Exposição | Albergue SCM apresenta obras de Eugénio Novikoff Sales

 Passou um período da vida em Moçambique e de lá trouxe cores e formas. Eugénio Novikoff Sales é um pintor autodidacta que cruza mundos no trabalho que faz. O Albergue SCM recebe-o na próxima semana

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá marcada para a próxima quarta-feira, dia 2 de Agosto, a exposição “Kiss África – Macau+Lusofonia”, um conjunto de trabalhos recentes de Eugénio Novikoff Sales. As obras podem ser vistas no Albergue SCM, no Bairro de São Lázaro.

De acordo com um comunicado da organização, a mostra integra 14 acrílicos sobre papel de arroz chinês, “com temáticas de um imaginário íntimo, carregado de significantes que se materializam no mundo identitário do artista, pleno de cores vibrantes”.

Eugénio Novikoff Sales, macaense, filho de pai português e de mãe bielorrussa, é um pintor “apaixonado por África”, onde viveu durante alguns anos na sua juventude.

Novikoff Sales expôs individualmente pela primeira vez em 1980, com apenas 20 anos, no Museu Luís de Camões, actual Museu de Arte de Macau. Apesar do seu gosto pela arte se ter manifestado desde cedo, apenas começou a desenhar em 1978, já no território.

Autodidacta confesso, não tem formação artística académica, mas é grande admirador das obras de Picasso, Chagall, Matisse e Cézanne. O pintor assume na sua obra as raízes africanas, pois foi em África que passou uma parte da sua vida, de 1966 a 1975, misturando essa influência com Portugal e Macau.

“Tive a grande sorte de ter passado a minha infância em Moçambique, convivendo desde muito cedo com a arte africana, desde as estátuas até aos tecidos de capulana, cujas cores fortes e temas variáveis me atraíram”, diz o pintor.

A sua obra está representada em colecções de Macau, Hong Kong, China e Portugal. O pintor foi premiado com três medalhas de ouro, em Pequim (2008), Indonésia (2011) e Coreia do Sul (2013). Eugénio Novikoff Sales faz parte de um leque de artistas cujas obras estão patentes num mural na sede do Comité Olímpico Internacional, na Suíça.

A exposição pode ser visitada até ao dia 3 de Setembro. A entrada é livre.

28 Jul 2017

Chan Kai Chon, director do Museu de Arte de Macau: “O MAM deve ser para todos”

Chan Kai Chong tem um objectivo: quem entrar no museu que dirige deve conseguir encontrar aquilo que procura. Por isso, quer uma instituição diversificada, capaz de comunicar com as várias comunidades que vivem na cidade. Para o novo responsável pelo MAM, o espaço museológico não tem razões para temer a concorrência regional. Basta que continue a afirmar-se como o local onde cabem diferentes culturas

[dropcap]A[/dropcap]Assumiu o cargo de director do Museu de Arte de Macau (MAM) há dois meses. Como é que está a ser este desafio?
Em primeiro lugar, devo dizer que, apesar de ter feito investigação sobre história de Macau, e estudos de história de arte chinesa e acerca do intercâmbio artístico entre Oriente e Ocidente, gerir um museu é algo completamente diferente. Tenho de conhecer o funcionamento normal de cada parte administrativa e as que lidam com os assuntos ligados à museologia. Por isso, para mim, é um desafio. Simultaneamente, fiquei muito contente por ter uma oportunidade para aprender. Creio que toda a gente precisa de aprender ao longo da vida.

Vem da área da educação artística, que foi uma das apostas visíveis do MAM. É uma das áreas que quer desenvolver no museu? Para que o MAM tenha público, é preciso fazer formação de públicos. Quais são os seus planos nessa matéria?
O museu tem organizado muitos cursos, destinados a adultos, adolescentes e crianças. Por exemplo, no piso 0 temos acções de formação destinadas aos miúdos. É uma forma de educar e de aumentar o conhecimento artístico das crianças. É também um modo de os miúdos conhecerem o conceito de museu. Neste momento, também temos alguns trabalhos destinados aos Amigos do MAM, pelo que organizamos visitas guiadas, acções de formação e visitas fora do território. Além disso, o museu tem colaborado com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude. Em conjunto, são organizadas visitas para que todos os alunos do sexto ano venham ao museu. Através das visitas guiadas, explica-se como se deve visitar um museu e como é que se apreciam obras de arte num espaço destes. É uma parte da disciplina de Artes Visuais na escola. Os museus têm mais recursos artísticos para responderem a estas necessidades. Estive a falar com os nossos colegas sobre a possibilidade de, no futuro, se prepararem mais materiais didácticos e de apoio destinados a cada grupo etário, para que os miúdos percebam melhor, através de alguns textos e jogos, e se possam aproximar mais das obras de arte.

Em termos gerais, como é que olha para o desenvolvimento do MAM? Que caminho é que este museu deve seguir?
Acredito que o museu deve ser para toda a gente. Na semana passada inaugurámos uma exposição: quase todos os artistas são jovens. Mas, no quarto andar, temos um grande mestre de pintura chinesa. E temos também uma exposição sobre as mulheres, constituída a partir do nosso espólio. Como temos quatro pisos, gostava que as pessoas, quando entrassem aqui, pudessem encontrar o que querem ver, o que querem aprender. É esse o meu objectivo. Por outro lado, vamos aumentar os recursos humanos para que possam ser melhoradas as visitas guiadas. A ideia é fazer com que os visitantes tenham uma maior facilidade em saber o que ver e qual é o conceito original, para saber como ver as obras.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Macau é um território pequeno e muito associado ao jogo – não à arte. Que imagem é que o MAM pode ajudar a projectar? É possível que o MAM possa fazer parte da imagem de Macau?
O MAM tem 18 anos. Este museu tem representado um papel importante na divulgação da cultura chinesa no território. Macau não é só uma cidade de casinos, tem uma história diferente e muito rica. Um museu serve, em primeiro lugar, como um sítio onde os visitantes podem ter uma sensibilização estética. Em segundo lugar, uma visita a um museu pode servir para aumentar os conhecimentos através dos quadros. Acredito que, aquando da criação dos quadros pelos artistas, existem intenções, ideias e sentimentos – isto é conhecimento. Se quisermos atingir estes dois objectivos, as nossas exposições e actividades têm de ser muito diversificadas. Macau tem as comunidades chinesa, portuguesa e de língua materna inglesa. Por isso, precisamos de diversificar os temas dos nossos trabalhos.

Nos últimos meses, temos ouvido falar muito da integração regional, com a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau a ser estudada. Na perspectiva da futura grande área metropolitana, em termos artísticos vamos ter muita concorrência das cidades em redor. Como é que o MAM pode ser diferente? Que lugar é que pode ocupar neste contexto?
Antes de mais, gostava de dizer o seguinte: a comunidade chinesa de Macau é constituída por muitas pessoas com diferentes proveniências. Cada uma tem o seu background cultural, assim como eu tenho origem na Província de Guangdong. Quando se fala na Grande Baía, este conceito engloba as diferentes cidades da zona do Delta do Rio das Pérolas. A maioria tem a mesma raiz cultural. Qual é o papel que precisamos de ter neste contexto? O MAM tem uma história de 18 anos e a experiência de mostrar os diferentes grandes mestres ocidentais e orientais neste território. Em comparação com museus de cidades vizinhas, temos o nosso espaço para continuarmos a ter o privilégio de representar um papel que, em primeiro lugar, deve mostrar a cultura chinesa de Macau – através das relíquias e pinturas chinesas –, para transmitirmos a herança da cultura chinesa. Temos colaborado com o Museu de Orsay e o Victoria & Albert de Inglaterra, temos esta ligação. Acho que podemos continuar a ter um papel relevante na divulgação das culturas chinesa e ocidental. Também estou convencido de que, para o ano, o nosso papel na divulgação da arte e da cultura portuguesa vai ser maior do que no passado recente.

Há alguma novidade que possa adiantar em relação a essa presença portuguesa no MAM?
Neste momento, estamos em preparativos. Desde que assumi o cargo de director, fui a Itália, para ver a Bienal de Veneza, e depois fui a Portugal. Lá estive em alguns museus e nalgumas galerias, bem como em estúdios de artistas de Lisboa. Já temos algumas ideias para avançar com projectos. Neste momento estamos a trabalhar para isso.

Como é que olha para o desenvolvimento da arte em Macau? A cidade é pequena, não existe uma Faculdade de Belas-Artes.
O Instituto Politécnico de Macau tem, há já muito tempo, uma Escola Superior de Artes. Também tomei conhecimento de outra universidade que também tem o curso de Artes. Por isso, penso que, neste momento, Macau tem cada vez um espaço maior para a formação profissional e académica nesta área. Para mim, é um pouco difícil descrever o cenário das artes em Macau. Há muitas formas de arte. Quando falamos de artes plásticas, vemos que a arte contemporânea é mais viva do que a de outros grupos de artistas. Os artistas na vertente contemporânea são mais visíveis.

Isso significa que há um maior dinamismo nos artistas mais jovens?
Macau é diferente da China e do estrangeiro. Nem todos os artistas são profissionais. Mas alguns jovens em Macau, neste momento, já começaram a ter a sua imagem como artistas profissionais. Isto é uma mudança muito significativa ao longo da história da arte de Macau. Estudo a história do território há 20 anos e nota-se que isto está a acontecer. É um bom sinal na evolução da arte de Macau. Mas é difícil fazer uma avaliação global – há quem trabalhe em pintura chinesa, outros trabalham em arte contemporânea. Quando me refiro à arte contemporânea, falo apenas da arte ocidental. Na pintura chinesa, embora haja pessoas que estão a alterar o seu gosto estético e a criar novos estilos, geralmente os artistas gostam mais das técnicas tradicionais.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Qual é o seu maior desejo para o MAM?
O meu maior desejo é que os nossos trabalhos – quer na parte administrativa, quer na componente académica – possam aumentar e chegar a um nível razoável em termos de museologia. Depois, queremos publicar mais materiais em termos de investigações e aumentar a velocidade da publicação dos catálogos de exposições. No futuro, gostava que o MAM fosse parte da vida dos nossos cidadãos.


Nas mãos do historiador

Natural de Zhongshan, província de Guangdong, Chan Kai Chon fez o ensino secundário em Macau, na escola Hou Kong. A arte não foi a primeira opção académica do director do MAM: quando chegou a altura de frequentar a universidade, foi para Jinan, onde estudou Economia. Com a licenciatura concluída, Portugal apareceu no seu percurso, com dois anos passados em Coimbra, onde frequentou o curso de Língua e Cultura Portuguesa. De regresso a Macau, começou a trabalhar na Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). Mas, uma vez mais, surgiu a necessidade de estudar: em Nanjing fez o mestrado de Pintura Chinesa. Seguiu-se Pequim e a Academia Central de Belas-Artes, para estudar História de Arte. Trabalhou na DSEJ durante 20 anos, “sempre em áreas relacionadas com a educação artística”, nota. Chan Kai Chong tem várias obras publicadas no domínio da história de arte em Macau, na China Continental, em Hong Kong e em Singapura. Além disso, dedica-se ao desenho e à pintura.


Chagall para o ano

O Museu de Arte de Macau recebe, no próximo ano, uma exposição de obras do pintor Marc Chagall, adiantou ao HM o director da instituição. Para já, ainda não há detalhes sobre o que será mostrado no território da autoria do multifacetado artista, fortemente influenciado pelo fauvismo e pelo surrealismo. “Os nossos colegas do Instituto Cultural foram a Paris em Maio”, explicou Chan Kai Chon. “Estamos a trabalhar neste projecto.” Dos planos para 2018 do MAM faz ainda parte uma exposição de pinturas a óleo de artistas russos. Além disso, a colaboração que tem vindo a ser desenvolvida com o Museu do Palácio de Pequim deve conhecer novos desenvolvimentos, com mais um projecto.

18 Jul 2017

Portugal | Exposição de Sofia Bobone é hoje inaugurada

A artista plástica Sofia Bobone inaugura hoje a sua primeira exposição de pintura em Portugal. Por convite da Câmara Municipal de Odivelas, estão expostos mais de 30 quadros. São mulheres, animais e pinturas abstractas numa abordagem múltipla da obra da artista

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início, não era a pintura. Mas passou (também) a ser porque houve mais tempo, houve tempo para aprender. Sofia Bobone, designer, expôs há um par de anos em Macau os seus primeiros quadros e houve quem tivesse achado que a obra deveria ser levada até Portugal. O convite partiu da Câmara Municipal de Odivelas e o trabalho de sete meses, feito a pensar nesta exposição, pode ser visto a partir de hoje.

O desafio que lhe foi colocado, diz Sofia Bobone, teve o condão de a obrigar “a trabalhar muito”. A grande maioria das telas que levou para Portugal foi feita a pensar em “O Corpo e a Cor”, nome escolhido para a mostra. Entre os 33 quadros, apenas dois tinham sido já expostos.

Os quadros dividem-se em três partes. “Foi-me pedido que trouxesse várias coisas. Como é a primeira vez que exponho em Portugal, seria melhor mostrar a variedade do que tenho feito”, explica. Assim, podem ser observados quadros sobre a figura feminina, outros sobre animais – veados e cavalos – e trabalhos abstractos.

“Não tenho um estilo em que só faça uma coisa”, justifica a pintora. “Comecei há pouco tempo e estou a aprender, a explorar técnicas e estilos novos, e tenho estado sempre a variar.” Há, no entanto, uma linha transversal a esta variedade: a cor.

“É muito à base de cor. Todos os quadros têm cores vivas”, aponta. “Por exemplo, nos quadros com figuras femininas e nos dos animais exploro como a cor se reflecte. As mulheres são, na sua maioria, azuis, mas não são quadros abstractos, são completamente figurativos. Percebem-se as formas todas e como a cor pode incidir nelas.”

Para ficar

Apesar de continuar a fazer trabalho como designer gráfica e também como designer de jóias, Sofia Bobone tem dedicado mais tempo à pintura, “um desafio enorme” que a deixa “muito contente”. As telas e os pincéis surgiram numa altura em que ficou sem trabalho e, por isso, com o tempo que ainda não tinha conseguido para se dedicar a um projecto antigo. Mas foi preciso ultrapassar outra barreira.

“A pintura sempre foi algo que quis muito fazer, mas tinha medo de falhar, de não conseguir e de não fazer bem. Depois perdi o medo. Não sei se é da idade”, diz. “Pensei em experimentar e comecei a ter aulas com [o artista plástico] Lao Sio Kit. Ele encorajou-me muito e disse-me que tinha potencial. Fez-me acreditar e, a partir daí, continuei.” Sofia Bobone continua a frequentar o ateliê livre dado por Madalena Fonseca.

O trabalho de design não ficou para trás: é uma actividade a que se dedica a tempo parcial. “Dá para poder continuar a pintar. Como sou eu que faço a gestão do meu tempo, posso fazer as três coisas: design gráfico, de jóias e pintura.”

Concentrada agora na exposição de Portugal, Sofia Bobone não tem planos concretos para novos projectos em Macau. Mas deixa, desde já, uma garantia. “Quero continuar a pintar e, mesmo sem ter uma exposição à vista, vou continuar a desenvolver trabalho. Tenho de me mexer porque isto de ser artista é bonito, mas as pessoas têm de ir à procura de sítios para expor e encontrar pessoas para mostrar o seu trabalho.” O plano da artista passa por aqui. A pintura chegou para ficar.

13 Jul 2017

Fotografia | Bruno Saavedra expõe “Made in China” em Lisboa

O tempo de residência em Macau ajudou-o a compor um projecto que está em exposição até finais do mês de Setembro em Lisboa, na Casa Independente. “Made in China”, da autoria do fotógrafo Bruno Saavedra, é uma viagem pela “Ásia lisboeta”, com imagens que fogem do “óbvio”

[dropcap]C[/dropcap]omo surgiu o projecto “Made in China”?
A exposição tem fotografias da Ásia, mas de uma Ásia lisboeta. Todas as imagens foram feitas no Intendente, na Mouraria e nos Anjos, aqui em Lisboa. “Made in China” é uma exposição de fotografias resultante do trabalho desenvolvido na quinta edição do workshop “Narrativas Fotográficas do Intendente”, leccionado pela fotógrafa Pauliana Valente Pimentel, e realizado pela Casa Independente em 2016. Deste workshop, também estão expostos mais três trabalhos: “Glowing Up”, de Ana Antunes, “Pequena Cirurgia”, de Ana Bernadino, e “Caixa de Viagens”, de Sara Maia. O trabalho para esta exposição foi desenvolvido entre os meses de Novembro de 2016 e Fevereiro deste ano. Como a Pauliana sabia que vivi em Macau durante quase quatro anos, insistiu que eu desenvolvesse o trabalho sobre a comunidade chinesa.

Macau estará decerto presente nesta exposição. Que zonas do território ou que partes das culturas decidiu retratar?
Os quase quatro anos que vivi em Macau ajudaram-me de uma forma muito directa no desenvolvimento deste trabalho. O projecto narrativo retrata uma visão diferente e subtil da comunidade chinesa no Intendente, e fui à procura de detalhes e imagens que, de alguma forma, me fizessem conhecer a história das suas vidas e o modo como os chineses vivem nas freguesias mais cosmopolitas de Lisboa. Durante três meses, visitei casas, restaurantes, centro de estética, cabeleireiros, centro de massagens, escolas, lojas, supermercados, templos, igrejas, médicos, cafés, jornais. Acabei por descobrir que no Intendente existe uma verdadeira China, mas restrita e muito fechada. É uma China sofrida com memórias de outros, mas também nossas. Ouvi histórias, verdadeiros contos chineses. Pessoas que vivem clandestinamente e trabalham 16 horas por dia para conseguir juntar algum dinheiro com o sonho de regressar à sua terra natal. Finalizei o trabalho pela altura das comemorações do Ano Novo Chinês. Era o início do ano do Galo. Eles levam a mudança do ano muito a sério e está enraizado nas suas crenças e tradições. Na véspera do Ano Novo, os chineses limpam e arrumam a casa, cortam o cabelo, fecham as contas, presenteiam os deuses que protegem a casa, preparam as roupas, organizam as contas e o comércio. A cor vermelha, por ser yang e vibrante, é a predominante durante as comemorações do Ano Novo. O vermelho simboliza a transformação, o movimento e a vida, por isso, as mulheres usam um vestido novo nesta cor para atrair a sorte e o amor ao longo do ano.

Que China poderá o público ver nesta exposição?
Tentei fugir do óbvio dos retratos chineses, e entrar o máximo que conseguisse na vida dos chineses. Não foi fácil, mas a insistência também me ajudou muito. Também contei com a ajuda de uma amiga de Macau para a tradução e comunicação, a Virginia Or, que esteve quase sempre comigo. Nesta exposição o público poderá ver uma Ásia lisboeta, muito restrita e fechada.

O público português está a começar a ter uma curiosidade crescente sobre os países que estão deste lado do mundo?
A China e todos os países da Ásia sempre geraram curiosidade, mas penso que é preciso quebrar algumas barreiras, como a da língua. O público português tem um grande interesse pela cultura e costumes chineses, mas a verdade é que aqui em Lisboa essa curiosidade pode ser “quebrada” muito facilmente: basta irmos aos bairros do Intendente, Mouraria e Anjos.

A China, e até Macau, são os territórios que geram mais curiosidade e interesse?
A presença de Portugal em Macau representou um notável encontro entre Oriente e Ocidente, e é por esse motivo que, até aos dias de hoje, a China gera interesse no Ocidente. E para mim não há dúvidas de que este seja um dos principais motivos para que exista toda esta curiosidade e interesse pela China.

Expectativas para este projecto? Poderá vir a Macau?
O projecto fica até dia 30 de Setembro na Casa Independente, mas tenho muita vontade de o levar a outras galerias e espaços culturais aqui em Portugal. Neste momento estou em contacto e analisando algumas propostas. Levar o “Made in China” a Macau seria a concretização de um sonho, espero poder realizá-lo.

7 Jul 2017

Vhils inaugura amanhã primeira exposição individual em Pequim

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] artista português Alexandre Farto, que assina como Vhils, inaugura amanhã “Imprint”, a sua primeira exposição individual em Pequim, composta por cerca de 70 retratos esculpidos em baixo relevo.

“Imprint” é constituída inteiramente por trabalhos novos, que espelham “a reflexão contínua do artista sobre a relação entre as cidades contemporâneas e os seus habitantes”, lê-se no texto de apresentação da exposição.

No Cafa Art Museum estarão expostos cerca de 70 retratos, “cada um esculpido num bloco independente”. Embora tenha Pequim como ponto de partida, a exposição “pretende ser simbolicamente representativa dos processos de trabalho numa outra qualquer cidade em qualquer parte do mundo”.

“Enquanto cada retrato fala de individualidade e singularidade, os materiais nos quais são esculpidos falam significativamente de uniformidade e homogeneização, uma vez que estes blocos produzidos em massa podem facilmente ser encontrados em estaleiros de obra e edifícios em todo o mundo”, refere.

Apesar de “Imprint”, que estará patente entre sexta-feira e 23 de Julho, ser a primeira exposição individual de Vhils em Pequim, não é a primeira na China. Em Maio, Vhils inaugurou a primeira exposição individual em Macau, acompanhada de uma série de murais, um trabalho em que o artista português afirma ter saído da zona de conforto.

A mostra em Macau seguiu as linhas da primeira exposição individual em Hong Kong, no ano passado, igualmente designada “Debris”, e que foi fruto de um trabalho de quase dois anos de preparação no âmbito de uma residência artística que Vhils realizou na antiga colónia britânica.

Nascido em 1987, Alexandre Farto cresceu no Seixal, onde começou por pintar paredes e comboios com graffiti, aos 13 anos, antes de rumar a Londres, para estudar Belas Artes, na Central Saint Martins. Captou a atenção a ‘escavar’ muros com retratos, um trabalho que tem sido reconhecido ao nível nacional e internacional e que já levou o artista a vários cantos do mundo.

Além de várias criações em Portugal, Alexandre Farto tem trabalhos em países e territórios como a Tailândia, Malásia, Hong Kong, Itália, Estados Unidos, Ucrânia, Brasil.

Em 2014, inaugurou a sua primeira grande exposição numa instituição nacional, o Museu da Electricidade, em Lisboa: “Dissecação/Dissection” atraiu mais de 65 mil visitantes em três meses.

Esse ano ficaria também marcado pela colaboração com a banda irlandesa U2, para quem criou um vídeo incluído no projecto visual “Films of Innocence”, editado em Dezembro de 2014, e é um complemento do álbum “Songs of Innocence”.

Em 2015, o trabalho de Vhils também chegou ao espaço, através da Estação Espacial Internacional, no âmbito do filme “O Sentido da Vida”, do realizador Miguel Gonçalves Mendes.

Paralelamente ao desenvolvimento da sua carreira criou, com a francesa Pauline Foessel, a plataforma Underdogs, projecto cultural que se divide entre arte pública, com pinturas nas paredes da cidade, e exposições dentro de portas, em Lisboa.

29 Jun 2017

“Uma Faixa, Uma Rota” | As visões dos locais sobre a política

É uma política nacional e tem de ser acolhida por Macau, um território que vive do jogo e que não tem mais indústrias para desenvolver. Fomos ouvir o que os visitantes da exposição fotográfica “Uma Faixa, Uma Rota” têm a dizer sobre o plano que a China quer dar ao mundo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] imagem de Lao a ler um livro sobre dez figuras históricas que se destacaram na guerra sino-japonesa, na praça do Tap Seac, está carregada de simbolismo. Bem perto, ali ao lado, está patente uma exposição de fotografias sobre a política “Uma Faixa, Uma Rota”.

É como se fosse o passado do país a misturar-se com o presente, sem esquecer o futuro espelhado mesmo ali, mas que ainda não conhecemos.

O que a política “Uma Faixa, Uma Rota” poderá trazer para Macau é ainda uma espécie de utopia, e Lao não está, de facto, muito confiante. “Macau só depende do jogo, não há muitas indústrias e não é claro o que poderemos ganhar com isto no futuro”, apontou ao HM.

Sobre a acção do Executivo, apresenta algumas críticas. “O Governo tem muito dinheiro, gastou muito no projecto do metro ligeiro, mas ainda não vimos muitos resultados. Mais valia fazer investimentos no estrangeiro”, frisou.

Na exposição que o Governo decidiu instalar em vários pontos do território, mostram-se os principais objectivos que Pequim tem para os países que integram a chamada Rota da Seda. Em português e chinês, fala-se na cooperação com Fujian e Guangdong, no desenvolvimento da medicina tradicional chinesa, na plataforma com o mundo lusófono.

Para Yang, reformado, todas estas ideias fazem sentido e devem ser acolhidas. “Trata-se de uma política nacional e temos de a apoiar, porque vai trazer benefícios”, defendeu.

Yang não diz quais são, mas assume: “Se Macau ficar sem o apoio da China, não é nada”.

Centenas de visitantes

Disponível para visita do público desde o passado sábado, a exposição no Tap Seac tem atraído centenas de visitantes. No primeiro dia passaram pela praça 200 pessoas, ontem à tarde já tinham sido feitas 122 visitas. Uns passam de fugida, outros ficam a ler com mais atenção.

Topee Au decidiu passar por lá quando saiu do centro de saúde localizado ali ao lado. “Não sei o que o Governo de Macau vai fazer para desenvolver esta política, porque o Governo só dá dinheiro”, frisou.

“Penso que esta política da China vai permitir aumentar as receitas dos casinos por causa do maior fluxo de pessoas. Isso é bom mas, ao mesmo tempo, também é mau, porque para mim as apostas são uma coisa que não se deve fazer”, reiterou.

Propaganda ou informação?

Apesar de a exposição não estar disponível em inglês, o australiano Stephen Anderson tem uma opinião formada sobre a política “Uma Faixa, Uma Rota”. Sobre a exposição, não sabe dizer se é informativa ou se é apenas mais uma forma de propaganda.

“Tem prós e contras mas, no fim de contas, isto serve para informar as pessoas. Será importante ter uma sociedade trilingue em Macau, e é bom que as pessoas aprendam um pouco sobre esta política”, defendeu.

Stephen Anderson afirmou ainda que as gerações mais jovens vão acabar por retirar mais benefícios da política que a China quer desenvolver.

“Esta política tem um enorme potencial. Para Hong Kong será bom sobretudo para desenvolver o sector financeiro, para criar uma base mais sólida. Quanto a Macau, se olharmos em termos históricos, sempre houve uma ligação ao mundo lusófono, com países como Angola e o Brasil”, lembrou.

Ainda sobre os benefícios que a política “Uma Faixa, Uma Rota” poderá trazer para o território, Stephen aponta para os sectores do turismo e de tudo o que não esteja directamente relacionado com as mesas de apostas. “Pequim tem demonstrado uma atitude muito positiva em relação a esta política”, frisou.

Além da Praça do Tap Seac, a exposição estará patente até ao dia 30 de Julho em locais tão diversos como o Leal Senado, a zona de lazer do Edifício Lok Yeung Fa Yuen (Rua do General Ivens Ferraz), o jardim junto ao mercado do Iao Hon ou o espaço aberto ao lado do Parque do Jardim da Cidade das Flores (perto da Rua de Coimbra).

Segundo um comunicado oficial, o objectivo desta mostra de 80 fotografias é “dar a conhecer melhor, através de imagens, a todos os sectores da sociedade, a importância e significado da participação e contributo de Macau na iniciativa nacional da ‘Faixa e Rota’”.

28 Jun 2017

Giulio Acconci expõe pela primeira vez no Centro de Design de Macau

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]AZU – A Solo Exhibition By Giulio Acconci” é uma estreia absoluta no mundo da pintura. Como se costuma dizer, há uma primeira vez para tudo. Uma frase que deve andar pela cabeça de Giulio Acconci há, pelo menos, um ano. Apesar de ter um passado ligado às artes plásticas, o artista expressou-se principalmente através da música, enquanto trabalhava como designer gráfico. “Esta não só é a primeira vez que faço uma exposição, mas também a primeira vez que faço obras completas de pintura”, explica. O público pode apreciar os primeiros trabalhos de Giulio no Centro de Design de Macau, a partir de terça-feira, dia 27, até ao dia 10 de Julho.

Até 2016, o artista nascido em Macau fazia apenas pequenas experiências que não passavam de esboços e desenhos em papéis isolados e blocos. Uma vez uma mão, noutras uma perna, sempre sem coerência de uma obra sólida.

No ano passado, Giulio Acconci começou a concretizar as experiências em algo mais completo e o resultado deu-lhe coragem para prosseguir e dedicar-se, efectivamente, à pintura. “O que as pessoas podem ver é uma jornada que começou por curiosidade, para ver até que ponto poderia ir com a pintura”, conta o artista.

O resultado é a combinação dos anos de designer gráfico e de todos os conceitos que foi absorvendo em leituras e em experiências de vida com manifestações estéticas.

Memória surreal

A inspiração para as pinturas partiu de uma visão da deusa Mazu, que empurrou Giulio Acconci para um “universo paralelo pela vida da pintura surrealista”. Nos seus quadros existem leões, dragões e pessoas em cenários surpreendentes. O artista quis dizer algo sobre Macau nestas obras que considera como memórias surreais da cidade. “Não estou a tentar passar uma mensagem particular, os meus trabalhos são muito abstractos e conceptuais, misturam elementos do Oriente e Ocidente”, explica.

“A deusa Mazu foi a centelha que ateou o fogo mais surreal e o universo paralelo das minhas pinturas, é uma divindade com lendas inspiradoras”, desvenda Giulio Acconci.

O artista foi criado no seio de uma família com forte ligação às artes. Neste capítulo importa mencionar que o seu avô, Oséo Acconci, fez o painel em mosaico que decora a fachada do Hotel Estoril.

As obras que constituem a primeira mostra de Giulio Acconci foram concebidas usando aguarela, tinta-da-china e lápis de aguarela para apurar detalhes, numa mistura que une elementos oníricos a imagens recorrentes.

23 Jun 2017

Surrealismo | Obras de Cruzeiro Seixas pela primeira vez em Macau

A exposição que está patente no Clube Militar até sábado será, talvez, a primeira a mostrar obras de pintores surrealistas portugueses, incluindo as de Cruzeiro Seixas. José Duarte, ligado à Associação para a Promoção das Actividades Culturais, gostava de fazer uma exposição só com as obras de um dos fundadores do surrealismo português

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau cruzou-se na vida do pintor Cruzeiro Seixas antes dos 30 anos, quando teve de cumprir o serviço militar obrigatório. Décadas depois, este pedaço de terra a Oriente volta a cruzar-se na sua vida, ainda que à distância. Aos 96 anos, Cruzeiro Seixas expõe pela primeira vez obras suas em Macau.

O pintor, considerado um dos nomes mais sonantes do surrealismo português ainda vivo, após a morte de Mário Cesariny, vive hoje na Casa do Artista, mas não conseguimos estabelecer contacto telefónico para falar do facto de ter, pela primeira vez, quadros seus e serigrafias expostas numa sala do Clube Militar.

José Duarte, ligado à Associação para a Promoção das Actividades Culturais (APAC), fez-nos a visita guiada. O também economista, apaixonado pela arte e pelo surrealismo, falou das dificuldades que foi obter toda a obra do artista, já parcialmente dispersa, ainda que a grande maioria do espólio tenha sido entregue pelo próprio autor à Fundação Cupertino Miranda.

“As obras de Cruzeiro Seixas não aparecem assim muito no mercado. Algumas serigrafias vão aparecendo, obras originais nem tanto, e é mais difícil. Julgo que conseguimos fazer aqui uma exposição que é interessante e equilibrada, e tem significado na sua apresentação”, referiu.

Mas nem só de Cruzeiro Seixas se faz esta iniciativa. José Duarte destaca os nomes de Alfredo Luz e João Paulo como símbolos de uma geração contemporânea de surrealistas.

“Esta é uma exposição com três artistas que, embora com estilos muito diferentes, facilmente identificamos os seus quadros, porque têm um estilo muito marcado. Todos eles são influenciados pelo surrealismo, mas é uma interpretação que é discutível”, disse José Duarte.

Cruzeiro Seixas esteve nos primórdios do movimento surrealista, e estão patentes obras que datam dos anos 70 e 80. Alfredo Luz e João Paulo são mais contemporâneos, com diferentes traços e interpretações, mas a génese é a mesma.

“Temos obras de Cruzeiro Seixas centradas em seres fantásticos, num mundo que está para lá do real, e temos Alfredo Luz e João Paulo, que são obras diferentes, mais figurativas, representando cenas do quotidiano. Julgo que este mundo de Cruzeiro Seixas, do fantástico e do surrealismo em geral, também está representado”, referiu o mentor da exposição.

O homem em África

Serão duas montanhas que falam uma com a outra com as cabeças, ou são duas montanhas que ganharam inteligência? A obra “Montes Comunicantes”, de Alfredo Luz, leva a muitas interpretações.

Nascido em 1951, o pintor português tem, no Clube Militar, “obras que têm que ver com o quotidiano, encontros, viagens”, tendo, todas elas, “uma dimensão do fantástico”, conta José Duarte.

Não foi fácil obter o espólio que está patente no Clube Militar até ao próximo dia 24. Foram feitos muitos contactos junto de galerias e de coleccionadores a título individual. No caso de João Paulo, pintor nascido em Arganil em 1928, já falecido, foi a viúva que concedeu grande parte das suas obras.

Os quadros expostos mostram, na visão de José Duarte, o percurso do homem como artista. “Vemos que há cinco fases distintas na evolução dele como pintor. Penso que a presença dele em África teve muita influência. Há também o fantástico, mas inspirado em situações do real. Estas são obras do espólio da sua viúva, e por isso é que foi possível ter uma exposição desta dimensão com a obra original. Vemos aqui uma evolução do artista nos temas e na forma de se exprimir.”

Apesar de pertencerem a gerações diferentes, os três pintores formaram-se na António Arroio, em Lisboa.

Muitas visitas

A exposição faz parte do programa de comemorações do 10 de Junho, que foi intitulado “Mês de Portugal” e tem sido um sucesso. “Os primeiros dias tiveram uma grande afluência. Sem contar com o dia de abertura, nos primeiros quatro dias tivemos cerca de 500 pessoas. No pior dia de chuva ainda conseguimos ter 40 pessoas, o que acho extraordinário. Quando se faz um esforço destes espera-se que tenha algum impacto, mas espera-se que as pessoas venham e gostem de ver.”

Margarida Saraiva, investigadora e fundadora da organização cultural BABEL, não destaca apenas o facto desta ser, talvez, a primeira exposição surrealista em Macau, mas lembra a importância que tem na divulgação da arte portuguesa.

“Considero que é fundamental esta iniciativa. É um passo muito grande em termos de afirmação da presença portuguesa em Macau e vem na mesma linha de afirmação de uma presença cultural portuguesa em Macau que se quer cada vez mais forte”, afirma.

Como um apaixonado pelo surrealismo, José Duarte não quer ficar por aqui. “Teria muito gosto de fazer uma exposição só de Cruzeiro Seixas ou só do surrealismo português em Macau, mas esse é um projecto mais arriscado, que necessita de mais tempo. São obras mais dispersas, mais difíceis de obter.”

O responsável da APAC considera que é preciso recordar e divulgar mais não só o surrealismo, como outros géneros de arte portuguesa. “Não diria que o surrealismo português está esquecido. Aqui onde nós vivemos se calhar há um esforço que deve ser feito em prol da divulgação da arte portuguesa, não só do surrealismo.”

20 Jun 2017

Filipe Dores, artista plástico: “Não há espaço para criar em Macau”

“Nocturno” é a exposição de aguarelas de Filipe Dores que vai ser inaugurada no próximo dia 6, na galeria do Albergue SCM. A iniciativa insere-se nas comemorações de “Junho, Mês de Portugal” que acolhe o artista local já distinguido no Reino Unido. Para Filipe Dores, Macau tem talentos, mas falta motivação para ir além-fronteiras

[dropcap]O[/dropcap] que é que podemos ver em “Nocturno”?
A exposição é constituída por 30 quadros. São obras sobre ruas silenciosas de Macau e, por isso, representam um contraste com o ambiente diurno do território, em que os espaços estão cheios de gente. As pessoas que virem os meus quadros vão sentir o seu espaço nocturno. Podem entrar dentro dos quadros e sentir que andam naquelas ruas.

Como é que foram escolhidas estas ruas?
Não escolhi ruas novas, apesar de ser difícil encontrar ruas antigas. Desde pequeno que as ruas se têm vindo a transformar. Quando quero espaços que sempre conheci como são agora, tento ir buscar informação a documentos e fotografias antigas. Pinto-os como penso que eram antes. 

A aguarela é a técnica que mais usa no seu trabalho. Porquê esta escolha?
Comecei a usar aguarela no exame de acesso ao Instituto Politécnico de Macau. O exame durava três horas e se utilizasse outras técnicas seria difícil de o fazer. A aguarela era um bom material. Com o tempo comecei a pintar mais e continuei a usar a técnica, até hoje. Gosto de trabalhar com aguarela porque é um material muito honesto, porque é transparente. Não mente. Cada camada é transparente, não há tinta branca, não se pode corrigir, pode ver-se tudo.

As suas imagens parecem fotografias. Têm uma luz muito real.
Começo o trabalho com um plano de frente, como nos trabalhos de arquitectura. É uma influência do meu avô materno, que fazia maquetes de edifícios. Gosto dos planos que fui criando e continuei com essa abordagem.

Na apresentação do seu trabalho, a curadoria salienta o facto de as obras serem vazias de pessoas. Porquê esta opção?
Para quem cria uma pintura, esse acto é uma forma de comunicação consigo mesmo. O artista pergunta-se o que quer pintar, como o quer fazer e que tema pretende abordar. A escolha de ruas vazias é uma forma de comunicar mais facilmente comigo.

Outro aspecto que a curadoria comenta é a relação que tenta dar a conhecer entre ambiente e realidade. Como é que concretiza esta opinião?
Não é fácil de explicar. Para mim, a realidade tem mais que ver com o sujeito, com quem sente e o que se sente. O que é sentido é real, é um fenómeno interno das pessoas. O ambiente, por seu lado, é o que existe, já está fixo e é exterior. Quero que as ruas que pinto transmitam aquilo que tenho como realidade e que façam sentir alguma coisa em que exista uma comunicação interna.

Já foi distinguido no estrangeiro, antes mesmo de ser conhecido, como é actualmente, em Macau. Em que é que estes prémios contribuíram para a projecção do seu trabalho?
Claro que os concursos estrangeiros são muito importantes. É muito difícil entrar neste tipo de competições. Percebi também o porquê da dificuldade logo da primeira vez que participei e fui a Londres ver os trabalhos seleccionados: eram todos muito bons. Eram excelentes artistas oriundos de todo o mundo. Mas acho que os criadores locais têm todas as capacidades para chegar a este patamar. No entanto, infelizmente, a maior parte dos criadores de Macau não tem motivação para o fazer.

Porque é que isso acontece?
Em primeiro lugar, a falta de participação em concursos internacionais tem que ver com motivos económicos. Quando concorremos mandamos primeiro os trabalhos em formato digital. Até aí tudo bem, mas caso sejamos seleccionados, como aconteceu comigo, pedem que sejam enviadas as obras. Faz parte deste momento de selecção a avaliação da obra física. No meu caso, quando soube que fui seleccionado fiquei muito satisfeito mas, minutos depois, quando me apercebi que tinha de enviar os quadros, fiquei receoso. Não é só a viagem de ida das obras. Depois temos de voltar a trazer as obras para casa. O transporte de um quadro não é barato. No primeiro ano em que participei, uma das obras seleccionadas media, com moldura, mais de 1,60 metros. Acabei por ser premiado, o que foi bom. Os artistas pensam que fica muito caro concorrer a este tipo de iniciativas, mas penso que o que deveriam ponderar é que estes gastos são um investimento que fazem neles próprios. Os criadores de Macau ainda não têm noção disso. O que vemos é que o máximo que conseguem é uma exposição no território e acabam por nem pensar ir mais longe do que isso.

Acha que os artistas de Macau têm talento para avançar?
Sim. Há muitos artistas com qualidade. No entanto, existem outras dificuldades que têm de enfrentar. Uma delas é a língua. Muitas vezes é necessário o domínio do inglês, pelo menos. No meu caso, este é um aspecto que não me preocupa porque acho que o que vai comunicar verdadeiramente é o meu trabalho. Há também aqueles artistas que acham que não vale a pena tentar.

Podia ser dado algum apoio para que os artistas locais pudessem ter mais acesso a estes concursos internacionais?
Sim. No segundo ano que concorri a um concurso no Reino Unido, tive um subsídio do Instituto Cultural de 20 mil patacas. Este ano não tive. No entanto, apesar da ajuda, penso que este montante não cobre as despesas, porque estar em Inglaterra também fica muito caro.

O que pensa fazer depois de “Nocturno”?
Tenho estado com alguns trabalhos na área do design para ganhar experiência. Estou também a pensar em novos projectos e quero fazer uma instalação. Neste momento estou a definir o conceito. Para trabalhar com instalações é necessário ter um suporte económico, pelo que estou a ver formas de o conseguir.

Quais são as maiores dificuldades que os artistas locais enfrentam?
As rendas das casas e dos espaços. As pessoas não têm lugar para criar. Há 20 anos, por exemplo, era possível ter um estúdio ou um espaço grande num edifício industrial. Agora, com os preços que se praticam, é impossível. Não há espaço para criar em Macau. Por outro lado, e no que respeita à educação, penso que os responsáveis deveriam concentrar-se na formação de artistas locais. As escolas, por exemplo, são capazes de gastar 500 mil patacas para mudar de computadores que vão estar actualizados apenas por cinco anos, mas não disponibilizam 30 mil patacas para comprar um forno de cerâmica que dura mais de 30. Esta mensagem de priorizar a tecnologia sobre a arte vai ser percebida pelos alunos que vão acabar por seguir o exemplo: dar menos importância à arte.

Qual é o papel da cultura e da arte na sociedade?
A arte é tudo. Em todas as circunstâncias as pessoas usam arte e a criação. Por exemplo, para nos vestirmos é necessário que alguém crie os modelos: é necessária a arte. Todas as sociedades têm de ter uma noção de beleza, o que é muito importante. Se isso não acontecer, as pessoas acabam por fazer apenas cópias. Acabaria por ser tudo igual.

2 Jun 2017

Ilha de Hengqin | Armazém do Boi acolhe exposição de fotografia

A terceira edição da exposição de fotografias que retratam o desenvolvimento da Ilha de Hengqin começa este sábado. Os trabalhos, da autoria de sete fotógrafos de Macau, estarão expostos no Armazém do Boi até 16 de Julho

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s investimentos anunciados na vizinha Ilha de Hengqin, também conhecida como Ilha da Montanha, têm levado a profundas transformações no pequeno território do continente e nas vidas que o povoam.

Sete fotógrafos de Macau deram seguimento a um trabalho de recolha de imagens que retratam estas transformações, iniciado em 2011. A terceira edição da exposição “Following The Changes in Hengqin’ 2011-2014-2017” é inaugurada já este sábado no Armazém do Boi, estando patente até ao dia 16 de Julho.

Tudo começou em 2011, quando Frank Lei Ioi Fan, o mentor do projecto, fez o primeiro trabalho sobre as pequenas aldeias que, aos poucos, vão sendo sugadas pelas torres de betão e pelo desenvolvimento económico. Esse projecto teve como título “The Disappearing Neighbouring Villages – Rediscovery of Hengqin Island Photographic Exhibition”. Em 2015, houve uma sequela, com o nome “Below Laobeishan: Hengqin Today Photos and Videos Creative Exhibition”.

Segundo um comunicado do Armazém do Boi, Frank Lei e os restantes fotógrafos têm procurado retratar o constante e rápido desenvolvimento da Ilha de Hengqin, “documentando as mudanças drásticas que afectaram a sociedade e a vida das pessoas desde que o Governo Central lançou o Plano Geral de Desenvolvimento de Hengqin, em 2009”.

A nova edição da exposição que agora se inicia “conta a história de Hengqin através da perspectiva de sete fotógrafos”, contando também com uma selecção de alguns trabalhos já exibidos entre 2011 e 2014.

O Armazém do Boi vai também compilar e publicar a obra “The once dusty land – Images of Hengqin: 2011-2014-2017”, enquanto documento visual periódico. A exposição tem entrada livre e conta com apoio da Fundação Macau.

31 Mai 2017

Sílvia Patrício, artista plástica: “Prefiro ir buscar as imagens às palavras”

Está em Macau à procura de referências para o seu novo projecto. Sílvia Patrício criou as imagens oficiais da canonização de Jacinta e Francisco. A artista plástica falou ao HM do seu percurso, da sua independência e do que espera levar do território

[dropcap]C[/dropcap]omo é que começou a carreira na pintura?
Gostava de desenhar e fui estudar Artes Plásticas para as Caldas da Rainha. Naquela altura pensei no curso como uma forma de dar aulas de uma matéria de que gostava. De certa forma, era uma segurança. Quando terminei o curso já tinha uma loja de objectos produzidos por mim. Mas só comecei a pintar quando terminei o curso. A escola era mais virada para a produção de, por exemplo, instalações. Aliás, na altura até optei pela área da escultura, não tanto por ser das minhas favoritas, mas sim porque era uma oportunidade de ter acesso a máquinas de explorar técnicas que, de outra forma, seria mais difícil.

Deu aulas numa fase inicial da carreira. Acha que é possível ensinar aquilo a que se chama ‘talento’?
Sim. Acho que qualquer arte é primordial e deve ser ensinada desde muito cedo. Independentemente da forma de arte, é uma forma de desenvolver a criatividade. Há uma grande lacuna neste campo que se manifesta na desvalorização de um ensino real das artes desde criança. Infelizmente, as pessoas são educadas com a frase “não tem jeito para o desenho, não pode seguir uma carreira artística”. Mas, para mim, qualquer pessoa, desde que seja acompanhada, pode criar. Apesar de gostar de ter dado aulas, o que realmente gostava era de desenhar e de pintar. Acabei por deixar tudo, a loja e as aulas, e dedicar-me completamente à pintura.

Foi quando produziu as obras que integraram o projecto “Essa Paixão Proibida”, inspirado em “O Crime do Padre Amaro”?
Sim. O projecto ainda foi realizado a fazer outras coisas, mas com a sua venda percebi que a pintura podia ser sustentável.

Como é que apareceu a ideia de pegar neste romance de Eça de Queirós?
Estava a ler o livro e, como vivo em Leiria, ao passear pelas ruas, fui descobrindo que muitos dos edifícios por onde passava serviram de cenário ao romance. Fui-me vendo nos próprios espaços. Acabei por pedir autorização para visitar e fotografar. “Essa Paixão Proibida” passa pelo lado físico, que existe e que tem estes elementos reais do contexto do livro, e por um lado fantasioso em que está a minha visão do que leio e em que dou uma cara a personagens que existem de forma apenas escrita.

Como é recriar um romance nas telas? Estamos a falar de um escritor que também é muito descritivo. Funcionou como uma ajuda, de alguma forma?
Ajudou muito. É claro que temos de criar sobre o que lemos mas, por exemplo, um rosto se for descrito como sendo redondo, tendo lábios finos, etc., tento seguir esses traços.

Mas usa modelos reais?
Sim. Vou à procura de pessoas que façam parte da minha vida e que, de alguma forma, correspondam aos traços que idealizo. Também procuro pessoas desconhecidas, mas tento sempre ir ter com as que conheço porque gosto de as incluir no meu trabalho. Acho que é um processo interessante.

A instalação é agora o formato que caracteriza grande parte do que faz. Porquê?
Na altura de “Essa Paixão Proibida” fiz um quadro referente à tecedeira de anjos. Chamava-se assim à mulher que fazia desaparecer as crianças indesejadas. A personagem está a tecer num tear e do tapete saem crianças com asas. Acompanhei a tela com esculturas em que esses “anjos” são uma espécie de continuação tridimensional da própria pintura. Ao projecto juntei um trabalho de sonoplastia feito pelo António Cova. O público tinha desta forma um meio para ouvir um outro trabalho que continha os trechos que inspiraram cada tela. Acabei por conseguir ter algum sucesso e dar-me a conhecer. A colecção foi vendida na totalidade a um coleccionador privado, o que me permitiu continuar a trabalhar apenas na área da pintura e artes plásticas. Depois, acabei por perceber que a junção de vários meios e a sua conjugação completa os próprios trabalhos. Dá-lhes outras vidas.

FOTO: Ricardo Graça / Jornal de Leiria

É a autora das imagens oficiais da canonização dos pastorinhos que foram vistas no mundo inteiro. Como é que este trabalho apareceu e como está a ser encarado?
O convite surgiu na sequência de outro convite. O Museu de Leiria tinha-me convidado para fazer um quadro para a sua colecção e, numa das reuniões, conheci o director do Santuário, Marco Daniel. Ele teve acesso ao meu trabalho, mostrou-se interessado e disse que gostaria de ver como seriam os pastorinhos através do meu olhar. Tratava-se de um trabalho iconográfico e o que fiz foi tentar dar vida àqueles seres que conhecia apenas de fotografias. O meu objectivo não era só chegar a um retrato dos pastorinhos, era conseguir captar o que eles tinham por dentro. Queria também que quem os visse sentisse que as obras eram mais do que um retrato. Os rostos são carregados, são de vidas que não foram fáceis. Juntei depois alguns símbolos que me foram pedidos e para o efeito criei uma auréola. Fazia sentido tratando-se de uma canonização. Acabou por ser uma forma de me dar a conhecer a uma população mais vasta, visto as imagens terem corrido o mundo.

Não trabalha normalmente com galerias e muitas vezes são elas que projectam os artistas. Foi uma opção em que insiste. Porquê?
Acho que é importante termos liberdade. É fundamental poder escolher os temas em que vou trabalhar. O que tenho sentido é que, sem estar a generalizar, muitas galerias vêm o artista como uma espécie de operário. Se antigamente as galerias podiam ter uma paixão pelos trabalhos ou pelos artistas que escolhiam e davam uma ajuda, sinto que na actualidade uma obra é um mero objecto comercial que valoriza e desvaloriza conforme, muitas vezes, a corrente do momento. Posso vender menos e não ser tão conhecida mas, até agora, esta independência foi a situação que me pareceu melhor para o que quero fazer. Não consigo ter o mesmo acesso e projecção que um artista de uma galeria. Em termos de projectos, os meus também são muito morosos.

Antes deste projecto ligado à religião, produziu “Humanário”, em que também pegou na Bíblia. Alguma razão em particular?
Já tinha pensado em fazer um projecto baseado nesse livro. Não o escolhi por motivos religiosos, mas por ser um livro, acima de tudo, sobre os Homens. Comecei a trabalhar e, na mesma altura, a minha mãe adoeceu subitamente e acabou por morrer. Pus em causa se deveria continuar com o projecto. Acabei por continuar e o próprio trabalho talvez tenha acabado por mudar um pouco. Quando se sabe que alguém vai desaparecer da nossa vida, penso que, mesmo inconscientemente, tentamos criar uma ponte com a parte que vai embora e que não se vê.

Vai buscar inspiração aos livros, acabámos de falar de dois. Porquê?
Apesar de gostar muito de cinema, por exemplo, prefiro sempre ir buscar as minhas imagens às palavras. Os filmes acabam por condicionar o nosso imaginário, já nos dão uma imagem. É muito mais complicado estar a criar uma coisa visível sobre outra também visível. É muito interessante agarrar nas palavras e delas ir para outra coisa, para uma coisa física, seja uma pintura ou um objecto.

É a primeira vez na Ásia e está cá também para preparar novos trabalhos. Como está a correr este encontro?
Macau é um sítio muito particular. Ainda é cedo para falar porque estou cá há pouco tempo. Uma coisa que pode ser banal, mas que me impressionou: se olharmos para os edifícios, cada varanda tem a sua decoração. São todas diferentes. A estrutura é a mesma, mas umas são de vidro, outras de pedra, outras de metal e madeira. Nunca tinha imaginado um prédio com as varandas todas diferentes. Isto faz-me pensar que aqui as pessoas têm um universo único que se transmite, por exemplo, nestas coisas. Sinto também que anda tudo a olhar muito para dentro de si e quando olham para fora é para o telemóvel. Entretanto, espero levar daqui elementos para um projecto futuro em que pretendo juntar os mundos que conheço. Neste momento estou a pesquisar, a absorver, por exemplo, padrões e estruturas. Gostava que o resultado do que ando a ver e sentir pudesse cá vir em forma de projecto. Sem cair no lugar-comum, gostava de desenvolver uma ligação entre Portugal e China no geral.

O seu trabalho já foi várias vezes comparado com o de Paula Rego.
Já ouvi isso muitas vezes. De certa forma entendo o paralelismo. Trabalhamos um pouco acerca dos mesmos universos em que existe a pessoa associada a elementos fantasiosos. Por outro lado, a dimensão também é idêntica, é em escala real. A Paula Rego também trabalhou “O Crime do Padre Amaro”, mas de uma forma muito diferente. Ela debruçou-se sobre a temática do aborto e eu fui pelo lado da paixão proibida. De alguma forma, até foi uma honra ter tido essa comparação. No entanto, actualmente penso que, quem conhecer o meu trabalho, já não fará essa afirmação. A mudança tem sido natural e inconsciente. Aos poucos vou entrando noutros universos e vou descobrindo outras coisas.

29 Mai 2017

Alexandre Farto aka Vhils, artista: “Gosto de trabalhar com as forças do caos”

“Destroços” é a primeira exposição individual em Macau do artista português Alexandre Farto, conhecido como Vhils. A inauguração tem lugar no próximo dia 31 nas Oficinas Navais N.º1. Ao HM, Alexandre Farto falou do seu percurso entre artista marginal e referência internacional, e do que o move no seu trabalho

[dropcap]A[/dropcap] intervenção urbana passou de arte marginal a arte com reconhecimento internacional. Concorda? Na sua opinião, como é que foi feito este trajecto, e o que motivou o crescente interesse e reconhecimento?
Em certa medida, sim. Parte daquilo que começou como um movimento marginal, ilegal, evoluiu nos últimos anos para uma nova forma de arte pública, com reconhecimento institucional. Mas este é um fenómeno complexo e é preciso não desligar a coisa inteiramente do meio onde surgiu. Se, por um lado, temos esse crescente reconhecimento, ainda há muita gente a criar ilegalmente no espaço urbano, e essa vitalidade, que não podemos desligar da sua natureza marginal, é importante. Como qualquer outro fenómeno que nasceu das subculturas, seja em que área for, esta forma de arte surgiu das margens e, depois, a sua crescente popularidade fê-la ser absorvida pelo mainstream. O sistema sabe bem absorver aquilo que acha aproveitável, mesmo quando tem origem em movimentos anti-sistémicos. Este trajecto tem muito que ver com, por um lado, o amadurecimento desta geração dos últimos 20 ou 30 anos que cresceu com esta forma de arte, que gosta e segue o trabalho destes artistas e que, agora, começa a ter a oportunidade de os apoiar. Por outro lado, tem havido um reconhecimento institucional, sobretudo da parte das autarquias e governos locais que começam a vê-la como parte de uma solução, e não apenas como parte de um problema ligado à cidade e o modo como se vive a cidade. Há depois também todo um trabalho por parte de investigadores, curadores, galeristas e outros agentes ligados à dimensão institucional das artes que tem contribuído positivamente para este reconhecimento e valorização.

No seu caso, como é que o Vhils saiu da marginalidade? Como foi a evolução estética e técnica no seu trabalho?
Bom, o Vhils tem origem precisamente nesses tempos de marginalidade. Surgiu nesse meio, como produto desse mesmo meio. Primeiro no graffiti ilegal, uma prática que me permitiu expressar a rebeldia própria da adolescência e a liberdade de explorar a cidade e ocupar o meu lugar no espaço público, de mostrar que não era invisível como tantos outros. Teve muito que ver com a minha própria emancipação. No entanto, o graffiti funciona dentro de uma lógica de circulo fechado, sendo feito apenas para quem está dentro da comunidade. Apesar de não ter deixado de pintar, cheguei a uma certa altura em que comecei a reflectir sobre o que estava a fazer, o que queria fazer, e a consciencializar-me sobre o potencial de usar o mesmo espaço para comunicar com um público muito mais vasto. Comecei a explorar outras técnicas e a trabalhar com a cidade de outra forma. À medida que fui crescendo, comecei a desenvolver esta reflexão sobre a natureza da cidade contemporânea, o modo como vivemos neste espaço, o sistema que a sustém. A certa altura, entendi que as paredes que eu andava a pintar já tinham as suas histórias contidas nas suas camadas. Em Lisboa isto era visível, havia restos de murais da revolução que nos falavam dessa utopia, depois cartazes publicitários que nos falavam do boom do desenvolvimento e da integração no sistema capitalista, por cima disso veio o graffiti e depois as paredes foram sendo pintadas de novo pelas autarquias até levarem com mais graffiti, mais cartazes, e por aí adiante. O que entendi foi que as paredes vão ganhando camadas que captam todos esses registos, e que hoje em dia estas mudanças são tão velozes que parece difícil conseguirmos absorver tudo. Foi com base nessas observações que procurei começar a trabalhar com estas camadas que já lá estavam, em vez de estar a adicionar mais. Ao mesmo tempo fui-me juntando com outras pessoas com as quais partilhava o interesse de expor trabalho noutros ambientes, e começámos a organizar as nossas próprias exposições. A mais importante foi a Visual Street Performance (VSP) que teve uma edição anual entre 2005 e 2010. Comecei também a tentar mostrar trabalho em galerias. Da junção desses dois contextos conheci a galerista Vera Cortês que se interessou pelo meu trabalho e decidiu apoiar-me. Em 2006 tive a primeira exposição na sua galeria em Lisboa. Foi nessa altura que comecei a trabalhar com aglomerados de cartazes que retirava da rua e a explorar um processo de subtracção dos materiais. A ideia é anular parte destas camadas e expor a entranha, tornar visível aquilo que é invisível, expor a sua história através de processos destrutivos. Pouco depois comecei a fazer o mesmo com as paredes, e o trabalho que faço hoje partiu daí. Em 2007, mudei-me para Londres para estudar na universidade, o que acabou por ser uma fase muito importante para a internacionalização do meu trabalho. Em Londres fui convidado a trabalhar com a Lazarides Gallery e, depois disso, os convites foram-se sucedendo para desenvolver projectos em vários pontos do mundo. No entanto, não deixei de fazer coisas em Portugal, e depois de alguns anos senti que já não fazia sentido ver o país como periférico e podia perfeitamente trabalhar a partir de Lisboa para o mundo. Em 2012 voltei a Portugal, onde abri o meu estúdio. Entretanto tive um convite para fazer uma residência artística em Hong Kong e mudei-me para aqui em 2015. De forma a poder aproveitar o potencial da região abri um segundo estúdio e, desde então, tenho trabalhado entre Lisboa e Hong Kong.

FOTO: Paulo Spranger/Global Imagens

Em que é que o Vhils intervém e o que comunica com o público?
A ideia é criar um diálogo com alguns elementos da realidade material, mas também imaterial, da cidade, desenvolvendo uma reflexão sobre a natureza das sociedades urbanas contemporâneas através da fricção e justaposição. Gosto de trabalhar com as forças do caos presentes na cidade, de as incorporar na obra, de revelar a essência das coisas que, simbolicamente, se encontra soterrada nas camadas que as compõem. Daí o recurso a processo destrutivos que, por um lado, têm origem na noção de vandalismo estético presente no graffiti, e, por outro, também espelham os ciclos de destruição e criação através dos quais a cidade opera o seu crescimento. O meu trabalho deve muito ao espaço urbano, bebe muito daquilo que ele oferece e produz, procurando desenvolver uma reflexão sobre a sua natureza e as suas características, assim como a relação que tem com aqueles que nele habitam. Depois estabelece uma ligação com aquilo que lhe dá forma no presente, questionando o modelo de desenvolvimento globalizante e o modo como este afecta a identidade de indivíduos, comunidades e culturas a um nível local. Tenta, acima de tudo, tornar visível o invisível, seja ao nível de materiais ou ao nível de pessoas e comunidades. Faz uma leitura de contrastes entre estes temas, assim como o impacto das mudanças em curso, sobre a destruição que cria e a criação que destrói. Para mim a arte só faz sentido quando faz uso da capacidade de sensibilizar e ajudar a promover a discussão. Mas eu prefiro ver o meu trabalho mais como uma reflexão crítica sobre vários tópicos que considero importantes do que propriamente uma forma de acção política.

Que aspectos da actualidade merecem um alerta maior?
Acho que há vários aspectos que estão relacionados. Têm origem na mesma questão, num processo desencadeado por este modelo de desenvolvimento que seguimos de forma irreflectida. Um modelo que tem trazido coisas positivas e negativas mas que, em última instância, é absolutamente insustentável a longo prazo. Preocupa-me sobretudo a assimetria entre mundos (entre aqueles que têm cada vez mais e aqueles que têm cada vez menos), assim como a erosão das identidades locais através da imposição de padrões uniformizantes. Creio que a arte serve para levantar questões, para ajudar a reflectir, para ajudar a chamar a atenção para situações importantes e inquietantes. Não tenho a presunção de achar que tenho todas as respostas ou soluções para estas questões. Acho que é importante reflectirmos em conjunto, trabalharmos em conjunto. A questão é haver vontade para tal.

Num futuro, o que prevê que possam vir a ser os motes para o seu trabalho? Quais os “perigos” que devem ser reflectidos?
É difícil projectar no futuro, mas creio que, entre outros, a cidade, o modo como opera, a crescente uniformização que o presente modelo de desenvolvimento global impõe, a erosão das especificidades culturais e identitárias locais, a crescente tensão entre o espaço urbano e o espaço rural, são temas que irei continuar a explorar nos próximos tempos.

Porquê Vhils? Há alguma história por detrás do nome?
O nome Vhils vem da altura em que pintava graffiti ilegal. É um nome que segue a mesma lógica de um pseudónimo, mas escolhido para ser escrito, difundido e desenvolvido esteticamente. Não tem significado nenhum, a sua escolha deve-se apenas à sequência de letras que me agradava, e permitia escrevê-lo e pintá-lo de forma rápida e segura. Quando comecei a apresentar trabalho em exposições já era conhecido como Vhils e decidi manter o seu uso junto com o meu nome verdadeiro. 

Disse em entrevista que antes de ser convidado pela Fundação de Arte de Hong Kong já era sua intenção passar uns tempos no Oriente. Porquê? O que via deste lado do mundo para querer vir até cá?
Em 2012, fiz uma residência artística em Xangai e gostei muito da China. No ano seguinte vim a Hong Kong pela primeira vez trabalhar numa peça e numa exposição e também me senti bem aqui. Como disse, a natureza do meu trabalho é a realidade urbana. A escala da transformação, desenvolvimento e mudança que aqui está a acontecer não tem paralelo no presente, mesmo se a observarmos à volta do mundo. Por este motivo, é terreno fértil para me inspirar e reflectir.

Depois do mural de Camilo Pessanha para o Consulado, tem agora a primeira exposição individual em Macau. Tem um significado especial?
Sim, certamente. Macau é um entreposto de culturas, um território rico em encontros e desencontros com tudo o que isso trouxe de positivo e negativo ao longo dos séculos. É exactamente o tipo de sítio que eu gosto de explorar e trabalhar, com uma enorme riqueza de camadas que foi acumulando ao longo do tempo, e encontra-se também num processo de grande transformação e desenvolvimento. Tudo isto me fascina por vários e diferentes motivos. Obviamente que tem o acréscimo da ligação portuguesa que, caindo num lugar-comum, é aquele misto de familiaridade e exotismo que toca a quem vem do outro lado do mundo.

Projectos na calha?
Há muitos em curso. Entre aqueles que posso divulgar encontra-se outra exposição individual no CAFA Art Museum, em Pequim, que abre no final do mês de Junho.

22 Mai 2017

Fan Sai Hong | Taipa Art Village apresenta a primeira exposição do artista

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ão mais de 100 os desenhos de Fan Sai Hong que vão forrar as paredes da galeria da Taipa Art Village. O artista de Macau vê, assim, pela primeira vez o seu trabalho exposto. “Vamos ter os esquiços do acervo pessoal de Fan Sai Hong”, explica ao HM João Ó, curador da exposição.

A selecção para “Simple Things” partiu de um trabalho conjunto entre curador e artista. “Estivemos a rever os esboços e resolvemos expor aqueles que fazem um retrato autobiográfico, e que foram feitos em blocos de desenho”, explica.
No total, a mostra representa cerca de 15 anos da vida de Fan Sai Hong que cobrem o período de criação de 2002 a 2016. No entender de João Ó, o facto de não ter ainda exposto os seus trabalhos prende-se com a falta de convencionalismo dentro do que normalmente está associado à obra de arte e à sua exibição. No entanto, é esta passagem ao lado da norma que cativa o curador num trabalho “pouco convencional, em que a forma de expor não faz parte dos cânones de emoldurar uma pintura, uma aguarela ou seja o que for”.
“Vamos pôr os esboços directamente na parede, de modo informal, e ordenados por séries e épocas num continuum que mostra o percurso pessoal de Fan Sai Hong, sem barreiras entre obra e observador”, sublinha.

Paisagens internas

Enquanto autobiografia, são desenhos realizados em várias fases da vida do artista. Passam pelo Japão e pela Nova Zelândia. No entanto, nunca são trabalhos realistas. Da Nova Zelândia saem paisagens, mas interiores. “São das peças mais coloridas do seu trabalho, mas são sempre de mundos interiores. Fala-me daquela paisagem espectacular, mas transforma-a num desenho interno”, diz João Ó.
Também no que respeita à técnica, o curador dá destaque à variedade utilizada por Fan Sai Hong. “A vida não é mecânica. Numa vida orgânica passa-se por várias experiências e, como tal, também se experimentam várias técnicas. Aqui, cada período recorre a um meio diferente de expressão.”
Para João Ó, “esta riqueza técnica revela de modo particular o estado mental do artista e, sendo desenhos autobiográficos, não são repetíveis”. É nesta cristalização do tempo e na sua impossibilidade de repetição que está, de acordo com o curador, um dos pontos de reflexão da própria exposição.

O primeiro livro

A par da exposição, o evento de inauguração serve também de mote para o lançamento do primeiro volume de um conjunto de quatro de um trabalho de banda desenhada do artista de Macau. A banda desenhada foi iniciada em 2006 e tem o nome de “No Name”. A ideia, explica João Ó, “era encontrar um nome suficientemente abrangente para dar liberdade de interpretação”.
Trata-se mais uma vez de um percurso de vida, “um percurso solitário de um indivíduo sobre uma paisagem, da descoberta sobre si próprio dentro de uma ideia de passagem ritual da juventude para o estado adulto”, explica.
Para o curador, que encontrou Fan Sai Hong através do Facebook, o interesse pelo seu trabalho foi inevitável. “Mesmo os desenhos mais reais são muito naïfs, no sentido de uma observação da realidade distorcida. De acordo com o artista, esta distorção flui na lógica do próprio desenho, sem se converter ao realismo.”

25 Abr 2017

Centro de Design de Macau acolhe “Eu”, uma mostra de trabalhos de design gráfico

O Centro de Design de Macau acolhe até Junho a exposição “Eu”, da autoria de dois estudantes da Universidade Cidade de Macau. São trabalhos de design gráfico que visam mostrar as reflexões que se vivem no período da adolescência

 

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ichael pegou na sua própria imagem e transformou-a para mostrar aquilo que ele e os jovens da sua idade pensam. As fotografias, feitas com recurso ao Photoshop, mostram um jovem pensativo em relação ao mundo que o rodeia, muitas vezes “perplexo” com o que vê, onde o cigarro acaba por ser a melhor companhia. São, no fundo, pensamentos de quem já não é adolescente, mas também ainda não é adulto.

Michael, juntamente com o seu colega Manson, são ambos estudantes do curso de design gráfico da Faculdade de Estudos e Gestão Urbana da Universidade Cidade de Macau e foram convidados a partilhar o seu trabalho no Centro de Design de Macau. A exposição, intitulada “Eu”, mostra um lado mais introspectivo da juventude e estará patente até Junho.

“Tudo isto é sobre os adolescentes e os jovens que atravessam um período de lutas interiores”, contam os artistas ao HM. “Os jovens passam, muitas vezes, por um período de grande reflexão e esta exposição pretende mostrar esse lado.”

Os trabalhos estão divididos por vários temas e mostram as vozes que os mais jovens têm e que nem sempre conseguem partilhar. “Nós pertencemos a esta geração, nós próprios somos jovens. E queremos dizer ‘olha para mim, é desta forma que eu penso e sinto’”, contou Michael.

Para os autores, ser jovem nem sempre é fácil, sobretudo ao nível da afirmação de cada um na sociedade em que se insere. “Os jovens são sempre alvo de uma certa negligência, e não conseguem expressar a sua voz. Ainda não estão devidamente estabelecidos na sociedade e, muitas vezes, é dada mais atenção aos adultos”, acrescentou o estudante.

Uma oportunidade

Esta é a primeira vez que os dois jovens têm a oportunidade para expor os seus trabalhos. Tudo começou através de um docente da Universidade Renmin, em Pequim, que os convidou a mostrar as suas obras em Macau.

“Todos estes trabalhos estão relacionados com diferentes personalidades, é sobre uma pessoal enquanto individuo. A ideia por detrás desta exposição é mostrar tudo o que um jovem pode ter dentro de si. Há também imagens abstractas, cujos nomes remetem para determinadas emoções ou acções”, contou Manson.

Oriundos da China, Michael e Manson assumem que esta exposição está também relacionada com a pressão que os jovens sentem no seio das famílias chinesas.

“Tem um pouco a ver com isso, porque há a ideia de que os mais jovens representam a família a devem mostrar algo de diferente, por aprenderem mais depressa e terem acesso a coisas novas. Independentemente da idade que tenhas, há a ideia de que tens de fazer isso”, referiu Michael.

A iniciativa no Centro de Design de Macau abriu portas aos dois jovens, que já foram convidados para realizar um trabalho de decoração de interiores em dois cafés. Contudo, Michael e Manson falam da existência de algumas dificuldades para singrar no mercado.

“Há alguma limitação no mercado local, porque as empresas pensam que somos demasiado jovens e dão mais atenção aos profissionais que são mais conhecidos. É difícil ter oportunidades para quem está a começar. Por isso é que esta exposição é importante para mostrar o nosso trabalho”, afirmam.

18 Abr 2017

Exposição | Anabela Canas mostra série de desenhos feitos para Macau

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão dois anos de ilustrações de Anabela Canas que têm a sua exibição marcada para a próxima quarta-feira, na Galeria da Livraria Portuguesa. A acompanhar o evento está o lançamento do álbum que acompanha as imagens com pequenos trechos dos textos que escreveu para a secção do HM,  “De tudo e de nada”

“Iluminação Artificial” é a exposição de Anabela Canas que vai ser inaugurada esta quarta-feira na Galeria da Livraria Portuguesa.

A mostra reúne um conjunto de desenhos que ainda estão a ser seleccionados. “É um conjunto impreciso”, afirma a artista, e sai de uma escolha entre os 78 trabalhos que produziu para a rubrica do HM, “De tudo e de nada”.

“Gostaria de os expor todos porque todos fazem sentido, mas há um limite de visibilidade, de elegância e de clareza na galeria que tem de ser respeitado e vou tentar encontrar um limite razoável, sendo que o critério é sempre a escolha dos trabalhos que, considero, mais conseguidos”, conta.

Porém, não se trata de uma exposição de meros desenhos, são antes, ilustrações “por estarem ligados a um texto e terem um fim específico.” “São feitos de propósito e podem acrescentar mais às palavras ou dar origem a outros sentidos”, diz.

Por outro lado, a exposição só poderia acontecer no território. A explicação é simples: “foram feitos para Macau”.

Imagens legendadas

A mostra acompanha o primeiro livro da artista que é, de acordo com Anabela Canas, “um álbum” e não um catálogo da exposição porque tem fragmentos das crónicas. “São excertos muito curtos mas que tinham de existir pela ligação existente e que podem fugir para diferentes sentidos”.

Anabela Canas queria, nesta estreia, um objecto bonito capaz de guardar as imagens pelas quais, diz, “tem um grande carinho”. “Gosto dos meus desenhos e quando estão feitos olho para eles de um ponto de vista exterior, como se não fosse eu, e quando gosto sinto mesmo muito carinho”, contou. Por isso queria que fossem guardados como merecem. “Não queria que ficassem enterrados”.

A escolha de Macau para a estreia das palavras publicadas em livro  representa “um dilema enorme depois de 15 anos de ausência para arrumar bem as nostalgias”. Macau é agora uma segunda terra que faz com que o que está a acontecer “ainda faça mais sentido”.

Iluminação artificial

Um dia, por um daqueles puros e aleatórios acasos, encontrei-me com um aspecto ligado à antiga arte de iluminar, que me encantou. Monges copistas, na sua tarefa de horas perdidas, horas e horas, dias e anos “num trabalho que não tinha pressa de chegar ao fim”, outros, ou os mesmos, a tecer iluminuras preciosas, a ouro ou prata, a negro e a cores, e que de caminho, talvez os primeiros, anotavam nas margens dos manuscritos os seus desabafos nocturnos e humanos. E por temor ao esquecimento, de seres porque sem nome, em que ficariam caídos pelos caminhos longos e infindáveis da posteridade, o costume melancólico de deixar uma impressão condoída no final. Uma assinatura, um desabafo que enaltece a nobreza do trabalho, do esforço, um anseio de que lhes rezasse pela saúde e pela alma, alguém.

Imaginá-los ao lado, em noites húmidas a entrar nos ossos e a sair de um sono mal entrado, tocadas a aragens arrefecidas pelas pedras. Agrestes. A fazer dançar chamas a iluminar o cansaço. A ensombrar. E sempre, quase a apagar uma vela grossa mas consumida e suada em grossas lágrimas de cera como gotas alongadas da luz produzida com esforço. A rodeá-los a escuridão povoada de sombras enormes e inquietas, nas velhas abadias medievais, quando as tarefas insaráveis lhes curvavam as costas em dor e tolhiam os dedos. O desenho de uma escrita trabalhosa, vingada em lamentos nas margens do texto. Desabafos esquecidos ao apagamento, ou deixados porque sim. A distinguir o fim antes da madrugada, ou o início no fim da noite. Porque as horas se alongam e a tarefa não tem fim. Porque a tinta está demasiado fina. Porque já mereciam um copo de vinho espesso a aquecer a alma e ou pés. Invento.

E assim me podia fantasiar, por vezes, com eles e pela noite fora a tentar laboriosamente vencer o tempo e o sono, e iluminar um texto que só a meio se me começava a desvendar, e só então e não mais, e porque noutros momentos o sentia fechar sobre si, ou a desviar sentidos a meio ou à procura de um reforço a apontar para outros lugares do texto entre linhas. Entre as linhas, como nas margens e como eles, que aí colocavam glosas a desvendar um latim longínquo do falado. Entre as linhas ou nas margens se caminhou para o futuro dicionário de sentidos. A ficar pelos tempos no imaginário da língua, a insinuação sobre as palavras ocultas agora, entre as linhas visíveis e o discurso não dito. A ler nas entrelinhas.

E de uma só vez, me surge uma amálgama de três formas objectivas de ocupar aquelas páginas, em que tudo o que menos se esperava seria a da pequena subjectividade de formiga laboriosa a ganhar um espaço clandestino e que ficou esquecido por entre as páginas. Esquecido de apagar ou, perversamente a imiscuir-se na nobreza suposta do manuscrito, a sua pequena significância tornada existente, real e ancorada no texto.

Texto que não era deles mas sim ditado, copiado, como a ficção literária não é do autor mas de uma existência própria alheia. Imiscuída também ela de desabafos nas linhas, nas margens brancas de silêncio, ou nas entrelinhas. E tal como a iluminura fugia ao texto nas suas figurações icónicas, antropomórficas ou zoomórficas, motivos florais ou entrançados…tudo para trazer a luz da folha de ouro e prata e só assim a verdadeira luz sem outros sentidos, às escuras páginas de letras apertadas e negras, a poupar o espaço e a fugir para o cimo da página para se desviarem do terreno chão oposto. Terreno demasiado terreno. Uma luz real a iluminar o texto numa fuga ao sentido. As dores do humano nas margens do saber… Luz real, se real é o reflexo.

E também eu com a luz ao lado mas de sombras quietas na parede. Vigilantes e meio adormecidas, mesmo as mais ferozes. Roubar tempo ao tempo.

Ilustrar. Tornar nobre e iluminar. De ilustris, em latim, o que é claro iluminado. Ou a raiz indo-europeia lux, de onde vem a luz da lucidez, e a dar lugar ao latim, de novo, em luminis, lucubrare, iluminar, elucubrar. Saborosas palavras de luz. Sempre a luz. E, nas iluminuras medievais, uma luz que se ficava pelo brilho denso da folha de ouro, ou da prata, e das cores fortes dos óxidos. Acompanhar o texto ou produzir significados livres. Sem ambições a aprofundar sentidos. Às vezes só o de humor. De revolta. De monge sem outro lugar para desentorpecer a voz.

Nada mais nobre – para quê ilustrar –– ou subtil e ambíguo – como iluminar – do que as palavras. Não mais, nem menos do que uma imagem. Mas há o acrescentar, o tornar ainda mais divergente aquilo que por palavras e só, já o é. Aquilo que numa imagem o é por inerência também. Há, pois um diálogo de titãs entre umas e outras. Em que a cada uma das subjectividades se acrescenta a das outras, desmultiplicando sentidos ou ilusoriamente clarificando. Iluminando. Mas por vezes de uma luz enganosa. Acrescentar uma leitura/luz diferente, ou simplesmente aumentar as camadas de leitura do texto com a imagem. E vice-versa.

E fez-se uma luz artificial, na fuga irreprimível das linhas insubmissas, ao texto. Estas dos desenhos. Talvez falsas iluminações a fingir a incidência de uma luz polarizada a rir dos sentidos únicos e últimos. Em fuga, sempre. Alumiar noutros sentidos é o desafio do desenho a fugir ao texto, a produzir zonas de sombra, às vezes.

O fabuloso desafio do Jornal Hoje Macau, pela voz do seu director Carlos Morais José. Escrever um texto para um dia da semana – faz dois anos. Setenta e oito dias de hoje, sem carta de marear. E o desafio meu. Iluminar todas as semanas as palavras esquivas e, claro, a negro de fumo. Às vezes, depois, as cores a querem chegar. É o que fica neste livro, e pedaços soltos dessa escrita, aqui, já a ilustrar com as suas sombras e sentidos, o desenho. Agora. O sentido contrário. Sem nunca fugir à luz artificial. Do candeeiro ao lado. Já pelo fim da noite ou na frescura da madrugada. Que lança afinal também ela sombras fluidas. Zonas onde a luz não chega. Falsos brilhos e reflexos enganadores. Talvez. Enormes possibilidades e incomensuráveis impossibilidades que se fundam numa mesma incerteza. De desenhar um sentido. Uma certeza, uma luz, uma escuridão. É isso.

Iluminar. Artificialmente.

Anabela Canas

10 Abr 2017

Albergue | Dez anos de desenhos de Daniel Vicente Flores

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s desenhos de Daniel Vicente Flores vão estar em exposição a partir do dia 19 no Albergue SCM. “Desenhos 2006-2016” é um conjunto de 33 obras a tinta-da-china “onde o artista explora o traço carregado de ângulos e variações representando a mancha de forma figurativa e abstracta, e onde se encontram por vezes apontamentos de cor”, lê-se em comunicado de imprensa.

De acordo com a organização, a mostra representa um imaginário íntimo em tom provocatório, onde o significante e o mundo identitário do artista se confundem. “Os meus desenhos não são estudos de sombra e luz a partir da observação, mas da luz e da cor em si, que formam o desenho relacionado com o mundo exterior apenas simbolicamente”, refere o artista.

Daniel Flores nasceu em Macau em 1989 e aqui viveu até 1999. O interesse pelo desenho enquanto expressão vem desde muito jovem, sendo que a literatura e a poesia surgem mais tarde. A residir em Lisboa, concluiu o ensino secundário na Escola António Arroio, na componente de Encenação. Frequentou a Faculdade de Belas Artes de Lisboa (Artes Multimédia) e a Escola de Jazz do Hot Club Portugal. Prossegue, em simultâneo, com todas as suas actividades artísticas: desenho, literatura e música.

Daniel Vicente Flores não deixou, no entanto, de visitar Macau com frequência e “Desenhos 2006-2016” é um marco “natural na terra natal”.

No mesmo dia, é lançado o Livro “Impressões” com desenhos e poemas do artista, com a chancela da editora Livros do Oriente.

5 Abr 2017

Poly Auction | Leilão traz obra de Zeng Fanzhi a Macau

O Poly Auction Hong Kong colabora pela primeira vez com a organização homónima local. O objectivo é trazer a arte chinesa a ambos os territórios e traduz-se numa exposição de uma das obras emblemáticas de Zeng Fanzhi. Depois do Louvre, o n.º 6 da “Mask Series” está no Regency Hotel

[dropcap style≠’circle’]“F[/dropcap]usão” é o nome do certame do Polly Auction que, pela primeira vez, conta com a colaboração entre as delegações de Hong Kong e de Macau. Com a iniciativa, a cargo de Sabrina Ho, pretende-se mostrar o que de melhor se faz na arte moderna e contemporânea chinesa. A ideia é partilhar entre os dois territórios a arte, em exposição e de olhos postos no mercado, que se faz no Continente.

Em Macau a “Fusão” acontece no Regency Hotel com a mostra de um dos nomes mais importantes da expressão plástica chinesa da actualidade, Zeng Fanzhi. Depois de passar pelo Louvre, o n.º 6 da colecção “Mask Series” está até 5 de Abril no átrio do Regency para quem o quiser apreciar.

A pintura a óleo sobre tela, de larga escala, data de 1996. Três anos antes, Zeng mudou-se para Pequim e “sobreviveu num tempo de grandes mudanças”, lê-se no catálogo do evento. Terá sido a dinâmica histórica que o incentivou à realização da série. Marcado pelo expressionismo que já caracterizava o seu trabalho, “exagera na proporção das mãos e da cabeça, enquanto esconde expressões por detrás das máscaras, brancas e frias, que sorriem”.

Ao contrário dos primeiros quadros da série, em que as personagens apareciam bem vestidas e com ar contemporâneo, o n.º 6 é o primeiro trabalho que “envolve a narrativa de uma terceira pessoa na elaboração de uma perspectiva individual”. Situa-se já longe de uma experiência pessoal, mas “permanece nas memórias de quem a viveu de perto e remonta à juventude da Revolução Cultural”. “As máscaras, os sorrisos, os corpos e os contrastes compõem uma imagem íntima e cheia de hipocrisia”, ilustra a organização. A obra de Zeng Fanzhi vai a leilão, mas não é revelado o valor de licitação.

Obras preciosas

Já os restantes cinco trabalhos que integram o evento deste ano, e que vão estar em exposição no Grand Hyatt Hong Kong. de 1 a 4 do próximo mês, perfazem uma base de licitação de quase cinco milhões de dólares americanos. O conjunto é constituído por obras de Zao Wou-Ki, Wu Guanzhong, Chu Teh-chun, Li Keran e Xu Beihong.

De Zao Wou-ki é a tela “06.02.74”, que marca uma ruptura dentro do trabalho do artista. Produzido após a morte da segunda mulher, é uma obra que deixa para trás o recurso às cores ricas que marcavam os trabalhos do mesmo período. “06.02.74” é considerado um quadro de transição técnica que revela “uma composição complexa, traços dinâmicos e uma gradiente delicada de cores, num trabalho clássico que integra a pintura a óleo do Ocidente e o a tinta do Oriente”, lê-se na apresentação.

“Reclining” de Wu Ganzhong data de 1990 e é dedicado à expressão do nu, tema pelo que o artista é também conhecido e que marca “a primeira metade do seu período criativo”. Wu Ganzhong diz ter percebido, enquanto jovem estudante em França, que “toda a beleza plástica está relacionada com o corpo humano”. A partir desse momento, as suas obras passaram a retratar a nudez de forma a conceber paisagens. Foi esta abordagem que fez com que todos os seus trabalhos viessem a ser queimados durante a Revolução Cultural. “Reclining” é um regresso às origens produzido já com 72 anos de idade, motivo que tem levado à sua exibição por todo o mundo.

A utilização de tons de azul é o mote para “Summer”, de Chu Teh-Chun, na representação de profundidade espacial. A ideia é a “perseguição da evolução da natureza, mais do que a combinação de elementos abstractos”.

Das cinco obras presentes em Hong Kong, “Summer Mountains” de Li Keran tem a base de licitação mais valiosa. Com um valor inicial acima dos dois milhões de dólares americanos, é um “exemplo excepcional de estética da paisagem” do artista. Datado de 1986, já na final de carreira, o clássico da pintura chinesa combina técnicas orientais com ocidentais para a expressão “de uma atmosfera poética na representação de bosques e montanhas”.

De 1939 é “Standing Horse” de Xu Beihong. O quadro foi criado durante a guerra sino-japonesa em que o artista foi também activista, empenhado na recolha de donativos. De acordo com a organização, “Standing Horse” é uma obra particularmente importante porque representa uma das maiores especificidades de Xu Beihong na pintura de cavalos, ao mesmo tempo que é uma representação simbólica da força chinesa”.

28 Mar 2017

Margarida Saraiva: “É necessário avançar com coragem”

Margarida Saraiva dedica a vida e o tempo à arte. A fazer curadoria no Museu de Arte de Macau, tem a carreira marcada pela dedicação à investigação e à educação. Há três anos fundou a Babel, associação que se dedica à arte contemporânea numa vertente pedagógica, sem esquecer questões ambientais

[dropcap]O[/dropcap] seu nome tem estado, ultimamente, associado à curadoria. Como é que apareceu esta vertente no seu trabalho?
Estudei História de Arte e depois Museologia. Trabalhei muito tempo como investigadora, mas era um trabalho que acabou por ser tornar aborrecido por sentir que tinha pouco contacto com as pessoas. Foi então que comecei a trabalhar voluntariamente em educação e a fazer cursos de artes para crianças. A minha função dentro do Museu de Arte de Macau (MAM) passou a estar mais ligada à educação do que à investigação. Entretanto, decidi criar a Babel para fazer mais coisas e a curadoria acabou por se lhe seguir. Sou curadora das pinturas históricas e contemporâneas do MAM e, em Abril, vai ser inaugurada a primeira exposição com esta função.

O que podemos esperar desta exposição?
É um trabalho centrado na mulher. A exposição divide-se em dois momentos: um baseado em pinturas, aguarelas e gravuras históricas que vão até meados do séc. XX com agenda para Abril e, perto do final do ano, tem lugar um segundo momento que inclui obras feitas apenas por artistas mulheres de Macau. O primeiro momento dá uma visão do papel da mulher na sociedade e a forma como ela é apresentada ao mundo da história da arte. A história da arte reforça o papel que a mulher deve ter. Temos obras sobre os dez trabalhos da mulher na sociedade chinesa, o casamento, a mulher na publicidade e o seu papel na família. Temos também retratos a óleo de mulheres proeminentes na sociedade local. É uma visão alargada daquilo que existe na colecção do museu. Vamos incluir também cerâmicas e tentar que a exposição não se feche, tentei uma abordagem interdisciplinar. A colecção do Museu de Arte de Macau situa-se, de um certo ponto de vista, na con uência de duas tradições artísticas muito diferentes. Temos obras que são maioritariamente de tradição chinesa e outras de tradição ocidental. Juntar as duas coisas na mesma exposição não é fácil, mas penso que consegui encontrar o fio à meada.

Porquê o tema? Uma forma de intervenção?
É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local. Nessa perspectiva, vale a pena pensar acerca desse assunto, até para estimular a criação artística entre as mulheres.

Como é que vê o panorama dos museus e espaços de exposições em Macau?
Macau tem espaços óptimos. A ideia de que não os há é uma falsa questão. A arte, hoje em dia, não precisa de galerias da mesma forma que as instituições não precisam de ter um lugar físico. O que é necessário é criar conteúdos porque há muitas instituições com espaços sem nada e que estão cheias de equipamentos sem ser utilizados. O que realmente interessa é criar conteúdo de qualidade e, quem for capaz de o fazer, tem as portas abertas em todas as instituições. Há também a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado.

“É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local.”

Onde estão os artistas para esses espaços?
Nenhuma cidade do mundo trabalha apenas com os artistas locais. É preciso criar sinergias e, nesse particular, os curadores podem dar uma ajuda: pôr as pessoas a trabalhar em conjunto. Colocar pessoas que sabem mais a comunicar com aquelas que possam ter menos oportunidades, os que têm mais conhecimento e menos capacidade económica com o inverso. É preciso fazer um caleidoscópio para que as coisas brilhem. Mas, para isso, é preciso fazer e querer. É necessário avançar com coragem, que é uma coisa que, por vezes, falta. Falta capacidade de visão, falta coragem na realização e falta capacidade de criar esse tal caleidoscópio.

É aí que se insere a Babel?
Gostava de trabalhar de uma forma interdisciplinar nas vertentes da arte contemporânea, da arquitectura e do ambiente com uma missão educativa, ou seja, com o objectivo de gerar oportunidades de aprendizagem reais, concretas, eficazes e, de alguma forma, inesquecíveis para jovens de Macau. O primeiro projecto que fizemos foi o “Influxos”. É uma ideia que envolve pessoas de Pequim, Macau e Portugal. É um projecto em movimento em que cada edição tem início em lugares diferentes. Juntamos estudantes da área do cinema e da arte contemporânea num processo criativo comum. Apresentamos aos alunos a forma como os artistas contemporâneos têm introduzido o cinema nas suas obras. Por exemplo, um filme pode ser concebido para ser projectado numa bola de gelo gigante que está permanentemente a derreter e, neste caso, a forma como vemos o filme, como o pensamos ou o escrevemos é diferente do que se aprende numa escola de cinema – e também não se aprende numa escola de artes onde as disciplinas ainda estão muito divididas. Com o “Influxos” queremos criar uma oportunidade que seja inesquecível, não só pelo facto de permitir aos alunos de várias partes do mundo trabalharem num projecto comum, mas também por promover uma abordagem mais experimental do que a que propõem, hoje em dia, as universidades. Foi um projecto muito bem-vindo pela parte do Instituto Cultural e, como tal, não tivemos dificuldade para que fosse financiado, porque vai ao encontro de toda uma política de promoção das indústrias culturais.

Como é que tem sido a adesão, especialmente dos estudantes do território?
Os alunos são, até agora, escolhidos pelas universidades e cabe às instituições decidirem o método de selecção. Estamos agora a pensar abrir, nas próximas edições, candidaturas independentes. Mantemos o modelo em que há uma participação fechada e, ao mesmo tempo, abrimos espaço a alunos que mostrem o portfólio para poderem ser seleccionados. O novo modelo tem a vantagem de abrir o leque de participações. O sucesso do projecto regista-se quando alunos de Macau descobrem que sabem pouco e que vale a pena investir em estudos em Pequim ou em Portugal. O confronto com a necessidade de mais conhecimento é muito importante para os alunos que nunca saíram do território.

O “New Visions” é outro projecto da Babel, mas com foco na divulgação.
As exposições em Macau são sempre colectivas. É evidente que, numa mostra colectiva, não se consegue ver a qualidade da obra de um artista. As exposições colectivas são muito boas porque mostram muita gente. Isto é óptimo para pôr nos relatórios que as instituições têm de fazer umas para as outras, para justificar gastos e preencher formulários. Dá muito jeito dizer que uma exposição teve 30 artistas, mas o que é que realmente as pessoas viram do trabalho de um criador ou o que é que o artista bene cia com a participação? Quisemos deliberadamente criar uma oportunidade dirigida a jovens artistas locais e trazer a este espaço pessoas que nunca tivessem tido oportunidade de fazer uma exposição individual.

“Há a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado.”

Como é que se processa? Não se trata apenas de uma exposição.
Cobrimos todos os gastos de produção da exposição, o que também é uma coisa rara em Macau. As instituições normalmente têm espaços, gastam todo o dinheiro na sua manutenção e acabam por não ter meios para apoiar os artistas.

O resultado é que os artistas que quiserem expor têm onde fazê-lo, mas têm de pagar do seu bolso toda a produção da obra. Isto não acontece em mais nenhuma profissão. O objectivo, aqui, é ainda produzir um livro. Aqui não há produção de um discurso crítico sobre a arte e, como tal, as exposições são apenas acerca de pôr obras na parede. Não há o pensamento do porquê de estarem expostas, de como estabelecem um diálogo entre si, como se ligam ao que é produzido na China e como se articulam com o que se faz no mundo. A qualidade das obras depende de uma malha de referências em relação às quais se situam e que lhes permite produzir discurso crítico visual a um nível mais alargado. Foi neste sentido que quisemos fazer um catálogo que produza esse discurso crítico. É um livro com muito texto que nos permite, a longo prazo, escrever a história da arte contemporânea de Macau.

As preocupações da Babel associam a arte ao ambiente. Como é que se concretiza esta vertente?
Relativamente ao ambiente, acabámos de participar na produção do livro “Árvores e Grandes Arbustos de Macau”, de António Paula Saraiva. O lançamento está previsto para este mês. Trata-se de um livro técnico e é a mais completa compilação sobre as árvores de Macau, numa edição trilingue e com ilustração de artistas portuguesas. Os desenhos são feitos a lápis e aguarela. Originalmente, a intenção era a produção de 256 gravuras mas não houve orçamento para tanto. Já zemos uma exposição no Instituto Internacional, e os desenhos vão ser digitalizados e impressos em tela de modo a circularem pelas escolas de Macau. O objectivo é dar a conhecer os principais arbustos da cidade à população mais jovem. É uma forma de sensibilização para as questões ambientais. Macau é muito densamente povoado e construído, mas não conseguimos ver as árvores. Quando andávamos a fazer o livro era impossível fotografar as árvores inteiras. Há sempre muito ruído e as plantas estão cobertas de pó. Este foi o trabalho que abriu as hostes na área do ambiente.

“Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.”

Este ano tencionam criar uma instalação num espaço público em grande escala que conta com a participação de um arquitecto japonês. O que é que vai acontecer?
Na área da arquitectura temos o “Macau Arquitecture Promenade” (MAP) em que intervimos em espaços da cidade. É um projecto que não é tão linear quanto os anteriores. Enquanto o “Influxus” e o “New Visions” vão de encontro às linhas de acção governativa, o MAP vai mais à frente. Não é de nível. A edição de 2017 não está garantida. Temos o programa nalizado, mas ainda não temos orçamento suficiente para avançar. Contamos com a vinda de um artista japonês que resulta de uma parceria que a Babel tem com o Departamento de Arquitectura da Universidade de São José. Surgiu, desta forma, a possibilidade de trazer um arquitecto que trabalha com questões modulares no espaço público. Chama-se Kengo Kuma. Temos o arquitecto satisfeito com a ideia de cá estar e queremos também trabalhar com os alunos da universidade no desenvolvimento do design final da instalação. Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.

4 Mar 2017

João Palla, arquitecto: “Macau inspira brutalmente”

É inaugurada amanhã a exposição “Tracing * Liners”, de João Palla, na Casa Garden. Falámos com o arquitecto e multifacetado artista sobre a beleza de linhas pintadas no alcatrão, acerca de mosaicos urbanísticos, assim como da paradoxal relação entre os mimetismos e a autenticidade de Macau

[dropcap]D[/dropcap]e onde vem o nome desta exposição?
A exposição intitula-se “Tracing * Liners”. Baseia-se no ‘tracing’, que é o acto de delinear, o delineamento. São feitos pelos ‘liners’, os homens que fazem os traços nas estradas. De certa maneira, a exposição também é uma homenagem, um tributo, aos homens que fazem esse trabalho, que são bastante invisíveis na sociedade. Acabei por trabalhar com eles num sentido evolutivo, tudo começou com a observação da realidade das linhas que nos rodeiam. Uma pessoa todos os dias conduz e vê os traços contínuos, linhas amarelas, linhas brancas, por aí fora. Também no passeio há sinais que, ao mesmo tempo que nos guiam, também nos baralham. Uma pessoa vai ao aeroporto e também é bombardeado com sinalética, linhas no chão, não pode passar aqui, nem ali. Nos museus a mesma coisa, não se podem pisar as linhas porque se não fica-se demasiado próximo das pinturas. Alguém pensa nessas linhas, alguém as faz, comecei, simplesmente, a olhar para elas e achar que tinham qualidades gráficas e pictóricas muito especiais. Porque elas variam, se uma pessoa estiver na China elas são feitas de uma maneira, com um código próprio, mas se estiver em Macau elas são feitas com outra forma. Em Taiwan as linhas de proibição são desenhadas a vermelho, aqui são a amarelo. A tinta, em si, também tem muito que se lhe diga, precisa de ser aquecida a 300 graus para ser aplicada, tem cristais reflectores. Essas qualidades da tinta, e de quem a faz, interessaram-me muito e essa é a base da exposição.

Que suportes usou nesta exposição?
Uso a fotografia para registo, uso instalação na rua que, como não pôde ser transferida para a galeria, foi novamente fotografada. A fotografia volta com um sentido diferente, uma coisa é a observação do que lá está, outra coisa é o sentido de registo daquilo que foi feito. Depois há o trabalho que foi feito com os próprios homens que desenham as linhas, que se traduz em pintura e vídeo. São estes quatro veículos que foram usados para exprimir o conceito exposto, uns que ajudam à observação e outros que são de dispersão. 

Enquanto arquitecto, como vê a evolução de Macau?
Vivo cá há quatro anos e meio, estive cá nos anos 1980 e 1990. Sou, mais ou menos, daqui. Sou também, mais ou menos, dali. Em termos arquitectónicos e urbanísticos, não sendo demasiado saudosista, acho que muito do bom património arquitectónico de Macau acabou por ficar sucumbido. Aquilo que restou é uma arquitectura de cariz religioso, ou fortalezas, coisas mais institucionais. Da arquitectura civil pouco, ou nada, restou. Com a avalanche e o advento do betão dos anos 1970/1980, que ainda aconteceu nos anos 1990, a parte do património que era muito interessante, a escala da cidade, transformou-se por completo. Lamento, porque havia uma escala humana que hoje em dia não me parece tão sustentável e que tem implicações ao nível do clima e temperatura, dos ventos que acabam por não correr.

Mas nem tudo é mau.
Não, por outro lado Macau viu um desenvolvimento brutal que também tem lados positivos, que trouxe uma certa internacionalização ao território com pessoas com know-how. Pessoas que vêm de todo o mundo e que, neste momento, coexistem nesta terra, valorizam-na e têm iniciativas. Nesse sentido, acho que Macau melhorou. Mas se formos para os lados dos casinos, acho aquilo um absurdo. Não tanto a escala, mas a arquitectura que se fez, o mimetismo de coisas que já existiam, pastiches. Na minha escola de arquitectura nunca aprendemos a apreciar este tipo de atitude de projecto arquitectónico.

Como arquitecto europeu no Oriente, como é que coabita com as réplicas da Torre Eiffel ou, por exemplo, com a Doca dos Pescadores?
Não convivo muito bem, mas uma pessoa aprende a conviver. Mas, à partida, não é uma coisa com que esteja de acordo. Há aqui arquitectos e designers com criatividade suficiente que podiam ter tornado Macau numa cidade única, que já era, e não num sítio de repetições. Esse mimetismo, essa redundância é a tal ponto que julgo que os próprios chineses preferem ir aos sítios originais. Eles já têm poder de compra para ir às cidades originais, em vez de virem para aqui. Antes havia uma certa fantasia desses lugares, isso justificava-se, hoje em dia não se justifica de todo. Os chineses que podem não vão ao Venetian, vão a Veneza. Penso que as repetições são sítios que se vão esgotar e terão de ser reinventados mais tarde. Talvez tenham servido um propósito durante algum tempo.

Acha que Macau corre o risco de perder autenticidade, no meio desta mutação constante, ou isso é a sua própria identidade?
Uma das coisas que tem caracterizado Macau nas últimas décadas é a sua transformação rápida. A sua identidade depende disso, mas também das pessoas que cá moram. O que vemos hoje em dia é que Macau está a perder essa identidade também pelas pessoas que a habitam, não são só pessoas de cá.

Há um factor transitório na cidade.
Costuma-se dizer que Macau é um ‘melting pot’ de culturas. De facto, foi durante estes 500 anos, mas era a mistura da cultura portuguesa e da cultura chinesa, assim como de poucas outras que não tinham expressão. Hoje em dia há mais pessoas de várias nacionalidades que vivem em Macau. Mais tarde, ou mais cedo, também será interessante ver como as coisas se vão modificar, o poder de Macau se metamorfosear noutra coisa. Desse ponto de vista nada está perdido.

Tudo se transforma, uma espécie de Lei de Lasoivier urbanística.
O que está feito hoje não quer dizer que fique. Interessa-me muito ainda a questão do património vernacular, ou seja, tudo aquilo que as pessoas normais fazem pela sua própria cultura. Isso inclui os vendedores de rua, as farmácias antigas, as mercearias, a ourivesaria antiga já não existe, assim como o homem que fazia as sedas, o alfaiate. Este património pode ser engolido pelo fenómeno globalizante que está a acontecer um pouco por todo o mundo como, por exemplo, em Lisboa. Considero esse património a base da identificação e da autenticidade, esse valor diferente que Macau tem sente-se quando uma pessoa anda na rua e vê as pessoas que vendem maçãs. Esse aspecto está-se a perder, não está a ser cuidado, ninguém toma conta disso e isso é lamentável. Depois há as técnicas de construção tradicionais, algumas ainda se mantêm, como a construção em bambu que é um aspecto a valorizar, como é valorizado o fado. No fundo é um conhecimento empírico que vai de geração em geração. Se essas pessoas que sabem fazer hoje não passarem esse conhecimento, essa arte, também vai morrer. Trabalhei muito em bambu com os mestres carpinteiros, a fazer cenários para peças de teatro e instalações. Interessam-me estas artes antigas de como se fazem as coisas. Esta exposição, de alguma maneira, também está relacionada com isto. Qualquer dia também já não existem os homens que pintam as ruas, são substituídos por máquinas. Eles fazem aquilo manualmente, quase à unha, pintam delicadamente.

No meio disto tudo, Macau ainda é uma cidade que o inspira?
Inspira brutalmente, porque Macau é uma cidade onde há muitas actividades de rua, pessoas de passagem, onde ainda há muita tradição, muitas sobreposições. Além disso, é uma cidade muito fotogénica. Há sempre motivos para uma pessoa se inspirar aqui. Não preciso de ir a lado algum. Macau é uma terra suficientemente rica de sinais para extrair qualquer coisa, é uma cidade que inspirou, desde há muito tempo, artistas e acho que vai continuar a inspirar. Macau sempre teve muita diversidade. Vais à Praia Grande, que era a cidade onde viviam os portugueses, passas da cidade cristã para a cidade chinesa, onde é hoje em dia o Bazar e a Nossa Senhora do Amparo. Ainda hoje se consegue perceber pela textura da cidade, pelo desenho urbano, se vires o tamanho dos quarteirões, as ruazinhas em contraponto com as avenidas mais largas, isso é reflexo daquilo que já estava desenhado há muito tempo. Esse urbanismo é muito interessante, assim como o crescimento sempre evolutivo da cidade com os sucessivos aterros desde o século XVI até hoje, sempre em mosaico.

2 Mar 2017

Casa Garden acolhe exposição de João Palla

[vc_row][vc_column][vc_column_text]

Casa Garden

[dropcap style=’circle’]”T[/dropcap]racing Liners” foca os traços enquanto parte do espaço circundante e como objecto plástico. É assim um resumo possível para a exposição do arquitecto João Palla, inaugurada na próxima sexta-feira, às 18h30, na Casa Garden.

“Neste trabalho os traços são entendidos enquanto novas espacialidades onde se pretende atribuir um valor ao acto do delinear e um sublimar enquanto objecto plástico”, lê-se na nota de imprensa.

Para João Palla, “o desenho de uma passadeira é executado por linhas que são projectadas no pavimento, um pré-traçado para o posterior preenchimento com aplicação de tinta”. Estes traçados que apareceram nos Estados Unidos há cem anos mantêm os mesmos métodos de execução até aos dias de hoje e sofrerem raras alterações.

Esta invariabilidade de uma técnica, descrita como “quase artesanal”, conflui “num diálogo entre o desenho, a memória e a sua materialidade.” Por outro lado, “a não uniformidade de regras entre regiões do planeta resulta em situações sui generis muito diferentes”.

São os traços feios pelos seus desenhadores que João Palla vai apresentar de forma multidisciplinar, numa “relação entre pré-traçado e pintura final”.[/vc_column_text][vc_cta h2=”João Palla” h2_font_container=”font_size:33px|color:%23ffffff” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” shape=”square” style=”flat” color=”peacoc” use_custom_fonts_h2=”true”]JOÃO PALLA licenciou-se pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, tendo passado pelo Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza. Colaborou com o arquitecto Manuel Vicente em Macau e Lisboa entre 1990 e 1997. Como bolseiro da Fundação Oriente completou uma tese de investigação intitulada ‘Arquitectura de Bambu em Macau’. Em 2000, é um dos membros fundadores da Associação dos Arquitectos Sem Fronteiras Portugal. Completou o Mestrado em Design e Cultura Visual no IADE e o Doutoramento em Ciências da Arte na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Ensina no IADE desde 1999 e dedica-se à prática profissional enquanto arquitecto, fazendo incursões pelo campo das artes plásticas expondo ocasionalmente.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row]

1 Mar 2017

João Miguel Barros: “Olhamos muito, mas vemos muito pouco”

Por achar que já tem idade para mostrar a fotografia que faz, João Miguel Barros decidiu avançar para um livro e uma exposição. “Entre o Olhar e a Alucinação” está na Creative Macau a partir do próximo dia 23. É uma experiência sobre um caminho que o advogado quer fazer: ir deixando os processos para trás e apostar na curadoria, trabalhar em fotografia, pensar na estética da representação

[dropcap]C[/dropcap]omo é que começa a fotografia?
Já começou há muitos anos. Talvez nunca tenha tido a coragem de começar pôr as fotografias cá fora. Neste momento, é uma especialização de uma preocupação cultural que já vem do meu tempo da faculdade quando, na altura, com a minha mulher, fizemos a revista SEMA. O gosto pela cultura é presente, tem-me acompanhado ao longo da vida, embora tenha sido muitas vezes distraído pelas questões do Direito, ou mais pelas obrigações profissionais do que pelo gosto do Direito. Nos últimos anos, em especial depois de ter saído do Ministério da Justiça, resolvi assumir que a cultura era – e é – uma área do sentir e do conhecimento demasiado vasta. Portanto, dentro da cultura em geral, identifiquei a área de que mais gosto: a fotografia. Sempre fiz fotografia. Antes da fotografia digital, lembro-me de uma viagem à Índia em que praticamente fiz turismo através da lente das máquinas fotográficas. Chegava ao final do dia completamente estoirado de carregar máquinas e lentes, coisa que neste momento já não faço, porque aperfeiçoei a lógica de funcionamento. Tenho uma câmara mais pequena, com uma lente de 35 mm fixa, e sou muito menos intrusivo na recolha das fotografias. É um gosto antigo, uma prática que tem sido mais ou menos descontinuada ao longo do tempo, mas tem sido uma constante e uma preocupação. Acho que já tenho idade suficiente para poder começar a pensar em pôr cá fora estas fotografias. Mas tem também uma outra componente: tenho o desejo de, um dia destes, começar a afastar-me mais da advocacia, e criar uma pequena galeria e uma pequena editora só para a fotografia a preto e branco. E pensei que um bom exercício seria fazer a experiência de como é que tudo isto funciona a partir de mim próprio.

Daí a exposição e o livro.
Peguei numa pequena verba que pus de lado e disse assim: em vez de ir apostar em alguém, vou apostar em mim. E acompanhei todo este processo, na produção, na escolha dos suportes e do material para a exposição, fiz uma série de ensaios de impressão das fotografias em suportes diferentes, emoldurei de formas diferentes, para tentar perceber qual era o melhor caminho a seguir. Todo o processo de produção do livro foi mais ou menos equivalente. O livro acaba por ser também um desafio, porque fazer livros com uma dimensão como esta, de 30 cm por 23 cm, é um risco, apesar de tudo, porque as fotografias aguentam ou não. Mas o tipo de fotografia que faço aguenta mais facilmente num livro com esta dimensão do que se fossem fotografias que andam à procura de uma perfeição técnica que eu não acho ideal. Portanto, tudo isto acabou por ser um exercício de como fazer, à custa de mim próprio.

“Entre o Olhar e a Alucinação”. Que conjunto de fotografias é este? São imagens que não andam à procura da perfeição. Como é que se chegou aqui?
Chegou-se de uma forma um bocadinho acidental, mas foi a partir de uma reflexão do que é e do que pode ser a fotografia. É uma conversa que é preciso desenvolver e aprofundar. A minha preocupação com a fotografia não é apenas tirá-las, trabalhá-las e eventualmente poder ou não expor, e poder ou não publicar. Neste momento, queria desenvolver uma outra vertente, à qual dou muita importância, que é fazer a curadoria de projectos e isso implica pensar na fotografia como arte e pensar nos projectos como um conceito. Neste momento tenho um projecto aprovado, para um ciclo de fotografia contemporânea chinesa, que vai realizar-se em Portugal com três dos mais importantes fotógrafos chineses da actualidade, pessoas cujo trabalho admiro muito. Tenho já a confirmação de que o Instituto Cultural de Macau também vai apoiar este ciclo de três exposições individuais, que virão ao território depois, em 2018 e 2019.

E quem são estes fotógrafos?
A primeira exposição é de Lu Nan, um fotógrafo por cujo trabalho tenho uma admiração imensa. Demorou-me quase um ano a chegar até ele. Vai ser inaugurada em Lisboa em Julho deste ano. Depois, em Outubro, vai haver uma outra exposição que é de Rong Rong, um homem muito conhecido na fotografia contemporânea chinesa, também produtor e divulgador cultural, tem um centro de arte contemporânea em Pequim. O terceiro é um fotógrafo menos conhecido que tem um projecto sobre o Tibete que demorou quase dez anos a conseguir. Yang Yankang tem fotografias lindíssimas sobre o lado mais filosófico e espiritual do Tibete. São três caminhos na fotografia contemporânea chinesa que quis explorar, sendo certo que havia uma quantidade de outras pessoas. E, voltando ao princípio, este livro nasce também de uma preocupação de tentar perceber qual é o caminho que quero explorar relativamente à fotografia.

Podemos dizer que este livro é um ensaio?
De algum modo, é uma experiência e que parte de um princípio que está contido naquela frase de Barthes, que é o mote da exposição, quando basicamente diz que as fotografias não precisam de ser chocantes, o que precisam é de fazer as pessoas pensar. Isto leva a que nós pensemos também como é que encaramos a fotografia como uma estética de representação. Se é uma estética de representação, significa que podemos olhar para uma fotografia de per si ou temos de seguir a corrente tradicional ou politicamente correcta dos trabalhos das pessoas mais conhecidas, que assentam na ideia do storytelling, de contar uma história? Está muito instalada a ideia de que as fotografias contam histórias e que os projectos fotográficos são verdadeiramente importantes, ou mais importantes, quando são capazes de contar histórias.

Como se a fotografia enquanto forma de arte tivesse de ter alguma coisa de fotojornalismo, no sentido da construção de uma narrativa.
Pode confundir-se dentro dessa via, sendo certo que o fotojornalismo tem uma representação da realidade que não permite a deformação dessa mesma realidade. O storytelling pode ser já uma alucinação da realidade e é legítima como forma de contar uma história. Com esta experiência, o que quis tentar foi perceber se é possível ou não juntar várias fotografias que nada têm que ver umas com as outras, apesar de, neste conjunto, haver vários subconjuntos que estão relacionados. O próprio título faz parte de um tríptico que vai estar apresentado na exposição. Há mais dois conjuntos, a que chamei “Night Vision I” e “Night Vision II”, que também são mini-séries de uma pequena história quase sem história. Mas o importante era testar a ideia se é, ou não válido, juntar fotografias que, de per si, possam ser uma história, mas uma história que não induza quem a vê num determinado percurso de interpretação. É engraçado olharmos para as fotografias e pensarmos que elas foram congeladas no tempo. Quando olhamos a realidade a passar dinâmica à nossa frente, certos momentos que são congelados têm um significado diferente do que teriam inseridos nessa sequência normal da visão.

Mas há sempre a possibilidade de se inventar uma narrativa…
Este livro tem uma intenção e tem muitas narrativas. Não é por acaso que as fotografias estão todas sequenciadas e que vão todas ao corte, sem nenhuma paginação especial que as tente influenciar. Não é por acaso que foram alinhadas desta maneira, e isso dá-lhes uma narrativa. Dou dois exemplos: há um contraste entre pessoas, situações e lugares; pelo meio coloco várias fotografias de escadas, que são simbolicamente a ideia de que nós, na vida, gostamos ou deixamos de gostar, vamos por um lado ou podemos ir por outro. O desafio que se coloca a quem vê o livro é saber se gosta deste caminho ou se não gosta, a escada está lá para subir e para descer. O livro acaba, também intencionalmente, com uma fotografia, sem nenhuma outra na página ao lado, de um rosto muito marcante de um homem velho, mas que tem um sinal de esperança, que é o facto de estar a rir. Este livro tem uma intenção – o modo como foi pensado – e pode ter muitas narrativas.

Quem for ver a exposição ou pegar no livro encontra várias imagens captadas no contexto em que vivemos. Para a escolha destas fotografias pesou o factor cidade ou isso não entrou no critério de escolha?
Não entrou. O meu critério de escolha foi o gosto pessoal, de adesão ou não a uma determinada fotografia, a um determinado contexto, ao modo como a fotografia é enquadrada na página ou na moldura.

Mas há uma relação com a cidade que acaba por transportar, até porque vive cá há muitos anos.
É inevitável. Dou comigo a pensar se o facto de vivermos aqui há tantos anos – de lidarmos tanto com estas pessoas, com estas situações, as cozinhas mal-arranjadas, os ambientes às vezes muito hostis – também não faz com que não tenha já capacidade de olhar. E isto é uma coisa que me preocupa. Por isso é, quando olho para Macau como lugar para fazer fotografia ou para registar momentos, tenho sempre um certo medo de não ser capaz de olhar da forma correcta, porque já nada me surpreende. E quando tiramos uma fotografia, do mesmo modo como queremos que essa fotografia surpreenda – como diz Barthes, que faça pensar –, também temos de ser capazes de nos podermos surpreender com aquele momento que estamos a registar. Confesso que, por uma certa saturação em relação à cidade, por já estar a viver em Macau desde 1987, sou capaz de já não ter bem essa capacidade.

Mas a lente, ainda assim, ajuda ao enquadramento, ao exercício do foco sobre algo que a olho nu nos pode escapar.
É a tal ideia de que uma fotografia congelada no tempo pode ter uma leitura que é completamente diferente dessa fotografia inserida num movimento real em que as coisas acontecem. As máquinas fotográficas são formas de seleccionar a realidade, já por si, e eu em cima disso ainda agravo a situação, porque é raro o caso em que não faço um crop da fotografia. Gosto de fazer crops das fotografias – tenho amigos que dizem que isto é desvirtuar a realidade. Mas a máquina já desvirtua a realidade, porque vai só buscar um bocadinho. Os lugares são relativamente importantes no contexto deste projecto, sendo certo que, muitas vezes, uma pessoa sente-se mais motivada para dirigir a máquina para sítios que são uma surpresa do que propriamente para locais que vemos todos os dias e que já não temos capacidade de ver. Realmente, há uma grande diferença entre olhar e ver, e este é o problema dos nossos dias, é o problema da nossa civilização: olhamos muito, mas vemos muito pouco. A fotografia, congelando momentos que, para nós, são significativos, é uma forma de ajudar a ver determinado tipo de realidades. Olhamos para algumas fotografias, como as que estão aqui [no livro], de pessoas. E é legítimo perguntar o que é que esta pessoa estava a fazer antes e o que estava a fazer a seguir? Esta pessoa está neste contexto, que não se percebe muito bem, porque a fotografia está muito cropada, não tem propriamente todo o seu ambiente à volta, mas qual era o contexto em que se estava a mover quando foi fotografada? Há outras questões mais teóricas que têm que ver com fotografia.

A questão da estética da representação.
É o que procuro, e também tentar perceber como é que consigo apurá-la, sendo certo que há muitas estéticas de muitas representações. Uma coisa sei que não quero, que é a técnica da representação, que é uma coisa completamente diferente: aquela fotografia muito bonita, tecnicamente supercompetente. Há um fotógrafo que tem um trabalho admirável, num campo completamente diferente, o Erwin Olaf, que teve uma exposição aqui na Casa Garden. É um fotógrafo fabuloso, que vem da fotografia de moda. Todas as fotografias que faz são encenadas, são pensadas ao milímetro. Um dia, contou-me que há fotografias, que eu pensava que o ambiente natural era um hotel onde punha os seus figurantes, em que os cenários são todos construídos por ele. Essas fotografias têm obviamente uma história para ele, mas são fotografias tecnicamente representadas, há uma representação técnica da realidade, evidentemente com muita criatividade. Não procuro nada disso, porque acho que os critérios de avaliação das fotografias nos tempos que correm já não passam pelo lado técnico, porque a fotografia deixa de ser um meio para passar a ser um fim. Quando a fotografia deixa de ser tecnicamente um meio para mostrar qualquer coisa – que passa a ser acessória, porque o meio é que é importante –, neste caso já temos a possibilidade de olhar para a fotografia e achar que os meios passem a ser acessórios.

Onde fica a advocacia, no meio disto tudo?
Como não sou rico, tenho de trabalhar, tenho de fazer advocacia. Mas já tenho 58 anos e acho que já tenho o direito de começar a fazer menos advocacia e a fazer mais aquilo que me realiza pessoalmente. Já estou na advocacia há muitos anos, já passei por processos complicados e já tenho a minha dose que chegue de descrença relativamente ao sistema. E em Macau é fácil ter-se descrenças em relação ao sistema. Entretanto, tenho tido oportunidades na vida, como foi a última experiência que tive em Portugal no Ministério da Justiça, de ser parte activa em projectos de reforma significativos, como foi a questão da reforma do sistema judiciário. Mas também isso me deixa, apesar de tudo, um certo amargo de boca. Não sei como explicar. Sou muito devotado ao serviço público no sentido de me dar a ele, passe o auto-elogio, com alguma generosidade. Isso tem-me prejudicado. Aconteceu no princípio dos anos 2000, quando fui para a Ordem dos Advogados, e depois quando fui para o Ministério da Justiça, quando estourei completamente a possibilidade de fazer advocacia em Portugal porque me dediquei a um serviço público. Mas realmente, o sistema judiciário, tal e qual como está montado, é muito conflituante de interesses e, às tantas, é uma máquina trituradora muito complicada. Quando verdadeiramente me consigo libertar, e fugir um bocadinho, é ao ir por este caminho da fotografia, porque também se não o tivesse era capaz de morrer mais cedo e muito mais frustrado. Acho que tenho de dar continuidade a este projecto, tentando avançar para outro livro, dentro da mesma linha, possivelmente. E avançar também nos trabalhos de curadoria, porque há necessidade de darmos a conhecer muito trabalho que está a ser feito por aí. Na Ásia – na China e no Japão, que é uma fotografia que me tem influenciado muito –, temos gente a fazer fotografias de uma forma absolutamente deslumbrante e magnífica.


O desconcerto

[dropcap]H[/dropcap]á um chão, um chão de relva, e há um corpo estendido, aconchegado, num agasalho que inclui um capuz. Está ali um olhar que fixa a lente e que não se percebe o que diz. É um olhar enigmático, entre a surpresa, a solidão, o sono, o abandono. Ou talvez apenas a preguiça, o embalo, a fruição de qualquer coisa que aquela lente não nos quis mostrar. Não sei de quem são estes olhos, onde estavam eles deitados, se quiseram ali estar ou se ficaram assim por falta de opção. A imagem não me diz nada mais sobre este olhar. Viro a página e o resto da história não está lá, porque não é para estar.

Este livro é feito de imagens soltas que se entrelaçam, se se tiverem de relacionar. Às tantas, não é preciso andarmos constantemente à procura de uma história, nós que vivemos com pressa para chegar ao fim de qualquer coisa. Às tantas, é este o princípio esquecido da fotografia: o que há para ver é o que está naquele rectângulo, o que parou no tempo daquele modo, naquele momento, e o resto nada interessa. Às tantas, é só assim, tão simples e, sim, tão complicado, porque aquele olhar fixou-me também.

Viro a página e há outra história qualquer. E mais outra. E há umas escadas. E outras, tantas escadas para subir e descer, uma vertigem de imagens que são densas, escuras, neste livro há muita noite, pouco dia, talvez não pudesse ser de outra maneira. Chego ao fim e há um sorriso, um sorriso velho e desdentado, um sorriso sincero e malandro, como que a ler o que me vai na alma. O desconcerto. Este livro é um desconcerto. Não podia ser de outra maneira.

O livro é de João Miguel Barros, advogado, homem há muito ligado às artes, às letras, às publicações. O nome escreve-se nos jornais sobretudo por causa de outras causas, de outras palavras, do mundo mais encenado que cabe nos códigos e nas leis, nos órgãos de investigação criminal e nos tribunais, nas críticas e no cansaço, nos culpados e nos inocentes. Desta vez, o nome escreve-se nos jornais porque não há história, são muitas histórias, e não há palavras, só imagens.

Construímos mundos e é neles que nos movimentamos, num entediante exercício ao qual demos o nome de quotidiano. Andamos sempre à procura de uma história, nós que vivemos com pressa para chegar ao fim do texto, ao fim do livro, ao fim da rua. “Entre o Olhar e a Alucinação” é um convite a uma paragem, é uma descida vertiginosa ou uma escalada penosa, é um desafio para uma certa solidão. É um desconcerto, daqueles que fazem bem no meio do ruído dos dias. E depois são os olhos que se fixam, porque aquele olhar fixou-me também.

16 Fev 2017

Pintura | Inaugurada amanhã a exposição de Manuela Martins

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om uma vida recheada, Manuela Martins foi professora de meia Macau, viveu em Moçambique, constituiu família, mas apesar das trocas de continente teve sempre uma constante na sua vida: a pintura. Já com idade avançada, 84 anos, e com problemas de saúde, não pudemos chegar à fala com a pintora. Como tal, falámos com um dos seus filhos, Rui Calçada Bastos, artista plástico, que organizou a exposição. O público poderá ver uma selecção de peças que a artista tinha em casa, desde quadros de 2009 até mais recentes “da última vez que esteve cá, mas sempre muito direccionadas para temas relacionados com Macau”, explica o filho. Entre os quadros escolhidos há retrato do emblemático Padre Teixeira, o que vem de encontro ao modo de pintar de Manuela Martins, retratar aquilo que vê pelos sítios por onde vai passando, daí o nome da exposição: Observações.

Quem se deslocar à Casa Garden poderá ver entre 25 a 28 telas, no habitual óleo que caracteriza a carreira da pintora. Enquanto deu aulas em Macau, Manuela foi expondo com regularidade, todos anos havia sempre algo a apresentar. Mesmo hoje, com 84 anos, continua com uma produção considerável. “Isso já vai muito além dos conceitos, se é arte contemporânea, ou não, já não interessa muito, acho que é mais a demonstração de acreditar na pintura e de manter uma enorme curiosidade no olhar”, comenta o artista plástico.

Traço de uma geração

Com uma formação muito académica como artista, fiel ao óleo sobre tela e às representações figurativas, Manuela Martins faz parte da geração que estudou nas Belas Artes nos anos 50. Colega de artistas conceituados como Lourdes Castro e José Escada, Manuela trilhou um caminho diferente, não inteiramente dedicado às artes. “O que aconteceu com a minha mãe foi ter mudado de vida várias vezes, foi viver para Moçambique, apaixonou-se, teve filhos, tudo rumos complicados para uma carreira artística”, explica o filho. Ao contrário dos seus colegas que investiram a sério numa carreira, Manuela seguiu a vida “normal” de uma mulher. Para Rui Calçada Bastos, a mãe poderia ter chegado a outro patamar de visibilidade, se tivesse apostado apenas na pintura. No entanto, a vida deu-lhe experiência que se reflecte na sua arte. “Sempre foi honesta consigo própria, pintando aquilo que via”, explica o filho, e organizador da exposição, acrescentando ainda que acha que a mãe deixa um legado genial, porque tem “pinturas dos costumes africanos dos anos 50/60, e depois a visão que ela teve de Macau”.

“A minha mãe foi o trigger disto tudo, eu cresci a vê-la pintar”, conta o artista plástico. Dos quatro filhos que Manuela teve, Rui foi o que decidiu também abraçar as artes. Foi pelo pincel da mãe que percebeu “que há coisas no mundo externo que não estão lá ao primeiro olhar, essa curiosidade foi ela que me imprimiu”, explica. Certamente que Rui não será a único a ser inspirado por uma figura incontornável desta cidade, de alguém que transformou a sua visão de Macau em arte.

23 Jan 2017

José Drummond, artista: “Não tenho problemas em olhar ao espelho”

Fotografia, vídeo, instalações e também poesia. José Drummond apresenta hoje na Casa Garden “I’m too sad to tell you”, uma exposição que é um exercício de reflexão sobre o desencanto e a ausência do outro. Ao HM, o artista fala de influências, de pós-colonialismo e do que é isto de se viver numa terra a que não se pertence, correndo o risco de perder as raízes

[dropcap]O[/dropcap] que é que podemos ver nesta exposição?
A exposição chama-se “I’m too sad to tell you”, que é o título de um vídeo de um artista holandês, chamado Bas Jan Ade, dos anos 70. É um vídeo muito famoso na história da videoarte. Ele está permanentemente a chorar, em angústia. A arte interessa essencialmente à arte e, apesar de a arte estar cada vez mais próxima da sociedade em que é feita e de reflectir cada vez melhor os problemas que lhe estão à volta, o ponto de partida e o de chegada são sempre no domínio da arte. Todos os trabalhos que estão em exposição têm quer ver com o estado de desencanto, tristeza, ausência do outro. A exposição tem uma peça central – uma instalação vídeo –, três séries de fotografias que se estendem pelas restantes salas e há outros objectos pontuais que ajudam a criar aquilo que, de início, pensei para esta exposição. Tentei criar algo que não fosse só pendurar umas coisas na parede, mas que pudesse envolver a audiência de um modo diferente, obrigando-a a ter uma atitude quase participativa pela forma como poderá descobrir os trabalhos.

A arte interessa essencialmente à arte, mas também lhe interessa, enquanto artista, chegar a um público.
É o público que, no final, faz o trabalho. É só quando o artista decide que vai mostrar o que fez, e entretanto tem um público, que o trabalho se completa. Se não houver isso, o trabalho não passa de algo que aconteceu dentro do estúdio ou de uma ideia qualquer dentro de uma cabeça qualquer que não foi dita e que, depois, pode ser esquecida. Nesse sentido, é sempre o público que valida a arte e é isso que faz com que seja uma coisa tão importante, porque cada pessoa pode fazer a sua interpretação e podem criar-se narrativas muito mais para além do que a narrativa inicial do artista.

Dizia também que a arte está mais próxima da realidade que a rodeia. Neste trabalho, em que foca a angústia, o desencanto, a solidão, há um reflexo da sociedade em que vive?
De há uns anos para cá que o meu trabalho se alterou profundamente, no sentido em que comecei a fazer parte do meu trabalho. Especialmente nos trabalhos em filme ou em vídeo, passei a fazer de personagem dentro dos meus trabalhos. Nessas narrativas, existe quase uma tentação pós-colonialista, há sempre a imagem do ocidental seduzido pela Ásia e que quer fazer parte de um mundo que não é seu. Isso é muito evidente no vídeo da máscara chinesa, como era na série “O Intruso”, e é também evidente agora, embora as narrativas andem à volta do falhanço, da ausência do outro, e haja mais personagens. Deixou de ser de mim para mim, passou a ser de mim para qualquer desejo continuado de fazer parte dessa sociedade e a impossibilidade, ao mesmo tempo, de fazer parte dela. Embora não esteja objectivamente a apontar problemas sociais ou políticos, algumas coisas importantes da nossa sociedade estão subtilmente reveladas lá.

Um exemplo?
O feminismo. Digo isto muitas vezes: o feminismo é o ‘ismo’ mais importante dos últimos 50 anos e continuamos a ter esta enorme incapacidade de tentar um equilíbrio entre as mulheres e os homens. Continua a ser um mundo de homens e as mulheres continuam a não ter as mesmas oportunidades, sujeitas a condições de bonecas. Nestes últimos anos, houve um crescendo da ideia da mulher perfeita enquanto boneca nas capas das revistas, e a mulher real é cada vez mais sujeita a ter de se formatar a determinados modelos para poder existir dentro da sociedade. Esse problema existe nos meus trabalhos mais recentes, sendo que não digo ‘é isto’, correndo até o risco de ser mal compreendido, porque isso também é importante. Tento que a coisa seja ambígua: ‘Será que é a mulher que é o objecto ou é o sujeito?’. É uma das preocupações dos meus filmes: na realidade, o objecto sou eu e não as mulheres. Elas são o sujeito. Essa ambiguidade também me interessa.

Tem uma forma crítica de olhar para o seu trabalho, no sentido em que o analisa para identificar uma presença numa sociedade na qual não é um elemento natural. E faz referência ao pós-colonialismo. Como é que acontece este exercício de desconstrução?
Não tenho problemas em olhar ao espelho, aliás, os espelhos fazem parte do meu trabalho. Nesse sentido, também digo muitas vezes que os meus trabalhos são existencialistas, não exclusivamente por uma via do existencialismo tradicional do Sartre ou de Heidegger, mas um existencialismo beckettiano, kafkiano, onde a coisa é psicológica. Não tenho problemas em olhar ao espelho, da mesma forma em que não tenho problemas em autocriticar-me, sendo que isto não é forçosamente mau. O pós-colonialismo, no meu trabalho, é uma camada que quase poderíamos considerar que está virada ao contrário. Aquilo a que se chama pós-colonialismo resultou do facto de uma série de escritores e de artistas ter começado a virar os olhos para África, chamando a atenção para esse mundo e para os seus problemas. Ao utilizar a palavra, é porque estou a fazê-lo ao contrário. Não estou a chamar a atenção para os problemas da Ásia, até porque só agora é que se fala de Macau como colónia. No tempo da Administração portuguesa era proibido falar de Macau como se fosse uma colónia, escreveu-se sempre como sendo ‘o território’. Foi através da língua inglesa, no pós-transferência, que se começou a ver mais o termo ‘colónia’. Também a China não assume que tenha sido alguma vez colonizada, pelo que há aqui um problema que também acho interessante. Ao utilizar o termo, estou a forçar a nota de que houve aqui qualquer coisa. Estou a tentar baralhar as cartas e a tentar apresentar as coisas pelo outro lado. Neste factor, sou muito influenciado por vários autores e alguns têm coisas comuns – uma delas é o isolamento. Essa é também uma condição dos ocidentais que estão na China. Poderá não se sentir tanto em Macau porque a comunidade portuguesa é, ainda assim, bastante grande e entreajuda-se, mas quando se vai para dentro da China existe um isolamento maior, com a sua carga de solidão e com a questão do sentido da existência. Há um problema de existência, na medida em que não se sabe de onde se é e de se começar a perder as raízes por se querer fazer parte de qualquer coisa.

Sente isso? Veio para Macau há já muitos anos. Começa a sentir as raízes distantes e, ao mesmo tempo, que não pertence aqui?
Sinto essa batalha quase diariamente, com a agravante de ter feito a parte mais importante da minha educação em inglês, e de ler e escrever muito em inglês. É quase a minha língua diária. Enquanto pessoa e autor, torna-me ainda mais fragmentado. Um dos aspectos que os curadores em Berlim e Nova Iorque apontam no meu trabalho é precisamente esse nível de fragmentação e de os trabalhos serem um híbrido estranho, porque já não são ocidentais, mas também não são asiáticos.

Esse estado de fragmentação acaba por ser uma ajuda à forma como se expressa do ponto de vista artístico, ainda que de modo inconsciente?
Não sei. Há coisas que podemos escolher como é que as fazemos, mas há outras que não necessariamente, que nos acontecem e levam-nos a tomar decisões em função daquilo que nos aconteceu. Essa fragmentação não é uma coisa forçada, não penso muito nela, mas se olhar para determinadas coisas que me interessam ao nível das artes, na literatura e no cinema, os autores que mais me influenciam fazem parte de uma escola qualquer de fragmentação. Se calhar é natural, por ser o rio ou a corrente onde estou.

E que influências são essas?
Não quero saber muito daquilo que se passa na arte contemporânea, para não ser influenciado por ela, porque sinto que as minhas influências maiores vêm do cinema e da literatura. Quando estou muito chateado, enfio-me em casa e ponho-me a ver Fassbinders atrás de Fassbinders. Há pessoas que comem gelado, outras bebem whisky, eu vejo Fassbinders. E não me canso de ver sempre os mesmos, apesar de Fassbinder ter uma obra vasta. Há qualquer coisa que me atrai especialmente, e penso que as pessoas vão sentir isso na exposição, que é uma tentação de teatro. Fiz cenografia quando era muito novo, estudei cenografia e trabalhei no Teatro Aberto em duas ou três peças, e o teatro, nestes últimos dez anos, reapareceu no meu trabalho de uma forma que nunca imaginei que pudesse ter tanta importância. Não só as séries fotográficas são encenadas, como os vídeos são encenados. É tudo forçado e, nesse sentido, é um bocado como Fassbinder, que levava a tragédia e o drama de várias questões, mas fazia-o com uma classe e, ao mesmo tempo, com uma rudeza que me interessa muito. As pessoas, vulgarmente, apontam os filmes dele por outras razões completamente diferentes e dizem que é um autor político, mas o que me fascina mais é a forma como os seus personagens são sempre derrotados, falhados, e há em todos eles uma história de amor. Poder-se-á dizer que são clichés, mas são esses clichés que fazem com que a obra dele seja realmente imortal. São os mesmos clichés do Bergman, por exemplo.

São os clichés das pessoas.
São os clichés dos humanos. Nesse sentido, há outro fundamental para mim, que é Beckett. Sendo uma coisa ainda mais desconstruída do que Fassbinder, Beckett é quase como se fosse um bocadinho de Bergman e de Fassbinder, mas fá-lo pela ausência e pela repetição. A repetição é muito importante, porque a vida é feita de repetições e é nelas que vamos alterando e falhando. E, de repente, temos a morte, que é um ponto comum entre estes três autores que aqui temos. É o destino final, o que me leva filosoficamente a pensar se não será a morte a grande realização, sendo que nunca podemos falar sobre ela, porque é sempre demasiado tarde para falarmos sobre a nossa morte.

Esta exposição é organizada pela Babel. Como é que está a ser esta parceria?
A Babel é uma associação fantástica. Tem conseguido fazer coisas impressionantes para o mundo de Macau. É, talvez, a associação que tem a perspectiva mais contemporânea, ao tentar criar diálogos sobre arte contemporânea que são os mais importantes do momento. Todo o trabalho que tem feito também ligado à educação faz com que se esteja a tornar numa das associações mais importantes do território. A minha experiência está a ser óptima. Tanto a Margarida Saraiva, como o Tiago Quadros têm um conhecimento bastante vasto sobre arte contemporânea e acaba por ser mais fácil trabalhar com pessoas que sabem o que estás a dizer. Depois, é difícil recusar a oportunidade de poder expor na Casa Garden, de ter aquele espaço todo para fazer uma exposição. Estou a gostar imenso de trabalhar com a Margarida Saraiva enquanto curadora, porque dá bastante espaço ao artista para que ele se encontre. Vai sugerindo coisas mas tem uma capacidade de diálogo bastante interessante.

20 Jan 2017

Alexandre Marreiros, arquitecto e artista: “Macau é como uma tela de cinema”

É hoje inaugurada no Centro de Indústrias Criativas a nova exposição de Alexandre Marreiros, Tropicalia Club. Começámos a falar de arte e acabámos por escalpelizar os vários aspectos de Macau, do paradoxo cultural e arquitectónico, ao carácter dinâmico de uma cidade que não pára

[dropcap]O[/dropcap] que nos pode dizer acerca da exposição que inaugura hoje?
Fecha um ciclo de exposições que fiz no último ano e meio. Fiquei numa espécie de um vazio, de ressaca, houve uma data de ideias que aconteceram e que consegui traduzir para desenho. Adoro o vazio, não envolve qualquer tipo de angústia. Dei por mim a vasculhar o arquivo à procura de coisas que estavam esquecidas. Para esta exposição imaginei um clube, ou grupo de indivíduos que se associam livremente, que têm ideias comuns, ou não, e que podem discutir coisas semelhantes. Mas isto passa-se no meu imaginário, já não posso falar com o Oscar Niemeyer, ou perguntar alguma coisa ao Ortega Y Gasset porque ele também não está vivo. Portanto, reúno estas personagens que existiram neste clube imaginário. Existem também coisas que são observações minhas desta cidade, traduzidas em desenho, isto porque sinto algum tropicalismo em Macau, que não consigo explicar.

Com o que é que o público pode contar?
Quando se expõe uma coisa, quando se traduzem ideias para música, para cinema, pintura, escultura, arquitectura também, isso é um dos maiores exercícios que podemos fazer, não só sensorial, mas também cerebral. Contar tudo aquilo que vou ter na exposição, para mim não faz tanto sentido, porque estou a desautorizar aquilo que exponho. Se explico já o que é, perde o propósito da exposição, que é lançar pistas, indicar caminhos, lançar dúvidas. Isso tem de ficar ao critério do observador, e não quero condicionar isso.

Macau está carregada de paradoxos. Como é que os sente?
Sempre me acostumei a ver as transformações de Macau, desde pequenino até agora. As cidades têm capacidades de contar histórias, tal como o cinema, ou qualquer outra vertente artística. Também existe pouca arquitectura que partilha territórios e domínios da arte. As coisas que sinto com música, com pintura e escultura, já senti também com edifícios. Mesmo quando a arquitectura é má, não competente, ela conta estórias, tem sempre coisas codificadas, ou que ajudam a descodificar estórias da tua cidade, e de quem a habita. Em Macau isto existe, sobretudo porque é uma cidade pequena, e eu consigo ainda ter alguma leitura, descodificar algumas histórias que esta cidade me vai contanto e que acho bonitas.

Mesmo com as incongruências urbanistas?
Se passearmos por Macau conseguimos ver as evidentes cicatrizes que marcam a cidade. Quando digo cicatriz pode ser estar num bairro com uma certa característica, olhar e ver um casino ao fundo, ou ter em muitos sítios a referência do Grand Lisboa. Tem muita informação por centímetro quadrado, não é por quilómetro quadrado. Portanto, às vezes é difícil sacudir o que é bom do que é mau, mas a verdade é que a cidade é sincera no sentido em que é desenhada. Não foi planeada durante muitos anos, mas conseguimos ver o que é o casco antigo da cidade. Mesmo o tempo pode revelar algo que não se via à partida. Por exemplo, o NAPE começou por ser considerado um desastre. O próprio Siza Vieira, que o desenhou, assume aquilo como algo fatal, mas eu gosto. É preciso deixar o tempo ser conservado na cidade, ele faz este afastamento com o casco antigo e com o emaranhado de Macau. Siza não quis ir atrás do que já existia, os tempos e as necessidades mudam, portanto, a cidade tem de acompanhar isso. Macau conta-te 500 anos de terra conquistada ao mar, e tu percebes o que é que é mar, aterro, ou casco antigo, o que é colina. E esta história é perfeitamente lida no desenho que a cidade tem, com todos os seus problemas, que são vários.

O que acha do discurso da descaracterização e do progresso que atropela tudo?
Macau depende inteiramente da indústria do jogo. A partir do momento que consigamos perceber que esta é a realidade, veremos que isto dita regras muito diferentes da maior parte das cidades do mundo. Ainda assim, o progresso deve ser planeado. Caracterizar é acrescentar uma qualidade, ou identidade, obviamente que há patologias, anomalias, não poderemos achar que isso é progresso. Aliás, ao passearmos no Porto Interior e no Porto Exterior há ali edifícios que gritam, berram, e descaracterizam o que já lá estava. Havia ali décadas, se não séculos, de um espaço que se mantinha com aquele desenho, com aquele ambiente, quase espremido pelas ruas apertadas. Acho que isso não é progresso.

É necessário um cuidado planeamento urbano.
O planeamento é importante. Se pensarmos que uma pessoa tem um lote e o regulamento permite ao lado de casas de cinco pisos a construção de um prédio de 34 andares, isto é o dinheiro a falar, e ele fala em todo o mundo. Mas isto acontece porque se permite, o erro aqui não é de quem quer fazer dinheiro, o que está mal é o regulamento permiti-lo. Hoje em dia não pensamos como pensávamos há 60 anos, o Homem já não é isso, nem a cidade, nem a família, assim como os turistas já não são meia dúzia. Há que actualizar e planear e, agora como arquitecto, vamos ver o que se faz com os novos aterros.

Também apareceram projectos que melhoram a cidade.
Uma coisa boa é este vazio que temos aqui nos Lagos Nam Van e Sai Van. Isto permite que não haja construção, houve este plano, a leitura certa de para onde Macau ia crescer, como ia crescer, e isto só podia ter sido feito por uma pessoa que entende bem a cidade, neste caso foi o arquitecto Manuel Vicente. Do ponto de vista arquitectónico houve projectos que vieram acrescentar zonas pedonais, o que é importante. Importa tirar os carros das principais artérias de Macau, e dar espaço. Isto traz qualidade de vida.

Deixar respirar a cidade que já tem um ritmo acelerado.
Sim, repare que esta cidade é como assistir a uma tela de cinema, é tudo em movimento. Não temos tempo para parar, e mesmo que pares, teremos 300 pessoas que nos vão atropelar. Não podemos querer que a cidade tenha outra leitura, quando vives numa cidade sempre em andamento. Nem sequer estou a falar em andar a pé, mesmo de carro. Passamos por várias imagens em sucessão, como no cinema, e sempre carregadas de informação. Macau já não é uma cidade em que o tempo de estar seja muito predominante, é tudo a correr. Depois, também não consegue descodificar, parar, olhar para alguma coisa que lhe chame a atenção, ou que o intrigue, não tem condições para o fazer.

Acha que faltam espaços de reflexão na cidade?
Se olharmos para as praças de Macau não reconhece o que deveria ser uma praça, mesmo as que não têm carros. A praça, como no conceito grego de ágora, são sítios de permanência, servem para ficarmos. Uma praça e um cruzamento são duas coisas diferentes e repare como as praças aqui também são descaracterizadas, não por questões de falta de qualidade arquitectónica, mas porque não existem instrumentos para tornar a praça o que ela é realmente: um sítio de permanência, onde se pode estar à sombra, onde se pode estar no Verão, no Inverno, permanecer, olhar, conversar.

Macau está a perder a sua identidade?
Existe o receio de perda de identidade, há probabilidades de, a longo prazo, aquilo a que se chama de cultura macaense se ir diluindo. Mas não creio que isso tenha de ser uma espécie de Adamastor, é muito importante haver identidade, preservarmos a nossa herança, mas acho que se faz algum esforço aqui para se tratar bem a memória. O facto de Macau ter sido classificado como património da UNESCO é uma maneira de proteger e preservar, portanto, os líderes, se quiserem que isto se mantenha, têm de seguir aqueles trâmites todos. Mas é importante a identidade não ficar estagnada, a identidade é um organismo, temos de aceitar isso. O que podemos fazer é encaminhar esse organismo da melhor maneira. Por exemplo, não faz sentido estarmos aqui com atitudes colonialistas, essa é uma identidade que felizmente já não existe. Não vejo razões para não haver abertura à transformação da identidade, isso seria condicionar a liberdade e a criatividade.

Quais os seus lugares preferidos na cidade?
Depende muito do estado de espírito com que estou, e aquilo que vou fazer. Mas gosto muito de passear e de me perder, e ainda consigo fazer isto em Macau, sobretudo no Porto Interior e Porto Exterior. Por lá ainda consigo descobrir coisas que não conhecia. Gosto do ambiente de doca, gosto de confusão, de estar entre as pessoas dos ofícios, os pedreiros, os pescadores, a senhora que frita e a senhora que lava. Porque, de alguma maneira, é aí que está conservada essa parte de Macau. Ao passear nestas partes, que também acho muito cinematográficas, que são muito intensas na maneira de estar, de ser, de viver a arquitectura, encontram-se muitos velhotes que falam português. Isso é uma coisa muito bonita.

Gosta do burburinho.
Mas também preciso de vazio, que só consigo se for para Coloane. Gosto de sentir esse isolamento, nem que seja por meia hora, mas também não é um sítio onde queira permanecer por muito tempo. Talvez por ser arquitecto, gosto da cidade, preciso de levar com este tipo de informação urbana. A rua onde eu moro é violentíssima, vivo no epicentro da confusão. Se me perguntares se preferia dormir noutro sítio, preferia. Mas gosto de habitar naquela confusão toda, apesar de preferir dormir num sítio onde nem passarinhos ouvia. É contraditório, mas não há nada a fazer.

12 Jan 2017