Carlos Morais José Antropofobias Via do MeioO Fuxi Ó meus amigos, companheiros destas funestas viagens por países tão antigos quanto as estrelas e a Lua, e tão estranhos quanto o profundíssimo interior de nossas desgraçadas almas, ¿que sobressaltos ainda nos esperam, que magias secretas teremos ainda de superar, que horrores se erguerão perante as nossas pupilas dilatadas de espanto e terror? Cada vez mais perto de nossas precárias existências, uiva o monstro da guerra, que ameaça fundir de vez a humanidade com a terra, incessantemente percorrida pelo espectro esquálido da fome e pela invisível maldade de dez mil pestes. Ó maldito humano, que te crês superior à própria Natureza, mas depois te revelas, uma e outra vez, incapaz de simplesmente ordenar a tua existência e não compreendes que te encontras possuído pela inconstante ira e és escravo da tua própria ambição! Não te contentas com o jade branco ou o refulgente ouro, não há tesouro que sacie tua inextinguível sede de mando sobre os outros homens, os animais e as coisas; pois em ti habita uma eterna angústia; em ti rastejam as serpentes expulsas; por ti cresce, poderosa e impante, a fertilíssima hera do Mal! É talvez por isso que no Monte a que chamam do Veado Branco, onde um dos oito imortais em montada sagrada se evolou pelos céus rumo a Penglai, habita o fuxi, um pássaro cuja forma lembra a do galo, embora encimada por uma cabeça humana. ¿Que estranhas cópulas, que monstruosos amplexos, que terríveis procedimentos terão ocorrido para tornarem possível a existência deste sinistro animal? Não sabemos, mas basta a nossa mente extenuada atrever-se a alvitrar uma resposta, para logo sentirmos a pele percorrida por horrendos arrepios e o coração disparar em desfilada, qual cavalo selvagem fustigado pelo chicote nocturno do medo, alheio a rédeas e contenção. Que os homens se abstenham de percorrer o Monte do Veado, pois apesar de nele existirem riquezas capazes de acalmar as mais desvairadas ambições, se tiverem a desgraçada sorte de vislumbrarem um fuxi, é certo que cedo se desencadeará uma Guerra e por ela perecerão os campos cultivados, por ela serão decapitados os mansos animais, por ela serão sacrificados os melhores mancebos de duas gerações e destruída a soberba dos países. O fuxi emite um som que lembra o seu nome. Se o ouvirdes, sombria noite ou dia claro, arrepiai caminho, pois a senda onde vos encontrais é a mais certa das vias para a desgraça!
Carlos Morais José A outra face VozesBiden contra Biden O mundo está já habituado ao facto dos Estados Unidos da América (EUA) raramente cumprirem a palavra dada no que toca ao cumprimento das promessas feitas e dos compromissos alcançados em termos de relações internacionais. Assim se passou quanto à expansão da OTAN para Leste na Europa, quando do desmembramento da União Soviética, e não podemos deixar de pensar ter existido um dedo americano no incumprimento dos tratados de Minsk por parte dos governos da Ucrânia, resultantes do golpe de 2014, claramente apoiado e suportado pelos EUA. O resultado foi o que se sabe: a invasão russa e um conflito armado que pode desembocar num apocalipse. A OTAN, que ainda hoje se apresenta, descaradamente, como uma aliança unicamente vocacionada para a defesa no caso de ataque inimigo, não se coibiu de bombardear a Sérvia, a Líbia, a Síria, o Iraque, o Afeganistão, entre outros, com os resultados conhecidos. Depois da II Guerra Mundial não consigo encontrar um caso de intervenção militar americana que tenha, de algum modo, melhorado a vida dos cidadãos desses países e muito menos aportado “direitos humanos e democracia”, talvez com excepção da Coreia do Sul, um país onde, contudo, existe um tremendo fosso social, cultural e económico entre ricos e pobres, poderosos e destituídos, como se pode constatar, por exemplo, no filme “Parasitas”, galardoado com um Oscar, ou num tom mais sério e radical na obra do cineasta Kim Ki-duk. Contudo, as mentiras de um país como os EUA encontram, geralmente, actores diferentes, políticos que renegam o que foi dito pelos seus antecessores, procurando desse modo desculpas esfarrapadas e, mais grave ainda, elevando a níveis preocupantes a desconfiança que a comunidade internacional sente face ao que é um dos países militarmente mais poderosos do mundo e cujo regime tem o dislate de se apresentar como o “fim da História”. Curiosamente, no domingo passado assistimos a um espectáculo diferente. O presidente Joe Biden, ao proferir que os EUA interviriam militarmente caso a China decidisse invadir a ilha de Taiwan e unificar de vez o país, não apenas contraria o que tem sido afirmado pela diplomacia americana, como renega o que ele próprio afirmou num artigo por si assinado em 2001. Recordemos os factos e o contexto. Nessa altura, era presidente dos EUA o republicano George W. Bush, o homem que ordenou a invasão ilegal do Iraque com o pretexto de encontrar as armas de destruição massiva que nunca existiram. Bush foi questionado se os EUA teriam a obrigação de defender militarmente Taiwan no caso de um ataque vindo do continente. A sua resposta foi: “Sim, temos. E os chineses têm de perceber isso. Sim, eu teria (essa obrigação)”. E prosseguiu afirmando que faria “o que fosse preciso”, nomeadamente empregar “toda a força do exército americano”, para ajudar Taiwan a defender-se desse eventual ataque. Ora o então senador Biden criticou fortemente o presidente americano, num artigo intitulado “Not so deft in Taiwan”, publicado no Washington Post, onde começava por afirmar que “as palavras contam (matter), em diplomacia e na lei” e, apesar de reconhecer que “algumas horas mais tarde, o presidente apareceu para se distanciar deste novo e surpreendente compromisso, sublinhando que continuaria a seguir a política de ‘uma só China’ seguida por cada uma das últimas cinco administrações”, Biden remata que “onde outrora os Estados Unidos tinham uma política de ‘ambiguidade estratégica’ – sob a qual nos reservávamos o direito de usar a força para defender Taiwan mas mantínhamo-nos calados sobre as circunstâncias em que podíamos, ou não, intervir numa guerra através do Estreito de Taiwan – agora parece que temos uma política de ‘ambiguidade estratégica ambígua’. Não se trata de uma evolução positiva”. E continua aquele Biden de 2001: “Como questão de diplomacia, existe uma enorme diferença entre reservar o direito de usar a força e obrigar-nos, a priori, a vir em defesa de Taiwan. O presidente não deve ceder a Taiwan, muito menos à China, a capacidade de nos atrair automaticamente para uma guerra através do Estreito de Taiwan. Além disso, para cumprir a promessa do presidente, quase de certeza que queremos usar as nossas bases em Okinawa, Japão. “Mas não há provas de que o presidente tenha consultado o Japão sobre uma expansão explícita e significativa dos termos de referência para a Aliança de Segurança EUA-Japão. Embora a aliança preveja operações conjuntas nas áreas circundantes do Japão, a inclusão de Taiwan nesse âmbito é uma questão da maior sensibilidade em Tóquio. Sucessivos governos japoneses têm evitado ficar presos a esta questão, por medo de fracturar a aliança. “Por uma questão de lei, as obrigações e políticas são também mundos à parte. O presidente tem ampla autoridade política no domínio da política externa, mas os seus poderes como comandante-em-chefe não são absolutos. Nos termos da Constituição, bem como das disposições da Lei das Relações de Taiwan, o compromisso das forças dos EUA para com a defesa de Taiwan é um assunto que o presidente deve levar ao povo americano e ao Congresso.” Mais palavras para quê? Afinal, que Biden devemos levar a sério, o de 2001 ou o de 2022? Estará o actual presidente dos EUA a ser de tal modo pressionado pelos falcões ansiosos de guerra (o complexo industrial-militar), que descamba em declarações como as do passado domingo, e não terá a capacidade interior de lhes resistir, ainda que tal agudize a instabilidade que actualmente reina na cena internacional? Será que Joe Biden realmente existe e exerce o poder ou não passa de uma marioneta, cujo papel se resume a recitar o texto que outros lhe escrevem? As atitudes recentes dos EUA em relação em Taiwan parecem querer provocar a intervenção militar do continente que, legitimamente, aspira à unificação da China e que não poderá admitir mais passos no sentido da independência da ilha. Por enquanto, Pequim tem demonstrado que prefere uma solução pacífica do problema e nem sequer estabeleceu um calendário definitivo para a reunificação. Contudo, se as provocações americanas continuarem e encontrarem eco em Taipé, o caso poderá mudar rapidamente de figura. Talvez Biden consiga convencer Biden de que a sua actual posição é profundamente errada e perigosa para esta região e para o mundo em geral. E que Biden consiga conter os ímpetos belicistas, hegemónicos e neocolonialistas de Biden. O mundo espera para ver qual dos Biden aparecerá a seguir nos ecrãs de televisão e qual o guião que desta vez escreveu ou lhe deram para ler. Talvez Biden compreenda que a humanidade deve seguir o caminho da paz e os EUA adoptem uma política de não-interferência nos assuntos internos de outros países ou, pelo contrário, Biden acirre mais os conflitos na cena internacional e nos conduza a todos à desgraça. É que, como diria Jim Morrison, não vale a pena ter ilusões: “Daqui ninguém sai vivo”.
Carlos Morais José Editorial Manchete Vozes21 anos é demasiado tempo 21 anos é a idade em que a nossa sociedade atribui total maioridade. Os 18 anos são uma espécie de ensaio, um primeiro ritual de independência, uma festa que celebra um tiro de partida cuja meta se encontra ali três anos à frente, um período que deveria ser de intensa preparação cognitivo-emocional. Porque é aos 21 que a sociedade espera realmente de todos outra postura e, sobretudo, a capacidade de olhar para a frente e enfrentar o destino, deixando-se espezinhar ou pegando-o pelos cornos. Os 21 anos são excitantes porque cada sujeito se aventura como se o mundo fosse novo, quando na realidade é ele que se vê na contingência de mudar, para ao mundo se ajustar ou o enfrentar, com plena responsabilidade pela sua sobrevivência e pelas suas acções. Os 21 anos são, para muitos, tempo de embarcar, de erguer as velas sem esperar por vento, de operar uma desterritorialização fundamental. Assim não é com os jornais, que têm uma vida muito mais acelerada, cujo coração bate a uma velocidade infinitamente superior ao de um ser humano, cujos rins filtram muito mais dejectos e gorduras, cujo fígado se vê obrigado a inúmeras horas extras e cujo estômago rapidamente se danifica. Um jornal envelhece quase à velocidade da luz. Se remexesse no baú da memória poder-vos-ia contar dezenas de episódios que confirmariam a desmesurada intensidade dessa vida de um jornal, que ilustrariam como os primeiros cinco anos pesam como 20; e como aos 10 surgem já as primeiras brancas; e aos 15 a primeira falta de fôlego para uma subida agora demasiado íngreme. O que dizer dos 21, que hoje comemoramos? Não sei se sobre o nosso cabeçalho, o cabelo rareia ou encaneceu, mas dou pelo cuidado e pelas maneiras de um ancião. Que se precavê de escorregar no banho, caminha lento pela rua e hesita antes de atravessar, mesmo que no horizonte não vislumbre um único automóvel, carrinha ou camião. Por outro lado, além de manter a espinha relativamente direita, também organizou melhor o seu tempo (agora, por vezes, tem tempo de olhar demoradamente o poente ou uma flor), diversificou as suas preocupações e alcançou altíssimas classificações no curso de nadador-salvador. Também adquiriu uma extensa paciência e uma sincera benevolência perante as idiossincrasias do género humano. Numa palavra, envelheceu. Talvez precocemente, como acontece à maioria dos jornais. Um dos sintomas da nossa provecta idade é a dificuldade que temos em lidar com as novas tecnologias. A esta hora, deviam estar a ver as minhas fuças num vídeo, a recitar-vos este texto, com um cenário de capas sucessivas deste jornal ao longo dos 21 anos que hoje faz. Devíamos tanta coisa: como ter uma presença mais contemporânea nas redes sociais, acordos com jornais lusófonos, entrevistas em vídeo, concursos vários, etc. E também mais jornalistas, mais funcionários, sobretudo bilingues, e devíamos também ter um acordo com Timor-Leste para formar jornalistas através de estágios e…; no entanto, devido a esta interminável crise pandémica (cujo fim não se vislumbra, o que nos deixa a todos angustiados, e pela qual ninguém é responsável), estamos preocupados em saber se sobreviveremos até ao fim do ano ou se definharemos até o Hoje Macau se apresentar aos seus leitores esquálido, ossos à mostra, os dentes estragados. Ainda assim vivo. * Durante estes 21 anos procurámos informar mas fomos também um espaço de criatividade, em que alguns relevantes escritores contemporâneos da lusofonia usaram as páginas do Hoje Macau para expressar as suas ideias, o seu estilo, a sua sensibilidade, através da escrita. Sem baias, sem freios, nem restrições. Estamos-lhes sinceramente agradecidos. Foi uma bonita festa, inopinada, é certo, mas por isso mesmo mais interessante. Celebrámos poetas e pensadores, motivámos artistas e, sobretudo, foram desenhadas pontes entre pessoas afastadas, várias epistolografias (hoje através de emails), amizades, famílias até, tudo isto tendo Macau como inesperado pólo agregador da lusofonia. Chamámos a essas páginas “h”, a mais diacrítica das letras, quase observadora, de limitada interferência na palavra. Nelas também divulgámos, a par com as crónicas, poemas ou outros textos dos nossos colaboradores, muitos aspectos da cultura chinesa, cuja representação em língua portuguesa continua a ser confrangedoramente pobre. Aos poucos, fomos promovendo e publicando as traduções de algumas das mais importantes obras do pensamento chinês, bem como alguma da melhor poesia que ressoou pelo País do Meio, bem como artigos sobre mitologia, história, pintura, antropologia, etc. Humildemente, sem meios nem rasgos, o Hoje Macau procurou sempre transmitir, na medida das suas possibilidades, conhecimento e informação sobre cultura chinesa em língua portuguesa, no sentido de proporcionar um melhor entendimento à comunidade portuguesa de Macau da civilização onde está inserida e contribuir, modestamente, para ir colocando uns tijolos no incongruente e rarefeito muro da sinologia portuguesa. Ao longo destes 21 anos, granjeámos assim um importante espólio de traduções que temos vindo a publicar em livros, através da editora Livros do Meio. O mesmo espólio tem-nos permitido organizar a Semana da Cultura Chinesa do Hoje Macau, que vai na sua segunda edição, e que tem obtido uma resposta positiva junto do público lusófono, não apenas em Macau, e que tem contado com a presença de personalidades locais, capazes e eficazes na construção de pontes entre civilizações e culturas. Agora pretendemos aprofundar esta nossa via de aproximação à cultura chinesa e, em breve, apresentaremos novas abordagens e novos projectos. * Como acima foi dito, 21 anos para um jornal é muito tempo. Por isso, numa sociedade acelerada como a nossa, vimos muito mudar, demos por muito acontecer, assistimos a crises, à luz no fundo do túnel, e também à saída para uma outra e melhor realidade. É também por isso que neste momento de indisfarçável crise, deveria ser altura para manter a calma, respirar fundo, não bater com a cabeça na parede e não tomar decisões precipitadas. E ter a consciência de que se sai de uma crise mais forte e não mais fraco, mais experimentado e não mais ignorante, mais apto e não mais frágil. Pelo menos, os que a ela sobreviverem, em termos físicos e mentais. A actual situação, a sua excessiva duração, empurrou Macau para um dos seus piores momentos dos últimos 50 anos, não se comparando com outros períodos de crise que afectaram a região, pois nunca como agora se viram tantos negócios fechados, tantos desempregados, tantas famílias em debandada e, sobretudo, tanta falta de esperança. É precisamente esperança que o Governo de Macau não tem dado em doses suficientes à população. A esperança de ver terminada esta crise, a preparação e descrição do momento seguinte, faltam na mente colectiva de Macau, independentemente da etnia que se considerar. Isto talvez seja tão ou mais importante do que dar dinheiro ou fazer conferências de imprensa assustadoras. Porque a verdade é que subiram em flecha o número de suicídios, violência doméstica e abuso infantil. O que significa isto senão que nos estamos a tornar numa sociedade verdadeiramente doente? Quando a esperança se dilui, emergem os instintos mais básicos e o mal campeia pela cidade. Ou seja, esta situação tem de encontrar brevemente uma saída, sob pena de quando sairmos deste buraco será para uma cidade irreconhecível. Em momentos como este, é preciso liderança, ideias para o futuro, capacidade as comunicar, para que a esperança não seja a primeira morrer. E foi assim, aos 21 anos, que esta crise nos colheu, que esta besta nos despojou, que este vírus arruinou muitos indivíduos, muita família. Nós, para o ano, cá estaremos, celebrando os 22 (que simpático número!). E esperamos que os nossos leitores nos acompanhem, estejam onde estiverem, para sempre ficarem a par das notícias de Macau e connosco mergulharem, nadarem e se deixarem levar pelas correntes dos mares, antigos e contemporâneos, da cultura chinesa. Nós somos um parafuso num pilar dessa ponte que começou a ser construída há cinco séculos e que vai permitindo a comunicação entre a China e a Lusofonia. Sabemos ser este o nosso lugar de excelência e, como diria Mestre Confúcio, é nele que pretendemos permanecer.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO tuofei A belíssima Montanha da Ovelha Negra — cujo nome ignoramos a origem ou se, de algum modo, assume as características negativas da denominação ocidental —, além do xiao, alberga nas suas encostas esmeralda uma estranha ave, a que chamam tuofei. Tendo o corpo semelhante a uma grande coruja, o tuofei distingue-se por apresentar uma face humana e ser capaz de se equilibrar na sua única perna. Além do seu fantástico aspecto, este bizarro pássaro parece apostado em tudo fazer ao contrário do que é apanágio na Natureza. Assim, mal os frutos começam a exalar o perfume da sua madurez, anunciando a chegada do Verão, os tuofeis recolhem-se nas grutas da parte mais alta da montanha e aí hibernam durante toda a estação quente. Só quando as temperaturas descem, as folhas se desprendem das árvores e os campos se preparam para vestir os mantos da geada invernal, é que os tuofeis se dignam abandonar as grutas e encher o ambiente com os seus alaridos. Dizem as crónicas ser um espectáculo extraordinário observar os tuofeis quando estes resolvem, já depois das primeiras luzes outonais terem enrubescido os céus, voltar de novo à vida. Durante os primeiros dias, assiste-se a um certo caos no bando, pois as antigas relações são desfeitas ou esquecidas durante a hibernação e aquela sociedade de pássaros com face humana parte novamente da estaca zero. Formam-se novos casais e estabelecem-se novas solidariedades. Contudo, estes processos não são simples e implicam animadas, por vezes violentas, discussões entre as aves, o que propala nos ares um som obsessivo, parecido com os que emitem as cagarras. Finalmente, quando de novo alguma ordem é restabelecida, o bando esboroa-se em grupos mais restritos, de dois ou três casais, e cada um segue a sua vida, aproveitando a abundância e segurança proporcionada por aquele magnífico ambiente. Os machos que se quedam sem companheira, por alguma razão difícil de discernir, abandonam tristonhos a Montanha da Ovelha Negra e acabam vítimas de caçadores, que vendem as suas penas a altíssimo preço. É que, segundo os especialistas, quem as usar junto ao corpo, não terá receio de tempestades, de raios, de trovões e de outras calamidades. Já as fêmeas solitárias, geralmente mais velhas, erram pelos bosques, sozinhas ou em grupo, anunciando ao mundo em inexcedivelmente belos trinados a sua profunda desdita, o que parece comover os outros tuofeis. Como paga, o resto do bando vai-lhes deixando comida e oferecendo protecção.
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasO Xiao É longa e vetusta a discussão sobre a perigosidade de certos animais, geralmente de porte relevante, para os seres humanos. Alguns entendem esses bichos como bestas insensíveis, por vezes puros predadores — como os tubarões; doutras meramente perniciosos, ainda que sem intenção — como os ratos. Já sensibilidades de outro tipo, estribadas em observações científicas e numa forma derivada de compaixão, consideram escassas as situações em que um animal ataca um ser humano sem ter sido antes ameaçado. Alegando ser na Natureza extremamente raro o assassinato com fins não-alimentares, replica esta gente não existir nos animais a maldade abundantemente constatada na espécie humana. O tema adopta contornos mais sinistros quando os humanos desejam muito frequentar uma determinada área, mas receiam a presença de um certo animal, cujas práticas agressivas neles inspiram tamanho receio que só em extensos grupos se atrevem a desafiar a presumida ferocidade das bestas. É o caso da Montanha da Ovelha Negra, um lugar belíssimo, pontuado de cerejeiras e bambus de variadíssimas qualidades. Do seu ventre, emergem o jade e o cobre; e pelas suas encostas desce o Rio da Laca que, num vale esmeralda, se funde no Rio Wei. Trata-se de uma paisagem arrebatadora, sobretudo em certas épocas do ano, sedutora de pintores, poetas, calígrafos e aventureiros de sensibilidade requintada. O problema é que, neste paraíso terreal, habita uma espécie de macaco de grande porte, dotado de longos braços, cujo carácter o predispõe para sentir um profundo desagrado pela presença humana nos que considera seus territórios. E, motivado por essa antipatia, não se exime em atirar pedras e mesmo atacar com ferocidade os incautos viajantes. Para o efeito, usa os seus fortes braços, capazes de um abraço mortal, e mesmo os dentes, extremamente afiados por extraírem alimento de cascas de áceres e bambus. Conhecido pelo nome de xiao, este animal mantém os humanos à distância, sem os atacar de surpresa. Pelo contrário, o seu nome (xiao, que quer dizer barulhento) indica que se desdobra em múltiplos guinchos e urros, de carácter agonístico, numa óbvia tentativa de espantar os visitantes. No entanto, se estes insistem em passear pelos territórios que considera como seus, o xiao é bem capaz de partir para a violência e a sua tremenda força e circense agilidade fazem dele um inimigo temível e difícil de derrotar. Certos textos admitem que o grupo de xiaos da Montanha da Ovelha Negra será, na verdade, uma tribo de humanos que, desde a queda de uma dinastia em tempos imemoriais, ali se terá isolado e, desde então, escusado a qualquer contacto com o mundo exterior àquela maravilhosa montanha. A aparência símia, os longos braços e mesmo a cauda, seriam artifícios utilizados para inspirar terror nos que se atrevem a percorrer aqueles domínios. Contudo, poucos subscrevem tão fantasiosa teoria. Mestre Zuo diz: “O mal é uno, embora se manifeste na multiplicidade. Daí que não possamos atribuir a um animal especiais intenções ou mesmo outro objectivo que não seja cumprir um destino que não escreveu. Talvez vos surpreenda saber que incluo os humanos neste grupo.”
Carlos Morais José A outra face VozesTigres de papel A presença de Nancy Pelosi em Taiwan poderia surpreender os mais ingénuos, na medida em que parece ser realizada à revelia do próprio presidente dos EUA. De facto, parece ridículo que, num momento em que estão envolvidos numa guerra na Ucrânia contra a Rússia, que os EUA façam esforços deliberados para provocar a China. Não somente ridículo mas um contra-senso. Lembramo-nos da aproximação a Pequim, efectuada por Nixon e Kissinger, num momento em que as relações com a URSS se agravavam. Como mandaria a lógica das relações internacionais. O problema é que não estamos num momento em que a lógica pareça imperar, o que prenuncia um tempo especial, talvez catastrófico, em que um império perde o seu poder quase hegemónico para desembocarmos noutro tipo de equilíbrio planetário, agora constituído por diversos pólos de poder. Os EUA, não satisfeitos com a situação ucraniana e depois de uma retirada humilhante do Afeganistão, parecem apostados em fazer despoletar conflitos no Pacífico, onde a sua posição de força sofre constante reveses e onde a sua posição económica foi já ultrapassada. A esmagadora maioria dos países do mundo está farta da retórica americana (democracia, direitos humanos, liberdade, blá, blá, blá…) que, uma vez posta em prática, unicamente resulta na expansão desenfreada de corporações e empresas que raramente trazem prosperidade (ou mesmo democracia) aos países em que se instalam, mas se limitam a extrair o máximo de lucros possível, sem qualquer respeito pelos “direitos humanos” que tanto apregoam e de que fazem bandeira, embora rasgada e humilhada pelos que a carregam e pagam menos de um dólar por dia aos seus trabalhadores. A presença de Pelosi em Taipé tem toda a aparência de uma manobra desesperada de provocar a China, tentando passar-lhe o ónus da culpa, caso a situação venha a deteriorar-se. Os EUA sabem muito bem que a China nunca cederia nesta questão e também sabem que a colocação de material militar em Taiwan poderia ter uma resposta semelhante à colocação de mísseis chineses em Cuba. Ou pior. E, no entanto, continuam a provocar constantemente Pequim, com visitas, com a venda de equipamento militar, isto além de imporem a Taiwan , como reverso da “ajuda”, a compra de produtos nem sempre de qualidade garantida. Por quê e para quê? Apesar dos estrebuchos de Biden, de facto, os EUA insistem em provocar a China. Sabida perdida a corrida para o futuro, o Império refila, o Império sofre convulsões internas, o Império arrisca a destruição global, o Império implode, e com ele corre-se o risco de arrastar para o abismo toda a civilização Ocidental. Ainda não satisfeitos de estarem por detrás de praticamente todas guerras depois de 1945, os EUA servem essencialmente o seu complexo militar-industrial privado, contra o qual o presidente Eisenhower havia debalde advertido. Depois de uma guerra com a Rússia, através do proxy Ucrânia, querem agora os EUA uma guerra com a China através do proxy Taiwan? Parece que sim, parecem ser esses os passos do gigante americano, já que em termos económicos não consegue resistir ao imparável avanço de outros países. Numa altura da Humanidade em que existe a possibilidade de haver comida para todos, medicina para todos, educação para todos, de limparmos o planeta de poluição, de travarmos as mudanças climáticas e explorarmos em conjunto o espaço, os seres humanos continuam a gastar recursos em guerras e outros conflitos que, no limite, não terão vencedor, apenas vencidos. Face às novas armas, às novas tecnologias, ao poder de destruição em massa, hoje somos todos tigres de papel.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO renyue Nesta peregrinação pelas montanhas da China – numa virtuosa demanda por animais nunca referidos nos compêndios do Ocidente – somos invadidos pela felicidade de aportar ao sopé da Montanha do Bambu, que se caracteriza pela profusão vegetal e pela beleza insuperável das suas encostas. Delas se inclinam árvores retorcidas sobre abismos temperados de musgos, pelos vales cabriolam rolos de nuvens, no seu íntimo repousam metais preciosos, dos quais somente o ferro ousa mostra-se, dotando a paisagem de marcas rubras sob o sol da manhã. A temperatura é amena praticamente todo o ano e do seus bosques emerge uma sinfonia vital, que causa o espanto dos homens e parece ter adquirido o beneplácito dos deuses. Além da vegetação prolífica, da Montanha do Bambu brotam numerosas nascentes de uma água puríssima, cujo caudal, ao longo de barrancos e vales, se transforma em ribeiros, cascatas e lagos. Num desses cursos de água, o rio Cinábrio, vive um peixe chamado renyu que, apesar do seu nome (peixe humano), em nada se assemelha a uma pessoa, sequer às tribos habitantes de certos subúrbios. O renyu não é uma sereia, não apresenta uma face humana, não passará de um peixe vulgar, com quatro barbatanas. No entanto, a sua carne é extremamente apreciada porque se diz ter o poder de curar ilusões. Que ilusões?, perguntará o visitante, abismado, na sua inocência, com a pretensa capacidade deste peixe de afugentar das mentes pensamentos desviantes e perigosos. Sim, respondem os alfarrábios, mas também a imaginação doce e subtil é bloqueada pela carne deste animal, impedindo a piedade e o amor. Por isso, o renyu é servido apenas a pessoas com graves problemas psíquicos, soterradas em estranhas ilusões, despedaçadas interiormente por visões tenebrosas e maléficas. Segundo o historiador Sima Qian, no túmulo do primeiro imperador da dinastia Qin ardiam milhares de velas, feitas com gordura de renyu. Tal facto tem sugerido numerosos comentários ao longo dos séculos. Alguns atribuem-no ao extremo brilho que proporciona. Mas outros consideram-no uma velada crítica às ilusões do imperador relativas à imortalidade, como se a gordura do renyu, ardendo na sua câmara funerária, finalmente o libertasse da ilusão de se tornar imortal, algo em que torrou largas fatias do tesouro estatal, uma despesa que o cadáver ali presente claramente revelara infrutífera. Poderia a gordura do renyu ter sido usada para eliminar as ilusões do imperador morto ou, simplesmente, para lembrar que a imortalidade nunca passará de isso mesmo – uma ilusão? Mestre Zuo, no seu comentário, não deixa de espetar uma ínfima alfinetada na questão: “O que se me torna menos digerível é a demanda da imortalidade por parte de alguém que acredita na vida depois da morte ou não teria gastado tantos recursos do país na construção do seu mausoléu.”
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais Fantásticos da China XXI – A Feiyi Alguns animais pertencem a um só lugar, pois as suas características estão intimamente ligadas à terra onde nasceram. São, pois, incapazes de surgir como habitantes de outros territórios. Uma vez nascidos, para sempre ali ficam como se existisse uma lei natural que os impedisse de noutro sítio existir. O mesmo fenómeno ocorre com as plantas. Contudo, outros bichos existem que não se eximem de percorrer o mundo e são mesmo capazes de se adaptar a outros habitates. É o caso da feiyi, uma bela serpente, cujas quatro asas implantadas no seu dorso lhe permitem voar pelos céus, feito que executa com vívido prazer. Um dos lugares onde podemos encontrar uma feiyi é na Montanha do Grande Lótus (assim denominada por causa da sua forma). E repare-se que esta bela mas inóspita montanha não acolhe plantas ou animais, à excepção desta extraordinária cobra, capaz de sobreviver num sítio cuja míngua todos os outros animais assusta. Avistar uma feiyi é, para alguns da escola pessimista de Wuhan, sinal de que uma tremenda seca assolará o país. Já as escolas de Emei adoptam uma postura radicalmente diferente, entendendo a feiyi como um sinal de que algo positivo ocorrerá. E lembram o episódio em que Tang, o primeiro rei da dinastia Shang, ainda antes de adquirir o mandato do Céu, terá avistado uma feiyi, facto interpretado como sinal de desgraça para a moribunda dinastia Xia. Bom ou mau presságio, a feiyi tem sido vista em diversas lugares e por variadas ocasiões. Numa lenda taoista, a feiyi aparece ligada ao culto da imortalidade e à beberragem capaz de proporcionar outras dimensões à vida. Não é claro se ela é capaz de produzir o tão almejado elixir ou se ela conduz um mestre à fonte de onde brota o licor que nos torna transcendentes, precisamente situada na Montanha do Grande Lótus. De igual e desgraçado modo, não sabemos de alguém que tenha experimentado o elixir da imortalidade – ou porque esses felizardos migram para as ilhas do imortais; ou porque vivem discretamente entre os comuns mortais sem alardear a sua relevante condição. Ao que sabemos, a própria feiyi busca continuamente fontes sábias de onde haurir vida. Quando as encontra, nelas se enrosca e suga-as até não restar uma gota. Daí que mestre Zuo tenha erguido perguntas, cujas dimensões se confundem com a própria grande muralha: “Por que precisa um ser imortal de continuamente procurar outras fontes de imortalidade? Não será o seu estado perene e infinito? Precisará este ser de ciclicamente renovar a sua condição? Poder-se-á ser imortal mas não para sempre?”
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO yu Esta longa viagem, que a miríficos lugares nos leva e estranhas criaturas nos desvela, lentamente ensina certas ideias, expõe certos factos (imaginários ou não), que não deixam de contribuir para dissipar um pouco da névoa que constantemente se interpõe entre nós e o mundo. Mesmo se o nosso conhecimento da Natureza pouco se altera, devido à grandiosidade, complexidade e mudez do objecto, talvez seja o nosso próprio olhar, suas incidências e divagações que mereça uma interrogação, uma análise, uma investigação. Surge esta reflexão a propósito dos animais de face humana, amiudamente encontrados nas montanhas e nos vales, nos lagos e nos rios, dessa China cuja existência igualmente mergulha na bruma dos tempos e das mentes. Desta vez encontramo-nos na Montanha das Colinas Excelentes, nome misterioso para uma formação geológica que nenhuma árvore exibe, nenhuma planta alimenta, nenhuma flor a decora. As rochas permanecem nuas, cruelmente expostas a intensos banhos de sol e a uma atmosfera radicalmente seca. Talvez por isso, a Montanha das Colinas Excelentes emita um fortíssimo brilho, que encandeia que nela demorar a vista. Ora nas suas encostas mais a sul, existe um vale, a que chamam Central, onde, aliás, nasce o Vento Nordeste. Não conseguimos encontrar uma explicação para este fenómeno, de algum modo semelhante às cavernas gregas, de onde emanam os vários ventos que sopram sobre a terra. Trata-se de um estranho vale, seco como a boca de Hades, quase uma antecâmara do inferno, onde dificilmente alguma vida encontrará meios de subsistência, a não ser que se alimente de pedras e de algum minério que por ali houver. É, precisamente, nesta paisagem lunar e maléfica que se diz existir um pássaro, parecido com uma coruja, mas que apresenta uma face humana, com quatro olhos e quatro orelhas. Chamam-lhe yu, talvez por causa do som que regularmente emite e que os homens muito apreciam ouvir. Por quê?, perguntará o viajante desprevenido. É que, mal esse som atravessa os ares, mal o yu se põe a cantar nas imediações do Vale Central, logo os homens se colocam em fuga, de olhos nos chão e coração sobressaltado, pois avistar este pássaro é presságio de que uma terrível seca vai abraçar o mundo. Assim, embora dotado de um comportamento pacífico, o yu é um pássaro maldito entre os homens. Talvez estes se interroguem sobre a sua capacidade de sobrevivência num ambiente tão hostil e isso os faça atribuir ao animal a capacidade de espalhar as características do seu habitat pelo resto do mundo. O pensamento humano funciona muitas vezes por contiguidade, metonímia, de forma mágica e irracional. Como se os habitantes de um lugar pedregoso, por exemplo, tivessem de ser pessoas ariscas, desconfiadas, bicudas.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA irrelevância do solstício Retiro o que dissera porque as palavras limitam-se a flutuar rio abaixo, obcecadas por uma deriva de perfeição. “Tu não existes”, dizias enamorada da frase rude como se eu ainda estivesse à tua frente. Certo. O que é isto de grunhir, soletrar ou escrever? Onde nos leva a ribanceira? Quando foi que tudo começou? Une-nos um espírito e um santo tão sacrílegos que Deus ruborizado se escondeu e assim permanecerá até ao fim do nosso tempo. A massa informe das coisas insiste em colar-nos as pálpebras. Dificilmente distingo, na tona da peneira, a farinha dos dias, os grânulos das noites, pedaços de almas e fímbrias de corpos. Vendado prossigo. E antolhado me recordo de ter havido uma existência qualquer. Nela bebia o húmus alcoólico e a seiva esbranquiçada de mil gerações. Então percebi a lição de me tornar poeira e fazer-me aos ventos das infinitas direcções. E nesse estado ínfimo me encontro enquanto sóbrio me disperso. Nessa condição, entrarei em teus olhos ainda que nunca me vejas. A tua mão percorrerá o ar sem me tocar. Serei o mosquito mínimo nos teus ouvidos, o zumbido persistente da matéria, a forma do abismo por atravessar. Nesse campo de mortos serei todos eles, as armas caídas e serei nada. Multidões de sonâmbulos perseguem na noite o seu próprio corpo num eterno afã de encontrar. Mesmo supondo que tal façam sem astúcia ou o uso da razão, ainda assim dormirão algemados a sonhos, dos quais pela aurora não haverá qualquer memória. Um fruto permanece por colher na glabra árvore do amor Retomo a estrada dos sentimentos desasados. É tempo de abrigar os viajantes imprudentes, ao som dos sapos que coaxam na beira dos vulcões. É impossível voar. Passa a banda irmanada, a banda apropriada, soprando a música séria dos funerais. A costumeira cavalgada de valquírias canibais. O som do sangue não respeita os desejos do silêncio, até ao vácuo da mente se sobrepõe. O oceano vomita cadáveres nas areias de um país. Só aos mortos interessa o seu nome, a sua fama, a riqueza disforme das suas gentes. Ninguém sabe o que fazer. Já pouco há de comer e de bebida um resto turvo arde bravo na garganta. Quedamo-nos sem fala, boia a mala onde dantes cabiam as nossas precárias vidas. O vírus separa as montanhas dos vales e as cidades das lezírias. Ali mesmo onde era suposto termos sido felizes. O vírus nada separa que não estivesse já separado, ainda que parecesse enroscado, ataviado de festa. Dei por um homem vestido de sol e uma mulher vestida de lua. Ele tremia gelado. Ela ardia em febre crua. Na transparência das peles, uma veia regurgitava, talvez uma verdade antiga. Tão antiga que ninguém se lembrava da sua língua. Teremos de esperar pela tradução dos tempos. E confinar os lamentos que como coro ecoam. São milhões de vozes, filhas da torre invisível que alcançou o céu. Todas elas lancinantes como espadas, cerradas como punhos, unidas como romãs. “Não entendo a tua língua”, dizias. E nada havia para entender nos gestos que a voz fazia. Serei coxo, serei cego, serei rei e vagabundo. Pintarei o céu do roxo que minha mãe me ensinou. De todo este lerdo mundo, foi a cor que me sobrou. Uma cor forte, sabor de acetona, a cobrir um invisível firmamento. Multidões de sonâmbulos perseguem na noite o seu próprio corpo num eterno afã de encontrar. Mesmo supondo que tal façam sem astúcia ou o uso da razão, ainda assim dormirão algemados a sonhos, dos quais pela aurora não haverá qualquer memória. Um fruto permanece por colher na glabra árvore do amor. Hoje o dia primará pela sua excessiva extensão e um acréscimo negativo de sombras. A luz erguer-se-á como um vício. Aproximo-me da janela, ainda nu mas já cansado, e recolho na pele o primeiro raio de um solstício. O planeta roda e em breve outros dias nascerão. Eu não ficarei na mesma. Tudo o que fiz ou desfiz, o que li ou inventei, hospital ou falésia, não chegará para o óbolo quando soar a minha hora.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XIX – O hujiao Das encostas da inominada montanha onde proliferam os jurus, desce o intenso rio Yin que se espreguiça até ao mar. Nas suas águas, densas, lamacentas, vive um estranho animal com corpo de peixe e cauda de serpente. Dão-lhe o nome de hujiao. Na realidade, é difícil definir o hujiao como sendo um peixe. Ele, com o seu corpo listado como um tigre, será talvez parente das baleias. O que, com certeza, não partilha com o nosso conhecido cetáceo é o seu tamanho, pois os hujiaos conhecidos não ultrapassam a dimensão de um gato. Nos arrabaldes do rio Yin, em aldeias de pescadores e camponeses, o hujiao é servido à mesa e a sua carne deveras apreciada. Segundo a tradição, a sua deglutição proporciona eliminar inchaços e hemorróidas, uma propriedade muito apreciada em regiões onde a gastronomia insiste particularmente nos ingredientes picantes. Mas o traço realmente espantoso do hujiao consiste no facto de, quando nasce, olhar num relance o mundo em seu redor e o mais rapidamente que pode tomar o caminho de volta ao ventre de sua mãe. Depois, só a custo de muito carinho e persuasão, esta o consegue convencer a dar os primeiros passos fora do ambiente protector do útero materno. Não se trata de um processo fácil, pois o recém-nascido não apenas tem as suas razões como consegue delas elaborar argumentos nem sempre fáceis de rebater. Contudo, a mãe, com a paciência e sabedoria de todas as mães, independentemente da espécie, faz-lhe ver a futilidade da não-existência. Finalmente, o bebé hujiao lá acede a chafurdar nas águas lamacentas do rio Yin e aí levar a sua vida. Este comportamento pós-natal não deixou de espantar os homens e incendiar algumas imaginações. Seria o hujiao dotado de uma antiga sabedoria — imanente do tempo em que humanos e animais se entendiam e trocavam segredos sobre as respectivas naturezas — que o levaria a desprezar o estado actual do mundo, tal qual ele o encontrava à nascença? Não seria então essa recusa de existir um sinal de uma superior e bem elaborada teoria, ao invés de se tratar de um mero recuo horrorizado de um animal sem consciência perante a má formação do mundo? Não sabemos. Esta extraordinária característica do hujiao não deixou, como seria de esperar, de encontrar adeptos, homens desconcertados com o estado das coisas, incapazes de encontrar um fio condutor para a sua existência que realmente fosse do seu agrado e que, cansados do sabor a gesso na boca, entendem ser sábio o hujiao por se recusar existir. Não é do nosso conhecimento a erecção de templos em sua honra ou do seu exemplo, talvez porque essa não-acção constitua a essência de quem considera não valer a pena viver. Menos radicais, outros pensadores consideram que o hujiao nunca recusou a vida, mas sim a existência tal qual ela lhe era apresentada. Assim, a sua atitude de regresso ao útero significará uma “declaração”, a saber: o mundo que me apresentais não presta, é urgente melhorá-lo. Estes reformistas vêem no hujiao o exemplo de um ser “natural”, cujo comportamento nos alerta para a desgraça que fizemos do mundo que habitamos. Mas onde, até ao momento da presentificação de outro, não temos outra opção que não seja nele viver.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XVIII – O Juru É recorrente na sabedoria antiga a importância atribuída à face humana. A fisiognomonia – ramo do saber que relaciona os traços físicos da face com o carácter – surgiu em diversas civilizações, da grega à árabe, da hindu à chinesa, passando pelo Renascimento, onde fez as delícias de artistas como Leonardo da Vinci ou Charles Lebrun. A face humana desperta noutro ser humano um complexo de emoções inextrincável. É caso para se dizer que quando se nos depara uma face “as sortes estão lançadas”, na medida em que é imprevisível que sensações, que sentimentos, que pensamentos nos atravessarão a mente e quanto isso poderá mudar as nossas vidas. Uma certa face pode ser, para cada um de nós, na ocasião certa, um Rubicão. E nada na nossa existência ficar como antes. Ora 500 lis além do monte Tianyu, que se encontra vedado a visitantes por razões mal esclarecidas, existe uma montanha cujo nome não é referido, onde habita um estranho pássaro com três pernas e a cabeça branca. Contudo, para enorme espanto de quem o vislumbra, este pássaro, a que chamam juru, apresenta uma face humana. Se o juru tivesse a dimensão de uma águia, seria algo realmente bizarro de se ver, pois a sua face teria o tamanho aproximado da face de um homem. Porém, o juru não excede o tamanho de um pato vulgar, não sendo por isso um bicho ameaçador, apesar das suas inusitadas feições. Aquela pequena face humana, dependurada de um pescoço de pato invoca uma tal miríade de sentimentos, do horror à compaixão, que ninguém é capaz de o perseguir e ainda menos de o matar. É desconhecido por isso o sabor da sua carne. De igual modo, causa algum espanto que nenhuma parte de um tão peculiar animal não seja entendida como útil para as magias dos xamanes ou para a confecção de mezinhas medicinais. Existirá, contudo, um rumor sobre um imperador muito antigo, cujo filho sofria de terríveis aflições mentais, que terá servido ao seu herdeiro uma sopa de juru, na esperança, jurada por um feiticeiro das margens do rio Amur, de uma cura que permitisse ao alienado aceder ao trono. Tal não haveria de suceder, pois o jovem príncipe não só não terá apresentado melhoras depois do horrendo manjar, como se afundou numa profunda melancolia da qual foi impossível arrebatá-lo. O feiticeiro procurou refúgio junto das tribos Miao, no oeste da China, e nunca mais dele se ouviu falar. Talvez por causa de este rumor, à mesa dos camponeses, ainda hoje se assustam as crianças dizendo-lhes que vão comer sopa de juru, na qual uma cabeça humana emerge quando a panela é mexida. “A quem vai hoje sair a cabeça?”, perguntam as avós, divertidas com as expressões de asco e horror nas caras de seus aflitos netos.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XVII – O gudiao Esta nossa demanda por terras chinesas obriga-nos, por vezes, a enfrentar criaturas de horror, cuja existência incita os homens a interrogar os deuses sobre a sua original bondade. Como podem deuses benevolentes permitir a semelhantes criaturas assombrar a terra entre os Quatro Mares onde uma humanidade valerosa se esforça por ser respeitadora e submissa aos seus preceitos e vontades? A pergunta incha de indignação quando a experiência nos diz que as principais vítimas destes seres de pesadelo são, geralmente, inocentes maculados pelo único pecado de se encontrarem em sítio funesto à hora errada. O mal tem uma inegável preferência por aqueles que, em termos de pensamentos e acções, muito pouco se encontram submetidos aos seus desígnios, nem frequentam os espaços onde os seus modos favoritos habitualmente proliferam. Tomemos o horrendo exemplo do gudiao, uma feroz besta que habita o monte Luwu, duas montanhas a leste do monte Xun. O terreno em Luwu é particularmente seco, o que limita de forma radical o crescimento de vegetação: além de ricos minerais, pouco mais se apresenta ao viajante que ousar aventurar-se por estas paragens. Ali nasce o rio Zegeng, afluente do rio Pang. Ora é ao longo do seu curso atribulado, através de pontudos rochedos e aflitivas depressões, que habita o gudiao, uma espécie de abutre cornudo, senhor de rica plumagem e que ostenta uma cauda semelhante a uma serpente. Contudo, a sua característica mais repugnante é o bico em forma de gancho, com o qual se apraz a desfazer e deglutir seres humanos, por cuja carne detém um particular apetite. Esta preferência agudiza-se quando a vítima se trata de uma criança ou uma jovem mulher. Alguns afirmam mesmo que o gudiao adquire rapidamente o vício da carne humana e, para o mitigar, não terá outro remédio que não seja caçar e absorver o almejado petisco, após o que sossega, até que os roncos inclementes do seu estômago vazio de novo o lancem na busca do seu predilecto alimento. Tal como outras bestas comedoras de humanos, também o gudiao aprendeu a imitar o choro de um bebé. E fá-lo com arte e convicção, de modo a assim atrair numerosas vítimas que, desgraçadas, só demasiado tarde reparam ter caído numa mortal armadilha. Por que razão criaram os deuses tal estirpe de criaturas e lhes permitem refocilar na carne dos inocentes? Este tipo de questão poderia causar alguma confusão nas mentes mais vulneráveis, mas valem-nos as palavras de mestre Zuo (Zuozi), inscritas na pedra: “Não compreender os actos de um gudiao equivale a não compreender os nossos próprios actos. O homem não se deve crer aparte da natureza ou superior nas suas acções aos outros dez mil seres. Se avaliarmos com integridade (cheng) o nosso coração (xin) – as nossas motivações, os nossos pensamentos, as nossas acções –, logo descobriremos que o comportamento do gudiao se queda muitos graus abaixo do nosso numa escala de iniquidades. Nós, os humanos, somos todos canibais. Da carne e da alma dos nossos semelhantes, fazemos festa e fortuna.”
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasXVI | Animais Fantásticos da China: O Huan O viajante, que da Montanha de Jade Flutuante se dirija para leste, terá de passar outras cinco montanhas até atingir o famoso monte Xun (Xun Shan), local rico em ouro e jade, cuja distribuição nos faz interrogar sobre a existência de desígnios misteriosos na Natureza, como se as coisas não fossem simplesmente o que são e por detrás da sua existência roncasse um desejo, suspirasse uma vontade, uivasse uma determinação, e elas não acontecessem meramente por acaso. No caso do monte Xun, tão excessiva riqueza encontra-se equitativamente distribuída entre a encosta norte (o jade) e a encosta sul (o ouro). Por quê, perguntará o surpreendido geólogo de tão óbvia divisão. A única resposta é dada pela mito que associa o frio do jade ao norte e o brilho do ouro ao sul. Mas então tudo se passa como se fôra o mito a arquitectar a Natureza, o que não deixa de ser um pensamento perturbante. Ora no monte Xun, além desta rigorosa distribuição de riquezas, existe um animal que tem maravilhado os sábios ao longo de várias eras. Conhecido por huan, apresenta uma forma muito parecida com uma cabra, mas com as extraordinárias características de não ter boca e de ser imortal. Segundo as crónicas, a sua imortalidade deriva precisamente de não precisar de comer para sobreviver. A inexistência de boca, por outro lado, também impedirá os vapores malfazejos de se instalarem no seu corpo e provocarem uma inevitável decadência. É claro que o huan motiva a admiração de muitos e desperta uma contida raiva nos grandes mestres taoistas cuja vida é dedicada à procura da imortalidade. Ao que consta, alguns deles optaram mesmo por habitar o monte Xun para assim poderem apreciar de perto a existência de um ser que consegue, graças a atributos naturais, aquilo que muito estudo, muita meditação, muitos elixires, muito passeio por lugares ermos ou uma vida exaurida em grutas até hoje não conseguiu alcançar. Uma das questões que assombra o pensamento destes mestres e os leva perto do desespero é não conseguirem compreender se o huan tem ou não consciência da sua imortalidade e assim avaliar se as suas acções são condicionadas ou não por essa consciência. Como passará os seus dias um animal que prescinde de alimento? Qual o objectivo de uma vida sem fim previsto, que infinitamente se arrasta pelo tempo? Terá o huan uma consciência histórica e uma memória suficiente que lhe permita usar o que presencia ao longo de uma eternidade? Por outro lado, se nos ativermos aos sábios ocidentais, navegaremos no caudal das ideias que atribuem a emergência da consciência à consciência da morte. Como então conceber consciência num ser que é imortal? Deveremos simplesmente considerar que essa consciência não existe ou, pelo contrário, admitir a possibilidade de um ser imortal desenvolver outro tipo de consciência, livre das angústias da mortalidade e da finitude. Compreensivelmente, a existência deste animal causou numerosas teorias sobre a vida, a morte e, sobretudo, a razão do desejo de imortalidade que habita certos homens. Valerá a pena ser imortal? Como condensar num instante milhares de anos de experiência? A reflexão sobre estes temas, motivada pelo huan, levou já muitos mestres taoistas a desistirem da sua busca e a tornarem-se bons confucionistas, abandonando as montanhas e passando a viver na companhia de outros homens, desistindo para sempre de uma demanda que agora se lhes afigura sem sentido.
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasXV – Animais fantásticos da China – O zhi Ilustração de Ana Jacinto Nunes A montanha Fuyu, cujo nome significará Jade Flutuante, adquiriu esta designação talvez porque é rodeada a norte pelo lago Juqu e a leste pelo rio Zhuqi, que a abraça. De facto, para um observador dotado de alguma sensibilidade e imaginação, talvez excitada ou obnubilada por um certo grau de embriaguez, que se aproximasse quando no horizonte despontam as primeiras luzes, a visão longínqua desta montanha poderia facilmente evocar um pedaço de jade a flutuar num espelho de águas, onde se reflectem os céus. Mas as montanhas são rugidos, rugas, abcessos, na pele distraída da terra. São territórios peculiares. Pela paisagem e pelas gentes. Pelas variações de temperatura e pela raridade de oxigénio no ar. Nas montanhas reinam as tempestades: nelas resfolgam os trovões, estalam os relâmpagos e nelas se despenham raios carregados de inaudita voltagem, que contagiam o ambiente, tornando-o denso, de pesadelo. Não é por isso de estranhar que num destes lugares — neste caso, na montanha Fuyu — circundem animais como o zhi, uma besta descrita como tendo corpo de tigre, rematado por uma cauda semelhante à de um búfalo. Tal como o vulgar tigre, também o corpo do zhi é listrado e, tal como o seu primo indiano, também lhe apraz supinamente deglutir carne humana. Curiosamente, a sua boca não emite o normal rugido do tigre, mas sim um som semelhante ao ladrar de um cão. Há quem tenha alvitrado que o faz para assim atrair a presença dos homens e nessas incautas vítimas se banquetear. Ao certo sabemos que Jorge Luis Borges não sonhou com este tigre, entre os muitos felinos malhados que pelos seus devaneios deslizaram. No “Livro dos Seres Imaginários”, o Argentino limita-se a descrever os tigres anamitas (embora reconheça que a filiação mítica destes felinos é chinesa), o que nos atinge como algo de estranho, já que a sua poesia e os ensaios, discursos e entrevistas, são constantemente percorridos por diversos tipos de tigres. Que grau de realidade atribuiria o escritor às suas visões de tigres, de modo a exclui-los do seu manual de zoologia fantástica? Nesse excelso volume, só os tigres do Vietname merecem um pequeno texto e quanto ao zhi, perigoso habitante tigrado de uma montanha chinesa, comedor de gente indefesa, orgulhoso portador de um rabo de boi, nada. Talvez o zhi não seja exactamente um tigre, atendendo à sua cauda e ao seu ladrar. É difícil avaliar, pois não existe notícia de que alguém, em 5000 anos, tivesse caçado um exemplar, não sendo, portanto, possível dissecar o bicho e compreender melhor as suas características. Pelo contrário, ao que se sabe, é o zhi que tem dissecado vários seres humanos, apenas deixando os ossos para memória futura. É por isso que poucos se atrevem a pôr o pé na montanha Fuyu, um dos locais mais temidos da China antiga e contemporânea, apesar da estonteante beleza das suas paisagens. Ora esse medo, essa angústia, esse temor, esse terror ancestral de ser devorado, profundamente enraizado nos inconscientes, como relata Lu Xun, tem provavelmente protegido a montanha do Jade Flutuante das hordas de turistas e do seu sonoro vernáculo.
Carlos Morais José Artes, Letras e IdeiasO huahuai A existência de seres problemáticos — cujas características os excluem das espécies registadas e que apresentam a aparência de uma mistura, uma intersecção, uma singular junção de atributos de várias espécies — tem desde sempre intrigado a humanidade e dado aso a inúmeras teorias sobre as possíveis origens destes seres, amiúde classificados como “monstros”. Poderá, por exemplo, a união entre espécies diferentes revelar-se, nalguma circunstância, frutífera? Eis uma pergunta que tem atormentado os sábios já que a experiência é frágil a responder, pois se dificilmente conseguiremos obter resultados do cruzamento de um cão com uma galinha; por outro lado, dificilmente se explica também a existência de criaturas híbridas: fenómenos amplamente registados, descritos por textos antigos ou modernos, e mesmo conservados em redomas de vidro, em laboratórios ou gabinetes de curiosidades. É prática generalizada, em quase todas as culturas, classificar o que não é símile, o inesperado, o inusitado, como aberração ou erro da Natureza, não perguntando se não será porventura o nosso olhar demasiado domesticado para aceitar o estranho como novidade ou progresso e ele em nós provocar, antes de mais, horror, medo e desejo de destruição. Na montanha Yaoguang, por exemplo, existe um ser chamado huahuai que se confundiria com um homem, não fossem as enormes cerdas de javali, abundantes no seu corpo. Dele se conta habitar em grutas, onde adquiriu o hábito de hibernar. Ninguém refere em que parte da montanha vive o huahuai: se ocupa as grutas da vertente sul, onde abunda o jade, ou se prefere a encosta norte, onde vulgarmente desponta o ouro. Nesta região é muito arreigada a crença segundo a qual quando um huahuai é avistado tal significa que em breve haverá um recrutamento dos homens e dos rapazes para servirem nas grandes obras do império ou participarem nalguma daquelas guerras que os senhores, de tempos a tempos, gostam de orquestrar. Não é, por isso, um animal muito querido dos camponeses. O huahuai parece ser o resultado do cruzamento de ser humano com porco selvagem, mas há muito se sabe que essa escabrosa união é, inevitavelmente, infértil. Persiste assim o mistério. Poderá o huahuai ser um descendente daquela tribo de homens transformados em porcos pelo Deus do Corão? Ou poderemos admitir, noutro registo menos mítico, a existência de várias linhas na evolução das espécies, não limitando ao símio a origem do homem, mas alargando a possibilidade de evolução a outras espécies e admitir que, tal como o símio, também se poderão um dia tornar humanas? Curiosamente, é o que parece propor Mao Zedong, também ele leitor do Clássico das Montanhas e dos Mares: “Não poderão os cavalos, as vacas e as ovelhas evoluir? Só os macacos poderão evoluir? E poderá ser, além disso, que de todos os macacos só uma espécie possa evoluir e todas as outras sejam incapazes de o fazer? Daqui a um milhão de anos, dez milhões de anos, cavalos, vacas e ovelhas continuarão a ser os mesmos que os de hoje? Penso que eles continuarão a mudar.” (Sobre questões da filosofia) Será então o huahuai um elo, um ente de transição, entre um javali e um outro tipo de homem a haver? E não vemos nos nossos campos, ruas e praças, por vezes, homens e mulheres cujas feições imediatamente lembram as de um suíno? Doutras vezes, (oh quantas vezes, demasiadas, tal não já aconteceu…) quando olhamos as feições de um grupo de humanos de forma mais atenta, damos por nós num zoológico diversificado, onde parecem proliferar descendentes de diferentes espécies, semiocultas nas faces mas, ainda assim, claramente distinguíveis se alvos de um olhar sofisticado. Apesar da nossa contemporânea vaidade, o actual estado do saber ainda denota uma regular impotência, mesmo quando procura responder a questões que ao longo de milénios ribombam nas mentes mais atrevidas. Na montanha Yaoguang, o huahuai, aparentemente indiferente a problematizações científicas e filosóficas, sem se exprimir em qualquer linguagem conhecida, prossegue calmamente a sua vida, emitindo de quando em vez uns sons, uns estalos, similares aos da madeira partida. Alguns crêem neles pressentir uma profunda tendência para a melancolia.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais fantásticos da China XIII – O changyou Algures, na actual província de Hunan, existirá uma montanha referida nas crónicas como Changyou Shan. Dela se diz ser praticamente calva, por ali não medrar vegetação relevante, apesar de muita nascente, muito ribeiro e variados lagos animarem a paisagem. Esta paradoxal infertilidade da montanha — a inexistência de vegetação num lugar com excesso de água – não é explicada por nenhum dos antigos sábios, que se limitam a descrever este estranho fenómeno e nele não se detêm mais que uma linha, como se esta ocorrência fosse para eles algo de vulgar. “Não tem árvores ou plantas. Muita água.” É assim, laconicamente, que a montanha Changyou é descrita. Num desses escritos surge, no entanto, uma subtil alusão, provocada pelo deslocamento de um caracter na sequência da frase, o que possibilita outra leitura: a montanha será tão perigosa que árvores e plantas, prudentemente, ali recusam crescer. Ora nesta extensão nua de rocha, povoada de ribeiros e lagos, vive um animal que, tal como a montanha, é conhecido por changyou, muito parecido com um macaco. Apresenta, contudo, quatro orelhas em forma de leque sobre a cabeça e uma longa cauda. Felizmente, o changyou é um bicho elusivo, pois é tido por certo que, ao ser avistado, tal significa a proximidade de um dilúvio. Este facto tem sido extensivamente constatado e reportado em numerosos documentos. Um dos casos narrados refere o avistamento de um changyou, seguido de semanas de inundações; após o que outro changyou foi avistado e desta vez os rios transbordaram de tal maneira que várias aldeias foram submergidas. Talvez por isso, alguns relatos estabelecem uma relação de inimizade entre o changyou e o lendário rei Yu, que domesticou as águas, criando barragens e canais. Nessas lendas, o changyou teria tentado impedir o papel civilizador do soberano, tendo este desterrado o agourento macaco para aquela montanha estéril, onde ele desde então tem levado dura vida. Eventualmente, a existência do changyou, tal qual é descrito em duas breves linhas no Shanhaijing, poderá ter desencadeado, ao longo das transformações do imaginário chinês, a produção de variados seres mitológicos, como o Rei Macaco, da “Peregrinação ao Oeste”, entre outros deuses de compleição símia. De tal modo é temida uma aparição de um changyou que não existem relatos de caçadas ou de mezinhas produzidas a partir do seu sangue, carne, nervos ou pêlo; e nem mesmo as suas inusitadas quatro orelhas, dispostas em forma de leque, parecem ser alvo de qualquer tipo de cobiça por parte dos homens. Trata-se, portanto, de um animal que ninguém quer caçar, comer, capturar, encontrar ou sequer pôr a vista em cima.
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasA Guanguan De facto, a montanha Qingqiu não cessa de nos surpreender, mesmo quando nos presenteia com seres cujo aspecto em pouco ou nada difere dos animais com que habitualmente nos cruzamos. É o caso da guanguan, uma ave de corpo semelhante a uma pomba mas que, por razões ignotas, sempre atraiu de forma radical a imaginação de escritores e poetas. Poderá ser que o fascínio resida no seu expressivo canto, descrito como o som de um homem aos gritos. Poderá ser, mas dificilmente se admite que tal maneirismo seja um factor de sedução. Se é certo que, num velho compêndio de culinária, a carne assada da guanguan é considerada uma “excelsa iguaria”, também não será despiciente a crença segundo a qual quem usar no cinto qualquer parte desta ave não sofrerá de confusão mental. Não sabemos se isto quer dizer que a guanguan possibilita uma visão límpida da natureza e a intuição imediata das propriedades dos dez mil seres ou se, num sentido inverso, ilumina o que no nosso interior se guerreia, permitindo estabelecer um reino interno onde predominará uma suave harmonia moral, temperada por uma frenética disposição para o cultivo de si. Sabemos é que um importante poeta como Tao Yuanming (365-427) dedicou a esta ave um belo poema, no qual refere a sua capacidade para ajudar os que mergulharam na noite do caos e da ignorância, mas não para caucionar um comportamento exemplar. Talvez isto justifique o uso da guanguan como amuleto capaz de melhorar as capacidades cognitivas, mas não estende a sua influência à clarificação dos preceitos morais. Estes continuarão a ser alimentados pela vontade dos sujeitos, sem que exista mezinha ou feitiço capazes de instilar num ser humano a prática da benevolência ou o respeito pelos ritos. Tanto este como aquela unicamente se adquirem pela constante via da renovação ou exame interior, e pela rectificação da total integridade do coração, ou seja, da força bruta das emoções, da ordenação dos pensamentos e da violência dos desejos. “Dá-me a sabedoria”, terá rogado Salomão ao Deus do Livro, exprimindo assim o desejo de adquirir a compreensão total das coisas e de se tornar ele próprio um deus. Não será este tipo de saber que os crentes nos poderes da guanguan acreditam obter. Pelo contrário, longe de um entendimento do mundo e dos desígnios do Céu, procuram a translucidez que as asas dessa ave prometem, quando em pleno voo se cruzam com o Sol e naquele instante deixam entrever um universo mais claro e mais brilhante, enigma e salvação. É possível também, ainda que sempre num registo meramente onírico, estabelecer uma relação entre a guanguan e a pomba do Espírito Santo, pois ambas são transmissoras de sabedoria. Mas que tipo de sabedoria nos transmite um e outro animal, um e outro símbolo? Será que a guanguan também nos permite o acesso a línguas estrangeiras e nos revela a comunidade universal ou, mais pragmática, simplesmente afasta algum do nevoeiro que diariamente nos povoa a mente e nos impede uma apreensão rectilínea do mundo?
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasA Zhu As várias partidas do mundo, os lugares, as cidades, as paisagens, unicamente reivindicam espaço na nossa memória quando algum traço particular as distingue. A esses espaços fica associada uma emoção, logo ali sentida ou mais tarde emergente, que a mente, ávida de acção, guarda com deleite. Certos sítios são lembrados pela sua beleza, outros pela extravagância; mas a montanha do Salgueiro e a sua particular fauna conseguem ultrapassar estas categorias e intrometer-se no mundo dos homens de forma relevante e inesperada. É que por ali existe uma ave, com a forma aproximada de uma grande coruja, cuja aparição é suposto anunciar alterações importantes na hierarquia política de toda uma região. Chamam-lhe zhu e, provavelmente, ostenta uma penugem rubra escura, da cor do vinho feito de uva. Sendo uma ave, dotada da capacidade de voar, surge do nada ao crepúsculo, encontra o seu recanto num ramo onde se agarra com firmes dedos — pois a zhu não possui patas de pássaro, mas mãos humanas, que lhe saem de baixo do seu volumoso corpo — e dali os seus olhos penetrantes fixam o mundo como se o quisessem hipnotizar. De quando em vez, emite um som que lembra o seu nome: “Zhuuu…” Não é bom sinal, garantem, avistar esta ave. Alguns mestres dizem ser um presságio de índole tão ruim como ver um cometa atravessar os céus ou encontrar uma baleia morta a flutuar entre as ondas. Reza a tradição que, quando uma destas aves aparece, tal quer dizer que o rei vai destituir, exilar ou matar grande parte dos seus oficiais superiores. É então fácil de prever a confusão gerada pelo rumor do avistamento de uma zhu; e imaginar os espíritos em desordem, a tessitura de conspirações, a emergência de terrores, a catadupa de planos e, amiúde, levianas mas trágicas decisões. Invocar a zhu é garantir o conflito e a desarmonia. O poeta Tao Yuanming reforça a crença no mau agouro desta ave. Em breves linhas, irónico, sugere por ali ter andado uma zhu, quando o rei Huai de Chu baniu o famoso Qu Yuan, um importante oficial e trágico poeta. Não se pense, contudo, ter advindo de suas poesias a má sorte que lhe selou o destino ou que podemos dar como garantida a aparição de uma zhu naquele final do século IV a.E.C.. Arrebatado pelo desgosto de assistir ao espectáculo degradante de uma governação, maculada de práticas corruptas e inoperante pelo desleixo da realeza, Qu Yuan cometeu suicídio, atirando-se às águas barrentas de um rio. Este seu acto tornou-o num herói, num santo, numa data, todos os anos comemorada pelo povo. Compreende-se o temor que a zhu inspira. A sua presença é disruptiva, não da ordem individual, ou seja, da vida de cada um, eventualmente da vida do sujeito que a avistou, mas de toda uma ordem social. Não é incomum, por exemplo, a visão de uma zhu acender o rastilho de guerras civis ou, no mínimo, criar um período de incerteza entre os mais qualificados oficiais. Aristocratas, generais, comerciantes milionários, todos eles sentem vacilar o seu poder e, por isto, pela aparição de uma simples ave, quantas vezes não são estragadas famílias, queimadas colheitas, arrasadas aldeias, sacrificadas raparigas e destruída toda uma geração?
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasX- A Chiru Não cessam de nos espantar os mistérios e maravilhas da montanha Qingqiu. Encrustada no seu seio rochoso, existe uma tímida nascente de onde brota o rio Yingshui. Ao deslizar encosta sul abaixo e por a ele se unirem, em coloridos amplexos, numerosos riachos e ribeiras, o que era um mero fio transmuta-se aos poucos num nobre curso de água, chegando a atingir proporções consideráveis, antes de desaguar no lago Jiyi. Pelo caminho, ocasionalmente, o Yingshui roça as suas águas em rochas do mais puro jade, abundante naquele lado da montanha. Facto curioso: ainda antes do rio desaguar no lago Jiyi, alguém construiu uma barreira de toros aguçados, em madeira preciosa, à volta de uma dessas formações de jade, eriçada no meio das águas, isolando-a do mundo. A proximidade à preciosa pedra parece só poder ser alcançada por via subaquática, se na paliçada existir uma porta ou outra qualquer passagem. A origem e a identidade dos construtores desta paliçada também se desfizeram no bolor do tempo. Alguns referem tribos nómadas, adoradores de pedras e do fogo, senhores da caça e dos metais. Outros preferem a crença em civilizações extraterrestres, capazes de deixar a sua marca como sinal da intenção de regressar. Mas a teoria talvez mais fantasiosa atribui a um animal, vulgar habitante do rio Yingshui, a edificação daquele inusitado círculo amadeirado, que impossibilita o acesso ao mais belo penedo de jade que por ali desponta. De facto, quer ao longo do rio, quer em números bem mais abundantes no próprio lago, habita uma espécie de salamandra vermelha, a que dão o nome de chiru. Este animal respira debaixo de água, embora, surpreendentemente, seja capaz de se deslocar com desenvoltura, por curtos períodos de tempo, em terra firme, e mesmo adoptar uma postura vertical. Outro dos aspectos mais impressionantes deste bicho, que dificilmente ousaríamos classificar como um peixe, é a sua face, pois nela se compõe uma real expressão humana. Por isso, há quem diga que não devemos sustentar o olhar de uma salamandra vermelha, porque o facto de um animal nos enfrentar com uma expressão que reconhecemos como humana induz-nos uma emoção disruptiva e provoca-nos uma singular disposição interna. Por mais que a teoria seja atraente na sua inverosimilhança, ninguém pode garantir terem sido as salamandras vermelhas as construtoras da paliçada. E que são elas, ainda hoje, a dispor do seu usufruto exclusivo. Ou sequer se no seu instinto se inscreve esta capacidade de construção. Contudo, a teoria viu-se reforçada pela contribuição de um estudante da Boémia que, visitando a China, não apenas a defendeu ardentemente, como elaborou gráficos e projecções matemáticas diversas para provar a capacidade criativa dos membros posteriores das chiru para a execução daquela obra. Contudo, nada de realmente científico chegou a ser concluído porque há sempre um elo que nos escapa quando pretendemos considerar racionalmente as salamandras, como se elas se constituíssem num objecto indizível, situado além da linguagem, impossível de traduzir em logos. Elas são tímidas, discretas e têm, definitivamente, um olhar inteligente. Diria mesmo: mais inteligente que alguns seres humanos. Mas não se pode garantir que por detrás desse olhar se esconde um coração capaz de ordenar logicamente os pensamentos ou distinguir o possível do impossível, sem deixar de sonhar com o segundo. Entretanto, apesar de certos curandeiros entenderem que a sua carne cura a sarna, as chiru lá vão sobrevivendo e chapinhando nas águas mornas do lago Jiyi. Não é raro, nas margens do Yingshui pelo crepúsculo, ouvirmos um som parecido com o que produz o pato-mandarim. São as salamandras vermelhas que, em surdina, conversam entre si, antes de desaparecerem nas águas escuras, talvez para abrirem a porta submersa da paliçada e passarem a noite protegidas, enroladas umas nas outras, em torno da beleza interdita do penedo de jade.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasXI – O Lili Chegados à segunda Cordilheira do Sul deparamos com a imponente montanha do Salgueiro (Qishan). Um pouco mais a norte, encontra-se o monte Zhubi, a leste ergue-se o monte Changyou. Entre eles, desliza um rio onde se podem encontrar jade branco e grãos de cinábrio tão finos que formam, nas margens, uma camada brilhante e rubra, proporcionando esta paisagem fantástica a impressão de termos desembarcado noutro e distante planeta. Ora neste insólito pedaço de terra existe, habitante teimoso das margens deste rio, uma outra criatura, cujas características facilmente nos levam a incluí-la na nossa coleção de bizarrias: o Lili. Poder-se-ia dizer que se trata de um javali, pois o seu corpo, coberto de pêlo grosso e áspero, e o focinho, onde duas enormes presas retorcidas lhe saem da bocarra, são semelhantes aos do porco selvagem. Contudo, os dois animais são inconfundíveis, porque as patas do Lili são iguais às de um galo, incluindo as orgulhosas esporas, e apresenta, além disso, uma espessa crina, em nada comparável aos meros pêlos hirsutos do nosso intempestivo cerdo. Porém, o aspecto que mais o distingue de muitos outros bichos é a sua peculiar alimentação. O Lili gosta de se atafulhar de metais e de minerais, conseguindo mesmo sobreviver através do mero consumo de vulgares calhaus. Segundo os cronistas, o seu menu favorito consiste em pedras semi-preciosas, ferro e cobre. Para aceder a estas iguarias, o Lili é capaz de escavar terrenos, refocilar em minas, destroçar construções, derrubar muros, chegando a modificar radicalmente o aspecto da paisagem. Talvez por estas habilidades, acredita-se que, quando alguém vê um Lili, é porque grandes obras públicas irão em breve ser lançadas ou então ocorrerá um terramoto de devastadora potência. Por vezes, nomeadamente quando se aproximam demasiado de áreas habitadas, os Lili entram em conflito com os homens, porque pouco se ensaiam em destruir habitações, celeiros, redis, galinheiros e outras construções, o que muito irrita os camponeses das aldeias vizinhas. Estes, avisados do seu mau-humor e carácter violento, raramente se atrevem a enfrentá-lo sozinhos. Preferem preparar cuidadosamente uma batida, organizada segundo preceitos milenares, de modo a cercarem, capturarem ou matarem o incómodo animal. Por estranho que pareça, nada é referido quanto à qualidade da sua carne ou se qualquer parte do seu corpo detém algum poder mágico, o que leva a pensar que os homens temem o contacto com esta espécie de animal. Quando habitam terrenos propícios, ricos em vários minérios, os Lili reproduzem-se abundantemente. As mães tomam conta dos filhotes, deslocando-se em solidários grupos de fêmeas. Quando os machos atingem os dois anos são convidados a abandonar o grupo feminino. Aí começa para os Lili um período de vida bem mais complicado, pois esta espécie é extremamente territorial e os seus membros envolvem-se em brigas constantes, por determinado espaço e por acesso às fêmeas, nas quais o vencedor poderá emprenhar, à sua discrição, as que muito bem lhe aprouver. Em média, um Lili dura cerca de 10 anos. Curiosamente, os Lili não disputam a comida entre si. Pelo contrário, quando algum encontra uma jazida rica em apetitoso minério, imediatamente emite alguns sons, parecidos com o ladrar de um cão, com o objectivo de chamar os outros membros do seu grupo. Talvez, entre estes animais, a repartição voluntária de bens valiosos incorra num aumento de prestígio social e assim nenhum, nem em situações de escassez, tem o hábito de guardar só para si quaisquer despojos alimentares.
Carlos Morais José Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasVIII – A Jiuweihu Na miríade de outeiros, colinas, montes e serras que eriçam o território da China, sobressai a montanha Qingqiu, não pela sua grande dimensão ou forma inusitada – pelo contrário, é com humildade que se destaca na paisagem –, nem pela beleza das imensidões que contempla, mas pela existência de seres vetustos e raros, descritos em inscrições tão antigas que remontam às névoas espapaçadas das origens. Muito estranha verificamos ser a natureza na montanha Qingqiu pois até o cinábrio, que na encosta norte abundantemente prolifera e em todos os lugares é reconhecido pela sua cor vermelha, aqui ostenta uma tonalidade esverdeada, assemelhando-se ao jade, predominante na encosta sul desta tão extravagante montanha. Dizem os registos de antanho existir na região uma volumosa raposa de nove caudas, a que dão o nome de jiuweihu, uma besta cujo comportamento apoquenta as aldeias, pelo facto improvável de ter um desenvolvido um gosto especial e disciplinado pelo consumo de carne humana. E, para atingir este seu obsessivo desiderato de atrair e devorar seres humanos, a jiuweihu adopta espantosos ardis. Por exemplo, segundo os relatos mais desapaixonados, o matreiro animal terá desenvolvido a capacidade de emitir sons que copiam os vagidos de um bebé. Este truque faz com que as pessoas desprevenidas, sobretudo mulheres solteiras, não resistam a se aproximar, de tão intrigadas por si dão ao ouvir o aflitivo som, seja para meramente darem conta do que se passa, seja para, eventualmente, socorrerem um recém-nascido abandonado. É então que a raposa de nove caudas, aproveitando a sua ingénua e curiosa disposição, as ataca ferozmente e naquela carne humana, fresca e imprudente, afunda os seus afiados dentes, nela refocila e se regala. Contudo, nem todos os encontros com esta criatura se revelam terríveis ou portadores de maus auspícios. No caso de Yu, o Grande, por exemplo, homem de inexcedíveis recursos, é famoso o momento da sua vida em que se cruzou com uma enorme raposa branca de nove caudas, o que era muito pouco para instilar medo no seu bravo coração. Pelo contrário, interpretou o encontro como um sinal de que em breve casaria e seria abençoado com uma extensa prole. Foi, talvez, a abundância de rabiosques (precisamente nove) que levou Yu a estabelecer uma homologia com o seu destino próximo e a considerar estar perante uma expressão divina e positiva, como se à sua descendência assim fosse prometido tudo sob o céu. Aliás, os papéis desempenhados pelas raposas nas histórias orientais em muito ultrapassam a mera matreirice, qualidade das suas congéneres do Ocidente. No mundo que se estende a leste dos Himalaias, as raposas têm a capacidade de se transmutar noutros seres, incluindo humanos. É por isso comum escutar histórias de homens enganados por raposas disfarçados de velhos sábios ou, no melhor dos casos, por mulheres belíssimas e impregnadas de um sábio erotismo, capazes de transtornar a mais equilibrada mente e fazer o mais regrado dos corpos delirar num oceano de prazeres difíceis de imaginar e impossíveis de descrever. Também há quem, em nossos cinzentos dias, não creia na existência da jiuweihu e, mesmo sem questionar a veracidade das observações antigas, considere que a raposa de nove caudas, afinal, não passará de uma espécie de lince ou gato selvagem, cuja cauda ostenta nove círculos negros sobre a pelagem rubra, o que estaria na origem do seu nome: nove anéis e não nove caudas. Seja como for, os inimigos veramente tradicionais das raposas de nove caudas, para quem é indesmentível a sua existência, são os xamãs pertencentes a uma categoria específica: os wu ou, traduzindo para linguagem ocidental, os que se ocupam de magia negra. Tal acontece porque a carne desta bizarra raposa é o único antídoto conhecido para o famoso veneno gu, uma poção mortal extraída do corpo de um insecto, cuja existência surge referida desde inscrições oraculares da dinastia Shang e cuja eficácia é comparável ao curare, substância sul-americana destilada de um sapo. O consumo de carne de jiuweihu, ao que parece, evitava a morte de quem, por descuido ou malfeitoria, tivesse haurido o temível veneno gu. E, tratando-se ou não da carne de uma verdadeira jiuweihu ou, pelo contrário, de uma burla assente numa fantasia, geralmente o procedimento tornava cheio de valiosa realidade o baú magro do xamã.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasVII – O Chanfu Por muito que a exploremos ou, simplesmente, por ali deixemos flutuar o pensamento, a montanha Ji revela-se um lugar inesgotável de maravilhas e assombrações. Caso não bastasse a existência de ignoradas árvores e plantas, cujas propriedades medicinais estão ainda longe de ser totalmente estudadas e conhecidas; de depósitos vastíssimos de jade verde, que irrompem do solo levando à loucura as ambiciosas gentes; esta insólita montanha, além do boyi, é ainda a morada de um outro bizarro animal, que crismaram de chanfu. Apesar do seu heterodoxo aspecto, os antigos registos são unânimes em considerá-lo uma ave. Isto talvez porque a sua forma se assemelha à do galo, embora com dimensões consideravelmente maiores do que o nosso animal de capoeira. Além disso, o chanfu é senhor de três cabeças, que culminam três longos pescoços. Esta profusão cefálica implica, além de três poderosos e afiados bicos, a existência de seis olhos, o que permite ao bicho considerar a qualquer momento os quatro pontos cardeais. O seu insólito corpo é ainda composto por seis patas e três asas. Apesar de alado, o chanfu perdeu algures na noite dos tempos a capacidade de voar. Consegue, outrossim, graças às asas, efectuar saltos consideráveis, mas rapidamente se encontra de novo no solo, onde se torna presa de alguns predadores, nos quais podemos incluir, sem vergonha de maior, os próprios seres humanos. Uma das características mais arrebatadora deste animal é o facto de permanecer em constante estado de vigília, pois enquanto uma das cabeças dorme as outras duas mantêm-se acordadas e o seu corpo activo. Ora para sustentar a sua constante actividade, aliás reveladora de um indisfarçável nervosismo, esta surpreendente ave é escrava de um monstruoso apetite, o que a leva a constantemente procurar alimento, debicando em quase tudo o que lhe passa à frente dos insaciáveis bicos. Talvez por isso, alguns relatam que quem comer da carne do chanfu será acometido de violentas insónias. Sem que nos tenha sido fornecida prova médica de tal efeito, certo é que, ao longo dos tempos e incólume às modas, o chanfu tornou-se no prato predilecto de guardas fronteiriços, jogadores inveterados e sábios desesperados com a estreiteza dos anos que lhes restam para levar a bom porto os seus estudos. Sendo que estas três espécies de homens são extremamente comuns na China, o chanfu correu sempre um grave perigo de extinção. Diz-se também que, tal como o andrógino descrito por Aristófanes no “Simpósio” de Platão, este animal parece ser habitado por um radical sentimento de vaidade, enfrentando os eventos de peito bem levantado e uma irreprimível tendência para exibir um comportamento agressivo, muito enraizado no seu carácter exaltado, sempre que outros bichos cruzam o seu caminho. E este será um dos perigos de comer a sua carne: é que além da insónia, ao que parece, quem o devorar, será invadido e possuído por um excessivo amor-próprio que, geralmente e em boa verdade, conduz a actos irreflectidos e a uma familiar forma de perdição.
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasVI – O Boyi Os antigos atribuíam à montanha Ji (Jishan) propriedades distintas, consoante se referiam à encosta norte, onde proliferavam árvores consideradas estranhas e inclassificáveis; ou à encosta sul, onde o jade esporadicamente emergia emprestando à terra rochosa uma tonalidade esverdeada. Esta insólita montanha, povoada por animais tão bizarros quanto as árvores voltadas a norte, ainda hoje é difícil de mapear e os geógrafos chineses não conseguem chegar a acordo sobre a sua exacta localização. Um destes cientistas, talvez alienado pelas dificuldades da tarefa, aventou a hipótese de se tratar de um acidente geológico lunar, detectado através de telescópios primitivos, também eles desaparecidos na voragem dos tempos e das eras. Mas, perante uma tão assombrosa teoria, nenhum dos seus pares lhe concedeu o menor crédito e, cruelmente, não só desprezaram como troçaram atrozmente dos seus artigos, o que o terá levado ao suicídio na tenra idade de 34 anos. Ora nessa mesma montanha Ji existia uma besta, a que deram o nome de boyi, cujas características faziam abrir as bocas de espanto e medo, a quem com ela se cruzava. Possuía este animal a forma aproximada de um bode e como estes bichos ostentava uns cornos salientes. Contudo, o boyi era ainda composto de nove caudas e quatro orelhas. Como se não bastasse tanta bizarria, para aumentar a estranheza do seu aspecto, no farto lombo haviam-lhe nascido dois olhos. Numerosos sábios tentaram explicar as razões para tamanha dissemelhança com as outras bestas e elaborado hipóteses que justificassem a existência de dois globos oculares nas costas do animal. Um deles, vindo do norte do país, carregado de arcaicos alfarrábios enrolados, escritos no alfabeto das tribos manchu, garantia que se tratava do cruzamento de um deus guerreiro, entretanto morto ou desaparecido, com uma cabra selvagem. Esta teoria foi, no entanto, rapidamente refutada pelo facto dos sábios chineses, ao contrário dos gregos, encararem com cepticismo a possibilidade destas anómalas uniões poderem de algum modo ser frutíferas. Assim, mais depressa seguiram a teoria de índole evolucionista de um outro sábio, por acaso nascido perto de Jishan, segundo a qual os dois olhos haviam nascido nas costas do boyi porque, ao longo dos séculos, o animal fôra a presa favorita de ferozes e esfomeados tigres, que o atacavam pelas costas quando ele, distraído, sorvia água num qualquer lago ou ribeiro. A constante repetição deste triste evento teria então feito com que o boyi desenvolvesse aqueles dois olhos no lombo, de modo a dar pela aproximação dos tigres e, imediatamente, em lestos saltos, desaparecer montanha acima para lugares que nem a agilidade dos tigres lhes permitia alcançar. Então, graças aos olhos lombares, quando chegava a hora de se dessedentar, o boyi passou a acercar-se sem temor de rios, ribeiros e lagos, e ainda hoje se acredita que quem usar um pedaço da sua pele no cinto, deixará de sentir medo, seja em que situação for, e alegremente se apresentará na linha da frente da mais estrepitosa batalha.