Andreia Sofia Silva EventosRota das Letras | Nova edição de “O Livro dos Nomes” apresentada no sábado A Livraria Portuguesa acolhe este sábado, a partir das 18h, o lançamento da nova edição de “O Livro dos Nomes”, com 88 textos da autoria de Carlos Morais José sobre sentimentos despertos por diversos locais do território. Os textos fazem-se acompanhar pelas fotografias de Sara Augusto Há 12 anos a primeira edição de “O Livro dos Nomes”, de Carlos Morais José, director do HM, desvendava segredos e sentimentos do autor sobre cada recanto de Macau por si escolhido. O caminho volta a ser percorrido este sábado, pelas 18h, com o lançamento de uma nova edição da mesma obra, num evento inserido na programação do festival literário “Rota das Letras”. Trata-se de 88 textos “de amor, ciúme, abandono e indiferença, entre outros sentimentos menos próprios para almas arredias das coisas desta cidade, que não cessa de existir como utopia e vício”, escreveu o autor nas redes sociais. A acompanhar os textos surgem imagens de Sara Augusto, académica que se dedica à fotografia nos tempos livres. O primeiro contacto da autora das imagens com “O Livro dos Nomes” surgiu em 2016, ano da sua chegada a Macau, conforme contou ao HM. “Comecei desde essa altura a ler e a escrever sobre a obra de Carlos Morais José. Entretanto, durante estes anos, também ele foi conhecendo a minha actividade no campo da fotografia. E o convite surgiu da convergência de interesses comuns e vem a ser preparado desde há um ano e meio.” Aliar as imagens às palavras “foi um desafio”, devido à distância temporal que separa as duas obras. “Já conhecia essa primeira edição, composta de textos em prosa poética, também traduzidos para chinês. Desde essa altura que o meu imaginário de Macau também se foi preenchendo. Esta nova edição alcança os 88 textos em prosa poética e apresentam características muito particulares relacionadas com a relação que o sujeito poético estabelece com o espaço.” Além disso, acrescenta Sara Augusto, “cada lugar apontado é tomado como lugar de experiência e de memória, como se de um lugar interior se tratasse”. Desta forma, “quando falamos dos textos, temos de invocar uma convivência longa e exaustiva do poeta com o espaço”, embora esse não tenha sido o caso de Sara Augusto, que tem “uma permanência muito mais breve em Macau”. Construção de memórias Ao trabalhar neste projecto, a autora das fotografias de “O Livro dos Nomes” acabou por “construir memórias pessoais sobre lugares de Macau já conhecidos ou ainda desconhecidos”. “Esta diferente experiência de Macau está visível nas fotografias. Há circunstâncias em que o poema fala de uma determinada vivência ou memória e em que a imagem revela a minha atenção a determinado detalhe, claramente distinto. Não se pretendeu que as fotografias funcionassem como ilustração, nem os textos como legenda, mas que os dois discursos, mesmo que distintos, pudessem conviver e mesmo convergir”, disse. Mesmo com 12 anos de distância entre os dois livros, estas edições acabam por se complementar, num fio condutor. “O Macau da edição anterior, transmitida através da poesia, prolonga-se para esta nova edição. O espaço de Macau no livro não é o Macau turístico, mas é um espaço interior, quase mítico, fundador de memórias. Ora, esse espaço interior não sofre transformações externas tão bruscas, mas prolonga a sua melancolia, em gestos de amor e de abandono.” A fotografia serve, assim, para transmitir “essa fluidez e um olhar subjectivo sobre espaços por todos vistos quase até à exaustão”. “Numa ou noutra circunstância a conjugação entre fotografia, lugar e texto, foi mais difícil de conseguir, ou pode mesmo ter sido menos bem conseguida. A razão é simples: a memória faz o lugar, E de alguns lugares eu tinha nem o conhecimento, nem a memória. Mas, como disse Baudelaire, ‘a imaginação faz a paisagem’, e a fotografia é também um acto de interpretação e de construção do imaginário”, contou. Sara Augusto viveu “experiências distintas” com este livro. “Por um lado, havia a curiosidade pelos lugares desconhecidos, dos quais eu não tinha memória. Por outro lado, havia os lugares mais conhecidos em que havia necessidade de ultrapassar o lugar-comum e banal. O longo tempo passado nos templos espalhados por Macau foi dos mais interessantes, explorando os jogos de luz e de sombra.” Questionada sobre os lugares mais icónicos que fotografou, Sara Augusto remata: “fotografar a fachada das ruínas de São Paulo é sempre um desafio”.
Andreia Sofia Silva EventosFOLIO | Exposição de Rosa Coutinho Cabral e Carlos Morais José em Óbidos “Visto com os pés, escrito com os olhos” é o nome da exposição de rua que integra a edição deste ano do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, e que conta com fotografias de Rosa Coutinho Cabral e textos de Carlos Morais José. As imagens foram capturadas na Rua Direita, em Óbidos, e remetem para outras perspectivas da realidade Serão poucas as vezes que olhamos para baixo e encaramos as coisas sob a perspectiva dos nossos pés, ignorando o que os nossos olhos vêem. Foi com este pensamento que a realizadora e encenadora Rosa Coutinho Cabral fotografou pedaços da Rua Direita, em Óbidos, imagens que podem agora ser vistas na rua principal da histórica vila portuguesa, numa exposição que integra a edição deste ano do Festival Literário Internacional de Óbidos (FOLIO) ontem inaugurada. Carlos Morais José, director do HM e escritor, é o autor dos textos que acompanham as imagens. “Os textos não são explicativos mas sim alusivos às imagens que a Rosa captou, acrescentam coisas que não estão nas imagens mas que se podem imaginar a partir delas ou que se podem ver num outro plano. Quer seja um plano do realmente visível, ou um plano simbólico e imaginário”, referiu ao HM. As imagens foram captadas na última edição do FOLIO, conforme contou Rosa Coutinho Cabral ao HM. “Fiquei atraída pelas texturas quase pictóricas das paredes, os restos e as marcas dos equipamentos, como caixas de electricidade e bueiros, as faixas de azul anil e amarelo. São marcas que conferem à Rua Direita de Óbidos uma fisionomia particular mas que é praticamente invisível aos olhos, porque está ao nível dos pés.” A cineasta e encenadora descreve que, nesta exposição, “como em tudo na arte, não há uma mensagem em particular”, mas sim “uma forma de abordar o real ou aquilo que nos rodeia”. “Eu tive essa vontade de, de certa maneira, tornar visível uma matéria que é bastante invisível”, apontou. Esta mostra nasceu também graças ao apoio da editora portuguesa Ler Devagar. Foi a própria Rosa Coutinho Cabral que convidou Carlos Morais José para a elaboração dos textos, dando continuidade a uma colaboração antiga. “Pareceu-me, quando estava a fotografar, que seria muito interessante ter temas que não coincidissem com o que se via, mas com o que não se vê ao nível dos olhos”, afirmou. O lugar do outro A edição deste ano do FOLIO tem como tema “O Outro” e esta mostra pretende, aliás, ser o reflexo de isso mesmo, criando outras perspectivas. Até porque, como escreve Carlos Morais José a propósito da mostra, “em cada lugar há uma outra imagem”. “A ideia que ficou desta experiência de escrita e de fotografia é que, de alguma maneira, cada uma das imagens é um outro a partir do outro, são experiências de produção artística e literária. Não só aquilo que se vê a partir dos pés é uma outra forma de ver, é um outro olhar, e depois há uma parte invisível que vem das próprias palavras”, disse a autora das imagens. Acima de tudo, Rosa Coutinho Cabral diz ter ficado “muito feliz” pela aceitação do projecto e pela oportunidade de colaborar novamente com Carlos Morais José. O autor do texto acaba por ser “a outra pessoa, neste caso o meu outro, nesta proposta de alteridade entre as imagens e as palavras”. Para Carlos Morais José, é sobretudo “muito gratificante” o facto de esta mostra estar patente na rua e não num espaço expositivo fechado. Óbidos e Pessanha Muito mais do que abordar os inúmeros outros, esta exposição acaba por também estabelecer uma ligação com a relação que o poeta português Camilo Pessanha tem com a vila de Óbidos, onde viveu e trabalhou antes de ir para Macau, nos primórdios do século XX. “A memória da sua passagem pela cidade ficou registada, entre outros documentos, no poema ‘Castelo d’Óbidos’, incluído [na obra] Clepsydra. Mais recentemente, o FOLIO convidou-me, enquanto escritor de Macau, para estar presente. Este ano a nossa relação continuou. Seria interessante manter esta ligação entre as duas cidades, os seus escritores e talvez entre os seus festivais literários”, adiantou Carlos Morais José. A mostra “Visto com os pés, escrito com os olhos” está patente até 24 de Outubro. Portas abertas O FOLIO começou ontem e promete dar ao público 11 dias de literatura, música e arte com a presença de 175 autores e escritores. Esta edição marca o regresso do FOLIO aos eventos presenciais depois da pandemia, com um programa que inclui 160 actividades e 16 mesas de autor e debates, além de outras iniciativas. A título de exemplo, a conversa de ontem juntou autores como Leïla Slimani e Juan Gabriel Vasquez e foi o ponto de partida para as mesas por onde passarão Isabel Lucas, Itamar Vieira Júnior, Jeferson Tenório, Paulo Scott, Fernando Rosas, Lilia Schwarcz e Richard Zimler. A escritora chinesa Jung Chang também estará presente, juntamente com autores como Mário Lúcio, Mário de Carvalho, Alberto Manguel, Pedro Mexia, Ricardo Araújo Pereira, Dulce Maria Cardoso, João Paulo Borges Coelho, Ana Margarida de Carvalho, Ana Luísa Amaral, Amália Bautista e Tatiana Levy, entre outros. O tema da edição deste ano é “O Outro”, com a inclusão de uma novidade: a banda desenhada. O programa celebra também a obra do escultor José Aurélio e os 50 anos da galeria Ogiva, em Óbidos, da qual foi fundador.
Pedro Arede EventosLivros | “O Comedor de Nuvens” é lançado hoje na Fundação Rui Cunha Obra com textos de Carlos Morais José e azulejos da autoria de Ana Jacinto Nunes é apresentada hoje pelas 18h30 na Fundação Rui Cunha. Derivando entre textos e ilustrações, “O Comedor de Nuvens” parte em busca da constante impermanência da forma e do simbolismo do branco sobre o azul, que pode servir de fronteira em relação ao céu ou de lugar de projecção da imaginação Quando uma nuvem passa, parece que nada fica igual. O livro “O Comedor de Nuvens” é apresentado hoje pelas 18h30 na Fundação Rui Cunha, assumindo-se como uma obra que foi crescendo e sofrendo transformações de forma orgânica e ao ritmo da vontade e do tempo. Isto porque de uma pequena fanzine de 20 folhas nasceu um livro com mais de 130 páginas, que inclui textos de Carlos Morais José, ilustrados com fotografias de azulejos de Ana Jacinto Nunes. “Os azulejos vieram primeiro”, conta a artista ao HM, revelando que o primeiro “comedor de nuvens” foi desenhado no final de 2019 e que, desde então, ficou “apaixonada” pela ideia, acabando por “fazer imensos azulejos”, a pretexto da quarentena a que ficou sujeita, devido à pandemia. “Para mim, as nuvens contêm o básico para vida e para as plantas crescerem, porque são feitas de água e ar. Ao mesmo tempo são nada e são tudo”, partilhou Ana Jacinto Nunes. Já Carlos Morais José, admite que a obra começou a crescer, a partir do momento em que passou a “sentir dificuldade em excluir azulejos” e à medida que foi ganhando inspiração para novos textos e poemas, com as ilustrações que iam chegando de mais comedores de nuvens. Para o escritor, apesar de as nuvens terem o condão de “simbolizar muita coisa”, é o facto de representarem a “impermanência” e uma “fronteira em relação ao céu” que lhes confere maior significado. Até porque em Macau há muitos dias em que não é possível ver o céu. “As nuvens podem simbolizar muita coisa mas, para mim, simbolizam sobretudo a questão da impermanência, ou seja, uma nuvem nunca é igual a si mesma no momento seguinte. É muito fácil ver as nuvens a mudar. Por outro lado, são uma fronteira em relação ao céu. Isto em Macau é muito claro e muito óbvio, sobretudo, quando está tudo nublado e há muitos dias em que (…) não conseguimos ver o céu, precisamente porque há um cobertor de nuvens que nos impede esse acesso ao céu”, partilhou o também director do Hoje Macau. Ao longo das páginas de “O Comedor de Nuvens” é igualmente abordada a questão da passagem do tempo. “Quanto tempo dura uma nuvem? Se uma nuvem é uma coisa, um objecto, podemos pensar que todos os objectos têm, no fundo, a mesma duração de uma nuvem e que isso é uma questão de percepção”, acrescentou Carlos Morais José, referindo-se ao texto “Nevoduto”, onde se lê que “Acreditar na permanência de uma nuvem tem o mesmo valor que crer na antiguidade de um rochedo”. “Pedras e nuvens: ambas se desfazem à mesma velocidade”, pode ler-se também no mesmo texto. Enquanto objecto poético, o escritor considera a nuvem “fascinante” e um elemento “muito rico que nos permite navegar em várias direcções”, dado que possibilita criar objectos “muito belos”, dependendo das “pespectivas” e “pensamentos” de cada um. “Quando as nuvens se transformam, podemos projectar nelas a nossa imaginação. Vemos animais, palácios, caravanas que passam e tudo aquilo que quisermos projectar nelas”, apontou. Questão civilizacional Do ponto de vista cultural, partilha Carlos Morais José, é também “curioso” verificar que o simbolismo atribuído às nuvens pode variar consoante a civilização em causa. Se na China, os comedores de nuvens são os “homens montanha”, ou seja, “monges que se isolam nas montanhas, alimentando-se de nuvens e bebendo chá de nuvens”, na perspectiva islâmica, por exemplo, “a nuvem é entendida como algo que não nos deixa pensar claramente e que nos impede o acesso ao céu”. Já na mitologia “há deuses que vivem pendurados nas nuvens, olhando cá para baixo (…) rindo-se dos nossos disparates”. Sobre a obra, Ana Jacinto Nunes considera que os textos da autoria de Carlos Morais José “oferecem uma legenda muito mais rica aos desenhos”, fazendo com que o “casamento” entre azulejos e texto seja “perfeito”. Além disso, o facto de haver textos com formatos diferentes, faz com se aproximem das próprias nuvens. “Os textos são todos muito bons e gosto especialmente que sejam textos com formatos diferentes, tal como acontece com as nuvens. Considero o texto sobre a Liberdade muito bonito. Há textos para qualquer dia da semana e qualquer minuto”, referiu a artista. Quanto aos azulejos que podem ser vistos em “O Comedor de Nuvens”, Carlos Morais José afirma que os seus favoritos “são aqueles em que as figuras representadas se desfazem em nuvem” e o “comedor se transforma na coisa comida”. “Nisso é que a Ana é genial, porque tudo ganha mais sentido quando é visto (…) e experimentado de uma forma totalizante”, acrescentou. Questionado sobre que expectativas tem para o lançamento de “O Comedor de Nuvens”, Carlos Morais José diz esperar que “as pessoas gostem” e que a obra “seja bem recebida”. “A parte mais importante é fazer. Se houver um leitor que goste para mim já é suficiente. Se forem dois é excelente, se forem 100 é maravilhoso e mais que isso (…) fantástico”, apontou. A sessão de apresentação de “O Comedor de Nuvens”, que tem a chancela da editora COD, será conduzida por Sara Augusto na Fundação Rui Cunha. A entrada é livre.
Andreia Sofia Silva EventosSemana da Cultura Chinesa | Médico e escritor Shee Va apresentou “Divino Panorama – Um Inferno Chinês” A Fundação Rui Cunha voltou ontem a ser palco de mais uma sessão da Semana da Cultura Chinesa, um evento promovido pelo HM e pela editora Livros do Meio. Desta vez foi apresentado o livro “Divino Panorama – Um Inferno Chinês”, uma compilação de textos clássicos que nos remetem para a ligação entre os seres humanos, os seus actos em vida e a existência mitológica de múltiplos infernos “Isto é um tormento. Vão-se deliciar a olhar para isto, os que são mais sádicos. É bom atormentarem-se um bocado.” Foi desta forma que Shee Va, médico e escritor, descreveu o livro “Divino Panorama – Um Inferno Chinês” ontem lançado na Fundação Rui Cunha (FRC). Trata-se da primeira tradução para português a partir de um original inglês, escrito pelo sinólogo e ex-diplomata britânico na China Herbert Allen Giles. Esta obra de Giles tem como referência textos clássicos com influências do budismo, taoísmo e confucionismo, os quais estão traduzidos para inglês desde 1880. O livro “é um entendimento daquilo que se chama o património cultural chinês, e é importante para o Ocidente”, disse ao Hoje Macau Shee Va, médico e escritor. “Esta obra existe em língua inglesa desde 1880, portanto estamos atrasados em relação à obra em língua portuguesa, mas mais vale tarde do que nunca.” Apesar de estarmos perante escritos clássicos, a verdade é que eles foram sendo transmitidos e ensinados às populações ao longo dos séculos, pelo que ainda hoje se reflectem nas acções das pessoas, existindo um eterno conflito entre fazer o bem e escapar do mal. “Pode-se ver na forma de pensar, agir ou em determinados rituais”, apontou. “As pessoas comportam-se de modo a não serem más, para não serem castigadas no inferno. Por isso é que isto vai moldar o comportamento das pessoas, e é importante ver como actuam face ao mal que lhes pode acontecer”, explicou Shee Va. Nesse sentido, o uso do termo “um inferno” logo no título é o reflexo de que poderão existir vários infernos. “Provavelmente não existe um inferno chinês. Haverá mais? É possível que sim. Em relação à tradição chinesa, pelo que se diz, há vários infernos. Isto porque as coisas se foram perdendo ou acrescentando com a tradição e é diferente daquilo que imaginamos. É como quando pensamos, do lado ocidental, o que há no inferno, na tradição helénica ou na tradição católica, são infernos diferentes. Aqui acontece a mesma coisa.” Segundo a lenda, o inferno chinês situa-se no Monte Taishan, em Shandong. Shee Va frisou ainda, ao HM, que, “no fim de contas, muitos destes infernos que foram surgindo e modificados por alterações políticas ou religiosas tinham como fim educar o povo conforme os cânones da época”. Os 18 andares Tendo falado de uma referência em relação a um inferno com 10 tribunais, onde os juízes decidem a libertação das almas, Shee Va contou uma história mitológica que é sempre contada às crianças chinesas: a existência de um inferno com 18 andares, e que explica o pluralismo deste conceito. “Nós, chineses, desde pequenos que ouvimos dizer ‘este criminoso merecia ir para um inferno de 18 andares!’. Então, há um inferno de 18 andares ou com 10 tribunais? Daí considerar que o título do livro está bem escolhido”, apontou na sua apresentação. Assumindo o seu lado de cultura ocidental, Shee Va confessou que esta questão do inferno presente no livro o faz lembrar “A Divina Comédia”, de Dante. E abordou a forma como ocidentais e orientais olham para os temas da morte, vida, inferno e salvação das almas. “O inferno de Dante também tem vários andares. Será que há esse paralelismo, em que polos diferentes vão ter a mesma noção de inferno? Este inferno tem uma existência longuíssima desde o aparecimento do Homem. É um escape psicológico, religioso desde que o Homem existe. Quando olhamos para os castigos de que se fala normalmente eles estão relacionados com o mal praticado”, adiantou. Shee Va não deixou de fazer uma referência à capa da obra, por ser colorida, o que remete para uma reflexão sobre a questão do inferno. Carlos Morais José, director do jornal Hoje Macau, que promove a Semana da Cultura Chinesa, referiu que esta obra “pode ajudar as pessoas a comportarem-se para não terem de sofrer”, ironizou. A Semana da Cultura Chinesa, na Fundação Rui Cunha, chega ao fim esta sexta-feira com o lançamento do livro “Balada do Mundo”, de Li He, com apresentação de Yao Jingming.
Andreia Sofia Silva EventosReedição de “Anastasis”, de Carlos Morais José, apresentada sábado na Feira do Livro de Lisboa “Anastasis”, livro de poesia de Carlos Morais José, é lançado este sábado em Lisboa na Feira do Livro, pela mão da editora Abysmo. O autor, também director do HM, fala de uma obra que não estava completa sem as suas impressões sobre o Egipto e Jerusalém [dropcap]D[/dropcap]epois de “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja” ganhar uma nova vida, eis que surge nas livrarias portuguesas “Anastasis”, um livro de Carlos Morais José, escritor e director do HM. A obra será lançada oficialmente este sábado pela editora Abysmo na Feira do Livro de Lisboa. Em declarações ao HM, Carlos Morais José falou de uma obra que, apesar de ter sido lançada em 2013, não estava completa sem dois capítulos dedicados ao Egipto e a Jerusalém. “O livro é agora editado em Portugal e tem outra capacidade de divulgação no espectro da lusofonia”, apontou. “Sempre senti que este livro não estaria completo sem mais dois capítulos, que se referem ao Egipto e à Terra Santa, além de mais uns acrescentos nos capítulos já existentes.” Para Carlos Morais José, estamos perante “dois lugares muito diferentes”, uma vez que o Egipto “remete-nos para as pré-origens da nossa civilização”. “O Egipto é um mistério ainda. Quando os gregos começaram a aprender a escrever já os egípcios se tinham esquecido de como isso se fazia. O Egipto tem uma grande importância como fonte de uma sabedoria primeira.” Na “viagem interior” que é “Anastasis”, Carlos Morais José descreve o país como “um reencontro com as origens”, “as mais primárias possível, os desejos mais escondidos”. “Como digo no meu livro, descer o Nilo é quase como uma descida aos sentidos, às delícias, aos sentimentos e emoções mais básicas”, acrescentou. No que diz respeito a Jerusalém, o autor estabelece uma ligação poética entre o sofrimento de Jesus Cristo e o homem moderno. “Quis perceber que cidade é aquela, que não tem nada, que está no meio do deserto e que é tão disputada por tanta gente. No meu livro encontram-se alguns aspectos do que eu chamo a cidade de um só Deus, porque é o Deus dos judeus e dos árabes, o Deus ciumento.” Há também a chamada “cartografia da dor, que é um mapa da descrição da paixão de Cristo”, onde o autor encara “Cristo como a emergência do Homem contemporâneo, pois as dores de Cristo serão as nossas dores, de alguma maneira”. O autor e jornalista descreve Jerusalém como “um dos centros emissores da nossa cultura e um dos mais importantes, pois a cultura europeia divide-se entre Atenas e Jerusalém”. “O que vou à procura em Jerusalém é isso, mas não só a parte cristã, mas também judaica e muçulmana. A parte comum a tudo isto que faz com que aquela terra seja considerada sagrada por uma série de religiões diferentes, com a mesma origem, mas com uma perspectiva diferente.” Um privilégio Com a Abysmo, Carlos Morais José vê, pela segunda vez, um livro seu ser reeditado em Portugal depois de um primeiro lançamento em Macau, e isso faz dele um “super privilegiado”, confessa. “Nos últimos tempos tenho sido extremamente acarinhado por pessoas de Macau. Os académicos têm feito o favor de reconhecer o meu trabalho e apreciar a minha obra, e tenho tido muito boa recepção.” O autor acredita que, com esta reedição, possa aumentar o interesse da literatura que é produzida em Macau. “Tenho visto alguns textos académicos e as pessoas começam a olhar de uma forma mais séria para aquilo que se produz em Macau, não apenas como uma curiosidade. Percebe-se que houve nas ultimas décadas alguns escritores de Macau que têm uma postura ou um lugar na literatura portuguesa contemporânea. Penso que isto irá continuar”, concluiu.
Sofia Margarida Mota EntrevistaRosa Coutinho Cabral, cineasta: “Renasci muita coisa pelo caminho” A cineasta Rosa Coutinho Cabral está em Macau para apresentar o filme “Pé San Ié – O poeta de Macau”, um ensaio visual sobre o exílio de Camilo Pessanha, que será exibido na Cinemateca Paixão na segunda-feira, às 18h. Este é o culminar de um processo de encontros e desencontros com a fantasmagoria do poeta e da cidade onde morreu [dropcap]E[/dropcap]stá em Macau para apresentar o filme sobre o Camilo Pessanha. Porquê este poeta? A génese da minha ligação a este poeta extraordinário tem uma pequena história. Aliás, todas a minhas ligações têm uma história, quer seja na vida, na literatura ou no cinema. A génese desta ligação com o Pessanha começou muito cedo, quando eu era miúda. Estava ainda nos Açores e teria menos de 13 anos. Descobri um dia um livro na casa de alguém, comecei a ler, adorei, pedi emprestado, não me lembro se por não ter dinheiro para o comprar ou porque não estaria à venda ali em São Miguel. Mas li Pessanha e como todos os adolescentes, também tinha a pulsão da escrita e acabei por “roubar” palavras a este poeta. Tudo isto está no filme. O mais importante é o que aprendemos acerca de nós próprios em todo o processo. Ficamos a conhecermo-nos melhor através de um conhecimento que nos é exterior. Um conhecimento de alguma forma projectado? Não sei se é projectado mas acho que é uma boa palavra, ainda não tinha pensado nela. Mas, sobretudo, quando uma peça acaba, quando terminamos de realizar uma coisa com toda a alegria e sofrimento que lhe é intrínseco, na verdade o que fica de mais importante é o que se conhece acerca de nós através dessa tal exterioridade, projectada ou não, e que neste caso tinha o nome de Camilo Pessanha de Macau. O que fica também é uma ligação, que vou adjectivar de superlativa, a ligação que tive com os outros, comigo e com o objecto do filme, o Pessanha, e como estas várias ligações me trazem até aqui. Não morri pelo caminho. Morri muita coisa, toda gente morre muita coisa pelo caminho, mas também renasci muita coisa pelo caminho. Isto só acontece se houver uma ligação forte com o que se faz. Como foi o processo para fazer este filme? Acho que tive o privilégio absolutamente extraordinário de trabalhar com pessoas com quem gostei muito de trabalhar. Umas já conhecia, outras não. Já conhecia o João Cabral, que é meu irmão e quem diz os poemas no filme. Há uma matéria no filme que é a própria poesia do Pessanha. Já conhecia o Pedro Cardeira, aqui de Macau, de um outro filme que tinha feito. O filme não é só meu. São matérias que têm uma ligação muito profunda com cada sujeito que as produz e que, por sorte, se encontraram neste filme e congeminaram qualquer coisa que acho que tem interesse. Também tenho que referir o José Carlos Pontes que fez a música e que, além disso, acompanhou todo o processo de acabamento do filme. Foi o grande apoio do fechar do filme e sem o qual seria impossível terminar este filme. Além destas pessoas que conhecia há duas novidades grandes: a Susana Gomes, que fez a fotografia, e o Carlos Morais José. E acho que o encontro com o Carlos Morais José é muito importante no próprio processo do filme. Este acto de fazer um filme, ou outra coisa, fica sempre marcado pelos encontros. FOTO: Sofia Margarida Mota Da mesma forma que se reencontrou com a primeira leitura… Na realidade, quando era miúda e descobri o Pessanha percebi que aquelas palavras na poesia eram fundamentais. Eu era uma adolescente, mas talvez também sentisse a dificuldade que é viver neste mundo. Mas acabei por esquecer o Pessanha. Um dia, aqui em Macau, o Rodrigo Guimarães pergunta-me porque é que eu não fazia um filme sobre o Pessanha. Na viagem de regresso a Lisboa o Daniel Pires faz-me a mesma pergunta. Reli o Pessanha e achei que era isso mesmo que queria fazer. Regressei a Macau e comecei a trabalhar com a Susana. Nessa altura, conheci o Carlos Morais José. Ouvi-o falar de Pessanha e pedi quase imediatamente se o podia filmar numa espécie de repérage ainda. Fiquei com a sensação de que aquela pessoa tinha que ver com o âmago deste projecto, no sentido da parte em que queria fazer um documentário ficcionado e não só um filme institucional com entrevistas. Fiquei com um duplo problema porque a partir daí percebi que estava dirigida para dois objectos: um para o documentário e o outro que era o filme. Tinha de fazer os dois e assim fiz, num tempo recorde. Durante ano e meio filmámos e montámos o filme. Não é a primeira vez que filma em Macau. Qual é a sua relação com o território? Já conhecia Macau. Já cá tinha filmado. Tive a sorte de o fazer com o Manuel Vicente. Adoro Macau. Há sempre coisas muito estranhas na vida e às quais eu não espero dar nenhuma explicação. Macau é uma destas cidades que produz em mim uma atracção muito forte e que esteja talvez no capítulo das pequenas ou das grandes paixões. Como todas as atracções tem os seus momentos de ódio, repúdio. Mas há qualquer coisa muito profunda que me liga a Macau, embora eu tenha cá chegado já bastante tarde até porque já não sou nova. Mas, de facto, não conheci Macau jovem nem com um olhar quase adolescente. Nada disso. Acho que conheci Macau com o olhar de quem está a entrar no envelhecimento. É uma cidade que tem diversas escala. É uma cidade aparentemente desordenada, cheia de contrastes de épocas, do antigo e do muito velho, que são coisas diferentes ao muito novo e ao muito actual. Estas diferenças agradam-me muito e produzem de um ponto de vista urbano uma espécie de desorientação muito divertida. É quase o que podemos encontrar em grandes metrópoles, porque tudo é abrangente pelo olhar mas é tudo muito diferente. Também gosto muito de estar num sítio com pessoas diferentes e Macau é a diferença por excelência. Há ainda outra questão. Sou açoriana e há uma humidade em Macau que adoro. Sinto-me absolutamente em casa. Outra coisa interessante é que da última vez que saí de Macau senti uma coisa muito especial: senti que me estava a ir embora e não que estava a regressar ao meu lugar a Lisboa. Sinto que me estava a ir embora do meu lugar e agora, quando cheguei, senti que estava a regressar a Macau o que é uma coisa estranha. O filme foi apresentado no DocLisboa. Como foi a reacção do público? Da crítica não sei, porque foi há muito pouco tempo. As outras reacções foram de boca a boca, do público que lá estava e que pelo que disseram gostaram muito. O filme é um objecto estranho. Não é um objecto que se diga tradicional. Aqueles que conheciam Macau gostaram da forma como viram a cidade e como filmei Macau. Fico contente com isso, fico orgulhosa por ter correspondido a qualquer coisa que as pessoas esperavam ver e ficaram muito admiradas com uma pessoa como o Carlos Morais José. Aliás, perguntaram-me onde encontrei este actor, esta pessoa, quem é ele, de onde vem. A relação entre os nossos dois discursos presentes no filme corre muito bem, interage muito bem. Eu dediquei-me a falar de cinema e não do Camilo Pessanha e esta relação com uma pessoa que está ali e fala do Camilo Pessanha. Ao mesmo tempo prestou-se generosamente ao jogo e à encenação do que eu queria fazer para poder filmar o morto. Não foi um desafio fácil, ele aceitou o desafio e fê-lo magistralmente. “Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar.” Porque é que este filme é um objecto estranho? Só posso falar da estranheza do objecto, ou da forma como fiz o filme pensando no filme acabado. Esta é uma circunstância nova. É estranho porque a tal ligação que tive com este Camilo Pessanha foi um encontro muito profundo, especialmente, por razões próprias com a dor. Tinha de chegar aí e tinha de trabalhar esta ligação de uma forma que se convertesse cinematograficamente. Essa ligação tinha de ser uma faca afiada, profunda, até ao fim do mundo. Finalmente, tinha de me colocar a mim própria, pela primeira vez num filme feito por mim, ensaiar numa experiência quase repetitiva este acto de me aproximar de alguém que não está cá. Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar. Isso era um grande desafio e torna imediatamente o objecto deste filme num objecto estranho. Depois há o modo de fazer, como é que se faz isso? São as questões que coloco no filme. Como faço e experimento isso? Acho que o cinema é, acima de tudo, um acto de experimentar que deve ser feito com a maior honestidade possível. Acho que ninguém faz tudo o que quer, mas acho que me aproximei o quanto baste para me sentir bem. Uma pessoa experimenta e eu experimentei o espaço por forma a decantar essa presença do Camilo Pessanha nesta cidade e a cidade Macau de Caminho Pessanha. FOTO: Sofia Margarida Mota Teve uma experiência semelhante, mas com uma pessoa viva. Manuel Vicente. Foi muito diferente? A diferença reside num ponto muito simples. A vida e a morte. O Manuel Vicente veio a Macau pela última vez comigo. Ele próprio diz, a dada altura no filme, “sei lá se volto a Macau”. Eu acho que ele sabia que não voltava, intuía. Acho que aquele filme foi uma despedida do Manuel Vicente a Macau. Era a Macau de Manuel Vicente. Eu gosto muito de cidades, e a forma como se vive e usa a cidade. Portanto, o Manuel Vicente deu-me uma perspectiva de Macau mas com aquela diferente, ele estava vivo, tinha carne e osso. E o Camilo Pessanha não tinha carne nem osso. Esta realidade de trabalhar atrás de um fantasma, atrás da morte, foi uma coisa muito profunda para mim e foi aquilo que tentei descobrir cinematograficamente. Acha que este filme é mais seu que os outros? É. Duas ou três pessoas que me conhecem há muito tempo disseram-me que este é o meu melhor filme. Não sou um cineasta VIP, fiz pouca coisa e não estou na boca do mundo. Não faço parte do mainstream e também nunca quis fazer. Sempre tentei fazer o que queria e acho que, finalmente, comecei a ter essa possibilidade. Quero contar coisas que tenham uma certa universalidade no fim, o Camilo Pessanha é importante porque a dor dele tem uma certa universalidade, a dor da humanidade, a dor dos desvalidos da sorte. Imagino que nem toda a gente goste, ou que um número muito reduzido de pessoas goste, não me importo, mas estou-me a aproximar cada vez mais do que quero fazer. Por outro lado, é um filme que também foi buscar à própria natureza do Camilo Pessanha, à sua forma de fazer. De algum modo, é um ensaio que se divide em quatro e esses quatro ensaios estão constantemente a recomeçar e a matar o anterior. Ou seja, é uma reinscrição ao jeito de Pessanha. A sua procura da eterna perfeição que ele tentou fazer reescrevendo os seus poemas, por vezes deixando de escrever. Mas, como o Carlos diz no filme, um poeta é sempre um poeta, mesmo que deixe de escrever. https://www.youtube.com/watch?v=4gtrcRBHs3E
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasPe San Ié – o poeta de Macau [dropcap]T[/dropcap]eve estreia esta sexta-feira na sala Manuel de Oliveira do Cinema S. Jorge em Lisboa, no segundo dia do 16ª do Festival Internacional DOCLISBOA. Passava pouco das 18h30 m quando a sala ficou escura e a tela se ilumina num filme que se propõe trabalhar o exercício do cinema numa viagem fantasmática a uma materialidade impossível, a do corpo e olhar do poeta Camilo Pessanha no seu habitar da cidade de Macau, lugar da sua vida e do seu exílio. O filme anuncia-se a si mesmo como filme ensaio em quatro capítulos, que se pretendem mudança de ângulo no olhar sobre o mesmo tempo e espaço. Como se sabe, o ponto de vista é no cinema a singularidade da escrita cinematográfica, a assinatura autoral. Um corpo, um homem, um personagem, um sujeito, surge e ocupa a tela, depois de alguns momentos de imagens difusas que se fundem e vão perdendo o carácter de dissipação na afirmação cada vez mais nítida tinta no papel tornada palavra. Da palavra escrita do poeta surge a presença revelação do homem corpo vivo, inquieto e pensante, que nos diz o que nos alerta para as dificuldades do que nos podemos esperar, anunciando uma primeira revolta impossível, porque, como afirmado por Bazin, o cinema é uma arte impura, e o cinema dos dias do agora, como toda a arte contemporânea, é também um exercício de citação, a si próprio e ao mundo de que se alimenta e que, de forma mais perene do que supomos , é por ele construído. E o que a voz off da realizadora Rosa Coutinho Cabral nos é anunciado é um exercício de cinema. Como todo o filme vai demonstrar, ao longo do exercício de suspensão fantasmática, entre os diferentes tempos presentes na tela, esse momento de intervalo cinematográfico da criação de um tempo paralelo inexistente, onde a impossibilidade do tempo passado no tempo presente coabitam, interrogando quais os passos e onde, querendo até, inventariar os porquês desse caminho, é esta materialidade deste corpo homem, também ele escritor, também ele amante intimo da língua, também ele solitário no seu sentir a dor e a alegria do mundo, é esta dupla figuração de personagem e de homem verdade no tempo presente, que de forma plena enche o ecrã nesta viagem por uma arquitetura da cidade onde a opulência a existir é da ordem do mistério e da procura impossível do sublime. De Carlos Morais José são já há muito conhecidos vários talentos, o da escrita, o do jornalista, o do comentador, este filme demonstra que o cinema também é feito de um carisma potencia, onde a verdade do pensamento encontra visibilidade na sonoridade da palavra que o expressa e no corpo que o habita. Talvez seja disso que o filme trata, ou queira tratar, do como é o habitar das palavras pelos poetas. É Carlos Morais José quem o afirma, nesta sua roupagem complexa e paradoxal de fantasma capaz da visibilidade e leitura do real, que no poeta está presente o verbo inicial, a matriz , o arquétipo, o sopro e marca primeira, a revelação inconsciente da esfinge, o suor e a languidez da morte no rio perpétuo do fogo do sangue. O trauma e a viagem inicial e iniciática. O filme dá-nos ver a escrita de Camilo Pessanha e a escrita do poeta é-nos dada pela voz do actor João Cabral, uma voz é sempre uma leitura própria, uma procura que nos é anunciada. A redundância é usada como recurso estilístico, citação ao cinema ensaio do Godard, talvez nem sempre com a assertividade estética pretendida. Se, e ainda que o cinema seja o lugar de todos os possíveis, onde se morre e permanece vivo, bola de cristal que dá a ver o futuro e o passado vivido no tempo presente em cada projeção na sala escura dos milagres, apesar da suspensão, do intervalo, a cidade é um organismo vivo que dificilmente se deixa capturar a não ser em sempre escassas parcelas da sua realidade e, filmar hoje Macau de Camilo Pessanha é sempre um exercício mais de imaginação do que materialidade , esse lugar do visível, o “terroir” do(s) cinema(s). A palavra não é o lugar exacto da prática cinematográfica donde a definitiva relevância do corpo do actor e da materialidade dos elementos em ligação direta sináptica com cada um dos espectadores. É Jacques Rancière, quem escreve : “no teatro, independentemente da dimensão dada ao gesto e ao espaço, o concreto reside antes de mais nada, na palavra. A conversa em torno de uma fogueira pode dispensar a fogueira, a erva o vento. Ao contrário, no cinema, seja qual for o esforço para o intelectualizar, o concreto está ligado ao visível dos corpos falantes e das coisas que falam. Daqui se deduzem dois efeitos contraditórios: um deles consiste em intensificar o visível da palavra, dos corpos que a carregam e das coisas de que falam; o outro consiste em intensificar o visível como aquilo que recusa a palavra ou mostra a ausência daquilo que de que ela fala”. Quando o corpo produtor primeiro da fala do filme é uma ausência sem solução, resta a materialidade da campa no cemitério final que o acolheu, a palavra escrita no papel impresso, a marca do peso da mão ausente que ali esteve, e reescreveu, rasurou, escrevendo de novo o já antes escrito. Mas é sobretudo a presença da materialidade do corpo do actor mesmo quando este encena a sombra, a presença impossível do fantasma, que nos transporta ao sopro da vida do poeta. É o corpo e a radicalidade do dito pelo homem que o habita que nos transporta nesta procura de contacto com o poeta maior do simbolismo em Português. Ainda que o destino apenas possa ter hipotética presença visível no depois e que o mistério passeie de mão dada no interior da beleza das coisas, sabemos que, se não destino, Macau foi facto e fim. Macau foi o território cidade da vida adulta do poeta. Foi em Macau que viveu, respirou, adormeceu, acordou, escreveu, desejou, sofreu, amou. Sim, foi em Macau os seus olhos foram vistos e viram os seus passos percorreram ruas, subiram escadas, seguiram sombras, pisaram nuvens em dores amansadas de ópio. Se a língua é sempre o território maior da pátria, naqueles expatriados que em lugares tão distantes vivem, e ainda mais quando poetas, torna-se não já a pátria mas o mundo, o lugar onde se não é estrangeiro, o lugar identitário que o corpo habita. “Camilo Pessanha, o maior poeta simbolista português, escreveu e reescreveu até morrer os poemas de Clepsidra, a sua única obra. O filme não é o seu retrato, nem a ilustração dos seus poemas, mas o ensaio da forma cinematográfica do seu exílio voluntário em Macau. Como filmar este opiómano singular? Dando a câmara de filmar a um morto, ouvindo os seus poemas, seguindo os passos e a reflexão de Carlos Morais José.” Lê-se na sinopse que apresenta o filme, tente-se isso, não é tempo perdido. TRAILER https://www.youtube.com/watch?v=4gtrcRBHs3E
Hoje Macau SociedadeCarlos Morais José e Alice Kok na direcção do Rota das Letras [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] jornalista e escritor Carlos Morais José e a artista plástica Alice Kok vão integrar a direcção do Festival Literário de Macau já a partir da próxima edição, a oitava do Rota das Letras. Carlos Morais José, director do jornal Hoje Macau, assume as funções de director de programação do Festival, e Alice Kok, presidente da Associação Arts For All, passa a ocupar o cargo de directora executiva. O Festival Literário de Macau é organizado desde 2011 pelo jornal Ponto Final. No final da sua última edição, o jornalista Hélder Beja, um dos fundadores do evento, deixou o cargo de director de programação. A direcção do Festival continuará a ser liderada pelo jornalista Ricardo Pinto, proprietário do jornal Ponto Final e coordenador do evento, e a contar com o poeta Yao Jingming, chefe do Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Macau, no cargo de subdirector. A próxima edição do Festival Literário de Macau terá lugar de 15 a 24 de Março de 2019.
João Luz Eventos MancheteLiteratura | Congresso Internacional de Lusitanistas organiza mesa de escritores Um moçambicano, uma brasileira e um português a viver em Macau discutem questões identitárias trazidas pela expressão verbal e escrita. Sob o auspício do Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, João Borges Coelho, Carlos Morais José e Ana Miranda falaram de letras, história, identidade e exílio, com a moderação de Hélder Macedo [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ob a batuta moderadora de Hélder Macedo, o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas juntou à mesa três escritores que acabaram por encontrar pontos em comum muito para além do português falado e escrito. O moçambicano João Borges Coelho, a brasileira Ana Miranda e o português a viver em Macau Carlos Morais José discorreram sobre a união entre a história, a factualidade e a ficção que escrevem. Nesse ponto, Hélder Macedo, logo nas apresentações dos autores, fez questão de evidenciar essa ponte. “Existe uma relação entre história e factos, imaginação e memória, ambos lidam com aquilo que não está a acontecer”, introduz o moderador. Esse desapego ao presente que requer construção mental é um elo entre duas realidades que, por vezes, se tocam. Ana Miranda, autora nascida em Fortaleza, no Ceará, é um bom exemplo dessa ligação entre imaginação e história. A brasileira tem uma obra onde despontam livros com forte componente histórica tal como “Boca do Inferno”, um romance que mistura as duas esferas – memória e fantasia. No livro, a autora descreve a cidade de Salvador da Bahia do século XVII, onde se cruzam o poeta Gregório de Matos e o afamado padre jesuíta António Vieira. A narrativa percorre um período de luta pelo poder entre personagens reais, o Governador António de Souza Menezes e Bernardo Vieira Ravasco, apoiado por Matos e o Padre António Vieira. O Governador António de Souza Menezes, figura temível da colonização portuguesa do Brasil, tinha uma prótese de metal que lhe valeu a alcunha Braço de Prata. Este detalhe parece ficcionado, algo extraído da imaginação, mas não é. “O que há de mais absurdo nos meus livros é a realidade, mais do que os sonhos”, explica Ana Miranda. A autora aproveita a boleia deste exemplo para revelar que “os encontros com as palavras nascem de sonhos e amor”. Ana Miranda contou como a escrita chegou até si como algo de natural. “Entrei na literatura como um cachorro entra numa igreja, porque a porta estava aberta”, graceja. Literatura histórica Virando o foco para outro continente, Hélder Macedo apresenta o escritor João Borges Coelho como alguém que ultrapassa fronteiras nacionais, “um escritor moçambicano porque escolheu sê-lo, um exemplo de polissemia cultural e literária”. Nascido no Porto, mas cedo emigrado para Moçambique, João Borges Coelho aventurou-se pela primeira vez no romance em 2003, dando uma guinada no seu percurso profissional como historiador. O moçambicano rompeu aquilo a que Hélder Macedo chamou de “a fronteira de ambiguidade que levanta o problema de quem é a primeira pessoa narrativa”. Ou seja, quem toma as rédeas do discurso interiorizado? Um personagem que se manifesta factual ou misticamente? Neste jogo de conceitos a própria realidade parece adquirir contornos ficcionais, considera João Borges Coelho, mesmo comentando o onírico retorno ao território. “Macau tem um aspecto de sonho, cada vez que regresso está completamente diferente, mas tem também segredos nas esquinas e jardins misteriosos”, comenta. Até a própria chegada do escritor ao Terminal do Porto Exterior ganhou contornos fantásticos: “Fomos recebidos por um tufão que nunca vimos chegar a um mar calmo”. O autor argumentou que a jovem literatura moçambicana nasceu ligada à história e a um sentido de nação. O laço à factualidade pode ser também aferido pela ligação ao jornalismo, mais concretamente pela via do escritor e jornalista José Albasini. As crónicas que escreveu são consideradas a primeira narrativa escrita por um moçambicano de origem africana. Pátria e exílio Casa é onde o coração estiver, costuma-se dizer em inglês. Da conversa entre escritores, promovida pelo Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, saiu uma ideia fulcral de ligação entre pátria, identidade e língua, mesmo no exílio. Ana Miranda contou a comoção que sentiu ao desembarcar em Macau. Depois de ouvir alguém dizer que em breve estaria a pisar a Ásia pela primeira vez, reparou numa placa à saída do ferry com um aviso em chinês e português. Emocionou-se e reflectiu numa noção de pertença: “A língua é uma pátria, nós estamos em casa”. Nesse sentido, partilhou a mesma comoção sentida por Jorge Luis Borges quando o argentino visitou pela primeira vez o México. Nesse sentido, a palavra escrita pode mesmo ser o cerne da identidade, muito para além de fronteiras geográficas. A intervenção de Carlos Morais José foi nesse sentido, na pátria achada nas letras a meio mundo de distância do local de origem. O escritor local começou por exprimir a ideia de que “Macau é um local de exílio físico e cultural”. Mesmo quando a pessoa se ambienta a Macau, “quando essa realidade começa a ser familiar não deixa de ser estranha”, considera o português. É desta estranheza, desta inquietação, que “nasce a necessidade de reflexão interior que vai de encontro aos grandes conceitos que emergem do exílio: a questão do abandono, a distância e o sentimento de ausência”. Carlos Morais José explica como a memória das origens se vai adocicando com o tempo vivido fora de fronteiras. “Como um abismo à volta do qual andamos, que vemos mas que já não nos atrai, vamos jogando com essa distância aproveitando o que o olhar distanciado nos proporciona”, explica. Fica a palavra em português a servir de casa. Este sentimento de pertença que se encontra na palavra escrita e na língua foi algo que o escritor focou, recordando o exemplo de Venceslau de Morais. O autor do virar do século viveu no Japão, em Tokushima, rodeado por pessoas, incluindo a sua esposa, que apenas falavam japonês. Este foi um período de intensa produtividade literária de Venceslau de Morais, que escrevia compulsivamente. “Era na escrita que ele encontrava força para a manutenção da sua identidade”, comenta Carlos Morais José. Também Ana Miranda descreve uma sensação de exílio permanente como leitmotif da sua obra, um sentimento que “surge do afastamento da referência, da distância do que éramos”, comenta a escritora. Esta sensação é sentida por Ana Miranda de duas formas, geográfica e temporalmente. Muito cedo mudou-se de Fortaleza, primeiro para o Rio de Janeiro e depois para Brasília. Uma criança “encantada pelo passado a viver na cidade do futuro”, recorda Ana Miranda. A autora passou a usar estes elementos na sua criação, dando voz a “personagens que são arrancados da sua situação”. A literatura, apesar de ser um exercício solitário, reflexivo, é um caminho para a liberdade do espírito. Nesse sentido, Ana Miranda recorda uma conversa que teve com um amigo cineasta que lhe dizia: “Queria ser como você, poder meter 60 mil figurantes e não ter de lhes pagar”. A autora falou ainda da forma como na criação literária tudo é permitido, pode-se matar um personagem sem se ser preso, cometer suicídio sem morrer, magicar mundos de fantasia numa cidade demasiado real. No fundo, o exercício da literatura é uma conquista daqueles que vivem em liberdade.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDesejos de mais luz Santa Bárbara, 26 Fevereiro Antero de Quental por Almada Negreiros, retrato patente na exposição da Fundação Calouste Gulbenkian [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ontinuo sem perceber este preconceito em relação ao conto, que o desvaloriza como mero exercício literário entre a sublime poesia e o trabalhoso romance, que o arruma sem mais na prateleira das fracas audiências. Que género se aplicaria melhor ao ritmo de vida de hoje, ao nosso nível de literacia, ao tamanho do metropolitano de Lisboa? Ainda assim, há quem insista, por exemplo, em traduzir o cubano Virgilio Piñera, um dos grandes contistas latino-americanos, além de poeta, enfim, intelectual, a merecer leituras em cabal que inclui dramaturgia, romance, ensaio e percurso. Aliás, na lista de projectos, desesperante para apenas 24 horas em cada dia e uma conta bancária despida, tenho a edição do seu notabilíssimo La isla en peso, traduzido pelo Cabrita. Deixemos para depois o depois que acontecerá e concentremo-nos na certeza deste «O Grande Baro e Outras Histórias», com escolha e tradução de Rui Manuel Amaral, a partir de três volumes (de 1956, 1970 e no póstumo de 1987). O cubano cria ambientes claustrofóbicos, constrói exímias arquitecturas narrativas, esculpe íntimas personagens tendo o absurdo como pano de fundo, mas sustentando-se em uma cirúrgica atenção aos mecanismos do quotidiano. No beco sem saída dos dias, a escapatória pode estar no muro. A nenhum conto, maior ou menor, lhe falta a lógica interna de uma granada, com diálogos afiados, detalhes luxuriantes e olhar raiado de ironia. Leia-se pedaço d’«A Carne», que abre o cuidado volume (e rima com a contracapa). «Ali chegado, fez saber que cada pessoa deveria cortar da nádega esquerda dois bifes, em tudo semelhante a uma amostra de gesso que pendia de um reluzente arame. E declarou que deveriam ser dois bifes e não um, porque se ele próprio cortara da nádega esquerda um belo bife, convinha que a coisa avançasse a bom ritmo, isto é, que ninguém comesse um bife a menos. Assentes estes pontos, todos se dedicaram a cortar dois bifes das respectivas nádegas esquerdas. Era um espectáculo glorioso, mas que dispensa mais descrições». Detalhe de importância: assim começa a Snob, editora que absorve a livraria homónima de Guimarães, entretanto arrumada em caixas e tornada nómada pelo Duarte Pereira, com a cumplicidade da Rosa Azevedo. Procura, além de personalidade literária virada para raridades, estratégias outras de financiamento e circulação. Longa vida ao absurdo de editar! Santa Bárbara, 28 Fevereiro Perdido nas correrias, nem vi chegar a festa da carne. Não consegui a pausa, apenas o bálsamo de umas quantas páginas editadas por outros. A Anne, da Chandeigne, no meio da confusão da abertura da nova Librairie des éditeurs associés, teve tempo e gentileza para me enviar o encantatório álbum Le Chant du Marais, no qual Pascal Quignard vai de compor, com a ajuda ilustrativa de Gabriel Schemoul, uma perturbadora melodia sobre o desejo e a inveja. Um jovem cantor mata o seu concorrente sem com isso conseguir calar a voz que maravilhava a Paris do século XVI. Ainda parece ganhar com o sucedido, mas apenas o tempo necessário para que a armadilha se estenda em barroco esplendor. Schemoul põe a passar, em baixo contínuo, uma corrente de naturezas mortas, flores e raízes, restos, aqui um peixe, pequenos seres obreiros da decomposição, mariposas, ali um crânio. O fluxo passa por construções de carpintaria absurda, cruzamento de instrumento de tortura com exercício de geometria descritiva. Poderosa metáfora, a inveja feita máquina que se alimenta dos restos mortais do desejo. Nestas águas navega também «O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja», assinado pelo director do Hoje Macau. (Hesitei em escrever nestas páginas sobre ele, evitando mal-entendidos talvez morais. No espírito do diário, entendo dever obediência apenas aos apetites do dia, pelo que). Qual contador, são inúmeras as gavetas, portas, passagens e compartimentos secretos deste poderoso romance disfarçado de histórico, que fervilha de ideias. Pisando o chão do milenar confronto entre metades do mundo, possui como núcleo o projecto católico, centrado em Macau, de um arquivo de confissões destinado a facilitar o entendimento dos males do mundo. Dele se extrai caso exemplar, este de Vasques. Com ele andaremos por Coimbra, pelo desejo de partida, baloiçaremos em caravelas, instigaremos motins, conheceremos o exótico, o delírio, mas sobretudo o fel pestilento da inveja. Vasques rouba manuscrito de Camões e por ele se deixa devorar em crescendo. «Aquela obra era demasiado genial para lhe ser permitida a existência. Nós, os mortais, não aguentaríamos viver à sua sombra. Destruí-la seria um acto humanitário, uma bondade digna do grande amigo do Homem.» O achado desta narrativa, a pimenta desta viagem encontra-se na construção fantasmática de Camões, que nunca aparece estando omnipresente, magnífica e tóxica paisagem. Por instantes desfaz-se em volutas de perfume, quase sempre se ergue tornado arrasador. Causado sempre por aquele que em seu escravo se converteu. A inveja faz de nós escravos necrófagos. Biblioteca Pública, Ponta Delgada, 2 Março «Amem a noite os magros crapulosos,/ E os que sonham com virgens impossíveis,/E os que se inclinam, mudos e impassíveis,/ À borda dos abismos silenciosos…» O lançamento da Poesia Completa de Antero, na sua terra natal, aconteceu intenso por via do atentíssimo Luiz Fagundes Duarte, pelo olhar esclarecido de Leonor Sampaio, pelas leituras de Nelson Cabral, e as versões criadas por Ana Paula Andrade para a voz dos alunos do Conservatório Regional. Mas não consigo esquecer a carta. A Biblioteca, pela mão de Iva Matos e de Margarida Mota Oliveira, preparou pequena mostra de manuscritos e primeiras edições. E nela brilha com a luz do enigma uma simples missiva dirigida, como hoje, uma quinta-feira, «á noite», ao seu médico. «Peço-lhe o obséquio d’uma nova visita sua, amanhã, por qualquer hora que mais lhe convier, desde a uma da tarde até ao anoitecer. Sinto-me cada vez peor e desejaria ser novamente interrogado e examinado.» No dia seguinte, ao anoitecer, suicidava-se não longe daqui. Ajudará este volume a vencer esta morte? «Eu amarei a santa madrugada,/ E o meio-dia, em vida refervendo,/E a tarde rumorosa e repousada.//Viva e trabalhe em plena luz: depois,/Seja-me dado ainda ver, morrendo,/O claro sol, amigo dos heróis!» (de Mais Luz!)
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteCorrentes D’Escrita | Macau em estreia “A Sombra do Mar” de Armando Silva Carvalho foi o vencedor do prémio literário Casino da Póvoa no festival Correntes D’Escrita. O anuncio foi feito na quarta-feira numa cerimónia que contou com a presença do Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e a referência à estreia da literatura de Macau no certame [dropcap]O[/dropcap] escritor Armando Silva Carvalho venceu o prémio literário Casino da Póvoa deste ano com a obra “A Sombra do Mar”, anunciou a organização do encontro de escritores de expressão ibérica Correntes D’Escrita. De acordo com a acta do júri, “A Sombra do Mar” foi a obra escolhida “pela força imagética da sua escrita e pela tensão conseguida entre ironia e melancolia”. O júri refere ainda que a nomeação deste livro “resultou da demorada análise e discussão deste e de outros livros finalistas”, tendo sido esta opção deliberada “por maioria”. Entre as obras finalistas, “particular atenção mereceram” também “Bisonte”, de Daniel Jonas, e “O Fruto da Gramática”, de Nuno Júdice. ““[O festival] continua a alargar o âmbito geográfico, incluindo autores de Macau e da Venezuela.” Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa Na declaração de voto é dito ainda que “A Sombra do Mar” é uma obra que “traz um conjunto de poemas formando um corpo orgânico de grande unidade estilística e temática, no qual as alusões ao mar e à água constituem um ‘leitmotiv’ que percorre todo o livro em sucessivas variações: água ‘criteriosa e diária’, água ‘arrepiada’ e ‘águas sobreviventes’”. Entre os finalistas do prémio, no valor de 20 mil euros, estavam também “Outro Ulisses regressa a casa”, do actual ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, “Animais Feridos”, de António Carlos Cortez, “Auto-retratos”, de Paulo José Miranda, “Persianas”, de Miguel-Manso, e “Vem à Quinta-Feira”, de Filipa Leal. O júri foi constituído por Almeida Faria, Ana Gabriela Macedo, Carlos Quiroga, Inês Pedrosa e Isaque Ferreira. O prémio literário Papelaria Locus 2017 foi atribuído a “Simplesmente Parecidos”, de Juliana da Silva Barbosa, que concorreu com o pseudónimo de Miura Yigurashi; o prémio Literário Fundação Dr. Luís Rainha a “No Silêncio das Marés”, de Helena Luísa Miranda Coentro; e o primeiro prémio Conto Infantil Ilustrado a “Uma Limpeza Necessária”, do 4.º A da Escola Básica José Manuel Durão Barroso, de Armamar. O Correntes d’Escritas prolonga-se até amanhã, na Póvoa de Varzim, com uma sessão agendada para segunda-feira no Instituto Cervantes, em Lisboa, reunindo dezenas de escritores em conferências, exposições e sessões em escolas. Prata da casa “A Póvoa é um sítio mítico da literatura portuguesa. É onde nasceu Eça de Queirós, e por onde passaram Raul Brandão e muitos outros.” Carlos Morais José, escritor A cerimónia em foi feito a anúncio do vencedor contou com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa, que destacou não só a importância da leitura e do trabalho feito com as escolas, como ainda a presença de Macau que, este ano e pela primeira vez, está representado com o “Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, de Carlos Morais José. O evento é “não só apenas uma festa dos portugueses e lusófonos, convida também escritores de expressão ibérica”, destacou, acrescentando que esta iniciativa “funciona como porta de entrada da literatura do mundo em Portugal” e que este continuou ainda a “alargar o âmbito geográfico, incluindo autores de Macau e da Venezuela”. Para Carlos Morais José, este é um festival de referência e não podia ser feito noutro local. “A Póvoa é um sítio mítico da literatura portuguesa. É onde nasceu Eça de Queirós, e por onde passaram Raul Brandão e muitos outros”, referiu o autor ao HM, salientando que, “sendo uma terra junto ao mar, é um sítio magnífico para reactivar a tradição literária que a terra tem”. O destaque do evento vai, de acordo com o autor que se encontra na Póvoa para participar numa mesa redonda, para “as conversas que se vão tendo e para a boa organização do festival, que corre normalmente e bem”. Relativamente à presença da literatura feita em Macau, o trabalho a fazer ainda é muito. “Como não temos uma máquina de marketing, tudo isto depende da boa vontade do editor, Rogério Beltrão Coelho. No entanto, e comparando com outras literaturas presentes, obviamente que ainda não temos muita visibilidade e também não sou um autor consagrado”.
Isabel Castro EventosLiteratura | Carlos Morais José convidado para o Correntes d’Escritas É inédito: em 2017, o mais importante festival literário de Portugal vai contar com um autor do território. “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja” é o bilhete que leva Carlos Morais José até à Póvoa do Varzim. O escritor quer que, com ele, sigam todos os outros que não são devidamente reconhecidos [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi com surpresa que Carlos Morais José recebeu o convite: o autor vai participar na edição de 2017 do festival literário Correntes d’Escritas, um evento que se realiza na Póvoa do Varzim e que conta, ano após ano, com os principais nomes da literatura em português. “Estou surpreendido porque não é habitual Macau ser considerado como ponto literário da lusofonia. Por outro lado, sinto-me muito honrado com o convite, na medida em que este é o mais importante festival literário de Portugal, com extensões ao Brasil e aos países de língua castelhana”, explica. Pela importância do evento, Morais José espera poder “representar bem a RAEM, mostrando que por aqui existe um forte movimento cultural lusófono, cujas raízes mergulham numa relação secular entre duas grandes civilizações: a chinesa e a portuguesa”. Porque vive em Macau há 26 anos, o autor fala numa “escrita de exílio”, que é agora reconhecida, o que o deixa “muito satisfeito”. “Mais por Macau do que por mim”, diz. “Esta cidade é, em si mesma e na sua mitologia literária, praticamente inesgotável e há ainda muito por descobrir e explorar.” Quanto à importância que poderá ter a participação no festival da Póvoa do Varzim, Carlos Morais José confessa-se “algo eufórico” com o facto de, pela primeira vez, um autor de Macau ser convidado a participar. “Espero levar comigo a literatura lusófona de Macau e farei um esforço no sentido do seu reconhecimento. Escritores como Alberto Estima de Oliveira, Henrique de Senna Fernandes, Luís Gonzaga Gomes, Deolinda da Conceição, Fernando Sales Lopes, Manuel Afonso Costa, Fernanda Dias, António Conceição Júnior, Yao Feng, entre outros, sem nunca esquecer Camilo Pessanha, precisam de ser referenciados e divulgados no espaço lusófono, impondo a RAEM como um lugar extremo da lusofonia onde vivificam de forma singular as letras em português”, explica. O escritor não deixa de salientar que “é espantoso que em Macau subsista uma tradição muito própria de escrita que, fugindo ao mero exotismo, tenha um lugar na universalidade da nossa língua”. Por isso, pretende que a participação no Correntes d’Escritas consiga contribuir para a divulgação do território “como um espaço longínquo onde o português acaba e o nada começa”. “Se Pequim pretende fazer desta terra uma ponte para a lusofonia, será sobretudo através da cultura que a nossa comunidade poderá desempenhar um papel útil a esta região”, defende. “A minha escrita, apesar de compulsiva e individual, gostaria de ser uma chave para abrir portas até hoje fechadas, e espero que o foco sobre o meu trabalho seja suficiente para iluminar as obras de outros autores locais que escrevem em português e mesmo a de alguns autores chineses locais, cuja obra se encontra imbuída de características únicas, no contexto da Grande China”. É que, entende, “Macau precisa de ser conhecido no mundo lusófono, além dos casinos e do exotismo bacoco”. O encanto da ficção O convite para a participação no Correntes d’Escritas surge depois de ter sido lançado em Lisboa o livro “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, uma obra que foi apresentada esta semana em Macau. É um texto que foge ao que têm sido as incursões literárias de Carlos Morais José. “Estou surpreendido pela aceitação que o livro está a ter, mas o facto de ser uma novela ajuda muito, pelos vistos, à sua divulgação e aceitação – muito mais do que a poesia ou outras formas literárias, geralmente consideradas mais elitistas e destinadas a um público muito específico”, observa. “A minha obra é diversificada mas, até agora, não incluía este tipo de ficção. Por isso, de certo modo, não me espanta que a prosa ficcionada tenha mais aceitação do que o resto. As pessoas adoram ouvir histórias porque as fazem sair do seu próprio mundo e entrar num outro reino.” Mas não é só isto: “Parece-me que a minha novela também interroga o leitor de uma forma extrema, na medida em que apresenta um personagem cheio de defeitos e malícias, ou seja, como todos nós. Só uma estrutura moral muito forte nos afasta do Mal e, mesmo assim, crescem dúvidas. Assumem a forma de ervas daninhas na nossa mente mas, ao mesmo tempo e pelo contrário, são essas mesmas dúvidas que instituem a riqueza dos indivíduos e a sua capacidade questionadora e criativa”. Carlos Morais José é licenciado em Antropologia e vive em Macau desde 1990. É director do Hoje Macau e proprietário da editora Livros do Meio. A 18.a edição do Correntes d’Escritas acontece entre 21 e 25 de Fevereiro de 2017.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasUnheimlich [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que se reconheceu como Homem, a espécie humana tem procurado distinguir-se das outras espécies animais, quer pela simples adição de atributos (do género “o homem é um animal racional”), quer pela constatação de um corte radical numa hipotética escala evolutiva (o homem é um animal com cultura). Mas, no fundo, parece existir uma remota e timorata consciência de que a distância que nos separa dos outros bichos não é tão grande quanto isso. Um dos primeiros a escorregar na senda da confissão deste terror (em termos científicos) foi o naturalista Buffon. Dizia ele que se os animais não existissem o Homem seria ainda mais misterioso — o que indicia proximidade e semelhança. Nalgumas das pinturas que o italiano Castiglione fez na corte de Pequim avultam a representação de cavalos e cães, desenhados ao modo ocidental; contudo, inseridos num contexto de pintura chinesa, o que imprime nas pinturas algo de inusual, para não falar de uma certa estranheza, um sentimento indefinível, próximo, se quisermos, do desconforto. Tal é sobretudo verdadeiro quando contemplamos um certo cavalo, de cor castanha e proporções suaves. O mais extraordinário da besta é o seu olhar. Ao contrário do que se poderia pensar, jamais o classificaria de humano. A sua placidez e segurança situam-no, desde logo, num patamar que nos ultrapassa. A estranheza, a que não é ausente um traço de temor, mede a altura do lance, desafia a capacidade da nossa perna.
Carlos Morais José A outra face VozesNo século XXI, o mundo será solidário ou não será [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando António Costa surgiu no fim da noite das eleições, o seu discurso sugeria que o PS iria admitir ou até apoiar um governo de direita. Na verdade, até ele pareceu ter-se deixado embalar pelos principais meios de comunicação social, que se apressaram a dar a vitória ao PAF, sem se preocuparem em fazerem as reais contas. E estas diziam que a direita não atingiu a maioria, portanto não pode, à partida, governar, a não ser que os socialistas assim o quisessem e permitissem. E, a julgar pelo discurso de Costa, tudo indicava que assim seria. Baseado neste facto, a quente, escrevi que se trataria da última traição do PS e que uma colagem à direita significaria a sua pasokisação. De facto, se no momento em que o povo português, por confortável maioria, rejeita as políticas neo-liberais de austeridade, os socialistas virassem as costas à vontade popular e apoiassem um governo Passos & Portas tal seria uma traição e um suicídio político. Repare-se que foi exactamente isso que se passou na Grécia e em França. Pelo contrário, existe neste momento uma tendência para voltar à esquerda (ou se quisermos, manter o centro) na política do hemisfério ocidental, com Corbyn na liderança dos trabalhistas em Inglaterra e a ascensão de Bernie Sanders nos Estados Unidos. Estará realmente iminente o perigo de governos radicais, dispostos a alterar o sistema democrático-liberal e extirpar o capitalismo? Claramente não. O que se passa é uma reacção aos excessos que o neo-liberalismo implementou na última década, nomeadamente o excesso de impunidade dos mercados, a falta de respeito pela mão-de-obra, a destruição do Estado Social, as privatizações sem sentido, as falcatruas/crises sucessivas do sistema financeiro e bancário, as verdadeiras causas da crise, entre outros desmandos. Esta reacção, este voltar à esquerda, não imporá nenhum regime outro, simplesmente tentará inverter este ciclo autofágico que conduz a uma infame plutocracia, com desrespeito pelos mais elementares direitos humanos. O que se pretende, na verdade, é voltar ao centro, a uma democracia liberal preocupada com as pessoas e não com o lucro. Isto não significa uma mudança de regime, mas a sua moralização e, sobretudo, uma definição clara do seu sentido último. Por tudo isto, é lógico que o PS tenha entendido que chegou a altura de compreender que o Muro de Berlim caiu em 1989 e que à sua esquerda ninguém pretende, de um lustro para o outro, rasgar o cartão de membro da União Europeia, sair do euro ou da NATO, se não existirem motivos dramáticos que o exijam. E compreendido também que não se corre o perigo de alguém passar segredos militares à União Soviética. As questões são realmente outras e o barulho que se faz à volta daquelas não passa de uma cortina de fumo retórica para distrair do que realmente poderá unir a esquerda portuguesa, a saber, a luta contra o neo-liberalismo e as suas metamorfoses lusitanas. No entanto, não é ainda líquido que o PS forme um governo à esquerda. Existem internamente várias vozes discordantes, cujas ligações são conhecidas e cuja posição é perfeitamente normal. É a estas vozes que os media dão mais projecção. De forma, aliás, vergonhosa. Pode também dar-se o caso de António Costa surgir no fim de todas estas reuniões e encontros para nos dizer que não foi possível chegar a um acordo que garantisse um governo de esquerda por quatro anos e que, por culpa do BE e da CDU, terá de viabilizar um governo Passos & Portas, aceitando os enfeites que a PAF lhe quer dar. Seria um triste fim para ele e, provavelmente, para o PS. Uma hábil cambalhota política, pensaria, pois passará a imagem de que “fiz os possíveis…”. Quem for lúcido, sabe perfeitamente que um governo do PS, com o apoio, do BE e da CDU, poderá mudar muito pouco, atado que estará aos compromissos europeus e à dívida. Por outro lado, enfrentará a má disposição dos principais representantes dos interesses transnacionais, a quem não fechará a porta. Mas poderá, aos poucos, ir mudando o rumo do navio, no sentido de um farol que aponte para uma democracia mais justa, mais próspera, mais solidária, mais ética e transparente. Pensando bem, a TINA (there is no alternative) está deste lado, do nosso… Do outro, existe uma estranha autofagia, capaz de devorar povos, de arrasar o ambiente, de não respeitar os idosos e as crianças, de fomentar guerras, lucrar com elas, que nos arrasta de desastre em desastre. No século XXI, o mundo será solidário ou não será.