Acumular carreiras

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 12 o website de Hong Kong “www.stheadline.com” divulgou uma notícia sobre um conflito entre Albert Leung Sze Ho e a Ordem dos Advogados. Albert é advogado e foi processado pela Ordem porque queria exercer uma segunda profissão como terapeuta de escultura corporal.
A Ordem dos Advogados de Hong Kong é o organismo responsável pela regulamentação desta actividade na cidade. Na área de consultoria jurídica existem dois grupos profissionais, os advogados e os solicitadores. De uma forma geral, o solicitador é responsável por compra e venda de propriedades, testamentos, recrutamentos e trabalho documental, ao passo que o advogado se ocupa do contencioso. O advogado, que também pode ser designado como causídico ou patrono, representa o seu cliente em Tribunal. Em Hong Kong estes dois grupos são representados por duas organizações diferentes, os advogados pela Ordem e os solicitadores pela Sociedade Legista de Hong Kong.
O litígio teve início quando Albert apresentou um requerimento à Ordem na esperança de ser autorizado a exercer uma segunda profissão como terapeuta de escultura corporal.
A escultura corporal é um tipo de Naturopatia que pretende corrigir a postura do corpo, através de métodos não dolorosos, eficazes e não-invasivos. Este conjunto de técnicas e de tecnologias terapêuticas surte efeito imediato. Esta técnica destina-se a corrigir distorções do esqueleto, nomeadamente da coluna vertebral e da anca, podendo eliminar ou atenuar corcundas, dores dorsais, torsão da cintura, desnível dos ombros, pernas com comprimentos diferentes, seios desiguais, pregas no pescoço etc. A formação de terapeutas nesta área não tem limite de idade, nem requer qualquer especialização em particular. Independentemente da formação académica, é possível candidatarmo-nos ao curso e passar a adquirir esta competência.
Em Hong Kong, quando um advogado pretende exercer uma segunda profissão é necessário que solicite com antecedência autorização da Ordem. Se tal não for feito, é considerado violação da conduta profissional e incorre numa acção disciplinar. A remoção da carteira profissional é a penalização mais grave que pode ser aplicada, ficando consequentemente impedido de exercer advocacia.
Albert apresentou este pedido, mas viu-o recusado pela Ordem. Os parágrafos 4 e 23 do Código de Conduta da Ordem dos Advogados consagram os princípios mais relevantes desta matéria. O parágrafo 4 estipula que os advogados devem, acima de tudo, manter a sua dignidade e reger-se pelo código de conduta profissional.
O parágrafo 23 estipula que a advocacia deverá ser a principal ocupação dos membros. Caso alguém queira dedicar-se a uma segunda ocupação, esta nunca poderá prejudicar os interesses dos clientes.
A Ordem dos Advogados considerou que a terapia de escultura corporal não é compatível com o exercício do direito e, por isso, o pedido apresentado por Albert foi recusado. O Secretário Honorário do Conselho da Ordem descobriu que a escola de terapia de escultura corporal em que Albert se tinha inscrito pertencia a uma empresa privada de Hong Kong, e que para ingressar no curso apenas era necessário o ensino secundário. Foi ainda apurado que esta escola disponibiliza diversos mini-cursos na área das terapias e da cosmética.
Na sequência do indeferimento ao seu pedido, Albert apelou da decisão. Alegou, em primeiro lugar, que esta infringe o Artigo 33 da Lei de Bases de Hong Kong que confere aos cidadãos o direito à livre escolha da carreira; e, em segundo lugar, alegou que a Ordem não tinha apresentado razões válidas para sustentar a sua recusa.
Como o caso está a decorrer no Tribunal de Recurso de Hong Kong, é preferível não emitirmos opinião sobre as partes em litígio. Limitemo-nos a considerações de ordem geral.
As questões que mais preocupam as pessoas nestas matérias são os honorários dos advogados, pagos através de taxas de justiça, e a qualidade dos serviços legais. O direito de aprovar, ou rejeitar, o exercício de uma segunda profissão está reservado à Ordem. É fácil de entender que ninguém fica satisfeito se vir os seus rendimentos serem controlados por outrem. O rendimento de um advogado advém das taxas de justiça e de outras fontes. Se porventura o advogado não obtiver rendimentos suficientes de outras fontes, e não tiver fortuna pessoal, é-lhe difícil manter-se dignamente. Se a fonte de outros rendimentos for limitada, a probabilidade de o advogado aumentar os seus honorários é alta. Embora não tenhamos acesso a números que o provem, suspeitamos que esta é uma das razões para as taxas de justiça serem tão elevadas em Hong Kong.
Por outro lado, temos de respeitar a decisão tomada pela Ordem. É absolutamente correcto afirmar que a Ordem é o órgão apropriado para defender a reputação e a dignidade da profissão. Se esta não o fizer, quem o fará? Não há dúvida que exigir aos seus membros que mantenham a dignidade e elevados padrões de conduta profissional é uma atitude correcta. Os clientes só beneficiarão com isso e a qualidade do serviço é defendida.
É natural que a maior parte das pessoas queira taxas de justiça baixas e uma qualidade de serviço elevada. Desta forma um maior número poderá ter acesso à justiça. Contudo, taxas baixas podem lesar os interesses dos profissionais, até porque esta é uma carreira que exige muita dedicação. Rendimentos baixos nunca são desejáveis. O ideal será implementar-se taxas razoáveis de forma a contentar todas as partes envolvidas.
Será que a decisão da Ordem infringiu o direito à livre escolha de carreira? Esta é uma resposta que só pode ser dada pelo Tribunal, e não por nós. Esperemos pela sua decisão.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
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26 Set 2016

Confissões

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente, o website “yahoo” de Hong Kong divulgou uma notícia sobre a exposição “Confissões”, aberta ao público de 10 a 27 de Setembro. A exposição é organizada pela “Sociedade para o Planeamento da Comunidade” (SOCIETY), fundada há 40 anos com o objectivo de preservar os direitos e valores ancestrais da sociedade de Hong Kong.
O website da SOCIETY faz uma apresentação do historial da exposição, da qual extraímos alguns comentários:

“……A exposição é um projecto artístico focado nas declarações de detidos e de ex-detidos sobre o arrependimento”.

Quando pensamos em alguém que está, ou esteve, preso, a primeira coisa que nos ocorre é que essa pessoa cometeu um crime e que, por isso, é um transgressor. É frequente que os julguemos e que sobre eles criemos uma imagem estereotipada. Acabamos por reduzi-los ao crime que cometeram, em vez de os olharmos como seres humanos tão complexos como qualquer um de nós. O sistema de justiça criminal faz o mesmo ao focar-se nas suas, alegadas, más acções. É preciso que confessem os seus pecados; têm de admitir os seus crimes……”
Através destes tópicos, podemos verificar que o propósito da exposição é apresentar as verdadeiras histórias de vida de detidos e ex-detidos, e usar essas experiências para ajudar a reabilitar as pessoas actualmente encarceradas. Mas acima de tudo, lutar para que o público em geral possa ter uma melhor compreensão destas situações e, dessa forma, proporcionar de futuro mais oportunidades a quem se encontra actualmente preso. Pretende-se que a sociedade de Hong Kong possa vir a aceitar as pessoas que estiveram detidas, e que estas possam mais facilmente integrar-se e tornar-se seus membros activos.
De todos estes testemunhos destacam-se dois casos que vale a pena analisar. O primeiro é o de Wong Ting Hin, de 52 anos de idade. Quando tinha 15 anos Wong roubou um cheque de 70.000 HK dólares ao patrão. Foi preso. Na sequência da prisão, acabou por se tornar membro de uma tríade e por vir a cometer uma série de crimes; assaltos, contrabando, tráfico de droga e envolvimento no negócio da pornografia. No decurso destas actividades Wong acumulou 50 milhões de HK dólares, em troca de 10 anos de prisão.
Mais tarde, Wong foi detido e fez amizade com Yip Kai Foon. A alcunha de Yip era “O rei dos ladrões”. Esta alcunha foi-lhe atribuída quando efectou uma série de assaltos em Kwun Tong, Hong Kong. Empunhando uma espingarda “AK47”, conseguiu roubar, em apenas 10 minutos, cinco ourivesarias. O assalto a cada uma das ourivesarias durou em média dois minutos. Quando a polícia chegou ao local houve um tiroteio. Foram disparadas mais de 40 balas neste confronto. Mas, embora Yip tenha conseguido evadir-se na altura, acabou por ser detido em 2003.
Na prisão, Yip tentou convencer Wong a fugir com ele, mas Wong recusou-se porque acreditava que, mesmo que conseguissem evadir-se acabariam por ser apanhados. Não foi um procedimento incorrecto.
Em 2013, Wong cometeu mais um furto e voltou para a prisão. Teve de se separar de novo da mulher e do filho. Como não queria que o filho soubesse que estava preso, disse-lhe que era actor e que tinha vestido as roupas de prisioneiro para um filme. Também nos confessou que chorava todas as noites quando pensava na mulher e no filho. Foi nessa altura que decidiu nunca mais cometer nenhum crime. Wong disse-nos,
“Antigamente era rico, mas era infeliz. Agora sou pobre, mas sou muito feliz.”
O outro caso é o de Raymond, que cometeu um crime em 2001. Raymond era toxicodependente. Durante o julgamento percebeu-se que tinha uma perna infectada devido ao consumo de droga. O médico informou-o que, para lhe salvar a vida, teria de lhe amputar a perna. Raymond recusou-se a fazê-lo, e jurou a si próprio nunca mais se drogar. Acabou por ser bem-sucedido e trabalha actualmente na SOCIETY para ajudar outras pessoas a libertarem-se das drogas.
Raymond conhece bem os serviços de reabilitação das prisões de Hong Kong. Os prisioneiros têm a possibilidade de obter um bacharelato e recebem formação profissional. Também têm acesso a muitas liberdades. Por exemplo, Yip casou na prisão em 2003. Se os meus leitores ainda estão lembrados, em Janeiro de 2014, escrevi sobre Wong Yuk Long, também conhecido por Tony Wong. Tony tinha criado um império no mundo da banda desenhada. Contudo, devido à crise económica de 1987, as acções da sua empresa caíram de 4 HK dólares para apenas 1,18. Tony tinha também contraído enormes dívidas para financiar os seus múltiplos empreendimentos. Acabou por ser acusado de falsificação de documentos e condenado à prisão. Enquanto esteve preso Tony podia desenhar, mas não podia publicar o seu trabalho. Depois de ter sido libertado, voltou a reconstruir o seu império.
Podemos assim concluir que os serviços de reabilitação, as liberdades e as condições dadas aos prisioneiros, são factores vitais para o arrependimento e para a mudança nas suas vidas. Esperamos também que a sociedade de Hong Kong venha a aceitar os ex-detidos e a permitir que possam integrar-se em pleno, encontrando trabalho para o qual tenham qualificações.
Quando este artigo for publicado, o Festival do Meio do Outono já terá passado. Espero, pois, que os meus leitores tenham tido um bom Festival do Meio do Outono.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
19 Set 2016

Duterte, das “boas” intenções às más respostas

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] semana passada Rodrigo Duterte, Presidente das Filipinas, fez notícia quando chamou a Obama “filho da p…” a Barack Obama. Esta “intervenção” de Duterte levou ao cancelamento do encontro agendado entre os dois Chefes de Estado.
Como expliquei no artigo publicado há duas semanas (ver “De boas intenções está o inferno cheio”), desde que Duterte assumiu a Presidência das Filipinas tem vindo a incentivar a população a matar os traficantes de droga de forma sumária. Até ao momento, cerca de 2.400 pessoas foram mortas. Estes acontecimentos chamaram a atenção de diversos países, entre eles os EUA, e das Nações Unidas. Antes da cimeira da ANSEA, em declarações aos jornalistas, Duterte afirmou ser o chefe de um País soberano que só prestava contas ao seu próprio povo.
Adiantou que Obama o deveria respeitar e parar com as perguntas sobre estas mortes, e acrescentou:
“filho da p…, vou-te amaldiçoar na reunião.”
Mais tarde, o governo filipino apresentou desculpas a Obama e dois dos seus representantes deram uma conferência de imprensa.
Mas recapitulemos, a quantidade de droga que se encontra na posse de um traficante e de um consumidor é necessariamente diferente. Uma das funções do julgamento é determinar com precisão a quantidade de droga apreendida, e a partir daí decidir se o réu é traficante ou um simples consumidor. Consoante o caso a sentença deverá divergir, sendo obviamente mais pesada para tráfico do que para consumo. Sabemos que existem casos de traficantes de droga condenados à pena capital, mas é raro ouvir-se falar de consumidores condenados à morte.
Sem julgamento é impossível determinar com precisão se estamos perante um ou outro caso. Donde resulta que os filipinos ficam a depender apenas do julgamento feito pela polícia. Seja o julgamento objectivo ou subjectivo, a população não tem outro remédio senão acatá-lo. Se a polícia tiver razão será morto um traficante. Mas se não for o caso? Então será apenas uma execução ilegal. Para além disso, mesmo os traficantes podem ter em sua posse quantidades de droga muito diferentes. Deverá também um pequeno traficante ser condenado à pena de morte? Não existirá diferença entre alguém que é apanhado com uma pequena quantidade de droga e quem é apanhado com uma enorme quantidade? As pistolas da polícia não podem ser a resposta a estas perguntas.
Podemos ler na “Wikipedia” que Duterte era advogado. Não deve um advogado tomar medidas para que não ocorram execuções ilegais ou suspeitas?
A posição de Obama e das Nações Unidas reflecte as preocupações internacionais sobre esta matéria. Defendem que se deve esclarecer, e mesmo parar, estas execuções suspeitas nas Filipinas. As declarações exaltadas de Duterte provam que não tem intenção de obedecer. Recorre ainda à defesa da soberania para apoiar a sua decisão.
Ao abrigo da lei internacional, cujo órgão máximo é as Nações Unidas, um País não tem permissão de interferir nos assuntos internos de outro. Mas execuções ilegais continuadas, podem extravasar os limites dos assuntos internos.
Existem muitos canais diplomáticos entre os EUA e as Filipinas. Se efectivamente Duterte não quiser discutir os assuntos internos das Filipinas com Obama, pode recusar-se por via diplomática. Gritar e insultar o Presidente de outro País é um procedimento incorrecto. É o suficiente para criar perturbações no relacionamento entre dois países. Em resposta aos insultos, Obama cancelou o encontro que estava agendado para breve entre os dois. Mas se Obama interpretar estas declarações como uma ofensa à América, Duterte acaba de dar início a confusões desnecessárias.
E é evidente que a opinião pública internacional apoia Obama e condena Duterte.
Lembremo-nos que em Agosto Duterte tinha afirmado,
“É possível que venhamos a sair das Nações Unidas.”
Se isto se vier a verificar as Filipinas ficarão isoladas, entregues a si próprias. Será uma boa escolha? A resposta é óbvia. Sem a cooperação de outros países, as perspectivas das Filipinas serão muito fracas. Se esta medida for por diante o País vai sofrer.
De qualquer forma, foi bom saber que Duterte acabou por pedir desculpa a Obama. Depois disso tiveram uma reunião informal. A discussão entre os dois países está suspensa e, para já, as Filipinas não enfrentam o isolamento internacional. Mas Duterte tem de se esforçar bastante para melhorar a sua imagem.

Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau
12 Set 2016

Amor e adversidade

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stou a escrever este artigo sexta-feira, 26 de Agosto. Há pouco mais de duas semanas, mais precisamente a 10 de Agosto – 7 de Julho, segundo o calendário chinês – comemorámos o “Dia dos Namorados” na China. Existem, como é sabido, diferenças entre os dois calendários e 2016 é o Ano do Macaco.
O Dia dos Namorados na China celebra-se nesta data, por causa de uma história que se passou há 2.600 anos atrás. Mas vejamos o que a Wikipédia tem a dizer sobre o assunto:
“A lenda é sobre a paixão de Zhin (織女) e de Niulang (牛郎). Era um amor proibido e, por isso, foram separados e enviados para margens diferentes do Rio da Prata. Uma vez por ano, no sétimo dia do sétimo mês lunar, um bando de gansos formava uma ponte e os dois amantes podiam reunir-se por um dia.”
Zhin era deusa e fiandeira. Niuland era humano e guardador de gado. O amor entre deuses e humanos não é permitido. Quando se apaixonaram, o rei dos deuses castigou-os. Como tivessem persistido e não temessem o castigo, o rei divino acabou por consentir no casamento.
Mas a tragédia ocorre depois do casamento. Zhin e Niuland, entregues à paixão, acabaram por descurar as suas obrigações. A qualidade dos tecidos fabricados por Zhin decaiu grandemente e o gado à responsabilidade de Niuland fugia. Perante esta situação o rei decidiu que só se veriam uma vez por ano, a 7 de Julho.
Este foi sem dúvida um castigo cruel que lhes trouxe infelicidade. Mas existem outros casais que podem estar juntos todos os dias e que mesmo assim são infelizes.
Chu Chun Kwok era agente da polícia. Há alguns anos atrás, no dia 19 de Julho de 2005, patrulhava a Po On Road, em Cheung Sha Wan, Hong Kong, quando foi atacado com uma faca que lhe cortou uma artéria do pescoço. O ataque aconteceu na sequência do controlo de identidade de Liu Chi Yung, suspeito de tentativa de roubo. Chu caiu de imediato, a esvair-se em sangue. Uma pessoa que ia a passar conseguiu dar o alerta que lhe salvou a vida. Mas Chu entrou em coma, devido à perda massiva de sangue, e está em estado vegetativo desde essa altura. Não pode falar, nem se pode mover, resta-lhe jazer na cama do hospital. Segundo os médicos as possibilidades de recuperação são ínfimas.
Após o acidente, Choi Yin Ping, a mulher de Chu, vai todos os dias ao hospital cuidar do marido. Ajuda na higiene, na alimentação e na fisioterapia a que Chu é submetido para evitar atrofia muscular. Este caso voltou a ser notícia porque Choi chegou finalmente a acordo com o Governo de Hong Kong. Choi tinha processado o governo regional bem como o atacante. Exigia uma indeminização, mas o governo recusava-se a conceder-lha, à semelhança de Liu Chi Yung que alegou falência. Quando finalmente se chegou a um acordo, Choi declarou,
“Posso voltar à minha vida normal. Já não tenho de travar esta batalha.”
Embora Chu tenha sofrido ferimentos muitos graves, o Tribunal só o condenou Liu a 10 anos de prisão. Independentemente da justeza da sentença, há outro aspecto a salientar. Liu foi posto em liberdade condicional em 2011. Ou seja, só cumpriu seis anos de prisão, tendo ficado em regime de liberdade condicionada desde 2011.
A questão é simples, mas vale a pena analisar o contexto. O objectivo da lei criminal é manter a justiça. Assim que o réu é condenado o caso fica encerrado. Nem a vítima, nem os seus familiares, devem procurar vingança contra o réu. A lei previne o ajuste de contas.
A liberdade condicional é um instrumento do sistema legal. Permite que o condenado saia da prisão, sob certas condições, e ajuda a impedir a sobrelotação das prisões. É também um incentivo para que o prisioneiro tenha um bom comportamento enquanto está detido. Ajuda a diminuir o grau de dificuldade na gestão das prisões. Do ponto de vista social, é uma boa medida.
Liu nunca mais cometeu nenhum crime depois de ser libertado. Mas não tem dinheiro para indemnizar Chu. No entanto, desde o ataque Chu tem permanecido no hospital. As hipóteses de recuperação são praticamente nulas. Parece-vos que uma pena de cinco a seis anos tenha sido justa face à situação que criou a Chu? A resposta é óbvia. Não é de admirar que a mãe e a mulher de Chu afirmem,“nunca o perdoaremos.”
Embora possamos não concordar com o sistema legal, temos de lhe obedecer. Todos os sistemas têm prós e contras, não são perfeitos. Os familiares de Chu continuam muito revoltados, mas não há nada que possam fazer.
Mas podemos olhar para esta história de outro ângulo. Desde que Chu foi atacado Choi nunca o abandonou, continua a amá-lo apesar da sua situação. O grande amor que os liga aquece-nos a alma.
A atitude de Choi faz-me relembrar o verdadeiro significado do casamento. O padre pede que o casal prometa fidelidade e dedicação um ao outro, independentemente das adversidades que possam surgir nas suas vidas, deverão permanecer unidos. Chu e Choi continuam juntos. Mantiveram a sua promessa. E Choi tem permanecido fiel nesta situação tão difícil em que se encontra desde 2005. Embora o Dia dos Namorados na China já tenha passado, congratulemos Chu e Choi, e façamo-los sentir que apreciamos o seu amor.
“Feliz Dia dos Namorados.”
Rezemos por Chu, pedindo a Deus que o abençoe e o ajude a recuperar o mais depressa possível.

Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau
5 Set 2016

De boas intenções está o inferno cheio

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]website “https://www.thenewslens.com/article/47136” publicou recentemente um artigo sobre o Presidente filipino, Rodrigo Duterte.
Duterte tinha prometido combater o crime nas Filipinas, em particular, o tráfico e consumo de drogas. Desde essa altura já morreram 1.054 pessoas suspeitas de envolvimento nestas actividades. Foram todas condenadas sem julgamento.
Mas Duterte foi ainda mais longe. Autorizou os cidadãos a lincharem qualquer pessoa que seja suspeita de tráfico de droga. Calcula-se que cerca de 600 pessoas tenham sido mortas pela polícia e cerca de 400 pelos vigilantes.
Estes acontecimentos originaram uma grande polémica a nível internacional. Em Junho, Ban Ki-moon, Secretário das Nações Unidas, condenou esta onda de execuções sumárias.
A intenção de Duterte é boa, quer reduzir o crime e, nesse aspecto, deve ser apoiado pelos filipinos. Contudo, é importante compreender que existe uma diferença quanto ao estatuto do suspeito, antes e depois do julgamento
Na presença de um crime, a polícia é responsável pela investigação. Durante este processo procura determinar os factos e recolher provas que sirvam a acusação. Qualquer pessoa que seja suspeita de ter cometido um crime fica sob investigação criminal. Se for acusado, torna-se réu e será levado a Tribunal. Durante o julgamento, se houver provas suficientes, será considerado culpado. O tribunal condená-lo-á a uma pena de prisão ou a uma multa, conforme o caso. O objectivo do julgamento é garantir que existem provas suficientes da culpabilidade do suspeito.
Sem este procedimento legal nunca haverá maneira de determinar a consistência das acusações. O que se está a passar nas Filipinas levanta precisamente esse problema, sem julgamento não se pode saber em absoluto se existe fundamento nas acusações. Estes procedimentos sumários geram resultados dúbios. É natural que as pessoas se interroguem sobre a existência de provas que justifiquem a acusação.
Existe, para além disso, outra questão que se prende com a quantidade de droga na posse do suspeito. A quantidade poderá determinar se estamos em presença de um traficante ou de um simples consumidor. A pena deve ser diferente num caso e no outro. Os traficantes deverão, obviamente, ter uma pena maior.
Sem julgamento como é possível determinar a quantidade de droga que o suspeito tinha em sua posse? Deverá um consumidor sofrer uma pena tão pesada como um traficante?
Para governar um País é necessário recorrer à Lei. Sem a Lei não é possível estabelecer padrões de comportamento, nem para os cidadãos, nem para o Governo. Executar um suspeito sem julgamento é um assassinato. Se um País recorrer ao assassínio para lutar contra o crime, deixa de se perceber a diferença entre os criminosos e quem os combate. Estas mortes provam que o estado de direito não está em vigor nas Filipinas. É lamentável que um País recorra a linchamentos, e não à Lei, para resolver os seus problemas.
É, portanto, compreensível que Ban tenha acusado Duterte de ter cometido “um atentado ilegal aos direitos e à liberdade dos réus”.
É evidente que qualquer processo criminal está dependente das leis de cada País e é, para além disso, um assunto interno. À partida, os outros Países não se devem ingerir. No entanto, perante assassinatos continuados, já o caso muda de figura. Até ao momento já foram mortas 1.054 pessoas. Quantas poderão ainda vir a sê-lo? Esta é a preocupação das Nações Unidas.
Mas Duterte tem outra opinião. Respondeu que só tinham morrido 1.000 pessoas e que era incorrecto as Nações Unidas interferirem nos assuntos internos das Filipinas. Afirmou ainda que as declarações de Ban tinham sido “muito estúpidas”. Preveniu também os observadores de direitos humanos estrangeiros para “não nos investigarem como se fossemos criminosos!”.
Estas declarações foram a resposta de Duterte à Nações Unidas e as execuções sem julgamento vão continuar a acontecer. Com estas afirmações Duterte só aumenta o clima de tensão entre o seu País e as Nações Unidas e demonstra que não compreende bem a natureza das funções da ONU. Nada disto é bom para as Filipinas.
A intenção de Duterte é boa. Quer acabar com o crime nas Filipinas, e tomou medidas nesse sentido. Mas ignorou os meios correctos para atingir esse objectivo. Executar um suspeito sem julgamento é o mesmo que cometer um assassinato. Os assassinatos continuados chamaram a atenção das Nações Unidas. Quando um caso é discutido pela ONU torna-se um caso internacional. Aconteça a o que acontecer, as Filipinas vão sair sempre a perder. Talvez ninguém acreditasse que um assunto desta natureza pudesse ser tão sério. As boas intenções de Duterte, não podem mudar a sua imagem a nível internacional.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

29 Ago 2016

A “evasão” dos bombeiros

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 13 o “Yahoo” publicou uma notícia sobre a evasão de 12 estudantes da Academia dos Serviços de Ambulâncias e Incêndios (uma escola sob a alçada do Departamento dos Serviços de Incêndios de Hong Kong, organismo dependente do Governo da RAEHK, responsável pela formação de bombeiros). A surtida deu-se durante a cerimónia de formatura e, aparentemente, aconteceu porque os estudantes quiseram sair para entregar convites aos familiares. Inicialmente a Academia apenas entregava três bilhetes a cada estudante. Mas no dia 11, por volta das 16:30, decidiu entregar mais dois a cada um deles.
Os estudantes estavam divididos em dois grupos para a cerimónia de formatura, que se realizou no dia 12. Na véspera, um dos grupos ficou na Academia até às 22:30 e o outro passou lá a noite. O problema aconteceu com este último grupo. Cerca de 50 estudantes evadiram-se e passaram ingressos para a cerimónia a familiares.
Por volta das 20:30, os responsáveis da Academia convocaram de surpresa todos os estudantes, para verificar as presenças. O artigo referia que apenas 20 se apresentaram de imediato. Cerca de 18 estudantes pediram a outros colegas que se apresentassem na vez deles e 11, ou 12, não compareceram à chamada. Existem rumores de que estes últimos serão expulsos após processo disciplinar. Mas há quem diga que serão eles a apresentar a demissão, para não “manchar” o seu cadastro escolar e não virem a prejudicar uma carreira ao serviço do Governo de Hong Kong.
E porque é que os estudantes se “evadiram”? O artigo do “Yahoo” explicava que antigamente não existia limite de bilhetes para as cerimónias de formatura, os estudantes podiam convidar quantas pessoas quisessem. Mas este ano a Academia anunciou inicialmente que cada estudante só tinha direito a três convites. Posteriormente esse número foi alargado para cinco.
O “Yahoo” também ventilava que no momento em que os estudantes receberam os convites lhes terá sido dito para os entregarem como melhor entendessem.
A partir destas declarações os estudantes assumiram que tinham consentimento da administração para se ausentarem. Foi talvez este facto que determinou a sua saída.
O desaparecimento dos jovens foi reportado por um dos funcionários, cujo filho também frequenta a Academia. Por ter acesso privilegiado às camaratas este funcionário costumava visitar o filho, o que desagradava aos outros estudantes pois sentiam que ele tinha um tratamento diferenciado.
Até ao momento, não existe mais informação sobre o assunto.
Esta história serve de lição para todos os estudantes que se preparem para servir as forças da ordem. É evidente que não se pode justificar uma evasão com o desejo de entregar convites a familiares. Alguns bombeiros seniores defenderam este ponto de vista, explicando a necessidade de os estudantes compreenderem que não se pode abandonar o posto sem autorização, sob risco de poder colocar as populações em perigo em caso de emergência.
Mas temos de tentar perceber o lado dos estudantes. Num outro site de Hong Kong, o “orientaldaily.on.cc”, escrevia-se que esta cerimónia era a última oportunidade de a Academia poder contar com a presença do Comissário dos Serviços de Incêndios, o Sr. Lai Man Hin. Para não perturbar a ocasião, os alunos que se tinham evadido deveriam estar presentes. Os estudantes não concordaram com este procedimento.
No entanto, devemos interpretar o caso de duas maneiras. Os preparativos de uma cerimónia deste género podem necessitar de ser melhorados. O alargamento dos convites à última hora, de três para cinco, pode ter sido inapropriado. Não é tanto a questão de se dar mais dois convites a cada estudante, mais sim, do tempo que precisaram para os passar aos convidados, e da disponibilidade destes para estarem presentes. A maior parte das pessoas não dá atenção a estes pormenores.
Devem também ser consideradas as declarações da administração da Academia. A ser verdade que foi dito aos estudantes que “entregassem os convites como melhor entendessem”, o facto de terem muito pouco tempo para os passarem à família poderá ter criado um mal-entendido. Se estes estudantes forem sujeitos a uma acção disciplinar, estas declarações e a própria organização da cerimónia de formatura devem ser debatidas. De outra forma, será injusto para os estudantes.
Independentemente do que se vier a decidir sobre o destino destes 12 jovens, do ponto de vista social, Hong Kong sai sempre a perder. Para formar um bombeiro, o Governo de Hong Kong tem de investir 400.000 HK dólares. Se forem expulsos 12 estudantes, desperdiçaram-se cerca de 5 milhões de HK dólares. Será que vale a pena? Quem tiver de lidar com este caso deve ter em consideração os interesses dos alunos evadidos, a deficiente organização da cerimónia de formatura, a veracidade da declaração que provocou o mal-entendido e, finalmente, o interesse público. Não vai ser tarefa fácil.

22 Ago 2016

Striptease e outras inconveniências no Tribunal

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste fim de semana o “Yahoo” deu destaque a um caso ocorrido no Tribunal de Recurso de Hong Kong. Uma mulher da China continental tinha apresentado um recurso alegando que a Administração do Tribunal de 2ª Instância não tinha dado seguimento ao seu caso.
Antes da queixosa dar entrada na sala do Tribunal, dois seguranças pretenderam revistá-la, situação que muito a revoltou. De repente, tirou as calças, começou aos gritos e, em seguida, viu-se livre de toda a roupa interior, voltando a gritar, “procurem, procurem.”
Os seguranças interromperam de imediato a inspecção e pediram a ajuda da polícia. Os agentes recolheram os dados da queixosa e foram-se embora.
Três juízes do Tribunal de Recurso presenciaram este caso e apresentarão posteriormente o seu parecer por escrito.
A administração do Tribunal não explicou porque é que tinha destacado dois seguranças para revistar a mulher. No entanto, da última vez que se tinha apresentado em audiência, esta mulher tinha atirado dois ovos a um juiz por ter ficado insatisfeita com a decisão do Tribunal.
Por causa desta acção, foi acusada de agressão simples (que não envolve o uso de armas, nem implica ofensas corporais) e acabou por ser presa durante quatro semanas. Esta interposição de recurso, foi o primeiro caso legal em que esteve envolvida depois de sair da prisão.
A notícia não é grande novidade, no entanto os seus efeitos são significativos. Despir-se em Tribunal e desatar aos gritos à entrada de uma sala de audiências é um comportamento incorrecto. Não fica bem a gente civilizada. O Tribunal é um local que se destina a resolver questões legais. Não é local para gritarias e desacatos. Estes comportamentos criam pressão sobre o juiz. Alguém pode pensar que a decisão de um juiz nestas circunstâncias será justa e imparcial?
É preciso não esquecer que num Tribunal se efectuam muitas e diferentes audiências. Os desacatos perturbam também outras salas. Não é aceitável que juízes tomem decisões quando não conseguem ouvir claramente todos os intervenientes. Este comportamento pode afectar de forma indirecta outros julgamentos.
Atirar ovos a um juiz é outra forma completamente inaceitável de agir. Se todas as pessoas que ficam descontentes com as decisões do Tribunal, decidissem agredir os juízes, como é que estes se sentiriam à vontade para entrar numa sala de audiências e proferir um julgamento? A agressão só levaria a que os magistrados não comparecessem em Tribunal, não levaria à resolução na contenda. E se ninguém quisesse ser juiz, o que acontecia à nossa sociedade?
Só podemos concluir que este tipo de comportamento prejudica gravemente o Estado de Direito. Se estes desacatos imperassem, íamos todos sofrer com isso. A confiança no sistema legal seria completamente destruída.
É compreensível, e até expectável, que uma pessoa que fica insatisfeita com uma decisão do Tribunal se manifeste. Mas essa insatisfação não pode ser levada à sala de audiências e exercer pressão sobre o juiz. Este comportamento afecta as decisões dos magistrados e acaba por ser nocivo para todos.
Como já referi, este tipo de desacatos não são novidade em Hong Kong. Já vimos muitas pessoas descontentes com decisões do tribunal a protestar e a gritar junto à sala de audiências. É um sinal das mudanças na nossa sociedade. Antigamente, quando uma sentença era proferida, toda a gente a acatava. Quer se concordasse, quer se discordasse, o caso terminava aí. Esta era, não só uma forma de mostrar respeito pelo Tribunal, mas também de manter o Estado de Direito.
Mas actualmente, quem perde o caso põe-se aos gritos, protesta ou usa a força, para demonstrar a sua insatisfação. Este fenómeno demonstra que existem conflitos sérios na sociedade de Hong Kong. O julgamento pode resolver a contenda, não pode solucionar os problemas que lhe são subjacentes.
Em termos sociais, é inaceitável qualquer caso de agressão a um juiz. A curto prazo, a manutenção do Estado de Direito será possivelmente uma das prioridades do Governo de Hong Kong.

*Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

15 Ago 2016

Ao trabalho… nem tudo o vento levou

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á alguns dias o tufão Nida passou por Macau. O Nida recebeu sinal 8 em Hong Kong, e sinal 3 em Macau. Felizmente em Macau não provocou danos dignos de monta.
Mas a “visita” do tufão levantou uma questão que passamos a analisar. Prende-se com questões laborais e leva-nos a reflectir sobre os horários de trabalho. É evidente que este assunto não é novidade para ninguém. O tufão Nida era potencialmente muito devastador. Inicialmente em Hong Kong temeu-se que pudesse chegar ao grau 10. Em Macau foram tomadas medidas para preparar a sua vinda. Como acabou por se perceber que aqui a tempestade não passaria do grau 3, os horários de trabalho acabaram por não ser alterados. No entanto a questão mantém-se. Que horário laboral deve ser considerado durante um alerta de tufão de grau 8 ou superior?
Sobre este assunto a Lei de Trabalho não se pronuncia. A nossa lei laboral não faz qualquer referência a procedimentos em caso de tufões fortes. No site da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais menciona-se que, em situação de tufão de sinal 8 ou superior, a entidade patronal e os trabalhadores devem chegar a um acordo.
Na medida em que a lei não regula sobre esta matéria é importante que os contratos de trabalho feitos em Macau a tenham em consideração. É preciso não esquecer que aqui muita gente trabalha na área de serviços e, parece praticamente impossível, dispensar todos estes trabalhadores se passar um tufão muito forte. Poderia haver consequências muito negativas em termos sociais. Mas a ausência de qualquer legislação sobre este assunto também não é justa para os trabalhadores. Em situações deste género é perigoso sair de casa, as pessoas sujeitam-se a ter acidentes.
O site da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais adianta ainda que numa situação de tufão de sinal 8 ou superior, a empresa que solicite os serviços dos funcionários é obrigada a fazer um seguro de trabalho. O estipulado pela lei 40/95/M não deixa dúvidas. No caso de uma pessoa se deslocar para o trabalho durante a ocorrência de um tufão de sinal 8 ou superior, qualquer acidente que sofra nas três horas que antecedem a sua chegada ao serviço, ou nas três horas após a sua saída, será tratado como um acidente de trabalho. Caso o acidente se verifique, a empresa deverá comunicá-lo ao Departamento Laboral de Macau, no período máximo de 24 horas, e o empregado pode receber uma compensação por cada duas semanas que fique impossibilitado de trabalhar. O seguro de trabalho garante protecção para os períodos de deslocação entre a casa e o trabalho. Se este seguro não tiver sido feito, então será a empresa a responsável pelas indemnizações e ainda será penalizada. Terá de pagar uma multa de 5.000 patacas por empregado.
Este enunciado parece ser bastante claro, mas na prática não o é. Imaginemos que o empregador ignora estas instruções. Que posição deve tomar o empregado?
É evidente que o empregador deve assumir a responsabilidade caso haja um acidente de trabalho. Como atrás referimos, a entidade patronal será punida se o seguro não cobrir acidentes de trabalho. Para além disso, não parece existir mais nenhuma medida que proteja efectivamente o funcionário. Pedir aos empregados que negoceiem com os patrões em casos desta natureza não tem qualquer efeito, já que, se houver um acidente, este será coberto pelo seguro que terá obrigatoriamente de incluir acidentes de trabalho. Desta forma, o patrão tem legitimidade para continuar a exigir que o empregado trabalhe mesmo que haja um tufão muito forte. Para além disso, as pessoas precisam do emprego mais do que os patrões precisam delas. O poder negocial dos empregados é inferior ao dos patrões.
Na verdade, é não seguro ir trabalhar em presença de um forte tufão. Caso se dê algum acidente, mesmo que o seguro garanta uma compensação monetária, a pessoa continua a sofrer os danos físicos causados. Se perdermos dinheiro, podemos trabalhar mais afincadamente, e voltar a ganhá-lo. Mas se sofrermos danos físicos, por exemplo, se perdermos uma perna num acidente de trabalho, não a podemos recuperar mesmo que nos paguem um milhão de dólares. É o tipo de perda que não pode ser compensada por dinheiro nenhum deste mundo.
Tendo tudo isto em consideração, concluímos que é melhor para todos pensar-se num método que estabeleça um equilíbrio entre os interesses dos patrões e dos empregados em situações de catástrofe iminente. Já que é dever do empregador accionar um seguro que cubra acidentes de trabalho, o melhor a fazer é informar o empregado sobre todos os pormenores do contrato com a seguradora. Por exemplo, o funcionário deve ficar a conhecer todas as circunstâncias que não são cobertas pelo seguro. O empregado também deve ter conhecimento se houver alteração de seguradora.
Se algumas pessoas forem obrigadas a trabalhar mesmo sob condições atmosféricas muito adversas, é aconselhável que a nossa lei de trabalho estipule que o contrato laboral deve incluir todas estas condições. Devem ser mencionadas obrigatoriamente, à semelhança do nome do trabalhador e do salário que vai auferir. Porque que não usar a mesma lógica para regular as condições laborais em caso de tufão forte?
Para além disso deveria ser dado às pessoas o direito de não sair de casa, ou do local de trabalho, se as condições atmosféricas forem particularmente violentas, isto se entidade patronal não tiver um seguro que cubra acidentes de trabalho. O direito de nos recusarmos a trabalhar é mais importante do que as compensações monetárias. Ninguém em seu perfeito juízo troca a integridade física por dinheiro.

* Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau

8 Ago 2016

O preço da longevidade

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]26 de Julho o website “yahoo” de Hong Kong fez saber que a longevidade dos habitantes desta cidade acabou de ultrapassar a dos japoneses, tendo-se tornado a maior do mundo inteiro.
A esperança média de vida dos homens de Hong Kong é actualmente de 81,24 anos, e a das mulheres de 87,32, enquanto no Japão os homens esperam viver 80,79 anos e as mulheres 87,05.
Tradicionalmente a China defende o conceito de longevidade. Os chineses acreditam que uma vida longa é um bem para o próprio e para a sua família. O homem mais velho de uma família chinesa é considerado o seu líder, e a sua experiência de vida é altamente reconhecida pela sociedade em geral. Um provérbio chinês demonstra bem o que acabou de ser dito: “A família guarda os seus anciãos como guardaria um tesouro”. Neste caso o tesouro equivale à experiência de vida.
Em chinês, “longevidade” diz-se “Chang Ming”. Antigamente usavam-se diversos métodos para prolongar a vida. Entre os quais se salientava a nutrição. Sobre este assunto, a “Wikipedia” diz o seguinte,
“A base da Chang Ming é a alimentação natural, consumir alimentos orgânicos e sazonais, cultivados sem recurso a fertilizantes ou pesticidas, que não contenham aditivos químicos e que provenham de explorações locais. Devem ser evitados alimentos refinados e processados e o tempo de cozedura deverá ser o mínimo possível, para que mantenham todas as propriedades nutritivas.”
Podemos entender que o conceito de “longevidade” é há muito acarinhado na China. É sem dúvida benéfico individualmente, mas pode ser prejudicial em termos sociais.
E porquê? Por uma razão simples. Passo a explicar, alguém que viva bastante vai sem dúvida chegar à idade da reforma, ou seja, 65 anos. Tem a opção de deixar de trabalhar, ou passar a trabalhar apenas em part-time. De qualquer forma, nesse período, o mais importante será desfrutar da vida familiar. É sabido que a maioria dos países garante aos idosos um fundo de reforma. De uma forma geral, o único requisito para beneficiar desse fundo é a idade. Se a maioria dos idosos se candidatar a esse fundo de reforma, o peso financeiro será enorme. Implicará também que os contribuintes terão encargos financeiros muito maiores. Se a maior fatia do orçamento do Governo for gasta nos fundos de reforma, como é que vai ter capacidade para fazer frente a todas as outras responsabilidades? As consequências podem vir a ser muito graves. É por este motivo que a longevidade pode ser um bem em termos individuais, mas prejudicial em termos colectivos. Passa-se um pouco o mesmo com as poupanças. Se puser o dinheiro no banco, poupa-o. É bom para si. Mas o seu consumo vai diminuir, logo o desenvolvimento económico abranda, donde ser prejudicial para a sociedade como um todo.
Hong Kong sofre actualmente de um grave problema populacional. O comunicado de imprensa “Projecções Demográficas para Hong Kong de 2015 a 2064” emitido a 25 de Setembro de 2015, pelo Comissário dos Censos e Estatísticas, o Sr. Leslie Tang, dizia o seguinte,
“De uma forma geral, a taxa de fertilidade em Hong Kong tem vindo a decrescer ao longo das duas últimas décadas. A taxa de nascimentos em Hong Kong – o número de crianças nascidas vivas, que cada 1.000 mulheres dão à luz ao longo da sua vida – tem estado sistematicamente abaixo do nível de reposição da população, número esse que deveria ser de 2.001 crianças. Baixou de 1.355 nascimentos por 1.000 mulheres em 1994, para o histórico número de 901 nascimentos em cada 1.000 mulheres, em 2003. Nos últimos anos estes valores recuperaram, tendo chegado em 2014 a 1.234 nascimentos em cada 1.000 mulheres. Nas projecções sobre fertilidade há vários factores a ter em conta, como a percentagem de mulheres casadas, níveis de fertilidade do casal e ainda as crianças nascidas em Hong Kong, filhas de mulheres do continente. Projecta-se que a taxa de fertilidade vá baixando gradualmente, passando do valor registado em 2014 de 1.234 nascimentos por 1.000 mulheres para 1.182 em 2064.”
“Entre 1994 e 2014, Hong Kong tem registado um constante declínio na taxa de mortalidade, que se traduz num aumento da esperança de vida. Em 2014, a esperança média de vida para os homens era de 81,2 anos e para as mulheres de 86,9. Em comparação com outras zonas, Hong Kong regista uma taxa de mortalidade bastante baixa. Em 2064, acredita-se que a esperança média de vida aumente para os 87 anos, no caso dos homens, e para os 92,5 para as mulheres. Projecta-se que o número de mortes anuais aumente das actuais 45.400, para 97.600 em 2064. O aumento das mortes irá dever-se principalmente ao crescimento da percentagem de idosos que se registará nessa altura.”
Verificámos através destas declarações, que a taxa de fertilidade baixou para níveis históricos em 2003. Um dos principais motivos deste fenómeno foi a propagação do vírus responsável pelo Síndrome Respiratório Agudo Grave. Nesse período as mulheres tinham medo de engravidar. No entanto o número de idosos cresce de ano para ano.
Estes números mostram claramente que é urgente que o Governo tenha um plano financeiro muito bem organizado para dar resposta à questão do aumento da população idosa. O sistema de segurança social e o fundo de reformas são essenciais nesta situação. No entanto é necessário capitalizá-los. Dado que o orçamento do Governo de Hong Kong é muito limitado, é necessário criar soluções a longo prazo para dar resposta adequada ao problema.
A população de Macau é muito menor do que a de Hong Kong e, nos últimos anos, os lucros provenientes da indústria do jogo foram altos. Estes dois aspectos contribuíram para a construção de um bom sistema de segurança social. Neste sentido, Hong Kong deve aprender com a experiência de Macau, é necessário que haja avanços.

*Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

1 Ago 2016

Desistir da independência

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta semana as atenções dos media têm-se focado na nova medida a que ficarão sujeitos os futuros candidatos ao Conselho Legislativo de Hong Kong A partir de agora, quem se quiser candidatar a este Conselho terá de assinar previamente um documento onde são mencionados diversos artigos da Lei Básica de Hong Kong, em especial, o que consagra Hong Kong como parte inalienável da China. O objectivo desta nova disposição é bastante claro. Pode vir a ser utilizado para barrar as candidaturas de quem estiver a favor da independência de Hong Kong.
Será esta medida legítima? O Presidente do Conselho Legislativo, Jasper Tsang Yok-sing, afirmou a semana passada em declarações ao South China Morning, “Os candidatos ao Conselho já estavam legalmente vinculados à Lei Básica, mesmo antes de estarem sujeitos à assinatura deste documento adicional.
Com esta medida o que o Governo pretende é apenas salientar alguns artigos da Lei Básica a que os candidatos terão de prestar especial atenção, antecipando a possibilidade de alguns deles se poderem bater por valores que não sejam compatíveis com o que está disposto na Lei.”
Questionado sobre o que virá a acontecer em caso de recusa por parte dos candidatos, Tsang esclarece, “Após a reunificação, o Conselho Legislativo passou a ser o representante da Região Administrativa Especial de Hong Kong, da República Popular da China. Não podemos encarar como inimigos os que não partilham das nossas opiniões políticas. Mas, penso que quem não quiser reconhecer que Hong Kong faz parte da China, não tem condições para se candidatar. Os potenciais candidatos que não reconheçam esta realidade devem reconsiderar a sua candidatura.”
As declarações de Tsang não deixam margem para dúvidas. É dever de todos os cidadãos defender e obedecer à Lei Básica de Hong Kong. Todos temos de concordar que Hong Kong é parte inalienável da China.
No entanto é pertinente perguntar porque é que o Governo não levanta um processo de acusação contra quem defende a independência de Hong Kong? De acordo com o actual sistema jurídico vigente em Hong Kong, só os Tribunais têm poder de condenar o réu e não o Governo. Depois de ser considerado culpado será eventualmente preso. Por tradição, em Hong Kong existe liberdade de expressão. Por este motivo, se o Governo de Hong Kong mover um processo a quem apenas defende a independência do território, pode vir a ser severamente criticado e o acto interpretado como um atentado à liberdade de expressão. Citando Tsang, “em Hong Kong, não podemos encarar como inimigos os que não partilham das nossas opiniões políticas”.
O outro motivo que impede o Governo de Hong Kong de mover um processo aos defensores da independência prende-se com a definição jurídica de delito criminal. Em Hong Kong, cada delito criminal é composto por dois elementos, a saber, intenção criminosa e acto criminoso. Perante o que foi dito, é fácil provar a intenção criminosa de quem defende publicamente a independência do território. Contudo, quanto ao acto criminoso já o caso muda de figura. Neste caso o crime necessita do acto. Por exemplo, numa situação de roubo é necessário reunir provas que demonstrem que alguém subtraiu os bens de outrem, ficando com eles em sua posse. Ou seja, que o acto foi efectivado. Perante estes dados, percebemos que o facto de defender a independência, só por si, não a efectiva, logo o acto criminoso não pode ser provado.
Recapitulemos: os hipotéticos candidatos ao Conselho Legislativo terão de assinar um documento onde reiteram a sua concordância com alguns dos artigos da Lei Básica de Hong Kong, considerados mais basilares. Se houver incompatibilidade entre os seus ideais e procedimentos e alguma dessas disposições, deixam de estar qualificados para se candidatarem ao Conselho.
Nathan Law Kwun-chung, candidato e Presidente da recém-formada força política, Demosisto, afirmou, “Não vou assinar a declaração, porque não permito que a comissão dos assuntos eleitorais imponha condições ilegalmente. Se a comissão interditar algum candidato por não assinar o documento, estou a considerar interpor um pedido de revisão judicial.”
Estas declarações são sinal do que pode estar para vir. Se a revisão judicial for em frente o Governo de Hong Kong ver-se-á envolvido numa batalha nos Tribunais.
O valor de Hong Kong advém da sua situação económica e não da sua situação política. Defender a independência de Hong Kong significaria alterar o seu posicionamento político, e as consequências seriam muito negativas. Esta posição é defendida por muito poucos. Não representa de forma alguma a maioria do povo. É prioritário que a maioria se demarque desta minoria. Se a maioria não puder impedir as manifestações do desejo de independência da minoria, ao menos que demonstre o seu desacordo. Será uma das melhores formas de contribuir para o bem da China e de Hong Kong.

* Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau

25 Jul 2016

Em forma, mas não troppo

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]website “Yahoo” de Hong Kong publicou um artigo no passado dia 14 sobre o processo de liquidação movido a um dos maiores centros de fitness de Hong Kong – o California Fitness.
A liquidação é um processo legal que se destina a encerrar uma empresa. Assim que a Ordem de Liquidação (emitida pelo Tribunal para determinar o fim da empresa) é emitida pelo Tribunal de 1ª Instância (uma das mais altas Instâncias de Hong Kong, equivalente ao Tribunal de 2ª Instância de Macau), a empresa é encerrada. Todos os bens da empresa serão distribuídos de acordo com a secção 265 do Normativo Comercial (que inclui todas as normas que regulam as operações comerciais duma Empresa Lda., e que em Hong Kong se encontram inscritas um código independente, designado precisamente por Normativo Comercial).
O encerramento deste centro trará muitas contrariedades aos habitantes de Hong Kong, já que este é um dos maiores centros de fitness da cidade, frequentado por imensas pessoas que serão necessariamente afectadas. Os media divulgaram que o California Fitness Centre é propriedade da empresa J.V. Fitness, dirigida pela Sr. Wong Lun.
O modelo de negócio do California Fitness baseia-se na criação de cotas para membros. Para frequentar o centro é necessário tornar-se membro. Para se ser membro é preciso pagar uma cota. Quanto maior for a cota, maior será a duração da qualidade de membro. Ou seja, não existe um tempo limite, previamente definido. Algumas pessoas tornaram-se membros até 2019.
Nestes últimos dias, várias pessoas vítimas desta situação, membros e pessoal que não recebeu os seus salários e comissões, têm procurado ajuda junto de diversos departamentos governamentais. Neste caso, os pagamentos electrónicos são a nossa principal preocupação.

De uma forma geral, existiam dois tipos de pagamento electrónico aceites pelo California Fitness, cartões de crédito e EPS. Todos sabemos como funcionam os pagamentos com cartões de crédito. O banco avança o dinheiro e de seguida acerta as contas com o cliente. Só em circunstâncias muito especiais o banco não cobre as despesas de um cartão de crédito. A pergunta que se coloca agora é muito simples. Se a empresa está em liquidação, impossibilitada de fornecer os seus serviços, será o banco obrigado a manter pagamentos regulares em nome de clientes que se viram privados desses mesmos serviços?
O senso comum diz-nos que o banco não deve pagar. No entanto, esta não é a resposta acertada. A partir do momento em que um cliente acciona o seu cartão de crédito o banco passa a ter obrigação de honrar os seus compromissos junto da empresa credora, de acordo com os termos do contrato entre a instituição bancária e o credor. No entanto os clientes do centro apelam para que estes pagamentos cessem.
A segunda forma de pagamento electrónico é o EPS. O procedimento é semelhante ao do cartão de crédito, a diferença é que neste caso a quantia é imediatamente retirada da conta do cliente. Aqui, o banco limita-se a executar a transferência de dinheiro da conta do cliente para a conta da empresa prestadora do serviço. Estas pessoas também vão precisar de ajuda. A questão é que não se pode pagar sem receber nada em troca. Logo, a protecção contratual oferecida pelo cartão de crédito deve estende-se aos clientes do serviço EPS. Seguindo a mesma lógica, a protecção contratual deve ainda estender-se aos acordos celebrados entre o cliente e o banco.
Não há dúvida que estas reclamações têm toda a razão de ser. Se as pessoas estão a pagar sem receberem nada em troca, não vos parece que os seus direitos estejam a ser protegidos, pois não? A resposta é óbvia. Mas esta situação do California Fitness demonstra claramente que a protecção contratual dada aos clientes é limitada pelas condições do contrato celebrado entre o banco e as empresas credoras, e varia de caso para caso. As condições modificam-se consoante os bancos e os clientes. Se quisermos aumentar os direitos dos clientes, esta protecção terá de ser estatutária e não contratual.
A segunda questão que se levanta é o serviço prestado por uma Empresa Lda. A secção 275 do Normativo Empresarial contempla os casos de comércio fraudulento. Ou seja, se uma empresa é declarada insolvente, mas continua a operar, com intenção de defraudar os seus credores, estamos perante um caso de comércio fraudulento. Do mesmo modo, um comerciante, ou uma Empresa Lda., que saiba que a sua situação financeira é muito precária, mas que, mesmo assim, continue com o negócio em funcionamento e incentive os clientes a fazerem pagamentos adiantados por serviços que, hipoteticamente, virão a ser prestados no futuro, volta a ser um caso de comércio fraudulento. Como é muito difícil provar que alguém tem intenção deliberada de extorquir dinheiro a outrem, o estipulado nesta secção é raramente aplicado.
O Descritivo do Normativo Comercial é outra ferramenta útil para lidar com esta situação. O Normativo estipula que, se na altura em que o comerciante recebe dinheiro do cliente, estiver incapacitado de fornecer os serviços pelos quais foi pago, estamos perante um delito. É sem dúvida, mais um instrumento que irá complementar o estipulado na secção 275, que como já vimos, na prática tem muitas limitações.
O caso do California Fitness demonstra claramente as dificuldades da lei comercial de Hong Kong para lidar com situações que envolvam “pagamentos antecipadamente agendados”, após uma declaração de insolvência. É certamente um problema social quando existem leis deste género para regular os direitos dos consumidores.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

18 Jul 2016

Médicos de Hong Kong enfrentam mudanças

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 8, o website “www.scmp.com” anunciou a conclusão da discussão da adenda à proposta de lei sobre o “Registo de Médicos”. Foi resultado de uma Segunda Leitura, que teve lugar no Conselho Legislativo de Hong Kong. Está concluída mais uma etapa do processo inerente à aprovação da proposta de lei. Mas, de facto, não são notícias por aí além, porque apenas 32 horas separam este elenco legislativo do final do seu mandato. No caso de não se conseguir concluir todos os procedimentos necessários à aprovação da proposta de lei, o novo Conselho Legislativo, que tomará posse em Setembro, terá de pegar no processo a partir da estaca zero. Todo o trabalho desenvolvido pelo actual Conselho terá sido em feito em vão.
Uma das razões que justifica a lentidão da discussão da proposta de lei, assenta numa campanha de obstrução desencadeada pelo Dr. Leung Ka-lau, o delegado responsável pelo sector da saúde. Leung pediu constantes adiamentos à discussão.
“O processo vai ser demorado. O debate continuará na próxima reunião do Conselho Legislativo, a realizar quarta-feira” declarou o Ministro da Saúde, Dr. Ko Wing-man.
A proposta pretende atrair mais leigos para o Conselho Médico de Hong Kong, que passará a ter um total de 32 membros. O Governo espera que esta proposta de lei aumente a credibilidade deste Conselho, sobretudo no que respeita à capacidade de gerir e dar resposta às queixas de mau atendimento médico. Os grupos que defendem os direitos dos utentes também estão a favor de uma maior transparência.
Um dos casos que provocou mais celeuma foi a morte do filho do conhecido cantor Peter Cheung e da famosíssima Eugina Lau. Este caso data de 2005. O bebé morreu 24 horas após o nascimento. O casal apresentou queixa ao Conselho Médico, acusando o médico assistente de negligência. O julgamento só teve lugar em Maio de 2014, nove anos após o sucedido.

O resultado da Segunda Leitura da proposta de lei expressou-se da seguinte forma, 53 votos a favor, 8 contra e 4 abstenções. Este resultado indica que existe uma forte probabilidade de a proposta ser aprovada durante a sessão da próxima semana.
Actualmente existem cerca de 13.000 médicos em Hong Kong. O Conselho Médico é composto por 28 membros, metade dos quais são eleitos pela classe médica, sendo os restantes indigitados pelo Governo. A proposta de lei pretende a criação de mais quatro membros, a serem indigitados pelo Governo e provenientes de áreas não relacionadas com a saúde, ficando assim em minoria os membros eleitos pela classe.
Todos sabemos que para se ser médico é preciso estudar imenso. Não é qualquer um que o consegue. Em Hong Kong, são necessários pelo menos seis anos para formar um médico e durante este período os estudantes desfrutam apenas de um mês de férias anuais. Para além disso os médicos estão sujeitos a uma enorme quantidade de normas que regulam as suas condutas profissionais. Ficando em minoria no Conselho Médico, a autonomia da classe será afectada. É, pois, compreensível o seu mal-estar.
Um dos deveres do Conselho Médico é a definição de modelos processuais. Estes modelos não são apenas académicos, estendem-se às competências profissionais. Este corpo de conhecimentos e capacidades não será facilmente entendido por um homem de leis. É por este motivo que o melhor regulador de qualquer classe profissional é um organismo constituído pelos seus próprios membros. Neste sentido, a indigitação de quatro elementos oriundos da área do Direito, não será útil ao Conselho Médico.
Agora analisemos o ponto de vista do público em geral. O vulgar cidadão está alheio às dificuldades e exigências da profissão médica. Mas o senso comum diz-lhe que não é normal um caso como o de Peter Cheung arrastar-se durante nove anos. Talvez este caso tenha sido uma excepção, no entanto o website “www.hk.on.cc” publicou mais números no dia 29 do mês passado. Estes números demonstram que é preciso esperar pelo menos 17 meses para dar início a uma investigação por negligência médica. Se a situação envolve procedimento disciplinar contra o médico, então será preciso esperar mais 41 meses. Por outras palavras, vão ser necessários 58 meses para concluir uma queixa contra um médico. Será este tempo aceitável para o público em geral?
Se a proposta de lei for aprovada, mais de metade dos membros do Conselho Médico passará a ser indigitada pelo Governo. O medo de que o Governo passe a controlar o Conselho é compreensível. Alguns comentadores também sugerem que o objectivo deste controlo é diminuir a exigência nos exames de admissão, de forma a que médicos vindos de outros lugares, especialmente da China continental, pudessem vir a ser admitidos em Hong Kong. Com esta entrada de médicos vindos do exterior, o número destes profissionais aumentaria bastante em pouco tempo e a falta de médicos nos Hospitais de Hong Kong poderia ser resolvida rapidamente.

Mais uma vez todas estas preocupações são compreensíveis, mas parece que até ao momento, não existem provas claras de que seja este o objectivo do Governo.
Colocar mais quatro homens de leis no Conselho Médico poderá fazer aumentar a confiança do público, mas acabará com a “confiança mútua” entre o Governo de Hong Kong e a classe médica. As próximas duas semanas vão ser determinantes para o Governo fazer um balanço entre os interesses da classe médica e a confiança do público.
Como Macau vai criar em breve a sua própria Faculdade de Medicina e um Conselho Médico, este caso pode servir de exemplo para ponderar as diversas questões com antecedência.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

11 Jul 2016

Desastres e habitação precária

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] website “scmp.com” publicou, no passado dia 27, um artigo sobre um incêndio de grandes dimensões que deflagrou num edifício empresarial em Ngau Tau Kok, Hong Kong. O incêndio esteve activo durante 108 horas e só foi extinto dia 26. Dois bombeiros pereceram no local.
O fogo começou no 3º andar do edifício, numa zona alugada em segmentos para depósitos individuais.
Segundo a Wikipédia, o negócio que gere os depósitos individuais, também designados por “unidades de armazenamento” dedica-se ao aluguer de espaços (salas, cacifos, contentores e zonas exteriores), por regra, durante curtos períodos de tempo (contratos mensais). Os utilizadores deste serviço tanto podem ser empresas como pessoas individuais.”
O desastre acabou por atingir proporções tremendas porque, devido à antiguidade do prédio, não existiam aspersores de água de combate a incêndios. Além disso, havia demasiado material acumulado, evidentemente porque o senhorio tentou rentabilizar o espaço ao máximo. O 3º andar estava inteiramente destinado ao negócio de aluguer de espaços para armazenamento. A área foi dividida em mais de 100 “pequenas unidades”. Pesou ainda a dificuldade criada por uma série de acessos complicados a este piso e que também não permitiam uma saída fácil.
Mas se no local só existissem materiais armazenados o problema não teria sido tão grave. O pior é que quando o fogo começou foram vistas neste preciso local algumas crianças ocupadas com os trabalhos escolares e adultos a cozinhar. Foi também vista uma outra mulher em trajes de trazer por casa. Tudo indica que havia pessoas a viver no armazém. Portanto, o depósito estava a ser utilizado como habitação por algumas pessoas. Os contratos de arrendamento deste espaço proibiam os inquilinos de viver no local. Mas depois da hora de expediente, digamos depois das 18.00, o pessoal do armazém sai, ficando o local sem vigilância. Por isso é fácil a partir dessa hora a quem tiver acesso instalar-se no armazém. O que faz com que a condição expressa no contrato, de não habitar o local, não sirva para nada.
Os bens armazenados neste tipo de depósitos representam também outro problema. Ninguém conhece a natureza dos pertences que aí são guardados. Podem ser materiais perigosos. No momento da assinatura do contrato o senhorio não tem forma de saber que tipo de objectos vão ser armazenados. É usual mencionar-se no contrato a não permissão de guardar materiais perigosos, no entanto, na prática, verifica-se que posteriormente não existe qualquer inspecção. Os termos do contrato valem o mesmo que um papel em branco. São inúteis.
A polícia de Hong Kong já deu início à investigação. Compete-lhes apurar as causas do incêndio e determinar se efectivamente havia pessoas a viver no armazém.
Este negócio de aluguer de pequenas unidades de espaço para depósito tem vindo a desenvolver-se nos últimos 10 anos. Como os preços dos alugueres de casas em Hong Kong sobem constantemente, a maior parte das pessoas deixa de ter capacidade de os pagar. Uma família de quatro pessoas que viva num apartamento minúsculo não consegue guardar a maior parte dos seus pertences.
E é evidente que estes apartamentos minúsculos passam a ser a única opção para a maior parte das pessoas sem dinheiro para pagar uma casa em condições. Antigamente existia em Hong Kong o sistema de “apartamentos subdivididos”, ou seja, um apartamento de tamanho normal subdividido em partes mais pequenas que se alugavam individualmente. Mas mesmo assim estas rendas ainda eram altas e, por causa disso, quem não as podia pagar começou a mudar-se para estes espaços de depósito individuais. Não é de admirar que actualmente haja pessoas a viver nesses sítios.
É de salientar que este incêndio não só matou duas pessoas como serviu para pôr a nu um grave problema de habitação. O Governo de Hong Kong já anunciou que vai proceder a inspecções nestes locais para impedir que de futuro ocorram casos semelhantes. Parece ser uma boa medida enquanto se espera pela regulamentação do sector. No entanto, já se divisa um outro problema. Como este negócio de aluguer de unidades de armazenamento não está oficialmente registado, não é possível determinar o número exacto de locais deste género existentes em Hong Kong. E deste modo como é que se pode assegurar uma inspecção completa?
Os conteúdos do enquadramento legal serão também outro problema. Como foi dito, de momento não existe registo oficial deste actividade em Hong Kong. Será melhor que passe a haver? E qual o significado legal dos registos? Serão estes registos renovados anualmente? Será obrigatória a instalação de aspersores de água? De que forma se vai assegurar que os materiais armazenados não são perigosos nem existem explosivos? Estas são algumas das questões com que o Governo de Hong Kong terá de lidar.
Como sabemos, em Macau também existe este negócio. Como as rendas, também são muito altas em Macau, compreende-se que os senhorios tentem rentabilizar os espaços que têm disponíveis até ao seu limite. Aqui, também por vezes é difícil encontrar a saída de cada andar. As questões que foram atrás colocadas também se aplicam em Macau. Existem aspersores de água em cada andar? Existem pessoas a viver nestes depósitos individuais de mercadorias? Que tipo de materiais é que aí estão guardados? São questões em que, quer o Governo, quer os inquilinos, devem reflectir.
Este caso que se deu em Hong Kong é uma grande lição para Macau. A prevenção é sempre o melhor remédio. O que há a fazer é tirar ensinamentos desta situação para impedir que o mesmo suceda em Macau.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

4 Jul 2016

Direito ao sossego

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 11, o website “money.cnn.com” publicou um artigo sobre a proposta de um novo direito a implementar em França. Designado por “direito a desligar”, assegura que os funcionários não serão obrigados a responder a emails de serviço, durante os períodos de descanso. Se a proposta for aprovada entrará em vigor em Julho de 2017.
A norma prevê que uma empresa com mais de 50 funcionários não poderá enviar emails ao pessoal fora do horário de serviço. Aos empregados é assegurado o direito a não responder. O intuito desta norma é reforçar a ideia das 35 horas de trabalho semanais que se quer levar à prática.
Os franceses acham que os patrões mantêm os empregados a trabalhar para lá do horário normal através do mail. A pressão continua fora das horas de serviço. Os emails funcionam como um laço que prende os trabalhadores às preocupações laborais e invadem as suas vidas privadas. A casa deixa de se distinguir do escritório.
Um dos pontos interessantes deste direito é não implicar qualquer sanção. Funciona mais como um incentivo e o governo espera que o empregador implemente a regra voluntariamente, não estando prevista qualquer penalização em caso de infracção.
O “direito a desligar” confere obviamente protecção aos empregados. Mas, digamos, existem alguns princípios fundamentais que sustentam este direito. Os franceses acreditam em dois conceitos de tempo, “Chronos” e “Keiros”. Consultemos as respectivas definições na “Wikipedia”,
“Chronos é a personificação do tempo na filosofia pré-socrática, sendo mencionado em obras literárias posteriores.”

Keiros é outro deus grego. Representa a ocorrência de um acontecimento especial num determinado período de tempo. O “tempo K” é o tempo de produção, o tempo criativo. Por isso, quanto mais prolongado for o tempo de trabalho menor será o “tempo K”, e a capacidade de produção e criação diminuirá.
Este direito permite a liberdade depois do horário laboral e garante que as pessoas deixem de ser incomodadas pelos emails dos patrões. Reforça também a ideia das 35 horas de trabalho semanal, que se quer ver respeitada em França. Mas será esta história é assim tão simples?
O “direito a desligar” traz consigo algumas implicações. Em primeiro lugar, se a empresa for francesa e não precisar de estabelecer comunicações para outros fusos horários, não haverá consequências de maior para ninguém. Mas se a empresa for estrangeira e, ou, tiver de lidar com clientes que se encontrem noutros fusos horários, pode causar várias perturbações. A empresa terá nesse caso de indigitar os responsáveis pelas relações internacionais, sobretudo nos casos que impliquem diferença de horários.
O trabalho por turnos, com horários nocturnos, poderá ser uma solução para o problema. Mas implicará certamente um aumento das despesas empresariais, na medida em que estes horários rotativos implicam um pagamento extra.
Em segundo lugar, nos tempos que correm, os emails fazem parte das comunicações electrónicas. O Whatsapp, o Wechat, o Facebook e etc. são todos ferramentas de comunicação electrónica. E se a lei que regulamenta a recepção dos emails não se estender a outras plataformas de comunicação? Por exemplo, se um empregador enviar uma mensagem a um funcionário via Whatsapp, após o horário laboral, para o avisar que na manhã seguinte tem de efectuar determinada tarefa. O empregado só vai ter de se ocupar desse serviço posteriormente, dentro do seu horário de trabalho e não tem de responder à mensagem logo a seguir. Mas se o “direito a desligar” não cobrir outras plataformas, como por exemplo o Whatsapp, então o empregado poderá arranjar problemas, se não responder de imediato ao patrão. Neste sentido, a protecção oferecida por este direito pode não ser suficiente.
Em terceiro lugar, por vezes os emails são identificados como lixo, e nesse caso, não aparecem no “Correio Recebido”. Noutros casos, por qualquer motivo, podem extraviar-se. Em ambas as situações os emails foram enviados, mas não foram recebidos. O “direito a desligar” garante ao empregado a possibilidade de não responder fora do horário de trabalho, mas se o email se perder, nunca mais poderá responder. Nesse caso quem será responsabilizado pela perda do email? É obviamente uma questão que não é abrangida por este direito, mas na nossa vida de todos os dias a perda de emails é um problema que não conseguimos evitar.

A pressão laboral em Hong Kong é enorme. É comum receber-se emails e mensagens dos patrões fora das horas de serviço. Podem ser 11.00 h da noite, sendo que a pessoa tem de estar no escritório às 9.00h da manhã, mas mesmo assim, tem de responder às mensagens do patrão, se não quiser arranjar lenha para se queimar. A injustiça nas relações laborais pode ser facilmente demonstrada.
Em Macau a pressão talvez não seja tanta como em Hong Kong. Mas ainda assim não impede os patrões de enviarem mensagens às 11.00h da noite. O empregado talvez possa não responder, mas uma coisa é certa; no dia seguinte vai ter de apresentar explicações.
O “direito a desligar” é uma boa ideia. Mas, na prática, levanta algumas questões. Para o concretizar será necessário encontrar respostas antecipadamente. A implementação desta norma pode assegurar que os trabalhadores de Hong Kong e Macau deixem de sofrer a interferência dos patrões fora das horas de serviço e garantir-lhes o direito ao sossego

 
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

27 Jun 2016

Chovem benesses

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 5 o website “Yahoo, Hong Kong” anunciou que na Suíça tinha sido apresentada uma proposta para distribuição de 2.500 USD mensais aos cidadãos. Este valor seria atribuído a todos os maiores de 18 anos. Aos menores caberia a quantia mensal de 625 dólares. Mesmo as pessoas com emprego teriam direito ao subsídio.
A proposta data de 2013. A legislação suíça prevê que no caso de uma proposta de lei ter sido assinada por um mínimo de100.000 pessoas, deverá ser submetida a sufrágio nacional.
Os apoiantes da proposta defendiam que este valor poderia garantir a manutenção dos direitos básicos e da dignidade dos cidadãos. A partir do momento em que recebessem este valor, as pessoas poderiam deixar de trabalhar e passar a dedicar-se a qualquer actividade que desejassem; como por exemplo, o estudo, o empresariado ou, simplesmente, usufruir da companhia dos familiares. Os defensores da ideia acreditavam ainda que a proposta poderia reduzir a carga de responsabilidades do Governo no que concerne à gestão do fundo de aposentações, seguros laborais e Segurança Social.
O ano passado, os adeptos da moção organizaram um sorteio para promover a ideia e Carole foi a vencedora. O prémio consistia na atribuição mensal de 2.500 dólares, ao longo de 12 meses. Logo após receber esta benesse Carole voltou a estudar.
Actualmente, o subsídio de sobrevivência na Suíça é de 2.219 dólares mensais e abrange cerca de um oitavo da população.
Mas os opositores da ideia argumentaram que a distribuição desta soma aumentaria muito a carga financeira do Governo, avaliada para 2016 em 660 biliões de dólares. Se a proposta tivesse sido aprovada a despesa teria aumentado para 2.080 biliões.
Sabem qual foi o veredicto final? “Rejeitada”. Mais de 70% dos cidadãos opôs-se à proposta de distribuição de dinheiro.
Mas a história não se fica por aqui. Na Finlândia será apresentada uma proposta semelhante em 2017, mas a quantia a distribuir será inferior e a atribuição condicional. Por outras palavras, a distribuição ficará dependente de certas condições.
Não é surpreendente que este projecto de lei tenha sido rejeitado. O resultado indica claramente que a maior parte dos cidadãos é consciente. É fácil perceber que se toda a gente tiver dinheiro sem precisar de trabalhar, o Governo não vai conseguir angariar impostos.
Imaginemos que depois de descontar os impostos o contribuinte fica apenas com 25% dos seus ganhos, os outros 75% vão para o Estado. Se você estivesse na pele deste contribuinte teria motivação para continuar a trabalhar? Perante esta situação toda a economia do País colapsaria.
É sabido que em Macau todos os residentes recebem anualmente uma certa quantia. Nos últimos anos o valor tem rondado as 9.000 patacas per capita. No entanto este valor não se compara aos 2.500 dólares mensais da proposta suíça. Em primeiro lugar, o valor distribuído em Macau é encarado como um bónus, ou subsídio. Não é um pagamento mensal e não permite que as pessoas deixem de trabalhar. A distribuição desta verba aos residentes não aumenta a despesa do Governo de Macau.
Em segundo lugar, ninguém está à espera das 9.000 patacas anuais para sobreviver, é um valor que os residentes podem poupar ou gastar, como melhor entenderem. Esta distribuição é um acto benéfico para os habitantes de Macau.
Contudo, é necessário voltarmos um pouco atrás. Este tipo de pagamento proporciona felicidade aos residentes individualmente, mas não beneficia de forma significativa a sociedade em geral. Por exemplo, se colocássemos o total destas verbas na Segurança Social, garantiríamos melhor qualidade de vida aos cidadãos com mais de 65 anos. Nessa altura as 9.000 patacas darão provavelmente mais jeito.
Independentemente da forma como é feita, a distribuição de dinheiro é sempre boa para os residentes. Mas se se transformar num pagamento regular a longo prazo, passa a ser negativa. E se este pagamento acarretar um grande aumento da despesa do Governo, então será muito mau para a sociedade em geral.
A ideia de distribuição de dinheiro na Suíça é boa, mas dá origem a muitos problemas. É o tipo de distribuição que não pode ser facilmente implementado.

20 Jun 2016

Turno da noite

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 27 de Maio o website de Hong Kong “orientaldaily.on.cc” fez saber que a Autoridade Hospitalar de Hong Kong passou a permitir que as enfermeiras grávidas, a partir das 32 semanas, sejam dispensadas dos turnos da noite. A medida entra em vigor a partir deste mês. Acrescente-se ainda que, enfermeiras grávidas de 28 semanas também poderão ficar isentas do serviço nocturno. No entanto esta medida não será adoptada em todos os hospitais, ficando dependente das necessidades das profissionais e dos recursos de cada estabelecimento.
Estas políticas foram implementadas na sequência do desmaio de uma enfermeira grávida de oito meses. a cumprir horário nocturno no Queen Mary Hospital, em Pok Fu Lam, Hong Kong. O presidente da Autoridade Hospitalar de Hong Kong, John Leung Chi-yan, declarou que os obstetras consultados tinham sido unânimes em afirmar que, uma gravidez a partir das 32 semanas comporta mais riscos para as mães.
A implementação destas políticas deverá beneficiar de imediato 950 enfermeiras. No entanto existe um deficit geral de 700 enfermeiros. Nos hospitais públicos o deficit ascende aos 250.
Do ponto de vista das enfermeiras esta medida só peca por tardia. A partir deste momento todas as enfermeiras grávidas de 32, ou mais, semanas serão dispensadas dos turnos da noite. Mas já existiria antes alguma lei de protecção às grávidas no que respeita ao trabalho nocturno?
Em Hong Kong, o artigo 15AA(1) da Lei do Trabalho, específica:
“Uma funcionária grávida pode, mediante apresentação de certificado médico, pedir dispensa de trabalhar com materiais pesados, de trabalhar em instalações que produzam gás, potencialmente prejudicial à saúde do bebé, ou ainda, de realizar qualquer trabalho prejudicial ao normal desenvolvimento da gravidez.”
Através da leitura deste artigo, podemos observar que as trabalhadoras grávidas podem ser dispensadas de serviços que prejudiquem a sua saúde e a do bebé. Acresce ainda que a grávida pode recusar certos serviços, desde que considere que podem lesar a gravidez.
No entanto, neste artigo da Lei do Trabalho de Hong Kong, podemos ler que se exige um certificado médico para sustentar os pedidos de dispensa. Se o patrão não concordar com o pedido de dispensa em relação a certos serviços, feito pelo médico da grávida, tem direito a requisitar uma segunda opinião.
Obviamente, que o alcance da secção 15AA(1) é a regulamentação da atribuição de tarefas, não a regulamentação de horários. Os turnos nocturnos são uma questão relacionada com os horários e, como tal, fora da alçada da secção 15AA(1). Não parece provável que as trabalhadoras grávidas possam evocar este artigo para pedir dispensa dos turnos nocturnos.
Em Macau, o artigo 56(1) da Lei do Trabalho (7/2008) específica:
“Durante a gravidez e nos três meses após o parto, a trabalhadora não pode ser incumbida de desempenhar tarefas desaconselháveis ao seu estado.”
Este artigo é suficientemente claro e não deixa margem para dúvidas quanto à obrigação de dispensa de serviços prejudiciais a grávida, estendendo-se essa protecção aos três meses pós-parto. Este postulado não exige qualquer certificação médica. No entanto, em caso de conflito, é sempre preferível que a trabalhadora apresente prova médica para sustentar as suas alegações.
Comparando os dois artigos de lei, o de Hong Kong e o de Macau, verificamos que são bastante semelhantes. Mas a Lei do Trabalho de Hong Kong especifica as tarefas que não devem ser atribuídas às grávidas: lidar com materiais pesados e trabalhar em instalações que produzam gás, potencialmente prejudicial à saúde do bebé. No entanto, a legislação de Hong Kong prevê a necessidade de um certificado médico para sustentar a dispensa de serviços, ao passo que a legislação de Macau não a estipula.
Como vemos, ambas as legislações regulam apenas a atribuição de tarefas a grávidas, a questão dos turnos nocturnos é matéria que se prende com a regulamentação de horários e não de funções. Assim, podemos concluir, que não existe legislação específica em Hong Kong sobre a isenção de horários nocturnos durante a gravidez. A Lei do Trabalho de Macau é semelhante (7/2008).
A actual medida da Autoridade Hospitalar de Hong Kong, tomada na sequência do desmaio da enfermeira, é sem dúvida favorável a todas as enfermeiras grávidas. É mais uma medida de protecção à gravidez. Deverão outros departamentos governamentais seguir o exemplo? Como esta medida não é uma lei, o seu efeito não abrange todas as áreas. É preferível que cada departamento oficial tome as suas próprias decisões. O balanço deve ser feito entre a necessidade de protecção às grávidas e as capacidades do sector.
A situação em Macau é mais complicada. Os casinos têm necessariamente turnos nocturnos, estão abertos 24 horas por dia. As mulheres também têm de trabalhar à noite. Será que os Casinos podem dispensar as trabalhadoras grávidas dos turnos nocturnos? Como não existe legislação sobre esta matéria, é conveniente deixar cada empresa decidir o que melhor achar. No entanto, o desmaio da enfermeira grávida demonstra claramente o desajuste da actual legislação do trabalho.

13 Jun 2016

Desconfiança

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 28 de Maio, o website de Hong Kong “hk.apple.nextmedia.com” divulgou uma notícia, onde se fazia saber que a polícia local induzia pessoas libertadas sob fiança a desistirem do direito de processar o Governo e a Polícia de Hong Kong, por não terem sido reembolsadas do dinheiro pago pelas respectivas fianças.
Podemos ler na Wikipedia a seguinte definição de fiança, “……a fiança é um depósito material ou uma garantia dada a um Tribunal a fim de requerer a libertação de um detido, no pressuposto de que o indivíduo voltará a apresentar-se para ser julgado. Em alguns casos o dinheiro da fiança pode ser restituído no final do julgamento, se o réu se apresentar em Tribunal sempre que solicitado, independentemente de ser considerado inocente ou culpado das acusações……”
O Sr. Liu é o protagonista desta nossa história. A 25 de Maio o Sr. Liu apresentou-se na esquadra da polícia, de acordo com as condições impostas pela libertação condicional – apresentava-se sempre com regularidade. Nesse dia pediram-lhe que assinasse um documento de três páginas. Tratava-se de uma declaração, onde se podia ler,
“Decido processar / não processar a Polícia e o Governo de Hong Kong, por não ter sido reembolsado do dinheiro pago pela minha fiança, no valor de 20.000 HKD, e peço / não peço uma indemnização.”
O documento que o Sr. Liu recebeu para assinar já tinha as palavras “processar” e “peço” riscadas com uma cruz. O Sr. Liu sentiu que os seus direitos tinham sido infringidos e, como tal, mostrou o documento aos jornalistas e o caso foi tornado público.
No início de Maio, foi roubada da esquadra de Polícia de Wanchai, Hong Kong, uma soma de 1milhão e 70 mil HKD. A polícia local suspeitou de um dos seus agentes.
Na medida em que se tratava de um caso de roubo, a investigação foi imediata e a mulher do agente suspeito foi interrogada. Na altura afirmou que o marido não ia a casa já há alguns meses. Por outras palavras, não se conseguiu apurar nada a partir das declarações da mulher. Mas a polícia tinha algumas perguntas que ficaram sem resposta. Por exemplo, o suspeito era um agente. Não existia qualquer registo interno de que ele tivesse dividas. Além disso, se se tivesse reformado, teria recebido um valor de cerca de 1 milhão de HKD, pelo que 1milhão e 70 mil HKD, não lhe adiantava de muito. Mesmo assim alguns meios de comunicação avançaram que ele teria contraído créditos junto de algumas instituições bancárias, mas estas afirmações não ficaram provadas.
No entanto, a polícia de Hong Kong tem aparentemente um controlo muito apertado sobre os fundos de fiança à sua guarda. Os valores são colocados num cofre dentro da esquadra. O detentor da chave do cofre deve sujeitar-se previamente a testes de personalidade. O detentor da chave não pode ter dividas. Para além disso, enquanto estiver na posse da chave, este agente não pode sair da esquadra (nas horas de serviço, entenda-se). Se quiser lanchar, só pode ir à cantina, não pode ir ao “café da esquina”. Estas medidas evidenciam o rigor dos procedimentos.
Alguns meios de comunicação anunciaram que o suspeito estaria actualmente em Macau, mas mais uma vez, nada ficou provado.
O documento assinado pelo Sr. Liu foi alvo de duras críticas. Se o dinheiro das fianças desapareceu dentro da esquadra, é um problema, apenas e só, da polícia de Hong Kong. Mas ao vermos este documento, percebemos que a polícia tentou dividir responsabilidades com a pessoa que pagou a fiança! É um caso de injustiça óbvio. O primeiro problema foi o dinheiro ter desaparecido da esquadra, mas, tentar dividir responsabilidades com o cidadão comum, que não tem qualquer culpa do sucedido, passou a ser o segundo problema. É sem dúvida uma situação em que a polícia não “ficou bem na fotografia”.
Os motivos desta actuação são, contudo, bastante evidentes. A hipótese de recuperar o milhão e 70 mil dólares é diminuta. Mesmo que o suspeito venha a ser apanhado, o dinheiro pode já ter sido gasto. Se o dinheiro não for recuperado, a polícia de Hong Kong será responsável pelas indemnizações. Por isso, levar os lesados a desistirem do reembolso da fiança, e a não levantarem um processo, parece ser, de momento, a única saída que resta à polícia de Hong Kong.
Na sequência das duras críticas de que foi alvo, a corporação anunciou a dia 28 de Maio, que o caso não se voltará a repetir. Também foram apresentadas desculpas ao Sr. Liu pelos incómodos causados.
Ficou ainda claro que os reembolsos das fianças estarão assegurados e que caso não seja possível recuperar a soma roubada, a Polícia de Hong Kong será responsável pela sua reposição.
Não há dúvida que foi um acontecimento muito desagradável, a que ninguém gostaria de ter assistido. No entanto, a Polícia de Hong Kong é a fiel depositária do dinheiro das fianças, e, como tal, deve assumir todas as responsabilidades. Embora tenha havido polémica, as desconfianças foram acalmadas com os esclarecimentos posteriormente prestados. Esperamos que o suspeito seja encontrado o mais rapidamente possível e que o dinheiro possa ser recuperado, senão na totalidade pelo menos em parte significativa. Nessa altura o caso ficará encerrado.
Esta fuga de verbas duma esquadra não deixou de ser uma excepção. Os procedimentos de guarda de valores à responsabilidade do Governo continuam a ser eficazes.

David Chan
Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau


3 Jun 2016

Refeição fatal

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 24, o website “www.theguardian.com” publicou a notícia do falecimento de Paul Wilson. A morte deveu-se a choque anafilático. A definição de “choque anafilático” pode ser encontrada em www.webmd.com/allergies/guide/anaphylaxis e é a seguinte,
“Anafilaxia é uma resposta alérgica, potencialmente fatal que se caracteriza por inchaço, urticária, quebra de tensão arterial e dilatação dos vasos sanguíneos. Nos casos mais graves o paciente entra em choque. Pode ser fatal se o tratamento não for efectuado de imediato.
Paul Wilson tinha acabado de ingerir um caril que continha amendoins. Em Janeiro de 2014, no Restaurante Indian Garden, comeu uma dose de galinha tikka nasala. A seguir à refeição foi encontrado caído na casa de banho.
No decurso da investigação criminal, a polícia descobriu que no cimo da nota de encomenda de Paul estava escrito “sem frutos secos”. O gerente do Indian Garden admitiu o facto.
Como a nota de encomenda tinha sido clara, a polícia passou a investigar outros aspectos. Mais tarde foi encontrada na cozinha do Indian Garden, uma embalagem de extracto de amendoim. A partir desta descoberta o caso esclareceu-se. Era este pó que explicava a presença de amendoim na comida.
Mohanmmed Zaman é o proprietário do Indian Garden. Tem 52 anos, é casado e pai de quatro filhos. Nasceu no Bangladesh e emigrou para o Reino Unido quando tinha 15 anos. Começou por trabalhar para o tio no ramo da restauração e acabou por se tornar dono de uma cadeia de seis restaurantes. Os seus estabelecimentos são recomendados pela British Catering Association e já foi agraciado com prémios da British Curry Awards.
A polícia também apurou que Zaman tem uma dívida de 300.000 libras. Para reduzir custos, no Indian Garden só era utilizado extracto de amendoim. Zaman também empreava trabalhadores ilegais.
Três semanas antes da morte Paul Wilson, Ruby Scott, uma jovem de 17 anos, já tinha sofrido uma forte reacção alérgica ao caril. Mas neste caso a jovem recuperou.
Mohammed Zaman foi acusado do homicídio de Paul Wilson por negligência grosseira. “Homicídio por negligência grosseira” é uma das classificações de homicídio no Reino Unido. Significa que o réu provocou a morte da vítima, não intencionalmente, mas por descuido grave. Ao ignorar o seu aviso e, permitindo que se usasse extracto de amendoim no caril, foi responsável por homicídio por negligência grosseira.
O procurador Richard Wright, afirmou,
“Mohammed Zaman foi avisado por diversas vezes de que estava a pôr a saúde dos clientes em risco e eventualmente as suas vidas. Infelizmente para Paul Wilson, Mohammed Zaman não aproveitou nenhuma dessas oportunidades e ignorou todas as chamadas de atenção que lhe fizemos.”
“Foi uma atitude irresponsável e aventureira, que nós, a acusação, só podemos designar como negligência grosseira.”
“Por repetidas vezes ignorou o perigo e não protegeu os clientes. As provas irão demonstrar que Mohammed Zaman colocou o lucro à frente da segurança e que optava sempre por fazer as coisas da maneira mais fácil.”
O juiz Simon Bourne-Arton disse que Zaman ignorou completamente o facto de ser arriscado usar amendoins num restaurante de forma indiscriminada.
Mohammed Zaman foi condenado por homicídio por negligência grosseira e sentenciado a uma pena de seis anos de prisão.
Este caso não levanta dúvidas. Em primeiro lugar, verificamos que a responsabilidade legal de homicídio por negligência grosseira se aplica a todo o pessoal do Indian Garden, desde o proprietário ao empregado de mesa. No início do inquérito, a polícia investigou os “frente de casa” – o gerente e o empregado de mesa. Na medida em que estes indicaram na nota de encomenda que a refeição não poderia conter frutos secos, demonstraram terem sido cuidadosos, logo não lhes poderá ser atribuída qualquer responsabilidade. Por isso, se o dono e o cozinheiro não provarem que agiram em consciência, terão de apresentar explicações. No artigo não ficou claro porque é que o cozinheiro não tinha sido responsabilizado. Se a indicação tinha sido dada de forma expressa, não existe desculpa para o cozinheiro a ter ignorado. No entanto a pergunta seguinte diz respeito ao “conhecimento” do cozinheiro. Saberia o cozinheiro que o extracto de amendoim pertence à categoria de “frutos secos”? A resposta a esta pergunta não se encontra no relatório. Não podemos fazer mais comentários.
A responsabilização legal feita desta forma tem os seus méritos. Assegura que todos os profissionais deverão exercer as suas funções em consciência. Se não existirem procedimentos escrupulosos, em caso de acidente pode haver responsabilização. Zaman é disso o melhor exemplo.
Outro ponto a analisar é a natureza da acusação feita a Zaman. Foi, como sabemos, “homicídio por negligência grosseira”, e não qualquer outra acusação relacionada com segurança alimentar. Ao contrário dos países continentais, os britânicos têm um “Código Legal” que contém toda a legislação relevante num só livro. É provável que o homicídio esteja previsto na Lei da segurança alimentar. Mas no sistema da Lei Comum, a classificação é diferente. O homicídio não está previsto na Lei de segurança alimentar. Deverá por isso ser tratado como um crime à parte. Não interessam as circunstâncias em que ocorreu o crime, tanto faz ser um caso de segurança alimentar ou um assalto, a partir do momento em que a Procuradoria considera que a acusação de homicídio é adequada, o réu será acusado desse crime.
Paul Wilson morreu. Mas este caso interessa a todos e, em particular, a quem trabalha em restauração. Quem costuma frequentar restaurantes sabe que é raro encontrar avisos sobre segurança alimentar. Também é difícil vermos o restaurante pedir para ser informado caso o cliente sofra de alguma intolerância alimentar. Não há dúvida que essa responsabilidade é em primeiro lugar do cliente. Mas afixar um anúncio nesse sentido funciona como um lembrete para todos, do perigo potencial. Não é uma questão legal, mas sim uma boa prática, que beneficia todos: o dono, o pessoal e os clientes.

30 Mai 2016

Refresco enganador

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 5 deste mês, o website “money.cnn.com” divulgou uma notícia onde se fazia saber que um homem chamado Stacy Pincus tinha processado a Starbucks e reclamava uma indemnização de 5 milhões de US dólares. O caso estava relacionado com as bebidas geladas servidas por esta cadeia de cafés.
A história conta-se em poucas palavras. O homem alegava que “A Starbucks anuncia no menu o tamanho dos recipientes, e não a quantidade das bebidas…. e desta forma induz os clientes em erro.”
Para dar um exemplo, o menu anuncia que o refresco Venti tem cerca de sete decilitros, mas, na verdade, a bebida em si não chega aos quatro, o resto é gelo.
O porta-voz da Starbucks, Jamie Riley veio contrapor:
“Os nossos clientes compreendem que o gelo é um componente essencial de qualquer bebida “gelada”. Se um cliente não estiver satisfeito com a nossa forma de preparar uma bebida temos todo o prazer em refazê-la.”
Em 1992, um cliente que se queimou com um café servido no McDonalds, processou a empresa alegando que o café estava muito mais quente do que deveria estar. Acabou por ganhar o processo.
Este caso também não deixa dúvidas. O queixoso alega que a quantidade das bebidas não está devidamente anunciada. O volume do recipiente não é variável, e sobre esse ponto não existe qualquer questão. Contudo, Stacy Pincus afirma que se a Starbucks serve um refresco num recipiente com sete decilitros, o volume da bebida tem de corresponder ao que está anunciado, ou seja sete decilitros. Como o gelo não vem referido no menu, não se pode considerar parte da bebida. Como gelar uma bebida, já é outra questão, mas esta queixa não deixa margem para dúvidas. A contra-argumentação da Starbucks também é compreensível. Uma bebida sem gelo não é gelada e, depois de se deitar o gelo na bebida, o seu volume corresponde ao que vem anunciado, não existindo por isso qualquer deturpação.
Mas antes de continuarmos, deveremos compreender o significado de deturpação. “Deturpação” é um termo legal, e aplica-se quando, antes de um contrato ser celebrado, uma das partes faz uma afirmação que não corresponde à verdade. O objectivo desta afirmação enganadora é levar a outra parte a assinar o contrato. Ou, por palavras simples, Pedro mente a João para o levar à certa.
A deturpação pode ser classificada em três tipos, a saber: deturpação fraudulenta, deturpação negligente e deturpação inocente. No caso da Starbucks parece ser deturpação fraudulenta, porque ao informar o cliente sobre o volume da bebida, já está a contar com o gelo.
Para além de alegar deturpação de informação, é muito provável que o queixoso processe a empresa baseado nos requisitos da “venda por descrição do produto”. A “Venda por descrição do produto” é um caso particular dos contratos de venda de produtos. Significa que o cliente compra produtos porque confia na descrição que deles é feita. Logo, se existir uma falha na descrição, não importa se intencional ou não, o cliente pode exigir uma compensação; por exemplo, reembolso, devolução dos produtos ou mesmo uma indemnização monetária. É por isto que o porta-voz da Starbucks, Jamie Riley, afirmou:
“Podemos preparar-lhe outra bebida.”
O queixoso só poderá processar a Starbucks por “deturpação” ou por falha na “descrição do produto”. Não pode processar pelas duas vias e pedir uma dupla indemnização.
Baseados nesta discussão, não nos parece pouco razoável reclamar que um refresco que é suposto ter sete decilitros, os tenha efectivamente. Esta linha de pensamento vai totalmente ao encontro dos requisitos da “descrição do produto”; e não da “deturpação”. Mas se não adicionarem gelo à bebida, como é que ela vai ficar gelada? Possivelmente o queixoso afirmará que esse efeito se obtém se for colocada no frigorífico. Não importa quão fria esteja, porque a quantidade de frio não vem especificada no contrato de venda de produtos.
Este caso da Starbucks é sem dúvida peculiar. Não devemos dar muito crédito ao queixoso. Os motivos para levar a questão a Tribunal são duvidosos. E casos duvidosos, não interessam a ninguém. Esperemos que de futuro estas situações não se repitam.

23 Mai 2016

Confidencialidade ou segurança

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]semana passada o website “Yahoo” publicou um artigo sobre a companhia aérea alemã “Germanwings(GmbH), do qual extraímos o texto que se segue:
“A GmbH, sediada em Colónia e subsidiária da Lufthansa, é uma companhia aérea alemã low-cost.
“A 24 de Março de 2015, o Airbus A320-211, com a chapa D-AIPX, no decurso do Voo 9525, de Barcelona para Dusseldorf, despenhou-se no sul de França, perto de Digne-les-Bains, tendo morrido todos os ocupantes do aparelho. O voo transportava 144 passageiros, dois pilotos e quatro assistentes de bordo. O procurador francês, as autoridades aéreas, francesa e alemã, e o porta-voz da GmbH foram unânimes em afirmar que o desastre tinha sido intencionalmente causado pelo co-piloto, Andreas Lubitz de 27 anos de idade.
A 29 de Março de 2015, Phil Giles, investigador aposentado da Agência Britânica de Investigação de Acidentes Aéreos, em declarações ao Independent, afirmou que a GmbH (logo a Lufthansa) teria de dar satisfações sobre o estado de saúde mental do co-piloto. Lubitz esteve de baixa durante vários meses enquanto fazia a sua formação de voo e a Escola de Formação de Pilotos teve conhecimento que, em 2009, o co-piloto sofreu uma depressão grave. Antes de ter ingressado nesta Escola, Lubitz recebeu tratamento por ter evidenciado tendências suicidas.
A seguir ao acidente, a Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) passou a recomendar que deveriam estar presentes no cockpit, sempre, dois funcionários autorizados. As diversas companhias aéreas do grupo Lufthansa, em consonância com as autoridades para a aviação, outras companhias e a Associação para a Indústria da Aviação, daquele País, adoptaram um protocolo no sentido de ser obrigatória a presença no cockpit de dois funcionários autorizados, em todas as circunstâncias.”
O website Yahoo sugeria ainda que, para prevenir a ocorrência de outros casos semelhantes, todos os pilotos deveriam ser submetidos a exames clínicos mais sérios e que os relatórios médicos não deveriam ser confidenciais. Caso se detecte que um piloto sofre de qualquer perturbação psicológica a companhia aérea deverá ser informada.
Embora esta medida se proponha assegurar, na medida do possível, a integridade dos passageiros, levanta-se a questão da privacidade dos pilotos. Até que ponto é que as companhias aéreas deverão ter acesso à informação clínica dos seus pilotos? Não é uma questão fácil. À partida poderemos pensar que qualquer perturbação física ou psicológica, que afecte a capacidade de dirigir um avião, deverá ser comunicada. Por outras palavras, a companhia aérea deve ter acesso à informação clínica relevante, não a toda a informação. Neste caso, a informação relevante, como o seu nome indica, é apenas aquela que se prende com a capacidade de o piloto exercer em pleno as suas funções. Caso não esteja capaz, a companhia terá obrigação de o substituir.
E que tipo de médico deverá seguir um piloto? Um médico de família? O médico da companhia aérea? Um clínico privado? Só se a companhia aérea for responsável pelo seguimento clínico dos pilotos se poderá ter a certeza que vai estar a par da informação relevante.
Do ponto de vista ontológico, estará o médico autorizado a quebrar o sigilo profissional? Não nos podemos esquecer que as questões relacionadas com a saúde são de âmbito privado. À partida, sem a autorização expressa do doente, o médico não tem autorização para revelar a sua ficha a terceiros. Para que esta sugestão seja implementada é provável que a companhia aérea venha a ter de inserir uma clausula no contrato de trabalho, que salvaguarde ser necessário prova de que os pilotos gozam de boa saúde física e mental, quando assumem os comandos de um avião. Nesse caso a companhia deverá ter médicos que certifiquem a saúde dos pilotos. Estes deverão sujeitar-se a exames médicos, digamos, uma vez por ano.
Este acordo deverá ser feito entre a companhia aérea, o médico e o piloto. Não é necessário acrescentar qualquer emenda à Lei. O dever de sigilo profissional dos médicos não será no geral afectado por esta medida, porque à partida os pilotos concordam que os problemas de saúde, susceptíveis de influenciar o voo, deverão ser comunicados à companhia.
Agora, fazemos outra pergunta. Que outros ramos de actividade poderão adoptar o mesmo procedimento? Todos aqueles que possam directamente pôr em risco a vida das pessoas. As companhias rodoviárias poderão pertencer a esta categoria. Lembramos que em Setembro de 2010, em Junho e em Novembro de 2012, ocorreram em Hong Kong acidentes graves com autocarros, causados por problemas de saúde dos motoristas.
A seguir aos acidentes a maior parte dos membros do Conselho Legislativo recomendou que se fizessem exames clínicos mais sérios aos condutores. A recomendação nunca foi implementada.
Se a esta sugestão seguir em frente, será bom considerar estendê-la a todas as profissões que envolvam risco à integridade das pessoas. Não se trata de cuidar da saúde do individuo B ou C, trata-se de uma questão de segurança pública.

* Consultor Legal da Associação de Promoção do Jazz em Macau

21 Mar 2016

ATV, encerrar ou não, eis a questão!

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s últimas notícias sobre a ATV deixaram de ser novidade já há algum tempo. No dia 1 de Abril de 2015, o Conselho Executivo de Hong Kong deu à ATV um prazo de um ano para cancelar a licença de emissão de Televisão Digital Terrestre, que até aí lhe tinha sido cedida gratuitamente. Mal esta data expire deixaremos de poder assistir às emissões da ATV.
Logo após o anúncio do Conselho Executivo, começaram a ser ventilados vários casos relacionados com a estação e que nada abonavam a seu favor. A ordem de liquidação provisória foi dada em Tribunal, no passado dia 4, e a notícia de despedimento dos 300 funcionários foi emitida pelo executor Deloitte. O despedimento foi geral.
Uma ordem provisória de liquidação determina o fim da actividade de uma empresa e antecede a sua extinção legal. O executor provisório é apontado pelo Tribunal para levar a cabo a liquidação. Quer a ordem quer o executor têm um carácter temporário. Só poderão ser confirmados após reunião dos credores da ATV na qual sejam decididos os termos da liquidação.
Sem perda de tempo, logo no dia 5 deste mês, a China Culture Media International Holdings Limited (o novo accionista) readmitiu 160 dos 300 funcionários despedidos, para manterem a estação a funcionar. Foi-lhes proposto trabalharem até ao próximo dia 1 de Abril, recebendo dois salários por um mês de trabalho.
Não parece uma má proposta receber um mês a dobrar. No entanto a ATV ainda devia a estes funcionários os salários de Janeiro e de Fevereiro, pelo que esta proposta apenas resolvia parte do seus problemas.
Acresce ainda que o novo accionista estipulou condições contra os direitos legais destes trabalhadores. Ficaram impedidos de reclamar o pagamento dos salários em atraso antes de dia 3 de Abril. Por outras palavras, os 160 trabalhadores não podem processar, nem a ATV nem a Deloitte, pelos salários em falta antes desta data. No entanto estão autorizados a apresentar queixa ao Fundo de Insolvência para Protecção de Salários, para tentarem recuperar o valor em falta.
O Fundo de Insolvência para Protecção de Salários foi criado pelo Governo da RAEHK. As empresas que operam em Hong Kong são obrigadas a pagar 250 HKD por ano pela sua licença comercial. Estes valores são depositados num Fundo que cobre o pagamento de salários quando as empresas ficam impossibilitadas de o fazer. Qualquer valor que os empregados recuperem posteriormente do seu empregador deverá ser restituído ao Fundo. O Fundo funciona como um intermediário entre patrões e empregados e é um garante para os trabalhadores. Em caso de falência, pelo menos parte dos salários em falta será devolvida.
Em Macau não foi criado um Fundo similar.
E agora pergunto eu, se o meu caro leitor estivesse na pele de um destes 160 funcionários, aceitaria ou não a proposta que lhes foi feita?
Bem, do ponto de vista financeiro não me parece que lhes reste outra alternativa senão aceitarem. Com um passivo de dois meses de salário em atraso e, evidentemente, com vidas para gerir, que mais podem fazer? Por um mês de trabalho recebem dois ordenados, estão à espera de quê?

Do ponto de vista legal, serão legítimas as condições estipuladas pelo novo accionista, ou seja, que os trabalhadores abdiquem dos seus direitos legais até dia 3 de Abril?
Em Hong Kong as leis que regem o emprego orientam-se por um princípio básico que defende que nunca deve haver qualquer limitação dos direitos dos trabalhadores. Mesmo que os trabalhadores concordem com essas limitações, continua a ser ilegal. E isto porque os acordos entre patrões e empregados não se sobrepõem aos requisitos estatutários. A Lei deverá ter sempre a última palavra.
No entanto este acordo não priva propriamente os trabalhadores dos seus direitos, apenas os adia. O facto de se absterem de qualquer acção até 3 de Abril, não reduz em nada os seus direitos, portanto aparentemente não se verifica uma transgressão da Lei do Trabalho de Hong Kong.
Mas o efeito de “adiar o exercício dos direitos legais” pode ser prejudicial. Está fora de questão pôr em causa o dever que o empregador tem de pagar os salários aos seus funcionários. Mas nesta situação esse dever é intencionalmente adiado, não lhe parece?
É evidente que o novo accionista terá as suas razões para agir desta forma. A transferência das quotas dos accionistas originais da ATV para os actuais leva tempo. A aprovação do Governo de Hong Kong é necessária. Sabemos pelos media que esta transferência ainda está em curso. Logo se a transferência ainda não está efectivada, de momento os novos investidores são estranhos à ATV, ainda não são accionistas de pleno direito. Não têm direito a pronunciar-se. Além disso como a licença da ATV não vai ser renovada, o seu futuro ainda é um grande ponto de interrogação. Ninguém sabe dizer se depois de 3 de Abril
a ATV vai continuar a emitir. Para já a estação precisa de investimento. No caso de haver um encerramento, todo o dinheiro que os novos investidores já injectaram será desperdiçado.
Podemos pensar que o acordo feito com os 160 funcionários é melhor que nada. A nova vida da ATV vai depender dos novos accionistas e da sua equipa.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

10 Mar 2016

Corrupção de alto nível

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta semana as atenções focaram-se na prisão do antigo Procurador-geral Ho Chio Meng (Ho), por alegada fraude.
O website “macaodailytimes.com.mo” fez notícia do assunto no passado dia 27 de Fevereiro, divulgando que Ho estava “sob investigação do Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) por alegado envolvimento em negócios ilegais. Estas operações fizeram movimentar cerca de 167 milhões de patacas e tiveram lugar entre 2004 e 2014, período durante o qual Ho chefiou o Ministério Público.”
Segundo o comunicado de imprensa do CACC, emitido no sábado à tarde, “destas transacções, os suspeitos deverão ter recebido em luvas pelo menos 44 milhões de patacas.”
O caso ainda está sob investigação. Notícias de última hora davam conta que o Tribunal rejeitou o habeas corpus interposto por Ho.
“Habeas Corpus” significa literalmente em latim “Que Tenhas o Teu Corpo”. Consiste basicamente num pedido de restituição de liberdade.
O website “wikipedia” informa que Ho foi o primeiro Procurador-geral da Região Administrativa Especial de Macau, a ser designado para três mandatos, em 1999, 2004 e 2009.
Em 1983, Ho doutorou-se em Direito pela Universidade de Direito e Ciências Políticas Southwest, na China. Entre 1987 e 1990 foi Juiz Assistente, Juiz e Presidente do Tribunal do Povo da província de Guangdong. Voltou a Macau em 1990. Pouco depois foi para Portugal, para a Universidade de Coimbra, com o objectivo de aprofundar os seus conhecimentos de Português e de Direito. De regresso a Macau obteve o bacharelato em Direito pela Universidade da cidade.
Já em Macau, em 1998, frequentou um curso de formação destinado a funcionários públicos seniores, no Instituto Chinês de Administração Nacional, e completou o doutoramento em Direito Económico na Universidade de Pequim em 2002.
Com este currículo, não admira que tenha sido designado para o cargo de Procurador-geral da RAEM
Confrontados com este caso, não podemos deixar de nos lembrar de outro, o de Ao Man Long (Ao). Ao foi preso a 8 de Dezembro de 2006 na sequência de uma investigação do CCAC, e tornou-se o mais alto funcionário a ser preso em Macau. Alegadamente, Ao tinha dado preferência em projectos governamentais a certas empresas, em negócios que montaram a 804 milhões de patacas. A 30 de Janeiro de 2008, Ao foi considerado culpado de 40 acusações de suborno passivo, entre outras, e foi condenado a 27 anos de prisão.
Se Ho for condenado, irá tornar-se o segundo funcionário de patente mais elevado a ser preso em Macau.
Existe um ponto comum nos caos de Ho e de Ao – os cargos elevados que ocupavam. Foi apenas há cerca de 16 anos que a transferência de soberania de Macau foi efectuada, mas neste espaço de tempo um funcionário superior foi preso por suborno e outro está preso sob suspeita. A imagem do Governo de Macau é afectada por estas situações.
De qualquer forma, o CCAC desempenhou bem as suas funções e os comunicados de imprensa que emitiu transmitiram a mensagem correcta. Estas medidas poderão ajudar a repor a boa imagem do Governo macaense.
Mas é vital que a longo prazo se possa impedir que casos como estes voltem a acontecer. Por exemplo, não será preferível que o Governo tenha apenas um departamento para coordenar todos os contratos? Independentemente da natureza do que estiver a ser negociado e de quem for o seu responsável, este departamento único desempenharia a função de regulador das boas práticas negociais, evitando que se possam cometer fraudes com facilidade.
Mas de qualquer forma é necessário que haja uma investigação a fundo do caso Ho. Se efectivamente foi cometido um crime, é indispensável que seja feita uma acusação. Se o crime não ficar provado, Ho deve ser libertado. Um procedimento correcto e independente é indispensável, não só para que seja feita justiça, mas também para que o público compreenda que todos são iguais perante a Lei, seja qual for a sua posição social e as suas relações com o poder.
Os casos de Ao e Ho já ocorreram. O importante é evitar que outros semelhantes voltem a acontecer.

*Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

7 Mar 2016

A sete chaves

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uinta-feira passada, o website Yahoo de Hong Kong publicou uma notícia retirada de um artigo do jornal “Sing Tao newspaper”, onde se fazia saber que a Apple Inc. (Apple) se tinha recusado a criar um código de segurança universal para os Iphones5c., rejeitando a decisão do Tribunal que deliberara nesse sentido.
O terrorista Syed Rizwan Facook, utilizou um Iphone5c no ataque de San Bernardino em 2015. O ataque aconteceu a 2 de Dezembro último e provocou 14 mortos e 22 feridos graves. No ataque participou também Tashfeen Malik, companheira de Syed Facook. Eram ambos islamitas sunitas.
O casal fugiu após o tiroteio. Quatro horas mais tarde foram cercados pela polícia, acabando por ser mortos nos confrontos que se seguiram. O FBI desencadeou um processo de investigação. A 6 de Dezembro, quatro dias depois do ataque, Barack Obama anunciava que o ataque tinha sido um acto de terrorismo.
No website Wikipedia podia ler-se,
“… o FBI obteve uma ordem do Tribunal a exigir que a Apple criasse uma forma de os serviços secretos poderem contornar o controlo de segurança do Iphone usado por um dos terroristas envolvido no ataque e. poder aceder aos seus conteúdos. A Apple alegou que esta ordem representa um ataque às liberdades fundamentais que o governo deve defender.”
A Apple ficou perante um dilema. Se, para ajudar na investigação, a Apple obedecer à ordem judicial, terá de criar uma nova versão do iOS, contornando várias especificações de segurança de extrema importância, para que venha a ser instalada neste iPhone. Mas, desta forma, esta nova versão pode ficar disponível. Ao contrário do “Yahoo”, do “Google” e do “Facebook”, cujas receitas advêm principalmente da publicidade, a Apple factura a partir da venda dos seus produtos. Se o público passar a desconfiar da segurança do Iphone5c, a imagem da empresa será afectada. O volume de vendas dos produtos da Apple pode vir a baixar.
Embora o FBI garanta que só iria usar este programa nesta situação, a Apple mantem-se inflexível. Compreende-se facilmente que se este programa puder desbloquear o Iphone do terrorista, também pode ser usado para desbloquear qualquer outro. É colocar em risco a segurança da informação. Esta é mais uma razão pela qual a Apple se recusa a cumprir a ordem.
Não há dúvida que a Apple está a proteger as liberdades e a privacidade do público, mas também está a ir contra uma ordem do Tribunal. Se a Apple mantiver esta posição, um dos seus responsáveis, por exemplo, o Presidente ou o Director Executivo, pode vir a ser preso. Também pode ser acusada de ignorar a segurança nacional. É como se fizesse vista grossa ao perigo que ameaça o país. Em última análise os consumidores poderão deixar de comprar produtos da Apple. Neste perspectiva os lucros da Apple também podem vir a baixar.
O Iphone pode desempenhar várias funções. pode ser usado para enviar emails e mensagens, pode tirar fotografias e fazer vídeos. Fazendo o download de certas aplicações, como o Whatsapp e o Wechat, o Iphone pode ainda desempenhar outras tarefas. Sabemos que este litigio entre a Apple e o FBI se vai arrastar. Os recursos irão suceder-se até ao limite do possível. Podemos antever um processo com uma duração de três a cinco anos. A bem da investigação deste caso, seria preferível o FBI passar por cima da Apple e procurar a informação de que precisa noutras fontes. Por exemplo, vários repórteres chamaram a atenção para o facto de os terroristas terem publicado informações relacionadas com o ataque no Facebook. Também é possível que tenham usado uma conta do Yahoo para enviar e receber emails relacionados com este acto criminoso. A Apple pode não estar disposta a colaborar com o FBI, mas não quer dizer que as outras empresas não estejam. Como já referi, o Facebook e o Yahoo vão buscar a maior parte das suas receitas à publicidade, estas empresas não podem deixar de colaborar com o FBI. Se esta colaboração se vier a verificar, deixa de ser tão importante encontrar a “chave para abrir” o Iphone5c de Syed Rizwan Facook.
Mas voltemos à litigação. A questão entre o FBI e a Apple é muito simples – como conciliar a segurança nacional com a liberdade e a privacidade da informação? Os cidadãos americanos não querem que o governo invada a sua privacidade, o que é compreensível. É também óbvio que a maioria das pessoas é pacífica. Não vão ver-se a braços com a justiça e, portanto, não querem que o governo tenha acesso aos seus dados. No entanto o Iphone5c de Syed Rizwan Facook, guarda os dados pessoais de… Syed Rizwan Facook. Poderá o FBI aceder à informação armazenada no Iphone5c de Syed Rizwan Facook, só porque ele é terrorista? Este caso é excepção?
Ao analisar os factos, o Tribunal vai ter de responder a estas questões. Se o FBI ganhar, a Apple será obrigada a colaborar. Deixa de ser apenas uma ordem para desbloquear um Iphone. Para equilibrar as exigências da segurança nacional com as da defesa das liberdades e da privacidade da informação, o Tribunal pode pedir ao FBI que prove que Syed Rizwan Facook usou o Iphone5c no ataque. Se o Iphone5c tiver sido um instrumento usado para cometer um crime, então o Tribunal pode pedir a “chave para abrir” o Iphone5c. A ordem não é incondicional.

* Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

29 Fev 2016

Máscaras Ilegais

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Fishball Riot (Revolta das Bolinhas de Peixe) teve lugar há mais de 10 dias. Até ao momento, foram presas mais de 60 pessoas pela polícia de Hong Kong e, a maior parte, foi acusada de provocação de “motim” ao abrigo do artigo 18 da Lei da Ordem Pública. Como referi no artigo da semana passada, é previsível que a polícia continue à procura de suspeitos e que estes venham a ser acusados e presos.
No seguimento da Fishball Riot, alguns membros do Conselho Legislativo de Hong Kong sugeriram a criação de uma Lei “anti-máscara”.
No website “Wikipedia” podia ler-se,
“As leis “anti-máscara” são iniciativas legais que pretendem impedir que as pessoas ocultem os rostos, por razões políticas ou culturais.”
Em diversos países, como por exemplo os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Dinamarca, França, Alemanha, Noruega, Rússia, Espanha, Suécia, Suíça, Ucrânia, Reino Unido etc. existem leis anti-máscara. A lei canadiana é muito clara quanto a esta proibição. No artigo 351 (2) do Código Penal canadiano, podemos ler,
“Alguém que, com intenção de cometer um crime, oculte a face com uma máscara, ou de qualquer forma procure tornar-se irreconhecível, incorre numa infracção gravosa punível até 10 anos de prisão”.
Como o nome indica, “infracção gravosa” significa crime grave. No Canadá, implica o pagamento de multas superiores a 5.000 dólares ou prisão superior a seis meses. No entanto existem algumas excepções a esta norma.
Actualmente em Hong Kong não vigora qualquer lei anti-máscara. Se existisse, facilitaria o trabalho da polícia porque a lei proibiria os amotinados de ocultar a sua identidade.
Mas é necessário analisar esta questão mais aprofundadamente. Em primeiro lugar, é forçoso que nos lembremos que andam por aí muitas e variadas doenças. A Síndrome Respiratória Aguda Grave – SARS (do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome) é sem dúvida uma das mais sérias. A SARS propaga-se por via aérea. À semelhança da maior parte das gripes. Todos os profissionais de saúde concordam que o uso da máscara é o método mais simples e eficaz de prevenir o contágio e a propagação do vírus. A criação de uma lei que impeça o uso de máscara, pode tornar-nos vulneráveis a uma série de doenças. Se pensarmos que muitos vírus sofrem constantemente mutações, sem que haja medicamentos eficazes contra a nova estirpe, é necessário pensar cuidadosamente antes de se implementar em Hong Kong uma lei anti-máscara.
Em segundo lugar, a utilidade de uma lei deste tipo é questionável. Se um agitador participa num motim, com intenção de atear fogos ou lançar tijolos para perturbar a paz e, eventualmente, ferir alguém, será que se vai deixar identificar facilmente? A resposta é óbvia. Podemos por isso deduzir que, mesmo havendo uma lei anti-máscara, o seu efeito seria diminuto, ou mesmo nulo, porque o individuo em questão arranjaria sempre forma de se disfarçar. Em termos processuais, esta lei apenas permitiria acusar o réu de mais um crime, o de ocultação de identidade. A função de uma lei anti-máscara não vai além disso.
Na medida em que é difícil identificar os agitadores, como é que a polícia os descobriu tão facilmente? A Lei Básica de Hong Kong conserva o direito comunitário, que ainda está em vigor. Ao abrigo do direito comunitário, a pena será atenuada se o réu cooperar com as autoridades. Por exemplo, se alguém for apanhado pela polícia e for responsabilizado por fogo posto e motim, estará a enfrentar duas acusações. No entanto a polícia quer deter outros culpados, contra os quais não tem provas. Se o detido ajudar a polícia a identificar os outros envolvidos pode ver a sua pena diminuída da seguinte forma:

a. Ser acusado apenas de um crime, em vez de dois
b. Ver a sua sentença atenuada em Tribunal.

A “Atenuação” é um procedimento a ter em conta durante um julgamento. Se a polícia informar o juiz que o réu foi cooperante a sentença será atenuada.
Em alternativa, o Governo de Hong Kong poderá considerar a implementação de uma lei semelhante à Portaria para a Concorrência. Esta portaria entrou em vigor a 14 de Dezembro de 2015 e o Comité para a Concorrência é responsável pela sua criação. Como todos sabemos, é muito difícil apurar as negociatas feitas “por baixo da mesa”, e que muitas vezes determinam os preços com que os produtos são lançados no mercado. O Comité para a Concorrência beneficia qualquer pessoa envolvida, desde que ajude a “abrir o jogo”.
A prática processual referida não é uma lei, a polícia pode mudar de ideias sempre que quiser. Mas se o Governo de Hong Kong produzir uma lei semelhante à Portaria para a Concorrência, garantindo alguns benefícios (ex. retirar algumas acusações, atenuar a sentença, etc.) à pessoa que estiver disposta a ajudar a identificar outros agitadores, pode ajudar eficazmente o trabalho da polícia.
Posto isto, a lei anti-máscara pode ser parte da solução, mas a sua utilidade também é questionável. A actual política de acusação criminal pode não dar garantias suficientes a um detido, de forma a que este se decida a ajudar a identificar outros agitadores. E a identificação dos agitadores continua a ser um problema para o Governo de Hong Kong.
Talvez seja preferível perceber as causas da Fishball Riot. Esta é melhor maneira de solucionar os problemas sociais. Neste sentido, Hong Kong deve aprender com Macau. Macau não tem uma lei anti-máscara e não acha de bom tom deixar os criminosos impunes. Mas Macau é uma cidade sossegada e pacífica.

*Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

22 Fev 2016