Ivo Carneiro de Sousa, historiador: “Macau é um sítio privilegiado”

Acaba de ser editado “Memórias, Viagens e Viajantes Franceses por Macau – 1609-1900”, quatro volumes que reúnem mais de 200 textos de homens que navegaram de França até ao Oriente e que colocaram Macau no mapa. O autor Ivo Carneiro de Sousa, historiador e académico da Universidade Politécnica de Macau, analisou textos históricos que traçam um retrato da sociedade local dos séculos XVIII e XIX

 

Como surge este projecto?

Comecei em 2011 quando acabei o livro “A Outra Metade do Sangue”, que é sobre orfandade e escravatura feminina em Macau. Nessa altura, documentei que as embarcações francesas que vinham de Cantão no século XVIII, sazonalmente, carregavam escravos em Macau e depois, a partir de 1721, começam a transportar cules para as ilhas Maurícias. A partir daí interessei-me pela presença francesa em Macau.

A primeira embarcação de cules que saiu de Macau foi, precisamente, comandada por franceses.

Os franceses dominam 40 por cento do tráfico de cules até à sua extinção. Nessa altura [2011], escrevi um pequeno artigo sobre um escravo das Maurícias preso em França e que se apresenta como sendo de Macau. É enviado para a Bastilha, mas acaba por conseguir sair. Aí comecei a trabalhar as relações entre a França e Macau e a tentar recuperar todos os textos que descreviam Macau ou que tinham memórias sobre o território. Fiz o mesmo em relação aos viajantes espanhóis que passaram por Macau. Acabei esse trabalho, editando 78 textos de espanhóis.

Quando sai esse livro sobre as memórias de espanhóis?

Ainda este ano. Não publico a totalidade dos textos, apenas as memórias do primeiro feitor da Real Companhia das Filipinas em Macau. Este deixou 20 volumes escritos e fez vários mapas. Em 2024 publicarei o conjunto das memórias dos viajantes norte-americanos. Preciso ainda de trabalhar alguns textos que estão nos EUA, muitos em diários.

Em relação aos franceses, o que representa este trabalho?

Elogio a obra da Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho porque a sua “Viagem por Macau” é um trabalho inédito [sobre os 100 viajantes estrangeiros que passaram por Macau], mas não é propriamente um trabalho de historiador. Em Macau, os historiadores contam-se pelos dedos das mãos e aqueles que publicam investigação científica são muitos poucos. O que encontramos é a repetição dos mesmos mitos, histórias e incidentes.

Também em língua chinesa?

Há dois problemas. Temos a herança da historiografia portuguesa, marcada por um nacionalismo analfabeto, muito ligada ao Salazarismo e à ideia do país que descobriu tudo. Essa ideologia selecciona e manipula a informação do passado, sendo geralmente muito ignorante em termos de capacidade de investigação documental. Depois temos a historiografia em língua chinesa que é muito factual e antiquada. O trabalho que fiz sobre os viajantes estrangeiros não é amador. Primeiro reconstruo, em termos de história global, as relações entre a França e Macau no domínio religioso, militar, económico e cultural. Só depois começo a recuperar obras, e temos algumas importantes para desconstruir mitos importantes de Macau.

Como por exemplo?

São os franceses que trabalham primeiro o mito da Gruta de Camões, muito antes de isso aparecer em 1824 nos textos de portugueses. Portanto, em tudo isto há um trabalho de historiador que foi feito com uma bolsa do Instituto Cultural (IC) de 200 mil patacas, mas que foi muito curta. Estou a promover ainda uma edição em francês destes quatro volumes. Estes quatro volumes permitem perceber, desde logo, que Macau só se pode investigar segundo uma perspectiva de história global. Macau era o verdadeiro “fim do mundo”, pois todas as rotas comerciais do século XVIII acabavam aqui. Muitos materiais e produtos eram aqui descarregados. Coisas raras, penas de aves, coisas vindas da Califórnia, do Canadá. Aqui, no século XVIII e XIX, havia um dos grandes comércios de animais raros. Temos a rota da prata da América do Sul que desaguava em Manila e entrava na economia chinesa através de Macau. No século XIX, por exemplo, bebia-se mais vinho de Bordéus do que qualquer vinho português. Daí eu dizer que é preciso ter esta perspectiva global e não chega trabalhar a documentação oficial portuguesa e a pouca documentação chinesa que existe. Era necessário ter programas mais sérios [de ensino e investigação em História], mas é difícil. Tenho procurado incentivar alunos a fazerem mais investigação histórica.

Reuniu mais de 200 memórias. Quem eram estes viajantes franceses? Missionários, escritores, comerciantes?

Os missionários escreviam pouco sobre Macau. Dos 90 a 140 missionários que passaram por Macau, alguns iam para a China e outros para o Vietname, apenas 27 escreveram sobre o território. Eram muito hostis ao Episcopado de Macau, ao bispo, sacerdotes e missionários portugueses. Eram contra o Direito do padroado. Nos textos denota-se essa hostilidade. Procura-se silenciar os problemas do clero e dos missionários portugueses. Temos muitos textos dos grandes navegadores que fazem no século XVIII concorrência aos britânicos pela exploração do Pacífico. Todos passaram por Macau e fazem textos extraordinários. Há muito pessoal da marinha, vários médicos navais que fazem descrições sobre o território. O livro explica que, entre 1857 e 1862, houve um hospital militar francês em Macau, parte do material desse hospital estará na origem da formação do São Januário [hoje Centro Hospitalar Conde de São Januário]. As relações entre Macau e França tornam-se muito importantes, oficiais e estratégicas a partir de 1844, quando se assina o primeiro tratado de amizade e comércio entre a França e a China. Temos textos que chegam a transcrever conversas em patuá. Nessa altura, a França decide estrategicamente que os embaixadores plenipotenciários para a China ficam instalados em Macau ou em Hong Kong e isso dura até 1859 quando os franceses obtêm a concessão em Xangai. Quando discuti com o IC a publicação disse que este livro é muito importante, pelo facto de Macau ser, provavelmente, a única cidade europeia na China e, ao mesmo tempo, uma cidade chinesa muito antiga. É um sítio privilegiado do mundo e que se vende não apenas com casinos, mas também pelo seu património. Macau é a única cidade deste tipo que não tem um centro ou instituto de estudos de literatura de viagens. Isso existe em todas as cidades.

Deveria ser o IC a criá-lo?

Não, as universidades. Vamos a Bordéus e temos uma entidade desta natureza, em Paris temos três ou quatro. Em portos pequenos como o da Bretanha também temos, em Cádis, Valência. Isso tem muita importância mesmo para a atracção do “turista de património” que quer aprender mais sobre o local que visita, que paga mais caro por isso. Publicar estas memórias é, por isso, importante. Mas voltando ao livro, digo, no quarto volume, que estes textos franceses relocalizam Macau, transformando o território numa coisa que chamam o “lugar do Extremo Oriente”, como o Mónaco do Extremo Oriente. Há textos divertidos, com descrições sobre as mulheres, as macaenses, textos satíricos sobre os macaístas. Alguns textos são capazes de fazer estatísticas da população e comerciais muito importantes. Descreve-se o peso do jogo, dos cules e do ópio na economia, sobretudo do século XIX. Alguns usam documentação que hoje não se conhece, como cópias dos censos militares à população que se perderam.

Pode avançar algumas conclusões relativamente ao seu trabalho com os textos dos navegadores espanhóis e norte-americanos?

São textos escritos em castelhano e não são todos escritos por espanhóis, porque existem alguns autores que já são hispano-americanos, nascidos no Perú ou México, por exemplo. Fazem comércio com Macau e deixam os seus textos impressos ou manuscritos, as suas impressões sobre a cidade e a sociedade. No caso dos textos de norte-americanos, entre 1756 e 1810, alguns são de pessoas oriundas de Irlanda, Escócia e Inglaterra para os EUA, e que estão ainda a transformar-se em cidadãos norte-americanos. Digo isto porque as nossas concepções de identidade e de nacionalidade não são as mesmas que eram nessa altura. No século XVIII chegam missionários do que é hoje a Bélgica com passaporte francês, e são tratados como franceses. Mas há também memórias dos que queriam visitar Macau e não conseguiram porque o barco naufragou em Hong Kong. [Mas sobre estes quatro volumes das memórias francesas, concluímos que] Macau era um lugar muito importante para a França e um espaço cultural fundamental para aceder ao conhecimento da China. Houve bibliotecas que se formaram no século XIX a partir de Macau. Macau tinha ainda o papel de informar a Corte imperial chinesa da revolução científica europeia, e muitos missionários e comerciantes franceses chegam à China e são aceites na Corte porque são bons astrólogos, matemáticos, fazem cristais e telescópios, por exemplo. Macau tinha também o reverso, que era informar a cultura europeia sobre a China.

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