A Guanguan

De facto, a montanha Qingqiu não cessa de nos surpreender, mesmo quando nos presenteia com seres cujo aspecto em pouco ou nada difere dos animais com que habitualmente nos cruzamos.
É o caso da guanguan, uma ave de corpo semelhante a uma pomba mas que, por razões ignotas, sempre atraiu de forma radical a imaginação de escritores e poetas. Poderá ser que o fascínio resida no seu expressivo canto, descrito como o som de um homem aos gritos. Poderá ser, mas dificilmente se admite que tal maneirismo seja um factor de sedução.
Se é certo que, num velho compêndio de culinária, a carne assada da guanguan é considerada uma “excelsa iguaria”, também não será despiciente a crença segundo a qual quem usar no cinto qualquer parte desta ave não sofrerá de confusão mental.
Não sabemos se isto quer dizer que a guanguan possibilita uma visão límpida da natureza e a intuição imediata das propriedades dos dez mil seres ou se, num sentido inverso, ilumina o que no nosso interior se guerreia, permitindo estabelecer um reino interno onde predominará uma suave harmonia moral, temperada por uma frenética disposição para o cultivo de si.
Sabemos é que um importante poeta como Tao Yuanming (365-427) dedicou a esta ave um belo poema, no qual refere a sua capacidade para ajudar os que mergulharam na noite do caos e da ignorância, mas não para caucionar um comportamento exemplar. Talvez isto justifique o uso da guanguan como amuleto capaz de melhorar as capacidades cognitivas, mas não estende a sua influência à clarificação dos preceitos morais. Estes continuarão a ser alimentados pela vontade dos sujeitos, sem que exista mezinha ou feitiço capazes de instilar num ser humano a prática da benevolência ou o respeito pelos ritos. Tanto este como aquela unicamente se adquirem pela constante via da renovação ou exame interior, e pela rectificação da total integridade do coração, ou seja, da força bruta das emoções, da ordenação dos pensamentos e da violência dos desejos.
“Dá-me a sabedoria”, terá rogado Salomão ao Deus do Livro, exprimindo assim o desejo de adquirir a compreensão total das coisas e de se tornar ele próprio um deus. Não será este tipo de saber que os crentes nos poderes da guanguan acreditam obter. Pelo contrário, longe de um entendimento do mundo e dos desígnios do Céu, procuram a translucidez que as asas dessa ave prometem, quando em pleno voo se cruzam com o Sol e naquele instante deixam entrever um universo mais claro e mais brilhante, enigma e salvação.
É possível também, ainda que sempre num registo meramente onírico, estabelecer uma relação entre a guanguan e a pomba do Espírito Santo, pois ambas são transmissoras de sabedoria. Mas que tipo de sabedoria nos transmite um e outro animal, um e outro símbolo? Será que a guanguan também nos permite o acesso a línguas estrangeiras e nos revela a comunidade universal ou, mais pragmática, simplesmente afasta algum do nevoeiro que diariamente nos povoa a mente e nos impede uma apreensão rectilínea do mundo?

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