Ivo Carneiro de Sousa, historiador: “Esta Grande Baía não existia sem Macau”

Para quem pensa que a Grande Baía é um conceito político novo, desengane-se. O historiador Ivo Carneiro de Sousa, académico da Universidade Politécnica de Macau, explica que a noção de Grande Baía de Cantão, enquanto zona de intenso comércio, já existia em 1701. Macau tinha um papel fundamental de intermediação, arbitragem e serviços, incluindo tradução e interpretação nos negócios

 

Esta semana deu uma conferência intitulada “Macau e a formação histórica da área da Grande Baía: 1700-1842”. Este não é, afinal um conceito novo.

A Grande Baía de Cantão existe, pelo menos, desde 1701, quando aparece, pela primeira vez, num dicionário de geografia universal de Charles Maty, um grande geógrafo e cartógrafo que se viu obrigado a fugir de França e a refugiar-se em Amesterdão. Ele descreve, em termos de geografia comercial, toda a parte marítima entre Macau e Cantão, chamando-lhe a Grande Baía de Cantão. A obra publicada em Amesterdão foi um marco da invenção da geografia comercial. A partir de 1713, começamos a encontrar mapas franceses, ingleses, espanhóis e italianos, que mostram uma espécie de golfo entre Macau e Cantão, que se chamava a Grande Baía. A partir de 1930 começou-se a designar todo o comércio que se fazia nessa região de Cantão, com a intermediação de Macau, por sistema de Cantão. Em 1841 surge o último mapa que fala da Grande Baía de Cantão.

Como funcionava, então, esta Grande Baía?

Era uma economia-mundo. Consistia numa parte do mundo suficientemente organizada em termos económicos e com intérpretes e uma posição dominante na economia mundial. Tal devia-se à relação especial entre o mercado de Cantão e as formas de intermediação com que Macau permitia o acesso internacional a esse mercado.

Qual foi o papel de Macau neste sistema?

Macau teve, ao longo do século XVIII, e até meados do século XIX, um sistema complexo e especializado de inteligência comercial. Todas as embarcações internacionais que, entre Setembro e Janeiro, pediam a Cantão para fazer comércio, e chegavam a ser 80 embarcações por ano, tinham de passar por Macau, solicitar uma chapa de autorização, contratar um piloto e fazer um contrato com uma companhia de compradores. Essas companhias asseguravam todo o abastecimento do barco durante o período de comércio em Cantão, do ponto de vista técnico, por exemplo. Macau assegurava também a classificação comercial dos produtos que entravam e saíam de Cantão. Eram categorizadas, por exemplo, as sedas, os chás, dava-lhes um peso internacional e preço. Encontramos peles de lontra, por exemplo, ou prata de Manila, que se descarrega e pesa na totalidade em Macau. Encontramos até coisas estranhas, como aves que vêm de Papua Nova Guiné. Só havia duas grandes balanças oficiais para pesar os produtos, uma no Leal Senado, a partir do século XVII, e da Santa Casa da Misericórdia. Os barcos internacionais tinham aí de pesar os produtos e receber uma legalização, bem como uma etiqueta comercial. Em Macau também se calculava o preço.

Havia então um sistema profissional de categorização e classificação das matérias-primas.

Sim. Como o mercado de Cantão exigia reservas para o ano seguinte, tal gerou uma série de conflitos comerciais sazonais, que não eram resolvidos em Cantão, mas em Macau. Fazia-se as tentativas de arbitragem comercial e chegava-se a julgar e decidir esses casos. Em 1796, o Governador Vasco Luís Carneiro de Sousa e Faro fez um levantamento da população que arrola 962 estrangeiros, holandeses, suecos, austríacos, italianos… Os estrangeiros só podiam comercializar em Cantão de Setembro a Janeiro, e no resto do ano viviam em Macau, onde tinham casas, armazéns. Em alguns casos, traziam as famílias. Macau tinha, pelo menos, um mercado de cinco mil pessoas para apoiar estes estrangeiros. Para a economia de Macau era fundamental e para a economia global era decisivo. Macau fornecia a estas companhias soluções para conflitos entre si. Assim, no século XVIII, tínhamos algo chamado de Grande Baía onde havia um processo de inteligência comercial e em que Macau era fundamental em termos de intermediação jurídica e de arbitragem, fornecendo ainda a comunicação linguística para todo o processo.

Já nessa altura havia tradutores e intérpretes.

As companhias tinham vários intérpretes. Mas a partir de 1762, quando a companhia inglesa domina já o comércio em Cantão, Macau começa a fornecer intérpretes trilingues. A documentação mostra que a dimensão deste serviço de tradução e interpretação é enorme e inclui o serviço doméstico, com pessoas que falam as três línguas, para irem comprar produtos ou ir buscar água, por exemplo. A maior parte desses nomes eram macaenses e chineses de Cantão. Havia pessoas muito jovens a fazer esse trabalho, com 13 ou 15 anos, os chamados “boys”, que acompanhavam o serviço de estrangeiros e de empresas estrangeiras. Era um serviço muito importante, legal e escrito. O serviço era de tradução e interpretação na escrita e na oralidade. Até à ocupação inglesa de Hong Kong, em 1841, há dezenas de pessoas em Macau. De tal forma que quando os ingleses ganham a primeira Guerra do Ópio e assinam o Tratado de Nanquim, em 1842, e obrigam a China a abrir mais portos ao comércio internacional, estas pessoas de Macau começam a ser colocados em Hong Kong e Xangai, nesses portos de comércio internacional, sendo um corpo técnico fundamental.

Que impacto teve tudo isto na sociedade local?

Macau conseguiu, no século XVIII e primeiras décadas do século XIX, produzir uma sociabilidade cosmopolita que permite que estas gentes, de diferentes geografias europeias. A 4 de Julho de 1776 dá-se a independência dos EUA e em Novembro já tínhamos barcos em Macau, de companhias privadas de Boston, por exemplo. Os barcos americanos tornam-se os segundos mais importantes a seguir aos ingleses. Macau criou então essa sociabilidade absolutamente extraordinária. A companhia inglesa, com casas e armazéns na fachada da Baía da Praia Grande, fez as primeiras competições de bilhar, trazendo o snooker inglês para Macau e as regatas. Faziam corridas de cavalos entre o que é hoje a Rua do Campo e as Portas do Cerco. Os chineses detestam, chegam a colocar cordas à noite, para os cavalos caírem. Traziam cantores, organizavam-se saraus.

A sociedade de Macau atravessou um período de modernização.

De globalização. Esta Grande Baía não existia sem Macau e sem Cantão, existindo porque havia, de facto, esta comunicação. O meu argumento é um pouco este: quando se fala agora no projecto da Grande Baía, falamos de algo que tem um demorado fundamento histórico. Isto funcionou durante mais de um século e funcionou bem. Tinha estruturas e instituições especializadas que permitiam este funcionamento, o que é diferente de outros temas que têm circulado em Macau.

Como assim?

O projecto “Uma Faixa, Uma Rota”, que mobiliza a ideia da Rota da Seda, mas este conceito só é criado por um alemão no final do século XIX. O que existia até então eram várias rotas de ligação comercial. Não havia uma rota da seda nesse sentido linear. Antes do projecto “Uma Faixa, Uma Rota” falava-se no Grande Delta, na ligação das grandes regiões, fundamentalmente três províncias chinesas. Isso desapareceu. Estas coisas vão desaparecendo porque não têm raízes históricas. Mas o projecto da Grande Baía tem, de facto, raízes históricas profundas, onde Macau teve um papel fundamental. Se me pergunta se se pode actualizar isto, eu penso que sim.

De que forma?

Esta dimensão de arbitragem jurídica poderia actualizar-se, nomeadamente com alguns países de língua portuguesa, até porque grande parte das normas do Direito comercial, de engenharia ou de arquitectura, em Macau, têm ainda essa raiz portuguesa. Uma parte significativa da população, sobretudo jovens, fala inglês, pelo que reforçar a formação em português permitia recuperar este mercado. Se juntarmos a isto as possibilidades de alargar o cosmopolitismo de Macau, ligando ao jogo as indústrias das convenções e dos espectáculos, poderíamos actualizar um fundo histórico que funcionou e que atraiu o comércio global.

Mas hoje temos o Fórum Macau, mais cursos de tradução. Esse sistema continua a não ser suficiente?

O Fórum Macau está a fazer 20 anos e poderia ser uma instituição em que se poderia concretizar este tipo de actualização. O que retiramos dos textos, dos mapas, dos documentos históricos é que Macau tinha funções especializadas na economia mundial, não era um localismo, um bairrismo e apenas uma posição no Delta, no sul da China.

Qual o momento histórico principal em que Macau começa a perder essa posição?

A ocupação inglesa de Hong Kong e a vitória na primeira Guerra do Ópio, até 1859 trouxe impactos positivos a Macau, pois cria-se um movimento comercial entre Hong Kong e Macau muito grande. O número de embarcações aumenta e dá-se uma transacção de serviços muito favorável a Macau. O território começa a negociar mão-de-obra especializada, algumas dessas pessoas transferem-se para Hong Kong e entregam constantemente remessas de dinheiro para as famílias que estão em Macau. Em termos financeiros e comerciais, de 1859 até 1860 Macau beneficia. A partir daí, quase todas as companhias e consulados estrangeiros começam a sair de Macau para Xangai, dando-se uma menor viragem para Hong Kong. Em Xangai os estrangeiros começam a ter concessões. Em Macau passam a haver menos empresas e os antigos compradores desaparecem para as novas cidades comerciais chinesas. A abertura do Canal de Suez, em 1856, torna mais difícil a posição de Macau. Passam a ser poupados cinco mil quilómetros. A maior parte das embarcações vem até Saigão e Hong Kong, são grandes embarcações a vapor que trazem soldados, correio, mercadorias e também os primeiros turistas. Macau não é destino dessas grandes embarcações. A partir de 1870 os grandes comerciantes macaenses que restam acabam todos por falir. Temos o exemplo de Lourenço Marques, o dono da Casa Garden, que é obrigado a vender a casa por estar completamente falido. Aparecem então as primeiras indústrias têxteis. Essa burguesia comercial ligada à geografia comercial da Grande Baía não resiste a toda esta dinâmica.

Pequim veio reavivar este lado histórico, transformando-o num projecto político?

Quando vamos a apresentações oficiais deste projecto da Grande Baía, os responsáveis que o fazem têm muito pouco conhecimento do lado histórico. Uma vez perguntei a um responsável para me dar um exemplo de Grande Baía. Ele falou-me da Baía de S. Francisco, nos EUA. O desafio da economia chinesa é passar de uma economia que, durante 30 anos, cresceu a produzir manufacturas primárias baratas e passar para as tecnologias e serviços financeiros. Isso não é fácil de fazer. A ideia é que esta região se possa tornar num lugar de alta tecnologia e serviços e é aí que o Governo Central está a insistir. Pequim não fala da ligação aos países de língua portuguesa do ponto de vista comercial, mas sim na criação de uma plataforma de serviços para essas relações económicas. Macau tem, assim, de fornecer serviços, mas actualmente fornece muito pouco.

23 Mar 2023

Ivo Carneiro de Sousa, historiador: “Macau é um sítio privilegiado”

Acaba de ser editado “Memórias, Viagens e Viajantes Franceses por Macau – 1609-1900”, quatro volumes que reúnem mais de 200 textos de homens que navegaram de França até ao Oriente e que colocaram Macau no mapa. O autor Ivo Carneiro de Sousa, historiador e académico da Universidade Politécnica de Macau, analisou textos históricos que traçam um retrato da sociedade local dos séculos XVIII e XIX

 

Como surge este projecto?

Comecei em 2011 quando acabei o livro “A Outra Metade do Sangue”, que é sobre orfandade e escravatura feminina em Macau. Nessa altura, documentei que as embarcações francesas que vinham de Cantão no século XVIII, sazonalmente, carregavam escravos em Macau e depois, a partir de 1721, começam a transportar cules para as ilhas Maurícias. A partir daí interessei-me pela presença francesa em Macau.

A primeira embarcação de cules que saiu de Macau foi, precisamente, comandada por franceses.

Os franceses dominam 40 por cento do tráfico de cules até à sua extinção. Nessa altura [2011], escrevi um pequeno artigo sobre um escravo das Maurícias preso em França e que se apresenta como sendo de Macau. É enviado para a Bastilha, mas acaba por conseguir sair. Aí comecei a trabalhar as relações entre a França e Macau e a tentar recuperar todos os textos que descreviam Macau ou que tinham memórias sobre o território. Fiz o mesmo em relação aos viajantes espanhóis que passaram por Macau. Acabei esse trabalho, editando 78 textos de espanhóis.

Quando sai esse livro sobre as memórias de espanhóis?

Ainda este ano. Não publico a totalidade dos textos, apenas as memórias do primeiro feitor da Real Companhia das Filipinas em Macau. Este deixou 20 volumes escritos e fez vários mapas. Em 2024 publicarei o conjunto das memórias dos viajantes norte-americanos. Preciso ainda de trabalhar alguns textos que estão nos EUA, muitos em diários.

Em relação aos franceses, o que representa este trabalho?

Elogio a obra da Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho porque a sua “Viagem por Macau” é um trabalho inédito [sobre os 100 viajantes estrangeiros que passaram por Macau], mas não é propriamente um trabalho de historiador. Em Macau, os historiadores contam-se pelos dedos das mãos e aqueles que publicam investigação científica são muitos poucos. O que encontramos é a repetição dos mesmos mitos, histórias e incidentes.

Também em língua chinesa?

Há dois problemas. Temos a herança da historiografia portuguesa, marcada por um nacionalismo analfabeto, muito ligada ao Salazarismo e à ideia do país que descobriu tudo. Essa ideologia selecciona e manipula a informação do passado, sendo geralmente muito ignorante em termos de capacidade de investigação documental. Depois temos a historiografia em língua chinesa que é muito factual e antiquada. O trabalho que fiz sobre os viajantes estrangeiros não é amador. Primeiro reconstruo, em termos de história global, as relações entre a França e Macau no domínio religioso, militar, económico e cultural. Só depois começo a recuperar obras, e temos algumas importantes para desconstruir mitos importantes de Macau.

Como por exemplo?

São os franceses que trabalham primeiro o mito da Gruta de Camões, muito antes de isso aparecer em 1824 nos textos de portugueses. Portanto, em tudo isto há um trabalho de historiador que foi feito com uma bolsa do Instituto Cultural (IC) de 200 mil patacas, mas que foi muito curta. Estou a promover ainda uma edição em francês destes quatro volumes. Estes quatro volumes permitem perceber, desde logo, que Macau só se pode investigar segundo uma perspectiva de história global. Macau era o verdadeiro “fim do mundo”, pois todas as rotas comerciais do século XVIII acabavam aqui. Muitos materiais e produtos eram aqui descarregados. Coisas raras, penas de aves, coisas vindas da Califórnia, do Canadá. Aqui, no século XVIII e XIX, havia um dos grandes comércios de animais raros. Temos a rota da prata da América do Sul que desaguava em Manila e entrava na economia chinesa através de Macau. No século XIX, por exemplo, bebia-se mais vinho de Bordéus do que qualquer vinho português. Daí eu dizer que é preciso ter esta perspectiva global e não chega trabalhar a documentação oficial portuguesa e a pouca documentação chinesa que existe. Era necessário ter programas mais sérios [de ensino e investigação em História], mas é difícil. Tenho procurado incentivar alunos a fazerem mais investigação histórica.

Reuniu mais de 200 memórias. Quem eram estes viajantes franceses? Missionários, escritores, comerciantes?

Os missionários escreviam pouco sobre Macau. Dos 90 a 140 missionários que passaram por Macau, alguns iam para a China e outros para o Vietname, apenas 27 escreveram sobre o território. Eram muito hostis ao Episcopado de Macau, ao bispo, sacerdotes e missionários portugueses. Eram contra o Direito do padroado. Nos textos denota-se essa hostilidade. Procura-se silenciar os problemas do clero e dos missionários portugueses. Temos muitos textos dos grandes navegadores que fazem no século XVIII concorrência aos britânicos pela exploração do Pacífico. Todos passaram por Macau e fazem textos extraordinários. Há muito pessoal da marinha, vários médicos navais que fazem descrições sobre o território. O livro explica que, entre 1857 e 1862, houve um hospital militar francês em Macau, parte do material desse hospital estará na origem da formação do São Januário [hoje Centro Hospitalar Conde de São Januário]. As relações entre Macau e França tornam-se muito importantes, oficiais e estratégicas a partir de 1844, quando se assina o primeiro tratado de amizade e comércio entre a França e a China. Temos textos que chegam a transcrever conversas em patuá. Nessa altura, a França decide estrategicamente que os embaixadores plenipotenciários para a China ficam instalados em Macau ou em Hong Kong e isso dura até 1859 quando os franceses obtêm a concessão em Xangai. Quando discuti com o IC a publicação disse que este livro é muito importante, pelo facto de Macau ser, provavelmente, a única cidade europeia na China e, ao mesmo tempo, uma cidade chinesa muito antiga. É um sítio privilegiado do mundo e que se vende não apenas com casinos, mas também pelo seu património. Macau é a única cidade deste tipo que não tem um centro ou instituto de estudos de literatura de viagens. Isso existe em todas as cidades.

Deveria ser o IC a criá-lo?

Não, as universidades. Vamos a Bordéus e temos uma entidade desta natureza, em Paris temos três ou quatro. Em portos pequenos como o da Bretanha também temos, em Cádis, Valência. Isso tem muita importância mesmo para a atracção do “turista de património” que quer aprender mais sobre o local que visita, que paga mais caro por isso. Publicar estas memórias é, por isso, importante. Mas voltando ao livro, digo, no quarto volume, que estes textos franceses relocalizam Macau, transformando o território numa coisa que chamam o “lugar do Extremo Oriente”, como o Mónaco do Extremo Oriente. Há textos divertidos, com descrições sobre as mulheres, as macaenses, textos satíricos sobre os macaístas. Alguns textos são capazes de fazer estatísticas da população e comerciais muito importantes. Descreve-se o peso do jogo, dos cules e do ópio na economia, sobretudo do século XIX. Alguns usam documentação que hoje não se conhece, como cópias dos censos militares à população que se perderam.

Pode avançar algumas conclusões relativamente ao seu trabalho com os textos dos navegadores espanhóis e norte-americanos?

São textos escritos em castelhano e não são todos escritos por espanhóis, porque existem alguns autores que já são hispano-americanos, nascidos no Perú ou México, por exemplo. Fazem comércio com Macau e deixam os seus textos impressos ou manuscritos, as suas impressões sobre a cidade e a sociedade. No caso dos textos de norte-americanos, entre 1756 e 1810, alguns são de pessoas oriundas de Irlanda, Escócia e Inglaterra para os EUA, e que estão ainda a transformar-se em cidadãos norte-americanos. Digo isto porque as nossas concepções de identidade e de nacionalidade não são as mesmas que eram nessa altura. No século XVIII chegam missionários do que é hoje a Bélgica com passaporte francês, e são tratados como franceses. Mas há também memórias dos que queriam visitar Macau e não conseguiram porque o barco naufragou em Hong Kong. [Mas sobre estes quatro volumes das memórias francesas, concluímos que] Macau era um lugar muito importante para a França e um espaço cultural fundamental para aceder ao conhecimento da China. Houve bibliotecas que se formaram no século XIX a partir de Macau. Macau tinha ainda o papel de informar a Corte imperial chinesa da revolução científica europeia, e muitos missionários e comerciantes franceses chegam à China e são aceites na Corte porque são bons astrólogos, matemáticos, fazem cristais e telescópios, por exemplo. Macau tinha também o reverso, que era informar a cultura europeia sobre a China.

15 Fev 2023

Novo livro de Ivo Carneiro de Sousa aborda relações históricas entre a França e a China

O Instituto Cultural (IC) acaba de lançar o novo livro do académico Ivo Carneiro de Sousa que, em quatro volumes, conta a história de como os franceses recorreram a Macau para conhecer melhor a China entre os anos de 1609 e 1900, quando o território era uma importante zona comercial e porta de acesso do mundo ocidental ao chamado Império do Meio.

“Memórias, Viagens e Viajantes Franceses por Macau (1609-1900)” é o resultado “de quase uma década de investigações primárias nas bibliotecas e nos arquivos centrais, regionais e privados de França”, contendo uma colecção de 295 memórias textuais de Macau entre esses anos produzidas por diferentes autores e editores, abarcando prestigiados viajantes marítimos, missionários, militares, diplomatas, médicos da marinha, geógrafos, jornalistas, cientistas ou os primeiros assumidos turistas.

Segundo o IC, “estes textos sobre Macau iluminam os mais diversos aspectos da vida social, económica, das gentes e dos espaços que tornaram o território fundamental para o acesso da França ao grande império do meio”.

Nomeações no século XIX

O livro do académico dá “especial atenção a intelectuais, diplomatas e políticos que aproximaram a França de Macau”. Isto porque, em 1859, os embaixadores franceses foram nomeados para ministros plenipotenciários na China, “o que transformou a legação francesa na cidade num dos principais espaços sociais da elite cosmopolita da época”.

O IC explica que “entre 1857 e 1862 a ofensiva colonial francesa na Indochina e a sua participação militar na chamada segunda Guerra do Ópio levaram mesmo à instalação de um hospital militar em Macau que tratou mais de 2000 feridos franceses”.

Estes factos mostram “o profundo interesse da França” no território, algo que “mobilizou enorme atenção tanto da imprensa diária como de múltiplas revistas científicas e literárias”.

Nesta obra, “as memórias narradas ajudam a perceber o quanto a visão francesa da cidade, das suas pessoas e costumes contribuiu para escorar a representação cultural com que se foi seleccionando textos e imagéticas para destacar o património e história de Macau”.

“Memórias, Viagens e Viajantes Franceses por Macau (1609-1900)” é o sétimo trabalho de investigação inserido na “Colecção Farol da Guia”, editada pelo IC, e que se destina a estudar a cultura, a história e outros aspectos de Macau.

Os quatro volumes encontram-se à venda pelo preço de 920 patacas na Imprensa Oficial, Arquivo de Macau, Museu de Arte de Macau, Plaza Cultural Macau.

Ivo Carneiro de Sousa é doutorado em História e Cultura Portuguesa com Agregação em História pela Universidade do Porto. O autor tem-se dedicado a estudos sobre Macau, Timor-Leste e a presença portuguesa no do Sudeste Asiático. Actualmente é Professor Associado e Investigador do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa da Universidade Politécnica de Macau e director do East-West Institute for Advanced Studies (EWIAS).

30 Jan 2023