Carlos Morais José VozesA nova era por haver Ao longo destes 21 anos de RAEM, as instruções de Pequim têm sido cruciais para garantir algum desenvolvimento nesta região “governada pelas suas gentes”. Aliás, algo que percebemos é que sem elas a comunidade portuguesa aqui residente teria muito mais dificuldade em encontrar um espaço de subsistência. Lembramo-nos, por exemplo, do ano de 2003, no qual o Governo Central determinou que Macau seria uma ponte para os Países Lusófonos o que, em grande parte, justifica a nossa presença e utilidade enquanto peças desse processo que, infelizmente, ainda não conheceu a desenvoltura desejada, na medida em que tem encontrado escolhos locais que vão do desinteresse à oposição. O estabelecimento do Fórum Macau tem conhecido altos e baixos. Estes últimos devem-se, sobretudo, à sobranceria de alguns decisores locais e a escolhas menos felizes para a liderança deste processo. Os altos acontecem quando Pequim resolve “puxar algumas orelhas”, como aconteceu por ocasião da visita do primeiro-ministro Li Keqiang, em 2016, 13 anos depois do estabelecimento do Fórum, cujo discurso estabeleceu 19 (!) pontos que faltavam realizar para que Macau atingisse, minimamente, aquele desiderato. A verdade é que temos de analisar com especial cuidado e atenção as “quatro expectativas” que o Presidente Xi Jinping aqui deixou, quando do seu discurso em Dezembro de 2019, e que, oportunamente, o actual Chefe do Executivo Ho Iat Seng relembrou na sua intervenção de ontem. Contudo, não basta analisar e relembrar: antes de mais, é preciso executar. Em primeiro lugar, o Presidente sublinhou a necessidade de “melhorar a qualidade da governação”, nomeadamente através da modernização dos processos burocráticos, aproveitando o desenvolvimento das novas tecnologias. Contudo, Xi chamou especialmente a atenção para que o “estado de direito” seja rigorosamente respeitado como “princípio básico da governação” e que, nesse contexto, os melhoramentos se realizem. Isto é, no nosso entender, que não dêem somente privilégios aos privilegiados e que estes encontrem na lei as fronteiras para a sua acção, descartando a possibilidade de inusitadas benesses só para alguns, em geral os mesmos. É que, como dizia o jovem Carson Fong, na nossa edição de ontem, a maior parte da população tem consciência do que realmente se passa nos bastidores. Em segundo lugar, Xi Jinping referiu a diversificação económica sustentada, sobretudo, nas relações com o exterior, devendo Macau aproveitar as possibilidades criadas pela iniciativa nacional “Uma Faixa, Uma Rota” para potenciar os negócios locais, quer com os Países Lusófonos quer no contexto da Grande Baía. Ao disponibilizar uma enorme fatia de terra na Ilha da Montanha (Henqin), Pequim pouco mais pode fazer para proporcionar aos investidores e empreendedores de Macau possibilidades competitivas, assim aqui exista suficiente visão e capacidade de aproveitar oportunidades de negócio que ultrapassem o âmbito do Jogo e da especulação imobiliária, as duas áreas que têm satisfeito enormemente as ambições financeiras dos privilegiados locais. Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, o Presidente recomendou que se coloque em primeiro lugar a população e a melhoria da sua qualidade de vida. Para Xi, “tem de estar muito claro que o objectivo do desenvolvimento é melhorar a vida das pessoas. Assim, a RAEM precisa de adoptar arranjos institucionais mais justos, mais equilibrados e que beneficiem todos, para que os frutos do desenvolvimento possam ser partilhados por toda a comunidade.” Nós não diríamos melhor, mas, durante anos, insistimos neste discurso. Macau, inexplicavelmente devido ao seu extraordinário PIB per capita, apresenta deficiências nas áreas da saúde, educação, trânsito, habitação, meio ambiente, etc. O dinheiro, por muito tempo, não tem sido alocado à melhoria dos sistemas públicos, nomeadamente na área da saúde, mas deslocado para o privado, servindo os interesses de alguns, ao invés de servir o interesse geral. A demora na construção do Hospital da Taipa é o sintoma mais grave deste problema. Em quarto lugar, Xi Jinping falou da preservação da harmonia social, entendendo que tal objectivo só pode ser conseguido se o Governo escutar a população através de consultas sobre os problemas prementes, que devem ser resolvidos de forma coordenada e não unicamente por decretos desligados da realidade e das aspirações das pessoas. O Presidente não esqueceu o facto de que na RAEM habitam várias comunidades, sublinhando que “sendo um lugar onde as culturas chinesa e ocidental se encontram, Macau está bem posicionado para promover trocas entre pessoas e aprendizagem mútua entre culturas”. Oiçam o Presidente Xi, é o nosso voto para a governação de Macau. É que se, segundo ele, “nenhuma força externa tem o direito de nos ditar seja o que for”, também os desejos egoístas de alguns, que unicamente pensam em si e nos seus, não devem ter o direito de condicionar o desenvolvimento de Macau e a melhoria da qualidade de vida da generalidade da população. Aos 21 anos, a RAEM atinge uma outra maioridade. Tal acontece num momento de crise provocado pela pandemia, mas as crises são também momentos de reflexão e de afastamento de percursos menos próprios. Esperamos que o governo de Ho Iat Seng, como foi ontem prometido no discurso, siga as vias traçadas por Xi Jinping e inaugure agora uma nova era de desenvolvimento conjunto que contemple todos e transforme Macau numa região onde seja permitido que o potencial financeiro e humano disponíveis atinja níveis nunca vistos nesta cidade multicultural que muitos exemplos, de desenvolvimento, cultura e tolerância, tem para dar ao país e ao mundo.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRAEM, 21 anos | Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau: “O maior valor de Macau é o seu legado” Ex-secretário adjunto de Rocha Vieira, Jorge Rangel assumiu vários dossiers e por pouco um problema de saúde não o afastou do cargo antes da transferência de soberania. 21 anos depois, Jorge Rangel defende um novo modelo de desenvolvimento para o território que não dependa tanto do jogo e acredita que deve existir equilíbrio na implementação da educação patriótica Que análise faz à RAEM 21 anos depois da transição? Sendo sempre fácil identificar insuficiências e até apontar naturais desvios, creio ser justo reconhecer que, em larga medida, os compromissos assumidos no acordo firmado em 1987, na Declaração Conjunta, foram cumpridos e o território conheceu períodos de crescente prosperidade. Houve, é certo, alguns graves acidentes de percurso. Tais como? Falo dos casos de corrupção que ganharam notória repercussão, mas esses percalços foram resolvidos pela via judicial, constituindo um teste à capacidade de resposta do sistema instituído, mesmo sabendo que nem todos terão concordado com a forma como alguns dos problemas criados foram resolvidos. Foram, entretanto, atribuídas à RAEM especiais responsabilidades. Fala do seu papel de plataforma com a China… E também da articulação de Macau com a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e como centro mundial de turismo e lazer. Foram, igualmente, definidos novos percursos com vista à sua progressiva integração na Grande Baía Guangdong – Hong Kong – Macau. Estávamos precisamente nesta fase do desenvolvimento da RAEM, com a ilha vizinha de Hengqin em rápida transformação para servir este propósito, quando a pandemia impôs uma pausa, que pode e deve ser muito bem aproveitada para repensar os objectivos imediatos e as estratégias de médio e longo prazo. A pandemia obrigou Macau a olhar-se de uma outra forma? Qual o caminho para recuperar de uma crise desta dimensão? Claro que sim. A receita global, proveniente do jogo, fazia acreditar que o seu desenvolvimento seria linear e sempre continuado, à medida que as autoridades fossem permitindo a entrada de mais e mais visitantes do continente, criando emprego, mas também recorrendo mais e mais a mão-de-obra importada. Cheguei a expressar uma opinião sobre a vulnerabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, dependente das receitas dos casinos. Disse que, numa situação de crise, como por exemplo um grave problema de saúde que tornasse imperativo o fecho das fronteiras, o nosso modelo seria, inevitavelmente, posto em causa e iria obrigar a um lúcido redimensionamento e a uma redefinição das prioridades. Há lições penosas que importa extrair e sobre elas, com coragem, repensar metas e ritmos de crescimento. E fazer incidir uma atenção maior na população. Defende então um maior equilíbrio ao nível do turismo. Os casinos e o turismo devem existir para servir os interesses da população e nunca o contrário. É imprescindível conseguir um muito maior equilíbrio. É estulto e estúpido o propósito primário de trazer mais e mais visitantes todos os anos. Em tudo há um limite e nós já ultrapassámos o nosso, até porque o nosso espaço é exíguo e a sustentabilidade do território depende mais da qualidade desse turismo do que do número de visitantes. Oxalá a pandemia nos permita repensar e redimensionar o nosso modelo de desenvolvimento, até porque o Chefe do Executivo, atento aos insistentes apelos das autoridades centrais, quer apostar numa maior e bem necessária diversificação. Mas não haverá limitações a essa diversificação? Ela é possível, havendo que apostar nas mais-valias do território, que vão da cultura e do património a um turismo de qualidade, muito mais selectivo e benéfico para a economia local. [Há também que apostar] nas indústrias, com as mais avançadas tecnologias e a inteligência artificial, com o suporte das universidades e dos seus centros de estudos e investigação. Temos também a área das finanças, assumindo alguns dos propósitos de maior utilização da moeda chinesa no exterior. E é preciso ter uma noção clara e realista dos nossos limites de espaço e dos nossos condicionalismos geográficos, sociais e políticos, em conjunturas nem sempre favoráveis. Haverá que ter em conta também as vantagens e os óbices que resultam da progressiva e, provavelmente, irreversível integração no projecto da Grande Baía, adoptando uma posição pró-activa mais consistente e consequente. Que análise faz da governação de Ho Iat Seng? Este, que é o seu primeiro ano em funções, foi imensamente prejudicado pela pandemia. Por isso não será possível fazer uma apreciação justa da sua governação em relação às linhas de acção que foram aprovadas e não inteiramente realizáveis. Mas podemos avaliar muito positivamente o esforço assumido para conter a pandemia e proteger a população dos seus nefastos efeitos. Houve liderança e sentido de missão. E as suas preocupações, desde o início, com a contenção nos gastos, a utilização correcta dos fundos públicos e contra o “despesismo” são de louvar. Qual foi, para si, o melhor e o pior momento da transição de Macau? Tutelei o Gabinete das Cerimónias e fui designado pelo Governador para acompanhar os assuntos da transição, trabalhando com a comissão preparatória e acompanhando o futuro Chefe do Executivo até ele tomar posse. E, no âmbito da Administração Pública, que era uma das áreas da minha responsabilidade, acompanhei de perto os processos de formação e “localização” de quadros, bem como os de integração e de ingresso nos quadros da República Portuguesa. Foram processos de particular complexidade. Também acompanhei os trabalhos do Grupo de Ligação e estive em reuniões da comissão interministerial sobre os assuntos de Macau. Estava em Hong Kong no âmbito de uma intervenção cirúrgica para remoção de um tumor, que me poderia ter impedido de continuar em funções governativas num tempo de grande exigência e intensa participação, quando tudo era urgente. Estava preparado para solicitar a minha dispensa e substituição, receando já não poder corresponder, quando recebi a visita do Governador. Mas continuou no Executivo. Na opinião da minha família deveria pedir ao Governador que autorizasse a minha saída, mas ele trazia-me uma pasta cheia de novas responsabilidades que acabei por aceitar, ficando em funções até ao último dia. Foi o fim de um tempo de Portugal e também o fim definitivo do meu exercício de funções públicas. Mas houve bons momentos. Foram muitos, e incluem a forma empenhada como o Gabinete das cerimónias funcionou, cumprindo exemplarmente uma missão, em nome de Portugal, e a forma como, indo até onde era possível no pouco tempo que nos restava, a conclusão do processo de “localização” de quadros, viabilizando uma transferência suave da administração. E os maus momentos? Se ainda vale a pena falar deles, recordo algumas incompreensões que rodearam o tratamento de vários processos que dependiam das autoridades nacionais e as questões políticas que condicionaram o diálogo, e o andamento célere e correcto de assuntos que requeriam urgência, a qual nem sempre foi correspondida. Mas isso já é passado e deixou de ter interesse para mim. A transferência da soberania esteve envolvida em algumas polémicas. Acha que está na altura de encerrar definitivamente o passado? Quem viveu aqueles acontecimentos não os esquecerá jamais. As polémicas a que se refere ganharam dimensão pelas motivações políticas que as estimularam. Sobre elas já muito foi dito, embora algo possa ter ficado por contar, nomeadamente sobre os bastidores e a intriga política que sempre existiu e existirá e que se agrava enormemente nos períodos de mudança histórica. É minha convicção que, com todas as dificuldades e incompreensões que rodearam o processo de transição, se cumpriu da melhor maneira possível a missão que aceitámos e que exigiu de nós tudo quanto lhe pudemos dar. Trabalhei com os seis últimos governadores de Macau. Pude ver, comparar e entender as motivações de cada um, até pela relação de grande proximidade e confiança que pude manter com quase todos. Sei que quiseram fazer o melhor em nome de Portugal. Mas nenhum se livrou de polémicas, que existem sempre no decurso da acção governativa, naturalmente surgidas ou intencionalmente provocadas. Considera que há hoje uma tentativa de apagar o passado colonial por parte de algumas personalidades de Macau? É necessário reforçar esse aspecto para a manutenção da identidade de Macau? São ainda vozes pouco generalizadas e que não tiveram grande eco, mas vão surgir, inevitavelmente, mais. Aliás, é bom lembrar que, nos próprios dias 19 e 20 de Dezembro de 1999, já em alguns organismos locais eram defendidas mudanças maiores, além de ali festejarem entusiasticamente (leia-se “patrioticamente”) a mudança. Porque é que essas ideias não avançaram? Foi o pragmatismo das autoridades centrais que foi sempre travando alguns ímpetos maiores, como acontecera no período da Revolução Cultural, de muito má memória cá fora e, sobretudo, lá dentro, pela forma como atingiu muitos milhões de pessoas. Convém também lembrar que, mais do que a sociedade civil chinesa tradicional de Macau, foram as autoridades centrais que quiseram que à RAEM fosse cometida a responsabilidade de se assumir como plataforma de cooperação com os países de língua portuguesa e que múltiplas iniciativas tivessem sido realizadas neste domínio. Cabe às instituições de matriz portuguesa e a muitas outras entretanto criadas continuar a defender a singularidade de Macau, porque o seu real valor é caracterizado pela sua diferença, mesmo no contexto da Grande Baía. O que pensa do projecto actual da Escola Portuguesa de Macau (EPM) e da educação de matriz portuguesa? Acompanhei de perto o processo de criação da EPM, como membro do Governo responsável pela educação, ainda antes da decisão final tomada pelo Estado Português, que escolheu um modelo diferente daquele que havíamos defendido. Já estávamos a prepará-la e a fazer ensaios e estudos sobre o seu papel e dimensão. Tomada a decisão, embora não tivesse deixado de oferecer as minhas opiniões, que apontavam para um maior envolvimento, desde o início, das instituições de matriz portuguesa e do Governo de Macau, abrindo-se o caminho para a participação da própria RAEM no apoio ao seu funcionamento, apostámos na sua criação segundo o modelo escolhido. Fiquei desligado dela [da EPM] durante muito tempo e voltei a acompanhar mais de perto o seu funcionamento, como membro do Conselho de Curadores da Fundação da EPM. A minha participação será, contudo, transitória. Mesmo com todas as mudanças que já ocorreram, considera a EPM um projecto importante. Sempre considerei a EPM a instituição mais relevante para garantir a permanência de portugueses e um bom ensino em língua veicular portuguesa, além de promover a difusão da língua e da cultura, podendo ainda contribuir seguramente para a viabilização do preceito da Lei Básica que atribui à língua portuguesa o estatuto de língua oficial. Espero que, com base na experiência feita, os seus responsáveis, através de um diálogo que se deseja amplo com as entidades financiadoras e todas as outras que têm um papel a desempenhar no seu regular funcionamento e nas experiências pedagógicas ensaiadas, encontrem para ela o melhor modelo de gestão e que os seus planos curriculares sejam consentâneos com a realidade presente, como escola portuguesa no estrangeiro e, simultaneamente, como estabelecimento de ensino particular da RAEM. Mas, no que diz respeito ao ensino do português, há ainda outras entidades. Qual a estratégia a adoptar para elas? O Instituto Português do Oriente deve também merecer a continuada atenção das autoridades para que possa cumprir bem a sua relevante missão, em articulação com o Camões – Instituto para a Língua e Cooperação. Quanto ao Jardim de Infância D. José da Costa Nunes e outras escolas e centros de formação onde a língua portuguesa é ensinada, importa, igualmente, assegurar-lhes a colaboração necessária e contribuir para que lhe sejam garantidos os meios adequados ao seu regular funcionamento. Creio que, no âmbito dos Serviços de Educação e Juventude da RAEM, é possível e desejável ir ainda mais longe, mas esta é matéria que já transcende o âmbito da pergunta feita. Preocupa-o a aposta crescente na educação patriótica? Macau é uma região chinesa com um estatuto especial transitório. É apenas natural que as autoridades, quer centrais, quer locais, se preocupem com a educação patriótica, mas, exactamente por causa deste estatuto especial que ainda deverá vigorar, oficialmente, por mais quase 30 anos, é bom que haja um sentido de equilíbrio e muita lucidez na forma como essa educação é ministrada. Os programas e textos de apoio não devem, a meu ver, ser simplesmente transpostos duma realidade diferente, mas sim adequadamente adaptados, sob pena de se tornarem ineficazes. O amor à Pátria sempre foi um valor naturalmente assimilado e convictamente assumido. Pode até ser estimulado e cultivado, mas nunca imposto. Quem não perceber isto, não deve estar a perceber nada do que tem a ver com o presente e o futuro da RAEM. Como perspectiva o futuro da RAEM? Faltam quase 30 anos [para 2049]. Parece muito tempo, mas, na realidade, nem o é, já que estes vinte, desde a transferência da administração, passaram assaz vertiginosamente. Podemos perspectivar o porvir através dos planos de desenvolvimento aprovados ao longo da última década e meia, primeiro para o Delta do Rio das Pérolas, e, logo a seguir, a sua articulação crescente e interligação regional, para culminar agora no ambicioso projecto da Grande Baía. Esses planos apontam metas para 2022 e para 2035, prazo fixado para a sua conclusão. As coordenadas do desenvolvimento de Macau estão ali claramente delineadas, através do plano sectorial elaborado pelo Governo da RAEM, o qual merece mais ampla difusão, para que todos possam tomar conhecimento do que está verdadeiramente em preparação. Executado o plano da Grande Baía, entrará certamente em vigor um plano que estabelecerá as linhas mestras da integração definitiva. Mas, no contexto da Grande Baía, Macau deverá ser um território único. O que devemos desejar é que haja sempre clarividência para se entender que o maior valor de Macau reside no seu legado de séculos. A sua diferença é a marca da sua singularidade e só a manutenção da sua singularidade garantirá a utilidade da sua participação e da sua integração em condições que ainda estão por definir e podem, por isso, depender ainda da nossa legítima intervenção, em nome das associações e outras organizações da sociedade civil a que estamos ligados, como residentes permanentes. Filho da terra, invocarei sempre a legitimidade de participação que essa antiguidade deve facultar. Mas essa legitimidade de participação deve ser assegurada a todos quantos, de qualquer origem, aqui têm a sua casa e aqui decidiram fazer o seu futuro, que é o mesmo que dizer, fazer o futuro de Macau, sua terra, com as suas gentes, que acreditam que sem memória não haverá futuro. Esse futuro, porém, dependerá sempre muito mais da China do que de nós, dos rumos que ela for apontando para o seu desenvolvimento nas próximas décadas e dos sucessos da afirmação da sua influência crescente no mundo.
Hoje Macau Manchete SociedadeRAEM 21 anos | Personalidades fazem análise ao estado do território Reforma Política | Coutinho lamenta défice democrático Pereira Coutinho considera que o “calcanhar de Aquiles” de Macau, ao fim de 21 anos enquanto região autónoma especial, é o progresso democrático. “A Assembleia Legislativa não tem uma maioria democrática, e isto é mau para Macau. A falta de representatividade, significa défice democrático e que as vozes da população de Macau não estão a chegar onde deviam chegar”, apontou ontem o deputado. Apesar disso, considera que Macau “foi-se desenvolvendo e atingiu a maioridade”, sabendo manter a estabilidade. “Com muitos desafios para a frente, espero que a sociedade se mantenha estável, mas seja mais justa. É o que falta a Macau em todos os aspectos, ou seja, uma sociedade mais justa, equilibrada, e que, de facto, beneficie todos com o seu desenvolvimento económico”, vincou. Amélia António: Número simbólico A maioridade talvez demore mais um pouco a chegar, mas em 21 anos houve muitas coisas bem feitas. É esta a opinião de Amélia António: “Não sei se Macau atingiu a maioridade [com os 21 anos], porque ainda faz tanta asneira (risos)… mas é um número simbólico”, disse, em tom divertido. “Há muita coisa que precisa de ser feita e melhorada, porque a certos níveis há muita coisa que funciona mal. Por outro lado, outras funcionam muito bem, como a segurança com que vivemos, e que se nota agora ao nível da saúde. É um dado que não se pode nunca menosprezar”, acrescentou. “Macau está de parabéns”, realçou. Tina Ho: A Pátria começa em casa Tina Ho, presidente da Associação Geral das Mulheres de Macau e irmã do Chefe do Executivo, considera que a família tem um papel fundamental no desenvolvimento de Macau para o futuro. Em declarações ao jornal Ou Mun, Ho apontou a família como pilar para a promoção de um ambiente social harmonioso, assim como das virtudes morais chinesas, que permitem aos cidadãos adoptar os julgamentos morais correctos no esforço da harmonia e prosperidade social. A Constituição e Lei Básica, a participação no plano quinquenal e a governação segundo a lei foram outros pontos destacados. Sales Marques: “Balanço extremamente positivo” À margem da cerimónia oficial do 21º aniversário da RAEM, José Luís Sales Marques considera que desde o dia da transição, o território adquiriu novas experiências ao longo do tempo e que o “balanço global é extremamente positivo”. “Temos muita sorte em viver em Macau. O caminho traçado pelo Chefe do Executivo é sólido, prudente e (…) aponta no sentido de uma recuperação gradual, e, portanto, assente em bases sólidas. Esperemos que toda a conjuntura mundial e o desenvolvimento da própria China nos ajude no sentido de conseguir isso”, acrescentou. Carlos Marreiros | “A qualidade de vida não melhorou nos últimos 10 anos” O arquitecto Carlos Marreiros considerou ontem que em Macau a qualidade de vida da população não melhorou nos últimos 10 anos. “Depois de 10 anos em que as pessoas estavam felizes porque Macau prosperou, nos 10 anos seguintes (…) Macau não conseguiu criar aproximações sistémicas a vários níveis. A qualidade de vida das pessoas que não melhorou”, apontou. À margem da cerimónia oficial do 21º aniversário da RAEM, Marreiros acredita, contudo, que “o novo Governo vai alterar significativamente muitos sectores de Macau”. Exemplo disso, segundo o arquitecto, é o Plano Director. “É um instrumento que, não sendo perfeito, funciona como a decisão do comandante de um navio. Mesmo que a decisão seja não perfeita, é melhor que indecisões. Por isso, vamos ter esperança”, rematou. Neto Valente | “Feliz por estar vivo” O Presidente da Associação de Advogados de Macau, Jorge Neto Valente considerou que, apesar de ter completado ontem 21 anos, a Região Administrativa e Económica de Macau (RAEM) dá sinais de não ter alcançado a maturidade desejada. “Estou feliz por estar vivo. Com 21 anos, para mim a maioridade não tem a ver com a idade, mas com a maturidade. Estou mais preocupado com a maturidade”, começou por dizer, à margem da cerimónia oficial do 21.º aniversário da RAEM. Questionado sobre o caminho traçado por Ho Iat Seng durante o discurso de ontem, Neto Valente mostrou-se reticente. “Que caminho? Eu estava à procura do caminho para aqui e alguém me disse: ‘If you don’t know where you are going, any road will get you there’. É onde nós estamos”, rematou. Santa Casa | Provedor destaca estabilidade de Macau No 21.º aniversário do estabelecimento da RAEM, o Provedor da Santa Casa da Misericórdia destacou a estabilidade no território. “Julgo que a população não tem argumentos para contestar muitas situações. Claro que em alguns terá argumentos, mas tem reinado a estabilidade social, que é importante. Isto veio a provar que as orientações de ‘Um País, Dois Sistemas’ e ‘Macau Governado pelas Suas Gentes’, é um sistema que funciona”, declarou ontem António José de Freitas. O Provedor observou ainda o “boom económico” que se seguiu à liberalização do jogo. Indicando que a última distribuição do ano ligada ao projecto da loja social foi feita recentemente, mostrou-se confiante de que “tem pernas para andar” no próximo ano.
Salomé Fernandes Manchete PolíticaCovid-19 | Ho Iat Seng diz que reunião familiar também pode ser feita fora de Macau As famílias separadas por causa das restrições fronteiriças não têm de se reunir em Macau: os residentes podem sair do território. Foi o que indicou ontem o Chefe do Executivo à margem das celebrações do aniversário da RAEM. Ho Iat Seng admitiu também a possibilidade de os contratos de concessão do jogo serem prolongados As reuniões com familiares também podem acontecer fora de Macau. Foi a solução que o Chefe do Executivo reiterou ontem para reatar os laços de família de não residentes que vivam na RAEM, depois da separação imposta pelas limitações fronteiriças. “Se estiverem na Europa ou nos Estados Unidos e não forem residentes de Macau, por enquanto [ao nível das] medidas não temos outro remédio, temos de insistir nisso”, disse Ho Iat Seng, indicando que, por sua vez, os residentes de Macau podem regressar ao território ou sair para outras zonas. “Se estiverem em Macau não há problema em regressarem para a Europa ou Estados Unidos. Mas se não tiverem bilhete de identidade de residente de Macau não podem entrar. A reunião não é de um lado só, pode ser de cá para lá, não só de lá para cá”, frisou. O Chefe do Executivo remeteu a possibilidade de as interdições serem levantadas quando os países de origem não tiverem casos durante 14 dias. “Se esse país não tiver nenhum caso, for zero, nós permitimos. (…) O essencial é que esses países têm de fazer as medidas de prevenção e controlo”, observou. O controlo da epidemia em Macau, bem como as verbas destinadas a ajudar a população – que tiveram “resultados positivos” – foram destacadas por Ho Iat Seng no seu discurso da recepção da celebração do 21º aniversário da RAEM. O dirigente máximo explicou que para o controlo da pandemia resultar é necessário trabalhar “de forma rigorosa, efectiva e precisa, do início ao fim”. Esforço de contenção que ganha fôlego com a chegada de vacinas. A previsão do Chefe do Executivo é que os Serviços de Saúde deverão gastar cerca de 500 patacas por pessoa. A vacinação é voluntária e gratuita para residentes. Ho Iat Seng deixou em aberto a possibilidade de os trabalhadores não residentes também não pagarem. “Estamos a analisar, mas não é uma grande questão, não é um grande problema. Nalguns países não houve máscaras para não residentes, o que deu problemas. Essa é uma experiência que adquirimos. Muitos não residentes também estão a trabalhar na linha da frente, portanto, vamos garantir isso”, notou. Mudanças de jogo Outra das declarações que merece destaque foi a sugestão de que os contratos de concessão do jogo podem ser prolongados. Questionado sobre a probabilidade do cenário se concretizar, o Chefe do Executivo respondeu que “qualquer situação será ponderada” e não contrariou previsões que apontam para a extensão das licenças de jogo até 2025, indicando que todos têm o direito de fazer comentários. “Ainda estamos a consolidar a base legal. Sobre essas empresas e previsões não vou comentar. É difícil comentar porque tem a ver com o futuro desenvolvimento de Macau”, disse o Chefe do Executivo, acrescentando que os pormenores serão divulgados aquando a base legal estiver concluída. No entanto, o processo da revisão da lei do jogo está atrasado devido à pandemia, e a consulta pública adiada para o segundo semestre do próximo ano. Sem receios No discurso referiu também a segurança nacional e as eleições legislativas. “Serão adoptadas medidas eficientes de prevenção da infiltração e intervenção de forças externas, de modo a garantir a estabilidade e segurança da RAEM. Iremos assegurar o sucesso das eleições para a 7ª Assembleia Legislativa que terão lugar no próximo ano, garantindo que decorram com imparcialidade, justiça e transparência”, disse. No entanto, à margem do evento, Ho Iat Seng disse que “não há nada concreto que possa dizer” relativamente a medidas concretas. Por outro lado, o líder da RAEM apontou que não há sinal de as eleições em Hong Kong afectarem as de Macau. “As duas regiões administrativas são diferentes em termos de mecanismos e estrutura. Cada qual tem o seu mecanismo para fazer as eleições. (…) A próxima legislatura é em Outubro, podemos prever que as duas regiões administrativas tenham eleições na mesma altura, mas não vemos [qualquer] influência”, declarou. O impacto da pandemia nas eleições ainda é incerto. “Se houver muitos casos na altura se calhar temos de ponderar como adiar, mas agora não consigo fazer essa previsão”, disse o Chefe do Executivo. Ho Iat Seng apontou ainda o dever de materializar as instruções dos discursos do presidente Xi Jinping durante a visita a Macau no ano passado, tendo em conta conjunturas que “ainda são complexas e mutáveis”. Além disso, declarou que a retoma sucessiva de vistos de turismo “injectou dinâmica e vitalidade na economia de Macau, que recupera gradualmente”. O líder da RAEM indicou que ainda não recebeu informações sobre a viagem a Pequim para o balanço anual. Publicidade falsa O Governo vai responder a problemas associados à aquisição de casas na Grande Baía ao melhorar aspectos relacionados com publicidade. “Depois de assumir o cargo de Chefe do Executivo, comecei a tomar medidas muito rigorosas para a publicidade, e também com os serviços da tutela da economia, porque no passado houve falta de gestão (…) em Macau. E há muitas publicidades que não são verídicas”, comentou Ho Iat Seng, apelando a que a população só pondere a compra de imobiliário depois de analisar toda a documentação.
Hoje Macau EventosFotografia | Exposição sobre 21º aniversário da RAEM no Largo do Leal Senado A galeria do edifício Ritz, no Largo do Leal Senado, recebe uma exposição de fotografia sobre o 21º aniversário da RAEM, que vai estar aberta ao público até 27 de Dezembro, noticiou o canal chinês da Rádio Macau. O organizador, Yau Tin Kwai, apontou que se sente honrado por poder gravar e mostrar as fotografias históricas da transferência de soberania de Macau em 1999. O também fotógrafo do Gabinete de Coordenação da Cerimónia de Transferência considera que Macau apresenta grandes mudanças nas áreas social e económica antes e depois da transferência, com a sociedade a tornar-se mais “estável” e “harmoniosa”. Yau deseja que a exposição estimule a memória de quem presenciou o momento e dê a conhecer aos jovens de Macau o seu significado. A mostra inclui 99 obras, incluindo a preparação do Edifício da Cerimónia de Transferência de Poderes por parte da então administração portuguesa, e as actividades cerimoniais de cada sector social.
Carlos Morais José Editorial VozesUm melhor futuro A RAEM faz hoje o seu vigésimo primeiro aniversário. 2020 foi um annus horribilis, devido ao aparecimento da pandemia, que paralisou Macau e a sua economia, porque esta cidade muito depende da livre circulação de pessoas. Por isso, o actual Chefe do Executivo, no seu primeiro ano, teve de se defrontar com este problema, ao invés de colocar em marcha as medidas que indiciariam os propósitos da sua governação. Também por esta razão, é com alguma expectativa que aguardamos pelo seu discurso de hoje. Todos compreendemos já que estamos perante um Governo que alterou, em muito, o estilo a que o anterior nos habituara. Por um lado, as mensagens passam muito mais claramente; por outro, mostrou-se decisivo na forma como nos protegeu da pandemia, apesar de tal ter afectado muitos dos interesses instalados e que nos habituáramos a ver sobrepostos ao próprio bem-estar da população. Macau conheceu nestas duas décadas um brutal crescimento económico. Mas, infelizmente, nem sempre esse movimento foi acompanhado por uma condicente distribuição da riqueza e, sobretudo, por um melhoramento significativo da qualidade de vida da população. A nossa cidade confronta-se com problemas de diversificação económica, habitação, trânsito, saúde, educação, cultura e meio ambiente. Estamos atrasados em relação a muitas outras cidades da República Popular da China, apesar de dispormos de um rendimento per capita muitíssimo superior. Logo, há que concluir que faltou alguma capacidade de liderança e de priorização do que realmente é importante, a saber, o bem-estar da população, sem excepções. O que não tem faltado a Macau é o apoio incondicional do Governo Central, fundamental para a manutenção da harmonia e da paz social, bem como para o fortalecimento económico da região. Tudo indica que, sob a liderança de Ho Iat Seng, poderá existir um desenvolvimento e aprofundamento do princípio “um país, dois sistemas”, que constitui a base do funcionamento da RAEM, em termos económicos, jurídicos, civis e políticos. Nesta fase, mais importante que as questões eleitorais, que entendemos poderem constituir uma ameaça real para o equilíbrio da RAEM, será a transparência democrática, uma justa distribuição da riqueza comum, o acesso às decisões que, definitivamente, deverão ser tomadas em favor dos interesses da maioria e não somente de alguns, cujo enriquecimento excessivo tem colocado entraves a um real desenvolvimento. É por isso que aguardamos com alguma expectativa o discurso de Ho Iat Seng, no sentido de nele recolhermos pistas que nos permitam compreender por que via seguirá Macau na próxima década. Ou seja, se realmente estamos perante um virar de página ou se ficaremos mais uma década a marcar passo, enquanto o mundo à nossa volta, nomeadamente o país do qual a RAEM faz parte, parece caminhar decisivamente na direcção de um melhor futuro.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRAEM, 21 anos | José Pedro Castanheira, jornalista: “Quem fez Macau foram os macaenses” Poucos jornalistas portugueses conhecem a Macau do período pré-1999 como José Pedro Castanheira. Repórter de investigação, escreveu vários livros sobre a história do território, sobretudo a partir do motim “1,2,3” e fez a cobertura da cerimónia da transferência de soberania. Ao HM, recorda a rapidez com que os símbolos portugueses foram apagados a seguir ao evento e as tensões entre Jorge Sampaio e Rocha Vieira Como é que Macau surge na sua vida profissional? Já tinha ido a Macau várias vezes [antes da cerimónia da transferência de soberania]. Em 1999 fui com bastante mais tempo, estive cerca de quatro meses, para escrever um livro, “Os Últimos Cem Dias do Império”. A primeira vez que fui a Macau foi em representação do Sindicato dos Jornalistas nos anos 80. Estava no semanário O Jornal, que já não existe, e decidi ficar mais uns dias para escrever uma reportagem. A partir daí, passei a ir com alguma regularidade a Macau e sempre em serviço para o jornal. A partir de 1989 passou a ser o Expresso. Até que em 1996 fui para fazer uma reportagem na área em que já me estava a especializar, a área da investigação histórica, a propósito dos 30 anos do 1,2,3, e que depois seria transformada em livro. O 1,2,3 era um episódio completamente desconhecido e sobre o qual havia um silêncio enorme. Falei mesmo de um tabu, era um assunto tabu para as partes chinesa, portuguesa e macaense. Havia um consenso generalizado das três comunidades no sentido de não falar do caso. Como descreve o clima que se vivia nos anos anteriores à transição? Havia um sentimento de medo? Preferiria as palavras dúvida e receio. A transferência da Administração era um grande ponto de interrogação, sobretudo porque tinha havido há pouco tempo os acontecimentos de Tiananmen. Tinha havido a Revolução Cultural, que marcou muito as relações entre a China e o Ocidente, e em particular com Macau e Hong Kong. Havia um ambiente de muita dúvida. Claro que a transição de Macau foi decisivamente influenciada pela transição de Hong Kong, onde as coisas não correram muito bem. Mas, no essencial, o modelo foi transposto para Macau. As coisas acabaram por correr muito bem, muito melhor do que se esperaria, e estamos perante um sucesso histórico assinalável. Houve, no entanto, muitas polémicas associadas à transição. A criação da Fundação Jorge Álvares foi uma delas. 21 anos depois, permanece ainda um mistério ou está tudo esclarecido? Acho que as coisas já são conhecidas no essencial. Os principais sujeitos históricos já escreveram as suas memórias, e sei que, neste momento, há outras biografias que estão a ser feitas. Há sempre pequenos pormenores e mistérios e alguns deles ficarão para todo o sempre. Mas devo dizer que a partir da transferência deixei de seguir Macau com a atenção com que anteriormente seguia. Rocha Vieira foi um bom último Governador? Foi e não foi… Rocha Vieira foi nomeado para pôr ordem na casa. Os dois anteriores governadores, Pinto Machado e Carlos Melancia, não tinham conseguido gerir o território de uma forma pacífica e politicamente equilibrada, e ainda por cima com casos conhecidos na área da corrupção. Macau estava na ordem do dia pelas piores razões. O Presidente Mário Soares decidiu alterar a sua linha essencial em relação a Macau, que era, contrariando quase toda a tradição histórica, ter à frente do território governadores civis – no sentido de não militares. Rocha Vieira pôs “ordem” na casa, deixou de se falar de Macau na imprensa portuguesa e passou a gerir Macau de uma forma muito própria, centralizada e sem fugas de informação. Incluindo com alguns laivos de autoritarismo, e foi criticado por isso. Depois, havia que negociar com a China, e isso era naturalmente muito difícil. Tinha de ser uma negociação a uma só voz, sem grandes divergências da parte de Portugal, e Rocha Vieira conseguiu gerir internamente o território e externamente na sua relação com a China. Depois, na fase final, quando houve uma mudança na presidência da República, com a eleição de Jorge Sampaio, as coisas mudaram bastante. Houve algumas desavenças entre Sampaio e Rocha Vieira. Jorge Sampaio teve uma forma de abordar a questão de Macau e o relacionamento com o Governador muito diferente de Mário Soares. Isso depois levou a alguma agitação, e isso é conhecido e escrevi longamente sobre isso na biografia de Sampaio. Houve alguns problemas e a Fundação Jorge Álvares foi um deles, mas houve outros problemas relacionados com a transição, em particular a questão da entrada das tropas chinesas em Macau, quando e onde entrariam. Isso provocou grande discussão. Mas isso ficou bem resolvido, e se há assunto do qual a diplomacia portuguesa se pode orgulhar é a forma como Macau passou para a República Popular da China. Mas escreveu no Expresso que Macau levou Sampaio ao hospital. Isso passou-se em 1996, logo após a eleição de Sampaio para a presidência. Uma das primeiras decisões de fundo que ele teve de tomar foi reconduzir, ou não, o Governador de Macau. Havia uma grande pressão no sentido de o substituir, e essa pressão vinha de Macau e também de vários sectores políticos de Portugal, em particular do Partido Socialista que na altura estava no Governo. A primeira decisão de fundo que Sampaio tomou foi essa e manteve Rocha Vieira, mas com uma série de condições. Uma delas era que Rocha Vieira teria de apresentar de uma forma regular contas políticas ao Presidente da República sobre a sua gestão do território. E foi numa importante e tensa reunião em Belém que o Presidente Sampaio teve um problema do foro cardíaco que o obrigou a ser operado mais tarde. Mas isso é revelador da tensão que o caso Macau suscitava na política portuguesa. O que acha mais fascinante na história de Macau, 21 anos depois? A importância crucial que teve, durante séculos, uma pequeníssima comunidade que é a macaense. Foi um grupo que se foi criando e na prática eram os intermediários entre portugueses e chineses, que viveram quase sempre de costas viradas uns para os outros. Os portugueses nunca aprenderam chinês e a China vice-versa – só mais tarde é que viria a apostar no português, não por causa de Portugal, mas sim da lusofonia. Essa comunidade foi ganhando a sua importância, mas é evidente que, hoje em dia, tem menos relevo porque os macaenses já não são tão necessários como foram. As especificidades de Macau foram muito importantes em alguns momentos do século XX, em especial no pós II Guerra Mundial e na Guerra Civil chinesa, quando Macau passou a ser uma terra de refugiados. Acha que a comunidade macaense foi devidamente ouvida neste processo de transição? Não. Os macaenses nunca foram devidamente valorizados, pelo menos do ponto de vista político. Basta ver o número ridiculamente baixo de macaenses que foram membros dos vários governos de Macau, o número muito baixo de macaenses que foram deputados à Assembleia Legislativa, o número quase nulo de macaenses que foram magistrados. Infelizmente, não lhes foi dado o valor e a representação a que tinham direito. Macau só teria a ganhar se fosse dado mais espaço e valor aos macaenses. É lamentável que assim tenha sido. Sente que, 21 anos depois, Portugal dá atenção a Macau por causa da relação que tem com a China? Ou já teria caído no esquecimento? Acho que Macau caiu completamente no esquecimento. Mas Portugal ainda tem obrigações em relação a Macau. Sim, certamente que tem. Mas Macau é uma região autónoma da China. Macau cresceu e mudou muito, embora eu não tenha conhecimentos e informação suficientes para falar da Macau de hoje. Uma das coisas que mudou foi o interesse da opinião pública e do poder político portugueses. A opinião pública ignora o que acontece em Macau e, no essencial, o poder político também. É pena porque é um território com muita história, mas também com presente e futuro. Há muita coisa que poderia passar por Macau do ponto de vista económico. Macau poderia servir de porta de entrada para a China, e penso que não é. Isso acontece ou por falta de iniciativa empresarial, ou por ausência de motivação e empenho do poder político – ou pelas duas razões conjugadas. Recorda-se de algum percalço curioso da cerimónia da transição? Houve dois momentos muito diferentes. Houve a festa portuguesa, um espectáculo tipicamente português, a que assisti com muita emoção. Levei comigo a minha família e o meu filho mais velho até participou nessa festa. Horas depois foi a cerimónia oficial, com todas as características chinesas, e que foi completamente oposta à festa portuguesa. A frieza, a disciplina, o planeamento, a falta de alma… Depois, uma coisa curiosa foi a extrema rapidez com que o novo poder chinês decidiu remover todos os sinais da antiga soberania portuguesa. Bandeiras, emblemas, em poucas horas os símbolos portugueses foram apagados. Mas, felizmente, ficaram alguns monumentos que mostram que Macau não foi só chinesa e foi, sobretudo, uma terra de macaenses. Quem fez Macau foram, sobretudo, os macaenses.
Pedro Arede Entrevista MancheteCarson Fong, residente de Macau com 21 anos: “Macau é um bom sítio para se viver” Carson Fong, estudante do 3º ano da licenciatura de Estudos Portugueses da Universidade de Macau, nasceu no mesmo ano do estabelecimento da RAEM. Apesar de tratar Macau por “tu” e de considerar inegável a evolução desde a transição, aponta que, para os jovens, os tempos são de contenção devido à pandemia e que amar o país é uma matéria que não deve ser forçada A RAEM foi estabelecida em 1999. Como é ter 21 anos? Nasci em Macau, a 29 de Julho de 1999. Penso que ter 21 anos tem um grande significado, porque já sou adulto e Macau está muito melhor desde o dia da transferência de Portugal para a China, especialmente naquilo que é possível ver, ao nível da vida das pessoas, sinto isso também no meu dia-a-dia. Em termos económicos há uma grande diferença. Após a transferência, começaram a vir cada vez mais turistas a Macau passar férias e, por isso, o Governo foi enriquecendo ao longo dos anos e isso trouxe vantagens para os residentes. Inclusivamente, o Governo atribui anualmente um cheque de 10 mil patacas a todos os residentes, o que, na minha opinião, ajuda muito. Por isso, considero que a evolução é visível. Estamos hoje mais ricos e prósperos. Tal como um adulto de 21 anos, considera que Macau atingiu também a sua maioridade e segue hoje o seu próprio caminho? Definitivamente, Macau é um bom sítio para se viver, mas não acho que seja dona do seu destino porque após a transferência passou a responder ao Governo Central. É inevitável considerar que hoje, Macau é melhor em todos os aspectos mas, em termos de opinião e participação pública, e apesar de tudo isso existir e estar assegurado, a intervenção das pessoas é reduzida. Muitas vezes, considero que as pessoas não vocalizam opiniões negativas acerca do Governo e pensam muito antes de falar. Como exemplo disso, podemos olhar para a questão do Metro Ligeiro. Foi um projecto que custou muito dinheiro e com o qual muitas pessoas estão descontentes, mas pura e simplesmente é um assunto sobre o qual não se atrevem a falar ou a mostrar desagrado. Como era Macau durante a sua infância? Nasci em Macau, mas, porque os meus pais decidiram ir para o Interior da China por motivos profissionais, a minha infância e os primeiros anos escolares, foram passados em Foshan, em Guangdong. Regressei a Macau com 12 anos e, nesse momento, a minha primeira impressão foi que Macau era uma cidade com uma mistura incrível de culturas, incluindo a portuguesa e a chinesa. Isso fez-me sentir que Macau era o melhor lugar para mim. Desde que voltei, já cá estou há 10 anos e considero Macau a minha casa. De que forma encara essa mistura de culturas? É muito fácil encontrar as marcas deixadas pelos portugueses em Macau, por exemplo, ao nível da arquitectura, da gastronomia ou da própria língua que está em todo o lado. Considero que a mistura de culturas que encontramos aqui contribui muito para a minha aprendizagem e para conhecer factos sobre Portugal que desconhecia totalmente, antes de voltar para Macau. Além disso, aprendi que gosto muito da comida portuguesa. Porque decidiu estudar português? Quando era criança sempre me interessei em aprender outras línguas, como o inglês. E por isso, estando aqui, com todas as oportunidades inerentes a isso, decidi aprender português. A língua portuguesa é muito importante para Macau. Para além de ser um dos idiomas oficiais, se realmente formos capazes de falar português é possível ter uma carreira atraente a nível financeiro. Podemos ver isso com os tradutores e outras profissões que requerem a utilização do português. Além disso, também me interesso muito pela própria cultura e o português abre-me portas para o “mundo” dos países de língua portuguesa. Gostava muito de fazer uma viagem a todos eles. De que forma os seus pais descrevem Macau antes de 1999? Os meus pais contam-me que, antes da transferência, Macau era um território muito pobre, onde havia muito crime, e que o Governo da altura tinha poucos recursos e pouco controlo da situação. Antes da transferência havia muito mais portugueses em Macau, mas, na verdade, havia pouco contacto entre portugueses e chineses devido à barreira linguística. A ligação feita séculos antes entre o Ocidente e o Oriente através dos portugueses é muito importante. Portugal foi o primeiro país ocidental a chegar e a estabelecer contactos com o Oriente e trouxe consigo inúmeras aprendizagens, costumes e artefactos pioneiros na Ásia que, por sua vez, através de Portugal, conseguiu também transportar um pouco de si para o Ocidente. Considera que em Macau as pessoas têm uma vida fácil? Acho que sim. Além de ser fácil ter emprego, é possível obter facilmente muito dinheiro e apoios por parte do Governo e, no final, as pessoas acabam por ter dinheiro para fazer aquilo que gostam. Claro que este ano, as coisas mudaram devido à pandemia. Podemos ver que a taxa de desemprego, por exemplo, tem subido ao longo do ano. Muitas pessoas perderam o trabalho e, segundo as notícias, o número de suicídios também aumentou muito, devido aos efeitos colaterais da pandemia. Estamos a viver tempos difíceis. Mas falando também de mim próprio, para as pessoas que não precisam de trabalhar, como um estudante, esse dinheiro que obtemos do Governo contribui também para nos tornarmos mais preguiçosos. Gastamos constantemente dinheiro em coisas caras que não precisamos, eu incluído. Por exemplo, gasto muito dinheiro em refeições. Acho que não é uma boa ideia, porque este ano é um ano muito duro e acho que devo poupar mais dinheiro, até porque a situação da pandemia ainda não está controlada e não sabemos como vai ser em 2021. Quando terminar os estudos receia ter dificuldades em encontrar trabalho? Na verdade, os meus pais insistem que eu continue a estudar após concluir a licenciatura e que vá inclusivamente para Portugal prosseguir os meus estudos. Eles não querem que eu comece já a trabalhar. Pessoalmente estou preocupado em aprender a falar bem português. Sente que a compra de casa é um problema para os jovens de Macau? Sim, os jovens de Macau estão preocupados com a possibilidade de não conseguirem comprar casa no futuro. Os preços são elevados e a maioria não tem capacidade financeira para suportar essa compra. Por outro lado, é possível participar nos concursos de habitação pública do Governo para comprar uma casa mais barata. No entanto, penso que, mesmo aquelas pessoas que compravam casa para ter retorno com uma venda futura têm, hoje em dia, muito mais dificuldades em adquirir casas. Como encara a indústria do jogo em Macau? Vê com bons olhos que a cidade seja, muitas vezes, apenas reconhecida por isso? Acho que tem aspectos bons e maus. Do lado positivo, os casinos oferecem muitas oportunidades de trabalho para os residentes e, atingindo posições mais elevadas ao nível da gestão é possível ganhar muito dinheiro. Do ponto de vista negativo, as actividades relacionadas com o jogo são, muitas vezes fonte de vários crimes, mas também a razão pelas quais muitas pessoas acabam sem dinheiro. Há muitas pessoas que ficam sem nada depois de apostar tudo nos casinos. Por outro lado, lá está, eu mesmo cheguei a ter um trabalho temporário num casino, que me ajudou a ganhar algum dinheiro. Como será Macau daqui a 21 anos? Vão existir ainda mais casinos e as pessoas serão ainda mais prósperas. Os turistas continuarão a vir e as ligações culturais vão ser ainda maiores. Acho que vão existir mais oportunidades de negócio e de emprego devido à diversificação dos cargos existentes. Por outro lado, como disse antes, penso que o à vontade para dizer o que se pensa, sobretudo quando se trata de aspectos negativos, não será maior. O Governo oferece tanto dinheiro que as pessoas não se atrevem a dizer nada. Tem-se assistido nos últimos tempos, ao reforço do ensino patriótico. Na sua opinião como estudante, de que forma os jovens encaram esta questão? A China tem duas regiões administrativas especiais que são Macau e Hong Kong e, como disse, muitas pessoas aqui não gostam de falar apesar de terem opinião sobre os assuntos. Alguns amigos meus não gostam do Governo, mas não o dizem abertamente, porque Macau é controlado pelo Governo Central e têm medo. Acho que toda a gente tem o direito de falar e dar a sua opinião. Na minha opinião não é necessário que o Governo force os jovens a aprender sobre estes temas, como amar o país. Se amamos o país é porque amamos o país. Porque nos forçam a amá-lo?