboa, aos corredores onde se manobram as decisões, e mostrasse que em Portugal se poderia seguir o exemplo de Macau. Só que o futuro não são apenas palavras. É preciso fazer e não estarmos apenas a pensar na nossa sobrevivência política. Rodrigo Rodrigues calou-se. E voltou a olhar para o tecto. A ventoinha continuava a fazer o seu estranho ruído. Mas não caíra. 57 14. Quem diabo sou eu? Não sou padre, nem nunca fui. Não sou espião, apesar de o parecer. Gosto de mulheres, apesar de o esconder. O dinheiro seduz-me, mas finjo odiá-lo. Passei anos a esconder-me de todos, mesmo que eles me vejam. Por isso cada um tem a sua ideia sobre o que sou. E eu, quando me olho ao espelho, já não me reconheço. As dúvidas tropeçavam umas nas outras e Benedito Augusto sentia-se estranhamente perdido num mundo que entendia, nas suas complexidades e contradições. Mas talvez fosse por isso que tinha tantas dúvidas e receios. Nem o álcool ou as drogas conseguiam afogar esta sensação de estar numa terra de ninguém, num mar imenso sem ilhas à vista, sem um porto seguro onde sentisse firmeza por debaixo dos pés. Navegava à bolina, como sempre acontecera. E quando parecia ter tudo controlado, os alemães e os portugueses faziam ruir o seu castelo. Apetecia-lhe seguir para Singapura e desaparecer com Mariana da Conceição, uma malaia de remotas origens portuguesas e holandesas. Poupara quase o dinheiro suficiente para desaparecer nos confins da Ásia ou, talvez, em Zanzibar ou em Madagáscar. Longe do longo braço das tríades. Via-se numa cama de rede a olhar para o horizonte, junto a uma tabanca onde vendia álcool e sonhos aos perdidos da vida. Faltava-lhe o último golpe. Mas esse agora era perigoso. Olhou à volta. Aquela hora da tarde a taberna estava estava quase vazia. O que era bom para conseguir estar atento aos seus pensamentos. Quando Félix Amoroso chegou ele folheava uns papéis encardidos. Repletos de manchas de vinho. Tocava-os com cuidado. Amoroso reparou no estanho fascínio com que o padre olhava para eles, como se fossem ouro reluzente. – Que tens entre mãos, meu caro Benedito? Este não levantou o olhar dos papéis. – Há coisas que nos surgem por acaso. E que podem mudar uma vida. – Um mapa do tesouro? – É quase isso. Amanhã parto para Hong Kong. E depois para Singapura e para a Malásia. Tenho vários negócios a tratar lá. 58 – Para Fu Xian? – Alguns. Ele sofreu uma derrota. Mas não morreu. Voltará mais forte, não tenhas dúvidas. Agora está desconfiado de todos. E o alemão quer a sua heroína. Ou o valor dela. Não sei o que poderá acontecer, pelo que o melhor é afastar-me uns tempos. Tenho uma boa desculpa. Fu Xian quer que eu lhe faça um serviço. – Vais ver a tua amada? Benedito levantou a cabeça e fulminou o tenente com o olhar: – De que estás a falar? – Da menina Mariana da Conceição. De Singapura, ou da Malásia. Não sei. Dizem-me apenas que é muito bela. Benedito piscou os olhos. O seu rosto pareceu, de repente, ter mais linhas a marcá-lo. Perdeu alguma da flexibilidade que o caracterizava. – Nada temas, Benedito. Sei que não acreditas em mim, mas eu prometo silêncio. – Porque não acreditaria em ti? – Porque as pessoas não têm fé. Benedito fitou-o severamente. Como se tivesse sido ameaçado com uma faca. – Eu tenho fé. – Tens? Alguma vez tiveste? – Sou jesuíta. Padre. – Achas que, se acreditarmos em tudo o que dizes, ainda és padre e tens fé? Não irás para o inferno? – Não estamos todos no inferno? Amoroso fez um sorriso velado e misterioso. – Estamos. Mas nem tudo tem de ser sofrimento e culpa. Benedito sussurrou: – Estou cansado. Até demasiado cansado para responder a essa pergunta. Esfregou os olhos antes de continuar: – Tenho muitas notícias sobre João Carlos da Silva. A sua vida. Foi-me contada por alguém que passou por aqui, e no meio da bebida, foi-me abrindo as portas para conhecer um homem que parecia transparente. Que aparentava ser apenas um secretário do Governo e que tinha tido um desgosto de amor depois da mulher não se ter adaptado a Macau e ter rumado a Portugal. – Quem te contou? – Um homem de Macau. Que foi amigo do senhor Silva. E, sobretudo, seu credor. – E então? – Então, a vida do senhor Silva é mais complexa. Veio efectivamenre para aqui, casado com a senhora Gertrudes de Albuquerque. Uma católica muito piedosa, que passava a vida na Igreja. Os primeiros meses foram suportáveis, até que o senhor Silva começou a jogar e a perder. Com isso destruiu o património da mulher. Esta, incapaz de o conter, desapareceu. 59 A voz de Benedito transformou-se num sussurro: – Diz-se que partir um barco, às escondidas, para Moçambique. Onde tinha família. Este homem que o conhecia diz-me que ela nunca chegou a Moçambique. E que as tentativas da família para saberem o que acontecera a Gertrudes tinham sempre esbarrado no silêncio das autoridades de Macau. – Talvez a mão do senhor Silva estivesse por detrás desse silêncio… – Talvez. Como talvez a senhora Gertrudes não tenha saído daqui viva. Não se sabe e talvez nunca se venha a saber. Mas o certo é que ele continuou a jogar. E a perder o que tinha e o que não tinha. Foi quando conheceu a família Palha. Sofia viu nele o que não encontrava no seu Joaquim. Ou, talvez, segundo este meu informador, que emprestou muito dinheiro a Silva com bons juros, porque queria saber os segredos da administração. Quem deve muito está susceptível de trocar as dívidas por informação. Segundo parece, Silva passou a ter dinheiro. Chegou mesmo o momento em que pagou as dívidas e os juros. E isso coincidiu com a chegada de Max Wolf a Macau. Não é difícil ver a conexão. Sofia, ou mesmo o senhor Palha, colocaram Silva e Max Wolf em contacto. As suas amigas chinesas devem saber mais sobre isso. – O mundo é gerido pela fraqueza dos outros. – Ou do próprio. As fraquezas às vezes conduzem a respostas muito fortes. E impensadas. O tenente passou a mão pelo queixo, bebeu um pouco de cerveja, e disse: – Esse teu amigo de bebida sabe quem matou o Silva? – Ele não sabe. Mas desconfia. Ele era útil para o alemão. Este tinha-o na mão. Restam o Joaquim Palha ou a Sofia. Porquê, não sei, mas o Silva e a Sofia acabaram na cama. Não sei o que ela viu nele. Ou se foi uma simples forma de ela se vingar do marido. Este tem uma amante em Hong Kong. Vai lá muitas vezes em negócios… Deu um gargalhada. Soou a cinismo puro. – Estava há pouco a falar-me de fé, tenente? Que acha? O universo é o caos. Talvez um dia a ordem consiga emergir do caos e prevalecer. Talvez deixe a escuridão e traga a luz. Escutou um ruído. Alguém arrastava uma cadeira para um dos cantos da taberna. Tinha uma boina preta e, sem dizer nada, sentou-se, começou a tocar uma guitarra portuguesa e ouviu-se a sua voz. (continua)
Fernando Sobral h | Artes, Letras e IdeiasO Jogo das Escondidas – Capítulos 40 ao 50 – E a tua protegida, Wei Zi, já soube algo do subordinado de Max Wolf? Antes de responder Ding Ling foi em busca de um roupão de seda e vestiu-o. – Ele sabe alguma coisa. Mas não sabe tudo. Se o soubesse teria dito a Wei Zi. A questão resume-se a uma: ópio ou heroína? É isso que separa Macau do senhor Wolf. Se ele introduzir aqui a heroína destrói o negócio de muita gente. Mas ele está disposto a isso, mesmo que tenha de destruir os seus opositores. Para isso promete riquezas sem fim a piratas e elementos das tríades. É assim que se cegam os homens sem princípios. É preciso fazê-los acreditar, não no presente, mas no futuro. Desviar a sua atenção para o que ele vos pode vir a dar. E não o que ele te dá agora. Assim conquistam-se os tolos. Poderá ser uma luta terrível. – Acho que estávamos mesmo a necessitar de um beco sem saída. – Querido tenente, o problema não está muitas vezes na infinita crueldade de alguém. Está mais na sua cordialidade. Talvez por isso o senhor Wolf tenha escolhido a estratégia errada. E é isso que o pode fazer perder a guerra que se adivinha. Ding Ling não lhe contou que Wei Zi conseguira saber a estratégia de Wolf para conseguir dinheiro. Ele tinha a mesma intenção que ela: assaltar o barco que transportaria ouro e dinheiro de Macau para Hong Kong. Wei Zi soubera quando, como e onde ele atacaria. O tenente começou a vestir-se, sem deixar de olhar para ela. A voz da chinesa voltou a escutar-se: – Recorda que uma cobra nunca se pode transformar num dragão. Houve um sábio na China que nos disse que um sábio que se dedica a pôr ordem no mundo deve saber de onde vem a desordem, e só assim poderá cumprir a sua missão. – Quem disse isso? – Um senhor chamado Mozi. Para ele era claro que a desordem tinha origem na falta de amor mútuo. – É isso que separa as pessoas? – Sempre o será, não te parece querido tenente? – Para isso é necessário que elas saibam distinguir o sabor amargo do que é doce. E nem sempre o sabem. 43 – Esse será sempre o eterno problema dos homens. Por isso, na história da China quem atacou bem sempre ganhou. Quem teve dúvidas, perdeu. A vida também é assim. Foi assim que me conquistaste o coração. – A ti ninguém te conquista. Tu deixas-te conquistar. – Às vezes tu não me compreendes. E eu não te compreendo. Há assim algo de comum entre nós. Amoroso sorriu. – Não podes cometer um erro sem aprender uma lição, adorável Ling. – Já pareces um chinês a falar, querido tenente. – Aprendi contigo. – Talvez. Mas não esqueças que quem nada deve é sempre senhor do seu destino. Amoroso sentiu que alguém estava na escuridão. Não se enganou. Bei Li aproximava-se. Trazia um vestido transparente que deixava visível todo o seu corpo. Aproximou-se de Ding Ling e os seus corpos tocaram-se, por momentos. Ambas ficaram a olhar para ele. Mas o tenente não reagiu e saiu. 11. O Bazar guardava segredos que nunca revelaria. Quando a noite caía e os silêncios e a escuridão convidavam ainda mais ao sigilo, as suas ruas estreitas e becos sem saída escondiam ainda mais um mundo que não se regia pelas leis escritas nos centros do poder. Ainda não anoitecera, mas o Bazar recordava, a Félix Amoroso, Alfama. Talvez fosse isso que aproximasse os portugueses dos chineses, o seu gosto pelos labirintos de onde não sabiam sair. Caminhava calmamente, mas sentia que olhos invisíveis o seguiam. Voltou-se mas não viu ninguém. Era uma sensação estranha, mas sabia que alguém seguia a sua sombra. O tenente tinha consciência do seu erro. Não fora prudente e tornara-se um alvo. O calor impiedoso ofuscava o seu pensamento. Não tinha nenhum mapa do tesouro entre mãos, que pudesse ser cobiçado. Era apenas o senhor de suspeitas que ameaçavam alguém. Percebera que, ao alertar Sofia Palha e, eventualmente, Max Wolf, poderia estar a pôr em causa um grande negócio. E quem queria lucros não se importava de colocar alguns prejuízos alheios nas contas finais. 44 Chegou à Rua do Matapau e escutou o som de diferentes pássaros, cantando o que parecia uma pequena ópera. Vinha de uma loja que conhecia, e onde há algum tempo adquirira um periquito. Parou por um momento para escutar a agradável disputa entre os pássaros, fechados em gaiolas. Depois passou por um pagode, de onde vinha um cheiro agradável do sândalo das oferendas queimadas. Lá dentro, sabia, um Buda observava os que ali vinham depositar as suas preces num altar. Entrou depois na rua das Estalagens. A actividade ainda era ruidosa e frenética. Chineses andavam de um lado para o outro, transportando mercadorias e produtos diversos. Muitos deles destinavam-se aos juncos do Porto Interior, que não ficava longe. Numa das lojas viu algumas pérolas, colares e braceletes. Pensou em comprar uma para Ding Ling. E assim fez. Adquiriu uma bracelete de jade, depois de ter regateado o preço. Pagou em patacas e dólares de Hong Kong. Sentiu uma espécie de felicidade quando colocou a bracelete no bolso do casaco. No ar notava-se um odor de ópio que vinha de uma casa de chá. Muito perto estava a cozinha aberta para a rua assinalada pelo padre Benedito Augusto para o encontro entre os dois. Pediu um pouco de arroz com porco assado e um chá. O chinês ficou a vê-lo comer e beber e, depois, fez-lhe sinal para avançar até dentro do beco. Amoroso seguiu por um corredor muito estreito entre paredes esverdeadas da humidade até que chegou a uma porta que estava entreaberta. Entrou e, ao fundo, na semi-obsuridade, estava sentado um homem, com um cigarro que não estava aceso entre os lábios, e uma navalha na mão direita que ia retalhando um pedaço de madeira. Levantou a cabeça e fez um sorriso acolhedor. Benedito Augusto, de vez em quando, marcava encontros em locais que o tenente desconhecia, mas que faziam parte da cidade chinesa de Macau, o seu Bazar. Ali o padre movia-se como se estivesse em casa. E quem ele convidava entrava num labirinto de que não conhecia a saída. Era a sua forma de mostrar que controlava os movimentos e as informações. Amoroso não tinha dúvidas que ele criara uma rede de contactos muito rica e secreta. 45 – Não sou um fantasma, tenente. Pode aproximar-se e ver que sou real. Se quiser tem aqui uma cadeira e uma cerveja para beber. Ou um cigarro, se quiser fumar. Ao contrário do que dizia, Benedito gostava de se mostrar como um fantasma que governava as almas a partir do mundo subterrâneo. O universo que muitos não conheciam e outros não desejavam conhecer. Não era inocente esta escolha. No seu jogo, Benedito gostava de ser dono do baralho de cartas ou das das peças de mahjong. Ali não se estava num território neutro. Amoroso sentou-se e agarrou na garrafa de cerveja que o padre lhe estendeu. Bebeu um pouco e voltou a focar a atenção nele. – Este mundo é curioso, não é tenente? Hipnotiza-nos. Vai mudar, não tenhamos dúvidas. Eu, por certo mudarei com ele. Mas ao contrário da sua amiga Ding Ling, não o quero mudar. Vou adaptar-me ao que me espera. E o tenente, que pretende fazer? Adaptar-se ou mudar o mundo? – Eu já tentei mudar o mundo, meu caro Benedito. Mas sobre o futuro tenho apenas uma certeza: não conheço as respostas para a pergunta que me estás a fazer. Benedito fez um sorriso e acendeu o cigarro. O seu rosto, por momentos, pareceu ficar rijo, como pedra. – Realmente a minha pergunta era errada. E é inútil procurar respostas para questões como esta. Ninguém sabe que decisões tomará. Eu compreendo-o, tenente. Percebo como se sente. Não há muito tempo, eu também me sentia perdido. Sem amigos. Sem identidade. Achava que não havia vida para mim que fizesse sentido. Melhor, sentia que não havia via nenhuma. Depois houve um momento, em Singapura, em que descobri o meu espaço. Fungou, antes de continuar: – Não me pergunte o que aconteceu. Não lho vou dizer. Mas há sempre uma vida. Há sempre um futuro, se o quisermos construir. Mas há limites para o que sonhamos sozinhos. E se amamos alguém compreendemos melhor esses limites. Mas eu não sou como o tenente. Acho que há vida para lá do amor por uma mulher. – Acha mesmo isso? – Para percebermos essa dura realidade temos de ter informação. E termos bons espiões. 46 Deu uma pequena risada. E tentou ver a reacção que as suas palavras despoletavam na cara de Amoroso. Este manteve-se silencioso. – Esta conversa não nasceu do acaso, ou porque me apetecia vê-lo. Tenho uma uma informação útil para lhe dar. Fu Xing colocou ao serviço do alemão Max Wolf a sua rede de espiões e de marinheiros. O negócio de heroína parece-lhe ter futuro. Pelo que sei, Macau será apenas um entreposto discreto para Hong Kong. Ali é que pensam fazer dinheiro. Aqui têm já um depósito bem defendido. Max prometeu-lhe que este pode ser o início de outros negócios. Legais. E ele quer a minha colaboração. Amoroso fez um sorriso cínico e olhou-o fixamente. Seria possível ler a alma do padre Benedito? As suas motivaçõs eram obscuras e a sua história também. O tenente tinha recebido um relatorio de um dos seus novos agentes, colocado em Singapura. E percebera que o homem que tinha defronte dele tinha outras vidas. Não eram cartas que utilizaria agora, porque o jogo era outro. Mas, no futuro, nunca se saberia. Até porque ele sabia demasiado sobre o tenente. – E que vais fazer, Benedito? – Não tenho como fugir à teia de Fu Xing. Ele sabe que caminhos trilho e onde me encontrar. É um inimigo que não desejo ter. – Compreendo. Farás o seu jogo. E o meu. E, sobretudo, o teu. Será um equilíbrio difícil, senão impossível. Tu o saberás. A luz é só a outra face das trevas. – Também tem de decidir de que lado do tabuleiro está, meu caro tenente. O senhor Palha e a mulher não lhe darão tréguas. E investigar a morte do senhor Silva não lhe traz amigos. Pelo contrário. Eles cercam-no. Já descobriu mais alguma coisa? – Não. Mas há indícios. – Cuidado, tenente. Era uma despedida. Benedito acendeu outro cigarro e ficou a olhar para Amoroso, enquanto este caminhava para a saida. Cá fora, a noite conquistara o Bazar. A única luz que via era a de um candeeiro de petróleo, junto a um local onde alguém vendia comida. Ouviu vozes abafadas. Na sombra estavam homens, mulheres e crianças sentadas em pequenos bancos ou no chão a comer o que as pequenas taças que tinham na mão continham. 47 Continuou a caminhar para sair do Bazar. Ouviu um sussurro à sua esquerda. E um estronho, seguido de um silvo. Sentiu um impacto forte no ombro esquerdo. Caíu com o embate. Levou a mão ao braço e depois retirou-a cheia e sangue. Procurou a sua pistola, mas antes de o conseguir fazer, levou um pontapé na mão direita. Olhou para cima. Viu o cano de uma pistola apontada a ele e, mais acima, o de um chinês que o olhava fixamente. Ouviu a sua voz: – Zōi gīn! Ia puxar o gatilho. Mas o som do tiro não saíu da sua pistola e o homem que estava defronte de si caíu. O seu sangue jorrou para cima do tenente. Espantado, viu o rosto de Li Bei e de outros dois chineses que empunhavam pistolas. Agarraram-no e puxaram-no. Do nada apareceu um riquexó para onde o transportaram. Percebeu que seguiam a caminho da Rua da Felicidade. Antes de chegarem à “Noite Tranquila” pararam numa casa sem luz à porta e levaram-no para dentro. Amoroso deitou-se numa cama e procurou tirar a sua pistola Luger do coldre. Não lhe servira para nada, porque o ataque fora rápido. Alguém começou a tratar-lhe da ferida. – A bala entrou e saíu do seu braço esquerdo. Não vai haver problemas. A voz de Li Bei era reconfortante. A do tenente, um murmúrio: – Como sabiam que estava ali? – Ding Ling estava preocupada consigo. Tem sido seguido, dia e noite, tenente. Para seu bem. Descanse um pouco. Depois levá-lo-ei até ela. Passada quase uma hora, em que dormitou, Bei Li veio acordar o tenente. Depois levou-o até ao “Noite Tranqila”. Ding Ling esperava-o. Agarrou num copo com vodka e deu-lho. – Bebe. Faz-te bem. Ele assim fez. O olhar dela era preocupado, mas doce. Disse, com uma voz aveludada: – Sabes, às vezes sonho que quando estamos na cama, colados um ao outro, há algo no meio. Uma pistola. Pergunto-me: será sempre uma pistola o que nos junta e nos separa? Ding Ling atravessava a fronteira do silêncio que tinham jurado respeitar. Falava do passado e, também, do presente. Fora uma pistola que os juntara. Aquela Luger que agora não lhe servira para nada. – Queres falar disso, querida Ling? – Não. Mas penso nisso. – Porque me mandaste seguir? – Foi o que fiz de bem, não foi? – Talvez. Neste momento estaria morto, por certo. 48 Ela não respondeu. Ele fechou os olhos e depois procurou no bolso do casaco cheio de sangue e tirou uma bracelete de jade. Deu-a a Ding Ling: – É para ti. Comprei-a antes do atentado. Ela aceitou-a e retorquiu. Não simulou os seus sentimentos: – Já não sabemos o que é a bondade. Ficamos surpreendidos quando nos confrontamos com ela. Obrigado. Ele sorriu e depois disse: – Imaginas quem foi? Só vejo três hipóteses. Max Wolf. Joaquim Palha. Sofia Palha. – Eu riscaria o primeiro. Não lhe interessa problemas com as autoridades portuguesas. Os outros, sim. Podem ter tudo a perder com a tua interferência. Amoroso levou a mão ao braço. A dor continuava lá, para o recordar dessa noite. – Precisas descansar, querido tenente. Eu estarei aqui. Mas tens de dormir. Ding Ling falou com doçura. O seu rosto enigmático estava agora exposto à luz que iluminava a sala. Amoroso sentiu-se protegido. Algo que não acontecia há muito tempo. Muitas horas depois, Félix Amoroso foi levado até a um riquexó por Bei Li. Esta, com voz cândida, disse-lhe: – Tanto somos filhos do que queremos recordar como do que queremos esquecer. Mas é bom que o tenente não esqueça o que se passou. – Não esquecerei. – Faz bem, tenente. O problema não é a dor nem o amor. É sempre as desculpas que as pessoas dão para ficarem com o dinheiro. E sobre o que fazem para o ter. O resto, seja a violência, as traições ou a guerra não são os problemas principais. Só o dinheiro o é. Amoroso concordou. A luz encadeava-o. Despediu-se e partiu. O caminho, cheio de solavancos, foi penoso. Quando chegou a casa deitou-se, relembrando as últimas horas. Depois foi lavar-se e mudar de roupa. Quando voltou à rua foi até ao Grémio Militar para almoçar. Comeu um bacalhau cozido com grão que lhe fez recordar uma velha tasca junto ao quartel do Carmo, em Lisboa. Cumprimentou colegas militares e depois saiu, procurando evitar o sol inclemente que queimava as ruas e os prédios de Macau. Sentia-se dorido mas mais determinado do que nunca. 49 12. Às vezes as coisas são o que parecem. Para Ding Ling isso era óbvio. Sentiu a presença de Bei Li e o seu corpo ganhou vida. Olhou para a bracelete de jade verde que Amoroso lhe oferecera e colocou-a no pulso esquerdo. Era luz num mundo de escuridão, onde forças contrárias se opunham. Como num poema antigo chinês, sentia-se muitas vezes a dançar com a sua própria sombra. Mas, em momentos como aquele, parecia que a vida poderia ser um romance. A vida era sempre a história de um caminho e de um caminhante. A dela, sempre entre a força da água e a do fogo. Não sabia, nem podia renunciar, à missão a que se comprometera. Mas olhava para Amoroso ou para Bei Li e sentia que havia um espaço para a esperança. Nas longas noites observava muitas vezes aqueles que no “Noite Tranquila” buscavam a fortuna e que estavam perdidos num mundo sem passado e sem futuro. Presos por fios num presente onde eram simples marionetas. Personagens de um jogo de sombras que não manipulavam. Eram refugiados do tempo, sobreviventes de um mundo que não tinha contemplações, muitas vezes fantasmas de si próprios, incapazes de ver o reflexo dos seus fracassos. Jogavam a vida numa noite. Viam-se ali, com dinheiro e com uma garrafa e uma mulher nas mãos, e julgavam-se eternos. E senhores de algo que nunca seria seu. Tal como aqueles que se viam ao espelho e imaginavam ser estadistas ou líderes. Mas então chegava o vento forte e destruía esse país de fantasia onde reinavam. A quem é que interessava a verdade? A ninguém. Bei Li aproximou-se e passou-lhe a mão pelo pescoço e pelo cabelo. Arrepiou-se e Bei Li não deixou de notar isso. – Os nossos homens estão prontos, Ling. – Está na hora, não é? Pensas que temos a hipótese de sobreviver a tudo isto? Penso nas coisas que destruí para chegar a este momento. – Que destruímos. – Não me esqueço de ti, querida Bei Li. A confiança é uma coisa estranha. Quando te conheci percebi que haveria uma ligação indestrutível entre nós. Não me enganei. – Nem eu. – Sim, foi um prémio para ambas. Porque muitos vêem a vida como um tráfico. É certo que passamos a vida a fazê-lo. Traficamos tudo. Mercadorias, ideias, afectos, recordações, amizades. Alguns fazem-no por gosto. Outros, por necessidade. Outros ainda por obrigação. Nós traficamos confiança e lealdade. É uma coisa bela. 50 Bei Li nada disse mas o seu olhar mostrava o que sentia. Amor. – Vamos? O caminho até ao Porto Interior foi feito através das ruas mais escuras. Quando ali chegaram, Li Bei dirigiu-se aos homens e disse-lhes o que esperava deles. O ataque à casa dos seus inimigos teria de ser inesperado, rápido e fulminante. Aquela hora Amoroso regressara ao refúgio de Benedito, aquele local escondido da rua dos Mercadores. Este, quando o tenente entrou, não se mostrou surpreendido. – Já sabia que tinhas sobrevivido. Sentia o que poderia acontecer. Mas estava longe de imaginar que te tentariam matar aqui, no coração do Bazar. – Talvez tenham tentado por ser aqui. Para a polícia seria o resultado de um assalto numa zona onde os portugueses não costumam vir à noite. – Mas tu és militar. Tens uma missão secreta. Não acredito que o Governador não mandasse investigar o que te pudesse ter acontecido. – Quem sabe? Benedito não respondeu. Sentou-se para fumar um cigarro. – Percebeste agora o perigo que corres. E que eu também me arrisco a correr. Quem sabia que estavas aqui, estava ciente de que vinhas ter comigo. – Quem sabe que vives aqui? – Fu Xing. Alguns dos meus contactos. Quem vive aqui perto. Eu espio. Mas também sei que posso ser espiado. A sala onde estavam praticamente não tinha móveis. Três cadeiras, uma mesa onde estava uma lamparina que pouca luz dava e uma escrevaninha encostada a uma das paredes. A simplicidade perfeita. Se tivesse de fugir, Benedito pouco tinha para levar. Este disse: – A luz garante a segurança na escuridão. Por isso gosto de me refugiar nas sombras. Mas não é suficiente. Especialmente neste mundo onde todos preferem evitar mostrar a cara. Meu caro tenente, estás a aprender uma arte muito difícil e arriscada. Ver sem ser visto, saber sem dar nada, ou quase nada, em troca, seduzir sem ser seduzido. Há quem tenha lido os mesmos livros. Amoroso aconchegou-se na cadeira de bambu onde se sentara. O formigueiro gerado pela ferida no braço não ajudava à sua concentração. Sentia a falta de ópio para afastar as dores. As físicas e as da alma. Mas isso agora era secundário. Sentia que estava próximo do assassino de João Carlos da Silva. O atentado não fora por causa dos negócios de Max Wolf, estava convicto. (Continua)
Fernando Sobral h | Artes, Letras e IdeiasO Jogo das Escondidas – Capítulos 31 ao 40 XXXI Amoroso não percebia o que Benedito invejava na sua vida. Mas não replicou. Mudou de assunto: – Bem, se Max Wolf quer guerra, vai tê-la. Ela não dará a outra face. Se é só uma forma de pressão, não resultará. O bom senso de Ding Ling é escuro. Selvagem. – Sabe, tenente, Macau é apetecível. Não sei qual é o verdadeiro jogo de Wolf. Se quer só aproveitar esta desorientação portuguesa aqui e em Lisboa. Não sabemos se há mesmo negociações para vender o território à Alemanha. O dinheiro decidirá. E o patriotismo também. Só que Max pode querer aproveitar a brecha e abrir espaço para se estabelecer. Sabe como é. Dêem poder a um homem sobre os outros, e não demora muito até que ele perceba que não há limites para o seu próprio poder. E nenhum homem a quem se der esse comando será honesto durante muito tempo. Amoroso tossiu. Estava demasiado fumo. – Sim, qual é mesmo o jogo de Wolf? E qual será o futuro de Macau? Os dedos da mão direita de Benedito Augusto cirandaram à volta do copo de cerveja que tinha à sua frente. Disse: – Portugal, para mim, já não existe. É só uma ideia. Está lá longe. Macau está aqui. E sempre se salvou. E isso interessa-me. É a minha promessa de salvação na Terra. Quando cheguei à Ásia, buscava um clarão, que me iluminasse o caminho. Como dizia alguém, até aí só me tinham dado uma pequena vela para acender. Vi então as cores de um panchão. Encheu-me o coração. Percebi que era possível viver mais perto dos céus. – Porque te tornaste jesuísta, Benedito? – Fui um miúdo desobediente. Queria ordem. Com os jesuítas aprendemos a obedecer. É a nossa formação. Funcionamos como algo sem vontade ou juízo, que pode ser mudado de um lado para o outro sem resistência. Sentimo-nos leves. Depois foi a sua história. No século XII viviam na pobreza e abdicavam de qualquer adorno. Vestiam-se de modo simples, só com batina e capuz, aprendiam a suportar a fome, a sede, a dormir sem tecto. Eram despojados de tudo. A simplicidade perfeita. Que coisa pode ser melhor do que podermos sair daqui para irmos embora, sem nada para transportarmos, para além do nosso corpo e espírito? – E como concilias isso com o dinheiro que te pago? – Por um espírito de missão. Só é pecado o que se julga que é. E acredito numa salvação que não tenha medo da fogueira. XXXII Amoroso já não tinha a certeza que existia a virtude. Os seus olhos brilharam. – Onde andará Max Wolf? – Ele vai aparecer. Ou me engano muito ou, uma noite destas, irá visitar Ding Ling. Ele precisa dela. – Vou esperar uns dias. Mas depois terei de actuar. O Governador vai perguntar-me o que se passa. E eu não sei. – Saberemos. É certo que, neste mundo, somos apenas ladrões do tempo. Um dia destes tornamo-nos dispensáveis e colocam-nos uma armadilha onde cairemos que nem tordos. – Somos fortes, Benedito. – É bom que pensemos isso. Quando Amoroso o deixou, Benedito Augusto pediu outra cerveja. Não esperava ninguém. Queria estar sozinho e esconder-se, mais uma vez, do mundo. E da sua vida. Preferia a noite às horas mais malignas do dia, do calor. Pensou no tenente Amoroso, já corrompido, sem o perceber, pelo Oriente. Mesmo que dissesse o contrário, não queria trocar esta vida, de álcool, de mulheres, do jogo, das sombras, pelo que restava do império português. Mas a solidão e a bebida e o ópio deixavam marcas. Mesmo se tinha uma mulher forte a seu lado, Ding Ling. Não conseguira contar tudo o que sabia ao tenente. Talvez porque quisesse ter os seus próprios trunfos nas batalhas que se desenhavam. Ou por medo. Ou porque o seu seu instinto de sobrevivência era superior a qualquer lealdade. Benedito Augusto pensou na sua própria vida e nos segredos que não partilhava com ninguém. Nem podia partilhar se queria continuar a dizer-se padre jesuíta. Desaparecia durante semanas de Macau. Secretamente, ia até Hong Kong ou Singapura, onde conhecera uma rapariga de remota origem portuguesa a que prometera vezes sem conta que deixaria de ser padre e casaria com ela. Nem sempre se sentia cómodo com estas diferentes máscaras. Mas eram elas que davam sentido ao conjunto de segredos que acumulara desde que deixara Portugal em 1910. Agora sabia que já não abandonaria a Ásia. Aqui perdera uma vida e ganhara algumas outras. Bebeu o resto da cerveja e pediu outra. Recordou o seu encontro, nessa tarde, com Fu Xing no Grande Hotel, que ficava no extremo oriental da Avenida Almeida Ribeiro. Reformara-se da pirataria e, agora, pensava dedicar-se a negócios legais em Macau. Falava-se que iriam ser licitados os monopólios do tráfico de ópio e da lotaria. E Fu Xing, que tinha dinheiro para investir, desejava ter uma percentagem nesse lucrativo negócio. XXXIII Tudo era um jogo, como ele dissera com um sorriso maldoso: – Vendemos as nossas almas, jogamos com elas e voltamos a ganhá-las. Fu Xing deixara de usar camisas encarcadas de suor devido ao calor sufocante. Agora vestia um fato de linho claro e ia deixando crescer um bigode. Não cortara, claro, os laços com os antigos companheiros. Estes tinham juncos e lorchas cheias de armamento em pleno Porto Interior, incluindo modernas espingardas Winchester. Pareciam barcos de pesca ou de transporte de mercadorias mas, na realidade, a sua actividade era outra. A polícia não ía ali, por isso não era necessário estarem muito disfarçadas. Fu Xing não temia o passado. Afinal, por ali os piratas eram prezados. Gastavam muito dinheiro e os portugueses desviavam o olhar se eles circulassem, sem muito ruído, pela Rua da Felicidade ou pelo Porto Interior, como se não os vissem. Fu Xing ocupava agora parte do seu tempo a encontrar-se com comerciantes chineses. O seu centro de operações era o Grande Hotel, onde também podia jogar fantan. Perto do mar, encontrara um refúgio perfeito em terra: um lugar com amplas salas e confortáveis quartos. Só o cenário mudava, porque o resto era igual: ópio, mulheres, falsos amores e traições. Benedito Augusto era agora o seu correio em Xangai e Singapura. Levava mensagens para os seus contactos e trazia as respostas de volta. Ninguém o pressionava, porque andava disfarçado de padre. Perguntara a Benedito: – Quando partes para Xangai? Tenho recados para levares. – Dentro de dias, mas ainda não sei. Tenho, primeiro, de resolver um problema aqui. – Tu tens problemas? – Soou-me que os alemães poderão comprar Macau. E se isso acontecer… – Estarás seguro. – Como sabes? – Ontem esteve aqui um alemão. Como se chama ele…? Max Wolf. E fez-me uma bela proposta. – Um negócio? – Sim. Ele não sabe se Portugal vai vender Macau. Se vender, muito bem. Se não vender, nada correrá mal. O seu objectivo é outro. Ganhar dinheiro. Muito dinheiro. Benedito viu o olhar guloso de Fu Xing. – Que te propôs o alemão? XXXIV O chinês olhou-o desconfiado, mas depois deu uma pequena risada. – Posso contar-te. Tu poderás ser muito útil. O alemão tem heroína, uma droga muito mais potente do que o ópio. Traz euforia e também conforto. Os mais novos vão preferi-la. Ele tem uma fábrica que transforma ópio em morfina e, depois, em heroína. Falta a distribuição. E é isso que ele quer que eu faça. Ele tem o produto e eu os meios. Acho que é um bom negócio. E muito rentável. – E como sabes que isso não é uma grande mentira? – Padre, eu fui pirata, mas sei mais do que aparento. E sei ler as pessoas. Também tenho bons informadores. Max Wolf tem um químico alemão a trabalhar com ele em Xangai. Numa fábrica escondida, de que nem as tríades desconfiam. Fica numa fábria de cerveja. Wolf e o químico trabalharam numa empresa alemã, a Bayer. Onde aprendeu a extrair a heroína. Eles são negociantes, padre. Eu também o sou. O dinheiro une-nos. Nos olhos de Fu Xing havia determinação. Por ali não navegavam fantasias contadas por marinheiros e soldados da fortuna, e que muitas vezes embalavam os sonhos de quem as escutava. Estava certo das suas escolhas e elas tinham a ver com o poder e a riqueza. Nada mais. Benedito levantou-se e saíu. Inspirou o aroma da noite, ainda contaminado pelo odor da pólvora queimada. O incêndio ainda não se tinha extinguido. Vivia-se uma falsa paz. Parou, fascinado pelas as águas do delta do Rio das Pérolas e olhou para os barcos chineses com a sua cobertura arrendondada, onde se abrigavam as famílias. Pequenos face às lorchas e aos poderosos juncos de grandes velas. Fora o mar que trouxera os portugueses até Macau. Fora ele que permitira que muitos deixassem Portugal, terra onde era difícil deixar de ser pobre. Mas o mar cansa os povos. Alguns, como ele, queriam afastar-se do mar e dos seus fascínios e encontrar a paz em terra. Onde as águas revoltas não o perturbassem. O mar tudo prometia. E tudo afogava. Caminhou pelas ruas, polvilhavas de chineses, sentados em pequenos bancos, ou no chão, a comer arroz branco, cozido e sem sal, com pequenos edaços de carne e de peixe e legumes salteados. Habituara-se ao aroma forte das comidas chinesas, dos seus fritos, que como noutas cidades orientais, eram omnipresentes. Sabia para onde se dirigia. O pequeno quarto onde dormia não ficava longe. XXXV O mundo muda. Isso é inevitável. Talvez isso seja a única coisa que é inevitável, dizia, com voz serena, o governador Rodrigo Rodrigues. E acrescentou: – Gosto da forma como vê o mundo e as suas mudanças, tenente. No fundo, como ele é. Observa as verdades e as mentiras e sabe como navegar entre essas duas grandes ondas sem ser submerso. Félix Amoroso sentiu-se tocado pela amabilidade: -O senhor tem uma visão demasiado bondosa de mim e das minhas acções. – Até agora não me desiludiu. Estavam na varanda do hotel Boa Vista, um local que parecia atrair ambos quando necessitavam de falar de coisas que consideravam importantes. O tenente transmitira-lhe as novidades sobre o assassinato de João Carlos da Silva. Tinha algumas pistas, mas não tinha certezas. Disse que tinha ido à casa deste e a inspeccionara mas escusou-se a mencionar o que descobrira lá. Especialmente uma carta de amor escondida por detrás de um espelho e assinada apenas com uma inicial. Amoroso não tinha certezas sobre quem a enviara. Mas suspeitava. Lá dentro a festa continuava, num daqueles fins de tarde irrepetíveis de Macau. Escutava-se o som da banda de Borromeo Lou, um pianista de grande talento. Viera das Filipinas, e era a maior atracção do Bodabil, uma espécie de jazz. O sucesso que alcançara em teatros de Manila, como o Savoy e o Lux, e também no Carnaval da capital filipina, fora presenciado por Ana Ledesma, uma filipina que casara com um advogado português de Macau. Para ela era mais do que uma banda, porque eles prometiam um espectáculo total. Aproveitando uma ida de Lou a Hong Kong, tinha conseguido desviá-lo até ao Boa Vista, prometendo-lhe um público entusiástico. Muitos dos temas eram baladas sensuais cantadas por Miss Toytoy, a vocalista chinesa e uma artista completa. Convidavam à dança e ao amor. Mas o espectáculo era mais vasto. Amoroso gostara muito do barítono Datu Mandi (de origem Moro, que também cantava excertos de óperas). XXXVI Barromeo Lou, no início do espectáculo, dissera: “Se estiverem doentes, venham e ficarão curados. Se estiverem quase a morrer, venham e dêem uma boa gargalhadas antes disso acontecer. Se estiverem bons, venham e ajudem a transportar as vítimas da fobia do Jazz”. Ninguém deixara de rir. A boa disposição reinava. E depois dançara-se. Lá estava a nata da sociedade macaense, incluindo Joaquim José Palha e a mulher, Sofia. Palha aproximara-se de Amoroso e inquirira-o sobre o acordo que lhe propusera. O tenente respondera-lhe que falaria em breve com o Governador. Não se tinha esquecido. Palha afagara-lhe o braço e sussurara: – Tem tudo a ganhar, tenente. Sabe que sim. Deixara-o e voltara para conviver mais um pouco com os seus amigos. E dera espectáculo, quando dançara com Miss Toytoy. Era um excelente dançarino, como Amoroso podia testemunhar. O Governador colocou um cigarro entre os lábios e acendeu-o. Após a primeira baforada, olhou para o tenente e disse: – Uma das primeiras coisas que aprendi na vida é que é uma má ideia conheceres os teus heróis porque, geralmente, eles decepcionam-te. – Aconteceu-lhe isso, Governador? – Acontece a todos nós. Na política é fácil isso suceder. Amoroso sentiu que o Governador perdera algumas ilusões que tvera no passado. Talvez com outros republicanos e membros da Maçonaria como ele. – Ainda assim as pessoas precisam de memórias. Tal como as nações. Sem elas, o que resta? Nada. O que seria de Portugal sem as suas memórias? Sem um passado de que nos possamos orgulhar, como podemos ter alguma fé no futuro? Não é por acaso que nos agarramos a ele. Talvez porque não haja mais nada a que nos podemos segurar para não cairmos de vez. Foi esse o trunfo dos republicanos. Quando a Monarquia não soube o que fazer face ao Ultimato inglês, os republicanos recuperaram Luís de Camões, o patriotismo e o passado. Isso conquista os corações e as almas quando sentimos que o mundo está a ruir à nossa volta. Só que isso não chega. Eram palavras de um homem cansado. Talvez desiludido. Ou então, isso era fruto daquele entardecer e daquela música que fazia ecoar imagens que o tempo tentara, sem o conseguir, apagar. XXXVII – Gosta de história, tenente? Aprendemos muito com ela. Pense numa coisa. Quando os impérios Ming e Otomano fecharam a Rota da Seda, os portugueses descobriram o seu destino. Dobraram o Cabo da Boa Esperança e fizeram da geografia comercial o seu legado à Europa. A Rota da Seda portuguesa fez-se por mar, evitando desertos, seduzida por sereias e atormentada por monstros marinhos. Lisboa tornou-se, por momentos, Veneza e Constantinopla. Foi uma utopia, tão sedutora como a que Camões cantou nos “Lusíadas”. Por momentos os portugueses foram deuses. Portugal deve parte do seu passado à Rota da Seda. Por isso Macau é tão especial para mim. E para si, não? – Passou a ser quando conheci esta cidade melhor. E em especial as suas pessoas. Tão diferentes, com cada um à procura do seu destino. Uma das coisas especiais aqui é que as coisas nunca acontecem como se espera. – Nunca acontecem. Não conseguimos manobrar o futuro. Bem, chega de conversa séria. Este é um dia para nos divertirmos. Vou voltar para dentro. Fica? – Fico mais um pouco. O Governador cruzou-se com Sofia Palha que caminhava altiva, como sempre. O seu vestido fazia jus à sua estrutura física. Era alta e musculada. A sua face ainda transmitia juventude. Aproximou-se do tenente e, sorridente, disse: – Gostei muito da apresentação de tango há uma semana. Veio? Não o vi. É a dança do amor. Há demasiado contacto carnal para o gosto do meu marido, mas eu senti a força que transmite. Gostaria de aprender a dançá-lo. Mas, para isso, precisava de um bom par. Dizem-se que agora o que está na moda é o foxtrot. Pelo menos em Xangai. Aquilo é uma cidade… Mostrava ter ideias firmes, mas a sua voz era sedutora. Aproximou-se mais do tenente. – O seu nome é curioso. Amoroso. Aplica-se à sua vida? – A necessidade, minha senhora, não conhece leis. Essa é uma das primeiras normas da diplomacia. Considere o seu marido, por exemplo. O costume, que é quase sempre a base de qualquer lei, dirá que, numa festa em sua casa, ele deve estar presente para entreter os convidados. Mas, imaginemos, que não está, porque tem necessidade estar a trabalhar num dos seus negócios. A necessidade, ignorando o costume, obriga-o a ficar longe, desapontando quase todas as pessoas. Mas alguém pode ter vantagens com base nessa necessidade. XXXVIII Ela fitou-o, espantada: – O que quer dizer com isso, tenente? O olhar de Sofia era mortal. – A sua consciência está tranqula, minha senhora? – Sempre esteve. Mas não compreendo as sua palavras. Elas parecem implicar que não deveria estar. Amoroso tirou do bolso do casaco uma carta. Abriu-a e colocou-a defronte da face de Sofia Palha. Esta não disse nada, mas os seus olhos mostravam tudo. – Reconhece a letra? É sua? – Onde encontrou essa carta, senhor tenente? – Onde pensa que foi? Sofia Palha desviou a cara para o horizonte, onde a luz começava a desaparecer. – E o que pretende fazer com ela? Fazer com que me sinta culpada de algo e comece a chorar? – Eu só quero descobrir quem matou o senhor João Carlos da Silva. Não me interessa levantar o véu sobre outros segredos. Só aqueles que têm a ver com esse assassinato. Foi a senhora que o matou? Ela fez um gesto de repulsa: – Eu? Nunca? Eu amava-o. – Há, como sabe, uma linha muito fina entre o amor e o ódio. Entre a morte e a vida. – Não, tenente. Amei-o até ao fim. Foi uma paixão que durou meses. Até à sua morte. – Sem o senhor Palha saber? – Sem ele saber. Era um segredo só nosso. E o João era um homem em quem se podia confiar. Eu mandava-lhe pequenas cartas. Só assinadas com a inicial S. E ele sabia que as tinha de destruir logo a seguir. – Esta ficou. – Uma recordação. Não o deveria ter feito, mas compreendo-o. Era um homem apaixonado. Sofia Palha voltara a ganhar a segurança que perdera momentaneamente. Os seus olhos aceitavam o desafio do tenente. Fez um sorriso triste: – Eu também quero descobrir quem o matou. Mas, diga-me, tenente. Já estamos a falar há algum tempo. Se alguém nos vir aqui, só os dois, o que pensará? Eu espero que goste de estar comigo. Não consigo pensar em nada melhor do que isso. Mas se andarmos um pouco e formos para um local onde todos nos podem ver, não levantaremos suspeitas. E não estaremos sujeitos a mexericos, como se continuarmos aqui e alguém nos surpreender. Eu posso contar-lhe alguns segredos. 39 O tenente sabia que Sofia Palha detinha informação muito útil. Mas o seu jogo era perigoso. E Amoroso, nesse momento, não queria arriscar. – Podemos ficar por aqui na nossa agradável conversa. Irei saber se o que me diz corresponde à verdade. – É a verdade. O tenente fez uma ligeira vénia e foi em direcção do local onde ainda se dançava. Foi despedir-se do Governador e da sua mulher. A noite chegava. À porta do hotel entrou num riquexó que o levou até à Rua da Felicidade. 10. Os olhos de Ding Ling eram muito escuros. Mas, para Félix Amoroso, olhá-los era como ver o fundo do mar. Vemos tudo, sem saber nada. Tal como eles, a sua alma era insondável. Se fossem claros, de um jade muito límpido, poderiam deixar ler o que ela pensava? O tenente não tinha a certeza, mesmo naquele momento em que a sua mão estava colada em cima do seio esquerdo dela e Ding Ling parecia vulnerável como nunca. Os seus corpos estavam quentes, cobertos de transpiração e colados um ao outro. Ela soergueu-se e beijou-o na boca e no peito. Depois voltou a deitar-se, totalmente encostada a Amoroso. A sua respiração voltara a ganhar a serenidade que ele conhecia, depois de momentos de exaltação. Quando se tinham deitado ela colocara-se em cima dele. As suas mãos seguraram-lhe o peito. Tinha soltado o cabelo e, enquanto se movia lentamente, este caíra-lhe para a face, escondendo-lhe os olhos. Amoroso tentou erguer-se para se perder nos cabelos dela, procurando os seus lábios para a beijar. Não conseguiu, porque a força de Ding Ling empurrava-o para trás. E ela, parecendo frágil, era mais forte porque também usava a força do tenente. Havia algum desespero na forma como os seus corpos chocavam. Depois deixaram-se cair, em silêncio. Nem sempre os sentimentos podem esperar, sussurrou Ding Ling. Como se admitisse alguma culpa, coisa que nela era improvável. A sua fortaleza erguia-se sobre a intimidade e a lealdade. Era isso que, mesmo contra o vento, oferecia a Amoroso. Não era pouco. A mão dele voltou a explorar a pele dela, deslizando até ao sexo, onde ficou. Ela não se mexeu. Mas ele sentiu que o seu corpo passara a estar vigilante. 40 “Formosa como um anjo, mas com um punhal na boca”, dissera-lhe ele um dia. Era sorrira. Ding Ling nunca lhe pedira nada em troca das noitas em que o seu corpo oferecia o prazer que Amoroso ambicionava para poder repousar. Durante quase uma hora deixaram-se estar ali, murmurando perguntas e respostas, com o coração a responder ao coração, os olhos a ler os olhos, e as mãos procurando o corpo do outro. Até que por fim Ding Ling se levantou e foi acender uma vela que deixava apenas um pequeno rasto de luz. Assim o seu corpo nu era mais misterioso e ela deixou-se ficar, por momentos, encostada a uma parede enquanto ele a contemplava. – Gostarias que eu cantase para ti? – Não. Isto é, gostaria, mas tu também estás cansada. – Disparate. Dormi bastante esta manhã. Posso cantar, muito baixinho. Assim fez. A sua voz recordou uma canção melancólica que aprendera, talvez em Xangai. Falava de amores perdidos na noite, que desapareciam como fantasmas e depois regressavam através de outros corpos. Mas o amor era o mesmo. Depois sentou-se numa cadeira de bambu e deixou ficar-se ali, sem se vestir. – Está escuro. Queres mais luz? – Gosto de te ver assim. Impossível de decifrar totalmente. Ele levantou-se e aproximou-se dela. Afagou-lhe a face e o pescoço e ela encostou a cabeça ao corpo dele. Ele contou-lhe a conversa que tivera nesse final de tarde com Sofia Palha. Ding Ling levantou-se para o fitar nos olhos. – É difícil que confies neles. Nela ou no marido. Cada um faz o seu jogo. Talvez o mesmo jogo, com cartas diferentes. Eles são mestres do subterfúgio, idolatram a intriga, a sedição. E a sedução. Trairão qualquer pessoa para conseguirem o que querem. Amanhã serás tu. No dia a seguir o senhor Wolf. Ela poderia ter interesse no corpo do senhor Silva. Mas a carne é, muitas vezes, a porta de entrada para a alma. E o senhor Silva era muito frágil. Li Bei sabia isso. – Achas que algum está ligado ao alemão? – Não duvido. Se chegasses a Macau com uma ideia de negócio como o senhor Wolf, quem procurarias conhecer? Palha é um homem com muitas conexões. E a mulher não olha a meios para conseguir atingir os seus fins. Um deles, senão os dois, estão ligados a ele. E talvez o senhor Silva estivesse também, por via disso. (continua)
Fernando Sobral h | Artes, Letras e IdeiasO Jogo das Escondidas – 30 primeiros capítulos Deve afirmar-se que o céu é, sem dúvida, corruptível. Cristoforo Borri Collecta Astronomica, 1631 Macau, 1923 I Benedito Augusto naufragou duas vezes. E duas vezes sobreviveu. Por isso gosta de lembrar, a quem o escuta, que há uma velha lenda dos marinheiros que diz que, no terceiro naufrágio, se alcança a imortalidade. Apesar de acreditar que tal possa ser possível, nunca o tentou comprovar. Hoje prefere a terra ao mar, Macau em vez dos mares do sul da China. De resto, em Benedito Augusto nada é o que parece. Desde logo, esse não é o seu verdadeiro nome. O de nascimento, de que não há registo, ficou perdido em Lisboa. Desde que apareceu em Macau que é conhecido como padre Augusto, mas nada garante que, pelo caminho, desde que percorreu os mares e as terras da Ásia antes de chegar a Macau, não teve outros nomes e outras vidas. O tenente Félix Amoroso sondou-o com o olhar, intrigado. De cabelo preto, com uma pequena barba onde já despontavam alguns cabelos brancos, o padre Augusto vestia uma cabaia de ganga escura. A sua face era morena, com grandes olheiras, que salientavam ainda mais uns olhos negros incandescentes. Era um mistério. Mas, mesmo assim, era o mais precioso agente do tenente. Falava cantonês, inglês, francês e, claro, português. Como pretenso padre, jesuíta segundo dizia, penetrava em lugares interditos a outros ocidentais. Ouvia atrás de portas que se fechavam a sete chaves quando outros as tentavam ultrapassar. Sabia perscrutar a alma dos outros como ninguém. Defendia-se, dizendo que sendo o Diabo a origem de todos os males, o seu objectivo era vencê-lo. O Diabo tentava todos os seres humanos. Por isso, saber o que cada um queria não era um pecado. Saber os segredos dos que queriam o Mal era uma acção ao serviço de Deus. Mesmo que pago pelo vil metal que corrompia os homens. Amoroso não sabia se a argumentação do padre era verdadeira ou falsa. Mas isso era, para já, indiferente. Ele era-lhe útil. Benedito Augusto levou aos lábios o copo de cerveja que tinha à sua frente. Depois de, com evidente prazer, saciar a sede, disse, sorrindo: – Não sou ninguém, meu caro tenente. Posso ser toda a gente. Gosto de ser invisível. Como um anjo disfarçado no reino das trevas. – Ou um diabinho mascarado no mundo dos que se julgam anjos. – Se isso o conforta… II Félix Amoroso gostava que Benedito Augusto continuasse a ser invisível. Olhou à volta. Estavam numa espécie de taberna tão escura que apenas se viam sombras recortadas pela luz mortiça de umas lâmpadas de óleo que não eram limpas há muito tempo. Ninguém se importava. Os que ali estavam queriam que as suas faces passassem despercebidas. Marinheiros com tatuagens, com sinais e rugas que eram fruto de passados impossíveis de descobrir, trabalhadores das docas, piratas. Homens que tinham tentado descobrir o paraíso e que tinham escorregado no seu caminho. Por desejo dos outros. Ou por culpa própria. A vida era um contínuo labirinto. E nem todos queriam descobrir a saída dele. Ali, naquela pequeno local sem nome junto ao Porto Interior, desenhavam-se traições e conspirações. Marinheiros sôfregos de terra firme vinham gastar o dinheiro das suas aventuras legais ou ilegais. Ou procurar uma mulher, antes de voltarem ao mar. Mas todos falavam baixo. Um grupo de homens chineses estava sentado num recanto. As suas faces dificilmente eram visíveis. Na mesa que ocupavam, uma chama de uma vela movia-se com a sua respiração. Bebiam, enquanto pareciam esperar alguém. Também ali estavam alguns homens solitários, quase todos ocidentais, perdidos nos seus pensamentos e na vida. Era de uma conspiração que Benedito Augusto queria falar ao tenente Amoroso. Escutara-a ali. Às vezes o tenente tinha a sensação que o padre Augusto tinha um tom ressentido. Muitas vezes sarcástico, mas outras vezes parecia alguém que se queria vingar. Dos outros, de si próprio, do que vira e do que algures fizera ou deixara por fazer. Como ele, sabia que não havia inocência no mundo. Como quase todos os portugueses, tinham, ao longo dos séculos, perdido demasiado tempo e energia a sobreviver. Ele próprio o sabia. Sobrevivera a La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial, antes de rumar a Macau. O tenente tinha um perfil esguio, quase duro, mas aparentava uma doçura e elegância no olhar e na sua forma de falar e sorrir. O seu bigode estava bem aparado. A cor morena ganhara contornos dourados por causa do sol. Apresentava sinais de fadiga e falta de horas de sono nos seus olhos amendoados. Apesar de habituado à linguagem das armas, movia as mãos com delicadeza. III Talvez por isso, quer Benedito Augusto, quer Félix Amoroso, embora parecessem vir de mundos diferentes, tinham tanto em comum. A sua semelhança aproximara-os. Ou um segredo, que, receosos, ambos partilhavam. – Meu caro Amoroso. Eram dois homens. Um, chinês. O outro deveria ser europeu ou americano. Falavam inglês, mas o ocidental, apesar de ser loiro, era de outro país. Nunca o tinha visto. Conversavam em sussurro, num canto. Eu, por acaso, estava na mesa mais próxima, com um pirata que quer reformar-se. Eles falavam de Macau e da sua venda. – Da venda de Macau? – Sim, segundo o ocidental, Portugal vai vender Macau à Alemanha. É um segredo, mas isso vai realizar-se brevemente. Parecia preocupado em arranjar dinheiro para comprar a simpatia de quem era importante em Macau para que tudo corresse sem problemas aqui, depois do Governo de Lisboa anunciar a venda. Amoroso franziu a testa. Nunca tinha ouvido nada sobre esse assunto. – E não soubeste mais nada? De onde vinha o chinês? – Ele costuma estar por aqui. Tem um barco. Acho que ou é pirata ou, então, faz contrabando. De arroz, de ópio, de seda. Mas deve dar-se bem com as autoridades e com as tríades, porque não parece ter receio de nada. É preciso que existam piratas para que se justifiquem gastos e custos de muita gente, da administração às empresas de seguros marítimos, não é verdade? – Achas que isso é assim? Benedito Augusto fez um esgar: – Hoje é difícil ser puro e inocente. – Como pretenso padre, deverias acreditar nisso. – Sou padre. Formei-me num colégio jesuíta. Conheci a sua história. Aprendi muito com eles. Sabe como foi, já lhe contei, tenente. Tive de fugir de Portugal, quando chegou a República. Queriam enforcar os padres, como eu, nos candeeiros. Acabei por vir parar aqui. E o tenente, porque veio para Macau? – Para descansar da guerra, meu caro padre. Dos pesadelos e dos fantasmas. – E encontrou paz aqui? – É mais fácil falar com os deuses aqui do que em Lisboa. Félix Amoroso encolheu os ombros. Fungou: – O que me dizes é muito vago. Que posso eu investigar com isso? – Saber se há fumo no meio do fogo, não? Descobrir quem é o ocidental. Deve andar por aí. Quanto ao resto eu acabarei por saber. IV O tenente tirou um envelope do bolso e passou-o discretamente para as mãos de Benedito Augusto. – Está aí tudo o que te é devido. – Confio em si. Colocou o envelope no interior da cabaia. E voltou a dar um gole na cerveja. Amoroso sentiu-se, por momentos, incomodado. O chão estava muito sujo. Tal como a mesa e os bancos onde estavam sentados. Este era um local de trânsito, entre o mar e terra firme. Os mais endinheirados, depois, deveriam ir para os bordéis, ou para casas de ópio e de jogo na Rua da Felicidade. Onde as portas, como o desejo, eram vermelhas. Diziam que esta era a cidade dos pecados. Como se o resto do mundo fosse diferente. Era um porto onde alguns se escondiam do passado e outros se refugiavam das incertezas do mar. Sentiu-se esgotado, estranhamente desperto e sem sono. Lá fora, a cidade dormia tranquilamente. Ouviu a voz do padre Augusto: – Em Macau não deveríamos olhar para o sol. Cega-nos com sonhos irrealizáveis. A sua voz era calma e segura. Reconfortante, para quem não o conhecia nem poderia desconfiar dele. O tenente respondeu: – Deus, às vezes, está ausente em parte incerta. Era o que acontecia ali, onde apesar da presença das força de segurança portuguesas, as sociedades secretas controlavam as ruas e os becos. – Deus deixa-nos ver. E decidir. De dia vemos o que os outros nos querem deixar ver. De noite podemos vislumbrar o que devemos ver. As sombras iluminam mais do que a luz. Amoroso sorriu com as palavras do padre Augusto, um homem tão sombrio como a escuridão da noite. Sentia que ele queria destruir o mundo que conheciam, para que fosse possível construir, a partir das suas ruínas, um outro. Queria uma nova ordem que restabelecesse o equilíbrio entre o céu e o inferno. Como se tal fosse possível. Augusto voltou a falar: – Talvez seja o momento de mudarmos tudo. Não podemos ver para lá do horizonte, mas sinto que algo se aproxima. E não é bom. O tenente Amoroso pensou, por momentos, na chinesa Ding Ling. Ela poderia ser um futuro bom, se acreditasse que isso ainda era possível. V Por isso não escutou as palavras do padre Augusto, que soavam a despedida: – Lembra-se do jogo das escondidas, tenente? Em crianças, contávamos até cem, com os olhos fechados, antes de podermos ir à procura dos que se tinham ido esconder. Trouxemos esse jogo de Portugal para Macau. E continuamos a jogá-lo aqui. Mas, às vezes, fechamos os olhos e não fazemos intenção de descobrir quem está escondido. E escondemo-nos tão bem que temos medo de voltar a aparecer. 2. Os olhos de Ding Ling eram negros. Tão escuros como a cor do seu cabelo, comprido, mas enrolado e travado por agulhas vermelhas. O cheongsam branco, com dragões verdes nas mangas, que vestia, ajustava-se perfeitamente ao atraente corpo da chinesa. Nos dedos anelares cintilavam anéis de jade verde e de ouro com esmeraldas. Caminhou até junto do tenente Félix Amoroso, entre a nuvem de fumo que se movia muito devagar dentro da sala. A luz das lâmpadas de gás era ténue, mas mesmo assim era visível o brilho hipnótico dos seus olhos. Algo que Amoroso bem conhecia. A sua voz era aveludada e acolhedora: – Deseja um chá, tenente? – Se tal for possível. Ding Ling aproximou-se de uma jovem chinesa, a quem fez o pedido. Esta retirou-se sem falar e sem olhar para o tenente. – Os seus empregados são todos assim, silenciosos como gatos, menina Ling? – Gosto do silêncio. Traz-me conforto e segurança. Em grande parte da “Noite Tranquila”, na discreta casa de jogo e de ópio de Ding Ling, na Calçada das Verdades, quase não se escutava o ruído das conversas. Quem procurava a tranquilidade tinha de a procurar. Os seus clientes eram selectos. Tal como as cortesãs que ali se encontravam. E isso tinha um preço. “Porque tudo na vida tem um preço”, dizia, sem emoção visível, Ding Ling. Amoroso sentiu o odor do fumo do ópio que vinha do piso superior e que se misturava com o do tabaco. Ela fez sinal para subirem. Ele seguiu-a até a uma pequena sala, onde se sentaram junto a uma mesa de madeira de cerejeira. VI – Que te traz desta vez a esta humilde casa, tenente? – Julgo que o sabe, menina Ding. A morte de João Carlos da Silva, um dos secretários do Governo, que apareceu morto esta manhã perto da porta deste estabelecimento. – Um trágico acontecimento, tenente. – Ele era um frequentador assíduo da “Noite Tranquila”, não era? – É verdade, tenente. Esteve aqui ontem à noite, saíu daqui vivo, e foi encontrado morto na calçada, a uns metros daqui. Assassinado com golpes de faca. O meu funcionário chamou a polícia. Nada tenho a esconder das autoridades portuguesas. E todos temos a ganhar se tratarmos do assunto discretamente. João Carlos da Silva, um secretário do gabinete do novo governador de Macau, Rodrigo José Rodrigues, que fora nomeado em Janeiro pelo Governo português. Silva, e residia há muitos anos em Macau, era conhecido pela sua paixão pelo jogo e pelas cortesãs que eram mestres na arte da sedução na casa dos prazeres de Ding Ling. Era um homem frágil e inseguro, segundo se dizia. Mas muito competente no trabalho. A mulher, depois de poucos meses em Macau, deixara-o e regressara a Lisboa. Levara a filha de ambos, ainda criança. Ele ficara e nunca mais conseguira criar uma família. E isso era um ponto fraco para quem estava no centro do poder. Independentemente da investigação da polícia, Amoroso decidira ir até a um local que conhecia bem. Essa era a sua missão em Macau: ver o que os outros não viam e alertar o comandante militar da ilha da Taipa ou o Governador. Ouviu a voz de Ding Ling: – O senhor Silva era um homem muito querido aqui. Um excelente cliente. Ninguém desejaria a sua morte. Amoroso olhou para ela e sorriu. Ele próprio era um bom cliente daquele local. – Claro. Tentou manter alguma frieza, mas sabia as suas fraquezas quando estava perto de Ding Ling. – Achas que a morte dele foi um mero azar do destino ou tem alguma implicação maior? – O senhor Silva tinha uma posição sensível na administração portuguesa de Macau. Por isso todos os cenários são possíveis. – E pensas que algum de nós poderá ter a ver com a sua morte? – Querida Ling, tenho de fazer uma escolha entre ti e a razão da morte dele? Ou entre ti e a menina que estava, eventualmente, com ele? – Não te peço tanto. Embora muitas vezes na vida tenhamos de fazer escolhas difíceis ou que nos parecem impossíveis. VII Amoroso sentiu o aroma do chá, que entretanto tinha sido colocado na mesa. Era reconfortante, aquela hora. Durante o dia poupava o corpo ao álcool. E a noite ainda não tinha chegado. – Quem era a menina com que ele estava ontem à noite? – Com a Li Bei. Sabes quem é. Temos estado lado a lado desde pequenas. Caminhámos juntas. Navegámos juntas. Matámos juntas. Partilhámos coisas que não imaginas. Dormi com ela durante anos. O seu olhar denotou prazer ao dizer isso. Só para ver a reacção de surpresa do tenente. – Ficarias admirado com as mudanças que uma cabeça pode sentir depois de passar uns dias na cama com ela. Vim de Xangai para aqui com ela. É como se fosse minha irmã. Ding Ling, conscientemente, despertava-lhe o desejo. Ele nunca tinha estado na cama com Li Bei. E não sabia que elas tinham essa relação tão forte. Afinal não a conhecia tão bem como julgava. Amoroso tentou afastar da memória as suas noites com a chinesa. – Diz-me, ninguém se aproximou do reservado do senhor Silva ontem à noite? – A Li Bei tratou do seu conforto. Como sempre fez. Ele saiu daqui, antes do sol nascer. Ninguém ouviu nada, até se encontrar o corpo caído na rua. Mas diz-me, tenente Amoroso, porquê essa interesse? Desconfia de algo? – O senhor Silva tinha informações que poucas pessoas têm em Macau. Temos um novo Governador. Esta morte não poderia ser mais inoportuna. Ling Ding fechou os olhos. Disse apenas: – É verdade. Ela tinha, para além daquela casa de prazeres, uma frota de juncos e lorchas e um centro de distribuição no Porto Interior, onde guardava as mercadorias que vinham de várias cidades da Ásia. Herdara todo esse negócio do seu tio, em circunstâncias trágicas e que um ano antes fora muito falado em Macau. Desde então o negócio prosperara. Falava-se que os seus interesses se tinham alargado ao contrabando de ópio e que ela tinha agora ligações à tríade do Bando Verde. Tudo rumores sem confirmação. Mas Macau era uma cidade pequena. Reinava a inveja. E em locais assim os segredos nunca poderiam ser bem guardados. Quando a questionara sobre isso, ela respondera de forma impassível: “Uma cidade portuária precisa do comércio para sobreviver”. Nada poderia ser mais verdade. VIII Amoroso ouviu outra vez a voz dela: – Quando cheguei a Macau só trazia duas coisas, a tristeza e a necessidade de encontrar uma via para voltar a reconciliar-me com a vida. Na verdade tudo é um pouco assim. Estamos preparados para seguir em frente. Vês isso quando contemplas a natureza. A força da vida é tremenda, é algo perfeitamente assombroso. – Tu és uma força da natureza. – Não seria sem a tua ajuda. Ding Ling não precisava de dizer mais nada. O segredo que ambos compartilhavam não poderia ser dito em voz alta. Era uma história que não deveria ser confidenciada a outras almas. Talvez por isso Amoroso não conseguisse viver sem vir ter com ela. A vida seria diferente se não tivesse vontade de sentir os espinhos das rosas mais belas e misteriosas. Ela aproximou-se e roçou os lábios pelo pescoço de Félix Amoroso. Ficou assim durante algum tempo, antes de dizer: – Que desejas mais, tenente? Ele não conseguiu responder. O corpo quente de Ding Ling colara-se ao dele e aprisonara todos os seus movimentos e pensamentos. Ela colocou a sua mão na dele e puxou-o para uma pequena porta que estava escondida atrás de um biombo de laca, com fundo preto e imagens de uma batalha, colocado no canto da sala. Entraram num quarto muito pequeno, quase só ocupado por duas camas de pau preto, que dava para dois fumadores e por uma mesa comprida em cima dos quais estavam dois cachimbos de ópio e outros utensílios. Ding Ling tirou-lhe as roupas e fez com que ele se deitasse numa das camas. Depois também tirou o seu vestido. Sentou-se junto a ele e, depois, soergueu-se para lhe beijar os lábios e, depois, todo o corpo. Muito devagarinho. Ele sentiu o corpo dela, fechou os olhos e abandonou-se. Mais tarde, o ópio trouxe-lhe o resto do repouso que tanto procurava. Só se levantou já os raios de sol irrompiam por Macau. Estava sozinho. A cama de Ding Ling estava vazia. Fora um sonho maravilhoso. IX 3. Somos o que não somos. Tal como as coisas não são o que parecem. O tenente Félix Amoroso sabia isso, porque a sua vida mais recente era o resultado desse enigma eterno. Mas não era isso que o incomodava agora, quando estava prestes a entrar no edifício da Avenida Almeida Ribeiro onde se situava o escritório de Joaquim José Palha, comerciante de vinhos e facilitador de negócios. Tinha outras aptidões muito elogiadas, como ser uma voz escutada junto de alguns dos mais importantes comerciantes da comunidade chinesa. Alguns deles dominavam o mundo do jogo. Palha era um homem ambicioso. Alguém tinha dito que o caminho até ao cimo conduz-nos mais para baixo, mas até agora ele tinha estado imune a esse destino. Amoroso subiu até ao primeiro andar, onde uma jovem secretária chinesa lhe abriu a porta da sala onde Palha o esperava. Este estava sentado, atrás de uma grande mesa de madeira. Nas paredes viam-se prateleiras com livros diversos, muitos deles de Direito e de História. Palha parecia inquieto. Com a mão esquerda, brincava com uma ampulheta. Quando viu o tenente, colocou-a na mesa, e a areia fina que estava no compartimento superior começou a cair no inferior. Como que a mostrar que o tempo tinha começado a contar. Olhou para Amoroso com ar inquiridor. Disse, afavelmente: – Bem-vido tenente Amoroso. Sente-se, por favor. Sei que, como eu, é um homem com o tempo contado. Por isso não o demorarei. – Quando me pediu para vir aqui fiquei com dúvidas sobre o que desejava. Não frequentamos os mesmos círculos. Nem temos interesses coincidentes. – Não estaria tão certo, tenente. Macau é uma cidade pequena. Todos se encontram. E todos dizem mal dos outros assim que estes viram as costas. Não é diferente em Portugal. Somos mestres na arte do fingimento e da inveja. Imagino que sabe isso. Mas estamos condenados a viver uns com os outros. E a garantir que Macau sobrevive. Por isso os nossos interesses acabam por ser mais ou menos comuns, não lhe parece? Para além de comerciante, Palha era também membro do Leal Senado, eleito pelo Centro Republicano Eleitoral, grupo político criado há poucos anos. A política, em Macau, pouco ou nada tinha a ver com o que se passava em Lisboa. A capital de Portugal estava longe e o seu frágil braço apenas era visível nas decisões do Governador. X Lisboa não conhecia a realidade de Macau nem os interesses e necessidades de quem lá vivia. A cidade era um ponto pequeno e longínquo no mapa do Império português. Palha era um homem poderoso. A sua voz era dominadora. Os seus olhos, frios e cintilantes, contrastavam com um sorriso terno mas firme, que sublinhavam as palavras. Tinha uma cerrada barba preta e vestia um fato de linho claro, de corte perfeito. – Vou ser franco e directo consigo, tenente. Está em Macau desde quando? 1919, 1920? – 1920. Desde há três anos. – É verdade. Nada é já uma surpresa para si. Já percebeu que, de um momento para o outro, tudo o que construímos pode ruir. Lisboa não sabe e não percebe nada. Porque, para além da pequena política pacóvia onde se vai afogando, também está mais preocupada em sobreviver. Nada que admire um português. Somos todos náufragos em busca de uma bóia. E à espera de uma sereia. Deu uma risada. – Percebeu o que se passou neste último ano? A nossa situação é muito débil. Portugal já não é uma potência que imponha respeito. Amoroso recordava-se. Macau estivera à beira do precipício. E ainda não estava salva. Não caíra porque a sua capacidade de sobrevivência era semelhante, ou mesmo superior, à de Portugal. Quando estava com um pé no abismo, um milagre, um acontecimento inesperado ou um homem providencial mudava o sentido do vento. Até ao início de 1923, Macau fora palco de uma sublevação sem precedentes. Que tivera a ver com a frustrada tentativa do general Ch’en Chiu Ming eliminar Sun Yat-sen. A agente de Ch’en, uma mulher irrascível chamada Wong Pik-wan, viera para Macau para incendiar os ânimos. Nessa altura as forças nacionalistas mais radicais proclamavam que a China deveria reaver rapidamente a soberania sobre os territórios ocupados pelas potências estrangeiras. Macau era um alvo fácil. Todos temiam um ataque à cidade, a partir da China continental. Fora mesmo, nesses meses, criado um Corpo de Voluntários da Defesa Civil. A confusão era total. O então governador, Henrique Correia da Silva, estava em Hong Kong, de regresso a Lisboa. XI Depois de um incidente na Rua da Felicidade, em finais de Maio de 1922, entre um soldado do contingente moçambicano e uma cantadeira, a indignação popular dirigida por Wong desembocara no Largo do Chip Seng, com os soldados portugueses cercados. As espingardas Mauser acabaram por fazer o resto – dezenas de manifestantes foram mortos. O próprio Sun Yat-sen, que sempre recebera o apoio dos republicanos em Macau, e por isso tinha o coração dividido, esteve prestes a apoiar os revoltosos depois do massacre. Mas uma tentativa de assassínio na sua própria sede de Governo, fez com que, na fuga de Cantão, Macau surgisse como uma boa alternativa de refúgio. Poderia oferecer a paz que Macau necessitava. Negociações entre as autoridades portuguesas e os representantes de Sun tinham-se iniciado e fora mesmo oferecido ao fundador da República chinesa um empréstimo substancial para salvar as falidas finanças do Kuomitang. Alguém acabou por denunciar a tentativa de acordo em Hong Kong e isso foi o fim das ilusões. Mas as autoridades portuguesas tinham ganho tempo e a sublevação esmorecera. Wong ainda se movera na cidade flutuante de juncos do Porto Interior e no Bazar, mas, perdida a aposta, regressara a Cantão. Palha interrompeu as recordações de Amoroso. – Por essa altura, tomou conta do seu novo posto, não foi tenente? – Mais ou menos. O chefe da polícia secreta foi demitido por ser, no mínimo, conivente com as acções da senhora Wong. Mas eu não sou o novo chefe da polícia secreta. – Eu sei. Mas é a sua sombra. Só responde perante o Governador e o chefe militar de Macau, não é verdade? Amoroso não disse nada. Olhou para a ampulheta de Palha. A areia fina continuava a cair. – E a senhora Wong, sabem dela? – Sun Yat-sen retomou o controle de Cantão. Ela está em fuga. Não deve ter muito futuro. Em 1923, Macau recuperara a normalidade. É certo que as tríades dominavam, como sempre, os negócios subterrâneos. Na cidade flutuante do Porto Interior ninguém conseguia impôr a lei. Os piratas cirandavam, à vontade, nas águas circundantes. Mas o jogo estava a regressar às regras não escritas e observadas por todos. Para sobreviver era preciso não ouvir, não ver e, sobretudo, não actuar. Havia uma aparência de sossego como há mais de um ano não existia. XII Palha acariciou os braços da firme cadeira de madeira, cerejeira segundo parecia, como se ela fizesse parte dele. – Sabe de onde veio esta cadeira, tenente? – Não imagino. – Pertenceu a um director da VOC, a companhia das Índias holandesa e, depois, a um director da East India Company. Tem cerca de 150 anos. Sempre foi muito cuidada. Não é só confortável. É um símbolo de poder. Esta madeira influencia-nos na forma como exercemos as nossas acções. Temos de saber como nos sentamos nela, precem dizer-me os seus antigos proprietários. E eu esforço-me para merecer essa confiança. O seu olhar era malicioso. Continuou: – Temos um novo governador, o doutor Rodrigo Rodrigues. Ele vai precisar de homens que o ajudem a compreender o mundo em que vivemos. Homens como ele precisam de outros como o tenente. Para os protegerem do mundo. Acha que essa é a sua missão, tenente? Palha parou um pouco. Virou a ampulheta, mostrando que tinha tempo. Continuou a falar: – Eu acredito nesta cidade. E se há alguém capaz de a tornar melhor é você. Disse-me uma vez que a força de um homem vê-se no momento em que ele se confronta consigo próprio. Em que ouve vozes na sua cabeça, argumentando que está certo, porque alguém está errado. Saber a diferença, nesse momento, é o que faz um oficial. O que faz um homem. Sinto que sabe fazer essa escolha. A certa, é claro. Olhou fixamente para o tenente. Este sabia o que Palha estava a querer dizer. Mais do que aconselhar o novo governador, queria que o convencesse das ideias do comerciante para o território. – Eu sei que será o homem certo para essa missão. Como foi capaz de fazer tudo para proteger a sua amiga Ding Ling durante os tumultos do ano passado. O seu olhar era amistoso, mas as palavras soavam como lâminas. E o tenente sentiu um arrepio na espinha. Porque sabia o que queria que ele recordasse. Palha chantageava-o com um fantasma que nunca iria repousar ou dormir. Uma ferida que nunca poderia cicatrizar. XIII 4. O silêncio convida-nos a reflectir. Nesses raros momentos escutam-se coisas que normalmente não se costuma ouvir. Os suspiros do vento, o chilrear dos pássaros, as batidas do coração. Sente-se a aproximação silenciosa dos gatos. “Tigre sentado, dragão escondido”, dizia-se na China. Eles, sem se moverem, passam despercebidos. Uma sábia lição de vida, pensou Ding Ling. O calor de início de tarde ajudava-a a apreciar essa ausência de ruído. Estava quase inerte, sentada na varanda do primeiro andar do “Noite Tranquila”. Bebia em pequenos goles um chá morno e usava um leque para criar uma pequena brisa. Por baixo, na rua, alguns corpos arrastavam-se silenciosamente, mais por necessidade do que por vontade. Quase sem dar por isso recordou Cantão e uma das vezes que fora à ópera, com o seu pai. Tinham ido ver “Dai Loi Hwa” (“ A Filha do Imperador”), a história de uma jovem princesa, Changping, que é forçada a esconder-se num mosteiro para não ser presa pelo exército dos inimigos da sua família. Mas é traída por todos e não pode confiar em ninguém, até que encontra um homem leal e bravo, Zhou, a quem fora prometida em casamento. A tragédia está-lhes destinada. Cercados pelo poder que os oprime, na noite do seu casamento, ela vai provar o seu amor por ele. Juntos tomam veneno, e morrem, no jardim do palácio onde se conheceram. Nunca esquecera aquela história. Como se ela fosse um fantasma que pesasse sobre toda a sua vida. Talvez fosse. Mas o seu destino era concluir uma missão. Só não sabia se terminaria em tragédia. Antes da hora de almoço, estivera numa pequena casa, na Travessa dos Santos, onde uma facção do Bando Verde tinha a sua discreta sede macaense. Lá estavam Wang Du, Wu Fei e Yao Wong. E, claro, Li Bei. O assunto era sensível e deveria permanecer secreto até à acção. O Kuomitang de Sun Yat-sen, confrontado com uma permanente guerra na China, estava numa difícil situação financeira e Ding Ling poderia ajudar a resolver parte do problema. Um dos seus agentes, funcionário do Banco Nacional Ultramarino, soubera que um importante valor em ouro e em moeda estrangeira de vários homens de negócios seria remetido, em breve, de Macau para a sede do Hong Kong and Shanghai Banking Corporation. XIV Iria num vapor, guardado por homens armados. Mas isso era algo que não era um problema impossível de tornear. As águas do delta do Rio das Pérolas e do Mar da China estavam repletas de juncos de piratas, ao serviço de todos os interesses. Não seria difícil a Wang Du, que tinha estreitos contactos com muitos deles, conseguir um grupo suficientemente forte para assaltar o barco que transportaria os valores. Restava saber quando e onde. O seu agente no BNU descobriria o segredo. Os pensamentos de Ding Ling foram cortados pela voz de Li Bei: – Desculpa interromper-te, irmã. Está lá fora um estrangeiro que diz querer falar contigo. – Quem é? – Diz chamar-se Maximilian Wolf e traz uma proposta que quer discutir contigo. Ding Ling não estava com disposição para conversas que necessitavam de excessiva concentração. E estava farta de homens com propostas de negócios. Mas acabou por dizer: – Diz para esperar por mim no escritório. Li Bei retirou-se e, depois, Ding Ling caminhou até lá. Quando entrou deparou com um homem alto e loiro, de olhos azuis, que estava de pé com as mãos colocadas atrás das costas. Vestia um fato de linho azul e, assim que a viu, retirou o chapéu que usava. A voz era áspera, talvez fruto de anos de consumo excessivo de álcool de pouca qualidade. – Menina Ding Ling, presumo… – É verdade. E o senhor é Maximiliam Wolf…? – Max, se desejar. Um humilde homem de negócios alemão sediado em Hong Kong e de visita a Macau. Ding Ling sentou-se atrás de uma pequena secretária e fez sinal ao alemão para se sentar à sua frente. Ele assim fez. A voz da chinesa tinha um tom desconfiado: – Diz que tem uma proposta para me fazer. Muitos o fazem, senhor Wolf. Que negócios tem, então, para me propôr? Tenho fornecedores dos melhores produtos que posso colocar à venda. Que posso não ter? Max fez um sorriso malicioso. Cruzou as pernas, para ficar mais confortável. – Não se importa que eu fume, menina Ding? – Esteja à vontade. Ele assim fez. Colocou um cigarros entre os lábios gretados e acendeu-o. Depois de apreciar o fumo a entrar nos pulmões, e de o expelir, disse: – Eu não lhe venho vender produtos. Ou melhor, venho ajudá-la. Se o desejar, claro. XV Ding Ling semicerrou os olhos. Questionou-o: – Ajudar-me? Eu não preciso de ajuda. Tenho vários negócios estáveis e rentáveis. – Menina Ding, eu sei que é inteligente. Que prevê o futuro, antes de muitos outros. Admiro-a. Mas talvez não saiba o que se move para lá do horizonte e que poderá cair como uma bomba em Macau. – Que facto é esse, senhor Wolf? – Max, pode começar a chamar-me Max. Como sabe, há quem diga que a realidade deste local frágil é mais interessante do que o mito que se criou à sua volta. A cidade do pecado, dizem, sequiosos de um prazer imaginado servido por mulheres que ora são sereias, ora deusas. Enquanto jogam a vida e a riqueza que pilharam algures. Eu sei que os homens desta terra são duros. Não temem navios de piratas, nem os das potências coloniais. Não têm medo de armas. Não têm medo de espadas e punhais. Será que não há nada de que possam ter medo? A voz de Max Wolf era pausada e agradável. Mas os seus olhos eram frios como punhais. Há muito que Ding Ling não sentia um arrepio na espinha como naquele momento. Ele continuou: – Sabe, menina Ding, dentro de poucas semanas será anunciada a venda de Macau à Alemanha. Ela estremeceu. – Como sabe isso? – Tenho as minhas fontes. Muito credíveis. Porque eu represento alguns interesses alemães nesta parte do mundo. Não do Governo alemão. Mas de empresas alemãs, que estão desejosas de avançar para aqui, a seguir a esse anúncio. Como imagina, os que defendem a presença portuguesa, ou os que têm ligações a eles, passarão a ter mais problemas para lucrarem com os seus negócios. Nova administração, interesses diferentes, se me é permitido dizer. – E isso, o que tem a ver comigo? Wolf bateu com as pontas dos dedos no tampo da mesa. Ding Ling não gostou do ruído. – Tudo, é claro. Sei que é uma voz escutada em Macau. Tem amigos, bons, junto das comunidades chinesa e portuguesa. Amigos e clientes. Pode aliciá-los para que a presença alemã aqui não seja recebida com desconfiança ou, mesmo, com resistência. É certo que os militares alemães não são como os portugueses. Não são fracos e têm mais meios, em termos de armas e navios de guerra. Será muito mais difícil para quem quiser resistir às novas autoridades. XVI Antes que Ding Ling pudesse responder, Wolf continuou: – Assim, menina Ding, se se aliar a mim, tem tudo a ganhar. Se se opôr, terá tudo a perder. Os seus amigos portugueses não terão nenhum poder. Fugirão, que nem ratos, como se costuma dizer, à primeira oportunidade. Para Goa. Para Lisboa. Para qualquer lugar. Os portugueses são filhos do mar. Ding Ling pestajenou, nervosamente: – Percebo o seu ponto de vista, embora não o partihe completamente. Mas, já agora, diga-me: e, se decidir ajudá-lo, que ganho efectivamente? – Ganhará dinheiro e reputação. Posso resolver-lhe um problema que sei que a absorve. Precisa de dinheiro para financiar as actividades do Kuomitang. Eu posso ajudá-la nisso. Tenho acesso a fundos suficientes para que fique muito bem cotada junto de Sun Yat-sen. Com quem, diga-se, também queremos ter boas relações. Dinheiro não é uma questão para nós. – Nós, quem? – Para mim e para as pessoas que represento. Há muito que Max acabara de fumar o seu cigarro. Acendeu outro. – Não a quero apressar muito, menina Ding. Mas não tenho muito tempo. Preciso de resultados, de forma breve. Ou seja, necessito de uma resposta sua dentro de dois, três dias. Que lhe parece? – Tenho de reflectir. – Sim, eu sei como são os chineses. Jogam com o tempo. O problema é que, nós, os ocidentais, estamos sempre a olhar para o relógio. Espero pois uma resposta rápida. E, sendo assim, não a ocupo mais nem lhe tiro tempo para a sua profunda reflexão. Que sei que será a mais sensata. Max fez um sorriso sarcástico. Levantou-se e colocou o chapéu na cabeça. O brilho dos seus olhos era mortal. Fez uma ligeira vénia e saíu. Pouco depois, ainda Ding Ling estava de olhos fechados, a tentar pôr ordem nos seus pensamentos, Li Bei entrou. – Diz, querida irmã. – O alemão já saíu. Mas, recordei-me, já cá tinha estado. Ding Ling franziu os olhos. – Quando? – Na noite em que o senhor Silva foi morto. Estiveram a conversar os dois, com ar pouco amigável, antes do senhor Silva ter ido ter comigo. Este estava muito nervoso. Fumou mais ópio do que o habitual. XVII 5. Da magnífica varanda do hotel Boa Vista, o tenente Félix Amoroso observava a Baía da Praia Grande, onde alguns juncos indolentes navegavam ao sabor das suaves ondas e do vento. Estava encostado a um dos pilares, imerso na vista, a fumar. Ali criava-se a errada sensação que o tempo não tinha fim. Mas, como aprendera com os chineses, o ciclo da vida era como a das estações. Não era um caminho contínuo rumo a um futuro que queríamos descobrir e, se possível, conquistar. Ouviu um ruído e isso fez com que caminhasse até encontrar um homem sentado num cadeirão a ler um jornal. Era o novo Governador de Macau, Rodrigo José Rodrigues. Aproximou-se dele e saudou-o: – Boa tarde, senhor Governador. Não o tinha visto. Este sorriu, salientando mais a sua face esguia. Tinha o cabelo e o bigode negros e usava uns óculos redondos onde se refugiavam uns olhos inquietos. – Sente-se aqui, ao meu lado, tenente Amoroso. Estava a ler o “Diário de Notícias”, que aqui chega com largo atraso. Mas é uma boa forma de saber algumas coisas que vão acontecendo em Lisboa. E o tenente, não me diga que veio ver a sessão de poesia organizada pela minha mulher? Eu já lá estive, mas agora é a parte mais social, que dispenso. – Sei que a senhora Rita Margarida Rodrigues é uma distinta poetisa. – Há quem o afirme. Eu não serei o melhor juiz em causa própria. Mas, sinceramente, também penso o mesmo. Falava pausadamente, como se meditasse cada palavra. Às vezes levava a mão aos óculos num gesto mecânico ou nervoso. – Que bela vista, não é verdade, tenente Amoroso? – É verdade, senhor governador. Presumo que daqui tem uma outra visão de Macau. Talvez um pouco diferente da que tem desde o Palácio de Santa Sancha. Rodrigo Rodrigues fez um esgar: – Do lugar do poder tem-se sempre um olhar diferente sobre o mundo. E que nem sempre é real. Perde-se, muitas vezes, o contacto com a poeira. É por isso que quem quer dirigir bem, tem de se rodear de pessoas competentes. E atentas. Eu dependo de homens como você. Agarrou num copo de vinho branco que estava na mesa e levou-o à boca. Bebeu um pouco, antes de continuar: – Desde que aqui estou já percebi que Macau vive longe de Lisboa. O relógio aqui marca horas diferentes das de Portugal. E lá decide-se sem se conhecer o que se faz aqui. XVIII Amoroso fungou. Aproveitou para para confrontar Rodrigo Rodrigues com as notícias que começavam a circular: – Diz-se, senhor governador, que há quem em Lisboa defenda a venda de Macau. Para evitar despesas e chatices. – Fala-se agora disso aqui? Essa é uma história muito antiga. Já vem do tempo da monarquia. O Oliveira Martins falou disso. O Eça de Queiroz também. Mas agora parece que ganhou nova alma para nos atormentar os dias e as noites em Macau. Pelo que li aqui no “Diário de Notícias” foi tema de um debate muito aceso entre um deputado, o senhor Jaime Leote do Rego e o ministro das Colónias, o senhor Domingos Leite Pereira. Tudo por causa de um artigo que saiu num jornal americano, que dizia que o Governo português estava em negociações com a Alemanha para a venda deste território. O Governo português desmentiu. Sabe o que disse o ministro? Está aqui! Notava-se alguma irritação na sua voz. Agarrou no jornal e leu uma frase que sublinhara a tinta azul: – Diz o ministro: “Portugal não está em condições de alienar seja o que for do seu património. Não o quer fazer e, nem o fará nunca, pois que não está em circunstâncias de alienar seja o que for dos seus territórios”. Se o ministro o diz, deve ser verdade. – Pode não ser, senhor Governador. Disseram-me que há alemães que já estão a operar em Macau como se o negócio estivesse feito. – Penso que não esteja. Mas, nunca se sabe. Portugal tem os cofres com aranhas e certificados de dívidas bolorentos lá dentro. E sabe como é: quem controla a dívida de um país, define as suas decisões. A nossa dívida não tem fim. Já nem se sabe quando começou. E o que resta para vender? As colónias… Amoroso observou: – Mas não há fumo sem fogo, não é verdade senhor Governador? A menos que saiba algo que não queira, ou não possa dizer, esse é um assunto que interessa a quem vive aqui. Seria muito diferente ter um governo alemão ou continuar com um português em Macau. XIX – Também penso assim, tenente. O que acha do assunto? – Os alemães têm interesses coloniais. E os ingleses não têm já interesse nisto. Dominam Hong Kong e parte de Xangai. Têm a Índia. Os alemães sim, cobiçam um império. Conhece a cerveja Tsingtao, senhor Governador? Está à venda em Macau e a história começa aí. No final do século XIX as forças navais alemãs tomaram conta da Baía de Jiaozhou, de um porto que conhecemos como Tsingtao, como concessão colonial. Os alemães estabeleceram-se lá e construíram a sua pequena Baviera. E criaram mesmo essa cerveja, que lhes lembrava as suas raízes. Mas, no início da Primeira Guerra Mundial, os alemães foram afastados dali pelo Exército Imperial Japonês, aliado dos europeus e americanos na Ásia. Não surpreendeu que a cervejaria alemã passasse a ser japonesa. No ano passado foi acordado que o porto voltasse à posse da China, mas a situação ainda é confusa. Desde que perderam a concessão Berlim quer ter um entreposto comercial nesta zona. Macau era um pitéu para eles degustarem com salsichas. O Governador deu uma risada e voltou a agarrar no jornal. – Pelos vistos este foi um debate interessante, à nossa maneira, é claro. Veja o que o deputado Leote do Rego, verdadeiro herói republicano que muito prezo, disse sobre a notícia: “Esse jornal pode ser lido por 60 milhões. Tem 22 edições por dia. É um jornal importante, não há dúvida visto que os jornais se fizeram eco dele. Eu entendi que devia chamar a atenção de S. Excelência para o jornal, não para provocar um desmentido, porque não era preciso que das cadeiras do Poder se viesse dizer que o Governo não pensava em alienar qualquer porção do território português, mas se poder afirmar aqui que o coração português se tinha amargurado, como de facto se amargurou, com a notícia que veio nesse jornal. Essa afirmativa já foi feita por um estadista espanhol por outra forma. Que Portugal é igual à colónia inglesa de maior importância. E até já se foi mais longe, dizendo-se que uma grande nação tinha aqui encravada uma feitoria britânica”. XX Fez uma pausa, antes de continuar: – E o deputado Agatão Lança aproveitou para trucidar a política externa portuguesa. Veja o que ele disse, sobre a nossa delegação em Washington: “O consulado é um quarto de hotel, onde habita o nosso representante e diz que Portugal é tão pequeno que cabe no seu bolso do colete”. E mais: “Os nossos interesses na América do Norte estão exactamente melhor defendidos na época do Verão, isto é, quando o nosso Ministro em Washington vai gozar as delícias do clima em outra terra, ficando a legação entregue ao nosso ministro do Brasil”. O futuro de Macau parece bem entregue, não? – Que lhe posso dizer, senhor Governador, que já não saiba? – Foi por isso que fugiu de Lisboa e se refugiou aqui, tenente? – Foi um conjunto de razões. O aroma pouco agradável do panelão onde se misturam interesses pessoais e negócios foi outro. – Compreendo. E os chineses, o que acharão? – Para já estão em lutas internas. Como se provou até há pouos meses aqui. Mas não deverão achar piada a uma eventual venda. Ou correm connosco daqui, ou negococeiam com quem já estão habituados a viver. – Isso não é apenas uma mentira que contamos a nós próprios? – Os chineses e os portugueses criaram um clima de entendimento quase perfeito aqui. Excepto os mais radicais ou nacionalistas, há um equilibrio estável. Nem nós os incomodamos nos seus negócios. Nem eles nos chateiam. – Já agora, aproveito para lhe colocar outra questão, tenente. Acha que a morte do senhor secretário João Carlos da Silva pode estar ligada a todas estas movimentações? – Pode estar. Afinal, muitos podem estar interessados no que se decide em Lisboa ou Santa Sancha. Ter lá um ouvido atento dá jeito. Para já coloquei os meus melhores informadores em campo. Rodrigo Rodrigues dobrou o jornal e fitou Amoroso: – Parece-me bem. Convém estarmos atentos. Já agora, se não se importa, tenente, gostava de saber a sua opinião sobre um assunto. XXI O Governador prosseguiu: – Estou a pensar em reforçar o sentimento nacional em Macau. Foram os republicanos que recuperaram o nosso maior poeta, Luís de Camões. Passaríamos a fazer, no dia de Portugal, uma romagem à gruta de Camões. Acho que isso é importante. Vivemos tempos de decadência. Como aqueles que Antero de Quental ou Guerra Junqueiro transportaram para linhas escritas em “Casas da decadência…” ou na “Pátria”. Ou que Viana da Mota sintetizou na sinfonia “A Pátria”. Como dizia Teixeira de Pascoaes: “neste momento Portugal é um mistério, é impossível a gente calcular o que virá a ser dele”. Honrar Camões é um sentimento de revolta republicana. Sabe, em 1880, por ocasião das comemorações em louvor de Camões, o “Diário de Notícias” distribuiu gratuitamente 30 mil exemplares de “Os Lusíadas”. Era a crise que fazia com que se procurassem respostas no passado. Esta crise pode fazer com que voltemos a acreditar no futuro de Portugal. Amoroso respondeu apenas: – Parece-me uma excelente ideia, senhor Governador. Foram interrompidos pela chegada de duas mulheres. Rodrigo Rodrigues levantou-se e Amoroso fez o mesmo. – Querida, já acabou? Ela sorriu: – Já sim, foi excelente. – Quero apresentar-vos o tenente Félix Amoroso. Faz parte do departamento de informações de Macau. E esta é a minha mulher, dona Rita Magarida Rodrigues, e esta uma amiga que já aqui fez, a dona Sofia Ramos Palha, esposa do senhor Palha. Amoroso olhou para esta, que, em contrapartida, não afastou seu o olhar, percorrendo o corpo do tenente. Não teria mais de 30 anos. Menos cerca de 20 do que o seu marido. Tinha a pele clara e o cabelo e olhos castanhos. O nariz arrebitado e os ohos pequenos denotavam alguém com uma curioidade latente. O Governador disse: – Temos de ir, não é verdade, querida? Ela fez um gesto com a cabeça, em sinal de concordância. Sofia Palha seguiu com eles. Mas não se coibiu de olhar para trás e voltar a mirar o tenente Amoroso. XXII Macau engana-nos, dizia Benedito Augusto com voz matreira. Parece que o sexo está sempre visível. Mas isso não é verdade. Nem sempre o vemos. Sabemos que ele está por ali, em todo o lado, sempre à espreita. Olhou para o tenente Félix Amoroso, tentando avaliar a sua reacção. Este parecia não notar que uma vaga parte destas afirmações também estavam dirigidas a ele. Benedito sussurrou: – Há algo maligno nestas ruas. Uma coisa estranha, uma escuridão onde se movem sombras. Almas perdidas que não se querem salvar. Ele falava do sexo. Insinuava também que João Carlos da Silva morrera por causa dele. Por excesso. Enquanto muitos outros continuavam a viver por causa dele. O tenente contornou o copo de cerveja com os dedos, antes de dizer: – Nunca sentes desejo, Benedito? – Sou mais forte do que ele. – Mas o sexo tenta-te… – A vida é um conjunto infinito de tentações. Saber escolher as que fazemos é a forma de concretizarmos a nossa vitória sobre elas. Falando assim Benedito escondia o passado e, depois, esclarecia o presente: – Sim, acho que o senhor Silva foi morto por causa do sexo. Não tem a ver com qualquer conspiração política que se desenvolve nas sombras desta cidade. – Há uma conspiração? – Que acha, tenente? É ingénuo? Sente-se no ar, entre os fortes aromas das comidas orientais e a conservadora cozinha portuguesa. A conspiração transpira, como os picantes mais fortes. Veremos o que acontece, mas alguém está à espera de ganhar, e muito, com o que se pode vir a passar. Benedito Augusto e Félix Amoroso bebiam cerveja e comiam arroz com galinha numa taverna chinesa na Rua da Felicidade. Antes, o tenente tinha estado a jogar fan-tan com marinheiros chineses, até que o padre chegou e o afastou do vício. Dissera-lhe: – O vício causa-nos alucinações e, depois, conduz-nos ao abismo. – Tenho outros vícios piores, Benedito. – Eu sei. Conheço-os. – Mais do que eu desejaria. – Sabe, tenente, não é por mal. Faz parte de mim e do que faço. Saber é poder. Mas diga-me, jogar não lhe faz desenvolver um sentimento de culpa? XXIII – Sentir-me-ia culpado se não jogasse. Meu caro Benedito, a vida é um jogo, todos o dizem. Um jogo viciado, com cartas marcadas, porque sabemos como acaba. Estes, pelo menos, são mais indecifráveis. Nunca sabemos se ganhamos ou perdemos. Mas sonhamos que é possível vencer. E só isso que importa. Amoroso sorriu ao dizer estas palavras. – Elucide-me, Benedito. Porque diz que João Carlos da Silva morreu por causa do amor, ou do sexo? – Há algo que me intriga. Sabe, o alemão, que se chama Maximilian Wolf, esteve ontem à noite com Ding Ling. – Esteve? Não sabia. – Imagino que não. A sua querida amiga não lhe disse nada. Mas sabe como é. As mulheres têm sempre segredos. Não sei do que falaram, mas o que sei é que o senhor Silva e o alemão estiveram lá na noite em que ele foi assassinado. Discutiram. Um pirata que conheço viu-os. Não percebeu o que diziam. O alemão saíu e não voltou. E o Silva foi ter com Bei Li, a amiga de Ding Ling. – Como sabes? – Uma das raparigas de Ding Ling, Xiao Yi, contou isso ao pirata que me confidenciou isso. Ele oferece-lhe muitas prendas, depois de cada assalto. Diz que, um dia, a levará dali para casarem. Ela acredita e vai-lhe contando coisas que acontecem ali. É uma fonte que não se esgota. Tudo se sabe nas noites de sexo, álcool e ópio em Macau. – Só que tudo aponta para que o alemão possa ter assassinado o Silva. Talvez este estivesse a espiar o Governo, para saber mais coisas sobre o que pensam os portugueses ou o que sabem sobre essa ideia de Macau poder ser vendida aos alemães. – E o alemão voltava dois dias depois à cena do crime? – Sim. Para vir ter com Ding Ling é porque há uma conexão. Mas, é sempre arriscado, regressar ao local de um crime. – Tenente, vá por mim. Silva tinha fome de sexo. Desde que a mulher o deixou, vivia sozinho. Ia ali, à casa dos prazeres da menina Ding. Mas seria só isso? O tenente acariciou o queixo. Nada era claro. Mas agora precisava de saber mais. Junto de Ding Ling. E encontrar o alemão. XXIV – A dúvida é a nossa vida, tenente. Nem sempre é fácil distinguir os verdadeiros sentimentos dos falsos. Porque tudo se compra e se vende. Num mundo em desordem moral todos estão dispostos a vender-se. Talvez até a sua amiga. – Nem todos, padre. – Acredita mesmo nisso, tenente? Pense em si. Amoroso sentiu as palavras como um murro no estômago. Bebeu mais um gole de cerveja. Sentiu vontade de sair dali e entrar na “Noite Tranquila” para falar com Ding Ling. Confrontá-la com o que Benedito lhe dissera. Por momentos sentiu-se atraiçoado pela mulher que fnalmente conseguira acalmar os seus ânimos. Com sexo e ópio, Ding Ling domara a sua fúria. Sentira-se amado. Agora parecia outra vez um náufrago. Benedito abanou a cabeça: – Não é caso para tanto, meu caro tenente. Não é preciso manter uma relação conflituosa com a realidade. Sabe que quanto maiores são as nossas debilidades, mais vastos costumam ser os nossos planos. A menina Ding sabe os seus pontos fracos. Como é que se diz? O seu calcanhar de Aquiles. E você sabe que ela sabe isso. Por isso aumenta as expectativas. Não o faça. Amoroso não respondeu. Os seus olhos concentravam toda a sua fúria, mas o corpo ia deixando de estar tenso. Estava a acalmar-se, o que era a melhor solução. Falaria com Sing Ling depois, quando a tempestade se concentrasse toda dentro de uma garrafa. E a pudesse atirar para o mar, para que fosse apenas aberta noutras latitudes. Foi buscar mais duas cervejas. – Tsingtao, meu caro Benedito. Para não nos esquecermos do que é importante. Continuo a achar que esse alemão nos levará até ao assassino do secretário Silva. – Pode ser que tenha razão, tenente. É uma questão de paciência. Amoroso olhou para Benedito Augusto. Sentiu-se desconfortável. O padre leu-lhe o pensamento. Sabia que quanto mais um homem te conta, mais perigoso te tornas para ele. E quanto mais perigoso és menos opções tens no futuro. Tinha que evitar que Amoroso pensasse que ele poderia ser seu inimigo. XXV Ding Ling aproximou-se de Félix Amoroso e beijou-o ao de leve. Os olhos de ambos cruzaram-se como se estivessem a preparar-se para um duelo. Estudavam-se, como numa dança de morte. A luz estava demasiado fraca para poderem escolher claramente qual o caminho a seguir. O ruído que se ouvia era de feridas que se tinham aberto e gritavam pela cicatrização. Mas, tal como depois da chuva que cai, leve mas interminável, era preciso que o sol secasse os mal entendidos. Ambos sabiam isso. Ding Ling sentou-se de pernas cruzadas numa cadeira de bambu, como sempre fazia antes de partir para a batalha. Disse: – A cidade flutuante é a alma de Macau. Os portugueses, outrora senhores do mar, preferem hoje o chão sólido da terra, os portos aos barcos. Talvez por isso tivessem deixado de ser aventureiros. Ding Ling fez um sorriso enigmático, depois de dizer tudo isto. Continuou: – Tu ainda não sabes se preferes uma coisa ou a outra, querido tenente. Os olhos negros da chinesa eram impenetráveis. Mas, por fim, os seus lábios abriram-se um pouco e isso fez com que a sua face se tornasse mais amigável e atraente. Ela, sedutora, ergueu-se da cadeira e olhou para os seus anéis antes de dizer: – Há homens que preferem não saber a verdade. – Eu não sou como esses homens que conheceste. Ou que conheces. O tenente Félix Amoroso soava ríspido, mas era como um cubo de gelo prestes a derreter-se perante o primeiro sorriso da chinesa. – Eu necessito de saber a verdade. Que acordo fizeste com Max Wolf? O fumo que vinha do andar inferior do “Noite Tranquila” cruzou, por escassos momentos, o espaço entre ambos. Foi o suficiente para que Ding Ling ganhasse um pouco de tempo. Serenamente, respondeu: – Prefiro ser jade, ainda que despedaçada, do que um tijolo, ainda que intacto. A minha integridade é espiritual. Sou leal a quem tenho de o ser. Não troco isso por interesses materiais, querido tenente. O fumo ficou mais espesso. E ameaçou tornar-se sufocante. Amoroso inspirou fundo. Sentiu raiva contra si próprio e tentou recuperar o sangue frio: – Que te propôs ele? XXVI Os olhos dela fecharam-se devido ao fumo. Pegou num leque que estava em cima da mesa e abanou-o. O fumo dispersou-se e Ding Ling agarrou numa garrafa de vodka russo e virou-se para Amoroso: – Queres? Face ao silêncio dele, ela encheu dois copos e, depois de lhe entregar um, levou o seu aos lábios e disse, sarcasticamente: – Sem vodka, a que é que se resume a conversa entre as pessoas? Riu-se e bebeu mais um gole. Nunca parecia ficar embriagada. Mantinha sempre a serenidade. Era a protagonista da paz onde não havia lugar para ela. Disse: – Há gente sem alma e sem espírito. Tudo muda mas, na verdade, nada muda no mundo. Ele propôs-me uma coisa simples: aliciar gente importante para a sua causa em troca de vantagens materiais para mim e para o Kuomitang. – E tu, que respondeste? – Disse que ia pensar. – E já o fizeste? – Já o tinha feito antes da proposta. Não lhe respondi. Nem lhe responderei. Tudo nos separa. Não pode haver falsas tréguas entre nós. E os portugueses não são para aqui chamados, como sabes. Só me interessa o futuro da China. O respeito de Ding Ling estava reservado para os raros homens e mulheres que se poderiam cruzar com ela na sua luta e que a poderiam derrotar. Nunca pediria tréguas, nem através do sexo. Amoroso sabia, por experiência própria, isso. As paixões dos homens sempre tinham sido armas forjadas em louvor das suas necessidades. Os dela não eram assim. Quanto a paixões reais talvez tivesse tido uma, ou dias. Talvez tivesse por Li Bei. Talvez tivesse por ele. O seu amor era outro. Se o Governo soubesse o que verdadeiramente a movia, que era incendiar o mundo, já a teriam silenciado. Mas ela era a senhora que oferecia o prazer a quem o desejava. Poucos poderiam desconfiar que ela não era água. Era fogo. Ali, numa atmosfera de aromas chineses e de fumo de cigarros e de ópio, ela observava e tomava notas mentais sobre o que via. Para futuro uso. Às vezes parecia meditativa e deixava-se manietar por uma quase melancolia. Aí recorria ao corpo de Li Bei para pacificar a sua alma. Mas se Amoroso aparecesse numa dessas noites, ele seria a paz num conflito sem tréguas entre dois corpos. Talvez houvesse outro mistério qualquer por detrás dos seus olhos guerreiros. XXVII Qual era o seu passado? Desde a sua infância, Ding Ling tinha um estranho talento para o silêncio. Mesmo quando ria. – Qual é o teu plano, doce Ling? – A verdadeira informação tem um preço, querido tenente. Mostra-me, primeiro, qual é o teu verdadeiro objectivo. – Isso também tem um preço. – Não é difícil saber, querido tenente. Uma mulher consegue guardar silêncio. Os homens falam como tolos na primeira taverna que encontram. Os olhos dela brilharam intensamente, antes dele dizer: – O que é que tenho de te dar pelo teu silêncio, se te contar os meus segredos? – Eu não digo nada. – Eu também não direi o que seja sobre os teus. – Enquanto me amares guardarás os meus segredos, eu sei. E eu sei que me amas por causa dos meus segredos. Disse tudo isso numa voz doce, como se estivesse a contar uma história idílica muito antiga. E com um sorriso que faria com que alguém, menos apaixonado, perdesse o controle. Amoroso cortou o silêncio: – Só preciso de paz. – Não há paz onde há quem mande e quem obedeça. Onde não há liberdade e há necessidade de a obter. Estou comprometida numa guerra. – Então eu confiarei em ti e nós sempre nos compreenderemos. Mas porque não continuas a dizer mentiras, se não há Inferno para ti, doce Ling? – As mentiras são necessárias, porque as pessoas são tolas. Insensatas. Tu foste soldado. Agora és espião. Que vieste fazer para Macau? Contar baixas, remendar botas, escrever cartas de amor? É isso que os soldados fazem no meio de uma trégua. Em Macau sonhavas encontrar essa paz, essa pausa na tua vida entre o inocente e ingénuo que foste antes da guerra e o que és agora. Sobreviveste e começaste a pensar no que era importante para ti. Precisavas de paz. Cansaste-te. Vieste para Macau ser fiel a ti mesmo, mas ainda não deixaste de estar cansado. – Por amor fazem-se coisas terriveis. Sabes algo sobre isso? Os olhos dela tentaram esconder o que lhe ia na alma. Mas isso era impossível. Depois Ding Ling disse: – Falas como alguém que viveu tudo e não tem medo de nada. – Sobrevivi a uma guerra. – Eu também. E estou no meio de outra. XXVIII – Responde-me, doce Ling: quem poderá escutar os cantos da sereia do alemão? Tu? – Duvidas de mim? Ding Ling respondia como se a ferida tivesse voltado a abrir-se. E a desconfiança tivesse regressado. A voz de Amoroso soou doce: – Não, nunca o faria. Mas preciso de saber quem ele poderá aliciar. – Eu também quero saber isso. Mas para isso é preciso começar por perceber o pensamento dos homens que aqui em Macau já se juntaram a ele. Poderá ser por medo do poder que diz ter. Ou medo dos canhões alemães. Mas pode não ter nada a ver com isso. E ser algo que desconhecemos. – Ele move-se numa direcção que promete caos sem fim. Macau sempre foi um porto seguro para Sun Yat-sen. Poderá continuar a sê-lo no futuro. Com os alemães, apesar das promessas, nunca saberão. Nunca terão a certeza. – Estás a defender Portugal e não os teus interesses. – Às vezes não há diferença. Gosto de ser fiel a mim próprio. – É isso que eu gosto em ti. Ding Ling saíu por momentos da pequena sala e chamou Wei Zi, uma jovem chinesa que Amoroso conhecia há algum tempo. Era uma das favoritas da senhora que mandava no “Noite Tranquila”. Era pequena, de olhos amendoados e sedutores. Falavam em cantonês e Amoroso só percebeu algumas partes da conversa. Ding Ling dizia-lhe que era necessário saber tudo o que sabia um chinês que sabiam trabalhar para Max Wolf. Wei Zi ia acenando com a cabeça e, depois, virando-se para Amoroso disse com voz sedosa, num português arrastado: – Ele vai contar-me tudo. Usarei todos os truques. Todos os prazeres que ele conhece. E os que desconhece. O seu olhar era de uma inocência completa, como se o que dizia fosse algo insignificante. Sexo por informação. Wei Zi fez uma vénia e saíu. Ding Ling disse então, virando-se para Amoroso: – Ela vai contar-lhe a história de como teve de se esconder do tio, quando era ainda muito nova. Uma história que nunca contou a ninguém. E, depois, quando acordarem de manhã, vai confessar-lhe que ele é único. Diferente de todos os homens com quem se deitou. Ele estará vulnerável. Sabes, querido tenente, todas as derrotas do corpo dos homens começam na horizontal. Amoroso sentiu uma vertigem. Muitas vezes queria ter uma visão impoluta da vida. Embora ele próprio não tivesse praticado sempre esse princípio. Bastava já ter frequentado muitas vezes a “Noite Tranquila” apenas pelo sexo. Mas custava-lhe usar certas tácticas. Doía. Olhou para Ding Ling. Esta fez um sorriso irónico e, depois, disse: – Meu querido tenente, julguei que já sabias isto há muito tempo. Já não há Bem nem Mal. XXIX 8. Antes da primeira explosão, o céu estava límpido. As estrelas pareciam imóveis. O tenente Amoroso sentia uma pequena brisa fresca nas faces enquanto caminhava junto ao Porto Interior. Mas depois, numa fracção de segundo, tudo mudou. As estrelas focaram invisíveis e o aroma a queimado foi-se intensificando. Primeiro foi só uma explosão. Depois, muitas. O céu encheu-e de cores e as luzes ardiam em todas as direcções. O fogo de artifício iluminou os céus de Macau, de uma forma cada vez mais desordenada. Não era tempo de festividades. O tenente olhou para a zona de onde partiam os foguetes. Viu um clarão de fogo rente às casas. Estava junto à taverna onde se costumava encontrar com Benedito Augusto. Ouviu gritos e viu pessoas a correr, vindas das casas. O ruído tornou-se ensurdecedor. O tenente ficou ali, durante longos minutos, imóvel, a olhar para a cor do céu, até que apenas se passou a ver um clarão muito claro ao longe. O fogo deixara de tentar atingir a casa dos deuses celestiais. Depois caminhou até à taverna. Sentou-se, pediu uma cerveja e esperou. Benedito, apressado, trouxe a notícia. A Fábrica de Panchões de Keng Cheng, que ficava no bairro de San Kiu, explodira. Apesar das tentativas para afastar estas fábricas das zonas residenciais, e de vários acidentes que tinham causado dezenas de mortes, só agora isso começava a ser feito, com a construção da primeira fábrica na ilha da Taipa. O fogo-de-artifício fazia parte da vida de Macau e dos chineses. E as fábricas de panchões tinham sempre trabalho. Eram fonte de riqueza. O fogo-de-artifício servira, desde tempos remotos, para afugentar inimigos na guerra ou para afastar a má sorte. XXX O vermelho e as faúlhas sempre foram bons presságios. E o fumo criava uma boa atmosfera, contava Benedito, que depois concluiu: – Neste caso não foi. A explosão trouxe a má sorte a Keng Cheng. E à sua amiga, Ding Ling. – O que é que têm eles a ver um com o outro? – Tudo, meu caro tenente. A menina Ding e o senhor Keng jogam as cartas do Kuomitang e, diz-se, do Bando Verde. A explosão pode ter sido um acidente. É comum. Mas, neste momento, também pode não ter sido, não lhe parece? Amoroso bebeu um gole da sua cerveja. Lembrou-se por momentos de um capitão, Álvaro Esteves, que conhecera na batalha de La Lys. Que ali morrera, como muitos outros. Era um homem que fora capaz de amar esse punhado de tempo a que chamamos vida. Cada dia, para ele, era uma forma de emoção, um tremor. Falavam, nas trincheiras, da nostalgia do campo, das dúvidas e do assombro que era a vida. “Sou um romântico”, dizia, com um esgar irónico. “Converto tudo em sentimentos”, concluia, enquanto cortava um pouco de chouriço para colocar no pão. Esperavam uma barragem de artilharia alemã. “Não sei como posso fazer uma descrição do que vi no mundo e do que o mundo fez comigo. A nossa vida está feita de muito pouco. Amar, gozar, sentir e celebrar os instantes, olhar várias vezes as paisagens e os pássaros para não esquecermos, e declinar até à velhice”, dizia, com a sensação que não chegaria a velho. Não chegou. O fogo-de-artifício assustara Amoroso. Lembrara-lhe esse amanhecer, quando o fogo de armas fora tão intenso que nada poderia sobreviver. Benedito Augusto olhou para ele e sentiu-o errático e triste. Disse: – Quando temos dúvidas, a verdade é um bom início de conversa. – O que seria das sociedades sem o uso da mentira? – É verdade, o que seria de nós se não jogássemos com a mentira? Só isso nos permite evitar a derrota. Mas aqui só os fracassados irão ver os deuses. É por isso que gosto desta parte do mundo. Os anjos foram seduzidos pelo Diabo e caíram na terra. Ficaram aqui, corpos de carne e osso. – Gosto de o ouvir padre. Tem a educação que eu nunca tive. – E o tenente a vida que eu sempre desejei.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá [dropcap]S[/dropcap]em José Prazeres da Costa, o “Bambu Vermelho” parecia vazio. Marina Kaplan estava lá. Luc Lefranc continuava a aliviar os bolsos dos jogadores que se atreviam a desafiá-lo na mesa de póquer. Os chineses permaneciam, ruidosos, concentrados em diferentes jogos. De vez em quando alguém passava para as salas reservadas de ópio ou procurava uma rapariga especial. A luz das lanternas, dava uma cor avermelhada ao ambiente, que se cruzava com nuvens de fumo que esvoaçavam ao ritmo das ventoinhas colocadas no tecto e que se arrastavam muito devagar. Mas faltava o jogador que apostava tudo ou, mesmo, o dobro de nada. Em Macau era noite, mas ali ninguém tinha a noção de que horas eram. Vivia-se a eternidade. Sentado, Cândido Vilaça observava o ambiente, que se parecia com o dos filmes a preto e branco que vira em Xangai. As raparigas aproximavam-se, sorridentes, dos clientes, apesar de todos saberem que não existiam finais felizes. Vivia-se uma espécie de tristeza sem salvação. Em tempos de guerra era-se obrigado a ser feliz. O jogo, o dinheiro, o sexo ou o poder escondiam a infelicidade. Os portugueses que apareciam por ali falavam da solidão da vida no mar, aquilo a que chamavam saudade. Mas como podemos chamar à solidão da vida numa cidade como Macau, perguntava-lhes. Também seria uma forma de saudade? Ninguém queria falar sobre isso. Marina Kaplan aproximou-se e sentou-se defronte de Cândido. Trazia dois copos cheios de vodka e estendeu-lhe um. Este agarrou-o, como se ali estivesse a água que lhe permitia não morrer sedento. Bebeu um pouco. – Obrigado. – Eu vi que precisavas. Estás triste. – Isto não é tristeza. É saber o que se vai passar. Ela deu uma gargalhada. – Sabes? Precisamos de um vidente em Macau. Cândido, sê realista. Qualquer um pode perder-se na noite. O importante é que esteja de regresso ao amanhecer. Ele olhou com ar intrigado para ela, antes de dizer: – Jin vai embora. E eu não sei o que vou fazer. – Podes ajudar-me aqui. A Grande Dama do Chá vai embora, mas a loja não vai fechar. Eu vou ficar a geri-la. Podes continuar a tocar jazz. Ou, se preferires, a trabalhar com o Ezequiel. Ele fez-te uma proposta muito tentadora. Não podes dizer que te faltam oportunidades. – Alguém me disse uma vez que um marinheiro só se faz enfrentando uma tempestade no mar. – Tinha razão. Já deverias ter percebido isso em Xangai. Aqui vai acontecer o mesmo. Precisamos de homens e mulheres fortes para o que aí vem. Calaram-se. Jin Shixin acabava de entrar na pequena sala, de onde nessa noite se via parte do “Bambu Vermelho”, porque não tinha o biombo de bambu a protegê-la. O seu sorriso era tentador e vinha vestida com um dos mais belos cheongsam que Cândido já vira. Na despedida, a chinesa queria deixar uma imagem inesquecível. Deparou com os olhos tristes de Cândido. Sentou-se ao lado dele e passou-lhe a mão pelo cabelo. Assim esteve durante uns segundos, perante o ar indiferente de Marina. – Sabes que tenho uma missão, Cândido. Nada me afasta dela. Nem o meu amor por ti. Não é uma escolha entre ti e Du Yuesheng. Entre Macau e a China. É entre o que tenho de fazer e o que é importante, mas não é fundamental. Sei que isto te dói. Mas é melhor sentires uma dor aguda agora do que mais tarde. – O teu coração é, às vezes, demasiado de pedra para se comover. – Já o sabia, querido Cândido. Nunca te escondi o que sentia e pensava. As guerras ou se ganham ou se perdem. E nós não podemos perder esta. Acredita, eu voltarei. Nessa tarde Cândido estivera a ouvir a rádio de Hong Kong. Falava-se de um terrível ataque em Nanquim efectuado pelos soldados japoneses. Com muitos mortos. Que continuava, segundo alguns padres que tinham conseguido chegar à colónia britânica. Em Macau os europeus preparavam-se para comemorar a chegada de 1938, perante a indiferença do chineses, cujo Ano Novo só se iniciaria numa noite de Lua nova, a 31 de Janeiro. Seria o ano do Tigre. Jin virou-se para Marina: – Macau está cheia de conspiradores. Mais virão para aqui. Tenham cuidado. – E Du Yuesheng? – Está em Hong Kong. – Tu vais ter com ele e depois partes para a China? Jin refugiou-se no silêncio. Olhando-a, Cândido pensou na morte de Prazeres da Costa. Com Nomura morto não sabia se tinha sido ele a assassiná-lo. E se os assassinos fossem outros? Os homens de Du Yuesheng não eram santos. Em Xangai tinham feito verdadeiros massacres. Sabia que alguns membros do Bando Verde estavam a trabalhar para os japoneses em Xangai. Outros tinham vindo para Macau e tanto poderiam estar sob as ordens de Jin como de Nomura. Uns detestavam Chiang Kai-shek. Muitos, os comunistas. Outros só gostavam de dinheiro. Todos tinham argumentos, mesmo que falsos, para matar Prazeres da Costa. Jin talvez soubesse o que se passara, mas nada lhe diria. A sua lealdade a Du ultrapassava tudo. Luc LeFranc poderia saber. Seria um segredo impossível de desvendar. Jin sentia o ambiente pesado e o olhar inquisitivo de Cândido. Acabou por dizer: – Escravo é quem renuncia ao presente para sonhar com o que o futuro diz que lhe reserva. Mesmo que seja um aterrador castigo pelo que não fez. É igual. Renunciar ao presente é ser derrotado. E o que acontece a estes? Nenhuma piedade para eles. Nem os vossos mestres gregos acreditavam na piedade. – Como sabes? – Em Xangai também apareciam filósofos europeus, perdidos nas suas dúvidas. Encontravam na noite dos pecados um sentido para a sua vida. Marina olhava para os dois. Esta era uma batalha que nenhum ganharia. Cândido ficaria. Jin partiria para junto do seu guia, Du Yuesheng e talvez fosse para a China morrer por ele. Combatendo japoneses e os inimigos chineses. As armas de Jin e Cândido eram as palavras. Feriam-se, neste jogo que nenhum queria vencer ou perder. Nenhum deles iria fazer cedências. O amor não vencia aquela batalha. Estavam só a destruir o que era belo. Jin acabou com o silêncio. – Há homens que parecem estar sempre de partida. Tu és um deles, Cândido. Também tu partirás de Macau. És um marinheiro errante dum mundo sem fronteiras. Sabes que é cada vez mais difícil dizeres a que país pertences. Não queiras substituir uma pátria por um coração, só para te enganares. O amor que dizes sentir por mim, e pelo qual pedes que fique e abdique da minha missão, é uma desculpa. Isso é melancolia. Podemos ser livres, ou não. Podemos ser tudo, ou nada. Eu quero ser tudo. – Faz-me então um favor. Fica viva por mim. – Ficarei. Jin agarrou num anel de jade verde que tinha no dedo anelar e colocou-o no dedo de Cândido. – Com o tempo memórias e objectos são a mesma coisa. Com este anel verás sempre a minha face. As minhas faces, melhor dizendo. Uma virada para o nosso passado comum. E outra para o futuro que não sabemos o que será. – Tens os olhos puros. – Ninguém tem, Cândido. Marina Kaplan fez um sorriso. – Macau é bela e sem saída. Sejam sempre bem-vindos a esta cidade. Para jogar, para fugir do passado, para encontrarem o futuro. Assim continuará a ser. A vida é um jogo violento de luzes e de sombras, como mostravam Jin e Cândido. Marina Kaplan não quis dizer que Jin procurava o tufão pois só na tempestade encontraria o seu destino. Não queria ser como o imperador que queria ser um intermediário entra a Terra e o Céu. Não conciliava. Desaparecia. Já o tinha feito outras vezes, em Xangai. Mas desta vez era diferente. Não havia para onde fugir. E, assim, ela corria para o único sítio onde encontrava a paz: a guerra. A noite estava a acabar, mas o amanhecer estava sombrio. Os relâmpagos e os trovões criavam um cenário medonho. Na porta do “Bambu Vermelho”, Cândido e Marina ficaram a ver Jin Shixin caminhar para o automóvel que Potapoff estacionara. Esperaram em vão. Ela não olhou para trás. Nem para dizer adeus. FIM
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá [dropcap]O[/dropcap]s relâmpagos sobre as águas iluminavam o horizonte. A chuva caía, persistente, e o vento soprava, cada vez com mais força. Dentro do Chevrolet Confederate, estacionado perto do Cais 16, Jin Shixin e Cândido Vilaça tentavam ver a azáfama em que se tornara a descarga das caixas que tinham chegado a Macau. Lá fora, Patapoff, como sempre muito direito, dava ordens, apesar da chuva que ensopava os corpos de todos os que não estavam abrigados. Era um trabalho duro, ainda mais porque todos tinham de estar alerta. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Não havia sinais de Toshio Nomura ou dos seus homens. Deveriam estar à espera deles junto do armazém, ou no caminho, para fazer uma emboscada. Ou poderiam mesmo estar ali, à espera do momento ideal para atacar. Jin Shixin abriu a porta do automóvel e saiu. Dirigiu-se num passo seguro para Patapoff e, quando parou junto dele, começou a dizer algo, que Cândido não entendeu. Também ele decidiu deixar o conforto do Chevrolet e deu um par de passos no chão molhado. Jin voltou-se para para ele e começou a gritar algo. Não acabou a frase. Ouviram-se tiros e Cândido só viu Patafff atirar Jin para o chão e tirar uma pistola do bolso. Muitos dos carregadores correram e foram em busca das suas armas. Vindos das sombras muitos homens aproximaram-se a disparar. Eram, por certo, os homens de Nomura. Não tinham esperado. O ataque era agora. Viu alguns corpos a cair no chão, ceifados pelas balas. Mas outros entrincheiraram-se e os tiros aumentaram de frequência. Nesse momento um pequeno orofício do tamanho de uma moeda de pataca apareceu-lhe no ombro. Ajoelhou-se, tossiu com a dor, e caiu com a cara no chão. Ouviu gritos e mais tiros, mas tudo deixou de ser nítido. Sabia o que ia acontecer. Jin tinha muitos homens escondidos, à espera do ataque de Nomura. Agora eles iriam surgir por detrás, tapando o caminho à fuga dos japoneses e dos seus aliados. E estes ficariam cercados, entre dois fogos. Ele tinha sido o isco. E Nomura, sem ter medido bem as consequências da sua decisão, caíra no logro. Muitas memórias que atropelavam-se agora umas nas outras, mas todas sem sentido. Abriu os olhos e só viu pés a mover-se. Tentou soerguer-se, mas não conseguiu. O sangue saía do ombro e tentou estancá-lo com um lenço. Pediu auxílio, mas ninguém o ouviu. Viu um carro a estacionar perto de onde estava caído. O motorista abriu a porta e fugiu. Talvez já o tivesse feito outras vezes. Mas desta vez era diferente. Não havia para onde fugir. Ouviu mais tiros e viu o corpo do homem a cair no chão, ficando como uma sombra imóvel fustigada pela chva. O boné de motorista caiu da cabeça e foi afastado pelo vento. A seguir o silêncio impôs-se. Deixara de ouvir. Voltou a fechar os olhos. Não sabia o que se estava a passar. Viu-se no meio de um clube em Xangai, empurrado por homens e mulheres que se riam na sua cara. Todos tinham máscaras, bigodes muito grandes e lábios muito pintados. A seu lado estava uma jovem chinesa, assustada. Gritava, para não escutar os risos. Na mão tinha uma pistola. Parecia pertencer a uma geração enganada pelos seus sonhos, enganada pelas suas fantasias, enganada pelos serviços secretos de todos os que mandavam num pedaço de Xangai, enganada pelos amigos e pelos inimigos, aniquilada moral e fisicamente, sacrificada a interesses que nunca iria conhecer. Era só um peão, num jogo sem regras. Alguém dava um tiro nela e ria, por detrás da máscara. Às vezes a moral e a lei excluem-se. É isso a condição humana. Os gregos chamavam a isso tragédia. E dela não há saída. Quando entrávamos no mundo perdíamos toda a esperança. Por isso um homem livre tem de atender à verdade. Cândido não sabia se sonhava, se delirava. Voltou a abrir os olhos. A chuva continuava a cair com força e ia limpando a rua de sangue que tinha saído dos corpos caídos. Depois, voltou a perder os sentidos. Quando acordou, demorou um pouco a descobrir onde estava. Tudo à sua volta estava enovoado. Percebeu que estava deitado e procurou os cigarros. Só depois reparou que Jin estava ali. Sorriu e deslizou da cama, com cuidado. Sentiu tonturas e teve de colocar as mãos sobre o colchão. A chinesa, que estava defronte dele, agarrou-lhe nos ombros e disse: – Deixa-te estar sossegado. A ferida não é grave, mas perdeste muito sangue. – O que aconteceu? – O que se estava à espera. Os homens de Nomura emboscaram-nos no cais, julgando que atacavam de surpresa. Mas tínhamos tudo previsto. Ficaram cercados e lutaram para sobreviver. Cândido fechou os olhos e depois voltou a abri-los para ver se focava melhor a imagem. – E Nomura? – Tentou fugir. Mas não podíamos ter a mínima piedade por ele. Morreram muitos dos nossos. – Os japoneses vão enviar alguém para o substituir. Esta luta não terá fim. Jin fungou e encolheu os ombros. Os seus olhos estavam frios como gelo. Disse, num tom áspero: – Esta guerra não se restringe a Macau, Cândido. Não é só este canteiro que conta. Não está isolado do resto. Todo o jardim está em chamas. – E agora? – Agora vamos continuar a guerra. Não há tempo a perder. Nem dúvidas. Sabes, Cândido, os grandes mestres sempre nos disseram que há quem oculte a sua debilidade por detrás da máscara da fortaleza e, outros, a sua fortaleza por detrás da máscara da fraqueza. Continua a ser assim, como sempre foi. Mas sabemos que a máscara da fortaleza trunfa sobre a da debilidade. Aí radica o poder. Temos de usar a máscara da fortaleza para garantirmos a vitória. Só assim nos seguirão. Cândido olhou para Jin. Ela, no fundo, tinha de acreditar no que dizia. De outra forma, tudo se desmoronava. Não parecia crer que os opostos se uniam e que, muitas vezes, a debilidade não era mais do que a máscara de uma profunda fortaleza. Reparou que os olhos de Jin estavam agora tristes e inquietos. – Que tens mais para me dizer? – Uma coisa triste. A tempestade trouxe mais um corpo para a superfície. É o do teu amigo José Prazeres da Costa. Tal como a Amélia foi morto a tiro. – Não me estás a mentir? – Eu só minto o imprescindível. Cândido levantou-se e abraçou-a. Entre o ombro e o pescoço dela encontrou o aroma de pele que o fazia perder a noção da realidade. Encheu os pulmões e deixou-se ficar assim durante algum tempo. – Iam fugir, não é verdade? – Parece que sim. Julgaram que era possível o amor. Mas, nestes dias, também ele é uma vítima de quem tem outros desígnios. Cândido afastou-se dela e foi até à janela. As nuvens cinzentas estavam estacionadas no céu. Ia voltar a chover. Pensou que, para um crente, a fé na salvação, sem o travão da mão de Deus, pode fazer com que sacerdotes com outros intentos usem o único critério que resta para os desacordos: matar o inimigo. Era o que se estava a passar. Deixara de haver alguém que travasse a loucura que estava à solta na China. E agora, que fazer? Quando um homem tem medo e sente que não tem nada a perder pode fazer muitas coisas. Mas Cândido tinha uma fragilidade: amava. Virou-se e olhou para Jin. Depois voltou novamente a face para a janela. Chovia. Chineses corriam com embrulhos às costas, indiferentes à intempérie, mostrando que a vida continuava e era preciso sobreviver. Afinal, o que vale a pena salvar da pesada chuva que não escolhe amigos ou inimigos?
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [dropcap]O[/dropcap] fumo criava desenhos estranhos nas salas do “Bambu Vermelho”, agitado pelas ventoinhas colocadas no tecto. Pareciam dragões ou grandes peixes que se moviam sem parar, como se fossem fantasmas que ora apareciam, ora desapareciam e se transformavam noutros seres. As mesas estavam repletas de chineses que, encostados uns contra os outros, fumavam e apostavam em todo o tipo de jogos. Muitos deles, refugiados da guerra, tinham muitas histórias, algumas inacreditáveis, para contar. Mas, de noite, escondiam-nas nas profundezas da alma e libertavam todos os outros sentimentos. De vez em quando sorriam, quando as raparigas que deambulavam pelas salas se encostavam a eles e lhes propunham outros jogos, mais físicos. A maioria recusava. Não estavam alegres nem tristes. As suas faces apenas denotavam uma falta de energia, a pouca que lhes restava, e um instinto de sobrevivência que os mantinha vivos. O jogo era uma transfusão de sangue. Luc LeFranc estava numa mesa discreta, longe daquelas onde se jogava mah-jong e outros jogos chineses, com outros três jogadores. O póquer era a sua vida naquela noite. Numa pequena sala, resguardada por um biombo, Cândido Vilaça estava sentado com Marina Kaplan e Jin Shixin. O fumo torna a vista viciada, o que nem sempre nos permite perceber a realidade. Mas locais como aquele desejavam que a irrealidade absorvesse a nitidez. Para que todos se sentissem donos de uma felicidade aparente, aquela que todos buscavam mas era impossível de descobrir, pensou Cândido. Sentia-se destroçado pela fuga, sem explicações, de Prazeres da Costa. Marina olhava para ele e tentou confortá-lo. Mais fria, Jin explicou-lhe que, para fugir, ele precisava de cortar todos os laços emocionais. De outra forma, não poderia desaparecer sem deixar rasto. – Meu querido Cândido, cada tempo cria as suas próprias ilusões. Muitas vezes prometem o céu e trazem apenas o inferno. – Sempre sonhei que ia descobrir o paraíso. Marina tocou com os dedos no braço dele, antes de dizer: – Não foi isso que imaginámos todos? Jin Shixin agarrou no seu copo de vodka e bebeu um pouco. Passou a língua pelos lábios, num gesto desafiador. O seu olhos estavam fixos em Cândido. Marina compreendeu, e sorriu. Jin disse: – Tudo acaba mal na vida. Os finais felizes são uma invenção dos filmes, daqueles que às vezes iamos ver nos finais de tarde em Xangai, Marina. – Nesses dias pensávamos que o mundo não ia acabar. Mas viviamos num equívoco. Ou melhor, eu vivia. A Jin sempre seguiu um caminho desenhado pelo seu mestre Du. Eu acomodava-me. Mas não era uma fiel, como ela. Não era uma crítica. Era uma constatação. Jin fechou os olhos, numa secreta concordância. – E Du, onde está ele, Jin? Em Hong Kong? – Acredito que sim. A sua voz era convincente. Mas Marina, que tinha outros meios de informação, sorriu. A intervenção de Luc LeFranc no caso da resolução da dívida de Prazeres da Costa não tinha tido só o dedo de Jin. Esta olhou para a russa e, compreendendo o que ela estava a pensar, disse: – Isso é irrelevante. O que importa e que os japoneses não saibam onde ele está. Ninguém consegue voltar atrás, Marina. O mal que os homens fazem, persiste. Não há cura para que o que fazemos. Cada acção é absoluta e eterna a sua consequência. Nem o vosso Deus vos salva disso. – Talvez não, Jin. Mas nós, que acreditamos mais ou menos em Deus, acreditamos na salvação final. E tu, Cândido? – Eu sou um refugiado dum mundo mágico que não domino. – Só quando tocas o teu saxofone e pões as pessoas a dançar consegues iludir o feitiço. – Ou quando estou apaixonado. Olhou para Jin. Esta desviou os olhos. Estava inquieta. Marina levantou-se e saiu da sala. Ia ver como estava o ambiente, incluindo nas salas reservadas, onde o ópio era servido aos clientes que se deitavam à espera de pacificarem os seus corpos e pensamentos. Luc LeFranc, por momentos, deixou de olhar para as cartas e para as faces dos outros jogadores e seguiu-a com o olhar. De repente Marina reviu Li Pao. A sua face estava envelhecida, mas era o mesmo fotógrafo que, em anos anteriores, era conhecido como aquele que transformava os corpos das raparigas de Xangai em motivos de desejo, através de calendários e postais muito coloridos e belos. – Que fazes aqui, Li Pao? Ele surpreendeu-se e depois fez um sorriso triste: – Estou a repousar durante uns dias. Vou para as Filipinas. Por lá há paz. – Por enquanto.- Achas que a guerra chegará lá? Eu apenas desejo fazer as minhas fotos. – Ninguém é inocente num mundo de pecadores, Li Pao. E as raparigas ficaram em Xangai. Em Manila são menos inocentes. Marina colocou-lhe a mão no ombro. Junto deles estava uma rapariga filipina que o levou para uma das salas de ópio. Li Pao parecia vergado ao peso das suas dúvidas. Nesse momento deparou-se com Popoff. O sempre glacial russo, parecia transtornado. Ele perguntou: – A menina Jin está por cá? – Está. Eu levo-te até ela. Caminharam um pouco até chegarem ao reservado onde Jin e Cândido, de mãos dadas, falavam. A chinesa mostrou um ar surpreendido com a chegada do russo: – O que aconteceu, Patapoff. – Uma coisa muito estranha, menina Jin. Um grupo de pescadores chegou há pouco a Macau com um corpo que estava a boiar e que eles recolheram. Pelos vistos estava preso a algo pesado, mas as cordas desprenderam-se e veio à superfície. Como são nossos amigos chamaram-me antes de contactarem a polícia. Era o corpo de uma mulher branca. Tinha sido morta com um tiro junto ao coração. Os olhos de Jin brilharam: – Sabes quem era? – Penso não me ter enganado. Mas acho que era o corpo da senhora Amélia, com quem o senhor Prazeres da Costa fugira, segundo me tinham contado. Cândido sabia que fora Jin que informara Potapoff. Mas este acontecimento contradizia Nomura. Ou Prazeres da Costa fugira e matara, por uma razão desconhecida, Amélia. Ou ambos tinham sido mortos pelos japoneses. E só faltava encontrar o corpo do português. Olhou para Jin e, depois, para Marina. Ambos estavam a pensar o mesmo. Jin disse então: – Agora sim, os dados estão lançados. Não há mais tempo para jogos nas sombras. Virou-se para Potapoff e acrescentou: – Vai informar quem deve saber de tudo isto. Depois, quando regressares, falaremos. Potapoff fez uma ligeira vénia e saiu. Jin virou-se para Cândido: – Tens medo, Cândido? – Deixei de saber o que é isso. Marina sentou-se junto a eles, depois de ter ido buscar uma garrafa de vodka. Despejou uma boa porção em três copos e agarrou num deles. Bbbeu o seu conteúdo de um trago. Virou-se para Cândido: – Sabes, um dia conheci um padre jesuíta em Xangai. Definia-se como um marinheiro do Papa. E disse-me que que com eles tinha aprendido lógica, metodologia e sentido de justiça. – É preciso que se faça justiça por Prazeres da Costa. Mesmo apesar dos seus erros. – Sim, o que custa é morrer para nada. Jin disse, numa voz firme: – Neste caso poderemos perecer. Mas será por uma causa. O olhar de Jin faiscava. Cândido nunca vira tanta certeza concentrada nas íris de uma mulher. Horas mais tarde, quando Potapoff se foi embora da casa de Jin, esta veio ter com Cândido. Este estava deitado na cama. Ela voltou a despir-se e colocou-se em cima dele. Nas guerras não há empates. E, nessa noite, Jin derrotou-o. Só parou, quando ele lhe pediu para dormir.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá [dropcap]O[/dropcap] restaurante chinês “Cam Seng”, no quinto andar do hotel Central era o local a que Toshio Nomura chamava o seu escritório à hora de almoço. Era um homem de hábitos às refeições, algo estranho para quem as rotinas podem ser perigosas. Sabia-se também que, às vezes, passava parte da noite no clube “Hou Heng”, no sexto andar, onde se encontravam muitos estrangeiros e alguns portugueses. Era um bom local para colher informações e, da varanda, tinha-se uma agradável vista da cidade. Nomura, que evitava ir aos locais onde a maioria dos presentes era chinesa, preferia, nos finais de tarde, ir ao Canídromo. Gostava de apostar nas corridas de cães. Depois ia até ao salão de dança do local, acompanhado quase sempre duma filipina, que apresentava como sua secretária, que muitos diziam ser a amante. O japonês mandara uma mensagem a Cândido Vilaça logo pela manhã para estar ali para almoçarem. Jin Shixin, que ainda estava em casa do português, sorrira, quase malevolamente. Nomura estava sentado numa mesa colocada num canto, de onde se via toda a sala, e fumava um cigarro através de uma cigarrilha. Pareceu-lhe mais novo do que era. Talvez tivesse pouco mais de 40 anos. Assim que Cândido se sentou à sua frente, perguntou-lhe, no seu português com sotaque brasileiro: – Bebe vinho? Aqui têm bom vinho tinto português? – Aceito. Há muito tempo que não o bebo. – Acho que sei a marca. Periquita? Assim era. O empregado trouxe uma garrafa e antes de a abrir mostrou-a. Nomura confirmou a escolha. – Para comer propunha uma garoupa frita. Aqui é excelente. Com arroz chao-chao. – Parece-me uma excelente sugestão. Nomura fixou os olhos em Cândido e pareceu estudá-lo com rigor. Era um homem habituado a ler os pensamentos dos outros. – Parece-me um bom homem, Cândido. E tenho de lhe agradecer a informação que nos passou. Permitiu-nos saber onde é o armazém do Bando Verde. Encomendaram a refeição e Nomuera disse: – Só tenho pena de não terem aqui sake. – Tem de pensar em importar. Se pensa ficar em Macau muito tempo… – É uma boa ideia. – Importar ou ficar em Macau? Nomura deu uma gargalhada. – Gosto do seu sentido de humor. Mas, aproveitando a boa disposição, deixe-me perguntar-lhe algo. Sabe do José Prazeres da Costa, o nosso comum amigo? – Desde ontem à hora de almoço que não o veio. Estive no “Bambu Vermelho” à noite, mas ele não apareceu. O que foi estranho, porque tem andado com sorte ao jogo. – Eu sei. Pagou-me tudo o que me devia. Bem, poderia dizer-lhe que não sei dele. Mas isso é uma mentira e depressa descobriria isso. E deixaria de confiar em mim. Fez uma pausa, para apreciar o resultado das suas palavras. O olhar de Cândido manteve-se impassível. – Pois bem, o nosso comum amigo embarcou esta manhã para Hong Kong. Ia acompanhado por uma senhora, Amélia de seu nome, segundo julgo saber. Acredito que vá a caminho de Portugal. Deve ter conseguido ganhar algum dinheiro nas últimas semanas para conseguir fazer isto. Até há pouco tempo estava falido. Ele não lhe disse nada? – O que está a dizer apanhou-me de surpresa, tal como julgo deve ter acontecido consigo. Mas deveria estar a preparar a fuga há vários dias. – Só uma coisa estranho, porque estou habituado a que as pessoas tenham duas faces. Ou mais, ainda. Como é que ele ganhou tanto dinheiro em tão pouco tempo, tendo o suficiente para me pagar e, ainda mais, para fugir? – A sorte do jogo também muda. – Acha que muda sem uma mão invisível e interessada intervir? Fixou o olhar em Cândido, que sentiu um leve arrepio. Sabia o que se tinha passado. A sorte foi que foram interrompidos pela chegada da comida. Nenhum deles reparou que, numa mesa próxima, se tinha sentado Luc LeFranc. O jogador olhou para eles, disfarçadamente e pediu algo para comer e beber. Trazia um exemplar do “South China Morning Post”, que foi lendo com interesse. Passado um par de minutos, Nomura voltou a falar: – Diga-me honestamente, amigo Cândido. Agora que o José fugiu, estaria disposto a colaborar mais proximamente connosco? – De que forma? – Ajudando-nos no circuito de comunicações. Fazendo relatórios diários sobre o que ouve nos locais onde vai. Nós desejamos saber o que sentem as pessoas que vivem em Macau. E, claro, perceber quem são os nossos amigos. E os nossos inimigos. – Eu sou apenas um músico. – Os músicos têm os melhores ouvidos. Dito isto, Nomura deu uma gargahada. – Meu caro, nunca se tente mostrar que é mehor do que é. Nem pior do que acham que é. – Não tento. Prometo ir pensar na sua oferta. Mas queria deixar-lhe uma informação. Sei que amanhã à noite, vai haver uma nova descarga no Porto 16. Sei apenas que desta vez é muito importante. – Importante? Tem ouro? – E não só. Heroína. Nomura franziu os olhos. – Heroína. Os chineses não costumam traficar essa droga. É um monopólio nosso. Foi a vez de Cândido mostrar-se surpreendido: – Vocês traficam heroína? Nomura fez um ar enfadado. – Só o suficiente para pagarmos as nossas acções. Não é um negócio como o do Bando Verde. Mas agradeço a sua preciosa informação. De resto trago-lhe uma lembrança. Dito isto, tirou de um bolso do casaco um envelope, que colocou defronte de Cândido. Este agarrou-o e viu o seu conteúdo. Tinha uma quantidade interessante de dólares americanos e de patacas. – Não posso aceitar, meu caro Nomura. – Pode e vai fazer isso. Porque é uma forma de selar a sua lealdade connosco. O seu olhar era agora agressivamente fixo. Cândido cedeu. Agarrou no envelope e guardou-o. Nomura sorriu: – Meu caro amigo, você é sincero e isso torna-o um alvo fácil. Já eu vivo entre a espada e a parede. Estes são tempos difíceis. Seremos sempre julgados depois, pelos nossos companheiros. Para o bem e para o mal. Parou um pouco para beber um pouco de vinho. Os seus olhos brilhavam: – Para mim quem não sabe distinguir entre o bem e o mal, entre o correcto e o errado, não merece a nossa atenção. Há coisas essenciais, a lealdade, o sentido de dever e o valor. Sabe, Cândido, sempre fui um guerreiro, nas mais diferentes tarefas que exerci. Aprendi uma coisa: a maior preocupação de um guerreiro é como se comporta defronte da morte. A vida faz parte da morte da mesma forma que a morte inclui a vida, diz um nosso provérbio. – Mas a guerra destrói toda a lucidez, não? – Os homens fizeram barbaridades mais cruéis que as que cometeram, invocando o Bem, enquanto cortavam cabeças aos inimigos? Em qualquer caso, quando te esqueces da morte e te distrais, perdes a prudência. Mas já viu o suficiente disso em Xangai, não foi? Ninguém deseja que isso aconteça em Macau. É uma cidade tão pacata. Cândido ficou calado. Nomura tinha uma missão. Que chocava com a de Jin. Um deles sairia vitorioso. O outro seria derrotado. Não havia meio termo. E ele, sentiu, já escolhera o seu lado. Ouviu ainda Nomura dizer: – Lembre-se, quando se caminha de noite por caminhos iluminados, deve-se andar pela sombra. Devemos ocultar o rosto. Mas eu sei quem são os meus amigos em Macau. E o Cândido é um deles. Nomura não confiava totalmente nele. Mas, naquele momento, era-lhe útil. Estiveram mais algum tempo a conversar, e depois de terem bebido o chá, se levantaram. Luc LeFranc deixou-os sair. Du Yuesheng iria ficar contente ao saber que tudo corria como esperado.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [dropcap]O[/dropcap] escritório de Ezequiel de Campos ficava em frente do edifício do Leal Senado. Dali via-se o poder. Ou, se alguém quisesse pensar de forma mais conspiradora, o local de onde o homem de poder, que escolhia trabalhar nas sombras, observava e esperava o momento certo para conseguir o que queria. Cândido Vilaça, olhando da janela do escritório para o largo em frente, pensou que se os chineses gostavam de jogar, Ezequiel aprendera com eles. Mas era um outro tipo de jogador. Analisava com antecedência as hipóteses de vitórias ou derrotas. Sabia que só a eficiência vencia. Virou-se para ele quando Ezequiel lhe perguntou: – Quer um vodka? Ou prefere um uísque? Eu vou por este. Cândido acenou com a cabeça e depois sentou-se na cadeira que estava defronte da secretária do português. Reparou que atrás desta estavam quadros com pinturas antigas. Ezequiel sorriu, depois de colocar os dois copos na mesa. – Está curioso? São os retratos de dois homens que foram muito importantes a história de Macau. Marcaram a vida política e comercial da cidade. Miguel de Arriaga, que foi Ouvidor no início do século XIX. E José Carlos da Maia, que foi Governador no início do século XX. Repare na vida que há nos seus olhos. Sobressaem nas pinturas. Os olhos, sempre o achei, são as luzes da alma. Percebe-se por eles se alguém tem algo que os move. Ou se a sua vida é inútil. Falava com uma ponta de orgulho, como se se sentisse um sucessor de ambos. Cândido nunca tinha ouvido falar deles, mas os rostos dos retratados impressionavam, pela força de carácter. Talvez Ezequiel fosse assim. Marina Kaplan tinha-lhe confidenciado que aquele que era agora o seu amante dormia pouco de noite. Era, para ele, um tempo de pesadelos. Sonhava com a noite em que os pais tinham sido mortos, numa rixa inexplicável à porta de um restaurante situado no Porto Interior. Quando acordava, desejoso de vingança, confrontava a escuridão da sua alma de uma simples maneira: aumentando o seu poder e riqueza. Isto era o que fazia com que a sua vida fizesse sentido. Cândido olhou para ele. Marina contara-lhe ainda que ele fora um homem que, primeiro, perdera tudo, quando os pais morreram. Depois ganhou tudo. E depois perdeu tudo. Até aprender. Para ele a vida tornara-se uma competição. Vivia para ganhar. – O que é que vai fazer em Macau, Cândido? Vai ser músico toda a vida? – Não sei. A minha vida sempre foi feita de acasos. – Eu sei. A minha também o foi. Mas, depois, encontrei um caminho. Cândido sorriu. – Aproximam-se tempos difíceis, mas empolgantes. O Cândido poderia ser um colaborador muito útil para mim. – Para quem não sou? – É verdade. Os japoneses acham que é útil a eles. Jin Shixin pensa o mesmo. E, já agora, o Cândido consegue ser útil a si próprio? – Tento sobreviver no meio disso tudo. Mas, sabe, o amor mostra-me que caminho devo seguir. – Acha mesmo que Jin Shixin vai ficar aqui em Macau, consigo, enquanto a sua China vai continuar em guerra nos próximos anos? Desculpe que lhe diga: você não é um jogador. É um sonhador que está num trapézio sem rede por baixo. Vai aleijar-se. – Acha que Jin deixará Macau? Ela aqui é a Grande Dama do Chá. O que será na China, no meio de uma guerra sem fim? – Uma guerreira com uma missão, não acha? Desiluda-se Cândido. Ela pode amá-lo, mas ama mais a China. E o seu mentor, Du Yuesheng. E este tem outros planos para ela. Fez-se um silêncio desconfortável. Depois, Ezequiel, após beber um gole de uísque, disse: – Navegamos num mar de inimigos. Lisboa não nos virá salvar. E os ingleses vão ter mais problemas do que julgam agora. Xangai caíu nas mãos dos japoneses. Nanquim está por horas. Chiang Kai-shek não conseguiu que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha avançassem para sanções efectivas aos japoneses. E estes ficaram com liberdade para avançar na China. Nós vamos fiar-nos na neutralidade. O problema é que os chineses e os japoneses desconfiam de nós e qualquer movimento não equilibrado da nossa parte é claro e suspeito. Estamos entre as forças navais japonesas e a China. – E onde é que isso nos leva? – A nenhuma forma de divertimento. A nada que o jazz, apesar da sua beleza, consiga resolver. Macau não tem recursos, víveres. É uma praça comercial. Compra e vende. Se for cortada a ligação ao sul, comeremos o quê? O ópio que aqui temos? Precisamos de arroz. E de carne e peixe. Nos próximos anos quem controlar isso, controlará a vida, mas também a política. Assim, quem vai vencer, Cândido? – Não sei. Mas temos de alinhar por algum lado. – Temos? Acha que os portugueses sobreviveram em Macau porque, ao longo de séculos, tomaram decisões radicais? Quando o fizémos, saiu asneira. O inimigo de hoje pode ser o aliado de amanhã, nunca o esqueçamos. Deveríamos aprender com os chineses a arte da caligrafia. Como nos devemos conter de forma a controlarmos o pincel. Temos de aprender a controlar o corpo e a mão. É tudo uma questão de prática e repetição. E de vislumbrarmos o futuro. Cândido olhou com atenção para Ezequiel de Campos. Estava no apogeu do seu poder e da sua capacidade sedutora. Os olhos azuis eram poderosos e combinavam perfeitamente com o ar maduro que lhe davam os cabelos brancos. Comjugava perfeitamente a gestão da advogacia e dos seus interesses comerciais. Não deixou de voltar a notar a cicatriz que lhe marcava o rosto entre a orelha esquerda e o pescoço. De vez em quando levava a mão lá para a acariciar. Para recordar. Ezequiel devolveu-lhe, por momentos, o olhar fixo. – Não teme os japoneses, Ezequiel? A Marina contou-me que eles querem conquistar a noite de Macau. Produzem heroína. E querem substituir o ópio por ela. Domesticando o povo. Esta cidade pode ficar sem parte da sua vida. E sem qualquer futuro. – E quem vai chorar? Será tudo uma questão de quem ganhar dinheiro com isso. E quem tem dinheiro? Foge para a Indochina? É pouco. A guerra vai lá chegar. Repare, Cândido, cada um joga o seu jogo, com corpos a amontoarem-se à sua volta. E com a guerra de guerrilhas os comunistas sonham com a sua futura vitória. Não sejamos ingénuos. Cada um só pode contar consigo. Sabes, os ocidentais olham para um tanque e buscam o peixe que lidera. Os orientais vêem toda a cena. Temos de compreender que estamos na China. O ocidente é individualista. A antiga China era colectivista, onde se pertencia a uma larga comunidade agrícola. Sobreviver dependia mais do grupo do que do individual. Os ocidentais preocupam-se mais com a glória individual. Lembra-te dos Jogos Olímpicos. Há neles um ideal individualista de honra e glória. A competição individual. Isso ficou no sangue do Ocidente. Ezequiel levantou-se e aproximou-se da janela. Tinha um charuto entre os dedos por acender. Depois de alguns momentos de silêncio, disse: – É por isso que te estou a perguntar se queres trabalhar comigo. Vai haver muito para fazer nos próximos anos. E podes continuar a tocar, nas horas vagas. Mas pensa no futuro. E não apenas no amor. Sabes o que vejo daqui? Cavaleiros pálidos aproximam-se de Macau. Vão chegar assim que o vento começar a uivar. Toda a suavidade desaparecera dele. Nas linhas do seu rosto, nas tensões do seu corpo, havia uma decisão letal. Ezequiel sabia qual o seu destino.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá [dropcap]A[/dropcap]s chávenas e os bules de chá que existiam na loja “O Jardim Celestial” de Jin Shixin eram da dinastia Qing e estavam decoradas com requinte. Compreendia-se: Jin era a Grande Dama do Chá. Não deixava nada ao acaso, ela que criara a mais afamada loja de chá de Macau. Enquanto ela atendia uma cliente portuguesa, Marina Kaplan ia passando os dedos pela fina porcelana das chávenas que estavam num móvel de madeira de cerejeira. Depois sentou-se e inspirou o aroma do chá verde de Anhui que tinha defronte dela. Levou a chávena aos lábios e deu um pequeno gole. Era maravilhoso. Como os chineses Han, Jin não se convertera ao gosto do chá preto que a dinastia Qing, manchu, preferia. Não por acaso, na Cidade Proibida, existiam duas cozinhas para preparar a bebida. Uma para fazer o chá preto com leite para a corte manchu e outra para o chá verde preferido pelos Han. Esse mundo dividido ao meio pelo chá acabara com a chegada da República. Marina sentiu que Jin, impecavelmente vestida num cheongsam verde bordado com uma flor de lótus, se aproximava. Levantou a cabeça e esboçou um sorriso. A pose de Jin era exemplar. O seu sorriso era convidativo e o olhar doce. Qualquer cliente era seduzida por ele. Os seus olhos cintilavam. Sentou-se defronte da russa e perguntou: – O chá está ao teu gosto? – Está maravilhoso. Jin sentou-se e agarrou no bule, despejando um pouco de chá para a chávena que estava à sua frente. – O Cândido este ontem à noite no Bambu Vermelho? – Chegou lá muito abalado. – Imagino. Viu o corpo do russo morto à porta do restaurante. – Como sabes? Jin fez um sorriso enigmático, que Marina compreendeu. Desde que chegara a Macau, Jin criara uma vasta teia de contactos. Sabia o que se passava nas ruas e nos becos e, nalguns casos, no meio da administração portuguesa. Muitas das suas clientes eram casadas com funcionários públicos portugueses. Falavam de coisas triviais. E de outras mais importantes. Jin sabia ouvir. – Cândido percebeu agora onde tu o colocaste. Ele ama-te. Mas ontem ficou na dúvida se não o estás apenas a utilizar para teu benefício. Porque voltou a ver a morte defronte dos olhos. – Ele terá pensado no que sucedeu à sua namorada em Xangai, a Qin Xuan? Marina franziu a testa, como se estivesse a tentar recordar o passado, antes de dizer: – Acho que sim. Lembras-te do que sucedeu? Foi logo a seguir ao suicídio daquela actriz famosa, a Ruan Lingyu. Era tão nova! Mas a Qin foi morta. Num daqueles ajustes de contas entre bandos. Ela estava perto do homem que queriam matar e também foi baleada. Vinha a sair dos estúdios da estação de rádio que tinha o Lucky Strike Radio Hour e que passava jazz. Cigarros e dançar eram a mistura perfeita, diziam eles. E ela, que vendia cigarros no Canídromo, tinha ido lá levar maços de tabaco para os locutores. Uma gentileza que lhe saiu cara demais. Cândido demorou tempo a recuperar, como sabes. Passou a tocar e a beber para esquecer. E viciou-se no ópio. Ainda bem que veio para Macau. Jin tentou parecer imperturbável. – Ela alguma vez soube quem disparou? – Nunca lhe disse. É bom que fique na ignorância. Sabe apenas que algo correu mal e que a polícia nunca conseguiu averiguar nada. Os olhos de Marina denotaram alguma nostalgia. – Nunca mais vai haver uma Xangai assim. Com corridas de cães no Canídromo e cabarets, homens a apostar nos cães como se estivessem a jogar a sua própria vida, noites loucas a dançar cheias de homens e mulheres desejáveis, sem ninguém saber que horas eram. Com todo o tempo do mundo para viver. Para mim, que vinha fugida da Rússia, esse era o paraíso. Jin sussurrou e disse, mordaz: – Fumavas Lucky Strike ou Da Ying? – Os verdadeiros cigarros americanos. Em tempos de perdição, para quê escolher cigarros que fingiam ser chineses e eram também americanos, como os Da Ying? Mas, diz-me, Jin, que queres fazer com Cândido? – Dar-lhe apenas uma missão que faça com que se sinta vivo. E amor. Jin parou por um momento e bebeu um pouco mais de chá. – De que lado estás, Marina? – De nenhum. – Os japoneses acabarão com o jazz. E com a paz. E com Macau. E mesmo com o teu amor, Ezequiel. – E vocês, se ganharem, não o farão? – Ainda vives numa ilusão, Marina. És inteligente, mas só vês o que queres. Lembra-te, Xangai era a cidade das concessões estrangeiras. Com os comunistas a corroerem-na por dentro. A cidade só parecia livre para os estrangeiros. Xangai não era uma cidade. Era uma ilusão feita com pessoas reais. Tudo ao serviço do prazer. E dos sonhos para os ocidentais. Era a paz perfeita: uns divertiam-se, os outros ganhavam dinheiro. Depois vieram os japoneses. E a ilusão foi como uma bola de cristal: quebrou-se. – Eu sei o que passei, Jin. Comecei como acompanhante no Ciro’s. Tive a sorte de Du Yuesheng e de ti própria terem gostado de mim. Não o esqueço. Mas quero viver a minha vida. – E se os japoneses ganharem? – Descobrirei qual é o ritmo da dança. Aprendi que neste mundo de enganos, cada um cria o seu próprio jogo de sombras e de ilusões. – Esse é também o jogo do Ezequiel? Ou tem também um acordo com os japoneses? Marina fez um ar sério. Sondou o olhar de Jin. E depois disse: – Ele é um homem com valores. É um negociante, mas tem ética. Não se vende por tudo. Porquê? – Há cerca de dois anos os japoneses começaram por querer tomar conta da vida noctura de Xangai na barba dos franceses. Queriam substituir o ópio pela heroina, que se injecta com agulhas. Extrai-se do ópio, por isso eram negócios concorrentes. Queriam os clubes nocturnos para controlarem a noite e afastar o Bando Verde. Sem o dinheiro do ópio, deixaria de ter tanta força. É uma boa forma de se ocupar uma cidade sem ninguém reparar. Parou um pouco para ver que reacção causava o que estava a dizer em Marina. Esta ripostou: – Também querem fazer isso em Macau. Nomura propôs comprar-me o Bambu Vermelho há umas semanas. Mas aqui gosta-se mais de ópio. E não há uma vida nocturna como a de Xangai. O seu objectivo, aqui, cairá por terra. Talvez conquistem a noite de Manila. E a de Hong Kong. Aqui não. – Sabes, Marina, tudo isto faz-me lembrar uma velha fábula chinesa. Nela, uma coruja encontra uma codorniz e esta pergunta-lhe: “para onde vais, coruja?” E esta responde: “Vou para oeste, pois as pessoas da aldeia reclaram muito do meu piar.” Diz então a codorniz: “aceita uma sugestão minha: muda o teu piado, ou vão odiar-te onde quer que vás”. – Eu seu mudar de piar, Jin. Marina deu uma gargahada. Apesar das diferenças, conheciam-se há demasiado anos. E partilhavam demasiados segredos. A conversa foi interrompida pela chegada de um casal. Falavam inglês, com sotaque. Eram americanos. Jin levantou-se e colocou o seu sorriso de vendedora. – Continuaremos esta conversa depois. – Diz-me só mais uma coisa. Foste tu que mataste o russo? Jin olhou para ela, mas não respondeu. O seu olhar dizia tudo. Marina Kaplan agarrou na chávena e depois levou-a à boca. Aquele chá delicioso não deveria ser desperdiçado.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]P[/dropcap]ara Cândido Vilaça, Macau ainda era um labirinto de ruas desconhecidas. De esquinas e becos onde se escondiam almas que não queriam revelar o seu passado. Ele não era diferente. O seu passado atormentava-o, como se fosse um fantasma incapaz de adormecer para sempre. Olhou para o céu em busca das estrelas. Não as viu. Estava uma noite nublada e quente. Caminhava calmamente para o restaurante “Grande Oriente”, onde combinara encontrar-se para jantar com José Prazeres da Costa. Ainda um pouco longe, ouviu o estampido dum tiro, algo que não o incomodou. Ouvira muitos em Xangai, quando os assassínios se sucediam, mesmo nas avenidas mais movimentadas da concessão francesa. De qualquer maneira apressou o passo. Passados cerca de cinco minutos chegou defronte do restaurante. Junto a ele aglomeravam-se algumas pessoas e um par de agentes da Polícia de Segurança Pública. Aproximou-se. No chão estava um corpo. Não tardou a reconhecê-lo. Era o do russo Ivan Sapojnikov, que trabalhava para Toshio Nomura. Não era um bom sinal. Fora morto a tiro. Os agentes da PSP pediam aos curiosos para se retirarem, enquanto esperavam a chegada de um médico e de um oficial superior. Cândido entrou no restaurante, onde muitos clientes pareciam não se ter apercebido do sucedido. Ou então, não desejavam saber o que se passava. José Prazeres da Costa estava sentado numa das mesas, com um copo de vinho tinto à frente. Cândido sentou-se à sua frente e, antes de dizer algo, Prazeres da Costa questionou-o: – Está morto, não é? – Parece-me que sim. – É uma desgraça. Tinha estado a falar com ele há pouco. Ia levar um recado meu para o Nomura. Porque é que aconteceu isto? – Porque tinha de acontecer. O olhar de Prazes da Costa ficou lívido: – Achas? Será que também me seguem? – Quem? – Os chineses do Bando Verde. É deles que Nomura tem medo. Foram interrompidos por Tomé de Freitas, o dono do restaurante. O seu ar era pesado. Olhou fixamente para Prazeres da Costa e, depois, para Cândido, antes de perguntar: – Desejam jantar? Ambos escolherem os inevitáveis bifes com batatas frita e ovo estrelado, uma especialidade da casa. Tomé de Freitas ia dizer algo mais, mas conteve-se. Não conhecia bem Cândido. Afastou-se, rumo ao balcão. O músico olhou para Prazeres da Costa. A sua habitual postura orgulhosa, mas tímida, dera agora lugar a outra, em que os seus mais pequenos gestos traduziam apenas inquietação. Ou desconfiança e insegurança. Cândido viu-o sondar a sala com os olhos. Tinha medo. Tentou desviar a conversa: – E Amélia, como está? – Tenho de tomar uma decisão. Mas agora não sei. Se eu estou em perigo, ela também o poderá estar. Meu caro Cândido, esta morte é um sinal. Não vai haver tréguas. Nomura vai retaliar. Este era um dos seus tenentes. Não sei se sabes mas têm morrido homens do Bando Verde e outros que alinham connosco. Assassinados. Outros desaparecem. Tem sido uma guerrra subterrânea, mas onde só têm sido sacrificados peões. Como no xadrez, compreendes. Agora, a guerra é outra. – Achas que poderá chegar a ti? Prazeres da Costa fulminou-o: – E a ti, se desconfiarem do que fazes. Se perceberem que usas o que te diz a chinesa para nos informares, também serás um alvo. Não era nada disso que o Nomura me prometera. Mas se o russo foi morto… Até o Tomé, que é um grande amigo nosso, e tem ouvidos muito atentos, está receoso. Cândido franziu os lábios. Bebeu um pouco de vinho, no momento em que colocaram a comida defronte deles. Depois disse: – A política sempre foi uma actividade perigosa. Aprendi isso em Xangai. E outra coisa. A justiça as vezes não é cega, como o de uma deusa, mas tem pés de chumbo. A polícia portuguesa não vai descobrir quem o matou. Prazeres da Costa estremeceu um pouco e olhou com insistência para o tecto, julgando, talvez, que dali viesse alguma resposta para as suas dúvidas. Depois comeu um pouco do bife. Parecia ter deixado de ter apetite. A voz trémula dizia tudo: – Porque é que achas que o russo foi morto? – Porque sabia demais. – Não. Foi para começar uma guerra. Olharam um para o outro, à espreita do perigo. Mas nenhum dos dois o via naquele momento. Cândido, mais descontraído, disse: – O primeiro passo para resolver um problema é vê-lo de forma clara. Nomura fará isso. – Achas? Ele, às vezes, perde a calma. E guia-se pelas emoções. Cândido reparou, pela primeira vez, que Prazeres da Costa tinha os dedos amarelos, por causa da nicotina. Fumava demasiado nos últimos tempos. Por causa dos japoneses. E, sobretudo, por causa de Amélia. Voltou à conversa: – Isso é mau. Talvez seja o que os chineses do Bando Verde estão à espera. Que ele dê um passo em falso. Já agora, diz-me, ele ficou contente com a minha informação? – Muito. Cândido olhou à volta. A noite apresentava-se promissora. Tinham chegado novas raparigas ao restaurante. As que, quando a iluminação deixava de ser tão clara, cirandavam pelas mesas, em busca de companhia. Algumas eram russas, outras da Mongólia. Naquela noite apresentava-se ali uma fadista que tinha vindo de Lisboa. E, de caminho para Goa, aproveitara para conhecer Macau. Apeteceu-lhe ir buscar o saxofone e juntar o seu som ao da guitarra portuguesa e da voz dela. Era uma rapariga de pouco mais de 30 anos. Muito morena e de olhos negros. Usava um xaile, algo que era um acessório quente para as noites de Macau. Mas era uma imagem que definia uma fadista como ela. Ana de Freitas, assim se chamava aquela jovem que tinha a voz quente e poderosa que, à meia-luz, fez silenciar todos os que estavam no restaurante. E cantava: Venho Desse tempo já esquecido Quando as mãos se tocavam nos becos Trocavam beijos ao luar Tudo isso é tempo ido Que saudades de amar Venho De esquinas sem idade Onde mulheres de má fama Liam sinas cheias de verdade Onde viam perigos Numa vida de enganos Tenho Uma faca e um canivete Para sobreviver Aos meus pecados Na pele, gravados No coração, desenhados Quando ela terminou, quase meia hora depois, entre aplausos, Prazeres da Costa fitou Cândido e disse: – E a tua amiga Marina Kaplan? Não posso deixar de lhe agradecer o que fez por mim. – Ela é uma senhora. Poderia, se quisesse, recrutar qualquer pessoa para as suas causas. Até os padres. Ou mais. – Seria uma boa recruta para Nomura. – Não a tentes com isso. Perderás uma amiga. – Achas? – Tenho a certeza. Marina não alinha com ninguém. Só com os seus interesses. E estes são insondáveis. Já agora, que sabes de Ezequiel de Campos? – Ele é a pessoa por detrás das cortinas. Tem mais poder do que muitos que julgamos serem os mais poderosos de Macau. Cândido bebeu mais um gole de vinho. Apetecia-lhe sair dali. Já deveriam ter retirado o corpo do russo do passeio onde tinha sido assassinado. – Ficas, José? Eu vou indo. – Vou ficar. Apetece-me ficar embriagado. E conhecer as novas raparigas. – E depois vai jogar? – Hoje já jogaram o suficiente comigo. Poderia ter sido eu a morrer. – É verdade. Cândido saiu. Não se via ninguém na rua. Sabia-lhe bem o cheiro da noite. Mas sentia que lhe faltava algo. Seguiu rumo ao “Bambu Vermelho”. O aroma do ópio chamava-o, para que se pudesse acalmar. E dormir em paz.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]O[/dropcap] jazz absorvia todos os pecados do mundo. E depois distribuía-os, em forma de música, para absolver as almas. Enquanto dançavam alguns representavam um papel. Outros, sentados, fumavam e conspiravam só com o seu olhar, que percorria incessantemente o salão principal do hotel Riviera. Algumas mulheres observavam os seus maridos, homens influentes da sociedade de Macau, e outros homens que não conheciam. A cidade era pequena e os segredos de cada um não estavam fechados a sete chaves. Surgiam por ali alguns estrangeiros, alguns deles espiões ingleses ou americanos, e homens de negócios chineses. Só o som da Benny Spade Orchestra suavizava todas as tensões naquele fim de tarde. Estava muito calor nas ruas. Entre os que ali estavam, alguns tinham lido a edição do “South China Morning Post” com as últimas das batalhas cada vez mais sangrentas entre japoneses e chineses e das lutas entre os diferentes senhores da guerra da China. Ninguém ali presenciara uma guerra, com os seus corpos caídos sem vida, as cearas queimadas e os animais mortos. A guerra preocupava, mas estava distante. Vivia-se e dançava-se ao som do jazz. Enquanto estava em cima do palco, com a Benny Spade Orchestra, Cândido Vilaça pensava que, um dia, poderia ambicionar a tocar sozinho. E contar histórias próprias com o seu saxofone. Ele poderia ser a sua forma de gritar. Indiferentes aos seus pensamentos e ao mundo que caía à sua volta, as pessoas dançavam e transpiravam. Talvez essa fosse a atitude mais sensata, pensou. No meio do fumo reparou que Jin Shixin deixara o salão e fora até à varanda do hotel. Quando, largos minutos depois, deixou o palco, encontrou-a ali. Quando o viram, os olhos amendoados de Jin semicerraram-se, dando ainda mais realce à franja do seu cabelo preto, que lhe caia até junto das sobrancelhas. Quando estava assim, Jin parecia ainda mais bela e misteriosa. Cândido sentou-se a seu lado e um estranho silêncio estabeleceu-se. Por fim ela disse: – Será isto aquilo a que chamam paz? – Talvez. Não sei. – É capaz de ser. Afinal temos de poder confiar em alguém ou em algo, para podermos dormir sossegados à noite. Durante quase meia hora estiveram ali, falando calmamente, com o coração a responder ao coração, os olhos de um a lerem os do outro, as mãos juntas, até que finalmente Jin se levantou e disse: – É tarde. Vamos até à minha casa? Ele fez um ar enigmático e ela respondeu: – Esta noite não tenhas medo de nada. Os deuses estão connosco. Saíram do hotel Riviera, passando pelo salão onde ainda estavam alguns portugueses com as suas mulheres e amigos. Alguns jantariam ali, numa socialização quase ritual e preguiçosa. À porta estava Potapoff e um condutor, que os conduziram, em silêncio, até casa de Jin. Quando chegaram esta disse: – Podes ir descansar esta noite, Potapoff. Estou segura. – Está, senhora? – Tomei as minhas precauções. Não disse mais nada, mas o russo pareceu perceber o que ela queria dizer. Depois de entrarem em casa dela, beijaram-se e as suas mãos procuraram o corpo do outro. Despiram-se e foram até à cama. Os seus corpos embateram um no outro, numa estranha batalha de amor onde ambos queriam ficar sem forças. Para, depois, repousarem, inertes pela energia gasta e sem capacidade para pensarem em mais nada a não ser no corpo um do outro. Só mais tarde Jin soergueu-se na cama e dobrou as pernas, encostando os joelhos aos seus seios. Cândido ficou estendido, com os olhos fechados, escutando a voz da chinesa: – Só estes momentos me relaxam. Preciso cada vez mais deles. Antes de voltar à minha missão. Compreendes, não é verdade? É preciso estares disposto a morrer no intento de a cumprir. A morrer. Sem metáforas. Combates ou morres. Fazes frente ao inimigo ou o inimigo mata-te. Tu tens outra coisa a defender, e não é a vida. É o teu saxofone. É a tua música. O teu sonho de vida. Cândido agarrou-lhe na mão e, depois, soergueu-se. Beijou Jin nos lábios. – Precisas de amor na tua vida. – O mundo que amava desapareceu. Agora não há paraísos por descobrir. Tudo são infernos, com máscara agradável ou não. O inferno está a subir até onde estamos a arder. Jin passou a mão pelo cabelo de Cândido e depois encostou a cabeça dele a um dos seus seios. Ficaram assim durante algum tempo, antes dela dizer: – Posso contar-te uma história? Perante o silêncio dele, ela continuou: – Em finais do século Nove, nas últimas décadas da dinastia Tang, os melhores alquimistas chineses criaram a medicina do fogo, como lhe chamaram. Buscavam a fórmula da mortalidade mas encontraram uma receita mortal. As suas virtudes curativas foram depressa superadas pelas suas utilidades bélicas. Começaram a fazer-se batalhas com flechas de fogo, mas esta pólvora mortal só voltou a ser mesmo efectiva quando chegaram os ocidentais. Porque, na Europa, desenvolveram as suas qualidades, não para curar, mas para criar armas de fogo cada vez mais mortais. E foi com elas que subjugaram a China. É com isso que os japoneses estão a matar-nos. É contra isso que luto e lutarei, até morrer. Cândido beijou-lhe o seio e olhou para ela e para os seus olhos estranhamente tristes. Jin disse: – És tão perfeito e, às vezes, inocente. Às vezes penso que és uma espécie de uma fada de que vocês falam, foi enviada para viver no meio dos mortais e descobrir quais são os nossos pecados. A diferença é que te tornaste um de nós. E vais perdendo o que tens de fada. Riu com o que dissera. Cândido disse: – Qual é o verdadeiro jogo, Jin? – O meu jogo não sou eu que o faço. Estou só, acreditando apenas no que sei e rindo defronte dos meus inimigos. Conheço as leis dos ocidentais, porque são fundamentais para que eu conheça os homens. Vou contar-te um segredo. Deixei, em Xangai, que os padres me ensinassem a religião porque é através dela que eles comandam as pessoas. Muitas vezes, eles são mais loucos do que as almas que eles assustam. Mas os padres têm poder. Muitos têm medo deles. Por isso lhes fazem ofertas, para que engordem e sosseguem. Cândido esboçou um sorriso. Beijou a mão de Jin e virou-a, olhando para a sua linha da vida. Era longa. Depois disse: – Não desconfias da Marina? – Não. Desde que ela me ame, guardará os meus segredos, e ela amar-me-á por causa dos segredos que partilhámos durante anos em Xangai. – Sabes muito sobre ela. Mas, sabes, há sempre as sementes da ambição que muitas vezes toldam o raciocínio. – O veneno da ambição cegam os que o bebem, Cândido. Julgam estar a beber a poção da imortalidade e enganam-se. O mundo está cheio de invencíveis que foram vencidos. Temos de pensar, se tivermos valores, sobre o que queremos deixar como memória. Podemos deixar um vazio, mas nunca um deserto. Há vida para além de nós. – E agora? – Agora estamos a chegar ao momento em que tudo se decide. – Ou quase tudo. Há uma guerra à nossa volta. Jin olhou para ele e sussurrou: – A única guerra que importa é a que agora se trava aqui. – E Du Yuesheng? – A diferença entre mim e Du é uma: ele não confia em ninguém e eu sei em quem confiar. Fora isso, ele é o meu mestre. Nunca queiras pôr isso em causa. Dizendo isto, Jin colocou-lhe o dedo nos lábios, calando-o. Depois beijou-o longamente. [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]O[/dropcap] som era empolgante. Penetrava pelos ouvidos e fazia com que a batida do coração se acelerasse. Ezequiel de Campos não reconheceu a música, mas sabia que era de uma ópera. Quando entrou na sala da casa de Du Yuesheng, junto à praia de Cheoc Van, percebeu que o som vinha da varanda, onde encontrou Du e Luc LeFranc sentados. Ambos fumavam charutos e, na mesa que tinham defronte deles, estava uma garrafa de cognac francês com três copos. Dois quase cheios e um vazio. Havia também uma cadeira disponível. Percebeu que esse era o seu lugar. O som que vinha do gramofone abafava todos os outros ruídos. Quando se sentou, Du olhou para ele e disse, num inglês com forte sotaque: – A música incomoda-o, sir? – Não. – Ainda bem. Gosto de ouvir ópera ao fim da tarde. Enche-me a alma. Fez uma pausa enquanto o mordomo enchia o copo de Ezequiel. Depois disse: – Sabe o eu é? – Confesso a minha ignorância. – Nem todos gostamos de ópera. Eu só aprendi a ouvi-la bastante tarde, em Xangai. Tinha de ir a acontecimentos sociais e este som foi-se entranhando. Passou a fazer parte de mim. Esta é uma das minhas favoritas. O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner. Não foi um acaso que tenha sido um oficial alemão a oferecer-me. – E porque gosta dela? Pela música, pelo canto? – Bem, eu não sei alemão. Mas sinto-me mais forte, especialmente quando oiço a parte da Cavalgada das Valquírias. Todos os personagens querem o anel mágico forjado pelo anão Alberich. Ao renunciar ao amor para sempre este cria o anel mágico, que permite dominar o mundo. Sem emoções isso é possível. É o que vemos quase sempre, não é? Luc deu uma pequena gargalhada. Estava claramente à vontade perante Du. Ezequiel foi mais seráfico: – Vemos muitas vezes. Mas o amor também consegue ser mais forte do que o poder. – O amor trai-nos. O poder não, se o soubermos conquistar e preservar. Mas, para isso, temos de ser inclementes, até connosco próprios. Temos de ser como monges. O poder é uma religião. Ezequiel, que tirara o curso na Universidade de Coimbra, era um devoto da cultura grega. E, assim, não deixou de recordar: – Nos dramas da velha Grécia, não sei se conhecem, que sempre tiveram muita influência no Ocidente, os protagonistas predestinados e condenados, são sempre confrontados por um sistema que é indiferente ao seu heroísmo, à sua individualidade e à sua moral. Mas agora há novos deuses. E o maior são os negócios. O dinheiro é Zeus. – Exacto, meu caro. Mas o dinheiro sempre foi o deus dos homens. É isso que nos move. A Terra não pertence a nada excepto ao vento. O dinheiro é o nosso vento. – E quem dominar o vento, tem o poder. Du fez um sorriso afável. – É um homem que eu entendo. Levantou o copo, num sinal de brinde. Não esperou que os outros o acompanhassem e bebeu um gole. Os seus olhos brilharam. – Eu sabia que tínhamos algo em comum devido à forma como trata a Marina. Ezequiel não disse nada. Mas não conseguiu ler nenhum traço de ironia nos olhos de Du. Luc LeFranc moveu-se um pouco na cadeira, mas continuou calado. Só observava, como se estivesse ali apenas como testemunha. O chinês disse então: – Caro doutor Ezequiel, tenho as melhores referências de si. Foi por isso que lhe pedi para vir aqui. Imaginará porquê. O português fez um ar surpreendido. – Confesso que não sei. Tem algo a ver com a Marina? Du deu uma pequena gargalhada. – Não o julgava tão ingénuo, sir. A Marina é uma velha amiga de Xangai, como sabe. Tenho a maior confiança nela. E sei que ela não se ligaria a um homem se não tivesse absoluta certeza sobre as suas ideias e sonhos. E, permita-me dizê-lo, segredos. Ezequiel fungou. – Acha que a Marina conhece todos os meus segredos? – Claro que não. Todos os homens têm segredos que não confiam a ninguém. E ainda bem que o fazem. Mas ela confia em si. É o suficiente. Fez uma pausa para beber mais um gole de cognac. – É um homem de negócios, caro Ezequiel. Posso tratá-lo assim, não é verdade? O português assentiu com um pequeno acenar da cabeça. – Macau é uma terra de comerciantes. E, quer os portugueses, quer os chineses, fizeram disso o seu acordo de conveniência. Sem assinarem nada, o que vale mais que todos os contratos. Cada um faz os seus negócios, sem que ninguém importune os outros. A única diferença é que os chineses sempre fizeram o comércio sem a desculpa da religião. – São mais livres, caro senhor Yuesheng. – É verdade. E chame-me Du, por favor. E olhemos um para o outro. Somos ambos pessoas de comércio. E é por isso que queria falar consigo. Como deve saber, tive de sair de Xangai. É impossível negociar com os japoneses. Eles só conhecem as suas leis. Até agora eu negociava com os ingleses, com os franceses, com os alemães. O senhor LeFranc, que está aqui connosco, pode confirmar isso. E, por isso, decidi abrir novos mercados para os meus produtos. Macau é pequena, mas é importante. Nunca se sabe onde chegará a guerra. – Assim é. Macau parece frágil, mas é forte. Talvez venha a ser mais importante do que Hong Kong nos próximos anos. Até porque Xangai poderá ficar nas mãos dos japoneses durante anos. – Esperemos que poucos, sir. Du recostou-se melhor na cadeira. Ezequiel olhou para ele com atenção. Tinha um ar frágil, mas Ezequiel sabia que isso era uma ilusão. Fora o mais poderoso gangster de Xangai. A sua palavra era lei, nas diferentes concessões estrangeiras. Traficava com tudo. O que Marina Kaplan lhe tinha contado, que era uma ínfima parte do que sabia, era um relato arrepiante do que ele fazia para manter o poder. Não havia limites para a forma como o exercia. Pesavam-lhe na consciência centenas ou milhares de mortos, muitos deles ligados à luta subterrânea contra os comunistas de Xangai, em nome dos ideais de Chiang Kai-shek. Ezequiel não queria fazer juízos de valor sobre isso. Era um homem de negócios, apesar de ter as suas opiniões sobre o assunto. Escutou novamente a voz de Du: – A minha proposta é simples. Gostaria de ter um homem honesto a gerir, aqui em Macau, as minhas exportações de uísque e cognac para a Ásia. Não sei o que se irá passar em Hong Kong, para onde vou a seguir. Por isso este é um bom porto de abrigo para todas essas actividades. E, depois, há um negócio que muito me interessa: o do arroz. Em tempos de guerra é preciso alimentar os povos. Os preços sobem. Quem dominar o comércio do arroz pode ficar rico. Que me diz? – Deixa-me sem palavras, senhor Yuesheng, ou melhor, Du. Mas parece-me uma boa proposta. Dê-me um dia ou dois para reflectir sobre ela. Du fez um sorriso amigável. – Tem esse tempo. Preciso é de uma resposta rápida. Porque não sei quanto mais tempo ficarei aqui em Macau. Sabe como é. Nada é eterno e, pelo contrário, tudo o que nos rodeia é frágil e perecível. Nunca imaginei que, um dia, poderia ver arder Xangai. Tal como também desapareceram muitas coisas e pessoas que eu acreditava que durariam para sempre. Há muito que tinham deixado de escutar a ópera de Wagner. Agora só restava o silêncio. Mas, nesse momento de paz, todos sabiam o que estava em causa. [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]S[/dropcap]ó a luz da Lua iluminava o Cais 16, onde Potapoff se destacava a dar ordens aos vários homens, vestidos com cabaias de ganga escura, que carregavam caixas para uma camioneta. Fora isso, só algumas luzes trémulas vinham de alguns barcos fundeados no Porto Interior. Naquele silêncio total, todos sabiam que estavam a ser espiados. Mas tinham de esperar que algo acontecesse. Se é que isso ia acontecer. Do junco que chegara essa noite a Macau, as caixas tinham sido transportadas para o cais em várias sampanas. Cândido e Jin estavam sentados num automóvel que estacionara próximo e observavam o que se passava. Estavam com atenção a ruídos estranhos que pudessem pôr em causa a falsa calma que os cercava. Os japoneses estava, por certo, a observar a descarga. E, depois, haveriam de seguir a carrinha para saber onde era o armazém onde ficaria escondido o metal precioso que acabara de chegar. Potapoff, que ostentava na cintura um coldre com uma Luger, tinha arquitectado um plano para prevenir um eventual ataque dos japoneses e dos seus aliados. Colocara próximo vários homens armados, distribuídos por diferentes grupos, que poderiam intervir se necessário. Quer Jin, quer Potapoff, não tinham tido receio que o que efectivamente transportavam, lingotes de cem taéis de prata, fosse um isco agradável. Era um risco calculado. Quando a carrinha partiu, o motorista do carro de Jin e Cândido esperarou um pouco, antes de o seguir a alguma distância. Repararam que um outro carro, com as luzes apagadas, ia atrás do de Potapoff. Cândido quebrou o silêncio: – Serão eles? Jin sorriu: – Tens alguma dúvida? Cândido não respondeu. Sentia-se estranhamente nervoso. Isso só lhe sucedia quando, no Inverno, Macau ou Xangai eram atingidos por ventos erráticos e tufões devastadores. Aí sentia medo. O carro foi percorrendo algumas ruas apenas iluminadas por lanternas vermelhas, rumo a uma zona onde havia algumas fábricas de fósforos e pirotecnia. O armazém onde Patapoff ia descarregar as caixas ficava na longa Rua da Praia do Manduco. Quando chegaram perto, o condutor do automóvel onde seguiam Jin e Cândido parou. Ficaram a observar. Dali viam os carregadores a levarem as caixas para dentro do armazém. Os japoneses deveriam estar escondidos perto, a seguir com atenção os acontecimentos. Não atacariam naquela noite. Jin, que estava encostada a Cândido, agarrou no braço deste e disse: – Nestes momentos agradeço sempre ao Céu. O Céu tem olhos. Ninguém poderia hoje segurar-nos, porque voamos como o vento da noite e os japoneses têm os pés pesados. Espero que tenham olhado com atenção e ficado com a ideia de que somos débeis e distraídos. Assim o nosso poder pode ter sido diminuído na sua imaginação. Cândido pensava noutra coisa. Um polícia sikh, das tropas inglesas, que tinha conhecido em Xangai dissera-lhe, uma noite, que no medo não há lugar para sabedoria. Ninguém poderia ser sábio ao mesmo tempo que tinha medo. Ninguém poderia ter medo e ser, ao mesmo tempo, sábio. E ele sentira medo nessa noite. Esperaram até que Potapoff voltasse para a camioneta e esta partisse. Depois o condutor deu meia-volta e transportou Jin e Cândido até à casa dele. Passadas algumas horas, Cândido olhou para o corpo nu de Jin. Ela estava descontraída e dormia na sua cama. Estava vulnerável, algo impensável numa mulher como ela, que deveria estar sempre atenta. Para estar assim, deveria confiar nele. Porque, se ele estivesse a fazer um jogo duplo, a favor dos japoneses, poderia matá-la ali, sem que ela se pudesse defender. Foi até à janela e, depois de a abrir, acendeu um cigarro e ficou ali a olhar para a escuridão. Muitas vezes gostava de estar ali, a apreciar o silêncio. E a pensar. Lembrou-se de uma frase do padre Afonso: – O que não se diz não existe. Precisamos de falar sobre tudo. É uma pena que o silêncio vá desaparecendo, tal como a escuridão. Temos de ter sempre ruído e luz. Desde a Idade Média que o silêncio tem vindo a desaparecer. Poucas vezes estamos sós e estamos sempre cercados de ruídos. O silêncio é uma coisa rara. Nas cidades, cheias de luzes, a escuridão é um luxo. Por isso procurei-o. E encontrei-o. Só nos mosteiros a regra da convivência se baseia no silêncio. Os orientais também sabem isso. Apesar das diferenças, são tão puros como nós. As palavras do padre ecoaram mais fortes naquele momento em que não escutava qualquer ruído. Era verdade: tudo o que de importante se faz, faz-se em silêncio. Falar é transformar grandes verdades em coisas demasiado simples. O padre dissera-lhe ainda: – Como sabes, o homem que é sábio não fala. Equilibra o que ouve e cala. Medita sobre a complexidade das coisas e a falsidade das aparências. Tudo o que é importante forja-se em silêncio. No silêncio surgem os ecos da verdade. Nada é mais poderoso do que o silêncio. Ouviu um galo cantar. O dia não estava longe de despertar. Pareceu ouvir a voz de uma cantora de jazz com quem tocara em Xangai: “Sentiste os cabelos dela roçarem per ti Quando a Lua desapareceu de vista” Apeteceu-lhe ir buscar o saxofone e ficar ali a tocar, até que os sinos despertassem a cidade. Sentiu-se um pouco nostálgico. As cidades como Xangai tinham cada vez menos segredos, porque a luz eléctrica tinha banido muitos dos segredos da noite. Ao contrário de Macau. Aqui, entre as avenidas ainda havia um labirinto de passagens, becos e ruelas apertadas, entre casas misteriosas. Ali poderia nascer o sol mil vezes e quem se escondesse continuaria sem ser visto. Muitas talvez tivessem passagens secretas que ligavam casas de seitas e grupos maçónicos que nunca tinham deixado de ter uma palavra a dizer na vida de Macau. Viviam-se tempos em que ninguém já sabia quem era o inimigo, ou onde estava, ou porque era o inimigo, ou quando atacaria. Estavam todos vulneráveis. Não era apenas Jin. Ou ele. Nesse momento sentiu o corpo de Jin encostado ao seu. – Não consegues dormir? – Não. Estava a pensar. Baixei até ao círculo do Inferno e agora sei coisas que turvam a paz dos outros. Mas, cuidado, o Inferno está a subir para os níveis onde todos os outros estão. Ela fez um sorriso e encostou-se mais a ele. Cândido novamente o desejo a conquistar-lhe o corpo. Jin disse: – Não penses nisso. Concentra-te no que fazeres. Na forma como tocas. Gosto de te ouvir tocar. Foi por isso que me apaixonei por ti. Ao ouvir-te tocar saxofone, e os sons que saem dele, percebi que o belo e o Bem são a mesma coisa. – Achas mesmo isso? – Sinto-o. Da mesma forma que sei que os portugueses são ternamente ingénuos. Acreditam que escapam sempre aos problemas maiores. Mas uma salvação imposta nunca pode ser mais do que transitória. Todos estamos em perigo, não achas? Cândido levantou-se e beijou-a nos lábios. – E se esquecêssemos, por alguns minutos, o perigo? Os olhos de Jin fecharam-se. E foi nesse momento que se começaram a ouvir os sinos que, aquela hora, despertavam Macau. [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]M[/dropcap]arina Kaplan e Cândido Vilaça estavam a olhar um para o outro como se estivessem hipnotizados. Entre eles intrometeu-se o fumo que trazia odores de ópio e tabaco. O Bambu Vermelho estava repleto e, por isso mesmo, mais quente do que o habitual. Nem as ventoinhas que iam rodando lentamente no tecto conseguiam dissipar aquela temperatura que fazia surgir gotas de suor na testa dos jogadores e das raparigas que circulavam entre eles. Aquela hora tardia Cândido gostava de estar ali a tentar imaginar o que era a vida de cada um daqueles homens, antes de devotarem o seu futuro ao jogo. Imaginava cenários que tanto pareciam reais como irreais. Marina agarrou no seu copo de vodka e levou-o aos belos lábios. Na mesa, perto dela, estava uma máscara da ópera, que tinha trazido de Xangai e que lhe servia, de vez em quando, para recordar esses tempos que nunca mais regressariam. Tinha a certeza disso, apesar do que lhe dizia Cândido. – És um sonhador, Cat. A velha Xangai morreu. Não ressuscitará. Vai-nos ser servida, ao longo dos anos, em capítulos cheios de memórias. Como um livro que iremos escrever, devagarinho. Agarrou na máscara e passou os dedos pela face. – Trouxe-a para nunca me esquecer dos anos que lá vivi. As máscaras dizem-nos muito sobre a vida. Todos as usamos, mesmo que não sejam estas. Por detrás da máscara da firmeza alguns ocultam as suas debilidades. Outros, por detrás da máscara da debilidade, escondem a sua força. Acho que tu és o segundo caso. Sempre foi assim e sempre assim será. Mas, às vezes pergunto-me, porque é que a máscara da força triunfa muitas vezes sobre a da debilidade? Repara nesta. Sabes porque a escolhi? – Não. – Gosto das misturas de cores. Tem vermelho, a cor da lealdade e da coragem. E púrpura, da bravura e da esperança. Tem o branco, da crueldade e da traição. E o ouro e a prata porque são usados nas cores dos deuses, porque o seu brilho produz efeitos sobrenaturais. – Pensava que as tradições russas eram mais importantes para ti do que as chinesas. – Agora ambas são importantes. O meu pai era cossaco, tal como o meu avô e o meu bisavô. Ia à igreja, aspirava o aroma balsâmico e a luz das velas. Foi aí que aprendi a dominar o fogo interior. Isso salvou-me a vida muitas vezes em Xangai. Quando fugi da Rússia não sabia o que ia encontrar. Julguei chegar ao paraíso. Mas era um paraíso negro. Sorriu tristemente. Os seus olhos azuis claros, por momentos, pareceram escurecer até se tornarem negros. – Todas cidades são cruéis. E Xangai foi a mais cruel de todas. Havia prazer e sexo em todo o lado. Dinheiro fácil e sem fim. Os gangsters guiavam o destino da cidade. E, para termos o filme perfeito, o jazz dava-lhe mistério e sedução. E tu, Cat, fazias parte dessa mentira muito bonita. Mas, como sabes, o jazz é uma música muito decadente. Xangai não era uma cidade de pesadelos, apesar das mortes, da droga. Era de sonhos, de fantasia. Lembras-te das pistas de dança cheias de pessoas com roupa de noite? Todos podiam esquecer o passado e os seus pecados. Que eram os pecados de cada um ao pé dos de Xangai? Era um porto aberto. A todos. Também o foi para mim. Salvou-me. – Porque fugiste da Rússia, Marina? – Tinha 20 anos. Era uma jovem louca. Idealista. Acreditava na revolução, mas juntei-me aos socialistas-revolucionários. Andei a colocar bombas. Foi um erro que paguei caro. Para não ser morta, tive de fugir. E foi assim que cheguei a Xangai. – E porque é que vieste para aqui, Marina? Só para fugires ao que se adivinhava em Xangai? – Os chineses não têm ninguém a quem rezar. Onde é que eu me coloco? Não acredito na culpa, mas penso que há algo que nos é superior. Cândido escutava-a. Deu uma pequena gargalhada antes de dizer: -Sabes, a má sorte, sendo habitual, é suficientemente má. Mas, pior, é não ter sorte nenhuma. – Tu és um homem curioso, Cat. Não admira que tenha estado apaixonada por ti. Mas não iria dar. Tu és o protagonista da paz quando não há paz. Só Jin poderia agora apaixonar-se por ti. Fez uma pausa e aproximou a sua face da de Cândido. – Porquê, Marina? – Porque tu lhe dás essa sensação de paz. Algo que ela nunca conheceu. Marina levantou-se, saiu do pequeno reservado onde estavam protegidos por uma cortina de linho e voltou, pouco depois, com um crucifixo que parecia russo, ortodoxo. E uma foto. – Perguntaste-me se tinha trazido algo do passado. Trouxe. Esta foto de quando era uma jovem revolucionária. Cândido olhou. Ali estava ela, rodeada de muitos jovens, rapazes e raparigas. – Quase todos foram mortos. Alguns de forma horrível, em prisões onde nunca se vê a luz. Depois passou a mão pelo crucifixo. Fixou-o, como se estivesse a ter uma visão. – Tudo o que vem dos homens é tão efémero quanto a vida dos próprios homens. Antigamente as pessoas iam às igrejas para falar com Deus, que reinava no absoluto. Nesse infinito muito reconfortante vivia na luz, na sombra e no silêncio, e nos seus jogos. Tenho saudades de igrejas como as que conheci na Rússia. – Acho que tudo é irreparável, Marina. Mas é isso que faz a grandeza e a miséria de um homem ou de uma mulher. Porque nunca sabemos em que partes da vida nos equivocamos. – E é por isso que agora queres ser o que um herói nunca foste? Cândido ia responder, mas, de repente, por entre as cortinas, surgiu a face de José Prazeres da Costa. Tinha os olhos vermelhos e um ar cansado. Marina levantou-se. Percebeu que ele queria falar com Cândido. Disse que ia ver como estava o Bambu Vermelho. E afastou-se sem ruído. Prazeres da Costa sentou-se defronte de Cândido. Trazia, na mão, um copo de uísque. Parecia já ligeiramente tocado pelo excesso de bebida. – O que se passa, José? – É a Amélia. Quer que eu me decida. Não quer esperar mais. Quer deixar o marido e vir viver comigo. Diz que tenho dois dias para me decidir. Depois sai de casa. Cândido esperou um pouco antes de responder. – Acho que não tens fuga. Vais ter de te decidires. Ela está decidida. E tu, queres viver com ela? – Quero. Mas queria ter tudo controlado. Ter dinheiro. E que ela não saísse de casa desta forma. Tenho receio da forma como o marido reagirá. – Terás de conviver com isso. Prazeres da Costa suspirou. Depois bebeu o resto do uísque que tinha no copo. – Eu sei. Mas era uma coisa com que não me queria preocupar. – A vida é assim, José. Não a controlamos. Prazeres da Costa parecia estranhamente envelhecido e descrente. Cândido já tinha visto homens assim, que procuravam consolo. A qualquer preço, mesmo que fossem jogadores. Ser lúcido, às vezes, é mais doloroso do que perceber que ninguém consegue controlar a sua vida. A nossa imaginação inventa inimigos para ficar reconfortada. Mas isso não chega. Esse é o grande medo dos homens. Procuramos sempre o Céu. Descobrimos, depois, que é a antecâmara do Inferno. Voltou a encarar Prazeres da Costa. Disse: – Tenho uma mensagem para o teu amigo japonês. – Diz. – É melhor escrever. É mais seguro. Escreveu num papel: “Daqui a dois dias, à noite, no cais 16, descarga de encomendas vindas da China. Muito importante.” Prazeres da Costa agarrou no papel, meteu-o no bolso, e levantou-se. Deparou com Marina, a quem agradeceu por lhe ter apresentado o homem que lhe tinha emprestado o dinheiro para pagar as dívidas de jogo. Assim poderia criar novas dívidas. Saiu, cambaleante. Marina sentou-se e disse: [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]U[/dropcap]ma ventoinha, colocada no tecto da casa de chá de Jin Shixin, arrefecia o local, o que era uma bênção depois de se sair da rua escaldante, onde Cândido Vilaça se cruzara com vários soldados portugueses que tinham vindo de Timor. Macau iria ter uma noite muito agitada. “O Jardim Celestial”, na Avenida Almeida Ribeiro, era um templo de aromas, e tornara-se rapidamente a loja de chá favorita para quem vivia na cidade. Entrou e a porta fechou rapidamente atrás dele, tentando não dar tempo para que o calor entrasse naquele espaço que queria ser acolhedor. Só um par de lanternas vermelhas acesas davam alguma luz ao local. Da obscuridade saiu Jin Shixin que, movendo-se silenciosamente, dava ainda mais beleza ao cheongsam verde que vestia. Quando chegou perto de Cândido, o português reparou nos pequenos brincos com incrustações em jade que ela usava nos ouvidos e que lhe davam um ar requintado e distinto. Vender era uma arte. Jin deu-lhe um tímido beijo nos lábios e disse: – Sempre vieste. Depois, encaminhou-se para um pequeno móvel de bambu, onde estava um bule com chávenas de chá. Encheu duas, levou-as para a única mesa que existia na loja e fez sinal para ele se instalar numa das cadeiras disponíveis. Jin sentou-se de forma a ver a porta, enquanto Cândido olhava à volta. A sala da loja parecia um dos últimos redutos da China antiga. Os móveis de bambu e de madeira de cerejeira acomodavam várias estatuetas de jade e laca. E alguns deles estavam repletos de recipientes de vidro que continham chás das mais diversas proveniências. Não admirava que Jin fosse conhecida como a Grande Dama do Chá de Macau. Era difícil não se encontrar ali o que se desejava. Depois ele desviou a atenção para os olhos sempre atentos de Jin, que a parca luz parecia tornar ainda mais misteriosos. – O que têm os meus olhos, Cândido? São uma surpresa para ti? Há quem se limite a fitar o vácuo. Os meus olhos alcançam para lá do que há para ver. – Eu sei. E também escondem, por vezes, mais do que desejamos. Ela não disse nada e a sua mão direita agarrou na dele e acariciou-a. – Sabes porque te disse para vires aqui? – Imagino. – O perigo ronda-nos. E está na altura de darmos um passo em frente. Suponho que os japoneses e os seus amigos planeiam algo. Temos de lhes dar algo que os leve para o caminho que queremos. – E onde é que eu posso ser útil? – Amanhã vai chegar um grande carregamento de uísque e cognac francês, encomendado por Du Yuesheng. Era um daqueles que ia regularmente para Xangai, num dos negócios dele, como sabes. Agora vão começar a vir para aqui e parte deles irão depois para Hong Kong e Singapura, onde Du pensa estabelecer parte dos seus negócios. Cândido olhou para ela durante algum tempo. Tentou perceber as intenções dela: – E que queres que faça? Que diga a Toshio Nomura ou ao José Prazeres da Costa que isso vai acontecer? Para quê? Para eles vos emboscarem? – Nomura não fará isso. Seguir-nos-á até a um armazém fictício, onde ele julgará que será o nosso esconderijo. Ao mesmo tempo passará a confiar em ti. E, quando for necessário, dizer-lhe uma mentira ele acreditará que é verdade. Posso confiar em ti? – Não o provei já? A conversa foi cortada pelo ruído da porta. Jin levantou-se. Luc LeFranc entrou. Olhou para ela e disse: – Venho buscar as minhas encomendas. Sem dizer nada, Jin passou por um biombo que escondia o resto da sala dos olhares indiscretos e voltou poucos minutos depois. Trazia um saco e uma grande caixa. O francês abriu a caixa e ficou por momentos a vislumbrar o interior. – C’est magnifique! – Também acho. – Du vai ficar contente. Jin sorriu. Por detrás do biombo surgiu o russo Patapoff, que, em silêncio, agarrou na caixa e a levou para fora da loja. Luc LeFranc, antes de se despedir, disse: – A transferência já foi feita. – Ainda bem. Tudo corre como planeado. Sem olhar para Cândido, Luc saiu da loja. Pouco depois ouviu-se o ruído de um motor de automóvel e Potapoff voltou a entrar. Depois voltou a desaparecer por detrás do biombo. Jin sentou-se novamente ao lado de Cândido. – Não percebeste, não foi? – Entendi que era uma encomenda para o teu mestre Du Yuesheng. Como nos velhos tempos de Xangai. – Nunca deixou de ser o meu mestre. E a encomenda era um gramofone vindo de Singapura. Du não nasceu no meio da aristocracia chinesa. Mas aprendeu a gostar de ópera. E precisava de um gramofone para, ao final da tarde, a olhar para o mar, escutar aquilo que o acalma. Não descansei enquanto não consegui arranjar-lhe um. Cândido olhou-a fixamente. Jin tinha o condão de dizer uma verdade, para esconder o que não queria partilhar. – E o saco, era o quê? Chá? Ela deu uma gargalhada. – Luc não é propriamente um apreciador de chá. Prefere outras coisas. – Dinheiro, não é? Lembro-me dele. Era polícia em Xangai, na zona francesa, não? – Tens uma boa memória. Isso é bom. Dá-nos vantagens. Lembrar o que os outros esquecerem é uma arma secreta. Mas, deixa-me que te diga, se falares com ele não mostres que o conheces. Ele veio para Macau para apagar o passado. – Como muita gente. – Não é diferente da Xangai que conheceste. Ali ninguém queria saber de onde vinhas, desde que tivesses dinheiro e fosses estrangeiro. Eu isso não esqueço, Cândido. Xangai era uma cidade colonial. A cidade das concessões. Cada potência ocidental tinha ali o seu pedaço da China. Cada bocadinho do nosso coração. Agora foram substituídos pelos japoneses, mas nada mais mudou. Cândido apeteceu-lhe, naquele momento, ter ali o seu saxofone e tocar uma melodia, para poder suavizar o olhar agreste de Jin. Ela percebeu o que ele estava a pensar e fez um sorriso triste. – A China há-de renascer, pequeno Cat. Vou contar-te uma história que aprendi há muitos anos. Bai Juyi, num poema muito belo, lembra-nos a história dos infinitos amores do imperador Xuanzong pela concubina Guifei. O imperador estava tão apaixonado por ela que começou a não dar atenção aos assuntos do Estado, e por isso, os seus conselheiros, fartos, forçam-no a aceitar a execução da mulher que amava. A tragédia aconteceu. Como consequência disso o imperador acabou por abdicar em favor do filho e acabou a vida na mais completa loucura. A paixão pelo poder dos ocidentais levou à loucura de Xangai. Mas a história não terminará aqui. A voz de Jin era triste, mas sentia-se o orgulho dela. A vontade de vencer. A conversa foi interrompida pela chegada de duas clientes portugueses. Foi um alívio para Jin, que se dirigiu, sorridente, para elas. Queriam apenas chá. [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]A[/dropcap] noite tem o poder de silenciar todas as certezas. De dia julga- -se que há remédios para as doenças do mundo e da alma. A noite desmente isso. Nada é certo. A noite permite acordar dos sonhos frágeis. Era isso que sentia Cândido Vilaça, apenas iluminado pela forte luz da lua cheia. Fora isso que o trouxera até às ruínas de S. Paulo. Trazia o seu saxofone e sentou-se nos degraus da enorme escadaria. Levou-o aos lábios e do instrumento saiu um som que parecia lamentar todos os males do universo. Era um gemido arrastado, que nada tinha a ver com o que tocava nos fins-de-tarde dançantes do hotel Riviera. Era algo muito íntimo, vindo das suas entranhas. Doía. Quando se cansou de tocar procurou um declive onde a luz da lua não o atingia e ficou ali, entre as sombras, respirando o ar da noite de Macau. Passados minutos ouviu, não muito longe dele, vozes que falavam em português. Olhou para os dois homens que subiam as escadas defronte das ruínas. Um dos homens tinha um sotaque brasileiro, mas era de outra nacionalidade. O outro tinha uma voz que ele reconhecia, mas não sabia de onde. Falavam de pessoas da sociedade macaense e de acontecimentos futuros, mas Cândido não percebeu o sentido da conversa. De repente, da penumbra, surgiram quatro vultos, que se aproximaram rapidamente. Os dois homens não se moveram. Pareciam esperar o ataque ou, então, estavam seguros da sua situação. Assim era porque perto deles apareceram meia dúzia de sombras que avançaram para o grupo que surgira primeiro. Depois de uma rápida escaramuça, Cândido percebeu que o primeiro grupo, em inferioridade, debandava. Escondido, não se mexeu, até que, para perto de si, resvalou um corpo que se agachou na sombra e se deixou ficar, sem se mover. De onde estava, pro- tegido pela escuridão, Cândido podia ver a zona da escadaria onde se encontravam os vencedores do breve conflito. Ali continuavam os dois homens que tinham estado a conversar, agora cercados por uma meia dúzia de outros que olhavam em todas as direcções. Um deles disse: – Fugiram, os cobardes! O homem de sotaque brasileiro retorquiu: – Não vale a pena segui-los. Sabemos quem são. Iremos apanhá-los quando quisermos. Ainda estiveram ali mais alguns minutos. Mas, depois, caminharam em fila até à rua poeirenta que dava para as ruínas. E Cândido deixou de os ver ou de os ouvir. Só depois de ter a certeza de que já não estavam por perto, voltou-se para o corpo, vestido com uma cabaia negra, que estava a seu lado. Quando o tocou, sentiu o braço molhado. Era sangue. Os seus olhos repousaram então na face tapada por um pano negro, onde só se viam os olhos. Não deixou de sorrir, ao reconhecê-la, depois de lhe retirar o pano que tinha a esconder-lhe o rosto e o cabelo: – Hoje os fantasmas têm nomes e rostos. Ela não respondeu e levou a mão ao braço. Tinha sido ferida pela faca de um dos assaltantes. Para estancar o sangue enrolou à volta da ferida o pano que usara para esconder a cara e deu-lhe um nó. – Temos de tratar disso, menina Jin Shixin. O olha dela era de raiva. Cândido acendeu um cigarro, para se acalmar. E, depois, disse-lhe: – Temos de tratar dessa ferida. Podemos ir até à minha casa. Não é longe. Assim fizeram. Caminharam devagar até à pequena casa de Cândido. Jin encostou o corpo ao dele e o português sentiu o seu calor. Agradou-lhe. Quando chegaram, ele acendeu uma lanterna e ela sentou-se numa cadeira e estendeu o braço. A ferida não era muito profunda e já deixara de sangrar. Cândido colocou um pouco de vodka na ferida, o que fez Jin gritar e pôs, à sua volta, uma gaze de algodão. – Agora precisas de descansar. E de ter mais cuidado. O olhar de Jin era frio. Não disse nada. – Quem são os teus inimigos, menina Jin? Ela olhou, desafiadora, para ele: – Quem achas que são? Os japoneses. – Que japoneses? – O homem que estava no hotel Riviera quando vieste falar comigo. E os seus lacaios portugueses. – Porque é que falas de lacaios? Jin deu uma gargalhada, o que lhe serviu para esquecer a dor: – Todos são lacaios do dinheiro. As pessoas fazem tudo por ele. Sejam japoneses, portugueses ou chineses. Cândido sorriu. Sacudiu um insecto imaginário da roupa, só para mexer a mão. Depois disse: – Sabes, Jin, a água contorna todos os obs- táculos. A partir dela podes tentar perceber os portugueses. Serviram-se da água para sair de Portugal e procurar outros horizontes. E aplicam esse princípio à vida. Estão sempre a contornar os obstáculos, em vez de os enfrentarem. Somos assim. Ela percebeu o que ele estava a pensar. Reparou finalmente no aspecto dele. Cândido Vilaça era alto e tinha um corpo seco. Os olhos castanhos e o cabelo escuro combinavam com a tez morena da pele. Os olhos pareciam afectuosos, mas escondiam uma fúria sempre latente. Ha- via algo de sedutor no português. Disse, condescendente: – Os portugueses podem ser como a água. E serem sobreviventes de muitos naufrágios. Mas há uma guerra que já não está às portas de Macau. Está cá dentro. Hoje assististe a isso. Podes dizer que não tem nada a ver contigo? Houve um filósofo chinês que disse que: “Quando conheceres quem és, conhecerás o céu”. Sabes o que é a guerra? Cândido suspirou. Recordou uma história que um macaense, que vivera da pirataria, lhe contara: “os imperadores chineses sempre sonharam subjugar as águas. Nós, os piratas sempre desejámos controlar aqueles que se aventuraram acima das águas. Deixamos o céu para os pássaros. E as águas profundas para os peixes. Cada um deve ocupar o seu lugar”. Ele era músico. Nada sabia de guerras. Cândido virou-se para Jin: – Portugal foi uma grande potência por- que controlou as veias do mundo, os oceanos. Quando outros o fizeram a sua missão terminou. Em Portugal considera- mos a eternidade e o destino com o mar. É o fim depois do fim. Bateram à porta. Cândido olhou para Jin, mas esta pareceu estar calma. Agarrou numa faca que tinha escondida na roupa, levantou-se e foi-se colocar ao lado da porta. Depois fez sinal para Cândido per- guntar quem era. Ele assim fez. Do outro lado escutou um sussurro: – Potapoff. – Quem? Jin fez-lhe sinal para ele abrir a porta e o português assim fez. Viu uma face dura com olhos frios e negros. Potapoff deu um passo em frente e Cândido teve de se afastar. Jin apareceu e olhou para o russo. – Estou bem. O português tratou de mim. – Ainda bem. Vamos? Jin seguiu-o em silêncio. Cândido fi- cou a vê-los caminhar na rua escura. Ela não olhou para trás. [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]M[/dropcap]acau tornara-se um porto de almas perdidas. Sempre o fora, na realidade. Como sempre, desembarcavam ali refugiados, homens e mulheres sem pátria e sem passado, traficantes e bandidos. Mas agora a maioria vinha de Xangai. O caos, dizia-se por esses dias, é o único Deus da verdade. Todos se queriam salvar. Só que cada um encarava a salvação de forma muito própria. Cândido Vilaça entrou naquela casa de ópio e de jogo como quem procurava um local para respirar. Encontrou o sorriso cordial de Marina Kaplan, velha conhecida de Xangai, uma russa de olhos azuis claros e de corpo seco, sempre disposta a partilhar aquilo que considerava ser o amor. Um dia, quando estava demasiado ébrio, ela dissera-lhe: – Tu és um homem que procuras o que é a vida. Por isso estás sempre em fuga. És um vagabundo encantador. Nunca esqueceu aqueles palavras. Tiveram noites de amor demasiado quentes, naquela cidade chinesa que convidava ao pecado. Ela tinha vindo para Macau no ano anterior e instalara-se. O “Bambu Vermelho” era agora um local de eleição. Atraentes jovens russas e chinesas faziam as honras da casa a quem gostasse de as ver dançar ou, simplesmente, de ter a sua companhia, depois do jogo. Ou antes de, num reservado, encontrarem os prazeres do ópio. Era o que gostava mais em Macau. Aqui não havia fronteiras entre as pessoas como em Hong Kong. Ninguém estava demasiado perto dos outros para dizer se estavas certo ou errado. À noite, quando a lua iluminava os corpos que tentavam manter-se de pé depois de horas de prazer, o vento polia as cabeças mais despertas. Cândido conseguiu furar entre os corpos e homens e mulheres e atravessar o cortinado de cana de bambu que escondia o interior. Lá dentro a cortina de fumo era espessa. Precisava sempre de se habituar. Os seus olhos foram-se adaptando e os corpos passaram a ter mais nitidez. O balcão ficava ao fundo, a toda a largura e a sala do rés-do-chão era formada por pequenos compartimentos tapados com reposteiros com dragões vermelhos e dourados e separados por espaços. As mesas estavam todas ocupadas tal como os compartimentos. No primeiro andar do edifício ficava a sala de jogo e, no segundo, os reservados. A iluminação não era intensa, nem era para ser. Era fornecida por candeeiros pendurados no tecto e por suportes nas paredes. As raparigas estavam vestidas com trajes tradicionais de bom gosto, subidos até ao pescoço e abertos de lado, sobre as pernas, até quase às coxas. Cheong-sam, chamavam-lhes. O traje deixava adivinhar os corpos, e atraía o olhar dos homens sedentos de álcool e de sexo. Chegou, com dificuldade, ao balcão. Marina Kaplan aproximou-se novamente dele e levou-o até a uma mesa mais recatada. Colocou-lhe a mão no braço e acariciou-o. Ele sorriu, satisfeito. Nunca mais se tinham encontrado num quarto, desde que se tinham voltado a ver em Macau. Mas ele vinha ali, religiosamente, quase todas as noites, depois de ter tocado no hotel Riviera. Olhou à volta, tentando reconhecer alguém. Alguns portugueses conhecia-os como funcionários públicos. Havia muitos chineses que jogavam intensamente. E uns quantos ocidentais, oficiais de barcos ou de empresas de importação. Ali não entravam marinheiros comuns. Na porta não se abriam excepções. Marina queria manter uma clientela selecta, com dinheiro para gastar. Mas agora Cândido pensava noutras coisas: – Conheces o amigo português de Jin, Marina? Ela sorriu com a pergunta. Esperava-a: – Conheço alguns amigos dela. Como era esse que viste? – Era um homem magro, com ar inteligente, mas dava a impressão de ser mais velho. – Se é quem penso é um homem que cultiva a descrição. Chama-se Manuel Grainha. É o secretário pessoal do Governador. Pessoa experiente. Conhece tudo e todos. – Ela sabe cuidar das amizades. – Sempre soube. Mas, querido Cat, não queiras saber mais do que isto. Cat era a sua alcunha em Xangai. Gostava de ser tratado assim. Cândido sabia que Jin e Marina eram próximas. Demasiado chegadas. Ninguém sobrevivia sem ligações em Xangai. E em Macau também não. Cândido olhou para Marina. Era uma mulher ainda jovem e bonita, talvez tivesse uns 35 anos, não mais, mas estava repleta de segredos. Poderia ter sido tudo. Uma espia do Bando Verde ou dos nacionalistas ou dos comunistas. Ou ser amante de Du Yuesheng. Ou de um oficial francês que queria saber o que se passava realmente na Concessão Francesa ou na Concessão Internacional. Talvez essa fosse a forma de ela ser livre. Ali em Macau poderá ser espia dos japoneses. Ou não ser nada disso. E ser agora apenas uma sobrevivente. – Continuas igual, Cat. Eu sei o que te corrói a alma. Já estive na mó de cima. E na de baixo. Na luz e na escuridão. E os dois lugares estão vazios. – A vida é um jogo viciado. Ela sorriu: – O vicio do jogo não é bom para quem não sabe quando parar. Muito dinheiro pode ser ganho ou perdido, muito depressa. O pior é quando se perde a alma. – Isso acontece aqui muito? – Mais do que imaginas. O problema é que há quem não saiba que perdeu a alma. – Qual é a alternativa, Marina? Porque é que um homem honesto não pode ser recompensado por ser honesto? – A honestidade não tem valor comercial. Já deverias saber. Não se vende nem se troca. Cândido olhou para Marina. A sua frieza era desconcertante. Já vira tanto na vida que não acreditava em muita coisa. Olhou à volta. Os brancos bebiam demasiado, o suficiente para matar meros mortais, porque tinham pouco para fazer. Torravam dinheiro. Tinham úlceras e as suas mulheres viviam enfadadas. Muitas desejavam regressar a Portugal depressa. Não se adaptavam. No “Bambu Vermelho” todas as mulheres tentavam limpar os bolsos dos homens até à última pataca ou dólar de Hong Kong. Muitos chineses gostavam de falar das suas amantes russas. Alguns só queriam sentar-se e falar. Em Xangai se tivesses dinheiro tinhas tudo. Ali não era diferente. Mas não seria assim em todo o lado? Por isso havia tantas prostitutas, jogadores e vendedores de droga. O cheiro do ópio sentia-se em muitas ruas. Como se Xangai e Macau fossem irmãs. Olhou novamente à volta. Foi então que viu Prazeres da Costa numa mesa de jogo. Recordou as suas palavras: – Temos de usar o dinheiro. Devemos ser ricos, para lá dos nossos sonhos. O mais importante é ter dinheiro. Será sempre. Até que este mundo desapareça. Cândido julgara que ele brincava. Mas não. Ele era reservado. Tinha muitos segredos que não dizia. Marina, que seguira o seu olhar, disse-lhe: – É teu amigo? – Não sei. [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]D[/dropcap]o hotel Riviera podia ver-se o mundo. Os portugueses que viviam em Macau acreditavam nisso. Todos os finais de tarde dirigiam-se para ali, vestidos a rigor. José Prazeres da Costa, elegante no seu fato branco de linho e fumando um charuto filipino, sempre desdenhara dessa ideia. Mas não resistia à tentação de estar ali. De pernas cruzadas assistia ao concerto da Benny Spade Orchestra. Muitos pares tinham estado a dançar e agora descansavam um pouco. Ele apenas observava. Escutou uma voz, vinda do palco, em inglês: – Say, you guys want have a little fun? E a música recomeçou. Benny Spade morrera há um par de anos, mas o nome mantivera-se. Um outro americano, Charlie Powell, tomara conta da banda. Nada mudara. O objectivo era colocar os corpos a dançar, muito próximos, e a não temerem o contacto físico. O grupo tinha chegado de Xangai uns meses antes, onde tocara nos hotéis Cathay e Metrópole da Concessão Internacional. Alguns dos músicos tinham tocado também no Ciro’s, o clube nocturno conhecido pelo seu ar condicionado, onde os taipans britânicos e os gangsters chineses entravam à noite, com as suas mulheres ou amantes. À porta do Ciro’s estavam sempre russos de uniforme, garantindo a segurança. Todos eles diziam ser antigos generais do czar e, com o seu olhar impiedoso, travavam os pedintes chineses. Lá dentro, muitas russas desdobravam-se em sorrisos e galanteios aos visitantes. Era um estilo de vida que se adaptava aos edifícios de arquitectura europeia que se impunham no Bund, a famosa frente ribeirinha da cidade. Tudo parecia sólido e perene. A Xangai moderna era uma criação ocidental e não chinesa. O Céu e a Terra uniam-se naquela cidade. Mas tudo mudara com a chegada dos japoneses a Xangai. E já nem o jazz unia um mundo que se quebrava como uma bola de cristal. Sentada, Jin Shizin assistia à dança de homens e mulheres que se recusavam a acreditar que a guerra existia ali ao lado. No pequeno palco, ao lado dos seus companheiros da Benny Spade Orchestra, Cândido Vilaça, conhecido como Cat, tocava saxofone. Olhou para a sala e não deixou de reparar na chinesa. Conhecia-a de um outro lugar. Quando ela se levantou para dançar com um português bastante mais velho do que ela, lembrou-se. A sua forma de dançar, ousada e radiosa, não escapava à atenção. Vira-a em Xangai, nas noites no Ciro’s. Mais tarde, quando deixou o palco e reparou que a chinesa estava sozinha, aproximou-se, com descaramento, da mesa onde estava sentada a fumar e disse-lhe, em inglês: – Boa tarde, gostou? Os olhos cor de amêndoa de Jin semicerraram-se e fixaram-no como se fosse um alvo. A sua face era sólida e esbelta e o seu cabelo preto era moldado por uma franja que caia sobre os olhos. Cândido percebeu: era uma mulher invulnerável. Ou quase. Ela sorriu polidamente, e respondeu num português quase perfeito: – Gostei. – Estava a dançar. – Foi um acaso. Não costumo dançar. – Não? Não gosta do que tocamos? Ela voltou a fitá-lo friamente depois de ter soprado o fumo do cigarro para o espaço que os separava. – A vossa música traz-me demasiadas memórias. – De que não deseja recordar-se. – Não. De que eu me quero sempre recordar. Cândido Vilaça fingiu não perceber. Não queria dizer de onde a conhecia. Fez menção de se sentar. – Preciso de beber algo antes de voltar para o palco. – Acredito. Mas nessa cadeira está sentado o senhor que está comigo. Cândido Vilaça recuou na sua intenção. Foi então que, olhando para trás, viu um japonês que olhava fixamente para ele. Não se lembrava de alguma vez o ter visto. – As minhas desculpas. Mas foi um prazer. O companheiro da chinesa aproximava-se e Cândido afastou-se. Foi até ao balcão do bar e pediu um uísque. José Prazeres da Costa aproximou-se dele e deu-lhe uma pequena cotovelada. – Não tiveste sorte com a chinesa? – Não tentei nada. Prazeres da Costa sorriu, desafiador. – Não? Olha que ela, a Grande Dama do Chá como é conhecida, tem sólidas amizades. Não as desafies. Neste pequeno meio português todos conhecem todos. A intriga é o seu jogo de cartas preferido. Cândido deu uma pequena gargalhada. – Meu caro, eu sei que o amor, em tempos de guerra, é uma coisa impossível. – O amor é sempre uma coisa impossível. Nunca desafies esta máxima. Conheciam-se desde que Cândido chegara a Macau. Prazeres da Costa gostava de jazz. E de mulheres. E de dinheiro. Não por esta ordem, é claro. Este encostou as costas ao balcão e olhou para a sala. O seu olhar cruzou-se com o do japonês. Conheciam-se, mas não se falaram. Como se evitassem que alguém os relacionasse. Cândido reparou na troca de olhares, mas não queria conhecer o mundo secreto de Macau. Tinha outras preocupações. Como tinha o sono muito leve, dormitava e não dormia. As olheiras sustentavam a sua vida. Diziam que os homens de jazz envelheciam mais depressa do que os outros. Sabia porquê. Interpretavam canções sobre mulheres magoadas e sobre os homens que elas tinham amado. Ele também era assim. Abandonava as mulheres sem olhar para trás. Era egoísta. Não inspirava confiança nem segurança. Escutou a voz da cantora que estava no palco. Vestida com um traje chinês, apesar de ser filipina, cantava em português, com um sotaque: “Se eu tiver de mentir, Aos que amam a verdade Farei isso Se eu mentir Será um dever Será por saber A verdade sem a sentir Se eu quiser mentir Será antes de partir.” Ficou com a letra na memória. Assobiou-a baixinho, para se recordar. Gostava de cantoras assim. Descrentes e com a voz carregada pelas dores alheias. Foi até à varanda, seguido por Prazeres da Costa, funcionário do Governo, mas sem grande convicção. Estiveram ali durante alguns minutos, falando de coisas banais. A banda de Cândido já tinha terminado a sua actuação diária e, por isso, saiu dali e foi em busca da noite. Prazeres da Costa disse-lhe que ia para casa. Forma de dizer que ia ter com a amante. Quando chegou à casa de ópio na Rua da Felicidade, o músico entrou e avançou pelo meio do fumo, pediu uma cerveja e sentou-se numa cadeira disponível. O mundo deslizava à sua volta. Nada lhe importava. Sentiu um aroma conhecido e, levantando-se, foi em busca de conforto numa sala escondida por um biombo. Quando se ergueu da pequena cama, lá fora, o escuro da noite cedera o lugar aquela luz indecifrável que antecede o amanhecer. [CONTINUAÇÃO]
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá Macau, Dezembro de 1937 [dropcap]A[/dropcap] guerra já tinha chegado a Macau. Mas ninguém ousava falar dela. Muitos pensavam que, evitando o tema, o medo acabaria por se dissolver. Naquela pequena sala, mal iluminada, falava-se de guerra. Ali todos sabiam que os japoneses, depois de terem tomado Xangai avançavam a caminho de Nanjing. A China era o seu inimigo. Mas o conflito já chegara à calma e descontraída Macau. Não se via, nem se ouvia. Germinava nas sombras, à espera da luz do dia. Mesmo que os ocidentais não quisessem ver a realidade, como muitas vezes acontecia. A luz era escassa, mas era a suficiente para se ver a face de Jin Shixin, onde nenhum músculo se movia. Os seus olhos estavam semicerrados, concentrados no homem sentado à sua frente que, de vez em quando, baixava a cabeça, incapaz de aguentar o olhar fixo da chinesa. Nela não havia afecto, mesmo quando a sua voz era de veludo, como acontecia naquele momento: – Sabes, Zhang, o melhor chá verde tem de equilibrar o sabor amargo com a doçura. De outra forma é impossível conseguir a perfeição. Não parecia que esta explicação interessasse ao chinês, com as mãos e pés atados por cordas. Mal se conseguia mover. O banco em que estava sentado era pouco confortável. Tinha uma das ripas partida e a outra torta. Sentar-se nele já era um castigo. Mas se merecia ou se tudo aquilo estava a ser uma injustiça não o preocupava. Tinha a mente dominada por outros pensamentos. Jin Shixin dirigiu-se a uma mesa e inspirou o aroma que ia saindo do bule de chá que ali estava colocado. Depois, com rigor, colocou o chá nas três chávenas que estavam em cima da mesa e deixou que o aroma se espalhasse por toda a pequena sala. Estavam no interior de uma casa que funcionava como armazém, na frenética Rua de Camilo Pessanha, entre as locandas onde se jogava o fantan, as lojas de penhores e os locais onde se fumava o ópio. O comércio estava sempre aberto, e ali ninguém escutava nada. E todos se calavam. Ela não escolhera o local por acaso, quando chegara a Macau há pouco mais de um ano. À vista de todos, ficava suficientemente escondido para desenvolver as suas actividades secretas. Era ali que Jin Shixin guardava as encomendas de chá vindas da China e que depois levava para a sua loja, “O Jardim Celestial”, na Avenida Almeida Ribeiro, que se tornara conhecida em Macau pela qualidade dos seus produtos. Ela sabia prepará-los como ninguém. Como sempre, toda a arte tem sempre um lado obscuro. Atrás de Zhang, e atento a qualquer eventual movimento deste, estava Wen Xiao. Tinha os braços cruzados e tentava, também ele, perceber o que escondiam os olhos e as palavras de Jin Shixin. Na penumbra, encostado a uma parede junto à porta, apenas se via a casaca branca de Vladimir Potapoff, que há muitos anos se apresentara em Xangai como o conde de Lvov. Um dos muitos russos brancos que, sem alternativas de vida, acabara como guarda-costas dos maiores magnates da cidade chinesa. Viera com Jin Shixin para Macau, um ano antes, para a proteger. – Tal como este chá, as tuas acções têm dois sabores. Pareceram doces, mas resultaram amargas. Sabemos o que fizeste, Zhang. Só desconhecemos a mando de quem. E é só isso que desejamos que partilhes connosco. A voz de Zhang soou pela primeira vez: – Admito que matei Wu. Mas foi por uma questão sentimental. – Eu sei que ambos desejavam a mesma mulher. Mas isso foi apenas uma desculpa. Sabemos que há um inimigo a rondar-nos. O problema é que não conhecemos a sua face. Mas tu conheces, Zhang. E, em nome do passado, deves dizer-nos quem é. Perante o silêncio dele, agarrou numa chávena e levou-a até junto das narinas. – Todos procuramos um aroma perdido. Um sonho que nos faz afastar do caminho certo. Qual era o teu? Dinheiro? Zhang abanou a cabeça. Ela insistiu: – Glória? Vingança? Perante o contínuo silêncio dele, Jin voltou-lhe as costas por um momento. Depois agarrou calmamente uma faca que estava em cima da mesa e rodou-a entre os dedos. – A sombra é parte da luz. É o outro lado dela. Eu peço para sermos invisíveis. Sabes porque? A invisibilidade é o mais difícil dos dons. O teu problema é que te tornaste demasiado visível. Mataste um amigo teu. E, com isso, ameaçaste-nos a todos. Sabes que podes trair os teus amigos, o teu país, a tua esposa, a tua amante. Podes trair por dinheiro, por sexo, por amor, por ódio ou por qualquer motivo fútil. Mas não podes trair a tua família. E nós sempre fomos a tua família. Sabes qual é o nosso único problema? Não sabemos quem é que te encomendou a morte de Wu. E, assim, não sabemos quem é o nosso inimigo. Não sabíamos quem eram os inimigos de Wu. E agora não sabemos quem são os nossos. Porque ele fazia parte da família. Potapoff aproximou-se devagar e colocou-se atrás dela. Ao levantar a cabeça, Zhang ficou com os olhos fixos no russo. Jin notou uma ponta de terror no olhar do chinês. – Estamos a chegar a algum lado. Foi um russo que te encomendou a morte de Wu, não foi? Zhang olhou novamente para Patapoff. Para as suas barbas e olhos negros impassíveis. Julgou, por momentos, que era Ivan Sapojnikov. Não era. Mas cometera o mais terrível dos erros: o seu olhar tinha-o atraiçoado. Sabia, a partir daquele momento, qual era o seu destino. Ele era um homem perigoso para a chinesa. Era um homem que odiava. Não era possível esperar dele qualquer lealdade futura. Jin ficou a olhar para ele, trespassando-o. Por momentos, ela recordou-se da sua vida em Xangai. Lembrou-se do seu chefe, Du Yuesheng, na sua mansão na Rue Wagner, na zona da concessão francesa em Xangai. Imaculado no seu casaco de mandarim e na roupa de seda, enquanto dirigia o seu enorme negócio de ópio. Jin tornara-se uma das suas subordinadas mais fiéis. Fora ele que, prevenindo o futuro, a enviara para Macau. Jin agarrou novamente na sua dadao, a faca que tinha sido utilizada pelos rebeldes Boxers, na sua luta contra o poder. Não era uma arma sofisticada, nem o poderia ser. Deu-a a Wen. Zhang olhou para os dois e para o sorriso malévolo de Wen. Sabia que ia morrer. Jin agarrou na chávena de chá e levou-a à boca. Depois de beber um pouco, acrescentou: – Já não conhecemos os nossos inimigos. Estão nas sombras, onde é mais difícil ver. Estão dentro de nós. É pena que assim seja. Zhang olhou com ódio para ela e disse: – Eles vão matar-te. Sabem quem és. E o que tens. – Não te iludas, Zhang. Fui treinada para não ter medo da morte. Não acredito na morte. Só acredito no fim dos meus inimigos. [CONTINUAÇÃO]