Ìì (tian), céu; µØ (dì), terra

Enquanto que no Ocidente o conceito de Natureza denota todo o universo exterior ao ser humano, que só tenuemente a ela se encontra ligado, no pensamento confucionista o mesmo campo semântico é recoberto pelos conceitos de Céu (Ììtian) e Terra (µØ dì), o que resulta numa polarização daquilo que, substancialmente, para o ocidental é uno. O primeiro é redondo e tudo cobre; a segunda é quadrada e está suspensa sobre a água, cercada pelos Quatro Mares. O Céu impregna todos os processos existentes (todos os seres) porque ignora o particular, não se detém em quaisquer actualizações ou parcialidades. Tal garante a plenitude do seu constante funcionamento. A Terra é receptiva e conforme: ela tudo sustem e alimenta.

No Livro das Mutações, o hexagrama Qian (Céu) é composto por seis linhas plenas, e o hexagrama Kun (Terra) é desenhado com seis linhas quebradas, ou seja, puro yang e puro yin, o princípio criador e a potência receptora. Note-se que esta concepção dinâmica da Natureza se complexifica noutros conceitos, como via (dao), sopro (qi) ou padrão (li), que formarão um sistema de pensamento coerente e que se tem desenvolvido ao longo dos séculos.

Apesar destas alterações na diacronia e independentemente do papel que cada pensador ou escola lhe destinou, Céu denota para todos o mesmo significado de princípio (no sentido de origem e causa) criativo e organizador, que impregna todos os seres. Para os confucionistas, o Céu não é um ser sobrenatural, nem uma consciência todo-poderosa ou interventora no particular, mas o conjunto de princípios que funda a Natureza e enforma todos os processos.

Tal como não representa algo de sobrenatural, o Céu também não foi criado por uma potência divina ou uma consciência/vontade exterior a este mundo. Se, na mitologia chinesa da dinastia Shang, o Céu é referido como habitado e como tendo um soberano (ÌìµÛtiandi), nunca se trata de um Criador do universo, no sentido do Deus do Livro, mas de um monarca que gere os seus domínios celestes como o imperador governa na Terra. Contudo, a partir da dinastia Zhou, o próprio termo di vai gradualmente desaparecendo e sendo substituído unicamente por tian. “A transcendência é cada vez menos a de um mundo situado para lá do humano, onde habitariam espíritos manipulando os elementos naturais; ela só subsiste como transcendência da norma em relação ao que lhe está submetido, ao princípio original em relação aos dez mil seres.” (Vandermesch, Léon, citado em Cheng, 1997, 56)

Os autores confucionistas não escrevem nem falam sobre a criação do Céu e da Terra, nem de qualquer precedência entre ambos. Eles já lá estão e sempre lá estiveram; não se refere um princípio, como não se prediz um fim. Trata-se de duas instâncias de sinal contrário mas complementares, interligadas, de dois pólos que não existem um sem um outro, que continuamente se relacionam e interagem, como representa o símbolo do Yin/Yang que coloca em cena uma funcionalidade e, desdobrada no Livro das Mutações, desmonta a questão da precedência. Ao contrário de uma cosmogonia religiosa, que exige o dogma de um acontecimento desencadeador da Criação e outras rupturas, como a expulsão do Paraíso ou a vinda de Cristo, estamos perante um mundo entendido em termos de funcionamento e de processo.

Nessa funcionalidade, o Céu representa “a perseverança de ir em frente (jian, incarnado pelo hexagrama Qian)” e a Terra “a disponibilidade para se conformar” (shun, incarnado pelo hexagrama Kun)”. Mas tanto a iniciativa como a receptividade têm necessidade da existência uma da outra. A rigidez do yang precisa da maleabilidade do yin para se exercer.

Alguns dos atributos que Láucio reconhece na Via (µÀ dao) surgem no confucionismo como qualidades do Céu. Ele é silencioso e inodoro. Mêncio afirma:“Será que o Céu fala? As quatro estações seguem o seu curso e todas as coisas são criadas. Mas será que o Céu fala? O Céu não fala.” A actividade celeste, resguardada por este trágico silêncio e por uma infinita magnitude, é incompreensível para o ser humano. Por isso, o Céu é descrito como sendo “inconcebível”, “extenso e substancial”, “impregnante”, “profundo e infinito”.

Tanto o confucionista Xunzi, como o daoista Zhuangzi utilizam, mais radicalmente, a palavra tian para designar o que é “natural” por oposição ao “artificial”, ao que é feito pelo homem. Por exemplo, diz Mestre Zhuang, as quatro patas de um cavalo são tian, enquanto a rédea é artifício.

O Céu é o agente e a causa dos efeitos que são passíveis de ser objecto da experiência humana. Esta experiência é fruto das sensações recolhidas na vida quotidiana, às quais são aplicadas as regras de observação e valoração.

Consequentemente, porque apenas pode ser percebido através deste modo de observação e julgamento, o Céu não é ante rem mas in rebus, ou seja, trata-se de um universal que existe nas coisas particulares (como queria Aristóteles) e não um universal apriorístico, com uma existência independente dos seres particulares (como pregava Platão).

Contudo, esquecendo a perspectiva ontológica, de um ponto de vista ético, se considerássemos existir uma homologia entre o Céu e a natureza humana – como fazem os confucionistas – poderíamos conceber um conjunto apriorístico de valores, comuns a toda a humanidade. Veremos que poderá não ser tão linear assim. E não será assim porque esses valores não são em si mesmo fixos, tendo de ser aquilatados no devir.

Entre os seres, o Homem é o único que surge dotado de inteligência, de consciência e, sobretudo, da capacidade de distinguir o bem do mal ou o adequado do desadequado. Mas essa relação expressa-se em termos de funcionamento: o Céu e a Terra produzem incessantemente seres; o Homem produz incessantemente moral, influenciando os costumes e as condutas.

A palavra Céu é usada juntamente com outras para obter conceitos derivados ou mesmo outros significados. É o caso, por exemplo, de tianjia (à letra “sob o Céu”, mas com o sentido englobante de “tudo sob o Céu”), vulgarizado durante a dinastia Qin, que aparece hoje no pensamento político contemporâneo chinês como adequado a exprimir o mundo global.

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