Solidão | Ron Lam quer reforço do combate ao isolamento

O deputado mostra-se preocupado com os idosos que vivem isolados em Macau e pede ao Governo que explique bem os contornos dos casos em que os mais velhos são encontrados mortos em casa. O objectivo, explica, é mobilizar a comunidade para combater o isolamento

 

 

O deputado Ron Lam considera que as autoridades devem inverter a tendência de sonegar informação importante para perceber e contrariar o fenómeno do isolamento dos idosos que são encontrados mortos em casa. O assunto faz parte de uma interpelação escrita, em que o legislador aponta ser importante evitar o isolamento social, principalmente das pessoas mais velhas.

As questões são levantadas após o caso em que os corpos de duas mulheres, mãe e filha, foram encontrados em avançado estado de decomposição num apartamento, onde se suspeita que estivessem mortas há pelo menos um ano. Quando anunciaram o caso, as autoridades apenas indicaram que os corpos estavam em decomposição há mais de um ano, e que não havia indícios de crime.

No entanto, Ron Lam aponta que apesar de terem sido contactadas pelos órgãos de comunicação social, as autoridades não quiseram explicar publicamente os contornos da ocorrência, o que no seu entender impede a comunidade de tomar outras medidas, para evitar casos semelhantes.

O deputado reconhece que a informação relacionada com a privacidade das pessoas deve ser resguardada, mas argumenta também que os contornos do caso deviam ter sido explicados, porque o fenómeno do isolamento tem de ser combatido e é necessário apresentar soluções.

Lam questiona as autoridades se no futuro vão divulgar mais informações, quando ocorrerem casos semelhantes. O deputado indica também que no passado as autoridades revelavam mais informação do que aquela que anunciam actualmente.

 

Recolha de dados

No combate ao isolamento dos idosos, o membro da Assembleia Legislativa deixa também críticas ao Instituto de Acção Social. Segundo Ron Lam, desde 2018 que o IAS começou a recolher informação sobre os idosos que vivem sozinhos.

De acordo com estes dados, em Novembro de 2022 apontava-se que existiam 6.200 idosos ou casais em risco de isolamento. Contudo, o deputado indica que os dados não são actualizados com a regularidade que se exige, de forma a poder-se tomar medidas face ao problema do isolamento.

Rom Lam também quer saber que medidas estão a ser tomadas para garantir que estas pessoas, identificadas como de risco, têm o acompanhamento necessário.

Como parte da interpelação escrita, o legislador questiona ainda o Executivo sobre quantas pessoas idosas foram encontradas mortas em casa ou nos postos de trabalho.

O deputado alerta que com o envelhecimento da população previsto para os próximos anos este fenómeno se vai agravar.

19 Fev 2024

Inquérito | Metade dos idosos enfrenta problemas psicológicos

Falta de rendimentos e de saúde são os factores que mais afectam os idosos do território. Entre os desempregados, mais de 20 por cento tem o desejo de voltar a trabalhar

 

Metade dos idosos de Macau tem problemas psicológicos. A conclusão faz parte de um inquérito realizado pela Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM), sobre a situação laboral e de vida.

Os resultados apresentados ontem indicam que 50 por cento dos idosos têm problemas psicológicos, sendo que 35 por cento de todos os inquiridos tinham “um sofrimento psicológico moderado ou grave”. As situações mais graves foram identificadas principalmente entre os idosos que vivem sozinhos. Os dados apontam também para que cerca de 15 por cento dos inquiridos apresentassem problemas ligeiros.

De acordo com os investigadores, o sofrimento psicológico tem dois factores principais: a situação financeira e a saúde física. Em relação ao último factor, foi exemplificado que há idosos que “têm mais de três doenças” e se sentem sozinhos.

Sobre o sentimento de solidão, foi revelado que cerca de 40 por cento dos idosos inquiridos moram sozinhos e mais de 30 por cento não teve acesso à internet nos últimos três meses.

No que diz respeito às fontes de rendimento pessoais, concluiu-se que 80 por cento dos inquiridos tinham a pensão do Fundo de Segurança Social ou as poupanças como as principais fontes de rendimento. Ao mesmo tempo, 25 por cento dos inquiridos admitiram não ter poupanças suficientes para cobrir as despesas da sua vida nos próximos três a seis meses.

 

Dos desempregados

Entre os idosos desempregados, foi concluído que cerca de 20 por cento tinham vontade de regressar ao mercado do trabalho, por dois motivos fundamentais: vontade de ter rendimentos pessoais e por sentirem que ainda têm capacidades para exercer uma profissão.

O inquérito recolheu 749 inquiridos válidos junto de residentes de Macau com mais de 55 anos. Um total de 80 por cento dos inquiridos tinha 65 anos ou mais.

Face aos resultados, a FAOM sugeriu ao Governo que lance medidas concretas para criar um ambiente favorável no mercado laboral para o regresso dos idosos.

A equipa da FAOM que realizou o inquérito defendeu também a necessidade de o Governo incentivar as empresas a contribuírem para uma maior inclusão social, com a contratação de idosos ou indivíduos com idade mais avançada.

“As regiões vizinhas, tal como Hong Kong e Taiwan lançaram programas de emprego e leis para incentivar o emprego de pessoas com idade média-alta nos últimos anos. Espera-se que as autoridades se refiram activamente a estes exemplos,” afirmou a deputada Ella Lei, na apresentação dos resultados.

A FAOM destacou ainda que é preciso prestar atenção à saúde mental dos idosos, sobretudo dos que moram sozinhos, através das redes comunitárias.

5 Jul 2023

IAS | Leong Hong Sai quer base de dados de idosos a viver sozinhos

O deputado dos Moradores levanta muitas dúvidas sobre a eficácia da aplicação móvel do Instituto de Acção Social para divulgar informações aos mais velhos. Além disso, pediu ao Governo para fazer um levantamento do número de idosos que vivem sozinhos

 

O deputado Leong Hong Sai, ligado aos Moradores, considera que o Instituto de Acção Social (IAS) deve criar uma base dados com informação dos idosos que vivem sozinhos. Foi desta forma que Leong reagiu ao caso de dois irmãos encontrados mortos, em avançado estado de decomposição, na semana passada num apartamento na Rua da Penha.

Segundo o jornal Ou Mun, Leong defendeu que o caso mais recente de abandono veio mostrar um problema cada vez mais presente na sociedade de Macau e que deve “chamar a atenção de todas as pessoas”.

Sobre a situação em concreto, o deputado dos Moradores afirmou que se trata da “ponta do icebergue” e um problema muito mais profundo que é necessário tomar medidas, para tentar evitar ocorrências semelhantes e aumentar com o envelhecimento.

Neste sentido, o deputado exige que o IAS elabore uma base de dados, que deve ser actualizada frequentemente, com informações referentes aos idosos que vivem sozinhos e sem familiares. Ao mesmo tempo, com o mecanismo, o deputado considera que seria possível formar e enviar equipas de apoio, que visitem de forma regular os idosos.

Descuidos móveis

Para lidar com o problema do isolamento, o IAS lançou o “Posto de Informações dos Serviços a Idosos da RAEM”. Este programa de apoio aos mais velhos é uma aplicação móvel que divulga informações “sobre os serviços a idosos”, “o Cartão de Benefícios Especiais para Idosos” ou realizar cursos de formação ou actividades culturais, recreativas e desportivas.

No entanto, Leong Hong Sai expressa muitas dúvidas sobre esta estratégia. No entender do deputado, não só grande parte dos idosos tem grandes dificuldades em mexer em dispositivos móveis, como também não acredita que a plataforma seja muito descarregada entre a população mais velha.

Não é a primeira vez que um deputado se mostra preocupado com as consequências da crescente digitalização da sociedade e a falta de alternativas para os mais idosos ou quem não tem dispositivos móveis. Numa intervenção na Assembleia Legislativa, Wong Kit Cheng argumentou que a imposição do código de saúde tem contribuído para o aumento da taxa de suicídios em Macau, com a população idosa a sentir-se isolada, incapaz de circular na cidade e frequentar algumas lojas e restaurantes por não ser capaz de fazer o preenchimento digital da declaração.

28 Set 2022

A obsessão da solidão

[dropcap]U[/dropcap]m dos meus ídolos – Nelson Rodrigues – celebraria o seu aniversário no passado dia 23 de Agosto. Fui lê-lo. E lembrou-me que só os imbecis não são obsessivos. O génio, o santo, o pulha, o herói: segundo ele terá de sempre haver obsessão na vida. Ele sabia e quem leu as suas magníficas crónicas – e vamos deixar de fora o resto – percebe a mesma nota que ecoa nos mais variados acordes. A escrita é formulaica na forma, livre e convicta no conteúdo. Um génio de várias notas só.

Todas as semanas, caso não exista um acontecimento extraordinário que justifique uma epifania e a legitimidade de maçar os leitores há para quem vos escreve um exercício que não pode passar da cortina: o tema, os artigos, a disposição – isso é com quem está deste lado. Mas e quando acontece que o assunto aparece fluido, natural, com tanto para dizer que as palavras encolhem ainda mais? Bom, isso é porque nessa altura quem escreve choca de frente com a vida ou no mínimo com algo que há muito tempo acha que a vida é ou necessita. Não se trata de urgências confessionais – o que provavelmente não seria mau para a conta bancária mas péssimo para o estilo e para vós – mas sim de algo que nunca nos deixou e só quando nos desafiam a regressar às cavernas da alma pode aparecer. Uma obsessão, uma ideia fixa. Como isto da solidão.

Por questões profissionais fui levado a escarafunchar a definição de soidão, algo que para mim seria tão pacífico. Mas não é e nunca foi. Apenas um visionamento da pomposa France Culture ajudou – por uma vez que seja – a discernir em modo contemporâneo algumas nuances do que aqui não queria saber. Num pequeno clip tantas conjugações. O grande Omar Sharif, como belíssimo jogador de bridge que foi, esconde o jogo com uma quase tautolgia : “Não sei se gosto se não gosto – mas sei que quando não a tenho me faz falta”

Juliette Gréco, musa existencialista do seu tempo e com a força da flor da idade faz o que qualquer musa existencialista francesa na flor da idade faria: tergiversa e não diz nada, contando com as pestanas filosóficas para falarem por ela, o que nessa altura, sim, a deixam sozinha.

Nesta antologia de pretensiosismo só Renoir e Cocteau escapam. Renoir : a nossa época tem inconvenientes- a solidão é uma delas. E a forma de lutar contra isso é a arte – o que não deixa de ser contraditório, já que a criação é uma actividade solitária.

Cocteau prefere os aforismos, território que lhe é mais familiar e que domina com prazer e razão. “A falsa solidão é a torre de marfim”, para a logo a seguir completar: “A torre de marfim é sempre um desejo de espectáculo”. Tudo não passaria de exercícios de paradoxos elegantes se não rematasse com um lugar-comum – logo, verdadeiro: “A verdadeira solidão está no meio de muita gente”.

De facto: a solidão é não estar sozinho. Muitas vezes nem sequer é ser solitário, porque esta ontologia da solidão pode existir derivada a uma escolha do individuo. Melhor ainda: a sua ostentação é muito sedutora.

Como descobri por mim próprio e de forma involuntária, o tipo sozinho no fundo do balcão desperta mais curiosidade do que o rei da pista de dança. Mas não quero falar outra vez de Sinatra.

Está tudo registado, felizmente. Desde os tempos bíblicos até agora são tantas as declinações que é impossível aferir uma definição – e por extensão, uma qualquer pureza – do que é a solidão. Eu e o leitor temos sorte. A nossa solidão, qualquer ela que seja, é feita de costas quentes, de família, amizades, escolhas. Mesmo quando confundimos estar só com ser livre – e agora falo por mim – sabemos balizar a geografia da ausência do Outro, isso sim comum a todas solidões. Estes dias pandémicos ofereceram-nos violentamente a verdade desta proposição. E também a forma como fugimos desse espelho como o diabo da cruz.

Gosto de estar sozinho mas a verdadeira solidão, para mim, parte de uma vocação mística, desejada. Ou ainda mais difícil, aceitada. Escrevo não só pela obsessão, que a tenho – nascemos sós, morremos sós etc – mas que é uma afectação trivial quando comparada com a vida que nos atiram à cara. Explico: li a história de um cidadão nonagenário que perdeu a mulher que amou e com quem partilhou os dias até ao fim. Agora não tem nada. Arrasta-se pelos lugares que lhe são familiares com um vazio irreversível. Quando perguntado diz que já nada lhe interessa, mesmo rodeado de quem o estima. À excepção de um momento ritual e ansiado: aqueles instantes diários em que com um ramo de flores se dirige à campa da mulher e com ela fala. Sem ninguém a rodeá-lo, absolutamente sozinho e sim, repito: todos os dias.

É uma história que parece triste mas não conheço uma solidão que desejasse tanto, que tanto me obceca. Esta vontade de estar perto da ausência do Outro que amamos ou louvamos, sem ruído, sem mundo. Saber enfim que a solidão nunca estará sozinha.

2 Set 2020

Ilha Verde | Pedida ajuda de vizinhos e familiares para pessoas sozinhas

[dropcap]O[/dropcap] caso noticiado ontem da mulher encontrada morta em casa no bairro da Ilha Verde, motivou a associação de moradores a apelar ao contacto mais regular e próximo de familiares e vizinhos de pessoas que vivem sozinhas. A vice-presidente da Associação de Beneficência e Assistência Mútua dos Moradores do Bairro da Ilha Verde, Lei Tong Man, pegou no triste exemplo da mulher morta há vários dias, sem que ninguém tenha reparado, para levantar a questão da falta de apoio às pessoas que vivem sozinhas.

A dirigente associativa, em declarações ao jornal Ou Mun, referiu as mudanças culturais que se fizeram sentir a nível da organização familiar, a baixa natalidade e envelhecimento da população como factores que explicam o fenómeno.

Lei Tong Man sustentou-se nos dados demográficos dos censos de 2016, que revelaram que mais de 15 por cento da população vive sozinha, para chamar a atenção para os problemas que este segmento da sociedade enfrenta. Como tal, apela a que se pressionem familiares para intensificarem o contacto com quem vive sozinho. Neste aspecto, a representante dos moradores da Ilha Verde apela também aos vizinhos, que devem partilhar um espírito de apoio mútuo, que alertem as autoridades ou instituições de assistência caso detectem alguma situação anormal.

7 Mai 2020

Declinações de solidão

[dropcap]E[/dropcap]stá um dia chuvoso, plúmbeo, esses mesmo que o leitor está a pensar. “Mais um para juntar a estes que vamos conhecendo”, acrescentará o filosófico leitor. Talvez, talvez. Do lugar onde escrevo tenho a sorte de ver o castelo que outrora protegeu a cidade. Mas agora as pedras das suas muralhas apenas mostram uma impotência triste perante um invasor que não conseguem deter.

O resto já sabemos, já sei. As ruas semi-desertas, os transeuntes que se entreolham quando se cruzam a distância menor do que a aconselhada pelas autoridades sanitárias. No meio da esperança e do optimismo que escolhemos para nos acalentar mora ainda a natureza humana. E nela existe e sempre existirá a desconfiança do outro, por mais diluída que agora se sirva em gestos solidários.

Perdoai então o mau feitio do cronista, a quem não apetece nesta altura escrever frases motivacionais. Desde há vários dias assim, comecei a indagar-me o porquê deste temperamento recorrente nestes dias. As circunstâncias por si só não o justificavam. Até que reparei que existia um estranho silêncio nas ruas, uma ausência que me feria sem saber porquê. Uma destas manhãs fui à janela e percebi. Moro por cima de uma escola primária e de casa consigo ver o recreio. Até há pouco tempo, todas as manhãs eram preenchidas pelo chilrear dos miúdos a brincar, algo que sempre achei reconfortante. Não sei porquê mas sempre procurei viver perto de escolas e igrejas, porque gosto de ouvir os sinos. Dão-me um invulgar sentimento de protecção.

De forma que é isso: não existem crianças nas ruas. Não oiço as suas vozes, os seus gritos, os seus choros, os seus risos. Fazem-me falta para contrariar o exército sorumbático que tomou conta da cidade e em que me incluo. E esta ausência contribui para uma sensação de algo que não será bem solidão mas sim de sozinhez, esta palavra linda inventada pelo poeta e cronista brasileiro Paulo Mendes Campos, numa crónica de 1963 chamada Para Maria da Graça. A sozinhez não é tão profunda ou irreversível como a solidão; mas dói, uma dor mansa mas que existe. É o que sinto tomar conta de mim devagar, mesmo à medida que escrevo estas palavras. A vozearia das crianças representa uma espécie de âncora de normalidade e ao desparecer, essa esperança também desparece. Corrijo: não é a esperança nem sequer o futuro que não se vê: é o agora, o presente-instante que parece ter sido roubado e que nos está a fazer falta.

Não gostaria de terminar a crónica com travo amargo. Refugio-me no que Paulo Mendes Campos também escreveu quando inventou a sozinhez: “Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior isso acontece muitas vezes em um ano. “Quem sou eu no mundo?”. Essa pergunta perplexa é o lugar-comum da história humana. Quanto mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás.”

É um consolo bem-vindo. Mas por enquanto aqui fico, à espera desse dia em que as crianças tomem as ruas de assalto, de forma urgente e definitiva.

8 Abr 2020

Solidão

[dropcap]Q[/dropcap]uando andamos pela cidade onde habitamos, quando nos deixamos dominar pelo nosso quotidiano, pela companhia de conhecidos e amigos, pouco tempo reservamos para ouvir o nosso próprio pensamento e temos mesmo a tendência para o exprimir em voz alta, para os outros, ao sabor dos interesses ou do desejo de partilha.

Já o caso muda completamente de figura quando circulamos entre um povo estranho, estrangeiro, cuja linguagem é para nós um rumorejar distante e sem consequências. Tudo começa por ser uma espécie de aventura, que a experiência desvaloriza em optimismo, ao qual a mesma experiência acaba por dar razão. Os pequenos acontecimentos mais não são que isso mesmo: pequenos eventos sem consequência para o desenrolar agradável dos dias e o descanso absoluto das noites. Ou talvez não.

É que a nossa presença em nós mesmos acaba por se tornar no único diálogo possível (e como somos tão viciados no diálogo!, e como recusamos o silêncio interior!), uma espécie de orquestra interminável que nos assombra com os seus diversos tons, nos quais começamos a reconhecer cada um dos nossos mais temíveis e familiares fantasmas. Até que, finalmente, advém a consciência progressivamente lúcida da solidão, ao contemplar qualquer paisagem desagregadora do que nos é quotidiano e constante.

16 Dez 2019

Entre nuvem e deserto

EL Corte Inglés, Lisboa, 9 Novembro

[dropcap]U[/dropcap]m dos objectos mais quotidianos acontece ser a conversa. Desatentos, não damos pelas palavras a explodirem ao nosso redor, demasiado perto apesar de alheias, a ecoarem autónomas do seu sentido, a despertarem indignações, quase sempre caladas, mas também as do comércio do espírito, soltas da nossa boca por receio do silêncio, para atapetar a urbanidade. Mas conversa séria acontece para além das palavras.

O modo como são ditas, como o corpo as interpreta, brinca com elas, gargalhando, repetindo, hesitando, sublinhando, sussurrando, provocando, acolhendo, sugerindo, comovendo, oferecem tanta informação como o resto, feito apenas ponto (e logo penso em Reinaldo Ferreira). «Mínimo sou,/ Mas quando ao Nada empresto/ A minha elementar realidade,/ O Nada é só o resto.» Recordo pouco, para defesa da razão, mas guardo como privilégio do que vou vivendo assinaláveis conversas, meros pontos que, no momento, fazem do resto pouco mais que nada. E ecoam. Acaba de acontecer com o António [Valdemar], esse portador da chama da memória que incendeia a minha mítica Lisboa. Encontramos sempre lugar onde encaixar figura, ou vice-versa. Pode ser um sátiro de Canto da Maia, uma passagem de Aquilino ou os olhos de Almada. Hoje passeámos bastante por Almada, o que quer Lisboa e o resto. As palavras, claro, mas sobretudo os olhos de ver ao longe. O que importa vai ficando dito pelo António. Preciso, para mim e para efeitos básicos de orientação, que me o António me faça, um destes dias, o mapa das famílias que há muito estendem redes, latitude e longitude, sobre este ponto de acostagem. Falo da cidade ou de cultura?

Santa Bárbara, Lisboa, 10 Novembro

Tons de amarelo, mais ou menos torrado pelo sol. Não há América do Sul (nem realismo, mais ou menos neo) sem torreira do sol. De que cor se veste a solidão? A adolescência acontece a Norte? «cem/ anos/ de solidão», minúsculas assim partidas em três linhas, a bold, a fazer cama para meio general ao baixo, quadriculado quase por inteiro, como se as mãos fossem medalhas, com muitas mãos por ser de baralho e, portanto, espelhado. À esquerda, quase a caber na altura da palavra «cem» lá aparece, cortando mais que o sabre do general: GABRIEL/ GARCIA/ MARQUEZ, maiúsculas assim partidas em três linhas. E o mundo mudou. O 13.º volume da preciosa colecção D (ed. Imprensa Nacional), do Jorge [Silva], anda por aí a mostrar fragmentos de Dorindo Carvalho (Lisboa, 1937). Muito trabalho de salvaguarda do património gráfico nacional acontece discretamente por aqui, dando atenção ao que a academia (quase) sempre despreza ou menoriza. Que importa o desenhador do logotipo da colecção Três abelhas, ou das capas dos Livros de Bolso Europa-América? Ou do logo da Assírio & Alvim bem como as capas ilustradas dos Cadernos Peninsulares dessa mesma editora? De que cor se veste a memória, amarelo-torrado?

Santa Bárbara, Lisboa, 11 Novembro

Vivi perto de Évora, nem cidade nem campo, lugar perdido do intermédio. Nunca antes havia experimentado o sol, mormente aquele que se faz entorno e nos sustém. Nunca antes tinha visto nuvens, sobretudo a diversidade que ora pasta no azul, ora vem prenhe de tempestade. Não longe, a Cartuxa de Évora, cujos muros nunca transpus. Tenho ideia que tentei, mas a memória esvai-se-me.

O duplo volume «Nuvem» (ed. Chili Com Carne), do Francisco Sousa Lobo, dedicado à Cartuxa, abriu-me espaços sobre a paisagem da inquietação, esse deserto. Um dos lados, com uma toada jazzística, de curtas e sucessivas aproximações, não apenas ao universo cartuxo, mas ao sagrado. O outro lado, que se chama «Deserto», funciona ora como prefácio, ora posfácio, à vontade do freguês, que para tanto ajuda o facto de serem dois volumes invertidos umbilicalmente colados pelas contracapas. O Francisco desenha com ponto de interrogação. Faz autobiografia, como a melhor da banda desenhada contemporânea, mas muito para além do recurso diarístico de episódios mundanos ou circunstanciais. Reflecte-se, no duplo sentido de se espelhar e de se pensar. E fá-lo combinando textos breves, simples, despojados, com uma estética minimal, a duas cores, na qual a criteriosa composição estética procura sublinhar não tanto a narrativa como o pensamento. Sim, temos uma banda desenhada de ensaio, que não se furta a questionar a própria linguagem que pratica. Mas são detalhes, se comparados com a rara atmosfera que do volume se solta, interpelações incluídas, algures entre nuvem e deserto.

Redes, Algures, 12 Novembro

Morreu Stan Lee (1922-2018), o inventor do pós-modernismo. O Umberto Eco percebeu antes de toda a gente, mas agora que o cinema vive da inesgotável máquina de produzir e questionar narrativa e heróis percebeu-se a realidade da fantasia. Ou melhor, a potência da narrativa gráfica. Este colosso da iconosfera foi pioneiro em dezenas de aspectos, mas, por estar tudo dito algures e me sentir nostálgico, vou apenas procurar os meus Spiderman, mais torrados que amarelos. Proponho apenas um quadradinho (algures na página), que, até por não ser apenas dele, afirma logo que esta linguagem resulta de singulares colaborações: entre palavra e imagem, gesto e reflexão, mas também entre criador e leitor. Conseguiu, por isso, atingir o âmago do humano, esse vértice das narrações. Stan Lee inventou a interactividade, ali nas páginas baratas das revistas que voavam abaixo do radar. Respondia às cartas dos leitores, pedia e aceitava sugestões, prolongava o fascínio tornando-o palpável. E no momento em que cada um dos adolescentes, perdido em mundo que os não entendia, sonhava em ser super-herói e assim resolver a enorme confusão da vida, Stan Lee cria o Homem-aranha, herói perdido na mais clássica das tragicomédias: que fazer com este destino? «Sai daí, não sejas empecilho do progresso.»

Almeida Garrett, Porto, 18 Novembro

Um dia a caminho de [Manuel António] Pina tinha que começar assim: o destino era o Porto, para o celebrar nos seus 75 anos. Ia com a inevitável companheira destas andanças e amizade, Inês [Fonseca Santos]. Chamei o táxi e a motorista, não tão comum no feminino, chamava-se Inês Santos. O gato sorriu-me, como só eles sabem, e segui. O Pina fez-se lugar, cada vez mais frequentado. Encontro-me sempre melhor em Pina, seja ele onde for. Antes de irmos à biblioteca tratar de «desimaginar o mundo», fomos comer ao Convívio e lá estava ele, modestamente iluminado em dia cinzento. As árvores tinham uma cor que não consegui investigar devidamente, entre outono e inverno, um trato por resolver entre a água e o frio. O Pina desconcertava muito. Oiço dizer que foi dos poetas que mais vestiu os versos de perguntas. Rio-me só de imaginar que alguém os andou a contar, aos versos. E aos gatos, sabidamente pontos de interrogação. A ideia de obra era-lhe estranha. E ter começado pelos livros para putos deve tê-lo afastado das ribaltas. E depois praticou o teatro e a crónica e a poesia (em bulas de medicamentos e outros papéis menores). Sem esquecer a conversa, arte maior. Até que choveu e se começou a reparar no Pina. Mas ele não ligava nenhuma. O Pina ligava às pessoas e aos gatos. E às palavras, mal se tornam desobedientes. Entrar no Pina, mesmo sem ser pela janela da amizade, era limpar os olhos. Sei lá com os restantes, os que fazem mundo, mas comigo mudou-me a maneira de ver os dias. Espanto-me mais, muito mais.

21 Nov 2018

Fotografia | Artistas sul-coreanas registam a opção de viver só

Está a nascer na Coreia do Sul uma nova tribo juvenil, noticia a CNN. “Honjok” é o movimento que se caracteriza pela opção de viver em solidão ao mesmo tempo que se retratam esses momentos em fotografia

 

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma jovem, sentada ao balcão de um bar. De olhar perdido, parece dar um beijo a um pequeno tomate. Numa outra imagem, desta feita a preto e branco, uma jovem é retratada com o olhar substituído pela luz de um túnel. Através de uma montagem, dirigem-se ao suposto olhar, três indivíduos. Estas são as descrições possíveis de duas das fotografias de Nina Ahn e Hasisi Park que retratam o movimento “honjok”.

“Honjok” é neologismo que combina as palavras “hon” (sozinho) e “jok” (tribo). O conceito aparece para descrever uma geração, que conta com cada vez mais elementos, que abraça a solidão e a independência como características identitárias. O fenómeno reflecte o crescente número de lares constituídos por uma só pessoa e “é também a expressão que retrata a mudança de atitudes em relação ao romance, ao amor, ao casamento e à família. É esta a subcultura que dá mote aos trabalhos das fotografas Nina Ahn e Hasisi Park, aponta uma reportagem da CNN.

“É a sensação de desistir”, disse Ahn em entrevista à mesma fonte. Para a fotógrafa a geração a que pertence já não se apoia no trabalho para a conquista da felicidade pelo que a aposta é no individuo, só, na sua existência. “Vivemos numa geração em que simplesmente trabalhar arduamente por um futuro brilhante não garante a felicidade, então por que não investir em ‘eu’, dando tempo a cada um de nós?”, questiona retoricamente.

As imagens não deixam de carregar um sentimento de tristeza, mas não podia ser de outra forma. “O facto das minhas fotografias terem associada a tristeza reflecte o que é actualmente a cara da minha geração”, diz.

Embora as imagens de Ahn retratem uma solidão palpável, a fotógrafa acredita que os seus contemporâneos estão mais dispostos a dar sentido à vida recorrendo a outras acções, como as viagens. A ideia parte também do princípio de que existe uma certa desesperança quanto às certezas do futuro. “A geração dos nossos pais sabia que depois de trabalhar afincadamente e de economizar durante alguns anos seria possível comprar uma casa para a família, mas nós não”, diz. “Chegámos à conclusão de que nunca seremos capazes de conseguir ter alguma coisa, mesmo trabalhando a vida toda”, aponta.

A efemeridade do mundo moderno é uma das maiores crenças desta geração. “Sabemos que a felicidade nunca dura sempre e queremos ter uma forma de viver consoante esta circunstância e de maneira mais sábia. As nossas prioridades mudaram”, sublinha.

Nina Ahn não está sozinha no registo fotográfico deste movimento social. A fotógrafa Hasisi Park também explora o isolamento entre os jovens sul-coreanos. No seu trabalho retrata uma juventude sem poder “no grande deserto que é a sociedade em geral”, revela à CNN.

Para a fotógrafa, a ascensão do movimento “honjok” deve-se às pressões sociais da vida moderna que limitam a inter-acção com os outros.

“A sociedade em que vivemos pode ser muito instável, e acho que, por isso, os jovens não se querem comprometer “, disse em entrevista.

Transformações radicais

Em 2016 foram registados, na Coreia do Sul, 5 milhões de lares em que reside uma só pessoa, o que corresponde a cerca de 28 por cento da população do país refere, Michael Breen, autor do livro “Os Novos Coreanos: A História de um Nação “, tendo como base os dados dos serviços estatísticos daquele país. De acordo com o mesmo autor, refere a CNN, este tipo de desenvolvimento social orientado para as famílias unipessoais vai contra as tradições históricas da sociedade coreana.

“Acho que é uma consequência natural da democracia e do desenvolvimento económico”, diz Michael Breen. “Em muitas sociedades asiáticas, os interesses e direitos individuais têm sido subordinados aos da organização familiar ou de grupos”, explicou. No entanto, e com o desenvolvimento da democracia, os valores têm-se modificado e ao invés do colectivismo, o individualismo começou a predominar.

“Quando cheguei pela primeira vez à Coreia, nos anos 70, todos os coreanos que conhecia tinham cinco ou seis irmãos, e todos vinham de famílias numerosas”, acrescentou Breen. “Costumava ver muitos parentes a viver na mesma aldeia”.

Com uma crescente classe média e os esforços por parte do Governo na promoção do planeamento familiar, a taxa de natalidade sofreu “uma queda dramática de 6,1 nascimentos por mulher em 1960, para 1,2 em 2015”.

Criar um filho começou a ser percepcionado como um peso e as noções de família tradicional mudaram, aponta.

O crescimento do individualismo pode ser uma fonte de satisfação, considera Jang Jae Young, gestor de um site dedicado ao estilo de vida solitário, o honjok.me.

“A geração de nossos pais estava ocupada com a preocupação de por o pão na mesa”, disse em entrevista à CNN. “Tiveram de se sacrificar para alimentar as famílias e contribuir para a economia”, explica. Hoje em dia o objectivo de cada um é outro: a realização pessoal. “Há um desejo de auto-realização e de felicidade, mesmo que isso signifique estar sozinho”, considera.

19 Jul 2018

Slow J – “Cristalina”

“Cristalina”

Se eu disser só
Tudo o que eu pensei
Transformado em voz

Se eu tiver dó e
Vir tudo o que eu neguei
Transformado em nós

Mano, eu nem sei
Eu só tentei
Chegar mais longe sem sensei

Eu supliquei
Por uma gota desse
Soro que te dei

E veio o choro
Socorro
Salvei mentira e morro

Sufoco
De um louco
Ser Cristalina é pouco ou…

Se ele quebrar
Não resistir
Se eu só calar, para te ver sorrir

Para sobreviver
Matar e morrer
é fundamental

Slow J

18 Jul 2016