25 de Abril – 50 anos: Antes de mais, a ética

Foi há 50 anos o 25 de Abril. O dia que marcava o fim de tanta coisa errada e o princípio de tanta coisa certa. O fim da guerra, do atraso, da pobreza, do analfabetismo, do isolamento, da injustiça, da estupidez. Liberdade, Igualdade, Solidariedade. O dia que mudava um país e, sobretudo, mudava as nossas vidas e inaugurava um novo tempo. Um tempo em que se acreditou que era possível. Talvez pela última vez. Um tempo de festa e um tempo de enganos. Ou um tempo de mudança para que tudo conseguisse ficar, mais ou menos, na mesma?

50 anos depois muito melhorou, mas existe uma justiça social por fazer, uma riqueza ansiosa de uma melhor distribuição, um mercado voraz e autofágico a quem ninguém ousa por uma trela.

As questões que o 25 de Abril levantou foram, antes de mais, éticas: somos ou não a favor de uma sociedade mais livre e mais justa, onde todos terão à partida os mesmos direitos e onde mecanismos meritocráticos invalidam o estatuto pela mera posse de bens ou fortuna? Somos ou não por uma sociedade onde todos têm direito aos bens básicos como comida e habitação, educação e saúde, sem distinções e independentemente de origens sociais ou atribulações do destino?

50 anos depois parece-nos ser mais urgente ainda colocar as mesmas questões e ouvir com muito cuidado as respostas. Nada do que nos parecia claro e distinto, em termos éticos e políticos, há 50 anos nos surge hoje sob a mesma luz ou com as mesmas possibilidade de concretização. Os contextos mudaram e nós também. A tecnologia passou a dar cartas nos regimes, controlados pelos mercados, a que chamamos de “democracia” e cujas valências sociais e políticas vemos erodir todos os dias. Estamos num ponto em que existimos sob a temerosa sensação de que tudo pode acontecer.

Talvez agora que assistimos ao regresso farsola de tiques passadistas e ao aparecimento de múmias que, apressadamente, julgámos definitivamente enterradas, seja tempo de melancolicamente nos perguntarmos como chegámos aqui, o que ignorámos, quantas vezes olhámos para o lado, e como podemos (outra vez) resistir. E, sobretudo adquirirmos a consciência de: o que para nós é um registo de farsa, noutros encontra ecos que nos podem levar a uma tragédia.

Os ideais de Abril não alcançam aos 50 anos a sua definitiva maturidade. Pelo contrário, parecem definhar como alguém acometido de precoce doença. Trata-se de uma maleita que está no meio de nós: chama-se indiferença, egoísmo, narcisismo, tiques de uma geração que sonhou mudar o mundo e não foi sequer capaz de se aplanar a si própria, de se manter arreigada aos seus ideais, além de, imersa no frenesim das mudanças, não ter tido a capacidade de passar a sua memória à geração seguinte.

Daí que o Hoje Macau tenha entendido trazer o cinquentenário 25 de Abril para a sua capa, durante esta semana, pela mão e visão de artistas, não somente para celebrar a data mais importante da história contemporânea de Portugal, mas sobretudo como sinal de vida de uma inequívoca resposta às questões éticas que o 25 de Abril levantou, respostas essas que deveríamos ter a coragem de ouvir no interior de cada um de nós.

22 Abr 2024

Álbum reúne imagens de uma colecção privada sobre o GP de Macau

Foi ontem o lançamento do livro “Grande Prémio de Macau – Colecção Pessoal de Victor H. de Lemos, 1954-1978, Volume I (1954-1966)”, na sede da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC).

O livro foi apresentado por Jorge Fão que, entre outras considerações, propôs que o Museu do Grande Prémio comprasse o espólio de Victor H. Lemos, para o exibir nas suas instalações. Para Fão, presidente da Mesa da Assembleia-Geral da APOMAC, “ o novo museu é muito bonito, muito moderno, mas falta-lhe alguma alma”. Algo que o espólio de Victor Lemos poderia, no seu entender, acrescentar.

O autor do livro, Carlos de Lemos, macaense residente no Canadá, interveio de seguida, para revelar que assim cumpriu “o sonho de lançar um livro sobre os primeiros vinte e cinco anos do Grande Prémio de Macau”. Diferente de todos os outros livros lançados anteriormente, este pretende partilhar o extraordinário arquivo que o seu pai, Victor Hugo de Lemos, construiu com uma enorme paixão e afinco desde o seu início, em 1954, até ao ano de 1978.

Questão de justiça

Devido à dimensão da colecção, que finalmente sairá do domínio privado, o que vai permitir uma melhor compreensão da história do evento, Carlos de Lemos optou por dividir a publicação em dois volumes. Com um total de 256 páginas e mais de 250 fotos, este livro tem especial interesse para todos os entusiastas do Grande Prémio de Macau, dado que contém valiosa e diversa informação, provavelmente nunca antes vista ou publicada.

Para além de fotos únicas de todos os carros que participaram no Grande Prémio de Macau durante a primeira década do evento, o livro também tem um interessante registo fotográfico das entregas dos troféus e outros eventos marcantes da ainda grande manifestação desportiva da RAEM.

O livro apresenta também recortes de jornais, bilhetes, crachás, programas oficias, autógrafos dos concorrentes, regras e regulamentos, formulários de inscrição, etc. Para atrair um número ainda maior de potenciais compradores, as legendas do livro estão escritas em português, chinês e inglês.

O preço de capa é de 280 patacas. O produto líquido proveniente da venda será revertido a favor da instituição Macau IC2 Association (I Can Too) que dá apoio a pessoas com autismo e portadoras de outras deficiências.

13 Out 2023

A Via do Meio chega hoje a Portugal

Hoje, dia 25 de Setembro, pelas 18,30 horas, será apresentado no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, o número 1 da nossa revista trimestral Via do Meio, uma publicação em língua portuguesa totalmente dedicada à cultura chinesa, ao que se seguirá a sua distribuição por todo o país. Também hoje, ao mesmo tempo, na RAEM, será distribuído o número 3.

Raramente de Macau algo de regular chegou a Portugal, por isso sentimo-nos também pioneiros, nesta viagem de regresso, que muito tem para contar. Nos porões desta nau, a que chamamos revista, trazemos partes de uma civilização milenar, da sua História, da sua Literatura, dos seus costumes, da língua e das suas crenças, enfim, de uma cultura cujas raízes se estendem vastamente pelo tempo e cuja diversidade ultrapassa quaisquer expectativas.

Esta viagem não começou ontem, nem surge por acaso, ao sabor de um capricho ou de uma disposição momentânea. Pelo contrário,
ela nasceu com o Hoje Macau, logo nos seus alvores, e com o nosso entendimento de que um jornal não deve apenas informar, mas também proporcionar formação aos seus leitores. Sendo um media em língua portuguesa, pareceu-nos desde o primeiro momento importante servir de intermediário entre os que se expressam em português e a cultura chinesa, dando a conhecer a esta comunidade linguística que por aqui vive, as tessituras da cultura daqueles que os rodeiam, permitindo assim um melhor entendimento do que por vezes parece obscuro, além do prazer estético que o contacto com a poesia, a pintura e o pensamento chineses proporcionam.

Sabem os nossos leitores que há duas décadas publicamos regularmente traduções, ensaios, crónicas, entrevistas, etc., no âmbito da cultura chinesa, o que nos proporcionou um excelente acervo que a editora Livros do Meio, também parte do grupo Hoje Macau, tem publicado em livros. Editámos poetas, pensadores, memórias, sobretudo, textos que não se encontravam traduzidos, mas que entendemos como fundamentais para o conhecimento da China. E, como é óbvio, o nosso trabalho não acabou, nem se fica por aqui.

Desde o ano passado que Macau já conhece a Via do Meio. Trata-se de uma revista trimestral que reúne os artigos dos sinólogos que
colaboram connosco. Alguns há mais de uma década, outros companheiros recentes desta viagem de regresso, em que, pela Via do Meio, a língua portuguesa leva os valores orientais para Ocidente, como um dia trouxe os valores ocidentais para Oriente. E, finalmente, agora que chegámos a Portugal, é a todos esses companheiros de viagem que tenho de agradecer terem embarcado nesta nau onde se fala a China em português e realizado esta aventura sem procelas.

Ao que se diz, mais do que a viagem, mais do que chegar ao destino, o que importa é quem vem connosco.

PS: Antes do Natal, começaremos a publicar livros sobre cultura chinesa em Portugal, através da editora Grão-Falar. Alguns são grandes novidades. Hão-de ouvir falar disso.

25 Set 2023

Ser toda a gente e toda a parte

Os falantes de cantonense gostam de brincar com os sons das palavras e, por isso, como 2 (yi) é homófono de “fácil”, 22 será “fácil- fácil”, ou seja, um número positivo, benevolente, prenunciador de boa fortuna. Ora para o Hoje Macau, que neste dia 5 de Setembro de 2023 completa 22 anos, o actual estado do sítio não pode ser considerado “fácil”. Porque não o é.

Connosco estão milhares de cidadãos de Macau cujas vidas foram profundamente alteradas pela pandemia. Pessoas cuja sobrevivência não depende dos turistas, não têm a sua sobrevivência ligada ao Jogo, mas que transformam esta cidade em algo mais que um gigantesco casino. São as pessoas reais, com problemas reais e vidas realmente prejudicadas e cuja retoma parece nunca mais chegar.

É certo que o Jogo retomou os seus lucros e os respectivos impostos ajudam o Governo a encher os cofres, esvaziados em parte pela incompetência demonstrada nos investimentos. Como também é certo que isso não abrange grande parte da população. São inúmeras as vozes que exigem ao Governo mais criatividade de modo a resolver os problemas deixados por três anos de inércia. Mas parece que Ho Iat Seng, tal como o seu antecessor, tem dificuldade em ouvir os lamentos da população. Ou, então, não encontra meios de responder de forma satisfatória.

De algum modo, este Executivo está a desapontar a população que tanto acreditou nele e, sobretudo, na existência de uma real proximidade. Só que quando as dificuldades apertam vemos o Governo preocupado com o futuro quando todos gostariam que se preocupasse com o presente, porque esse é que é o real, a vida de todos os dias, na qual temos cada vez mais dificuldades de manter a qualidade prometida.

Não, não nos esquecermos da promessa de Edmond Ho de uma “sociedade de excelência”, reafirmada por Chui Sai On. Quando todos os dias vemos que as pessoas, ali do outro lado das Portas do Cerco, dão por crescimento da sua qualidade de vida, como podemos encarar facilmente a regressão de Macau? A pandemia não servirá de desculpa para tudo. Encaremos o futuro com respeito mútuo, benevolência e sabedoria.

*

Neste mundo que se quer e que vai ser multipolar, o Hoje Macau tenta cumprir o seu papel. Isto é, dar a conhecer em língua portuguesa esta extraordinária civilização que aqui nos acolhe e cujo papel no planeta não pára de crescer.

Como sabem os nossos leitores, temos publicado diariamente, na nossa secção “Via do Meio”, numerosos artigos sobre cultura chinesa que, trimestralmente, são refundidos numa revista. Chegamos este mês ao nosso terceiro número, que em breve estará disponível.

Só que, entretanto, Macau transborda para Portugal e o primeiro número da “Via do Meio” vai, ainda este Setembro, ser publicada em lusas terras. Cumprimos assim o nosso desiderato de não fazer de Macau um ponto abúlico, mas sim um centro de divulgação da língua portuguesa no Oriente, um lugar de tradução de chinês para português, uma cidade onde existe, a par com um Fórum económico, uma produção cultural que aproxima a China dos países onde se fala a língua portuguesa.

Pretendemos assim desempenhar o papel indicado por Agostinho da Silva que, em palavras transmitidas por Luís Sá Cunha, terá afirmado que é tempo de os portugueses empreenderem o caminho inverso ao que percorreram nos Descobrimentos, ou seja, ao invés de trazer a cultura Ocidental para o Oriente, levar a cultura Oriental para o Ocidente, isto é, unir o que se encontra separado. Porque esse foi sempre e deve continuar a ser o nosso papel, o nosso sonho, o nosso desejo íntimo, fundado na Batalha de Ourique, desenvolvido por António Vieira, refundido por Pessoa e recuperado por quem sonhou Abril: ser toda a gente e toda a parte.

5 Set 2023

O Gu e o Da E

É sobejamente conhecido que os excessos da juventude acarretam, por vezes, consequências trágicas e irreparáveis. Infelizmente, a história fervilha de exemplos que vão do malogrado Ícaro a ídolos recentes do rock’n roll, ancorados em razões que ultrapassam o nosso modesto objectivo. Ora também a famosa Montanha do Sino, na parte norte da Cordilheira do Oeste, assistiu a uma história do género com repercussões na fauna que desde então ali passou a habitar.

Em tempos já esquecidos, reinava na Montanha do Sino um deus chamado Zhuyin (Dragão-Tocha), que era suposto ser responsável pela luz e pelo breu, pela chuva e pelo vento. Além dele, nesta montanha abençoada, cabriolava também o seu filho Gu (que significa Tambor), geralmente na companhia de Qinpi, seu amigo de folguedos.

Com o tempo, as brincadeiras de rapazes tornavam-se cada vez mais ousadas e distantes da protecção paterna. Os dois mancebos atreviam-se a fazer incursões noutras terras, por vezes distantes da sua montanha natal. E foi precisamente numa dessas temerárias excursões à encosta sul do Monte Kunlun que Gu e Qinpi mataram Baojiang, ele próprio um deus menor. A razão que os levou a cometer este teocídio não é relatada em nenhum documento credível. Provavelmente, nenhuma razão os movia, a não ser demonstrarem a si mesmos o seu poder: coisas de rapazes com problemas de afirmação identitária que, pelos vistos, também ocorrem entre seres divinos.

No entanto, apesar da tenríssima idade dos dois meliantes, o crime não ficaria impune. Ao saber da morte de Baojiang, o Imperador do Céu (outras fontes garantem ter sido Huangdi, o Imperador Amarelo) condenou-os à morte e ele próprio os executou sobre um abismo situado nos contrafortes da Montanha do Sino.

Sendo seres de origem divina, ao morrerem imediatamente se metamorfosearam em dois animais de singulares características. Gu adoptou a forma de uma ave com corpo de coruja, bico direito, marcas amarelas e cabeça branca que, quando resolve emitir sons, o que lhe sai da garganta é semelhante ao canto do cisne, embora no grasnar do Gu não sejam reconhecidas tendências mórbidas.

A tradição afirma que avistar um gu é sinal de que uma grande seca vai afligir aquela região. De notar ainda que, na sua primeira vida, antes de ter ocorrido a referida metamorfose, Gu possuía um corpo de dragão encimado por uma cabeça humana.

Já da antiga forma de Qinpi não existe descrição. Sabemos é que, depois de executado, se transformou numa fabulosa ave de rapina, com corpo de águia, salpicado de negro, cabeça branca, garras de tigre e bico encarnado.

Dão-lhe o nome de Da E, que significa Grande Falcão. A sua aparição, temperada por assustadores grasnidos, é augúrio da proximidade de uma guerra fratricida.

E, nestes preparos, assim andam os dois pela Montanha do Sino: duas aves de rapina, talvez inseparáveis, senhoras dos céus e das encostas escalavradas daqueles montes perdidos na imaginação da China Antiga.

18 Ago 2023

O Man-man

Ele há quem se interrogue perante determinados fenómenos naturais se estes não terão sido criados para induzir na humanidade determinados valores, incitar a certos comportamentos e evitar outros, como se a própria Natureza fosse um imenso livro de moral, quiçá de religião. E há, é claro, quem troce deste pressuposto, sublinhando que na Natureza existem exemplos capazes de satisfazer os mais opostos argumentos e nada fora do ser humano deve ser considerado na construção de uma verdadeira moral. Isto apesar do que é verdade e justo aqui nesta cidade, passa por aberração e mentira naquela, e assim por diante…

Ora tomemos o seguinte exemplo. Pelo monte Chungwu esvoaça um pássaro, cujas características já fizeram a desgraça de incontáveis pedras de tinta, dada a quantidade de textos que a sua existência estimulou. Poderia, afinal, tratar-se apenas de mais uma espécie de pato selvagem, como existem tantas outras, nos céus imensos da China. Mas não. De seu nome man-man, trata-se de uma ave que apresenta o surpreendente predicado de cada indivíduo desta espécie contar apenas com um olho e uma asa.

Esta peculiaridade acarreta ao man-man a obrigação de se juntar a outro da mesma espécie para conseguir levantar voo e cruzar os céus, ou seja, de voar em par. De uma forma geral, um man-man não consegue sobreviver ou sequer desempenhar quaisquer tarefas sem a presença de outro. Em geral, um man-man macho junta-se a uma fêmea, mas têm sido detectados casos em que duas fêmeas ou dois machos empreendem juntos o voo e a vida.

Inevitavelmente, a descrição do man-man remete-nos para o mito do andrógino, tal qual nos narra Platão. Nele se descreve um tempo arcaico em que seres completos, possuindo características femininas e masculinas, capazes de se auto-reproduzir, terão irritado os deuses, devido à sua vaidade e arrogância. Para os castigar e pôr termo a esta situação, os divinos seres cortaram os andróginos ao meio, condenando assim cada metade a desesperadamente procurar a outra, o que explicaria os desvarios do amor.

Se o andrógino do mito grego é castigado pelos deuses e tal explica a origem de seres divididos pela metade, já sobre o man-man chinês paira um turvo silêncio quanto à sua origem. Nada nos textos nos remete para um excesso de vaidade, arrogância ou pesporrência que tivesse condenado esta estranha ave a procurar a outra metade para sobreviver. Nada nos indica que, noutros tempos, as duas metades do man-man tivessem estado juntas. A necessidade do outro não deriva de um castigo, mas de um aflitivo estado natural, que nada deve a intervenções divinas.

Na mitologia chinesa antiga, avistar um man-man era considerado de mau agoiro. Contudo, a partir da dinastia Han, a sua dupla figura começou a surgir em decorações funerárias como símbolo do amor conjugal e assim se espalhou pela cultura popular até aos nossos dias e mesmo para além deles.

6 Ago 2023

Euforismos

Ter nascido não é um erro, mas uma equação irresolúvel.

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Errar não é humano, é cósmico. Tudo isto se assemelha a um erro gigantesco.

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Viemos das estrelas, mas a elas não voltaremos. A queda é irreversível.

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Fomos abandonados por um Deus que nunca foi.

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É patético o esforço de alguns filósofos quando pretendem convencer-nos do “prazer de viver”.

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Espaço e tempo: os dois se conjugaram para me tramar.

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O corpo é o embrulho de um presente envenenado.

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O melhor do ser humano é a capacidade de se saber desprezível.

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Quem que se crê livre é prisioneiro da sua própria arrogância.

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Viver com intensidade é o mesmo que um incêndio em terra queimada.

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O pior que pode acontecer é ter algum sucesso. Verás ser uma porta que te leva
à vacuidade de tudo. Onde, afinal, já abundantemente te banhavas.

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Omnia sunt sine ratione. Pensar é um exercício fútil quando em causa
não está a sobrevivência ou o prazer.

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A realidade é, em si mesma, infinita. Pretender dominá-la, compreendê-la em toda a sua extensão, é um sintoma de loucura.

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Teremos o dever de relatar o universo, mas a esse relato juntemos sempre
uma imprescindível nota de humildade.

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Por mais que me iluda, a razão regressa para me humilhar. Tenho então de a ouvir, eventualmente entender, mas nunca crer totalmente nos mundos que ela habilmente arquitecta.

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A constante dúvida pinta-nos um mundo difícil, talvez horrível.
Mas é com esse mundo que temos de saber viver.

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Acreditar numa verdade, é acreditar na exclusão, numa pobreza formatada da realidade.

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O século XIX acreditou na existência de génios.
Depois um vento frio desembaciou o espelho.

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O amor pelo outro é o reconhecimento da nossa profunda incompletude.
Isso, por outro lado, dota-o de uma arrepiante e ficcionada beleza.

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Digo-me: deve haver coisas que eu amo.
E rio-me deste esforço tonto para não levar a arma à boca.

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O desespero não é um sentimento. É uma condição.
Advém da constatação do nada, ou seja, de um mero olhar à volta.

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Ser poeira não é pessimismo, mas uma aspiração.

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O espectáculo da natureza: quanto mais belo, mais deprimente; porque plasma ali mesmo à minha frente, sem qualquer piedade, a dimensão da minha insignificância.

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O sublime é ofensivo.

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O fedor a podre é a verdadeira metáfora do tempo.

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Criar, criação, criadores, criativos! O melhor mesmo é criarem galinhas.

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Quando a ideia de ouvir música te exaspera e o silêncio te deprime, o que hás-de então fazer?

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O silêncio aporta um horror apocalíptico. Ninguém se quer ouvir demais.

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Só o que é doloroso nos faz sentir realmente vivos. Resta saber se vale a pena.

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Chego da rua, quero regressar a mim e não consigo.
Constato então que, provavelmente, não existo.

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Pensar é a doença da mente que nos faz perder a noção do ridículo.

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São o desespero e a raiva que ainda me obrigam a andar. A ver se depois fico liso e triste,
até a tristeza se tornar insuportável de tão inútil, tão parada, tão bovinamente melancólica.

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A existência seria absurda se não fosse meramente cruel.

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O pensamento é o ópio de uma aristocracia inexistente.

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Numa sociedade perfeita cairia a máscara da nossa utilidade.

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A utopia conduz-nos ao silêncio dos mortos a haver.

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D’après Shitao:
Vemos o mundo pelos olhos dos mortos,
embora não seja a barba deles o que nos cresce na face.

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O êxtase que uma pintura me provoca é um processo lento.
O tempo necessário para criar uma fantasia e nela me banhar para sempre.

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No século XX, a arte fez uma estrondosa colecção de becos sem saída.

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O minimal repetitivo exprime a sinceridade de quem compreende nada mais ter para dizer.

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A imaginação foi sobrevalorizada enquanto se acreditava no indivíduo.

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O individualismo é uma ambição ignorante. Talvez por disso ter consciência inicial,
procurei melancolicamente ir colmatando essa falta.

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O nojo de me saber gregário.

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Uma página em branco é o meu verdadeiro espelho.

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Um raio de luz entra pela minha janela e volutas de fumo percorrem-no em silêncio.
Para quê ir ao museu, se a arte não passa de uma contemplação do efémero?

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Tudo o que nos dizem ser infinito, não o é porque nos dizem. Se fosse, ninguém teria a capacidade de dizê-lo. Pergunto-me então o que existirá realmente infinito por descobrir ou para além de qualquer possível descoberta. Indizível. Indefinível. Infinito.

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Por vezes, obrigo-me a andar, a visitar as cidades. Só para mitigar o facto de saber
que não deixo nunca de estar parado e a isso dar alguma justificação.

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De nada adianta percorrer o planeta, porque ele hoje não passa de uma enorme favela.

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Algumas tribos praticavam um canibalismo ritual.
A civilização não se dá ao incómodo da cerimónia.

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Felizmente que quando comeram o Capitão Cook tiveram o bom gosto de não o cozinhar.

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Existimos num único plano, num desenho em espiral que não chegamos a completar.

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O narcisista não se olha ao espelho porque se crê belo. Quem regressa obsessivamente
à sua imagem é porque tem medo, a cada momento, de ter deixado de existir.

*

Folheio mentalmente um cardápio de nuvens. Organizo por géneros, formas, comportamentos. Farto de me ver, invoco o vento, esqueço tudo, tudo se esvai.

*

Passeio atormentado pela consciência do erro, da sua inevitabilidade. Subo jardins, desço vales, desemboco em ruas largas, avenidas imperiais. Aí percebo que me enganei no caminho.

*

Saturei o silêncio de ideias para depois reparar que elas não estavam sozinhas.
Um gotejar martelante, um motor distante, um amor por saber, uma raiva por nascer,
outra conhecida, uma necessidade imperativa e mais…
As ideias sentaram-se no canto de uma sala que acreditara vazia.
Não estava. Há demasiadas coisas à nossa volta.

*

Por baixo de qualquer pensamento, por baixo de qualquer acção, resfolgam os monstros.

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Estar sozinho não passa de uma reconfortante ilusão.

*

Nasci, cresci, envelheci. Nada disto faz sentido.

27 Jul 2023

Ó raparigas do meu bairro!…

Curioso inquérito realizado há algum tempo na Universidade de Macau às raparigas: o sonho de quase todas é casar, ter filhos e tomar conta do lar. Portanto, estas candidatas a fadas (do lar), se puderem, não tencionam seguir uma carreira, dedicar-se a uma profissão, no fundo, ter uma individualidade social. Convenhamos que este tipo de desejos não parece estar muito de acordo com o espírito do tempo. Ou será que está?

No Ocidente, desde o século XX que a mulher tem vindo a ocupar um lugar importante no plano da produção. Há mesmo quem diga que a superioridade ocidental passou, em grande parte, por ter aproveitado a força de trabalho feminina ao invés de as deixar em casa a tomar conta dos filhos e outras actividades domésticas. O escritor marroquino Tahar ben Jalloun diz que o seu país conhecerá um desenvolvimento sem precedentes no dia em que as mulheres ocuparem o espaço público, na medida em que lhes reconhece uma capacidade de trabalho, de organização e seriedade que não encontram na sua contraparte masculina.

Contudo, a saída da “casca” das mulheres não deixou de ter efeitos que alguns consideram negativos, nomeadamente na educação das crianças, cuja emotividade se desenvolverá de modo bem diferente sem a constante presença das mães. O curto tempo de amamentação provoca também, segundo a psicanálise, o aumento de carências orais, que se reflecte mais tarde em numerosos vícios, adicções e comportamentos violentos. Seja como for, não passa quase pela cabeça de ninguém inverter o actual estado das coisas. Ninguém (ou muito poucos) pensará em remeter as mulheres à vida que levavam no passado e ninguém ousaria imaginar que seriam as próprias mulheres a prescindir do seu actual estatuto e desempenho para se remeterem ao remanso do lar.

Pois em Macau, pelos vistos, a coisa não funciona como se esperaria. O mulherio, longe de pretender dedicar-se à política, às finanças, ao ensino ou ao comércio, parece mais inclinado a deitar fora as conquistas do seu sexo e voltar à vidinha doméstica que durante tantos séculos foi seu apanágio e destino. Por quê? É caso para perguntar.

Estarão as raparigas da universidade muito à frente ou muito atrás? Serão estas moçoilas de Macau uma vanguarda conservadora no mundo contemporâneo ou umas atrasadas mentais, preguiçosas e fúteis? Terão as mulheres de hoje chegado à conclusão que a vida de antes era melhor e mais eficiente, no cômputo geral, ou não estão simplesmente para a agarrar pelos cornos, preferindo agarrar os do marido, afinal mais manso que a vida? Pois não sei. Mas é caso para reflexão. E devia ser mais ainda por parte dos responsáveis políticos por esta terra, na medida em que assistem ao produto da educação que lhes proporcionaram e do ambiente cultural e social de que as rodearam. Numa palavra: são estas as mulheres que queremos?

É certo que o modelo tai-tai (mulheres casadas com um marido rico, viciadas em compras e beauty care) tem grande projecção em Hong Kong e por extensão em Macau. Mas estas senhoras têm, em geral, muito pouca educação e são, afinal, gozadas um pouco por toda a sociedade que lhes reconhece os ultrajantes tiques de futilidade. As tai-tai, sobre as quais existem dezenas de anedotas, não deveriam ser invejadas, mas constituir um modelo daquilo que as raparigas de hoje não querem ser. Não é que eu considere que o trabalho dá dignidade, mas a independência sim e ser dependente de um outro ser humano, nomeadamente do ponto de vista financeiro é, no mínimo, confrangedor.

Não chega por isso utilizar o modelo tai-tai para explicar as respostas das moças de Macau. Existe, isso sim, aqui um culto da preguiça e do dolce far niente que este regime casinodependente tem vindo a reforçar. As consequências não tardam em chegar. Elas são profundas, são mentais, duram gerações. Se o governo não implementar políticas de dignificação do ser humano em breve terá nos seus braços uma sociedade de inúteis e atrasados mentais. Desde o tempo dos portugueses que venho avisando neste sentido, agora o resultado começa a estar à vista.

Ó raparigas do meu bairro! Vamos lá a ter outro tipo de atitude! Deixem lá os cornos do gajo e agarrem os da vida! No fim, no finzinho, garanto que vale a pena. Se a vossa alma não for pequena. Se for, OK; regridam que daí não virá um mal especial ao mundo.

2 Jul 2023

Três prosas avulsas

O ORIENTALISTA ACIDENTAL

Em ouvidos europeus o termo Ásia desperta uma série infindável de ressonâncias que, geralmente, remetem para o âmbito de um imaginário impregnado de fantasmas cujas características vão do terrível ao sedutor. Afinal, a Ásia, o Oriente, são, antes de mais, invenções de uma Europa que necessita da diferença para afirmar a sua identidade.

É algo fruste limitar a sua compreensão à questão geográfica: Ásia como continente, massa de terra imensa, na medida em que as distinções culturais são radicais. O que tem em comum o asiático do Líbano com o asiático japonês? Poderemos falar numa unidade cultural asiática? É claro que não. A adoptarmos a mera definição geográfica, a Europa seria então uma mera península asiática.

O termo Ásia é muito antigo e a sua origem tem sido explicada de variadas formas. Os Gregos utilizavam-no para designar as terras que ficavam a Leste da sua própria terra, num momento do saber Europeu em que a maior parte daquilo a que hoje chamamos Ásia era completamente desconhecida. É também possível que o termo tenha chegado ao grego a partir do Assírio «asu» que também quer dizer Leste. Seja qual for, na realidade a sua origem, a verdade é que se trata de um termo Ocidental para designar algo de não-Ocidental e nenhum povo dos que hoje consideramos asiáticos o criou e reconheceu nele a sua identidade. Não existe nenhum termo equivalente em nenhuma língua asiática, nem sequer no domínio do discurso geográfico.

É que, ao contrário da Europa onde é clara a existência de uma identidade claramente homogénea, baseada em idênticas características raciais, religião, hábitos e ex- pressões artísticas, a Ásia não é de todo homogénea em nenhum destes pontos de vista e no seu seio existe uma enorme diversidade racial, étnica, religiosa e comporta- mental, que a Europa esqueceu, na medida em que em jogo estava a afirmação da sua própria identidade pelo confronto com a diferença. Se esta diferença englobava em si diferenças talvez ainda mais radicais, isto não foi tomado em conta, nem determinante para que se verificasse uma exclusão do conceito. Para os Europeus não importava se os asiáticos se reconheciam enquanto tal porque eles eram essencialmente não-Europeus. Basta recuarmos até ao século XVII, quando a Ásia era pouco mais que a Turquia, na qual se pensava quando foi forjado o conceito de “luxo asiático”, estando muito distante, então, da imaginação europeia a existência de um “luxo extremo-oriental”.

Assim, como diz Edward Said, o Oriente é praticamente uma invenção europeia e foi, desde a Antiguidade, um lugar de romance, de seres exóticos, de experiências estranhas e bizarras. Este facto aparece registado em milhares de páginas de literatura ocidental , especialmente em certos períodos como por exemplo o romântico século XIX. O Oriente terá sido produzido pela Europa, através de discursos que se alargam às mais variadas áreas: política, sociologia, etnologia, ideologia, literatura, etc.. A ideia do Oriente reveste-se assim de uma história e de uma tradição própria, com um vocabulário próprio, e que constitui parte do corpus teórico ocidental. De certo modo, com a propagação das colónias europeias pela a Ásia do século XIX, o Oriente foi orientalizado pela própria Europa que aí aplicou as suas categorias do que era suposto esse Oriente ser.

Mas há mais. Ainda segundo Said, a questão acaba também por ancorar, por se basear, numa relação de poder e de domínio, com variadas formas de hegemonia. O Oriente terá sido orientalizado não porque se descobriu ser «oriental», tal qual era concebido e imaginado por um europeu do século XIX, mas porque podia de facto ser tornado «Oriental» através agora de uma aplicação concreta das categorias ocidentais do orientalismo às colónias do Oriente.

O caso mais flagrante é a imagem da mulher oriental na sua relação com o homem do Ocidente. A oriental não fala do homem, não comenta a sua virilidade, não exprime as suas emoções, não tem história pessoal, é submissa. O homem ocidental descreve essa mulher, cria-lhe atributos, de certo modo fala por ela. Este imaginário revela muito mais uma projecção do desejo europeu de domínio óbvio dos povos asiáticos, do que propriamente uma realidade factual.

No entanto, por muito que isso custe a Said, o discurso sobre o Oriente não deve ser encarado como uma amálgama de mitos e mentiras. A verdade é que ele se instituiu como um corpo teórico e prático, tornado consistente ao longo de várias gerações do pensamento ocidental e cuja importância é crucial, sobretudo para compreender esse próprio pensamento e práticas, mais do que o que elegeu como objecto.

Mas foi também este discurso que, durante o século XX, na sua auto-crítica, introduziu a Razão como categoria para a análise da História e do Poder, algo que muito surpreendeu e atemorizou os regimes orientais, por um lado, e por outro lhes permitiu enfrentar decisivamente o século XXI.

OS OSSOS

O livro da dinastia Ming “A Criação dos Deuses” narra episódios interessantes. Um deles – na verdade em dois parágrafos – conta o seguinte:

Dera o príncipe Wen ordens para que fosse construí- da uma piscina num dos terraços do seu palácio. Passava o monarca pelas obras quando reparou num estranho volume transportado por dois servos.

– O que é isso, que levais aí?, perguntou o príncipe.

Eram os ossos, já meio desirmanados, de um esqueleto antigo, anónimo, encontrado durante as escavações. Iam ser deitados fora.

– Tragam aqui os ossos – disse o soberano – , coloquem-nos numa pequena urna e enterrem-na na encosta. Seria um crime deixá-los assim expostos só porque resolvi construir uma piscina.

Estas foram as ordens do príncipe que muito maravilharam as suas gentes:

– Que divina virtude – comentaram – A bondade do nosso senhor estende-se até aos ossos dos mortos. A sua benevolência em toda a parte é sentida e cada uma das suas acções está de acordo com a vontade do Céu.

“A bondade do nosso senhor estende-se até aos ossos dos mortos.” Na verdade, foi esta frase que me chamou a atenção. É que o governante não deve estar em demasia alheado do que não é de hoje se quiser tomar boas decisões para o amanhã. Deve ter em consideração “os ossos dos mortos”, respeitá-los, pois quem respeita será respeitado.

Isto é verdade na China, como é verdade nesta sua pequena parte chamada Macau. Wen e Wu foram dois grandes soberanos (c. 1000 a.C.); neles se incarnaram algumas das principais virtudes que devem assistir quem detém o poder.

DEZ MIL GERAÇÕES

“Enriquecer é glorioso”, terá dito Deng Xiaoping e muitos atribuem a esta frase o despontar do capitalismo na China contemporânea. Mas, ao que parece, enriquecer aqui significa enriquecer em conjunto, colectivamente, e não o enriquecimento individual, de acordo com o modelo das sociedades ocidentais.

Se for esse o significado pretendido por Deng, mais não fez que repetir Confúcio pois o Mestre afirmou que para se crescer é preciso que ao lado os outros também cresçam.

Para caçar o rato, ou seja enriquecer, não importa a cor do gato, disse também o Grande Arquitecto. Por isso, a China enveredou pela existência de empresas privadas capazes satisfazer o mercado interno e mesmo de rivalizar com as suas congéneres mundiais.

E este gato preto foi ganhando cada vez mais poder, mais espaço, mais influência, enquanto o gato branco definhava sem, no entanto, perder o controlo da nação. Entretanto, gatos cinzentos surgiram um pouco por toda a parte e a China enriqueceu.

Segundo Xi Jinping, não o fez de forma harmoniosa pois abriu-se um fosso entre os pobres e os muito ricos, alimentando a corrupção, que urgia eliminar. Assim se fez. E é uma China mais harmoniosa que prepara a sua entrada numa Nova Era em que o sonho chinês se irá realizar.

Algures, neste reino maravilhoso, Deng Xiaoping joga go com Confúcio e, ao terceiro copo de vinho de arroz, confessa-lhe a sua admiração: “Mestre, estou preocupado com a persistência da sua sabedoria. Devíamos limitar a sua influência a dez mil gerações.”

18 Mai 2023

Uma visita histórica

O Chefe do Executivo de Macau inicia hoje uma visita a Portugal, a primeira ao estrangeiro do seu consulado tolhido pela pandemia. Este facto reveste-se de especial significado: indica o grau de importância que a China atribui às relações de Macau com o nosso país e com o mundo lusófono. É, claramente, um grau elevado. Mais do que nunca, Pequim deposita na RAEM a responsabilidade de aprofundar relações com a lusofonia em geral e, especialmente, com Portugal. Trata-se, por isso, de uma visita histórica a que convém reconhecer o simbólico significado.

Ora esta importância dada ao incremento das relações com os países lusófonos, que por desígnio nacional fatalmente assombrará Macau nas próximas décadas, só pode ser uma notícia positiva para a comunidade lusófona residente. Assistimos, nos últimos três anos, a um regredir da nossa presença, como assistimos a um regredir de tudo, por via das restrições impostas pela pandemia. Contudo, acreditamos que entrámos numa fase de recuperação, que não será imediata ou instantânea, na qual veremos alguns regressos e novas chegadas.

A visita de Ho Iat Seng a Portugal, com a carga simbólica que carrega, reafirma claramente o desejo de manutenção de boas relações e da presença em Macau da comunidade portuguesa, sem criação de conflitos e tentando evitar mal-entendidos.

Repare-se também que decorreu, recentemente, a visita do presidente do Brasil à China. A mensagem parece ser clara: o papel de Macau não abrangerá o domínio das trocas económicas entre os dois gigantes, mas deverá estimular sobretudo as relações com Portugal, Timor e os países lusófonos africanos. (Reconhecendo esta situação, há duas semanas nas páginas do Hoje Macau, o professor Flávio Tonnetti, defendia que, no entanto, a RAEM poderia desempenhar um papel relevante nas trocas culturais entre Brasil e China, posição que obviamente partilhamos.)

Mas a visita de Ho Iat Seng é também muito importante para o Governo de Macau. E é-o porque chegou o momento de mostrar capacidade de diálogo, de acção e, sobretudo, de eficácia. O modo como correr este périplo contará e muito para avaliação que posteriormente será feita por Pequim do modo como Macau cumpre ou não um dos mais importantes dos desígnios que lhe foram destinados pelo Governo Central: as relações com os países lusófonos.

Ho Iat Seng e a sua delegação terão de demonstrar capacidade para estabelecer pontes e relações com Portugal, saber evitar escolhos e dificuldades e compreender que Portugal é uma importante porta para a Europa e para África, muito mais aberta que a de outros países membros da União Europeia. Se não o fizer ou souber fazer, desapontará os líderes chineses. O difícil momento que o mundo atravessa é mais um desafio que dificulta o caminho a ser percorrido nesta visita histórica. Ho Iat Seng e os seus conselheiros terão de saber palmilhar. Assim se tenham preparado para isso. Afinal, “uma batalha é ganha antes de ser travada”.

17 Abr 2023

Analectos – o principal livro do confucionismo

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO I

學而 (Xue Er)1

ESTUDAR

1.1. O Mestre disse: “Estudar para aplicar na altura certa2 aquilo que se aprendeu – não será isto uma fonte de prazer? Ter amigos que chegam de partes distantes – não será isto uma fonte de alegria? Suportar sem acrimónia não ser reconhecido pelos outros – não será isto a marca de uma pessoa exemplar (君子 junzi)?”3

1.2. Mestre You4 disse: “Desafiar a autoridade é algo muito raro em alguém que tem o sentido do dever filial e fraternal (孝弟xiaodi). E nunca se ouviu que aqueles que não têm gosto em desafiar a autoridade apreciem dar início a rebeliões. As pessoas exemplares concentram os seus esforços na raiz, pois quando a raiz se fixa, a partir dela a Via (道 dao) crescerá. E não será o dever filial e fraternal a raiz da benevolência (仁 ren)?”5

1.3. O Mestre disse: “Hábeis palavras e faces afáveis raramente albergam verdadeira humanidade (仁ren).”
1.4. Mestre Zeng disse: “Todos os dias examino a minha pessoa relativamente a três aspectos. Nos meus trabalhos para bem dos outros, terei lealmente oferecido o meu melhor? No meu convívio com colegas e amigos, terei sido sincero? Aquilo que me foi transmitido, tê-lo-ei realmente aprendido?6
1.5. O Mestre disse: “A via para reger um reino de mil carros de combate com eficácia é desempenhar os deveres oficiais com respeito e cumprir a sua palavra; ser frugal nas despesas e amar os seus pares; e usar o povo apenas na estação apropriada do ano.”7
1.6. O Mestre disse: “Enquanto irmão mais novo e enquanto filho, sê filial (孝xiao) em casa e age com deferência (弟di) na comunidade; sê reservado no que dizes e cumpre sempre a tua palavra; sê amável com todos mas apenas íntimo daqueles cuja conduta é benevolente (仁 ren). Se depois de assim te comportares ainda te sobrar energia, usa-a para te cultivares através do estudo.”8
1.7. Zixia9 disse: “Quanto às pessoas que prezam mais o carácter do que a beleza, que no serviço de seus pais são capazes de se aplicar devotadamente, que se colocam sem reservas ao serviço do seu soberano, e que no convívio com colegas e amigos cumprem a sua palavra – mesmo que delas fosse dito que não tinham frequentado qualquer escola, eu insistiria que são deveras bem educadas.”
1.8. O Mestre disse: “As pessoas exemplares a quem faltasse gravidade não teriam dignidade e o seu saber seria frágil. Que o teu fio condutor seja fazeres o teu melhor e cumprires a tua palavra. Não tenhas como amigo ninguém que não valha tanto como tu.10 E, quando errares, não hesites em emendar a tua conduta.”
1.9. Mestre Zeng disse: “Sê circunspecto nos serviços funerários, mantém os sacrifícios aos antepassados distantes e a virtude (德 de) do povo comum florescerá.”
1.10. Ziqin perguntou a Zigong11: “Quando o Mestre chega a um dado Estado e precisa de saber como este é governado, será que procura a informação ou esta é-lhe oferecida?” Zigong respondeu: “O Mestre obtém tudo o que necessita sendo cordial, contido, deferente, frugal e despretensioso. É provável que este modo de procurar informação seja diferente do modo como outros a obtêm.”
1.11. O Mestre disse: “Estando o pai vivo, julgue-se o filho pelas suas intenções; quando o pai morre, julgue-se o filho pelo que faz. Alguém que, durante três anos, se abstém de reformar os modos de seu falecido pai pode ser chamado um descendente filial.”12
1.12. Mestre You disse: “Na prática dos ritos (禮 li), atingir a harmonia (和he), através dos correctos procedimentos, é o mais precioso. Ela faz a beleza da Via e das instituições dos antigos reis, sendo um padrão de conduta em todas as coisas, grandes e pequenas. Mas realizar a harmonia pela harmonia sem respeitar as regras cerimoniais dos ritos (禮 li) não trará quaisquer resultados.”13
1.13. Mestre You disse: “É na medida em que o respeito à palavra dada corresponde à rectidão (義 yi) que as promessas devem ser cumpridas. Se a deferência seguir o rito (禮 li) mantém à distância a desgraça e o insulto. Quem age sem ofender e perder os que lhe são próximos também é merecedor de estima.”14
1.14. O Mestre disse: “As pessoas exemplares contentam-se com uma alimentação frugal e uma habitação humilde. São ardentes a agir e reticentes com as suas palavras. Andam junto a homens virtuosos e na sua companhia se corrigem. De tais pessoas deveras se pode dizer que têm amor pelo estudo.”15
15. Zigong disse: “O que pensas do ditado: Pobre mas não inferior, rico mas não superior?” O Mestre respondeu: “Não é mau, mas não é tão bom quanto: ‘Pobre mas desfrutando a Via, rico mas amando os ritos’.”16 Zigong disse: “O Livro das Odes afirma: ‘Como osso esculpido e limado, / como jade cortado e polido.’ Não é isso que tens em mente?”
O Mestre disse: “Ci, só com alguém como tu posso discutir as Odes! Com base no que foi dito, tu sabes o que está para vir.”
16. O Mestre disse: “Não te preocupes com não seres reconhecido pelos outros, preocupa-te com o facto de não os reconheceres.”17

Notas
Não é por acaso que o primeiro capítulo dos “Analectos” surge subordinado ao tema “estudar”. Com efeito, Confúcio encara a educação dos indivíduos como o meio para atingir a reforma da sociedade e assim se construir um modelo ideal de relações humanas, na qual o indivíduo possa desenvolver ao limite as suas naturais capacidades. Não se trata, no entanto, de uma mera aquisição de conhecimentos, algo que o Mestre considera insuficiente. Como é referido logo nas primeiras sentenças, o mais importante será saber quando e como aplicar esses conhecimentos. E se é na prática que o conhecimento se revela precioso, a sua eficácia só adquirirá valor se for balizado por uma ética cuja objectivo é dotar cada sujeito da capacidade de agir com benevolência (仁ren), sustentada pela rectidão (義yi) e pelo cumprimento de pressupostos rituais (禮li) modelados nos valores e hierarquias da piedade filial (孝xiao). A rectificação da natureza moral (xing) de cada sujeito passa então pelo cultivo de si (修身 xiushen), por uma educação que permitirá expurgar de cada coração (性 xin) os desejos egoístas e participar plenamente na construção de uma sociedade onde, quando realizada, predominará a harmonia.
2. “na altura certa”, shi 時. Este caracter tem sido interpretado de dois modos diferentes: por vezes, significa “repetidamente”; doutras “momento oportuno” ou “altura certa” porque também se refere às estações do ano e ao momento em que o Filho do Céu ritualmente as marcava.
3. Neste primeiro terceto de afirmações imediatamente se aflora o perfume hedonista do confucionismo, a saber, a importância da satisfação e do prazer que resulta da prática informada pelo estudo; da socialização com pessoas que partilham a mesma Via, trocando experiências e informação; e de, interiormente, para si mesmo, não depender do reconhecimento alheio. Esta abertura assume o gesto de uma promessa de felicidade.
Assim, a existência de uma pessoa exemplar (junzi) será pautada por sensações de satisfação e prazer. Estas advêm, em primeiro lugar, da realização prática dos seus estudos, não bastando a aquisição de conhecimentos mas, sobretudo, saber quando os aplicar com eficácia. Em segundo lugar, a fruição da companhia de amigos, provavelmente gente que chegava de sítios distantes para o seguirem como discípulos. O caracter 朋(peng) significa, etimologicamente desde o tempo de Confúcio, alunos de um mesmo mestre, seguidores de uma Via ou membros de uma confraria. Mas esta interpretação é contrariada por alguns comentadores que vêm na expressão de Confúcio uma simples referência a “amigos” sem que estes tenham forçosamente de se sentar à sombra das suas ideias. Em terceiro lugar, o Mestre refere-se a movimentos do coração e ao facto de uma pessoa exemplar não albergar sentimentos negativos por não ter reconhecimento social. A pessoa exemplar não sentirá ódio, nem inveja, nem ciúme ou sequer desapontamento. Este mergulho na interioridade e a presumível construção de uma harmonia interna serão o culminar do cultivo de si (修身 xiushen)e da posterior prática da benevolência (仁 ren).
4. O círculo mais interior de discípulos tratava You pelo título honorífico de “mestre”, devido à sua excepcional memória e amor pelos textos antigos, o que, de algum modo, o assemelhava a Confúcio.
5. O dever filial baseia-se no que é devido aos pais (a vida) e a fraternal no respeito devido aos irmãos mais velhos. Ambas implicam uma série de modelos de obediência e submissão, deveres, formas específicas de tratamento, etc.. Tendo sido estendido ao contexto extrafamiliar, o conceito adquire um valor político, na medida em que prescreve uma extensão do modelo familiar, logo indica a necessidade de aceitação, obediência e submissão à hierarquia social. Neste sentido, a harmonia familiar reflecte-se na sociedade como é explicado no “Estudo Maior” (II, cap. 9). Contudo, alguns comentadores acrescentam que, apesar da piedade filial e fraternal estar na raiz da benevolência, na raiz da piedade filial estão, por seu lado, a rectidão (yi), o padrão (li) e um coração rectificado pelo cultivo de si. No Jardim das Persuasões (說苑 Shuo Yuan), de Liu Xiang (77-6 a.C.E.) está escrito: “Se as raízes não forem rectas, os ramos serão certamente tortuosos, e se os inícios não florescerem, os fins certamente murcharão. Uma ode diz: ‘As terras altas e as terras baixas foram pacificadas/ As nascentes e ribeiros foram tornados límpidos/ Uma vez que as raízes estão firmemente estabelecidas, a Via crescerá’”.
6. Zeng Zi, um dos mais importantes discípulos de Confúcio, com quem ele terá composto o “Clássico da Piedade Filial”, e a quem alguns atribuem os comentários do “Estudo Maior” (大學 Da Xue). Talvez não tão dotado quanto outros, Zeng ganhou a estima do Mestre pela sua piedade filial e outras qualidades morais. Já no Estudo Maior, Zeng Zi citava a inscrição da banheira de Tang: “Renova-te com rigor dia após dia. Que haja uma renovação diária” (Estudo Maior, II,1). Aqui explica os passos que percorre para efectuar a referida renovação. Primeiro, a extensão máxima da benevolência. Segundo, uma honesta autenticidade. Terceiro, a séria disposição para apreender os ensinamentos do Mestre.
7. Instruções sobre a governação. Um reino de mil carros é uma mediana, ou seja, um dos que não é dos maiores, nem dos menores, do império, talvez como o reino de Lu de onde Confúcio é originário, dotado de um exército de médio porte. “Usar o povo na estação apropriada do ano” significa recrutar gente para o exército ou para os grande trabalhos públicos tendo em conta o calendário agrícola.
8. Confúcio sublinha aqui a prioridade de enquadrar num comportamento ético a aquisição de conhecimentos.
9. Zixia 子夏 (507– c.420 a.E.C.), nome de cortesia de Bu Shang 卜商, foi um dos dez principais discípulos de Confúcio (Kong men shi zhe 孔門十哲). Zixia era 44 anos mais novo que Confúcio e conhecido como um dos mais inteligentes e educados dos seus seguidores. O Mestre elogiou frequentemente Zixia pela sua inteligência e capacidade para explicar o significado dos clássicos como o “Livro das Odes”. No entanto, Confúcio era da opinião de que Zixia ainda não tinha alcançado a máxima plenitude de virtude, de modo que lhe disse: “Sê um estudioso segundo o estilo da pessoa exemplar e não da pessoa menor”. Após a morte de Confúcio, Zixia voltou para sua casa, em Wei, onde fundou a sua própria escola e transmitiu os ensinamentos do Mestre. Deixou de trabalhar como professor quando o seu próprio filho morreu. Certos comentadores entendem que os ensinamentos de Zixia continham princípios legistas. Esta é a razão pela qual o mestre legista Han Fei 韓非 não considerava Zixia entre as oito escolas confucionistas do seu tempo. Contudo, durante a dinastia Han (206-220 a.E.C.), Zixia foi considerado como um dos mais importantes confucionistas, na medida em que contribuiu para a canonização dos Clássicos. Para Hong Mai 洪邁 (1127-1279), de todos os discípulos de Confúcio, só Zixia era perito nos escritos antigos que mais tarde se tornariam nos Seis Clássicos.
Alguns comentadores acreditam que se trata aqui de uma referência à adequação das quatro relações: entre marido e mulher, filho e pai, soberano e ministro e entre amigos. Como You Zuo 游酢 (1053-1123), por exemplo: “Durante as Três Dinastias, estudar tinha apenas a ver com iluminar relações humanas. Uma pessoa capaz de dominar as quatro relações (mencionadas nesta passagem) pode dizer-se que tem uma profunda compreensão das relações humanas. Ao aprender isto como a Via, poder-lhe-á ser acrescentada alguma coisa? Zixia era famoso pela sua cultura e aprendizagem, por isso, se falava assim dá-nos uma boa noção do que os antigos queriam dizer quando falavam de estudar.”
10. Aqui trata-se, segundo os comentadores, claramente, de uma questão de virtude e não de filiação. Ou seja, o valor dos amigos escolhidos reside no grau da sua virtude e não na nobreza da sua linhagem.
A ideia de que não se deve aceitar um amigo que não nos é um “igual” pode parecer um pouco estranha se não conhecermos a “amizade virtuosa” no sentido que lhe dá Aristóteles. Para o Estagirita, “A amizade perfeita é a de dois homens bons e iguais em virtude. (…) Pois a igualdade e a semelhança, sobretudo a semelhança na virtude, porque, sendo constantes em si mesmos, assim permanecem a respeito do outro.” (Ética a Nicómaco, VIII) Segundo Confúcio “um amigo” (友you) é uma pessoa que partilha as mesmas aspirações morais. Devemo-nos comparar com outras pessoas em geral para avaliar o nosso progresso moral, mas o convívio virtuoso proporcionado por um amigo produz um poderoso impulso para um maior desenvolvimento moral e uma importante sensação de solidariedade, também como consolo, durante o árduo processo do cultivo de si.
11. Zigong (子貢), nome de cortesia de Duanmu Ci (端木賜) era um distinto estadista e mercador, tão apreciado como criticado por Confúcio. Se, por um lado, originário de uma família rica, Zizong possuía uma esmerada educação e era extremamente eloquente; por outro lado, denotava um grande amor ao dinheiro e pouco se preocupava com a situação dos outros. Confúcio regularmente lhe chama a atenção para a discrepância entre as suas palavras e os seus actos. No entanto, os comentadores consideram-no o segundo favorito, depois de Yan Hui.
Para Zhu Xi, são os governantes que, atraídos pelo poder da virtude do Mestre, o procuram para discutir problemas de governação. Em todo o caso, a questão é que Confúcio “procura em si mesmo, não nos outros”, ou seja, “o sábio procura por meio da sua virtude, ao contrário das pessoas comuns que procuram as coisas com a mente”. Enquanto as pessoas comuns perseguem consciente e deliberadamente objectivos externos, o sábio concentra a sua atenção na sua própria virtude interior e permite que as coisas externas cheguem a ele naturalmente. Confúcio não se intromete activamente ou procura informação, mas é tão perfeito na sua virtude que tudo lhe chega sem que ele precise de agir.
12. Três anos é o período de luto pelo pai. Como Kong Anguo 孔安國 (156-74 a.E.C.) explica: “Quando o seu pai ainda está vivo, o filho não é capaz de agir como quer [porque tem de obedecer às ordens do pai, pelo que só se pode observar as suas intenções como meio de julgar o seu carácter. Só quando o seu pai tiver falecido, é que o filho pode aprender sobre o seu carácter através das suas próprias acções. Enquanto o filho filial estiver de luto, a sua tristeza e saudade são tais que é como se o pai ainda estivesse presente, e é por isso que ele não altera os caminhos de seu pai”. Yin Tun 尹焞 (1071–1142) esclarece: “Se os caminhos do seu pai estiverem de acordo com a Via, é perfeitamente aceitável que passe a sua vida inteira sem os mudar. Mas se não estão de acordo com a Via, porque há-de ele esperar três anos para os mudar? Mesmo neste último caso, o filho filial passa três anos sem fazer quaisquer alterações porque o seu coração está bloqueado por uma certa relutância”.
13. O respeito pelas regras na prática dos ritos, que finalmente perpassam praticamente todos os comportamentos sociais, assegura não apenas a harmonia mas a manutenção da posição social de cada sujeito e da ordem estabelecida. Através da observância das regras rituais, cada um sabe como manter um comportamento adequado. Se cada um mantiver um comportamento adequado, atinge-se a harmonia. É importante notar que aqui não se refere apenas os rituais propriamente ditos, como os sacrifícios, por exemplo, mas a ritualização de todos os comportamento, em todas as situações.
14. Mêncio diz: “O governante nem sempre é necessariamente fiel à sua palavra, porque só está preocupado com a rectidão.” Portanto, estabelece-se que se pode faltar à palavra dada se isso for necessário para implementar a justiça ou a benevolência. Uma historieta exemplifica esta situação, embora de modo leviano: Wei Sheng prometeu encontrar-se com uma rapariga debaixo de uma ponte. Infelizmente, houve uma grande tempestade no dia seguinte e a água do rio subiu desmesuradamente. A rapariga ficou em casa, mas Wei Sheng recusou-se obstinadamente a não cumprir a sua palavra e foi ao local do encontro onde morreu afogado. “Este é um exemplo de apego à palavra que não está de acordo com o que é adequado à situação. De facto, seria melhor não ter cumprido a sua palavra”, conclui o comentador.
15. O elogio da frugalidade, a desvalorização dos bens materiais e a crítica da ostentação, bem como a qualidade das companhias escolhidas e a acção eficaz perpassam neste ponto, que complementa as afirmações iniciais deste livro. Ao concluir que tal ser humano demonstra um verdadeiro amor pelo estudo, Confúcio sublinha a prioridade da ética e da eficácia sobre a mera aquisição de conhecimentos. Estudar, em si mesmo, não chega. É preciso saber como e quando aplicar os conhecimentos adquiridos. De algum modo, poder-se-á dizer que “estudar” significa aprender a aplicar os conhecimentos.
16. Zhu Xi comenta: “As pessoas comuns ficam atoladas na pobreza ou na riqueza, sem saberem como se comportarem em tais circunstâncias, conduzindo necessariamente a dois erros: obsequiosidade ou arrogância. Uma pessoa que é capaz de se libertar de ambas sabe como se comportar, mas ainda não atingiu o ponto de transcender completamente a pobreza e a riqueza… Quando uma pessoa é alegre, relaxa a sua mente e o seu corpo, esquecendo a pobreza; quando gosta dos ritos, está em paz onde quer que vá e segue os princípios de uma forma alegre e bem-humorada, não querendo saber da riqueza. Zigong era um homem de negócios, provavelmente começou pobre e depois tornou-se rico, e por isso teve de se esforçar para se controlar. É por isso que ele faz esta pergunta em particular. A resposta do Mestre foi provavelmente destinada a reconhecer o que Zigong já tinha conseguido e ao mesmo tempo encorajá-lo a continuar a lutar pelo que ainda não tinha alcançado.” Mais do que afirmar o valor intrínseco de alguém, independentemente da sua situação financeira, como pretendia Zigong, Confúcio sublinha a importância da prática, no caso do rico ou do pobre. Este poderá retirar satisfação da Via, enquanto o outro deverá, apesar da sua riqueza, cumprir os procedimentos rituais se quiser tornar-se numa pessoa exemplar.
17. Esta sentença final do primeiro capítulo realça a primazia do conhecimento sobre o reconhecimento social, da sabedoria sobre a vaidade pessoal ou mesmo a aquisição de poder político, pois os alunos de Confúcio, a quem se destina, procuravam geralmente cargos públicos onde poderiam aplicar a doutrina do Mestre e, concomitantemente, alcançar um estatuto social superior. Mas o que convém sublinhar é a alteração que, a partir de Confúcio, se processa no próprio conceito de 學 (xue). De facto, em língua portuguesa a palavra “estudar” não abrange o significado que os Analectos lhe dão, pois não se trata apenas de uma mera aquisição de conhecimentos nem da disposição interior de um sujeito que se compraz com meros acrescentos de saberes e de sentidos.
O caracter 學 (xue), na sua origem, representaria um salão de tiro ao arco, onde a aristocracia Zhou estudava e aprendia essa arte. Daí terá adquirido um sentido mais geral, passando a designar todo o tipo de estudo ou educação, eivado de um conteúdo cerimonial e religioso. O confucionismo, mantendo o seu sentido de aquisição de conhecimentos, elevou 學 (xue) à dignidade de um aperfeiçoamento moral e, ao mesmo tempo, de uma realização pessoal, na medida em que o define como o caminho para o cultivo de si e consequente recuperação da natureza original e única de cada indivíduo.

10 Mar 2023

Chá de nuvens

I

Subi os dez mil degraus para beber um chá de nuvens com Han Shan, Li Bai e Mi Fu, mas no cimo da montanha somente o riso das nascentes me acolhia. Ainda assim, fiz arder o carvão e aqueci a água num bule de nevoeiro. Era tarde quando o vento separou as brumas e rios de nuvens tombaram avermelhados dos setenta e dois picos, verdadeiros mestres de horizontes e visões. Foi em vão que ascendi e em vão me procurei em Huangshan: nada havia para encontrar.

No vazio que transporto, remoinhavam ainda fantasmas e vozes incrédulas. Cansado, adormeci ou assim sonhei ter acontecido. No dia seguinte, pela friagem da aurora, de novo aqueci a água e as nuvens vieram dóceis ao meu bule. Bebi o chá e quando terminei as montanhas haviam partido. Ao meu lado, jazia um livro sem palavras. O vazio não estava em mim mas no mundo. Estar só era um inútil exercício.

II

Não aguentava, no entanto, a presença de ninguém. Pesava-me a gente, os desejos alheados, a conversa. Era por dez mil almas habitado. De que me serviriam os outros? De novo, me lancei ao caminho, seguindo as nuvens.

Precisava de reencontrar Huangshan, de repetir os degraus e, como Sísifo, sempre recomeçar. Creio ter chegado ao anoitecer, pois entre as árvores os cães latiam e os símios erguiam aos céus os seus lamentos. De tão espargida, a névoa perdera a densidade e houvera luz e talvez eu pudesse olhar Huangshan e nela encontrar os mestres ausentes. Mas também a lua se esquecera de comparecer e eu sentia ainda medo de cego subir tantos degraus.

No sopé da montanha, montei a minha tenda e no vinho ascendi a nuvens saturadas de imprecações. Ainda assim, funâmbulo no diâmetro das espirais, julguei encontrar algum sossego.

III

Nunca mais as nuvens se dignaram a repousar no meu bule, nem o riso das nascentes me alegrou os dias. Falava agora com o vento e o trovão. Em vertigens de relâmpagos, por instantes, cuidava vislumbrar Huangshan e tanto me bastava. Latia com os cães e uivava com os macacos, ignorando o bule e o sino. Por dez mil dias o fiz, por dez mil vezes olhei o céu sem nuvens.

Não sei se conseguirei voltar à cidade de meus pais; se a estrada conduz ao lago ou ao palácio. Bebi em todas as tabernas, dormi com todas as mulheres aquiescentes. Pegadas na bruma, não as segui. De nada me valeu procurar Huangshan, de nada me serviu beber o chá de nuvens: sob o céu, tudo era, doravante, um labirinto e eu, minotauro coxo e cego, tacteava impudente, sem guia e sem destino, orando baixo aos deuses surdos para que nunca me deixassem encontrar uma saída.

In O Comedor de Nuvens

3 Mar 2023

Ìì (tian), céu; µØ (dì), terra

Enquanto que no Ocidente o conceito de Natureza denota todo o universo exterior ao ser humano, que só tenuemente a ela se encontra ligado, no pensamento confucionista o mesmo campo semântico é recoberto pelos conceitos de Céu (Ììtian) e Terra (µØ dì), o que resulta numa polarização daquilo que, substancialmente, para o ocidental é uno. O primeiro é redondo e tudo cobre; a segunda é quadrada e está suspensa sobre a água, cercada pelos Quatro Mares. O Céu impregna todos os processos existentes (todos os seres) porque ignora o particular, não se detém em quaisquer actualizações ou parcialidades. Tal garante a plenitude do seu constante funcionamento. A Terra é receptiva e conforme: ela tudo sustem e alimenta.

No Livro das Mutações, o hexagrama Qian (Céu) é composto por seis linhas plenas, e o hexagrama Kun (Terra) é desenhado com seis linhas quebradas, ou seja, puro yang e puro yin, o princípio criador e a potência receptora. Note-se que esta concepção dinâmica da Natureza se complexifica noutros conceitos, como via (dao), sopro (qi) ou padrão (li), que formarão um sistema de pensamento coerente e que se tem desenvolvido ao longo dos séculos.

Apesar destas alterações na diacronia e independentemente do papel que cada pensador ou escola lhe destinou, Céu denota para todos o mesmo significado de princípio (no sentido de origem e causa) criativo e organizador, que impregna todos os seres. Para os confucionistas, o Céu não é um ser sobrenatural, nem uma consciência todo-poderosa ou interventora no particular, mas o conjunto de princípios que funda a Natureza e enforma todos os processos.

Tal como não representa algo de sobrenatural, o Céu também não foi criado por uma potência divina ou uma consciência/vontade exterior a este mundo. Se, na mitologia chinesa da dinastia Shang, o Céu é referido como habitado e como tendo um soberano (ÌìµÛtiandi), nunca se trata de um Criador do universo, no sentido do Deus do Livro, mas de um monarca que gere os seus domínios celestes como o imperador governa na Terra. Contudo, a partir da dinastia Zhou, o próprio termo di vai gradualmente desaparecendo e sendo substituído unicamente por tian. “A transcendência é cada vez menos a de um mundo situado para lá do humano, onde habitariam espíritos manipulando os elementos naturais; ela só subsiste como transcendência da norma em relação ao que lhe está submetido, ao princípio original em relação aos dez mil seres.” (Vandermesch, Léon, citado em Cheng, 1997, 56)

Os autores confucionistas não escrevem nem falam sobre a criação do Céu e da Terra, nem de qualquer precedência entre ambos. Eles já lá estão e sempre lá estiveram; não se refere um princípio, como não se prediz um fim. Trata-se de duas instâncias de sinal contrário mas complementares, interligadas, de dois pólos que não existem um sem um outro, que continuamente se relacionam e interagem, como representa o símbolo do Yin/Yang que coloca em cena uma funcionalidade e, desdobrada no Livro das Mutações, desmonta a questão da precedência. Ao contrário de uma cosmogonia religiosa, que exige o dogma de um acontecimento desencadeador da Criação e outras rupturas, como a expulsão do Paraíso ou a vinda de Cristo, estamos perante um mundo entendido em termos de funcionamento e de processo.

Nessa funcionalidade, o Céu representa “a perseverança de ir em frente (jian, incarnado pelo hexagrama Qian)” e a Terra “a disponibilidade para se conformar” (shun, incarnado pelo hexagrama Kun)”. Mas tanto a iniciativa como a receptividade têm necessidade da existência uma da outra. A rigidez do yang precisa da maleabilidade do yin para se exercer.

Alguns dos atributos que Láucio reconhece na Via (µÀ dao) surgem no confucionismo como qualidades do Céu. Ele é silencioso e inodoro. Mêncio afirma:“Será que o Céu fala? As quatro estações seguem o seu curso e todas as coisas são criadas. Mas será que o Céu fala? O Céu não fala.” A actividade celeste, resguardada por este trágico silêncio e por uma infinita magnitude, é incompreensível para o ser humano. Por isso, o Céu é descrito como sendo “inconcebível”, “extenso e substancial”, “impregnante”, “profundo e infinito”.

Tanto o confucionista Xunzi, como o daoista Zhuangzi utilizam, mais radicalmente, a palavra tian para designar o que é “natural” por oposição ao “artificial”, ao que é feito pelo homem. Por exemplo, diz Mestre Zhuang, as quatro patas de um cavalo são tian, enquanto a rédea é artifício.

O Céu é o agente e a causa dos efeitos que são passíveis de ser objecto da experiência humana. Esta experiência é fruto das sensações recolhidas na vida quotidiana, às quais são aplicadas as regras de observação e valoração.

Consequentemente, porque apenas pode ser percebido através deste modo de observação e julgamento, o Céu não é ante rem mas in rebus, ou seja, trata-se de um universal que existe nas coisas particulares (como queria Aristóteles) e não um universal apriorístico, com uma existência independente dos seres particulares (como pregava Platão).

Contudo, esquecendo a perspectiva ontológica, de um ponto de vista ético, se considerássemos existir uma homologia entre o Céu e a natureza humana – como fazem os confucionistas – poderíamos conceber um conjunto apriorístico de valores, comuns a toda a humanidade. Veremos que poderá não ser tão linear assim. E não será assim porque esses valores não são em si mesmo fixos, tendo de ser aquilatados no devir.

Entre os seres, o Homem é o único que surge dotado de inteligência, de consciência e, sobretudo, da capacidade de distinguir o bem do mal ou o adequado do desadequado. Mas essa relação expressa-se em termos de funcionamento: o Céu e a Terra produzem incessantemente seres; o Homem produz incessantemente moral, influenciando os costumes e as condutas.

A palavra Céu é usada juntamente com outras para obter conceitos derivados ou mesmo outros significados. É o caso, por exemplo, de tianjia (à letra “sob o Céu”, mas com o sentido englobante de “tudo sob o Céu”), vulgarizado durante a dinastia Qin, que aparece hoje no pensamento político contemporâneo chinês como adequado a exprimir o mundo global.

5 Jan 2023

Da inveja e suas marionetas

A inveja não é uma especificidade de Macau mas, seja lá como for, aqui inveja-se de forma extremamente específica. Nisso ao menos somos democratas: não se inveja este ou aquele, por ser rico ou formoso, invejam-se todos sem excepções nem motivos palpáveis. O pior é que nem sequer existe muita gente que valha a pena invejar. Isto é mais uma terra de Salieris deseperados à procura de um Mozart qualquer que lhes dê um sentido para a vida.

Sem exageros, de vez em quando até pode ter graça percebermos que somos invejados. Faz-nos sentir importantes despertar um sentimento noutro ser humano qualquer. Ainda que seja um sentimento baixo.

Só que o que é demais também chateia. Acaba por cheirar mal e tolher os movimentos. Em Macau a divisa parece ser: «quem inveja sempre alcança», na qual a palavra inveja pode ser substituída por outras muito próximas como «intriga», «difama», «escarnece» e outras que deixo à memória dos leitores.

Um dos derivados universais mais interessantes da inveja é o mau-olhado. Quem o garante não sou eu.
É o insuspeito filósofo Francis Bacon que cita a mais insuspeita ainda Bíblia: «parece estar incluído, no acto de inveja, uma ejaculação, ou irradiação do olho.» Se em Macau acreditássemos piamente nesta afirmação teríamos de estar sempre a dizer ao vizinho: «Olhe lá, desculpe, e se fosse ejacular para outro lado?!».

Normalmente, os que têm são invejados pelos que não têm. É a ordem natural das coisas e até se compreendem as razões dos invejosos. Sobretudo, quando deparamos com situações de flagrante injustiça social.

Às vezes, organizam-se e nasce a luta de classes. O que é estranho é que na comunidade portuguesa de Macau, onde todos têm mais ou menos o que querem (na maior parte dos casos, mais do que alguma vez tiveram), subsista tanta inveja. Na verdade, é uma praga parecida com a humidade: viscosa e irritante.

A pequenez da terra e das cabecinhas também ajuda a este estado de coisas. Mas a verdade é que aqui não há hipóteses: se fazes é porque fazes, se não fazes é porque não fazes, tudo ganha uma dimensão anormal.

Se dás de comer às pessoas és invejado, se não dás és invejado na mesma porque ficas com tudo para ti.
Invejam-te porque sais e invejam-te porque ficas em casa. Invejam-te o carro, a mulher e os sorrisos do chefe. E porque são fantasias e não têm nada para fazer, nem mais nada em que pensar, invejam sobretudo o que imaginam que tens. Livre-se alguém de não publicar nas jornais as suas actividades quotidianas: é imediatamente julgado por actos atrozes que todas as noites comete em segredo.

Não é que os chineses sejam melhores. Não são.

Simplesmente, têm as coisas organizadas de outra maneira. Vivem desde há muito num mundo onde as diferenças de estatuto são tão visivelmente marcadas que a inveja na vertical rapidamente se transforma em admiração. O valor do outro nem sequer é objecto de discussão, portanto a inveja está perfeitamente regulamentada. Trata-se de um controlo de sentimentos com milénios de cuidadosos aperfeiçoamentos. Nesta comunidade, a inveja existe muitíssimo mais na horizontal e aí cuidado que são ferozes.

Na verdade, os invejosos são infelizes. Vê-se pela sua cor verde. Têm insónias a pensar nos outros, na felicidade dos outros, no que os outros têm ou são, sem conseguirem parar para pensar em si próprios e terem a distinta humildade de reconhecer o valor alheio. Eu sei que é duro, na maior parte dos casos impossível. São anos e anos de ressabiamentos, de ódios engolidos a pensar nas patacas e numa vingança longínqua que se pressente inalcançável. É um atestado de mediocridade que ninguém gosta de passar a si próprio e que, lá num cantinho escondido, todos acabam por rubricar.

Como tudo na vida, a inveja não é má em si própria.

É como os ciúmes: não podem ser por tudo e por nada, nem levados a exageros persecutórios. São, no entanto, imprescindíveis numa relação bem-sucedida. De facto, controlado e bem utilizado, o impulso inicial de inveja pode, nos casos em que valha a pena, transformar-se em admiração e ser muito útil ao potencial invejoso. Afinal, a inveja também é uma forma arrevesada de amar.

Nota
Texto escrito em 1991. Ao que me diz quem frequenta esta sociedade, de uma actualidade surpreendente.

24 Nov 2022

A pintura de Yuen e a cidade metamórfica

Leo Yuen Wai Ip é um pintor de Macau e a sua obra desvela a cidade, nos traços executados a óleo e no plano íntimo da sua sensibilidade. Nesta pintura, que a crítica classificaria de “narrativa”, não se conta apenas uma cidade, mas o modo como esse lugar, esse espaço que oscila entre um real mutante e um imaginário excessivo, se apresenta e inscreve ao longo do tempo, como paixão e como doença, num processo artístico, ao mesmo tempo que o canibaliza e consome.
Retratos de um coração, de uma alma e do corpo de uma cidade em constante e bizarra mutação, em que as personagens, incluindo o próprio pintor, surgem como coalho numa superfície fascinante e arisca, cada quadro procura responder a uma questão cujos contornos se pressentem, mas que a razão tem dificuldade em formular rectilineamente e em que a única certeza é a presença da morte feita pássaro (como em Bruegel), presença nómada mas constante, grasnar formidável ou discreto, fim exposto ou disfarçado, sempre horizonte de um novo dia e fantasma celebrado ao cair de cada noite.
“5 a.m.” foi o título escolhido para esta exposição, que abrange mais de duas décadas de trabalho. Cinco horas da manhã ainda por haver, “a hora fria”, de que nos fala o poeta francês Charles Cros (1842-1888), quando o calor que, ao longo noite, a terra ainda irradia finalmente se esgota e mentes insones se contorcem no sobressalto da iminência de uma outra madrugada. Em breve, vindas de leste, as mãos claras da aurora rasgarão o manto protector da noite e a alma pergunta-se se terá ainda ânimo para enfrentar aquele dia, que se adivinha desfeito de sentidos.
E aqui, quadro após quadro, assistimos às metamorfoses que, nos últimos vinte anos, assombraram a cidade e aos efeitos produzidos na arte de Yuen, como se as respostas que a criatividade encontra para o indefinível absurdo de “ganhar algo e algo perder” fosse o único caminho para a possibilidade de enfrentar cada despertar para um novo dia. Da cidade distante dos anos 90, de vibrações semi-adormecidas, quase sonho de ópio, à expectativa gerada nos primeiros anos deste século, até ao irromper desmesurado do progresso, da invasão das cópias desalmadas, fora de outro lugar que não seja a ironia, ao estabelecer excessivo das luzes, das marcas, dos templos modernos a que chamamos casinos, gigantescas feiras e mercados, da invasão de tudo e do seu excesso, das multidões vazias de outra fé além do lucro fácil e na busca de deslumbramentos sazonais, Yuen retrata sobretudo como tudo isto transforma, retorce, anula, vivifica e reconstrói modos de ser e de sentir, tudo recriando sob a égide do esboroamento contínuo de valores. Se a isto juntarmos a digitalização da vida, das trocas, das relações interpessoais, da sexualidade, pouco encontraremos do “humano”, além da dor de uma sensibilidade insatisfeita, onde a culpa emerge irremediável, como no auto-retrato, que leva o revelador título de “Inimigo”. Esse “humano”, cercado e mergulhado em várias excessividades até lhe ser escassa a respiração, encontra esporadicamente um “paraíso”, já quase só longínqua memória, nos gestos proibidos e malditos, ilhas onde talvez ainda seja possível o reencontro consigo e com o outro.
Talvez um dia se escreva a história destes nossos tempos e desta cidade metamórfica, a partir da arte enquanto exorcismo e magia, ou seja, enquanto capacidade de leitura e intervenção no real. Talvez. Mas enquanto a humanidade não for capaz de adquirir a coragem de se olhar nos espelhos que pintores como Yuen nos proporcionam e assumir as questões que perpassam nas suas obras, dificilmente teremos uma imagem aproximada do que somos e naquilo em que lentamente nos tornamos. Tal como a “salvação” de Yuen reside na sua arte, no seu esplendor redentor e criativo, na ironia que enforma também muitas das suas obras (pois não é o riso um privilégio dos deuses?), também cada um de nós deveria exigir essa difícil escalada que é a compreensão do mundo, sem mediações fúteis nem barreiras mercantis.
Além do seu conteúdo, da sensibilidade lúcida demonstrada, a pintura de Yuen assenta, antes de mais, na qualidade da sua técnica, na lenta sobreposição de traços a óleo sobre um desenho particular, onde a mão adquiriu uma personalidade própria e inimitável, algo que vai sendo cada vez mais raro nos tempos imediatistas em que vivemos.

“5 a.m.” por Leo Yuen Wai Ip
Galaxy Art, por cima do Jade Lobby

14 Nov 2022

A fotografia de Yao Feng e a impossibilidade do humano

Num mundo impermanente, em que a realidade constantemente se transforma sob os nossos olhos, é ofício dos homens fixar instantes e dos poetas dotá-los de algo que, eventualmente, se assemelhe à eternidade. Fazem-no através da beleza, é certo, mas também do riso, das lágrimas, do trabalho e do inusitado. Fazem-no também através da sua sensibilidade particular e da sua privada mestria no arranjo das palavras, que assim recompõem o mundo e constroem uma humanidade, aparentemente pessoal, mas que no limite remete para a universalidade. E aí pouco importa a língua como pouco importa a linguagem.
Yao Feng revela-nos constantemente a insatisfação do seu olhar, a desadequação do mundo à sensibilidade e à razão, na sua poesia escrita e agora na poesia que emerge das fotografias com que edifica instantes reveladores e sábios. Tal como o verso nasce da intuição, tornada verbo, de um instante, também a fotografia nos espelha a realidade do tempo, que não é mais que essa sucessão emaranhada e confusa de momentos, em que passado e futuro proclamam a sua inexistência em prol de um presente tão materialmente possível de agarrar como a espuma que o mar nos oferece nas praias solitárias da memória. Há uma irrealidade fascinante em cada imagem de Yao Feng, alimentada pelas palavras breves dos títulos que, ao invés de limitarem a interpretação, pelo contrário, abrem portas múltiplas e avenidas arejadas a um sensível entendimento do real.
É quando o coração altera o seu ritmo, ainda que metaforicamente, que o tempo perde o seu carácter linear e no instante se escavam múltiplas eternidades. E é esse outro ritmo que se evola das imagens de Yao Feng. Não estamos perante uma suspensão, uma descrição paisagística, mas em narrativas plenas de significados, intervenientes, de algum modo revolucionárias. As suas fotografias não contam ou recontam uma história: remetem-nos para infinitas narrativas que cada espectador terá de reconstruir, também de acordo com a falsidade da sua memória e a veracidade das suas paixões. São por isso desafios moventes, consistentes como as nuvens que interiormente transformamos em montanhas, trovões capazes de se repercutir pelos vales de cada particular solidão. Assim, produtos forjados pelo olhar de um sujeito que interpreta e recria o mundo, por vezes irónico e triste, doutras tomado pelo espanto, pelo desejo ou pelo medo, estas imagens não se limitam a si próprias em arremedos estéticos: elas e os seus títulos encetam uma demanda inesgotável em cada um de nós e em nós despertam uma reflexão moral e política, que questiona os fundamentos mais profundos do que chamamos liberdade.
Como aqueles peixes que dentro de um aquário respiram a ilusão de viver no mar; como aqueles cães que, numa troca de olhares, exprimem o desejo de habitar um futuro sem trela; como aquele poderoso leão que aspira ao movimento e a ser mais que mera, rígida e fugaz sombra; como aquela fragilidade do bebé que, ainda inocente, se sonha seguro no sorriso de sua mãe; ou como aquele erotismo fácil que tem a capacidade de esboroar a rigidez das palavras de ordem — todos os impossíveis, que nos desvelam esta estranha condição de ser humano, estão ali plasmados nesta surpreendente e imperdível exposição.

SEE – Works by Yao Feng
Armazém do Boi até dia 27 de Novembro

9 Nov 2022

Como chegou a China à “nova era”

O 20º Congresso do Partido Comunista da China (PCC), que terminou no passado domingo, constitui-se como um marco no desenrolar do recente processo histórico chinês. No Ocidente, dificilmente se encontra uma compreensão justa e efectiva do que se passou e, sobretudo, dos acontecimentos e ideias que desembocaram no relatório apresentado pelo Comité Central e à manutenção de Xi Jinping como secretário-geral do Partido, quebrando um hábito que vinha do tempo de Deng Xiaoping, que estipulara o prazo máximo de dez anos para o exercício continuado do poder ao nível mais alto do Estado.
Para lermos de forma eficaz o que se passou e descortinar as razões que enformam as principais decisões teremos de adoptar dois caminhos: por um lado, utilizar conceitos do pensamento chinês e aplicá-los à realidade chinesa, ao invés de pretendermos utilizar unicamente conceitos importados de ideologias ocidentais; por outro lado, fazer um breve resumo histórico, desde a abertura iniciada em 1978, com o intuito de melhor nos situarmos no actual momento, que o PCC chama de “nova era”.
Assim, começaremos por tentar compreender o que se chama de “socialismo de características chinesas”, cujas origens detectamos no pensamento de Mao Zedong, nomeadamente num texto de 1937 intitulado “Sobre a Contradição”. Nesse documento, Mao reformula a aplicação do marxismo à realidade chinesa, recusando para a situação chinesa a noção dialéctica hegeliana de “tese, antítese, síntese”, adoptada por Marx e com traços do evolucionismo oitocentista, que nos fecharia numa escatologia finalista, em que a História permanentemente se resolveria, como queriam Hegel, ao propor um fim da História resolvido no modelo do Estado prussiano, e Marx, ao prescrever um modelo que se finalizaria no socialismo e no comunismo, depois da fase capitalista. Mao Zedong prefere, em termos práticos, pensar e agir, inspirado na cultura chinesa, uma dialéctica da impermanência em que constantemente no socius se vão criando oposições contraditórias, mas não rígidas e exclusivistas, que garantem um movimento perpétuo de ajustamento político, económico e social, como acontece entre o Yin e o Yang. Restará então aos líderes políticos identificarem, em cada momento, quais as contradições predominantes na sociedade de modo a equilibrarem o sistema e garantirem outro dos valores fundamentais do pensamento político chinês: a harmonia.
O que também foi entendido pelo chamado “marxismo de características chinesas” é que, desta vez de acordo com Marx, dificilmente uma sociedade transitará de um momento feudal, ruralista ou mesmo industrial primitivo, para um modelo de existência socialista. Na verdade, ainda em termos marxistas, só com um desenvolvimento brutal das forças produtivas, sob a égide do mercado capitalista, se conseguirá alcançar a produção suficiente de bens e serviços que sejam suficientes para pensar numa distribuição socialista. Esta também não será possível sem a existência de um radical avanço tecnológico que liberte a mão-de-obra e instaure um novo paradigma de trabalho e de trabalhador. Foi este caminho que Deng Xiaoping inaugurou na década de 1980, procedendo em dois movimentos: o primeiro consistiu na permissão para o aparecimento da iniciativa individual, que se traduziu no florescimento de milhões de pequenas empresas privadas; e o segundo que passou pela privatização em grande escala de empresas estatais. Se o primeiro teve resultados extremamente positivos e é de algum modo responsável pela extraordinária criação de riqueza a que assistimos nas últimas três décadas, bem como pela superação das crises cíclicas inerentes à produção capitalista; já os resultados do segundo fez o país arcar com consequências que nem sempre foram entendidas pela população como positivas, nomeadamente a abertura de um gigantesco fosso entre ricos e pobres, entre regiões desenvolvidas e regiões esquecidas e, sobretudo, o advento de corrupção em larga escala.
Teremos de lembrar que as manifestações de final da década de 1980 na Praça Tiananmen começaram como protestos contra a corrupção, nos quais predominavam jovens indignados pelas injustiças sociais decorrentes dessas privatizações (desemprego, inflação, corrupção galopante, enriquecimento indevido), o que explica a paciência das forças governamentais, e só mais tarde foram introduzidas ideias anti-regime.
Quando em Outubro de 1992, me encontrava em Pequim para cobrir como jornalista o 14ºCongresso do PCC, sob a liderança de Jiang Zemin, era convicção generalizada dos jornalistas estrangeiros que, na sequência dos incidentes de Tiananmen e da desintegração da URSS, a China iria fazer marcha-atrás na sua reforma económica e abertura ao exterior, partindo do princípio marxista segundo o qual uma mudança na infraestrutura levaria fatalmente a uma mudança superestrutural e em causa ficaria o regime. Contudo, para surpresa geral, Jiang Zemin proclamou a ampliação das reformas e da abertura ao exterior, criando as possibilidades do mega-crescimento da economia chinesa, a que o mundo assistiria com espanto nas duas décadas seguintes. A China não apenas se reformava internamente, expandindo as privatizações de bens estatais e admitindo a generalização da iniciativa privada, como ajustou o seu sistema legal de modo a participar na globalização em curso, culminando com a sua entrada na Organização Mundial de Comércio. Jiang Zemin avançou com a “Teoria dos Três Representantes”, a saber, “o Partido deve sempre representar as necessidades ligadas ao desenvolvimento das forças produtivas da China, a orientação da cultura superior da China, e os interesses da larga maioria do povo chinês”. Em menos de vinte anos, o País do Meio transformava-se na segunda maior economia do mundo, precisamente porque libertou, de forma radical, o desenvolvimento das forças produtivas. No entanto, nesse movimento, foram preteridos, esquecidos ou abafados os outros dois componentes da teoria. Os problemas sociais transformaram-se em problemas do mercado e o PCC, enquanto partido-Estado, agora mais administrador do que líder ideológico, deixou fazer, deixou passar, agindo de forma quase despolitizada, ainda que mantendo uma linguagem ideológica, quantas vezes desajustada das suas acções administrativas.
A liderança seguinte, de Hu Jintao e Wen Jiabao, em pouco ou nada alteraria este estado de coisas. Pelo contrário, mostrou-se capaz, por um lado, de manter a economia a crescer continuamente, muito graças à iniciativa privada baseada nas relações locais e na mercantilização social, mas foi incapaz, por outro, de travar a crise moral que ao mesmo tempo se instalava em todos os recantos da sociedade chinesa, resultante do esboroamento de todos os valores que a mercantilização da vida provoca. Hu e Wen adoptaram um estilo receptivo (Yin) de governação, mais inclinados para deixar fazer do que para tomar a iniciativa enquanto liderança nacional. O próprio Partido parecia transformar-se num gestor de problemas de mercado e não num líder capaz de mostrar um caminho convincente e seguro, gerador de valores capazes de agregar o povo à sua volta.
Ganhar dinheiro, enriquecer a qualquer custo (não colectivamente como queria Deng Xiaoping), consumismo frenético e ostentatório, o desperdício, a frivolidade, tornaram-se nas palavras de ordem dessa nova China de tendências neoliberais. As forças produtivas de tal modo se libertaram e agiram a seu bel-prazer que se cavou um fosso ainda maior entre as gentes e entre as regiões, como se colocou em grave risco o equilíbrio ecológico, na medida em que as fábricas cometiam crimes ambientais, com o intuito único de maximizar os lucros. A economia chinesa, graças ao trabalho árduo do seu povo e à sua lendária mestria para os negócios, cresceu desmesuradamente, mas esse crescimento não era acompanhado ideologicamente por valores que permitissem a criação de uma sociedade minimamente saudável, com perspectiva de futuro e muito menos estribada nos conceitos socialistas de justiça social, distribuição de riqueza, igualdade e benefício comum. Tal como aconteceu no Ocidente, mas de forma mais radical, os valores simplistas do mercado, baseados unicamente no lucro, penetraram em praticamente todas as áreas das actividades humanas, destruindo quer valores tradicionais, quer valores socialistas. Não admira por isso que tenhamos assistido, já na primeira década deste século, à tentativa ainda tímida do ressurgimento de Confúcio, resgatado como “tesouro nacional”, na tentativa de dar algum substrato moral à sociedade e ao comportamento dos homens. Como não admira igualmente que se tenham ouvido vozes, da chamada Nova Esquerda, contra o capitalismo e a sociedade mercantil.
Ainda antes da sua chegada ao poder, já Xi Jinping identificava, recorrendo ao pensamento maoista de 1937, quais as oposições fundamentais que urgia reparar na sociedade chinesa, nomeadamente a oposição entre cada vez mais ricos e cada vez mais pobres, que ameaçava fazer estalar o verniz político-cultural. Daí que no seu primeiro mandato, a partir de 2012, tenha elegido como prioridade “a luta contra a corrupção” e a criação de “uma sociedade moderadamente próspera”, o que implicava a eliminação da pobreza extrema que, longe do brilho dos grandes burgos, ainda grassava, enraizada e endémica, nas zonas rurais da China.
Contudo, Xi Jinping não se ficava por aqui. Seria necessário, no seu entender e certamente de uma grande maioria de quadros comunistas, “renovar o povo” (como diz Confúcio), isto é, recuperar conceitos como a existência de um poder exemplar e virtuoso que sirva de referência à população e não elementos corrompidos pelos valores do mercado. Só assim o povo poderia de novo acreditar no seu governo e emulá-lo nos seus quotidianos. A ideologia teria de passar novamente pelos valores morais e não assistir distante ao seu desaparecimento. O Partido voltaria novamente a liderar, indicar claramente o caminho e não apenas gerir os problemas que o mercado ciclicamente levanta.
Assim, teriam de ser pensados os valores que regem as relações entre os indivíduos, entre o indivíduo e a comunidade, entre a comunidade e o governo, entre o ser humano e a natureza, entre as pessoas e a nação e, finalmente, entre a nação e mundo. E a verdade é que no limiar de 2010, todos eles se encontravam em crise, desconjuntados pela mercantilização generalizada de todas estas relações.
Foi isso que Xi Jinping fez, lançando mão do marxismo renovado e da preciosa cultura chinesa, dos clássicos à modernidade. Não é por acaso que, logo em 2013, visitou Qufu, a cidade de Confúcio, prestando homenagem ao Mestre e recuperando-o definitivamente para a ribalta do actual pensamento chinês, agora vestido de roupagens condicentes com o século. Como também não é por acaso que os seus discursos são pontilhados de milhares de citações de outros autores clássicos, na tentativa de mostrar a ancestral riqueza cultural da China ao seu próprio povo, que se deixara em parte seduzir por valores estrangeiros, pretensamente universais, mas que não passam na realidade de novas formas de colonialismo cultural, que escondem um histórico desejo de hegemonia.
Entretanto, depois de uma primeira fase em que, maravilhados pelas oportunidades de negócio, os Estados Unidos assistiam, relativamente impávidos, ao crescimento chinês na esperança de também controlarem o seu gigantesco mercado, rapidamente perceberam que estavam a perder um jogo jogado com as regras que eles próprios impunham ao mundo. Era tempo de as alterar, de não as cumprir, e de tornar a China no “inimigo”, inaugurando uma mentalidade próxima da que existia no tempo da Guerra Fria.
Podemos então considerar que a actual situação chinesa, saída do 20º Congresso do PCC, decorrerá de dois principais factores, entre outros: primeiro, a necessidade de resolver as oposições internas, resultantes das tendências neoliberais, que esboroavam a sociedade, os seus valores, o próprio Partido e o caminho para o socialismo; segundo, a defesa aos ataques externos, cada vez mais frequentes e agressivos. É por tudo isto que no 20º Congresso do PCC se sentiu a necessidade premente da continuação de uma liderança forte (Yang), unida e sem dissensões, criada à volta de Xi Jinping, que projecte a imagem de um Partido capaz de conduzir o país, sem recuos, ao “sonho chinês”; capaz de renovar o povo e rejuvenescer o país, através de valores tradicionais como a virtude, o orgulho/amor à pátria, e de valores socialistas como uma mais justa distribuição da riqueza; capaz de manter o crescimento económico, mas também capaz de limitar os efeitos perniciosos do mercado e das suas principais empresas de tendência expansionista e monopolista, como a Evergrand, a Alibaba e a Tencent, por exemplo; capaz de se globalizar sem pretender hegemonias ou conflitos armados; capaz de colocar o povo no centro dos seus interesses e como destinatário do desenvolvimento do país; capaz de o fazer acreditar que se encontra no caminho para uma sociedade mais justa e igualitária.
O extraordinário crescimento económico da China precisava de ser reequilibrado de diversas maneiras porque ele nem sempre significa desenvolvimento e qualidade de vida. Uma delas é, com certeza, através da modernização e da inovação científico-tecnológica, outra é de um fundamental cuidado ambiental que repare os males feitos nas últimas décadas pela corrupção e o laxismo.
Xi Jinping pugna por um Partido forte e unido, capaz de resistir às forças de um mercado que também não pretende abafar, mas tornar menos selvagem internamente e menos dependente de um exterior cada vez mais agressivo; mais auto-suficiente, mas também capaz de cooperar com aqueles que sejam capazes de entender que devemos caminhar para uma comunidade global de futuro partilhado e não para quem deseja a hegemonia e relações de subserviência entre nações ou civilizações, adeptos de “excepcionalismos” que querem apresentar-se, mitologicamente, como incontornáveis e como sendo o final da História. Esta, na sua imprevisibilidade e impermanência, encontrou sempre meio de nos surpreender, obrigando a que, em cada momento, baseados no saber, na experiência e nos factos, se dêem passos, nem sempre fáceis nem bem compreendidos, para a construção de sociedades mais justas.
O PCC sai deste 20º Congresso como o maior partido marxista do mundo no poder, mas não se apresenta como modelo a seguir. Pelo contrário, em termos internacionais, sugere aos países em desenvolvimento que aprendam com a sua experiência, com as suas façanhas e com os seus erros, e que cada um siga o seu caminho, de acordo com as suas especificidades culturais e civilizacionais, bem como com as realidades sociais concretas em que, neste momento, se encontram. Já a China saiu deste 20º congresso do PCC com um quadro onde estão bem definidos não apenas os traços gerais mas sobretudo os caminhos concretos do que chama sua “nova era”.

28 Out 2022

A tulou

E eis-nos chegados à mais sagradas das montanhas, habitadas por deuses, loucos temerários e estranhas bestas: o monte Kunlun. Situado algures perto da linha vertical que divide em dois o mundo, também conhecido por Pilar do Céu, fôra em tempos comparado à Raposa de Nove Caudas, pois dele se distinguia como de nenhum outro lugar as nove secções do Céu e — ¿quem sabe? — donde também seria possível, a homens iluminados, observar as nove partes da Terra.
Em tempos mais recentes, nele habitava a Rainha-Mãe do Oeste, mandando em tudo ou quase. Dessa fabulosa montanha emanavam quatro rios de seu nome Amarelo, Vermelho, Preto e Oceânico, embora nada nos indique que a mitologia chinesa o tenha considerado um paraíso ou sequer um jardim edénico com uma árvore proibida no seu centro.
Ora o monte Kunlun, além de deuses e plantas com propriedades maravilhosos, era também a morada de estranhos animais, entre os quais a tulou. Descrito como uma espécie de cabra, mas dotada de quatro cornos, a tulou é-nos apresentada como sendo uma insaciável devoradora de homens. Contudo, não sabemos se no sentido literal ou em sentido figurado, como personagem oposta à santidade da Rainha-Mãe do Oeste, cujos traços piedosos e protectores nos evocam a Guanyin budista.
Certo é que já São João nos falava de um animal cornudo, excessivamente cornudo, como sendo uma das bestas do Apocalipse, por oposição ao pacífico e triunfante Cordeiro, cuja armadura córnea, dada a sua tenra idade, não tivera tempo de se desenvolver. Portanto, poderemos imaginar que a tulou aqui surge também, com a sua excessividade chifruda, como o lado terrível do monte Kunlun.
Ora a cabra, animal de natureza independente e selvagem, capaz de trepar a impossíveis falésias e de sobreviver deglutindo alimentos improváveis, ao contrário da sua prima ovelha, não poucas vezes nos é apresentada como símbolo da lubricidade feminina, característica que os homens temem mais que a própria sombra, ainda que esta surja desenhada na obscura noite por tímidos raios do luar. Por isso, não nos estribamos na certeza de que a tulou literalmente devorava seres humanos ou se deles abusava sexualmente nas encostas inclinadas do monte Kunlun.
Nas parcas representações da tulou, damos por um animal cuja diferença para a normal cabra passa unicamente pela sua dimensão e pelo facto de exibir quatro salientes chifres. Sobre ela paira um ensurdecedor silêncio, como se aqueles que porventura tiveram ocasião de a encontrar, preferissem ficar calados e guardar para si mesmos as memórias, eventualmente terríveis ou maravilhosas, desses estranhos encontros.
Também sabemos que na cultura Hakka, que abrange parte de Fujian, Guandong e Jiangxi, o termo tulou refere uma espécie antiga e raríssima de casas circulares, cuja funcionalidade está ainda hoje longe de ser conhecida. O que dentro dessas casas ocorria não vem descrito em nenhum dos anais.

21 Out 2022

O Yingshao

Os atrevidos mortais, que tudo parecem querer classificar e arrumar nas suas frágeis gavetas mentais, amiúde sofrem por não conseguirem sequer rotular certos seres, por estes escaparem às categorias preconcebidas. É o caso do yingshao. Com um forte corpo de cavalo, a pele tigrada como os temíveis felinos, face humana e duas asas implantadas no dorso, ao darem por este estranho ente os sábios hesitam se o hão-de considerar um animal ou um ser divino.
Humano, com certeza, não será; ¿deveremos então considerá-lo pertencente ao reino da natureza ou ao reino do sagrado? Ou, tomando uma outra perspectiva, considerar que a sua existência esbate por completo as fronteiras entre os dois reinos e que essa separação não passa de mais um erro derivado da nossa leitura incapaz do mundo e das dez mil coisas que o compõem.
Segundos os antigos textos, o yingshao terá nascido numa extraordinária montanha chamada Huaijiang, onde o lápis-lazuli, um raro pigmento encarnado, jade branco, ouro e prata abundantemente existem. De tal modo esta montanha esplandece e espanta os homens que muitos acreditam ser a morada terrestre do Imperador do Céu e dão-lhe o nome de Jardim da Paz.
Contudo, a beleza da sua terra originária não foi suficiente para ali prender o yingshao. Aliás, nenhum lugar particular parece ter o condão de o fixar, pois esta criatura, tão magnífica quanto bizarra, é conhecida por continuamente se deslocar, quer por toda a terra, quer através dos Quatro Mares ou traçando temerários riscos ao longo da abóbada celeste.
Relatos arcaicos confirmam a presença do yingshao nos mais díspares e inopinados espaços, sendo desconhecido o que o faz mover-se sem hesitações ou descanso. Num dia poderá ser avistado no sopé de um monte verdejante, no outro descortinado no mais abrasante deserto ou sobrevoando as ilhas ignotas que salpicam os mares.
O yingshao é, sobretudo, apreciado pelos letrados, porque os sons que emite fazem lembrar os que ressoam no ar quando um ser humano lê um livro em voz alta. Quem o escuta, facilmente fantasia estar na presença de um incontido poeta ou de um inesgotável contador de histórias, embora até ao presente ninguém tenha sido capaz de encontrar sentido algum na cascata de sons que a sua boca incessantemente produz.
Alguns comentadores sugerem que o yingshao se exprime numa língua perdida, falada entre os antigos deuses. Estes são os que o consideram como pertencente ao reino dos seres divinos. Já outros apenas consideram esses sons como os grunhidos de uma besta incontinente que, continuamente, se vê impelida a proferi-los, sendo que a semelhança ao homem-leitor não passará de uma coincidência e, definitivamente, o catalogam como pertencente ao reino dos animais.
O que seguramente sabemos é que o homem, nem animal nem divino ou uma mescla infeliz dos dois reinos, é a bamboleante corda sobre o abismo que separa as bestas dos deuses (ou de uma realização humana ulterior, como descreve um bigodudo pensador alemão), ser infeliz de não dar por si como uma totalidade plena de sentido.
Já o yingshao, aproveitando as suas poderosas asas, sobrevoa esse mesmo abismo mas, para espanto de muitos, não se fixa nem de um lado nem do outro, preferindo uma vida nómada e, aparentemente, sem outro sentido que não seja usufruir do movimento a que parece para sempre condenado.

Este texto é uma ficção inspirada no clássico “Livro das Montanhas e dos Mares” (Shanhai Jing).

14 Out 2022

Mestre de dez mil gerações

Confúcio hoje? Mas que estratagemas singulares terá desencantado Mestre Kong para renascer, fénix uma e outra vez teimosa, das cinzas vermelhas da Revolução Cultural, como renascera dos escombros cinzelados da dinastia Qin? Onde encontra este pensamento, idoso de 2500 anos, a sua provada resiliência e como consegue ser suficientemente jovem e flexível para se reafirmar hoje no seio da cultura que rectificou e, ao mesmo tempo, estender a sua influência mais além?

Confúcio nasceu em Qufu, na província de Shandong, então reino de Lu, no dia 28 de Setembro de 551 a.E.C., nessa China imperial de antanho, ao que dizem produto de uma tempestade e de uma promessa.

No princípio era o mito

Seria um das primeiras tardes do ano de 551 a.E.C., quando o céu sobre cidade de Qufu, no reino de Lu, subitamente se cobriu de nuvens negras. Em breve ribombavam trovões e raios fendiam o céu enfurecido. Uma chuva grossa, açoitada pelo vento, tudo atingia e ensopava. Em suma, em meros minutos, montara-se uma tempestade pouco menos que perfeita.

Zhengzai, menina caçula da família Yan, regressava a casa, após tarde de passeio pelas colinas, onde solitária colhera ervas e plantas medicinais. Surpreendida pela inesperada tormenta, não encontrou outro refúgio senão uma simplória cabana de trabalhadores, edificada não longe da estrada. Ainda Zhengzai procurava meio de ali passar confortavelmente algum tempo, quando um homem desconhecido assomou à porta do tugúrio, também carente de abrigo daquela e de outras tempestades.

E foi ali, naquela choça indigna de nota, sob o signo de uma terrível procela, que Zhengzai terá concebido o filho de Kong He, a quem foi dado o nome de clã Kong Qiu, o epíteto de cortesia Zhongni e que viria a ser conhecido como Mestre Kong (Kong Fuzi), latinizado Confucius pelos padres jesuítas, um dos mais influentes pensadores que calcorreou o planeta Terra.

Kong He era um magistrado de 65 anos e fraca descendência masculina (tinha gerado nove filhas com a sua esposa principal e um filho deformado com uma esposa secundária). Face às esperanças de Zhengzai, tudo prometeu lhe proporcionar – riquezas e requintados confortos – caso nascesse um rapaz saudável, o que veio a suceder. Contudo, reza a lenda, logo se percebeu que não nasceria uma pessoa qualquer. Durante a gravidez, acontecimentos miraculosos eram sintomas, índices, augúrios, que de Zhengzai emergiria um grande homem, um excelso sábio, que todos encimaria e cujo destino se entrecruzaria com o da própria civilização chinesa.

Entre eles, destaca-se a aparição de um animal fantástico da mitologia chinesa, que reúne no seu nome qualidades de macho e de fémea: o qilin (unicórnio chinês).

Ora estava a mãe do futuro sábio entretida nos seus habituais afazeres, junto a casa, quando surgiu um qilin, que até seus pés caracoleou e aí depositou uma tablete de jade, onde era profetizada a grandeza futura do seu filho.

No dia 28 de Setembro, nascia Confúcio.

O qilin, entretanto desaparecido, voltaria a surgir na história quando, pouco antes da morte de Mestre Kong, se espalhou um relato segundo o qual uma destas quimeras fôra atropelada por um carroceiro destravado e se encontrava ferida, algures a recuperar.

Independentemente da veracidade desta narrativa inicial e iniciática, eivada de elementos míticos e esotéricos, alguns de inspiração budista, a vida de Confúcio revelar-se-ia uma odisseia atribulada. Pouco depois do seu nascimento (há quem diga no dia seguinte e há quem afirme três anos depois), o seu pai, talvez exultante de alegria, sucumbiu a um achaque e viu-se assim incapaz de cumprir a prometida subsistência de Zhengzai. Esta, entretanto, perdera o seu próprio pai e viu-se então reduzida a uma situação de extrema pobreza. Contudo, arranjou forças para sustentar e educar esmeradamente o seu filho. A tempestade passara e a promessa ficara por cumprir.

Depois veio o sábio. Mais tarde, já homem de seis pés de altura, um tamanho que causava profunda impressão, e sábio reconhecido, especialista nos ritos, Confúcio tentou colocar os seus préstimos ao serviço dos governantes, mas encontrou sempre grandes resistências, sobretudo por parte de ministros que entendiam desfavoravelmente o rigor das suas doutrinas e as consequências dos seus procedimentos. Conseguia ainda assim vaguear de reino em reino, como professor, conselheiro, mestre ou ministro, atraindo cada vez mais discípulos. No entanto, nunca manteve os seus cargos políticos durante um período suficientemente longo para permitir uma extensa avaliação do seus métodos. Foi sempre, em geral, coarctado pela inveja e pelas intrigas de quem rodeava os detentores do poder ou pelas manobras de outros reinos que temiam que o seu bom governo fizesse prosperar demasiado os seus rivais (Sima Qian, 1985, 47).

Tal como Sócrates e Jesus, Confúcio não deixou obra escrita e os seus ensinamentos chegam-nos através dos seus discípulos e comentadores. O Grande Mestre considerava-se, sobretudo, um editor e um transmissor de uma sabedoria esquecida. Face à decadência da dinastia Zhou e à ambição de cada um dos reinos que então constituíam o império, Confúcio propunha um regresso aos modos iniciais da dinastia e, sobretudo, ao exemplo dos grandes homens de Estado como os reis Yao e Shun, o rei Wen e o duque de Zhou. Com o objectivo de transmitir esse saber do passado, reorganizou Os Cinco Livros (Wujīng), que viriam a constituir o nódulo essencial da cultura chinesa clássica: Livro das Mutações (Yijing ), Livro das Odes (Shijing), Livro dos Documentos (Shujing), Livro dos Ritos (Lijing ) e Anais da Primavera e do Outono (Chūnqiū).

Os Cinco Livros, também crismados pelo Ocidente de Pentateuco da cultura chinesa, tornaram-se desde então na referência essencial da aprendizagem e da educação na China, servindo de biblioteca abarrotada de exemplos de uma sabedoria imbuída no comportamento e procedimentos de pessoas exemplares, versando da política à família, da explanação ritual à história, da adivinhação às práticas agrícolas, e até como manual de etiqueta e civilidade.

Mais tarde, já em plena dinastia Han do Oeste, os exames imperiais foram fundamentalmente baseados no conhecimento e capacidade de interpretação destes textos, seleccionados e editados por Confúcio.

O eclodir da obra

Depois da morte de Mestre Kong, num primeiro período, os discípulos e descendentes divulgaram com relativa facilidade as suas ideias, que rapidamente encontraram eco na comunidade pensante da China.

Nos três séculos seguintes floresceriam várias escolas de inspiração confuciana e importantes pensadores basearam-se nas suas ideias, como Mêncio ou Xunzi, cujas obras permanecem referências incontornáveis e inesgotáveis, ao longo dos tempos sujeitas a novas interpretações.

As divergências entre eles, na interpretação do pensamento do Mestre, surgem como um reflexo da complexidade de um saber, de uma via profícua, que conheceria numerosos desenvolvimentos ao longo da história do pensamento chinês.

Mas se, durante este período, os ru1 eram bem recebidos nas casas reais, com o advento da dinastia Qin (221-206 a.E.C.) ganharam extraordinária força as ideias ditas “legistas”, uma outra corrente filosófica chinesa, ferozmente oposta aos conceitos eleitos por Confúcio. Pela primeira vez, o confucionismo foi considerado como “inimigo do Estado”, os livros queimados e os seus seguidores ferozmente perseguidos.

É preciso compreender que Confúcio vivera durante o regime imperial extremamente débil da dinastia Zhou, em que os senhores locais, numa espécie de feudalismo, se encontravam dotados de grande autonomia. De algum modo, as ideias confucianas destinavam-se à interpretação e prática deste tipo de organização política e social, e não às necessidades de um Estado ferozmente centralizado, como preconizava e implementou a dinastia Qin, que pela primeira vez unificou a China.

Além disso e fulcral, temos a questão da cabra.

Vejamos:
O duque Ye disse a Confúcio: “No meu país um homem recto cujo pai roubou uma cabra denunciou o progenitor às autoridades.” Ao que o Mestre respondeu: “Os homens rectos no meu país são diferentes: o pai protege o filho e o filho protege o pai, isto é rectidão.” (Analectos, 13:8)

Como se pode deduzir deste aparentemente inocente episódio da cabra roubada, contudo de trágicas consequências, Confúcio revela dar mais importância à família do que ao Estado e colocar em primeiro lugar as relações familiares e clânicas face ao dever de servir o reino. O Mestre vai ainda mais longe: para proteger a família, poder-se-á mesmo ignorar a lei e ir contra a vontade do soberano. Ora tais propósitos não podiam cair bem junto de quem pretendia fazer da lei e da centralização do poder o sustentáculo máximo da governação, o que era o caso de Qin Huangdi, primeiro imperador da dinastia Qin.

A sabedoria confuciana seria, no entanto, salva da fogueira legista. Reza a lenda que alguém conseguiu esconder os principais escritos (incluindo Os Cinco Livros, as obras de Mêncio e de Xunzi) no interior de um muro, a famosa parede de Lu, que terá pertencido à casa original de Confúcio, hoje parte do Templo do Mestre em Qufu, donde foram recuperados após o advento da dinastia Han (205 a.E.C-224), durante a qual os ensinamentos dos ru foram de novo apreciados, estudados, complexificados e difundidos. Com os Han, o ruismo ganhava contornos de ortodoxia, pois encontrava-se agora ao serviço do Estado.

Contudo, nas dinastias seguintes, especialmente durante a dinastia Tang, a chamada intromissão de crenças estrangeiras, nomeadamente budistas, e a influência do daoísmo mágico, foram relegando o confucionismo para uma posição secundária. Nas cortes, os ru voltavam a perder posição e influência. Esta situação viria a causar uma forte reacção, com o advento da dinastia Song, originando o que se convencionou chamar de “neo-confucionismo”, ou seja, uma rejeição quase liminar do budismo e do taoísmo, acompanhada de um expressivo renascimento da ideias confucianas, agora reordenadas, reeditadas e reinterpretadas segundo os sábios desta dinastia, nomeadamente pelos dois Cheng, os irmãos Cheng Yi e Cheng Hao. Entre os seus seguidores, destacou-se Zhu Xi (1130-1200), que repensou e reorganizou o cânone confuciano, nomeadamente através da edição d’ Os Quatro Livros (Estudo Maior, Prática do Meio, Analectos e Mêncio), que viriam a ser a base incontornável do pensamento chinês tal qual o Ocidente o encontrou no século XVI, sob a lupa dos padres jesuítas, os seus primeiros tradutores para línguas europeias.

Assim, operara-se uma mudança fundamental: enquanto que, até à dinastia Song, os estudos e os exames se baseavam fundamentalmente n’ Os Cinco Livros, algum tempo depois de reconhecido e apreciado o trabalho de Zhu Xi, a cultura chinesa conheceria uma reorganização dos seus textos de referência. Nela assumia agora lugar preponderante a formação ética da pessoa por oposição ao sublinhar da importância dos ritos.

Os Quatro Livros passaram a ser a base dos exames imperiais e regularam o ethos chinês desde então até ao século XX. E, mesmo rejeitados e de novo queimados, pelas correntes modernas novecentistas ou pelo radicalismo dos Guardas Vermelhos, estes volumes continuam a encerrar os valores e ditames que ainda hoje regulam o comportamento e formam a culpabilidade de muitos milhões de pessoas.

Daí que tenhamos entendido como fundamental para o leitor contemporâneo empreender a publicação dos referidos volumes em língua portuguesa, pois neles se revelam as doutrinas que constituem a mais importante raiz não apenas do actual pensamento chinês como da modulação de comportamentos e práticas existentes na China e noutros países influenciados por esta corrente do pensamento.

O confucionismo é hoje uma das doutrinas mais presentes e realmente praticadas em todo o planeta. A sua influência não somente enforma a sociedade chinesa, com os seus 1,4 mil milhões de pessoas, como se espalhou a outras civilizações asiáticas onde desempenha um papel central (como a Coreia, Japão, Vietname e Singapura) ou constitui uma importante influência (como a Tailândia, Indonésia, Laos, Camboja e Malásia). Fazendo as contas, o confucionismo constitui a base moral de mais de um terço da humanidade e, com o crescimento da importância da China no palco mundial, a sua expansão não deverá ficar por aqui. Aliás, os indicadores do século XXI revelam que alguns aspectos da “moral oriental” tendem a emigrar para Ocidente e a “contaminar” as sociedades ocidentais, de matriz greco-romana, com os seus valores, tal como estas desde o século XVI têm “contaminado” o Oriente. Eis mais uma razão para do confucionismo fazer um estudo de eleição, no sentido de compreender, ao extremo, estas “viagens de ideias” e antecipar as suas consequências, para um lado e para o outro.

É a moral, pois claro!

Em palavras contemporâneas, diríamos que, para Confúcio, o homem é, antes de mais e de tudo, um produtor de moral. Sabe distinguir o bem do mal e encontra-se dotado de livre arbítrio. Estas qualidades distinguem-no dos animais e de todos os outros seres. Portanto, daqui advém também a sua responsabilidade, o dever de incorrer em acção correcta, de modo a criar um mundo em que prevaleça a harmonia.

Assim, o modo como se apresenta, como se veste, como anda e como fala; o que diz, o que lê, o que desenvolve como actividade, o que produz e como se dirige aos outros; enfim, toda e qualquer acção humana (e mesmo a ausência dela) é imediatamente produtora de valores morais (e, num plano superior, estéticos), quer como exemplo para os outros, quer a partir dos resultados das práticas concretas.

De sublinhar que, ao contrário de Sartre (para quem “o inferno são os outros”), Confúcio só entende o homem em relação com outros homens, como animal gregário, social e cultural. Para ele, a vida são os outros e este é um facto incontornável. Dos desígnios do Céu, do mundo, da vida depois da morte, dos espíritos, pouco ou nada sabemos e de nada podemos ter a certeza. Por isso, antes de mais, devemos regular o que podemos controlar: as nossas relações humanas e sociais.

O confucionismo é um pensamento moral e ético, que visa uma prática, destinado a contribuir para uma excelsa regulação das relações entre os homens e destes com o mundo. Pensamento político, com certeza e, em grande parte, destinado aos que exercem o poder, no sentido de os convencer da necessidade imperiosa de autovigilância, virtude e benevolência nas suas acções, o confucionismo cedo ignora a metafísica e se centra na regulação dos assuntos humanos.

O objectivo do confucionista é tornar-se uma pessoa exemplar (junzi), ou seja alguém cujo comportamento é de tal modo virtuoso e benevolente que os outros naturalmente o seguirão. Mas como atingir este estado de exemplaridade? Para os ru, o homem nasce dotado de uma “luminosa virtude”, que lhe é conferida, homologamente, pelo Céu. Mas, ao longo da sua vida, ao roçagar pelos constrangimentos sociais e com a emergência dos desejos egoístas, a sua natureza original gradualmente se esvai, sendo então necessário recuperá-la.

Como fazê-lo? Várias escolas indicam diversos caminhos mas, fundamentalmente, todos concordam que tal se efectua pelo “cultivo de si” (xiushen). Quer este “cultivo de si” signifique a aquisição de conhecimento, “a investigação das coisas”, como querem uns, ou meramente “a rectificação do coração” e “tornar íntegros os pensamentos”, como sugerem outros, o cultivo de si representa no confucionismo o esforço individual, o dao de cada um, para atingir a plena prática de ren. Neste sentido, o cultivo de si, embora deva ser feito através do estudo, permanece como um trabalho constante do indivíduo no sentido de rectificar constantemente o seu coração, tornando os seus pensamentos eficazes e autênticos (cheng). É neste sentido que no Estudo Maior (Da Xue) surge escrito: “Na banheira de Tang, fora gravado: “Renova-te com rigor dia após dia. Que haja uma renovação diária.”

A necessidade de renovação contínua inscreve-se num permanente acompanhamento do devir do universo. Zhu Xi prescreve-a, através da inscrição da banheira de Tang e da comparação higienista. Esta funciona em dois planos: primeiro, a urgência de continuamente renovar a investigação das coisas e os seus princípios, por estarem permanente transformação; segundo, a eliminação das máculas que o exterior vai traçando em cada natureza original3. Finalmente, sublinha a importância de uma constante atenção: “É impossível admitir, ainda que por negligência, um intervalo ou uma interrupção”.

Por outro lado, a eficácia destes procedimentos passa em grande parte pela compreensão e a execução dos ritos, na medida em que estes proporcionam o modo correcto de proceder.

Qualquer pessoa pode afinar o seu comportamento vergando-o à execução dos ritos. O rito é uma via segura para o discorrer da acção. Assim, por exemplo, ao entrar numa sala, a criança sabe de antemão, se conhecer o rito, quem deve cumprimentar em primeiro lugar e como se dirigir de forma apropriada a cada um dos presentes, consoante a sua posição social e/ou familiar. Assim se evita o erro e se mantém a harmonia.

Eficácia até ao fim?

A postura de Confúcio face ao saber (afinal, o que podemos conhecer?) foi determinante para o pensamento chinês como a de Sócrates para o pensamento ocidental. Neles detectamos propósitos semelhantes e gigantescas diferenças.

De facto, ambos transformaram o pensamento do seu tempo numa “antropologia”, ao fazerem do homem o centro das suas preocupações. Sócrates desprezava tanto o discurso sobre o cosmos, querido aos sofistas, como Confúcio ignorava o que não fosse relações humanas. Contudo, o Mestre de Dez Mil Gerações emitia um pensamento voltado para a “eficácia” e não para a descoberta da “verdade”, já que quanto a essa, tão querida à “parteira grega”, entendia que cada família, cada grupo, cada pessoa teria a sua e isso interessa muito pouco ao modo como nos relacionamos uns com os outros. A verdade exclui e por isso é criadora de conflitos e desarmonia.

Metafísica, vida depois da morte, a existência dos deuses e dos espíritos, a sacralidade do Céu e da Terra, nada disto realmente preocupava Confúcio, já que o que ele via, o que ele vivia e ressentia era o quotidiano dos camponeses e as iniquidades dos senhores, os esforços dos letrados e o desprezo pelo saber dos ocupantes das cadeiras do poder, cujo comportamento vicioso, distanciado dos princípios morais, impedia o estabelecimento da harmonia e de um governo justo para todos os homens.

Eficácia ao invés de verdade, Li em vez de logos — narra a história deste pensamento que, para plenamente se exercer, não se satisfaz com o respeito à moral social vigente mas obriga a uma profunda interrogação ética. É certo que muitos atribuem (e bem) ao ruismo uma inclinação para o conformismo social, como se cada um devesse ficar satisfeito com o lugar que o destino lhe atribuiu na sociedade e, consequentemente, respeitar os poderosos. E, claro, o poder soube ao longo dos tempos aproveitar-se dos aspectos mais “reaccionários” da sua obra ou o confucionismo não teria sido incensado e servido de cartilha em numerosos momentos da história chinesa.

Mais recentemente, vários pensadores chineses reinterpretam o confucionismo enfatizando aspectos que lhes permitem hierarquizar os “direitos colectivos” acima dos “direitos individuais”, os “deveres” para com a comunidade acima dos “direitos de cidadania” e, sobretudo, recusar a ideia de indivíduo — isolado e considerado independentemente de outros membros da sua sociedade — adaptando este pensamento à ideologia hoje reinante na China em que o Estado sobremaneira controla e regula a cidadania (Chen Lai, 2014).

Será mesmo assim ou a leitura dos textos originais abrirá portas que permitem outras interpretações e conclusões? Estamos perante uma doutrina “reaccionária”, “nacionalista”, “só para orientais”; ou conterá virtualidades, como a “benevolência, integridade, rectidão, harmonia, cultivo de si e virtude”, que lhe permitirão tornar-se num pensamento global?

Certo é que entender Confúcio é entender a China de ontem, de hoje e de amanhã. E, nesse entendimento do confucionismo, na sua reavaliação e actualização, residirá grande parte da resposta à pergunta: que papel desempenhará o pensamento chinês no futuro da humanidade e que consequências daí advirão?

 
Notas

1 Ru significa “letrado”, “culto”, e é utilizado para pessoas, ideias ou coisas relacionadas com os pensamentos e as práticas derivadas de Confúcio. No passado, ru era, por exemplo, o conjunto dos letrados confucionistas que ensinavam ou aconselhavam os governantes e as suas famílias. Segundo Zhou Youguang, o pai do pinyin, ru originalmente referia-se aos antigos métodos utilizados pelos xamanes nos rituais, mas depois de Confúcio tornou-se na designação para os que espalham as suas ideias e educam o povo. Alguns pensadores contemporâneos rejeitam mesmo o termo “confucionismo”, por ser de origem europeia, e propõem que as doutrinas relevantes sejam chamadas de “ruismo” e os seus seguidores “ruistas”, por entenderem que tal é mais fiel ao original chinês.

2. Legge escreve não ter encontrado em qualquer outro documento referência alguma a esta citação, gravada na banheira de Tang, fundador da dinastia Shang. Admite que terá sido recolhida da sabedoria tradicional. Legge, James; THE FOUR BOOKS, The Great Learning; Culture Book Co.; pág. 10.

3. Natureza (xing) significa fundamentalmente “natureza humana”, apesar de Zhu Xi a generalizar a todos os seres. O Céu confere ao homem a sua natureza que necessita, no entanto, de ser regulada através da educação porque ao longo da vida ela é, geralmente, desvirtuada. Portanto, a natureza humana é entendida como tendo um carácter transcendental, na medida em que é decorrente do Céu. Segundo o comentário de Zhu Xi, Zisi transmite neste capítulo as bases da concepção confuciana do mundo, começando por referir a origem celeste da Via e a sua imutabilidade. O homem encontra-se plenamente munido desta realidade substancial e não a pode abandonar.

Ao apresentar na mesma frase quatro noções interligadas – Céu, Natureza Humana, Via e Educação, este livro lança os fundamentos da cultura filosófica chinesa: a realidade da natureza moral do homem encontra o seu fundamento no Céu; para se manter na Via, deverá ser empreendido o cultivo de si (regresso à natureza original/celeste), através da educação. De notar ainda que existe uma homologia (uma mesma estrutura) entre Céu e Natureza Humana, o que justificará o desenvolvimento ao longo de todo o pensamento chinês (nomeadamente, entre os letrados) de uma “ontologia” moral.

A moral encontra aqui um princípio natural e universal, que é inalterável, coerente e espontâneo. O que poderia, em termos de filosofia ocidental, ser considerado unicamente transcendente, absorve aqui a noção de imanência. A moral não vai contra a natureza humana; pelo contrário, ela é um “estado natural” do homem, sendo pervertida pelos acidentes da existência e pelo egoísmo de cada indivíduo. A natureza humana (moral) é dada, mas não realizada. Para a realizar, há que recorrer à educação/cultivo de si.

11 Out 2022

A Via do Meio

A partir do século XVI, podemos afirmar que foi através dos portugueses, nomeadamente padres jesuítas, que a China foi sendo cada vez mais conhecida e discutida na Europa. O “Tratado das Cousas da China”, escrito por Frei Gaspar da Cruz (1520-1570) e publicado em Évora por André de Burgos em 1569 “é, tanto quanto hoje se sabe, o primeiro texto impresso integralmente dedicado ao Celeste Império”, lê-se na introdução de uma edição portuguesa de 2019, efectuada pela Universidade do Porto.

Muitos outros textos se seguiram, como os curiosos diálogos que constituem o “Excelente Tratado” (1590), de Duarte Sande e Alessandro Valignano, e também as cartas originárias da própria China, escritas por esses sacerdotes missionários. Lembramos também aqui, a título de exemplo, as importantes “Relação da Grande Monarquia da China” (1637), de Álvaro Semedo, SJ, seguida pela “Nova Relação da China” (1668), de Gabriel de Magalhães, SJ. Se a primeira é, no dizer de António Aresta, “uma das obras magnas do amanhecer da sinologia europeia”; a segunda foi admirada por toda a Europa culta pela sua minúcia e extensão.

Resumindo, foi em grandíssima parte pela mão de portugueses, ainda que grande parte deles escrevesse em latim, que a China foi aos poucos ocupando um lugar importante no imaginário intelectual europeu. Infelizmente, a partir de finais do século XVIII a sinologia em língua portuguesa conheceu um longo período de pousio, cujas razões não vamos aqui dissecar.

Em Macau, durante o século XX, assistimos à republicação das referidas obras, feita graças aos esforços solitários de Luís Gonzaga Gomes e, na década de 90, sob a égide do Instituto Cultural de Macau. Contudo, se estas obras fundamentais foram de novo impressas, algumas delas pela primeira vez em língua portuguesa, pouco ou nada foi feito para estimular os estudos sinológicos. Tem sido, sobretudo, no Brasil que têm surgido estudos sobre a China em língua portuguesa, estando agora, no século XXI, a academia portuguesa a despertar de décadas de apatia e desinteresse por esta área de estudos.

Sem pretensões excessivas, desde o seu aparecimento em 2001, que o Hoje Macau tem divulgado nas suas páginas temas relacionados com a Cultura Chinesa em língua portuguesa. Publicámos traduções de poemas, de textos fundamentais do pensamento chinês, cuja tradução estimulamos e que vamos vertendo em livros através da editora Livros do Meio, estudos de Macau (que consideramos integrantes da sinologia em português), artigos sobre mitologia, antropologia, história, etc..

Porém, entendemos que chegou a altura de intensificar este nosso propósito. Para isso criámos esta nova secção, intitulada “Via do Meio”, que diariamente apresentará aos nossos leitores artigos e traduções pela pena de alguns dos sinólogos que se expressam em língua portuguesa, bem como entrevistas com estes especialistas, a propósito dos seus trabalhos.

Aproveitando estes textos, será publicada bimensalmente uma revista com o mesmo título, “Via do Meio” (em formato digital) que, ao que sabemos, será a primeira do género na língua de Camões.

Esperamos que os nossos leitores sigam estes trabalhos com o interesse que merecem, pois acreditamos que é através do conhecimento mútuo que os povos criam laços mais duradouros e se evitam muitos dos mal-entendidos que, naturalmente, surgem quando diferentes civilizações se encontram, sobretudo hoje, neste espaço, partilhado e cada vez mais exíguo, a que chamamos Terra.

6 Out 2022

O Fuxi

Ó meus amigos, companheiros destas funestas viagens por países tão antigos quanto as estrelas e a Lua, e tão estranhos quanto o profundíssimo interior de nossas desgraçadas almas, ¿que sobressaltos ainda nos esperam, que magias secretas teremos ainda de superar, que horrores se erguerão perante as nossas pupilas dilatadas de espanto e terror?

Cada vez mais perto de nossas precárias existências, uiva o monstro da guerra, que ameaça fundir de vez a humanidade com a terra, incessantemente percorrida pelo espectro esquálido da fome e pela invisível maldade de dez mil pestes.

Ó maldito humano, que te crês superior à própria Natureza, mas depois te revelas, uma e outra vez, incapaz de simplesmente ordenar a tua existência e não compreendes que te encontras possuído pela inconstante ira e és escravo da tua própria ambição! Não te contentas com o jade branco ou o refulgente ouro, não há tesouro que sacie tua inextinguível sede de mando sobre os outros homens, os animais e as coisas; pois em ti habita uma eterna angústia; em ti rastejam as serpentes expulsas; por ti cresce, poderosa e impante, a fertilíssima hera do Mal!

É talvez por isso que no Monte a que chamam do Veado Branco, onde um dos oito imortais em montada sagrada se evolou pelos céus rumo a Penglai, habita o fuxi, um pássaro cuja forma lembra a do galo, embora encimada por uma cabeça humana. ¿Que estranhas cópulas, que monstruosos amplexos, que terríveis procedimentos terão ocorrido para tornarem possível a existência deste sinistro animal? Não sabemos, mas basta a nossa mente extenuada atrever-se a alvitrar uma resposta, para logo sentirmos a pele percorrida por horrendos arrepios e o coração disparar em desfilada, qual cavalo selvagem fustigado pelo chicote nocturno do medo, alheio a rédeas e contenção.

Que os homens se abstenham de percorrer o Monte do Veado, pois apesar de nele existirem riquezas capazes de acalmar as mais desvairadas ambições, se tiverem a desgraçada sorte de vislumbrarem um fuxi, é certo que cedo se desencadeará uma Guerra e por ela perecerão os campos cultivados, por ela serão decapitados os mansos animais, por ela serão sacrificados os melhores mancebos de duas gerações e destruída a soberba dos países.

O fuxi emite um som que lembra o seu nome. Se o ouvirdes, sombria noite ou dia claro, arrepiai caminho, pois a senda onde vos encontrais é a mais certa das vias para a desgraça!

30 Set 2022

Biden contra Biden

O mundo está já habituado ao facto dos Estados Unidos da América (EUA) raramente cumprirem a palavra dada no que toca ao cumprimento das promessas feitas e dos compromissos alcançados em termos de relações internacionais.

Assim se passou quanto à expansão da OTAN para Leste na Europa, quando do desmembramento da União Soviética, e não podemos deixar de pensar ter existido um dedo americano no incumprimento dos tratados de Minsk por parte dos governos da Ucrânia, resultantes do golpe de 2014, claramente apoiado e suportado pelos EUA. O resultado foi o que se sabe: a invasão russa e um conflito armado que pode desembocar num apocalipse.

A OTAN, que ainda hoje se apresenta, descaradamente, como uma aliança unicamente vocacionada para a defesa no caso de ataque inimigo, não se coibiu de bombardear a Sérvia, a Líbia, a Síria, o Iraque, o Afeganistão, entre outros, com os resultados conhecidos. Depois da II Guerra Mundial não consigo encontrar um caso de intervenção militar americana que tenha, de algum modo, melhorado a vida dos cidadãos desses países e muito menos aportado “direitos humanos e democracia”, talvez com excepção da Coreia do Sul, um país onde, contudo, existe um tremendo fosso social, cultural e económico entre ricos e pobres, poderosos e destituídos, como se pode constatar, por exemplo, no filme “Parasitas”, galardoado com um Oscar, ou num tom mais sério e radical na obra do cineasta Kim Ki-duk.

Contudo, as mentiras de um país como os EUA encontram, geralmente, actores diferentes, políticos que renegam o que foi dito pelos seus antecessores, procurando desse modo desculpas esfarrapadas e, mais grave ainda, elevando a níveis preocupantes a desconfiança que a comunidade internacional sente face ao que é um dos países militarmente mais poderosos do mundo e cujo regime tem o dislate de se apresentar como o “fim da História”.

Curiosamente, no domingo passado assistimos a um espectáculo diferente. O presidente Joe Biden, ao proferir que os EUA interviriam militarmente caso a China decidisse invadir a ilha de Taiwan e unificar de vez o país, não apenas contraria o que tem sido afirmado pela diplomacia americana, como renega o que ele próprio afirmou num artigo por si assinado em 2001.

Recordemos os factos e o contexto. Nessa altura, era presidente dos EUA o republicano George W. Bush, o homem que ordenou a invasão ilegal do Iraque com o pretexto de encontrar as armas de destruição massiva que nunca existiram. Bush foi questionado se os EUA teriam a obrigação de defender militarmente Taiwan no caso de um ataque vindo do continente. A sua resposta foi: “Sim, temos. E os chineses têm de perceber isso. Sim, eu teria (essa obrigação)”. E prosseguiu afirmando que faria “o que fosse preciso”, nomeadamente empregar “toda a força do exército americano”, para ajudar Taiwan a defender-se desse eventual ataque.

Ora o então senador Biden criticou fortemente o presidente americano, num artigo intitulado “Not so deft in Taiwan”, publicado no Washington Post, onde começava por afirmar que “as palavras contam (matter), em diplomacia e na lei” e, apesar de reconhecer que “algumas horas mais tarde, o presidente apareceu para se distanciar deste novo e surpreendente compromisso, sublinhando que continuaria a seguir a política de ‘uma só China’ seguida por cada uma das últimas cinco administrações”, Biden remata que “onde outrora os Estados Unidos tinham uma política de ‘ambiguidade estratégica’ – sob a qual nos reservávamos o direito de usar a força para defender Taiwan mas mantínhamo-nos calados sobre as circunstâncias em que podíamos, ou não, intervir numa guerra através do Estreito de Taiwan – agora parece que temos uma política de ‘ambiguidade estratégica ambígua’. Não se trata de uma evolução positiva”.

E continua aquele Biden de 2001:

“Como questão de diplomacia, existe uma enorme diferença entre reservar o direito de usar a força e obrigar-nos, a priori, a vir em defesa de Taiwan. O presidente não deve ceder a Taiwan, muito menos à China, a capacidade de nos atrair automaticamente para uma guerra através do Estreito de Taiwan. Além disso, para cumprir a promessa do presidente, quase de certeza que queremos usar as nossas bases em Okinawa, Japão.

“Mas não há provas de que o presidente tenha consultado o Japão sobre uma expansão explícita e significativa dos termos de referência para a Aliança de Segurança EUA-Japão. Embora a aliança preveja operações conjuntas nas áreas circundantes do Japão, a inclusão de Taiwan nesse âmbito é uma questão da maior sensibilidade em Tóquio. Sucessivos governos japoneses têm evitado ficar presos a esta questão, por medo de fracturar a aliança.

“Por uma questão de lei, as obrigações e políticas são também mundos à parte. O presidente tem ampla autoridade política no domínio da política externa, mas os seus poderes como comandante-em-chefe não são absolutos. Nos termos da Constituição, bem como das disposições da Lei das Relações de Taiwan, o compromisso das forças dos EUA para com a defesa de Taiwan é um assunto que o presidente deve levar ao povo americano e ao Congresso.”

Mais palavras para quê? Afinal, que Biden devemos levar a sério, o de 2001 ou o de 2022? Estará o actual presidente dos EUA a ser de tal modo pressionado pelos falcões ansiosos de guerra (o complexo industrial-militar), que descamba em declarações como as do passado domingo, e não terá a capacidade interior de lhes resistir, ainda que tal agudize a instabilidade que actualmente reina na cena internacional? Será que Joe Biden realmente existe e exerce o poder ou não passa de uma marioneta, cujo papel se resume a recitar o texto que outros lhe escrevem?

As atitudes recentes dos EUA em relação em Taiwan parecem querer provocar a intervenção militar do continente que, legitimamente, aspira à unificação da China e que não poderá admitir mais passos no sentido da independência da ilha. Por enquanto, Pequim tem demonstrado que prefere uma solução pacífica do problema e nem sequer estabeleceu um calendário definitivo para a reunificação. Contudo, se as provocações americanas continuarem e encontrarem eco em Taipé, o caso poderá mudar rapidamente de figura.

Talvez Biden consiga convencer Biden de que a sua actual posição é profundamente errada e perigosa para esta região e para o mundo em geral. E que Biden consiga conter os ímpetos belicistas, hegemónicos e neocolonialistas de Biden. O mundo espera para ver qual dos Biden aparecerá a seguir nos ecrãs de televisão e qual o guião que desta vez escreveu ou lhe deram para ler.

Talvez Biden compreenda que a humanidade deve seguir o caminho da paz e os EUA adoptem uma política de não-interferência nos assuntos internos de outros países ou, pelo contrário, Biden acirre mais os conflitos na cena internacional e nos conduza a todos à desgraça. É que, como diria Jim Morrison, não vale a pena ter ilusões: “Daqui ninguém sai vivo”.

22 Set 2022

21 anos é demasiado tempo

21 anos é a idade em que a nossa sociedade atribui total maioridade. Os 18 anos são uma espécie de ensaio, um primeiro ritual de independência, uma festa que celebra um tiro de partida cuja meta se encontra ali três anos à frente, um período que deveria ser de intensa preparação cognitivo-emocional. Porque é aos 21 que a sociedade espera realmente de todos outra postura e, sobretudo, a capacidade de olhar para a frente e enfrentar o destino, deixando-se espezinhar ou pegando-o pelos cornos.

Os 21 anos são excitantes porque cada sujeito se aventura como se o mundo fosse novo, quando na realidade é ele que se vê na contingência de mudar, para ao mundo se ajustar ou o enfrentar, com plena responsabilidade pela sua sobrevivência e pelas suas acções. Os 21 anos são, para muitos, tempo de embarcar, de erguer as velas sem esperar por vento, de operar uma desterritorialização fundamental.

Assim não é com os jornais, que têm uma vida muito mais acelerada, cujo coração bate a uma velocidade infinitamente superior ao de um ser humano, cujos rins filtram muito mais dejectos e gorduras, cujo fígado se vê obrigado a inúmeras horas extras e cujo estômago rapidamente se danifica. Um jornal envelhece quase à velocidade da luz. Se remexesse no baú da memória poder-vos-ia contar dezenas de episódios que confirmariam a desmesurada intensidade dessa vida de um jornal, que ilustrariam como os primeiros cinco anos pesam como 20; e como aos 10 surgem já as primeiras brancas; e aos 15 a primeira falta de fôlego para uma subida agora demasiado íngreme. O que dizer dos 21, que hoje comemoramos?

Não sei se sobre o nosso cabeçalho, o cabelo rareia ou encaneceu, mas dou pelo cuidado e pelas maneiras de um ancião. Que se precavê de escorregar no banho, caminha lento pela rua e hesita antes de atravessar, mesmo que no horizonte não vislumbre um único automóvel, carrinha ou camião. Por outro lado, além de manter a espinha relativamente direita, também organizou melhor o seu tempo (agora, por vezes, tem tempo de olhar demoradamente o poente ou uma flor), diversificou as suas preocupações e alcançou altíssimas classificações no curso de nadador-salvador. Também adquiriu uma extensa paciência e uma sincera benevolência perante as idiossincrasias do género humano. Numa palavra, envelheceu. Talvez precocemente, como acontece à maioria dos jornais.

Um dos sintomas da nossa provecta idade é a dificuldade que temos em lidar com as novas tecnologias. A esta hora, deviam estar a ver as minhas fuças num vídeo, a recitar-vos este texto, com um cenário de capas sucessivas deste jornal ao longo dos 21 anos que hoje faz. Devíamos tanta coisa: como ter uma presença mais contemporânea nas redes sociais, acordos com jornais lusófonos, entrevistas em vídeo, concursos vários, etc. E também mais jornalistas, mais funcionários, sobretudo bilingues, e devíamos também ter um acordo com Timor-Leste para formar jornalistas através de estágios e…; no entanto, devido a esta interminável crise pandémica (cujo fim não se vislumbra, o que nos deixa a todos angustiados, e pela qual ninguém é responsável), estamos preocupados em saber se sobreviveremos até ao fim do ano ou se definharemos até o Hoje Macau se apresentar aos seus leitores esquálido, ossos à mostra, os dentes estragados.
Ainda assim vivo.

*

Durante estes 21 anos procurámos informar mas fomos também um espaço de criatividade, em que alguns relevantes escritores contemporâneos da lusofonia usaram as páginas do Hoje Macau para expressar as suas ideias, o seu estilo, a sua sensibilidade, através da escrita. Sem baias, sem freios, nem restrições. Estamos-lhes sinceramente agradecidos. Foi uma bonita festa, inopinada, é certo, mas por isso mesmo mais interessante. Celebrámos poetas e pensadores, motivámos artistas e, sobretudo, foram desenhadas pontes entre pessoas afastadas, várias epistolografias (hoje através de emails), amizades, famílias até, tudo isto tendo Macau como inesperado pólo agregador da lusofonia. Chamámos a essas páginas “h”, a mais diacrítica das letras, quase observadora, de limitada interferência na palavra. Nelas também divulgámos, a par com as crónicas, poemas ou outros textos dos nossos colaboradores, muitos aspectos da cultura chinesa, cuja representação em língua portuguesa continua a ser confrangedoramente pobre.

Aos poucos, fomos promovendo e publicando as traduções de algumas das mais importantes obras do pensamento chinês, bem como alguma da melhor poesia que ressoou pelo País do Meio, bem como artigos sobre mitologia, história, pintura, antropologia, etc.

Humildemente, sem meios nem rasgos, o Hoje Macau procurou sempre transmitir, na medida das suas possibilidades, conhecimento e informação sobre cultura chinesa em língua portuguesa, no sentido de proporcionar um melhor entendimento à comunidade portuguesa de Macau da civilização onde está inserida e contribuir, modestamente, para ir colocando uns tijolos no incongruente e rarefeito muro da sinologia portuguesa.

Ao longo destes 21 anos, granjeámos assim um importante espólio de traduções que temos vindo a publicar em livros, através da editora Livros do Meio. O mesmo espólio tem-nos permitido organizar a Semana da Cultura Chinesa do Hoje Macau, que vai na sua segunda edição, e que tem obtido uma resposta positiva junto do público lusófono, não apenas em Macau, e que tem contado com a presença de personalidades locais, capazes e eficazes na construção de pontes entre civilizações e culturas. Agora pretendemos aprofundar esta nossa via de aproximação à cultura chinesa e, em breve, apresentaremos novas abordagens e novos projectos.

*

Como acima foi dito, 21 anos para um jornal é muito tempo. Por isso, numa sociedade acelerada como a nossa, vimos muito mudar, demos por muito acontecer, assistimos a crises, à luz no fundo do túnel, e também à saída para uma outra e melhor realidade.

É também por isso que neste momento de indisfarçável crise, deveria ser altura para manter a calma, respirar fundo, não bater com a cabeça na parede e não tomar decisões precipitadas. E ter a consciência de que se sai de uma crise mais forte e não mais fraco, mais experimentado e não mais ignorante, mais apto e não mais frágil. Pelo menos, os que a ela sobreviverem, em termos físicos e mentais.

A actual situação, a sua excessiva duração, empurrou Macau para um dos seus piores momentos dos últimos 50 anos, não se comparando com outros períodos de crise que afectaram a região, pois nunca como agora se viram tantos negócios fechados, tantos desempregados, tantas famílias em debandada e, sobretudo, tanta falta de esperança.

É precisamente esperança que o Governo de Macau não tem dado em doses suficientes à população. A esperança de ver terminada esta crise, a preparação e descrição do momento seguinte, faltam na mente colectiva de Macau, independentemente da etnia que se considerar. Isto talvez seja tão ou mais importante do que dar dinheiro ou fazer conferências de imprensa assustadoras. Porque a verdade é que subiram em flecha o número de suicídios, violência doméstica e abuso infantil. O que significa isto senão que nos estamos a tornar numa sociedade verdadeiramente doente? Quando a esperança se dilui, emergem os instintos mais básicos e o mal campeia pela cidade. Ou seja, esta situação tem de encontrar brevemente uma saída, sob pena de quando sairmos deste buraco será para uma cidade irreconhecível. Em momentos como este, é preciso liderança, ideias para o futuro, capacidade as comunicar, para que a esperança não seja a primeira morrer.

E foi assim, aos 21 anos, que esta crise nos colheu, que esta besta nos despojou, que este vírus arruinou muitos indivíduos, muita família. Nós, para o ano, cá estaremos, celebrando os 22 (que simpático número!). E esperamos que os nossos leitores nos acompanhem, estejam onde estiverem, para sempre ficarem a par das notícias de Macau e connosco mergulharem, nadarem e se deixarem levar pelas correntes dos mares, antigos e contemporâneos, da cultura chinesa.
Nós somos um parafuso num pilar dessa ponte que começou a ser construída há cinco séculos e que vai permitindo a comunicação entre a China e a Lusofonia. Sabemos ser este o nosso lugar de excelência e, como diria Mestre Confúcio, é nele que pretendemos permanecer.

5 Set 2022