h | Artes, Letras e IdeiasEspelhos toldados das palavras Rita Taborda Duarte - 8 Abr 20191 Mai 2019 [dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Mais perto. Tão próximo que mais ninguém nos ouça, pois que todo o papel será como as paredes: brancas e com ouvidos. Se me quiserdes escutar, dizer-vos-ei em surdina, a vós só, num oaristo tímido entre nós dois: A poesia, a melhor, é um equívoco. Um pantomima cega e ficcional em que vamos persistindo, fingindo como quem acredita, mentindo como quem crê. Há livros de poesia que nos lembram isto mesmo, desejando palavras não com que se escreva e diga, mas com que se pinte ou componha, ou, pelo menos, se reaja ao mundo visível, emendando-o. «O Olho e a Mão», obra conjunta de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, com poemas que se interpelam mutuamente, assim como às pinturas por que se fazem acompanhar, e a que resistem, também, é um destes livros capazes de «cega[r] a ortografia»: rasurá-la, exibindo o equívoco de se chamar literatura à poesia, a par de outras artes literárias. Tantos escritores, pensadores, poetas, Sartre, Croce, Verlaine vêm denunciando esse logro, insistindo, com o orgulho da convicção, que poesia e literatura estão nos antípodas e que o leitor de poemas é uma ilha rodeada de equívocos por todos os lados. Qualquer coisa como esta: todos sabemos, e repetimo-lo de lição estudada: a terra é redonda! Mas, e então? Há que vivê-la como se fora plana, que sempre é mais prático para conquistarmos o nosso quotidiano chão. Algum jeito haveria se andássemos a rebolar por esse universo fora, provando, a cada dia, a circularidade do mundo? Pois será redonda, é quanto basta saber-se, para continuarmos, no entanto, a vivê-la como se fosse aplanada, sem a precisão de nos pormos a escrever de pernas do avesso, só para corresponder à idiossincrasias manientas das realidades. Assim corre a poesia e a literatura: Enfiamos, incautos, no mesmo saco da literatura, ficção e poesia como se fossem irmãos desavindos, mas ainda assim irmãos, como se fossem todos gatos, a esgatanharem-se lá dentro, mas ainda assim gatos. A ambos chamamos literatura, tratando-se nitidamente de seres vivos de espécies diferentes (até mesmo de Reinos, diria). Se o romance for (e é!) um bicho, a poesia será, por evidência, uma planta. Ou uma pedra. Uma pedra que pode florir, é certo (como em Celan), até fazer a fotossíntese, mas ainda assim, pedra: inteira e intacta. Sartre tomou-se de outras palavras, para explicar isto mesmo, lembrando que, entre o prosador e o poeta, só há em comum o movimento da mão traçando as letras. O prosador faz uso das palavras, enquanto o poeta se limita a contemplá-las, desinteressadamente. Antes, aliás, Verlaine já o tinha explicado, com a leis cientificamente provadas da poesia. O que distingue um poema não é uma caminhada solidária na liteira da língua, aquele subsidiário desta, mas o inverso: a poesia- é uma arte que se move por uma rebelião contra a palavra, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, sequer seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E, quando ele as contempla, nem é, como julgava Sartre, para as apreciar em êxtase. Desenganem-se: Não! É para delas melhor se defenderem. Há que conhecer o inimigo, para melhor abrir a brecha do ataque. Quando toca à poesia, temos a certeza de que a língua, as palavras, a gramática, não serão um instrumento, sequer o material com que se constrói a parede do texto, os significados; não, a poesia é a destruição da parede da linguagem E se for mestra, tal parede, tanto melhor. Não, meu tão certo secretário, não me desviei do livro, que um livro tanto é aquilo que é, desmentindo as próprias letras, como aquilo que somos capazes de lhe responder. E eu ainda estou procurando respostas às perguntas que ele me vai fazendo, mesmo depois de fechado. Mas vejamos, que a leitura de um livro ( mas porquê?) não pode ser só este acto de dar a ver o rombo que no leitor provoca: Em «O Olho e a Mão», os poemas de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David intersectam-se mutuamente e atravessam pinturas, diversas, de várias épocas, sem nenhuma regra implicada que não seja a urgência de lhes responder e de habitar esse lugar intermédio de comunhão poética, combatendo as palavras da língua e as imagens, num processo de remissões e reflexos especulares: trata-se de «espelhos toldados de palavras», como se lê na nota dos autores que encerra o volume. Não lhes chamaremos poemas ecfrásticos. Um substrato mais forte se indicia no livro: toda uma concepção poética que nos mostra como a alteridade não existe senão como interioridade, mesmo intimidade. Mais do que os implicados reenvios dos textos poéticos às pinturas, o que sobressai é o poema como espaço de liberdade: do olho à mão, tudo ė a linguagem a que se resiste, desfazendo a língua, esse tabique que separa o olho do mundo. Poemas e pinturas tornam-se um jogo de espelhos sibilinos, que não reflectem, mas devolvem, sim, imagens outras: no fundo, «escavam [com a mão e o olho impuro, necessariamente impuros, aliás] o atalho de cada verso», resistindo à língua, deixando-a para trás, para a transformar noutra coisa ainda. Adequar-se-ia, facilmente, a estes poemas o epíteto «metamorfoses» (como, aliás, chamou Sena ao seu próprio livro): nada é o que é, senão o que fazemos sê-lo. É o que se diz num destes poemas, de Ana Marques Gastão, em confronto com o quadro de Christian Schad ( The portrait of Dr. Haustein, 1928): Talvez o que mais importe na escrita dum poema seja a sombra e o seu nome, não o meu nome mas o dela o nome da sombra- umbra, ombre, ombra shade, schaten» […] que, por sua vez, será também é resposta ao soneto-leitura-rasura da mesma pintura, por Sérgio Nazar David, intitulado «The Wall»: […] A sombra que projetam na parede os cães que nos rodeiam é menos de mulher do que de loba. Queria ser mãe, esposa, filha, irmã dos que mordem o meu seio. Falta algum flor voluptuosa neste quadro. Nele cubro de cinza e pó/ (não tenho remorsos) o rastro dissoluto de Satã. A poesia é o que resulta do sinuoso percurso que vai do olho à mão e a transforma em «mão inteligente», usando a expressão de Ana Hatherly: este é o livro de um processo em relação, de como os poemas se furtam à linguagem e de como a mão que escreve poesia é a mão que rasura a língua e lhe propõe novas ortografias. A escrita que nasce destes quadros ou que lhe devolve as cores é a que traz, não a linguagem dos sentidos e da significação, mas a do espanto. Manuel Gusmão, um dia, traduziu em poema este gesto fenomenológico que nasce da escrita poética ao escrever: «Com o espanto vêm as coisas/ à mão imaginante.». É esta mão imaginante, um modo de «flexão de dedos incertos», que empresta novas imagens às pinturas, que nem o olhar, nem a língua comum, nem qualquer gramática, nos poderiam de outro modo ofertar. Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, O Olho e a Mão, 7letras, Rio de Janeiro, 2018 (edição apoiada pela DGLB)