XV – Animais fantásticos da China – O zhi

Ilustração de Ana Jacinto Nunes

 

A montanha Fuyu, cujo nome significará Jade Flutuante, adquiriu esta designação talvez porque é rodeada a norte pelo lago Juqu e a leste pelo rio Zhuqi, que a abraça. De facto, para um observador dotado de alguma sensibilidade e imaginação, talvez excitada ou obnubilada por um certo grau de embriaguez, que se aproximasse quando no horizonte despontam as primeiras luzes, a visão longínqua desta montanha poderia facilmente evocar um pedaço de jade a flutuar num espelho de águas, onde se reflectem os céus.

Mas as montanhas são rugidos, rugas, abcessos, na pele distraída da terra. São territórios peculiares. Pela paisagem e pelas gentes. Pelas variações de temperatura e pela raridade de oxigénio no ar. Nas montanhas reinam as tempestades: nelas resfolgam os trovões, estalam os relâmpagos e nelas se despenham raios carregados de inaudita voltagem, que contagiam o ambiente, tornando-o denso, de pesadelo.

Não é por isso de estranhar que num destes lugares — neste caso, na montanha Fuyu — circundem animais como o zhi, uma besta descrita como tendo corpo de tigre, rematado por uma cauda semelhante à de um búfalo.

Tal como o vulgar tigre, também o corpo do zhi é listrado e, tal como o seu primo indiano, também lhe apraz supinamente deglutir carne humana. Curiosamente, a sua boca não emite o normal rugido do tigre, mas sim um som semelhante ao ladrar de um cão. Há quem tenha alvitrado que o faz para assim atrair a presença dos homens e nessas incautas vítimas se banquetear.

Ao certo sabemos que Jorge Luis Borges não sonhou com este tigre, entre os muitos felinos malhados que pelos seus devaneios deslizaram. No “Livro dos Seres Imaginários”, o Argentino limita-se a descrever os tigres anamitas (embora reconheça que a filiação mítica destes felinos é chinesa), o que nos atinge como algo de estranho, já que a sua poesia e os ensaios, discursos e entrevistas, são constantemente percorridos por diversos tipos de tigres.

Que grau de realidade atribuiria o escritor às suas visões de tigres, de modo a exclui-los do seu manual de zoologia fantástica? Nesse excelso volume, só os tigres do Vietname merecem um pequeno texto e quanto ao zhi, perigoso habitante tigrado de uma montanha chinesa, comedor de gente indefesa, orgulhoso portador de um rabo de boi, nada.

Talvez o zhi não seja exactamente um tigre, atendendo à sua cauda e ao seu ladrar. É difícil avaliar, pois não existe notícia de que alguém, em 5000 anos, tivesse caçado um exemplar, não sendo, portanto, possível dissecar o bicho e compreender melhor as suas características. Pelo contrário, ao que se sabe, é o zhi que tem dissecado vários seres humanos, apenas deixando os ossos para memória futura.

É por isso que poucos se atrevem a pôr o pé na montanha Fuyu, um dos locais mais temidos da China antiga e contemporânea, apesar da estonteante beleza das suas paisagens. Ora esse medo, essa angústia, esse temor, esse terror ancestral de ser devorado, profundamente enraizado nos inconscientes, como relata Lu Xun, tem provavelmente protegido a montanha do Jade Flutuante das hordas de turistas e do seu sonoro vernáculo.

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