Comuna de Pedra explora a coreografia com materiais

A Associação de Arte e Cultura Comuna de Pedra apresenta nesta edição do Festival de Artes de Macau o espectáculo “Murmúrio da Paisagem”, onde os corpos humanos perdem protagonismo em detrimento da manipulação de materiais. Jenny Mok juntou-se ao designer visual Nip Man Teng para um espectáculo novo que mistura dança e instalação teatral

 

[dropcap style≠‘circle’]”A[/dropcap] colina que se vê não é uma colina; o riacho que se vê não é um riacho. Uma ilusão temporal entre uma colina e um riacho é uma moldura instável que se desmorona com uma simples rajada de vento.” É desta forma que o Instituto Cultural (IC) descreve o novo espectáculo que a Associação de Arte e Cultura Comuna de Pedra leva ao palco na edição deste ano do Festival de Artes de Macau (FAM), nos dias 19 e 20 de Maio.

Em “Murmúrio da Paisagem”, Jenny Mok, directora da Comuna de Pedra, decidiu criar um espectáculo de dança e instalação teatral onde materiais como espuma ou plástico ganham importância em palco em detrimento do corpo humano. Para atingir este objectivo, a Comuna de Pedra trabalhou em parceria com Nip Man Teng, designer visual.

“Este é o primeiro projecto que faço deste género e comecei a trabalhar nele no início de 2016”, explicou Jenny Mok ao HM. Este é, aliás, um projecto que surge no seguimento de “Paisagem Entrelaçada: Maré da Noite”, já apresentado e onde a directora da associação Comuna de Pedra também trabalhou com Nip Man Teng.

“Comecei a trabalhar na ideia de fazer coreografia com materiais e essa é a ideia base do espectáculo. Quando falamos em teatro ou performances o foco principal é o corpo humano, independentemente do tipo de espectáculo. Então pensei em colocar o corpo humano numa posição mais secundária e dar mais destaque aos materiais e objectos. Tentei fazer coreografias para estes materiais e ver qual seria o resultado”, adiantou.

O espectáculo da Comuna de Pedra vai revelar ao público um projecto em duas fases. “Numa primeira fase usei sacos de plástico e tecidos elásticos, e numa segunda fase concentrei-me apenas no plástico. Eu e o meu designer visual decidimos mudar para outros objectos diferentes para fazermos coreografias.”

“Murmúrio da Paisagem” é também uma forma de espelhar a forma como utilizamos materiais no nosso dia-a-dia, uma vez que, na visão de Jenny Mok, “manipulamos estes objectos para tornar as nossas vidas melhores, e há séculos que fazemos isso”.

“Isso é algo interessante sobre o ser humano, porque adoramos manipular tudo. Com estas coreografias feitas com objectos e materiais pretendemos também explorar esta relação que se estabelece com o ser humano. Há uma projecção para o futuro, colocamos muita imaginação sobre aquilo que vai acontecer no que diz respeito à manipulação feita pelos humanos.”

 

Perspectiva ambiental

Jenny Mok confessou também que outra das ideias por detrás de “Murmúrio da Paisagem” é a de chamar a atenção para o desperdício de recursos e a forma como, diariamente, poluímos o meio-ambiente.

“Todos os locais podem ser considerados paisagem, mas, no caso de Macau, e tendo em conta que vivemos numa cidade, existe a consciência de que podemos ver apenas uma pequena parte da paisagem, e muitas vezes não é sequer possível. Tudo o que podemos ver actualmente, e que pode ser uma paisagem, é algo manufacturado depois da manipulação do ser humano.”

Num território onde a construção não pára e onde o antigo e natural tem dificuldades em permanecer, “manipulamos imenso, os terrenos, a construção dos edifícios enormes, e a própria natureza em prol de nós próprios”.

“É uma parte irónica, porque achamos que estamos no topo de qualquer coisa, temos autoridade sobre algo, manipulamos, mas sabemos que, eventualmente, isso vai-nos matar, mas continuamos a fazê-lo. Estamos obcecados com a manipulação”, defendeu Jenny Mok.

Neste sentido, o espectáculo tem também um lado político ao decidir apresentar dança e instalação tendo objectos como protagonistas. “Colocamos o foco em algo a que queremos prestar atenção, para ser a parte principal do espectáculo. Então há também uma mensagem aqui, e ao fazer coreografias com os materiais também os estamos a manipular. Há um significado em tudo isto, na forma como exploramos estes temas.”

 

Uma forma de comunicar

Fazer um espectáculo, seja ele qual for, implica comunicar com artistas, actores, bailarinos. Um dos desafios que Jenny Mok sentiu foi o de ter de estabelecer algum tipo de diálogo com os plásticos ou tecidos usados para “Murmúrio na Paisagem”.

“O grande desafio foi trabalharmos com estes materiais quase como se tivéssemos a trabalhar com artistas humanos. Quando comunicamos com um artista é diferente, pois quando estamos a comunicar com os materiais eles não te vão dar uma resposta, não há uma maneira de falar com eles. Então há que conhecê-los.”

Houve, portanto, “um processo de comunicação e também de manipulação, mas ao mesmo tempo os materiais também te vão dando ideias pela maneira como te dão feedback. Há um equilíbrio entre manipular e ser manipulado por esses materiais, e essa é uma parte interessante”, rematou a directora da Comuna de Pedra.

4 Mai 2018

“O que resta?”

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] último trabalho do realizador J. Gaia – título original “What´s Left” de 2012 -, é um filme polémico, vanguardista, singular, devastador e maldito.

Apesar de vivermos numa conjuntura económica favorável, há uma grande falta do investimento, por parte do Governo, de que resulta uma certa estagnação da actividade cinematográfica. Talvez mais importante que a retracção, seja a ausência de uma orientação estratégica clara para o sector por parte das entidades competentes. Falta pensamento institucional, políticas próprias e por razões várias de decisores públicos. É tudo muito paroquial.

A cultura (cinema) é uma responsabilidade do Governo. Optar por festivais, pode não ser a melhor opção – veremos!

Sem grande pretensiosismo, J. Gaia agarra o impossível com mestria, agilidade e um talento notável. Uma “história” simples, linear, em que o realizador sem preconceitos ou conceitos, antes com desrespeito pelas regras base da cinematografia – sem grande consistência estilística – explora, experimenta, resumindo cria o retrato de uma cidade em mudança, com um quadro negro, diga-se psicológico, da sociedade. A dissolução.

Filme de palavra curta, com uma forte concisão da linguagem e, narrativamente simples. É a imagem que a dá a ver – ajuda a procurar uma saída positiva, criadora e eficiente, um meio audaz, necessário, o autor vive obcecado pela maximização (de meios e custos) e, talvez por isso surge como uma via de complemento de afirmação, sem subalternizações, como uma nova realidade estética, sem contudo cair na tentação de limitar campos, e conteúdos. Existe uma unidade entre texto e imagem que atinge pontos extremos de criatividade, elegância e invenção cinematográfica. Perfeita a montagem sincopada e electrizante.

Falar de crise através dos cúmplices, da bolsa através dos especuladores, do clima através das catástrofes, do ambiente através da destruição, da globalização através da fome, da justiça através da dignidade, do mundo através do entretenimento, jogo através de números, da palavra através de sobreviver, de presente através de consumo e futuro através de reprodução – um mundo de palavras soletradas uma a uma, de forma, solene, nobre, vigorosa e seca – em off -, doseadas com imagens digitais de um impressionante realismo atroz inquietante e perturbador. Um diálogo (palavra/imagem) existencial, sem divagações ou histerias, que se abate sobre o espectador, podendo criar ansiedade e depressão, sobretudo naquela faixa etária mais resignada.

Há duas ou três cenas, no filme – onde existe mais cinema a ver do que em algumas dezenas, mas não dizer centenas de filmes inteiros -, dessas sessões contínuas que enchem a cidade inteira.

Sem comentários adicionais, para não perturbar o espectador nas suas “leituras cinematográficas”, veja-se por exemplo a cena «Missa Dominical». Ao sair da Igreja de braço dado com a sua afilhada Joaninha, D. Amélia Cunha – grande plano da Igreja de S. Lázaro (Porquê esta Igreja?), com a figura tutelar do padre na despedida aos fiéis, ainda no adro, abre a sua sombrinha e ouve de Joaninha: “Não madrinha é um problema de inveja”.

A que D. Amélia responde – apesar da idade – em tom seco e timbrado, “não minha filha, aqui os problemas são única e exclusivamente de dinheiro”.

Surge uma «cortina», aqui necessária e obrigatória (por causa das más interpretações), mas talvez o único senão ao longo do filme, o seu uso e abuso, apesar de todos nós sabermos que a cidade deixou há muito de poder ser um estúdio ao ar livre. Fazer exteriores com orçamentos apertados, é impossível.

A cena seguinte – é digna de bom entendedor – no restaurante «Hong Feng » (Montanha Vermelha), ficam casualmente sentadas entre uma típica família chinesa e uma portuguesa. Do lado esquerdo a chinesa e do lado direito a portuguesa. O olhar silencioso e as expressões de D. Amélia e Joaninha – quase perdem o apetite. Excelente, revela dois nomes a fixar, um grande momento cinematográfico.

Por fim, veja-se como Gaia filma em poucos planos sofás, cristaleira, estante, mesa, açambarcando toda a sala da família Cunha. É de mestre. Falamos da cena em casa dos Cunhas.

A cidade dorme. Joaninha numa noite quente, abafada, húmida, noite de pesadelos e insónias, acorda e dirige-se até à sala de jantar para beber um copo de água. Na quietude na noite, olha para a estante e reflecte. Dá dois passos em frente e olha atentamente para os livros. Estende a mão e pega na “Clepsidra” de Camilo Pessanha. Abre ao acaso o livro – lê interiormente – “Quem poluíu, quem rasgou os meus lençóis de linho, onde esperei morrer…”. Um som ensurdecedor irrompe da rua. Um «gangue» perturba o silêncio, o sossego a paz, com berros, gritos e desordens várias. Joaninha estremece, deixa cair o livro e fica estupefacta. (Porquê ?)

Em todas, ou quase todas, as cenas deste filme, existe uma grande dose de nebulosidade de ideias, jogos de palavras que sugerem, não explicam. Ao espectador, sobretudo aos mais distraídos, desde já um conselho. Alerta máximo, abertura de espírito e sobretudo grande empreendedorismo mental.

“What´s Left”, não é de maneira nenhuma um filme de entretenimento de massas, com efeito psicológico aliviador ou desangustiante – não se esperam ver filas intermináveis na procura de um bilhete, ou a acotovelarem-se na busca de uma borla, nem tão pouco a entupirem a Net… É, antes de tudo, um filme de grande criatividade, um filme intimista, que terá certamente o seu grande percurso em festivais de cinema, cinematecas e plataformas de distribuição online. Apesar de a distribuição se resumir a um restrito “grupo de amigos”, não está em causa a qualidade intrínseca da obra.

Ficamos à espera, se entretanto alguém se lembrar, de uma retrospectiva integral, não só para redescobrir, mas também reavaliar a obra de J. Gaia.

Um filme com abundante matéria de análise, reflexão e porque não discussão – a Ver!!!


“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a Humanidade já estavam todas escritas. Só faltava uma coisa: salvar a Humanidade.”
José Almada Negreiros (1893/1970), artista pástico/escritor
11 Abr 2018

Mercado de arte: China é número dois a nível mundial e lidera na Ásia

O relatório “UBS Global Art Market”, divulgado pela organização da Art Basel de Hong Kong, aponta para um crescimento de 12 por cento nas vendas de arte em todo o mundo, contrariando uma tendência negativa que se vinha registando há dois anos. A China é o segundo maior mercado mundial, mas de acordo com Margarida Saraiva, curadora do Museu de Arte de Macau, nem assim o território tira vantagens: há poucos dealers e nenhuma galeria financeiramente sustentável

 

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] aparecimento de uma nova vaga de milionários e bilionários na China nos últimos anos fez com que o país tenha começado a dominar o mercado de arte a nível mundial. De acordo com o mais recente relatório divulgado pela organização da feira Art Basel de Hong Kong, intitulado “UBS Global Art Market Report”, a China é o segundo maior mercado de arte do mundo, com 21 por cento de vendas, enquanto que os Estados Unidos continuam a liderar. O continente ultrapassou mesmo o Reino Unido, que registou apenas 20 por cento das vendas. Sem surpresas, a China foi o país com mais vendas na Ásia.

O relatório elaborado pela economista Clare McAndrew, especialista na área cultural, revela também que o mercado de arte global contrariou uma tendência de quebra que se vinha verificando nos últimos anos, ao ter sido registado um aumento global de vendas na ordem dos 12 por cento face a 2016. O ano passado o sector deu trabalho a três milhões de pessoas em todo o mundo, com a operacionalização de 310 mil negócios com transacções comerciais na ordem dos 19.6 biliões de dólares.

Margarida Saraiva, fundadora da plataforma cultural BABEL e curadora do Museu de Arte de Macau (MAM), refere que o novo posicionamento da China neste mercado “é notável”, mas “não surpreendente, porque é uma extensão do desenvolvimento económico geral”.

Países asiáticos como o Japão, Coreia do Sul, Índia e Indonésia representaram, em conjunto, 23 por cento do mercado, o que revela o verdadeiro sucesso da China neste sector. Os números da China e da Ásia mostram “uma forte dinâmica de riqueza e de mercado, o que sugere que esta fatia de mercado pode vir a aumentar no futuro”.

O relatório aponta ainda para um enorme crescimento das vendas de arte online, que representam hoje em dia oito por cento do valor total de vendas, atingindo os 5.4 biliões de dólares americanos. Um aumento de dez por cento por ano e de 72 por cento nos últimos anos.

Para Margarida Saraiva, “este facto é absolutamente extraordinário” e mostra que houve um “aumento muito significativo de coleccionadores à escala global”. “Não se trata aqui de grandes coleccionadores, museus, galerias, mas novos coleccionadores que apresentam também comportamentos novos, capazes de prescindir de um contacto directo com a obra de arte, antes da sua aquisição”, apontou ainda.

O documento indica ainda a grande representatividade das vendas a cargo dos “dealers”, ou negociantes de arte, que constituíram 53 por cento do valor de mercado, um aumento de quatro por cento. Estas vendas representaram, em 2017, um total de 33.7 biliões de dólares.

Já os leilões representaram apenas 47 por cento das vendas em todo o mundo. De acordo com Margarida Saraiva, “esta alteração inverte uma tradição muito antiga, segundo a qual as vendas em leilões eram normalmente superiores”.

Mesmo com a existência do mercado da Internet, as feiras de arte “continuam a ser uma parte central do mercado global de arte”, refere o relatório, uma vez que as vendas agregadas se cifraram nos 15.5 biliões de dólares o ano passado, mais 17 por cento. As feiras contaram com a participação de 46 por cento dos negociantes de arte a nível mundial, cujo custo de participação também aumentou 15 por cento em relação a 2016.

Macau sem benefícios

Apesar de ser uma região administrativa especial chinesa, Macau, é um pequeno território em termos de mercado de arte, onde não existem leilões, os coleccionadores são raros e não existem galerias de arte financeiramente auto-sustentáveis sem o apoio de subsídios do Governo.

Para Margarida Saraiva, é difícil que o território venha a tirar partido deste posicionamento da China no mercado global de arte, porque é um posicionamento “que tem a ver com as vendas”. “Quem é que em Macau poderá beneficiar deste novo posicionamento da China? Naturalmente, os ‘dealers’ que se dedicam à venda de obras de arte podem beneficiar, porque havendo mais potenciais compradores, haverá mais hipóteses de venda. Mas quais são? Que eu conheça não passam de uma dezena.”

Além disso, “não há registo de galerias bem sucedidas ou sequer sustentáveis. Depois é preciso ver o que é que se compra na China para ajustar a oferta. Não vejo, nenhuma razão em particular que possa levar os compradores a virem comprar em Macau”, apontou ao HM.

Margarida Saraiva refere que, para colmatar esta situação, é fundamental fazer “um trabalho mais de fundo e sério, através da realização de exposições que possam participar dos principais debates contemporâneos e por essa via atrair jornalistas, especialistas, curadores, críticos e coleccionadores”.

No que diz respeito aos artistas locais, estes devem “encontrar dealers em Hong Kong, em Xangai, em Pequim, participar em feiras, expor e ainda procurar fazer uso nas grandes plataformas de venda online, capaz de lhes abrir um mercado em todo o mundo”. Só assim poderão beneficiar do posicionamento da China no que diz respeito às vendas, descreve Margarida Saraiva.

Nesse sentido, a curadora do MAM deposita algumas esperanças na primeira edição da Macau Photo Fair, que inaugura já esta sexta-feira no Venetian, e que se dedica exclusivamente ao mundo da fotografia.

“No essencial, parece-me reunir mais condições para desenvolver um trabalho interessante do que a feira que se tentou fazer há uns anos. Primeiro porque encontrou um nicho, que a distingue da Art Basel, ao escolher dedicar-se apenas à fotografia, vídeo e novos media. Depois porque estabeleceu o seu calendário por forma a beneficiar do público da Art Basel, tendo garantido a presença de alguma importantes galerias internacionais.”

Arte online: os riscos

Como mostra o relatório divulgado pelos organizadores da Art Basel, a venda de arte online é cada vez mais uma tendência e pode passar, a título de exemplo, pelo download pago de fotografias. Margarida Saraiva destaca ainda a possibilidade de se realizarem bases de dados sobre as preferências dos coleccionadores.

“A novas grandes plataformas de venda de obras de arte online oferecem aos consumidores opções como fazer o upload da fotografia da sua sala de estar, do seu escritório, e testar diferentes obras colocadas virtualmente nesse espaço, oferecendo simultaneamente consultoria artística e de decoração de interiores, como serviços complementares personalizados. Além disso, registam os interesses dos coleccionadores, através de cada clique que se faz no site, desenvolvendo bases de dados sobre cada indivíduo que permitem campanhas de marketing altamente dirigidas para os gostos e preferências do potencial comprador.”

Apesar de estarmos perante uma “verdadeira democratização do mercado da arte”, Margarida Saraiva alerta para a banalização da mesma com as vendas online. “O risco para a arte é ver-se transformada em objecto decorativo ou em bibelô”, frisou a curadora, lembrando que “esta abordagem permite um aumento muito significativo dos coleccionadores e pode favorecer os artistas menos bem sucedidos nos círculos mais académicos ou nos museus. Algo que, em geral, traz outras preocupações em relação à arte e as práticas artísticas, favorecendo um entendimento segundo o qual uma obra de arte expande os horizontes de um certo tempo, o que não é compatível com as intenções do mercado ou dos coleccionadores menos informados”.

Falar de mercado de arte é também sinónimo de falar de milionários. Em 2017 um total de 35 por cento de milionários em todo o mundo “eram coleccionadores de arte activos”, sendo que, a nível global, as suas fortunas não pararam de crescer. O preço médio comum para a compra de obras de arte foi, no mínimo, de cinco mil dólares (de acordo com 79 por cento dos inquiridos), sendo que 93 por cento diz ter adquirido obras com um valor abaixo dos 50 mil dólares. Menos de um por cento dos compradores admitiu ter gasto mais de um milhão de dólares em obras de arte. Cerca de 86 por cento afirmou nunca ter vendido uma peça de arte da sua colecção particular, sendo que 32 por cento, comprou obras de arte como forma de investimento.

21 Mar 2018

A Razão de Existir (o prazer, a alegria & a «face»)

“A maior ameaça à nossa liberdade é a ausência de sentido crítico”

[dropcap]A[/dropcap] frase é do Nobel da Literatura Wole Soyinka – pseudónimo literário de Alcinwande Oluwale, que nasceu a 13 de Julho de 1934 em Abeokuta, na Nigéria e que foi o primeiro escritor africano a receber o galardão. Criticar mas também convencionar, divergir mas também convergir, contestar mas também construir – resumindo ter um pensamento urbano!

Antes de mais, gostaria, desde logo, de fazer uma declaração de interesses. Gosto de ter uma relação com o mundo, de construção e não de destruição. Gostaria que não se criassem – ou não nos obrigassem – a viver em círculos cáusticos, nem destrutivos e gostaria, por fim, que Macau não precisasse de se distinguir negativamente de ninguém, se souber distinguir-se positivamente (a música é melhor que o caos – sem casa, nem lar).

Terra onde complacência é norma e o desleixo tradição, Não obrigado! («Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo com os nossos méritos» – Albert Einstein).

Vivemos num Território de dúvidas!

Apesar de tudo, estou feliz, por não integrar o «partido» do pensamento único, nem o «comité» do elogio mútuo e, além disso os meus pensamentos não estão agarrados a qualquer compromisso.

Eu não acredito em sociedades de admiração mútua.

“Toda a vez que estiveres do lado da maioria, é hora de parar e reflectir” – na opinião de Mark Twain -, mas cada um sabe de Si.

Gosto de leituras diversas e dispersas, a juntar à degustação matinal da imprensa escrita – as outras só por uma questão de princípios ideológicos quase abandonei – gostaria de lembrar Hegel: “A Leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno”.

O abandono premeditado de outras formas de comunicação, já que “os factos não me interessam” – estou a parafrasear Musil, o d’ “O Homem sem Qualidades” – que acrescenta, e faço minhas as suas palavras, “só as interpretações” -, apesar destas nem sempre denotarem ambição crítica (um grave problema cultural) e sem essa cláusula não há evolução do pensamento – nem no mínimo critica moral. As palavras são acções.

Já Nietzsche dizia: “Não há factos, só interpretação de factos”. Mas interpretação dos factos sem conhecimento: Não.

Esperemos que o pensamento não autorizado nunca seja crime.

Convém, desde logo, saber separar má-língua e crítica. «A má-língua é derrotista e paralisante, ao contrário do espírito crítico, que põe em causa falsos alarmes e falsas evidências,sabe analisar, sabe avaliar, sabe destrinçar» – resumindo, decide.

O problema da crítica – segundo Nuno Júdice – “é trazer as inimizades dos ressentidos, a arrogância dos medíocres e o fechamento da corporação”. A morte da crítica corresponde essencialmente ao desaparecimento do debate político.

Criticar não é ter ódio a ninguém – é discordar.

Um outro grave denominador comum é a chamada “censura social” que não nos deixa falar verdade.

Já Confúcio apregoava, “saber o que é correcto e não o fazer é falta de coragem”. Para isso, precisamos urgentemente de um pouco mais de ambição e um pouco menos de contenção, precisamos de limitar o uso do conceito consenso e usar preferencialmente compromisso, precisamos de um pouco mais de exigência e tenacidade para acabar com a indigência – terminar com o padrão de “política de pequeno círculo” (café/mahjong, «fazendo da língua mesa de conversa») -, ter uma mudança de atitude, com uma visão aberta e não dogmática da realidade.

Temos de saber criar um diálogo civilizacional entre política e felicidade. Políticas arrojadas, com uma desconstrução do discurso assim como também de conceitos, para acabar com este tipo de sociedade cuja personalidade é fraca, pungente, imperfeita e refém, para a dotar de uma personalidade forte, gloriosa, perfeita e criadora.

Não é por acaso que a população, hoje em dia, está despida de transcendência, valores ou referências. Assim, nunca construiremos uma sociedade coesa, humanista e solidária – é preciso reforçar o sentimento de pertença e de partilha -, estar atento ao próximo.

Discursos estruturantes – com uma linguagem enxuta e drenada, em vez de técnica e factual, sem futilidades, insignificâncias e provincianismos. A comunicação é dificiente, insuficiente, tardia e às vezes nula.

Prometer e negar devem ser palavras excluídas do discurso político. Definir e aplicar políticas de transformação estrutural e modernização efectiva. Não abdicar da cultura do exemplo. Apostar na cultura cívica – competência, dedicação e empenho – e, educacional. Recuperar valores de cidadania. Reestruturar o tecido social e familiar. Transformar a paixão em carácter. Aplicar uma maior justiça fiscal (temos de saber descontextualizar os números).

Ter uma visão cultural humanista. Fazer cumprir o dever de memória, porque ao perdê-lo, perde grande parte da sua identidade (sem sentimentos de pertença) e dignidade. Criar um quadro de diálogos entre o presente e a memória. Combater privilégios. Reforçar a economia social. Promover a economia verde e 4.0 (baseada no conhecimento) e crescimento azul – «Definir um rumo e um propósito, dizer para onde vamos e por onde vamos».

Só assim se pode criar uma sociedade caracterizada pela responsabilidade, iniciativa, autonomia, liderança, disciplina, participação e, sobretudo, ambição. Daí resulta uma cultura moderna de risco, conhecimento, inovação e reforma de métodos e mentalidades. O sociólogo alemão George Simmel diz que, para se desenvolver, “uma sociedade precisa de uma certa quantidade de harmonia e desarmonia, de associação e competição”.

Temos de combater a resignação e o medo – “O medo devora a alma” – Rainer W. Fassbinder.

Precisamos de uma palavra de confiança. Já Goethe dizia: “As pessoas infelizes são perigosas”. Falta saber conciliar a política do poder com a política da razão e essa leitura passa por uma interpretação correcta da relação entre pobreza, direitos sociais e políticos. Torna-se necessário examinar e rever, cuidadosamente, os modelos de respostas às dificuldades. Não se pode, ou não se deve, oscilar entre a insensibilidade para com os mais pobres e a vassalagem para com os mais ricos.

Engolimos explicações que nunca deveriam ser aceites por uma sociedade saudável («que respire») e minimamente exigente («com poder de orientação») – devíamos de ser capazes de unir esforços e reunir interesses.
A mentira vence, sem mentiras não havia vitórias…

Até porque os últimos anos foram de sofrimento privado e letargia pública.


“E o que não presta é isto, esta maneira
Quotidiana
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste”

Miguel Torga (1907/1995), escritor
7 Mar 2018

A grande purga

[dropcap]N[/dropcap]ão disseram muito, à chegada. Mostraram-nos a identificação e perguntaram-nos pela exposição temporária. Com um nó na garganta, porque não os esperávamos e porque da presença deles nunca resultava nada de bom, conduzi-os até à ala onde eram ultimados os preparativos da exposição. “Estejam à vontade”, disse-lhes, “obrigado, estamos sempre”, respondeu um deles.

Os vídeos não lhes mereceram especial atenção. O mais velho, no entanto, deteve-se num quadro. “Confirma-me que isto faz parte da exposição?”, dirigiu-se-me. “Sim”, respondi, “é um dos trabalhos constantes do catálogo. “Bem, já vi o suficiente”, adiantou. “Fechem tudo”. “Como”? Respondi, incrédulo. “Esta exposição foi devidamente autorizada pelo Ministério da Arte e da Moral, como consta do documento afixado à entrada do museu. Enviámos fotografias de todas as peças que pretendemos exibir e nenhuma foi alvo de objecção, tenho a certeza de que”. “Fechem tudo”, interrompeu-me, “fechem tudo agora mesmo”.

Aparentemente, havia sido uma notícia numa revista de celebridades que espoletara o encerramento coercivo da exposição. Um rapaz alegava que certa vez tinha ficado sozinho com o artista e que este comentara o seu aspecto físico. O artista, claro está, era o autor das peças que nos preparávamos expor. Uma notícia destas podia passar perfeitamente despercebida ou propagar-se pelas redes sociais como lume em pasto seco. É fácil perceber o que acontecera. Replicada vezes sem conta ao longo do dia, a notícia obrigou o Ministério a tomar uma posição que aplacasse a fúria justiceira que ameaçava repercutir-se negativamente na imagem do governo.

Fecharam a exposição, queimaram as peças apreendidas e encerraram-nos o museu durante seis longas semanas, nas quais tivemos que fazer vários pedidos de desculpa públicos e demonstrar “o mais sério e sincero arrependimento respectivo aos factos que motivaram o castigo aplicado”. Demos diversas entrevistas através das quais aferimos a avaliação que as redes sociais faziam da nossa sinceridade. Se desconfiassem da honestidade da nossa contrição, poderiam nunca mais autorizar a reabertura do museu. Felizmente, o nosso advogado era muito competente na gestão de processos públicos desta natureza. Para além da preparação que nos ministrou antes de cada entrevista, ainda nos deu uns comprimidos – de que nunca ouvira falar – que nos fazia parecer imbuídos de pena como se tivéssemos acabado de enterrar o nosso melhor amigo. “A molécula da tristeza”, segredava-nos, enquanto tomávamos os comprimidos.

Felizmente, a pena foi a menor possível. O museu, apesar das perdas consideráveis que uma publicidade desta natureza acarreta, sobreviveu. O mesmo não se pode dizer do autor das peças que originaram o castigo a que fomos sujeitos. Depois de semanas de bullying público – queimaram-lhe o carro, envenenaram-lhe o cão, grafitaram-lhe as paredes – o homem acorreu à polícia para pedir ajuda. Após consultarem o processo, disseram-lhe que nada podiam fazer: o Ministério da Arte e da Moral tinha ascendente hierárquico sobre o Ministério do Interior, que tutelava a polícia.

Um dia, ao sair do supermercado, deu conta de que o filho chorava compulsivamente. “Eles disseram-me que te iam esfolar vivo à minha frente, pai”. Irado, virou-se para trás e gritou indiscriminadamente para as pessoas que se acotovelavam junto das caixas registadoras. Alguém terá testemunhado ter ouvido um insulto de género. Era dos poucos casos do processo penal que dispensavam provas ou testemunhos. Foi condenado a dois anos de prisão mas não chegou a cumpri-los. Suicidou-se passados seis meses e várias surras recebidas.

5 Fev 2018

Aniversário | Art For All Society nasceu há dez anos

Começam hoje as celebrações do décimo aniversário da associação Art For All Society, que visa promover o trabalho de vários artistas locais. A AFA já esteve em Pequim, fechou portas, e agora gostava de ter uma representação em Hong Kong. Alice Kok, presidente, e José Drummond, um dos fundadores, recordam o momento em que um grupo de pessoas se juntou para debater ideias sobre o panorama artístico local

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e todas as casas que a AFA – Art for All Society já teve, aquela que estava junto às Ruínas de São Paulo foi a primeira. Um dia, artistas como Konstantin Bessmertny, José Drummond, Carlos Marreiros ou Alice Kok reuniram-se para discutir ideias que dariam origem a um novo movimento de revelação de novos artistas junto do público.

Dez anos depois, a AFA prepara-se para celebrar a sua curta existência com uma exposição, uma palestra e um documentário. A história de algo embrionário conta-se com frames, imagens, palavras.

“Hoje será a exposição do aniversário dos 10 anos e depois haverá uma palestra na quarta-feira. Na quinta-feira será transmitido um documentário sobre os artistas que nos têm acompanhado. O objectivo é olhar para aquilo que temos feito nos últimos dez anos, o que fizemos ou não fizemos, numa espécie de reflexão”, contou Alice Kok ao HM.

A palestra visa ser um espaço de debate sobre o estado actual do panorama artístico. “Convidámos outras galerias de arte ou gestores de espaços de arte para discutirmos os desafios e os problemas que enfrentamos quando tentamos manter associações de arte ou outros negócios em Macau”, explicou Alice Kok.

Já o documentário coloca os artistas a falarem do seu próprio trabalho. “É uma forma de olharmos para trás, para aquilo que temos vindo a fazer e deixar os artistas falar do seu trabalho em frente à câmara, para que o público possa compreender melhor o que é a profissão e o que significa ser artista”, contou a presidente da AFA.

A ausência de coleccionadores

Quando convidámos José Drummond a recordar o início de uma jornada, o artistas apenas disse que, no fundo, o tempo passa demasiado rápido sem darmos por isso.

“É a prova de que a vida passa muito rápido. Parece que foi ontem que estávamos todos numa sala ao pé das Ruínas de São Paulo, onde foi a primeira AFA, a debater ideias e a falar sobre as primeiras exposições. E já passaram dez anos e a AFA esteve em tantos espaços. A participação da AFA no meio artístico local continua a ser muito importante”, frisou.

Drummond considera que, quando a AFA nasceu, faltavam em Macau coleccionadores de arte, algo que não mudou com o passar dos anos.

“Há dez anos não havia tantos coleccionadores, mas isso não quer dizer que as coisas estejam melhores. Podem haver mais coleccionadores de arte não acho que, no geral, isso seja significativo, pois a vida encareceu muito mais. Os artistas que continuam a ambicionar viver do trabalho de artista plástico é quase impossível em Macau. A luta continua a ser muita nesse sentido.”

A luta pela estabilidade

Além da falta de coleccionadores que invistam em arte local, tem faltado o factor estabilidade.

“Quando fechámos a nossa galeria em Pequim decidimos concentrar-nos em Macau. Não conseguíamos estar lá pessoalmente e era difícil gerir uma galeria de arte à distância. Por isso ficamos no Macau Art Garden, no centro da cidade. Temos sido bem sucedidos, mas estamos no início, pois temos sido obrigados a mudar-nos a cada dois anos. Nos últimos dez anos mudámo-nos cerca de cinco vezes”, recordou Alice Kok.

Além de garantir a estabilidade no espaço Macau Art Garden, a presidente da AFA confessa que há o desejo de criar uma representação da associação em Hong Kong.

“Queremos garantir a nossa presença aqui de uma forma permanente. Para o futuro queremos primeiro garantir uma estabilidade e depois vamos procurar mostrar o trabalho dos nossos artistas lá fora. Gostaríamos de ir para Hong Kong, mas ainda não fomos à procura de nenhum espaço”, disse.

Dez anos depois, o pessimismo

Anos e anos de exposições depois, Alice Kok considera que continua a faltar uma educação das pessoas para aquilo que é arte.

“Precisamos de fazer mais em prol da educação artística, não só dos próprios artistas mas também do público. Vimos um grande progresso em termos de arte no espaço público, mas a maior parte das pessoas de Macau não sabem muito bem aquilo que está a ser feito. Queremos encorajar mais estudantes para que saibam mais sobre arte.”

José Drummond tem uma visão mais pessimista do mercado artístico. Não só os artistas não são arrojados como no passado como há uma visão mais comercial daquilo que está a ser feito.

“Já tive mais esperanças no futuro da arte de Macau do que tenho hoje em dia. Vejo que há uma direcção nitidamente comercial no seio dos nossos artistas e há uma grande confusão sobre aquilo que é arte. Quem recebe apoio mais directo são coisas que são tradicionais demais. Questiono-me muitas vezes se aquilo é arte contemporânea, porque aquilo já foi feito nos anos 50 do século XX. Se os artistas não tiverem coragem para romper com isso…”, lamentou.

Nem o modelo das feiras de arte em hotéis, como se tem visto muito nos últimos tempos, funciona, segundo o artista e designer.

“Apesar de ser interessante ter feiras de arte em hotéis, a verdade é que ainda não revelaram nada de novo. Será que é importante venderem meia dúzia de obras?”, questionou.

“Houve uma tendência para se comercializar demasiado o trabalho e este aparece muitas vezes como um trabalho decorativo. Nesse aspecto sinto que Macau regrediu um bocado. Muitas vezes os artistas não arriscam tanto como os da minha geração, em termos de ideias, de suporte. Há uma aderência ao suporte pictórico que é demasiado tradicional e não define em nada a arte contemporânea.”

Para José Drummond, na China já se inova mais. Lá, no continente, “os artistas contemporâneos trabalham em todos os media”. “Essa tendência [em Macau] teve a ver muito com as indústrias culturais, em que se quis vender, e com isso tem de se fazer pintura, e com um determinado tamanho. Acho isso muito perigoso, e não vejo pessoas a arriscar.”

Da ausência de auto-crítica

Além do panorama da subsídio-dependência, José Drummond lamenta que, dez anos depois, não haja historiadores de arte, curadores e críticos de arte independentes dos artistas.

“Não há história de arte, não há curadores, e estes são, na maior parte, os artistas, à excepção de uma ou outra pessoa que está no Museu de Arte de Macau. Como não temos estes factores de dinamismo e de auto-crítica, parece que nunca há espaço para vingar fora de portas.”

José Drummond frisa que os poucos casos de artistas que conseguem expor lá fora fazem-no porque alguém de fora de Macau reparou neles. “São curadores de Hong Kong ou da China que estão interessados. Esse input acontece de fora para dentro e não de dentro para fora, o que seria mais lógico. Há coisas que não estão a funcionar, não sei quais são as fórmulas, pois já foram tentadas várias e não funcionaram. Mas tem a ver com a pouca auto-crítica e não há pessoas a escrever. Criámos uma bolha sem identidade e isso é preocupante.”

12 Dez 2017

Salão de Artistas de Macau apresenta 33 obras originais

Denis Murell, Konstantin Bessmertny, José Drummond, Vítor Marreiros. Estes são alguns artistas que participam este ano no “Salão de Artistas”, uma mostra que é hoje inaugurada no Clube Militar. José Duarte, responsável pela associação que organiza a exposição, garante que esta é apenas uma mostra de pintores e artistas com diferentes idades e visões

[dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap] rinta e três obras originais que ilustram a diversidade e criatividade das artes visuais em Macau vão estar patentes no Clube Militar até ao próximo dia 6 de Janeiro.

O objectivo desta exposição é reunir “um conjunto amplo de artistas e suas obras que seja representativo da vitalidade e a criatividade da comunidade artística local”, indicou a APAC – Associação de Promoção de Actividades Culturais, que organizou este Salão de Artistas de Macau.

Ao HM, José Duarte, responsável pela associação, explicou que a ideia é mostrar um pouco do que se faz em Macau em termos de arte.

“São artistas de várias gerações, com várias abordagens de pintura e várias técnicas, é esse o objectivo desta exposição. A ideia é, no fim do ano, juntar artistas cujo elemento comum é o facto de serem de Macau e mostrar um pouco a diversidade e a vitalidade da pintura e do desenho em Macau.”

Artistas como Denis Murell, o consagrado Konstantin Bessmertny ou José Drummond, que também tem uma outra exposição patente na Livraria Portuguesa, intitulada “Ao meu coração um peso de ferro”, participam nesta iniciativa. Estão também incluídos nomes como o do designer Vítor Marreiros e Alexandre Marreiros, arquitecto e artista.

“Temos o Denis Murell, que este ano é o decano, e depois temos duas jovens nascidas em 1985. Não tem a pretensão de ser a mostra de toda a arte que se faz em Macau. São apenas 33 artistas com obras recentes”, adiantou José Duarte.

A “cada artista” foi pedido que escolhesse um único “trabalho recente e significativo” para integrar este Salão, que apresenta 33 artistas de renome e jovens artistas emergentes, com mais de 50 anos a separar os mais velhos dos mais jovens, acrescentou a APAC.

A exposição pretende também assinalar o 18.º aniversário do estabelecimento da RAEM, acrescentou a organização.

Esta mostra é a terceira da série anual intitulada “Pontes de Encontro”, promovida pelo Clube Militar de Macau, e que incluiu em Junho uma exposição de pintores portugueses, e em Outubro uma apresentação de 27 obras de nove pintores lusófonos.

11 Dez 2017

Escondam o Courbet, eles vêm aí

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]gora são os quadros. Não aqueles capazes de causar controvérsia e que, de modo mais ou menos feliz, fazem luz sobre as contradições da contemporaneidade. São obras perfeitamente integradas no cânone da história da arte ocidental e, por vezes, tão discretas e inofensivas que sobre elas recai unicamente a atenção dos especialistas. À partida, não há muito para dizer sobre Egon Schiele que já não tenha sido dito. E, ainda assim, consegue ser notícia, por razões que lhe são alheias e que configuram um quadro de puritanismo revisitado a que Schiele teria provavelmente respondido com muito mais ousadia do que aquela que a censura lhe descobre agora.

Reformulemos: não é de censura em sentido canónico de que se trata; não é um programa de estado ou sancionado por uma autoridade central com o intuito mais ou menos explícito de moldar a sociedade em função de um determinado programa político. É uma coisa muito mais anónima, volátil e caprichosa, disseminada em grande parte pelas redes sociais, posta em prática por activistas de sofá e ratificado por uma ou mais minorias que reclamam dores próprias ou alheias como pretexto e fundamento para a tomada de uma posição moral. E tudo se resume a isto: o mundo ideal é um lugar de onde toda a possibilidade de afectação negativa deve ser eliminada. O disparate desta tese pode ser visto de dois ângulos distintos. Em primeiro lugar, se pensarmos num mundo como uma imensa sala de estar cuja climatização depende das definições escolhidas para o ar condicionado, é fácil percebermos que será não somente impossível regular todos os parâmetros de forma a satisfazer toda a gente como a constante afinação milimétrica exige da sociedade a imposição de uma vigilância neurótica. Por outra parte, a tese referida parte do pressuposto ingenuamente epicurista segundo o qual tudo quanto é desagradável ou inquietante é moralmente condenável e pernicioso. Uma das características mais interessantes de uma obra de arte, a de ser desafiante e perturbadora, deixa de ser uma vantagem para a compreensão deste ou de outro tempo e desta ou de outras culturas para passar a ser uma obsolescência agressora que reduz a obra de arte a um insulto sem mérito. Não é difícil imaginar no que se transformariam os museus acaso a curadoria das exposições fosse entregue aos activistas da higiene.

Esta posição moral, de que os subscritores garantem o carácter justo, é tudo menos justa e tudo menos moral. É uma posição acrítica, sem qualquer fundamento teórico e absolutamente infantil. Rege-se pelo princípio da máxima subjectividade em duplo sentido: qualquer pessoa que se sinta afectada negativamente por qualquer coisa pode e deve exigir que a fonte desse desconforto seja eliminada ou escondida. Não visa uma ideia de uma sociedade mais equilibrada e madura – pois tal exige esforço e sacrifício – nem propõe qualquer alternativa que não seja a abolição – pois tal exige pensamento. Propõe banir coisas e, a reboque de tudo quanto as sociedades civilizadas lograram obter em termos de ganhos sociais – a abolição da escravatura, o sufrágio universal, o reconhecimento constitucional dos direitos de todos os cidadãos – o seu fim último, mesmo que o desconheça, é o de deitar fora o bebé com a água do banho. Veste progresso mas tresanda a retrocesso. Diz-se da liberdade mas age como o mais empedernido fascista.

Por isso quando surgem notícias como a censura dos cartazes publicitários da exposição de Egon Schiele pela empresa de transportes públicos londrinos ou o mais recente caso de petição asinina – relativa a um quadro de Balthus (Thérèse Révant) – exigindo a remoção de uma obra constante da exposição permanente do MET, apetece perguntar para que serviram guerras mundiais e cadafalsos quando o monstro, na verdade, aprendeu a caminhar incólume mesmo no meio de nós.

11 Dez 2017

Trompete

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou uma onda contínua de embalo cruel, quero encher todos os copos com whisky, os oceanos e sistemas de canalização com single malt e trazer substância caótica às vossas inócuas vidas. Sou olhos cerrados no sublime, capturados pela fantástica nota que destrói o mundo. Uma escala imprecisa de variados agudos e precoces graves, uns soltos, outros despidos, expondo melancolia ao sol, a caminhar para onde o vento escolher em direcção à arritmia de cósmicas tarolas.

Sou um vibrato de dourados. Dou o remate entre saliva e vida, deslizo com o veludo do Chet e corto com as facas do Miles, sou trilogia oscilatória, um metal dourado erigido em direcção ao firmamento. Fixo as coisas no definitivo, transformo o momento numa fotografia de nota azul.

Levo os exaltados Deans e Jacks a saltarem afirmativos num amplexo que embarca todo o tempo que os relógios são capazes de conter. Sou exaltação de metedrina, combustível para almas que rasgam continentes de costa a costa. Tenho carícias de cetim e vertigem de suor, aceito tudo o que o alcatrão me traz, sou o seu mais benevolente filho e amante.

Vivo em sessões a preto e branco em caves do East Side, uma sépia alma, longos e sofridos dedos negros em mim a voar num indómito vento melódico.

Sou o ultraje que matou Lee Morgan, demasiado ousado para chegar aos 30, estouvado e escandaloso maquinista do comboio azul. Que me perdoem os saxofones, mas vocês são a minha salada, o acompanhamento, os lençóis onde me espreguiço libidinosamente. Tenho estado calado, antecipação nervosa no bocal, à espera de uma abertura para trazer o abismo ao ritmo do contrabaixo.

Sou o melhor que a vida tem para oferecer, autenticidade recheada de ingenuidade, sou uma prenda inesperada num dia triste. Bochechas em lua cheia, amendoins salgados e descida ritmada até à mais aguda nota abafada pela surdina numa noite tunisina. Como fui feliz e torcido naqueles duplos balões de ar, cercado por anticiclones de fumo e corações brutos, meu querido pai Dizzy, minha alada mãe Bird, percursores artísticos da luta por direitos civis dos negros. Miles nosso que estais no céu, santificado seja o vosso bop, tanto no Harlem como em Nova Orleães, venha a nós o beat e livrai-nos de Kenny G. Amen-doim.

Salt Peanuts, errante e aos saltos, com ginga na anca, matreiro como uma sorridente hiena e mais ágil que qualquer metal de orquestra.

A minha voz é o som que exclama: Sim! Que impele à fuga das triturantes maquinações do tédio, que arranca sorrisos demolidores a anjos sacanas. A minha campânula é a fonte de vida desbragada, a liberdade que esmaga a conformidade, a paisagem adequada à ferocidade dos amantes, um divino chafariz sonoro.

Trago alucinações e corpos suados a caves escuras, um sentimento sacramental a tudo o que é transitório, o gosto do ferro na saliva. Sou o completo oposto da docilidade, a estrada que se abre para a viagem infinita sem qualquer vestígio de destino no horizonte.

Venham os saxofones e o titubeante contrabaixo suspirar pelo Terror vindouro, pela estridência que vai da agonia ao êxtase num amplo ápice. Que a luz rompa a treva como nos primeiros clarões de Vermeer e na revolta das alvas ondas de Turner. Sou um veículo de dom, o pedaço de metal que faz a extensão do Homem até ao Cosmos, a transcendência numa escala de notas astrofísicas.

Projecto delírio fulminante e o nascimento do cool, pedaços de Espanha e África trasladados através do Atlântico. Sou um milhão de olhos raiados de sangue, veias salientes, esgares gelados, a perdição da carne com um trio de pistões que nascem e se põem como o Astro. Transformo marginais em deuses, becos em catedrais, fome em abundância, silêncio em amor.

Sou a Anunciação, as sete trompetas do Apocalipse que pintam tudo de preto depois de rompido o sétimo selo. Trago presságios de fim, declaro o óbito da humanidade, a tudo precedo e a tudo sobrevivo. Sou o céu e o inferno.

11 Set 2017

Chan Kai Chon, director do Museu de Arte de Macau: “O MAM deve ser para todos”

Chan Kai Chong tem um objectivo: quem entrar no museu que dirige deve conseguir encontrar aquilo que procura. Por isso, quer uma instituição diversificada, capaz de comunicar com as várias comunidades que vivem na cidade. Para o novo responsável pelo MAM, o espaço museológico não tem razões para temer a concorrência regional. Basta que continue a afirmar-se como o local onde cabem diferentes culturas

[dropcap]A[/dropcap]Assumiu o cargo de director do Museu de Arte de Macau (MAM) há dois meses. Como é que está a ser este desafio?
Em primeiro lugar, devo dizer que, apesar de ter feito investigação sobre história de Macau, e estudos de história de arte chinesa e acerca do intercâmbio artístico entre Oriente e Ocidente, gerir um museu é algo completamente diferente. Tenho de conhecer o funcionamento normal de cada parte administrativa e as que lidam com os assuntos ligados à museologia. Por isso, para mim, é um desafio. Simultaneamente, fiquei muito contente por ter uma oportunidade para aprender. Creio que toda a gente precisa de aprender ao longo da vida.

Vem da área da educação artística, que foi uma das apostas visíveis do MAM. É uma das áreas que quer desenvolver no museu? Para que o MAM tenha público, é preciso fazer formação de públicos. Quais são os seus planos nessa matéria?
O museu tem organizado muitos cursos, destinados a adultos, adolescentes e crianças. Por exemplo, no piso 0 temos acções de formação destinadas aos miúdos. É uma forma de educar e de aumentar o conhecimento artístico das crianças. É também um modo de os miúdos conhecerem o conceito de museu. Neste momento, também temos alguns trabalhos destinados aos Amigos do MAM, pelo que organizamos visitas guiadas, acções de formação e visitas fora do território. Além disso, o museu tem colaborado com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude. Em conjunto, são organizadas visitas para que todos os alunos do sexto ano venham ao museu. Através das visitas guiadas, explica-se como se deve visitar um museu e como é que se apreciam obras de arte num espaço destes. É uma parte da disciplina de Artes Visuais na escola. Os museus têm mais recursos artísticos para responderem a estas necessidades. Estive a falar com os nossos colegas sobre a possibilidade de, no futuro, se prepararem mais materiais didácticos e de apoio destinados a cada grupo etário, para que os miúdos percebam melhor, através de alguns textos e jogos, e se possam aproximar mais das obras de arte.

Em termos gerais, como é que olha para o desenvolvimento do MAM? Que caminho é que este museu deve seguir?
Acredito que o museu deve ser para toda a gente. Na semana passada inaugurámos uma exposição: quase todos os artistas são jovens. Mas, no quarto andar, temos um grande mestre de pintura chinesa. E temos também uma exposição sobre as mulheres, constituída a partir do nosso espólio. Como temos quatro pisos, gostava que as pessoas, quando entrassem aqui, pudessem encontrar o que querem ver, o que querem aprender. É esse o meu objectivo. Por outro lado, vamos aumentar os recursos humanos para que possam ser melhoradas as visitas guiadas. A ideia é fazer com que os visitantes tenham uma maior facilidade em saber o que ver e qual é o conceito original, para saber como ver as obras.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Macau é um território pequeno e muito associado ao jogo – não à arte. Que imagem é que o MAM pode ajudar a projectar? É possível que o MAM possa fazer parte da imagem de Macau?
O MAM tem 18 anos. Este museu tem representado um papel importante na divulgação da cultura chinesa no território. Macau não é só uma cidade de casinos, tem uma história diferente e muito rica. Um museu serve, em primeiro lugar, como um sítio onde os visitantes podem ter uma sensibilização estética. Em segundo lugar, uma visita a um museu pode servir para aumentar os conhecimentos através dos quadros. Acredito que, aquando da criação dos quadros pelos artistas, existem intenções, ideias e sentimentos – isto é conhecimento. Se quisermos atingir estes dois objectivos, as nossas exposições e actividades têm de ser muito diversificadas. Macau tem as comunidades chinesa, portuguesa e de língua materna inglesa. Por isso, precisamos de diversificar os temas dos nossos trabalhos.

Nos últimos meses, temos ouvido falar muito da integração regional, com a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau a ser estudada. Na perspectiva da futura grande área metropolitana, em termos artísticos vamos ter muita concorrência das cidades em redor. Como é que o MAM pode ser diferente? Que lugar é que pode ocupar neste contexto?
Antes de mais, gostava de dizer o seguinte: a comunidade chinesa de Macau é constituída por muitas pessoas com diferentes proveniências. Cada uma tem o seu background cultural, assim como eu tenho origem na Província de Guangdong. Quando se fala na Grande Baía, este conceito engloba as diferentes cidades da zona do Delta do Rio das Pérolas. A maioria tem a mesma raiz cultural. Qual é o papel que precisamos de ter neste contexto? O MAM tem uma história de 18 anos e a experiência de mostrar os diferentes grandes mestres ocidentais e orientais neste território. Em comparação com museus de cidades vizinhas, temos o nosso espaço para continuarmos a ter o privilégio de representar um papel que, em primeiro lugar, deve mostrar a cultura chinesa de Macau – através das relíquias e pinturas chinesas –, para transmitirmos a herança da cultura chinesa. Temos colaborado com o Museu de Orsay e o Victoria & Albert de Inglaterra, temos esta ligação. Acho que podemos continuar a ter um papel relevante na divulgação das culturas chinesa e ocidental. Também estou convencido de que, para o ano, o nosso papel na divulgação da arte e da cultura portuguesa vai ser maior do que no passado recente.

Há alguma novidade que possa adiantar em relação a essa presença portuguesa no MAM?
Neste momento, estamos em preparativos. Desde que assumi o cargo de director, fui a Itália, para ver a Bienal de Veneza, e depois fui a Portugal. Lá estive em alguns museus e nalgumas galerias, bem como em estúdios de artistas de Lisboa. Já temos algumas ideias para avançar com projectos. Neste momento estamos a trabalhar para isso.

Como é que olha para o desenvolvimento da arte em Macau? A cidade é pequena, não existe uma Faculdade de Belas-Artes.
O Instituto Politécnico de Macau tem, há já muito tempo, uma Escola Superior de Artes. Também tomei conhecimento de outra universidade que também tem o curso de Artes. Por isso, penso que, neste momento, Macau tem cada vez um espaço maior para a formação profissional e académica nesta área. Para mim, é um pouco difícil descrever o cenário das artes em Macau. Há muitas formas de arte. Quando falamos de artes plásticas, vemos que a arte contemporânea é mais viva do que a de outros grupos de artistas. Os artistas na vertente contemporânea são mais visíveis.

Isso significa que há um maior dinamismo nos artistas mais jovens?
Macau é diferente da China e do estrangeiro. Nem todos os artistas são profissionais. Mas alguns jovens em Macau, neste momento, já começaram a ter a sua imagem como artistas profissionais. Isto é uma mudança muito significativa ao longo da história da arte de Macau. Estudo a história do território há 20 anos e nota-se que isto está a acontecer. É um bom sinal na evolução da arte de Macau. Mas é difícil fazer uma avaliação global – há quem trabalhe em pintura chinesa, outros trabalham em arte contemporânea. Quando me refiro à arte contemporânea, falo apenas da arte ocidental. Na pintura chinesa, embora haja pessoas que estão a alterar o seu gosto estético e a criar novos estilos, geralmente os artistas gostam mais das técnicas tradicionais.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Qual é o seu maior desejo para o MAM?
O meu maior desejo é que os nossos trabalhos – quer na parte administrativa, quer na componente académica – possam aumentar e chegar a um nível razoável em termos de museologia. Depois, queremos publicar mais materiais em termos de investigações e aumentar a velocidade da publicação dos catálogos de exposições. No futuro, gostava que o MAM fosse parte da vida dos nossos cidadãos.


Nas mãos do historiador

Natural de Zhongshan, província de Guangdong, Chan Kai Chon fez o ensino secundário em Macau, na escola Hou Kong. A arte não foi a primeira opção académica do director do MAM: quando chegou a altura de frequentar a universidade, foi para Jinan, onde estudou Economia. Com a licenciatura concluída, Portugal apareceu no seu percurso, com dois anos passados em Coimbra, onde frequentou o curso de Língua e Cultura Portuguesa. De regresso a Macau, começou a trabalhar na Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). Mas, uma vez mais, surgiu a necessidade de estudar: em Nanjing fez o mestrado de Pintura Chinesa. Seguiu-se Pequim e a Academia Central de Belas-Artes, para estudar História de Arte. Trabalhou na DSEJ durante 20 anos, “sempre em áreas relacionadas com a educação artística”, nota. Chan Kai Chong tem várias obras publicadas no domínio da história de arte em Macau, na China Continental, em Hong Kong e em Singapura. Além disso, dedica-se ao desenho e à pintura.


Chagall para o ano

O Museu de Arte de Macau recebe, no próximo ano, uma exposição de obras do pintor Marc Chagall, adiantou ao HM o director da instituição. Para já, ainda não há detalhes sobre o que será mostrado no território da autoria do multifacetado artista, fortemente influenciado pelo fauvismo e pelo surrealismo. “Os nossos colegas do Instituto Cultural foram a Paris em Maio”, explicou Chan Kai Chon. “Estamos a trabalhar neste projecto.” Dos planos para 2018 do MAM faz ainda parte uma exposição de pinturas a óleo de artistas russos. Além disso, a colaboração que tem vindo a ser desenvolvida com o Museu do Palácio de Pequim deve conhecer novos desenvolvimentos, com mais um projecto.

18 Jul 2017

Sílvia Patrício, artista plástica: “Prefiro ir buscar as imagens às palavras”

Está em Macau à procura de referências para o seu novo projecto. Sílvia Patrício criou as imagens oficiais da canonização de Jacinta e Francisco. A artista plástica falou ao HM do seu percurso, da sua independência e do que espera levar do território

[dropcap]C[/dropcap]omo é que começou a carreira na pintura?
Gostava de desenhar e fui estudar Artes Plásticas para as Caldas da Rainha. Naquela altura pensei no curso como uma forma de dar aulas de uma matéria de que gostava. De certa forma, era uma segurança. Quando terminei o curso já tinha uma loja de objectos produzidos por mim. Mas só comecei a pintar quando terminei o curso. A escola era mais virada para a produção de, por exemplo, instalações. Aliás, na altura até optei pela área da escultura, não tanto por ser das minhas favoritas, mas sim porque era uma oportunidade de ter acesso a máquinas de explorar técnicas que, de outra forma, seria mais difícil.

Deu aulas numa fase inicial da carreira. Acha que é possível ensinar aquilo a que se chama ‘talento’?
Sim. Acho que qualquer arte é primordial e deve ser ensinada desde muito cedo. Independentemente da forma de arte, é uma forma de desenvolver a criatividade. Há uma grande lacuna neste campo que se manifesta na desvalorização de um ensino real das artes desde criança. Infelizmente, as pessoas são educadas com a frase “não tem jeito para o desenho, não pode seguir uma carreira artística”. Mas, para mim, qualquer pessoa, desde que seja acompanhada, pode criar. Apesar de gostar de ter dado aulas, o que realmente gostava era de desenhar e de pintar. Acabei por deixar tudo, a loja e as aulas, e dedicar-me completamente à pintura.

Foi quando produziu as obras que integraram o projecto “Essa Paixão Proibida”, inspirado em “O Crime do Padre Amaro”?
Sim. O projecto ainda foi realizado a fazer outras coisas, mas com a sua venda percebi que a pintura podia ser sustentável.

Como é que apareceu a ideia de pegar neste romance de Eça de Queirós?
Estava a ler o livro e, como vivo em Leiria, ao passear pelas ruas, fui descobrindo que muitos dos edifícios por onde passava serviram de cenário ao romance. Fui-me vendo nos próprios espaços. Acabei por pedir autorização para visitar e fotografar. “Essa Paixão Proibida” passa pelo lado físico, que existe e que tem estes elementos reais do contexto do livro, e por um lado fantasioso em que está a minha visão do que leio e em que dou uma cara a personagens que existem de forma apenas escrita.

Como é recriar um romance nas telas? Estamos a falar de um escritor que também é muito descritivo. Funcionou como uma ajuda, de alguma forma?
Ajudou muito. É claro que temos de criar sobre o que lemos mas, por exemplo, um rosto se for descrito como sendo redondo, tendo lábios finos, etc., tento seguir esses traços.

Mas usa modelos reais?
Sim. Vou à procura de pessoas que façam parte da minha vida e que, de alguma forma, correspondam aos traços que idealizo. Também procuro pessoas desconhecidas, mas tento sempre ir ter com as que conheço porque gosto de as incluir no meu trabalho. Acho que é um processo interessante.

A instalação é agora o formato que caracteriza grande parte do que faz. Porquê?
Na altura de “Essa Paixão Proibida” fiz um quadro referente à tecedeira de anjos. Chamava-se assim à mulher que fazia desaparecer as crianças indesejadas. A personagem está a tecer num tear e do tapete saem crianças com asas. Acompanhei a tela com esculturas em que esses “anjos” são uma espécie de continuação tridimensional da própria pintura. Ao projecto juntei um trabalho de sonoplastia feito pelo António Cova. O público tinha desta forma um meio para ouvir um outro trabalho que continha os trechos que inspiraram cada tela. Acabei por conseguir ter algum sucesso e dar-me a conhecer. A colecção foi vendida na totalidade a um coleccionador privado, o que me permitiu continuar a trabalhar apenas na área da pintura e artes plásticas. Depois, acabei por perceber que a junção de vários meios e a sua conjugação completa os próprios trabalhos. Dá-lhes outras vidas.

FOTO: Ricardo Graça / Jornal de Leiria

É a autora das imagens oficiais da canonização dos pastorinhos que foram vistas no mundo inteiro. Como é que este trabalho apareceu e como está a ser encarado?
O convite surgiu na sequência de outro convite. O Museu de Leiria tinha-me convidado para fazer um quadro para a sua colecção e, numa das reuniões, conheci o director do Santuário, Marco Daniel. Ele teve acesso ao meu trabalho, mostrou-se interessado e disse que gostaria de ver como seriam os pastorinhos através do meu olhar. Tratava-se de um trabalho iconográfico e o que fiz foi tentar dar vida àqueles seres que conhecia apenas de fotografias. O meu objectivo não era só chegar a um retrato dos pastorinhos, era conseguir captar o que eles tinham por dentro. Queria também que quem os visse sentisse que as obras eram mais do que um retrato. Os rostos são carregados, são de vidas que não foram fáceis. Juntei depois alguns símbolos que me foram pedidos e para o efeito criei uma auréola. Fazia sentido tratando-se de uma canonização. Acabou por ser uma forma de me dar a conhecer a uma população mais vasta, visto as imagens terem corrido o mundo.

Não trabalha normalmente com galerias e muitas vezes são elas que projectam os artistas. Foi uma opção em que insiste. Porquê?
Acho que é importante termos liberdade. É fundamental poder escolher os temas em que vou trabalhar. O que tenho sentido é que, sem estar a generalizar, muitas galerias vêm o artista como uma espécie de operário. Se antigamente as galerias podiam ter uma paixão pelos trabalhos ou pelos artistas que escolhiam e davam uma ajuda, sinto que na actualidade uma obra é um mero objecto comercial que valoriza e desvaloriza conforme, muitas vezes, a corrente do momento. Posso vender menos e não ser tão conhecida mas, até agora, esta independência foi a situação que me pareceu melhor para o que quero fazer. Não consigo ter o mesmo acesso e projecção que um artista de uma galeria. Em termos de projectos, os meus também são muito morosos.

Antes deste projecto ligado à religião, produziu “Humanário”, em que também pegou na Bíblia. Alguma razão em particular?
Já tinha pensado em fazer um projecto baseado nesse livro. Não o escolhi por motivos religiosos, mas por ser um livro, acima de tudo, sobre os Homens. Comecei a trabalhar e, na mesma altura, a minha mãe adoeceu subitamente e acabou por morrer. Pus em causa se deveria continuar com o projecto. Acabei por continuar e o próprio trabalho talvez tenha acabado por mudar um pouco. Quando se sabe que alguém vai desaparecer da nossa vida, penso que, mesmo inconscientemente, tentamos criar uma ponte com a parte que vai embora e que não se vê.

Vai buscar inspiração aos livros, acabámos de falar de dois. Porquê?
Apesar de gostar muito de cinema, por exemplo, prefiro sempre ir buscar as minhas imagens às palavras. Os filmes acabam por condicionar o nosso imaginário, já nos dão uma imagem. É muito mais complicado estar a criar uma coisa visível sobre outra também visível. É muito interessante agarrar nas palavras e delas ir para outra coisa, para uma coisa física, seja uma pintura ou um objecto.

É a primeira vez na Ásia e está cá também para preparar novos trabalhos. Como está a correr este encontro?
Macau é um sítio muito particular. Ainda é cedo para falar porque estou cá há pouco tempo. Uma coisa que pode ser banal, mas que me impressionou: se olharmos para os edifícios, cada varanda tem a sua decoração. São todas diferentes. A estrutura é a mesma, mas umas são de vidro, outras de pedra, outras de metal e madeira. Nunca tinha imaginado um prédio com as varandas todas diferentes. Isto faz-me pensar que aqui as pessoas têm um universo único que se transmite, por exemplo, nestas coisas. Sinto também que anda tudo a olhar muito para dentro de si e quando olham para fora é para o telemóvel. Entretanto, espero levar daqui elementos para um projecto futuro em que pretendo juntar os mundos que conheço. Neste momento estou a pesquisar, a absorver, por exemplo, padrões e estruturas. Gostava que o resultado do que ando a ver e sentir pudesse cá vir em forma de projecto. Sem cair no lugar-comum, gostava de desenvolver uma ligação entre Portugal e China no geral.

O seu trabalho já foi várias vezes comparado com o de Paula Rego.
Já ouvi isso muitas vezes. De certa forma entendo o paralelismo. Trabalhamos um pouco acerca dos mesmos universos em que existe a pessoa associada a elementos fantasiosos. Por outro lado, a dimensão também é idêntica, é em escala real. A Paula Rego também trabalhou “O Crime do Padre Amaro”, mas de uma forma muito diferente. Ela debruçou-se sobre a temática do aborto e eu fui pelo lado da paixão proibida. De alguma forma, até foi uma honra ter tido essa comparação. No entanto, actualmente penso que, quem conhecer o meu trabalho, já não fará essa afirmação. A mudança tem sido natural e inconsciente. Aos poucos vou entrando noutros universos e vou descobrindo outras coisas.

29 Mai 2017

Natália Gromicho, artista plástica: “Macau foi um sonho realizado”

Depois de ter estado em Macau no ano passado, para uma exposição exclusivamente produzida com pinturas ao vivo inspiradas na Ásia, Natália Gromicho avança agora para o lançamento do seu primeiro livro. “Do Ocidente para o Oriente” é uma representação, na linguagem da artista, dos sítios por onde passou. O livro é apresentado a 25 de Maio em Lisboa

 

O lançamento da obra “Do Ocidente para o Oriente” resulta de uma série de exposições que, por seu turno, deram origem a uma apresentação global no Museu do Oriente em Lisboa. Como surgiu a ideia de fazer este livro?

O livro surge como um passo quase natural na sequência de um trabalho realizado ao longo de vários anos. As obras reúnem todas a influência oriental em que me inspirei na Índia, em Singapura, em Timor-Leste e no último destino por onde passei, Macau. Foi um conjunto de trabalhos cuidadosamente preparados e seleccionados, inicialmente para integrar a exposição do Museu do Oriente de Lisboa. Com o resultado conseguido, pensei que seria um trabalho merecedor de ser mostrado ao público através de um outro meio. Para isso, optei por um formato que nunca tinha utilizado antes, o do livro.

O que vamos ver nesta edição?

Tratando-se de uma primeira edição em livro, espero que consiga retratar, através da minha linguagem, algumas das obras que, penso, foram de maior relevo dentro do percurso a que chamo do Ocidente para o Oriente. É uma selecção criteriosa dentro do material que foi exposto.

O que conta “Do Ocidente ao Oriente”? De que “viagens” fala ou que “viagens” quer contar?

A minha ideia é que o leitor percorra as várias fases e influências que senti ao longo das viagens que fiz e experiências por que passei durante cerca de quatro anos. A distância que separa o Oriente do Ocidente foi a base de todo este projecto. É lá, longe, que se encontra uma cultura que considero extremamente vasta e muito rica. Tentei abordar aquilo que, para mim, fazia mais sentido e que me era mais querido. Do que mais admiro no Oriente e mais me tocou foi a noção de disciplina, o vestuário usado e a arquitectura também tão diversa. Espero que, de alguma forma, tenha conseguido homenagear de forma correcta algumas características destes povos que me serviram de inspiração. Mas tudo começa em Nova Deli, com o primeiro contacto a Oriente. “Humanidade” foi o nome da exposição onde apresentei obras já inspiradas em ambientes, monumentos e na própria cultura indiana. A ideia era já dar a minha interpretação do que senti. Depois veio Singapura. Penso que podemos considerar que Singapura representa a grande mudança da minha expressão plástica. Na prática, o que aconteceu foi o abolimento do traço e a incursão num expressionismo abstracto profundo. O objectivo é também levar o espectador a criar a sua própria linha de pensamento. Desta passagem em Singapura nasceram algumas das obras que considero mais icónicas e de maior relevo dentro do meu espólio. Penso que o contacto com aquela arquitectura teve também um papel fundamental e sinto-o como marcante. Os edifícios emergiam. Depois temos Timor Leste. É ainda uma presença constante no meu processo criativo, um lugar onde encontrei um povo extremamente inteligente e sensível. Pintar em Timor foi um grande desafio, principalmente para conseguir explicar o que me leva a pintar desta forma. Ali a pintura abstracta é uma forma de arte que os timorenses não contemplam. Macau é o marco de uma nova era, é o regresso à cor e à minha “Nova Linguagem Pictórica”. Foi em Macau que escolhi a produção em grande formato que até agora utilizo de forma permanente. É uma alteração radical da forma de comunicar com o público que se mantém. Macau foi um sonho realizado. Mas não fica por aí, além da minha grande admiração por Macau, que sentia já há muito, antes mesmo de ter tido oportunidade de cá estar. A exposição “Nova Linguagem Pictórica” representa também um novo início para mim: marca o começo de uma nova fase minha e da minha pintura. Por outro lado, coincidiu com uma data assinalável: os 20 anos de carreira. Juntando tudo, o livro pareceu-me uma boa forma para dar destaque a todo um conjunto de situações de relevo para mim. Começa com a obra “Lusíadas” e termina com “Torre de Macau”. Os “Lusíadas” é a minha homenagem a Luís Vaz de Camões, pai da língua portuguesa. 

Em que critérios se baseou para chegar à selecção final?

Foram trabalhos cuidadosamente seleccionados de entre os trabalhos produzidos no período de 2012 a 2016. São “expressões” das minhas influências orientais. Tive em atenção que fosse uma abordagem global, desde trabalhos que foram exibidos em Nova Deli e em Singapura. Tive ainda em atenção o que produzi in loco, com as pinturas ao vivo que fiz em Díli ou aquando da minha passagem por Macau. Depois, e no Ocidente, está sempre Lisboa, a minha cidade.

O que espera que o público veja neste livro?

Espero que o público tenha contacto com a minha obra, com a minha linguagem, e que percorra o caminho que preparei para que o leitor sinta na pintura algumas das experiências que eu vivi, não só a Oriente, como a Ocidente.

 

26 Abr 2017

Poly Auction | Leilão traz obra de Zeng Fanzhi a Macau

O Poly Auction Hong Kong colabora pela primeira vez com a organização homónima local. O objectivo é trazer a arte chinesa a ambos os territórios e traduz-se numa exposição de uma das obras emblemáticas de Zeng Fanzhi. Depois do Louvre, o n.º 6 da “Mask Series” está no Regency Hotel

[dropcap style≠’circle’]“F[/dropcap]usão” é o nome do certame do Polly Auction que, pela primeira vez, conta com a colaboração entre as delegações de Hong Kong e de Macau. Com a iniciativa, a cargo de Sabrina Ho, pretende-se mostrar o que de melhor se faz na arte moderna e contemporânea chinesa. A ideia é partilhar entre os dois territórios a arte, em exposição e de olhos postos no mercado, que se faz no Continente.

Em Macau a “Fusão” acontece no Regency Hotel com a mostra de um dos nomes mais importantes da expressão plástica chinesa da actualidade, Zeng Fanzhi. Depois de passar pelo Louvre, o n.º 6 da colecção “Mask Series” está até 5 de Abril no átrio do Regency para quem o quiser apreciar.

A pintura a óleo sobre tela, de larga escala, data de 1996. Três anos antes, Zeng mudou-se para Pequim e “sobreviveu num tempo de grandes mudanças”, lê-se no catálogo do evento. Terá sido a dinâmica histórica que o incentivou à realização da série. Marcado pelo expressionismo que já caracterizava o seu trabalho, “exagera na proporção das mãos e da cabeça, enquanto esconde expressões por detrás das máscaras, brancas e frias, que sorriem”.

Ao contrário dos primeiros quadros da série, em que as personagens apareciam bem vestidas e com ar contemporâneo, o n.º 6 é o primeiro trabalho que “envolve a narrativa de uma terceira pessoa na elaboração de uma perspectiva individual”. Situa-se já longe de uma experiência pessoal, mas “permanece nas memórias de quem a viveu de perto e remonta à juventude da Revolução Cultural”. “As máscaras, os sorrisos, os corpos e os contrastes compõem uma imagem íntima e cheia de hipocrisia”, ilustra a organização. A obra de Zeng Fanzhi vai a leilão, mas não é revelado o valor de licitação.

Obras preciosas

Já os restantes cinco trabalhos que integram o evento deste ano, e que vão estar em exposição no Grand Hyatt Hong Kong. de 1 a 4 do próximo mês, perfazem uma base de licitação de quase cinco milhões de dólares americanos. O conjunto é constituído por obras de Zao Wou-Ki, Wu Guanzhong, Chu Teh-chun, Li Keran e Xu Beihong.

De Zao Wou-ki é a tela “06.02.74”, que marca uma ruptura dentro do trabalho do artista. Produzido após a morte da segunda mulher, é uma obra que deixa para trás o recurso às cores ricas que marcavam os trabalhos do mesmo período. “06.02.74” é considerado um quadro de transição técnica que revela “uma composição complexa, traços dinâmicos e uma gradiente delicada de cores, num trabalho clássico que integra a pintura a óleo do Ocidente e o a tinta do Oriente”, lê-se na apresentação.

“Reclining” de Wu Ganzhong data de 1990 e é dedicado à expressão do nu, tema pelo que o artista é também conhecido e que marca “a primeira metade do seu período criativo”. Wu Ganzhong diz ter percebido, enquanto jovem estudante em França, que “toda a beleza plástica está relacionada com o corpo humano”. A partir desse momento, as suas obras passaram a retratar a nudez de forma a conceber paisagens. Foi esta abordagem que fez com que todos os seus trabalhos viessem a ser queimados durante a Revolução Cultural. “Reclining” é um regresso às origens produzido já com 72 anos de idade, motivo que tem levado à sua exibição por todo o mundo.

A utilização de tons de azul é o mote para “Summer”, de Chu Teh-Chun, na representação de profundidade espacial. A ideia é a “perseguição da evolução da natureza, mais do que a combinação de elementos abstractos”.

Das cinco obras presentes em Hong Kong, “Summer Mountains” de Li Keran tem a base de licitação mais valiosa. Com um valor inicial acima dos dois milhões de dólares americanos, é um “exemplo excepcional de estética da paisagem” do artista. Datado de 1986, já na final de carreira, o clássico da pintura chinesa combina técnicas orientais com ocidentais para a expressão “de uma atmosfera poética na representação de bosques e montanhas”.

De 1939 é “Standing Horse” de Xu Beihong. O quadro foi criado durante a guerra sino-japonesa em que o artista foi também activista, empenhado na recolha de donativos. De acordo com a organização, “Standing Horse” é uma obra particularmente importante porque representa uma das maiores especificidades de Xu Beihong na pintura de cavalos, ao mesmo tempo que é uma representação simbólica da força chinesa”.

28 Mar 2017

O que tem a Primavera chinesa a ver com Picasso? 毕加索的山水画

Pois, realmente o que será?

Vou começar por uma pessoa que quase ninguém conhece

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]uo Xi 郭熙 (1020 – 1090) foi um pintor chinês shanshui que viveu durante a Dinastia Song do Norte. Era um cortesão, um literato, um pintor culto que desenvolveu um sistema incrivelmente detalhado de pinceladas distintivas. Este sistema veio a revelar-se importante para artistas que vieram depois dele.

Guo X- “Árvores velhas, distância nivelada” (1080)

O que é uma pintura Shanshui. As pinturas Shanshui retratam montanhas e temas aquáticos e implicam um grande rigor na criação de um equilíbrio quase místico entre uma série de requisitos complexos, a composição e a forma. Todas as pinturas shanshui devem ter três componentes básicos:

Os Trilhos – Os trilhos nunca devem ser a direito. Devem ser sinuosos como um curso de água. Este truque ajuda a dar profundidade à paisagem conferindo-lhe vários planos. O trilho, ou passagem, pode ser um rio, o caminho que o ladeia, ou um raio de sol que atravessa o céu sobre o dorso da montanha. Prevalece o conceito de nunca criar padrões inorgânicos, mas sim de mimar os padrões criados pela Natureza.

O Limiar – Os trilhos devem conduzir a um limiar. O limiar está lá para nos receber e para nos dar umas especiais boas vindas. O limiar pode ser uma montanha, a sua sombra projectada no solo, ou o seu recorte contra o horizonte. A ideia é que a montanha, ou o que a contorna, sejam definidos claramente.

O Coração – O coração é o ponto focal da pintura e todos os elementos devem conduzir-nos a ele. O coração define o significado do quadro. Cada quadro deve ter um único ponto focal e todas as linhas desenhadas devem levar-nos directamente para lá.

Uma verdadeira pintura shanshui não deve representar a paisagem que o pintor viu, mas sim a paisagem que o pintor “pensou”. Ninguém quer saber se as cores e as formas do quadro são parecidas com a realidade. A pintura shanshui vai contra as ideias feitas sobre o que um quadro deve ser. Os quadros não são uma janela aberta aos nossos olhos, são uma janela aberta à nossa mente. A pintura shanshui é um veículo para a Filosofia.

Guo Xi – “Primavera Antecipada” (datada de 1072)
Colecção do Museu do Palácio Nacional, Taiwan

Uma das obras Shanshui mais famosas de Guo Xi é a Primavera Antecipada, datada de 1072. Nela podemos ver as técnicas inovadoras na criação de múltiplas perspectivas, que ele designava por “ângulo da totalidade”, mas que também ficou conhecida por “Perspectiva Flutuante,” uma técnica que faz deslocar o observador e o seu olhar. As montanhas de Guo e os seus cursos de água primaveris são luminosos e sedutores como um sorriso…

O jardim do Templo Ditoku-ji em Quioto, construído originalmente em 1509, é uma cópia viva das pinturas de Guo Xi, inspirado na estética da Perspectiva Flutuante. Para apreciar cada canto e cada pedra do jardim, o visitante deve deslocar-se à sua volta e mudar de posição. Aqui, o jardim passou a ser um modo de vida.

Muitos anos mais tarde, quando ainda estava na China e andava no Liceu, vi pela primeira vez rostos e corpos femininos de Picasso e aí compreendi, de repente, o significado do “ângulo da totalidade” de Guo Xi.

8 Mar 2017

Margarida Saraiva: “É necessário avançar com coragem”

Margarida Saraiva dedica a vida e o tempo à arte. A fazer curadoria no Museu de Arte de Macau, tem a carreira marcada pela dedicação à investigação e à educação. Há três anos fundou a Babel, associação que se dedica à arte contemporânea numa vertente pedagógica, sem esquecer questões ambientais

[dropcap]O[/dropcap] seu nome tem estado, ultimamente, associado à curadoria. Como é que apareceu esta vertente no seu trabalho?
Estudei História de Arte e depois Museologia. Trabalhei muito tempo como investigadora, mas era um trabalho que acabou por ser tornar aborrecido por sentir que tinha pouco contacto com as pessoas. Foi então que comecei a trabalhar voluntariamente em educação e a fazer cursos de artes para crianças. A minha função dentro do Museu de Arte de Macau (MAM) passou a estar mais ligada à educação do que à investigação. Entretanto, decidi criar a Babel para fazer mais coisas e a curadoria acabou por se lhe seguir. Sou curadora das pinturas históricas e contemporâneas do MAM e, em Abril, vai ser inaugurada a primeira exposição com esta função.

O que podemos esperar desta exposição?
É um trabalho centrado na mulher. A exposição divide-se em dois momentos: um baseado em pinturas, aguarelas e gravuras históricas que vão até meados do séc. XX com agenda para Abril e, perto do final do ano, tem lugar um segundo momento que inclui obras feitas apenas por artistas mulheres de Macau. O primeiro momento dá uma visão do papel da mulher na sociedade e a forma como ela é apresentada ao mundo da história da arte. A história da arte reforça o papel que a mulher deve ter. Temos obras sobre os dez trabalhos da mulher na sociedade chinesa, o casamento, a mulher na publicidade e o seu papel na família. Temos também retratos a óleo de mulheres proeminentes na sociedade local. É uma visão alargada daquilo que existe na colecção do museu. Vamos incluir também cerâmicas e tentar que a exposição não se feche, tentei uma abordagem interdisciplinar. A colecção do Museu de Arte de Macau situa-se, de um certo ponto de vista, na con uência de duas tradições artísticas muito diferentes. Temos obras que são maioritariamente de tradição chinesa e outras de tradição ocidental. Juntar as duas coisas na mesma exposição não é fácil, mas penso que consegui encontrar o fio à meada.

Porquê o tema? Uma forma de intervenção?
É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local. Nessa perspectiva, vale a pena pensar acerca desse assunto, até para estimular a criação artística entre as mulheres.

Como é que vê o panorama dos museus e espaços de exposições em Macau?
Macau tem espaços óptimos. A ideia de que não os há é uma falsa questão. A arte, hoje em dia, não precisa de galerias da mesma forma que as instituições não precisam de ter um lugar físico. O que é necessário é criar conteúdos porque há muitas instituições com espaços sem nada e que estão cheias de equipamentos sem ser utilizados. O que realmente interessa é criar conteúdo de qualidade e, quem for capaz de o fazer, tem as portas abertas em todas as instituições. Há também a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado.

“É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local.”

Onde estão os artistas para esses espaços?
Nenhuma cidade do mundo trabalha apenas com os artistas locais. É preciso criar sinergias e, nesse particular, os curadores podem dar uma ajuda: pôr as pessoas a trabalhar em conjunto. Colocar pessoas que sabem mais a comunicar com aquelas que possam ter menos oportunidades, os que têm mais conhecimento e menos capacidade económica com o inverso. É preciso fazer um caleidoscópio para que as coisas brilhem. Mas, para isso, é preciso fazer e querer. É necessário avançar com coragem, que é uma coisa que, por vezes, falta. Falta capacidade de visão, falta coragem na realização e falta capacidade de criar esse tal caleidoscópio.

É aí que se insere a Babel?
Gostava de trabalhar de uma forma interdisciplinar nas vertentes da arte contemporânea, da arquitectura e do ambiente com uma missão educativa, ou seja, com o objectivo de gerar oportunidades de aprendizagem reais, concretas, eficazes e, de alguma forma, inesquecíveis para jovens de Macau. O primeiro projecto que fizemos foi o “Influxos”. É uma ideia que envolve pessoas de Pequim, Macau e Portugal. É um projecto em movimento em que cada edição tem início em lugares diferentes. Juntamos estudantes da área do cinema e da arte contemporânea num processo criativo comum. Apresentamos aos alunos a forma como os artistas contemporâneos têm introduzido o cinema nas suas obras. Por exemplo, um filme pode ser concebido para ser projectado numa bola de gelo gigante que está permanentemente a derreter e, neste caso, a forma como vemos o filme, como o pensamos ou o escrevemos é diferente do que se aprende numa escola de cinema – e também não se aprende numa escola de artes onde as disciplinas ainda estão muito divididas. Com o “Influxos” queremos criar uma oportunidade que seja inesquecível, não só pelo facto de permitir aos alunos de várias partes do mundo trabalharem num projecto comum, mas também por promover uma abordagem mais experimental do que a que propõem, hoje em dia, as universidades. Foi um projecto muito bem-vindo pela parte do Instituto Cultural e, como tal, não tivemos dificuldade para que fosse financiado, porque vai ao encontro de toda uma política de promoção das indústrias culturais.

Como é que tem sido a adesão, especialmente dos estudantes do território?
Os alunos são, até agora, escolhidos pelas universidades e cabe às instituições decidirem o método de selecção. Estamos agora a pensar abrir, nas próximas edições, candidaturas independentes. Mantemos o modelo em que há uma participação fechada e, ao mesmo tempo, abrimos espaço a alunos que mostrem o portfólio para poderem ser seleccionados. O novo modelo tem a vantagem de abrir o leque de participações. O sucesso do projecto regista-se quando alunos de Macau descobrem que sabem pouco e que vale a pena investir em estudos em Pequim ou em Portugal. O confronto com a necessidade de mais conhecimento é muito importante para os alunos que nunca saíram do território.

O “New Visions” é outro projecto da Babel, mas com foco na divulgação.
As exposições em Macau são sempre colectivas. É evidente que, numa mostra colectiva, não se consegue ver a qualidade da obra de um artista. As exposições colectivas são muito boas porque mostram muita gente. Isto é óptimo para pôr nos relatórios que as instituições têm de fazer umas para as outras, para justificar gastos e preencher formulários. Dá muito jeito dizer que uma exposição teve 30 artistas, mas o que é que realmente as pessoas viram do trabalho de um criador ou o que é que o artista bene cia com a participação? Quisemos deliberadamente criar uma oportunidade dirigida a jovens artistas locais e trazer a este espaço pessoas que nunca tivessem tido oportunidade de fazer uma exposição individual.

“Há a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado.”

Como é que se processa? Não se trata apenas de uma exposição.
Cobrimos todos os gastos de produção da exposição, o que também é uma coisa rara em Macau. As instituições normalmente têm espaços, gastam todo o dinheiro na sua manutenção e acabam por não ter meios para apoiar os artistas.

O resultado é que os artistas que quiserem expor têm onde fazê-lo, mas têm de pagar do seu bolso toda a produção da obra. Isto não acontece em mais nenhuma profissão. O objectivo, aqui, é ainda produzir um livro. Aqui não há produção de um discurso crítico sobre a arte e, como tal, as exposições são apenas acerca de pôr obras na parede. Não há o pensamento do porquê de estarem expostas, de como estabelecem um diálogo entre si, como se ligam ao que é produzido na China e como se articulam com o que se faz no mundo. A qualidade das obras depende de uma malha de referências em relação às quais se situam e que lhes permite produzir discurso crítico visual a um nível mais alargado. Foi neste sentido que quisemos fazer um catálogo que produza esse discurso crítico. É um livro com muito texto que nos permite, a longo prazo, escrever a história da arte contemporânea de Macau.

As preocupações da Babel associam a arte ao ambiente. Como é que se concretiza esta vertente?
Relativamente ao ambiente, acabámos de participar na produção do livro “Árvores e Grandes Arbustos de Macau”, de António Paula Saraiva. O lançamento está previsto para este mês. Trata-se de um livro técnico e é a mais completa compilação sobre as árvores de Macau, numa edição trilingue e com ilustração de artistas portuguesas. Os desenhos são feitos a lápis e aguarela. Originalmente, a intenção era a produção de 256 gravuras mas não houve orçamento para tanto. Já zemos uma exposição no Instituto Internacional, e os desenhos vão ser digitalizados e impressos em tela de modo a circularem pelas escolas de Macau. O objectivo é dar a conhecer os principais arbustos da cidade à população mais jovem. É uma forma de sensibilização para as questões ambientais. Macau é muito densamente povoado e construído, mas não conseguimos ver as árvores. Quando andávamos a fazer o livro era impossível fotografar as árvores inteiras. Há sempre muito ruído e as plantas estão cobertas de pó. Este foi o trabalho que abriu as hostes na área do ambiente.

“Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.”

Este ano tencionam criar uma instalação num espaço público em grande escala que conta com a participação de um arquitecto japonês. O que é que vai acontecer?
Na área da arquitectura temos o “Macau Arquitecture Promenade” (MAP) em que intervimos em espaços da cidade. É um projecto que não é tão linear quanto os anteriores. Enquanto o “Influxus” e o “New Visions” vão de encontro às linhas de acção governativa, o MAP vai mais à frente. Não é de nível. A edição de 2017 não está garantida. Temos o programa nalizado, mas ainda não temos orçamento suficiente para avançar. Contamos com a vinda de um artista japonês que resulta de uma parceria que a Babel tem com o Departamento de Arquitectura da Universidade de São José. Surgiu, desta forma, a possibilidade de trazer um arquitecto que trabalha com questões modulares no espaço público. Chama-se Kengo Kuma. Temos o arquitecto satisfeito com a ideia de cá estar e queremos também trabalhar com os alunos da universidade no desenvolvimento do design final da instalação. Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.

4 Mar 2017

Prémio | Filme sobre Mio Pang Fei distinguido em Lisboa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “Mio Pang Fei”, do realizador português Pedro Cadeira, conquistou a Lebre de Prata do Festival Internacional Filmes sobre Arte Portugal, que encerrou no domingo à noite, em Lisboa, anunciou ontem a organização.

Contactada pela Agência Lusa, a directora do festival, Rajele Jain, indicou que a Lebre de Ouro, o prémio mais importante do certame, foi entregue ao filme “Retrato de um anti-poeta” (2009), do realizador chileno Víctor Jiménez Atkin.

“Abraham Cruzvillegas: Autoconstrucción” (2016), dos realizadores norte-americanos Susan Sollins e Ian Foster, recebeu a Lebre de Ferro e foram ainda entregues menções honrosas aos filmes “Pontas Soltas” (2016), de Ricardo Oliveira, e a “When water turns into drops”(2015), da holandesa Jeannice Adriaansens.

O filme “Mio Pang Fei”, do cineasta português Pedro Cadeira, sobre um dos mais conceituados artistas chineses, censurado pela Revolução Cultural Chinesa, que se refugiou em Macau, foi realizado em 2014.

O Festival Internacional Filmes sobre Arte Portugal decorreu entre a passada quinta-feira e domingo, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, exibindo 18 filmes, dos quais cinco portugueses, com estreia mundial ou nacional da totalidade das obras internacionais em concurso.

Nesta nona edição voltaram a estar em foco filmes que abordam temas artísticos em diferentes disciplinas, desde as artes visuais, fotografia, teatro, literatura, música, entre outras.

Desde o lançamento, em 2008, o festival apresentou cerca de 240 filmes, introduzindo o universo e práticas artísticas de mais de 350 criadores, músicos, bailarinos, realizadores e escritores, segundo um balanço da actividade elaborado pela organização.

Criado pela artista e programadora Rajele Jain, o Festival Internacional Filmes sobre Arte Portugal teve inicialmente o apoio do Festival Temps D’Images e, desde 2015, é produzido de forma independente pela Associação Cultural Vipulamati: Ample Intelligence.

O FILME

21 Fev 2017

António Conceição Júnior: “Sou religioso no sentido mais livre do termo”

Faz este ano quatro décadas de um percurso criativo que vai da moda à pintura, passando pela fotografia. António Conceição Júnior reflecte sobre o caminho andado e o que está para vir

[dropcap]4[/dropcap]0 anos de carreira, grande parte deles passados em Macau, embora tenha conhecido algumas “aventuras” no estrangeiro. Que diferenças fundamentais encontrou e de que modo podem elas ter um determinado papel na produção artística?
Não chamaria de carreira ao meu percurso, mas antes de vivências. Macau foi fundamental para a minha consolidação como criativo. Olhando para trás concluo que fui sobretudo criativo, quer no Museu, quer nas várias áreas de design em que me envolvi. Macau proporcionou-me momentos excelentes, enquanto as minhas experiências estrangeiras em Portugal, quase empre associadas a Macau – na grande exposição “Macau 400 Anos de Oriente” inserida na Quinzena de Macau na Fundação Gulbenkian em 1980, na Coordenação das acções de Lançamento da Missão de Macau em Lisboa em 1990, entre as quais realizei a minha primeira apresentação na área da Moda, e depois na Europália em 1991 foram muito enriquecedoras, porque sempre que me foi dada carta branca, liderando projectos ou acções, estes correram muito bem. Retribuí sempre com o máximo esforço e dedicação à confiança em mim depositada. Estas vivências vieram reforçar uma sensação de confiança no modo como liderei esses projectos. Comecei muito cedo, aos 27 anos a propôr ideias e liderar projectos e quando não sou eu, confesso que sinto alguma dificuldade em me integrar porque sempre tive ideias próprias.

Nos anos 80, refundou o Museu Luís de Camões e lançou o projecto do Complexo Cultural, que não chegou a avançar. Quer explicar a ideia central desse projecto? E será que hoje faria sentido criar uma instituição desse tipo?
Um esclarecimento: O Museu Luís de Camões foi criado em 1960. Sucedi ao seu primeiro director, Luís Gonzaga Gomes, em 1978, mas fui o primeiro a tempo inteiro. Tendo regressado a Macau em 1977, o então Governador Garcia Leandro contactou-me a pedir que analisasse o panorama cultural de Macau e procurasse uma forma de divulgar culturalmente o território. Lembro que, nesses tempos, Macau não dispunha sequer de uma galeria de exposições. A resposta, após a ponderação necessária, foi que eram precisos instrumentos e que um Centro Cultural era indispensável para uma abordagem abrangente, integradora, supra-linguística, da questão cultural. O projecto ficou latente e a minha energia canalizou-se para a reformulação do próprio Museu, enquanto suporte e espaço para os artistas plásticos de Macau. Foi nessa altura que foram assinados os primeiros acordos de cooperação com o Hong Kong Arts Centre e com a Fundação Calouste Gulbenkian. Mais tarde, o Governador Carlos Melancia nomeou-me seu assessor para a cultura e convidou-me para dar forma a um Centro Cultural. Estávamos em 1988 e, nessa altura, mudei o conceito para Complexo Cultural, tendo como base aquilo que hoje se chama de “sustentabilidade”. Incluía um hotel, um centro de convenções e uma Escola de Artes, aberta não apenas a Macau mas, após estudo feito, também ao Sudeste Asiático, o que permitiria não apenas uma interactividade entre os diversos componentes do Complexo Cultural como um intercâmbio entre os alunos de diferentes origens. Por volta de 2008, fui encontrar em Xangai um Centro Cultural com um projecto idêntico, o que mais consolidou a minha convicção de que estava certo. Hoje faria sentido um Complexo Cultural se não existisse o actual Centro Cultural. Tal como tive ocasião de dizer ao último Governador de Macau, que achou então o meu projecto demasiado ambicioso, não se faz um Centro Cultural para menos de 50 anos…

Ao longo destes anos ressalta, nos numerosos artigos que escreveu, o conceito de cidadania, a que parece atribuir uma importância singular. O que é para si a cidadania e de que modo a vivência de Macau serviu para apurar esse conceito?
Tive consciência de que Macau tinha a dimensão de uma cidade-piloto onde se poderiam realizar coisas fantásticas, quando regressei e dei início ao meu trabalho no Museu. Estávamos sob administração portuguesa, sendo a maioria da população chinesa, com muita gente de passagem, oriunda quer de Portugal quer da China. A consciência de pertença à cidade era algo que importava reforçar, fixar. São de então os primeiros projectos de classificação do património, a que o arquitecto Francisco Figueira tanto se dedicou e com quem tive o prazer de colaborar, são dessa altura as primeiras campanhas de limpeza da cidade (por acaso é meu o logo e o slogan “cidade nossa, cidade limpa”que ainda hoje usamos), são de então os primeiros encontros de artistas, o aparecimento dos primeiros jornais com artigos de reflexão sobre a cidade, etc, etc. Com o tempo, e sobretudo na década de 1990, o conceito de cidadania impunha-se com mais urgência e importância, no sentido de assumpção de todos os direitos e deveres de e para com a cidade. Era fundamental reflectir sobre a consciência cívica e o papel que cada um tinha a desempenhar neste processo. Eu, ligado ao então Leal Senado e responsável pela política cultural da Câmara, estava intrinsecamente ligado à vida da urbe, encontrando na Cultura a resposta para a Cidadania.

O que acha do actual momento cultural da cidade? Somos mesmo uma Cidade de Cultura ou não passa de um slogan?
Todas as cidades são portadoras de cultura. O slogan dos anos 1990 é uma redundância. A cidade de hoje é culturalmente mais dinâmica, está dotada de mais infra-estruturas. Há cerca de 25 museus, o Centro Cultural tem uma actividade bastante intensa no que toca a espectáculos e há mais exposições. Abriu uma Cinemateca. Abriram bibliotecas em diversos pontos da cidade facilitando o acesso à leitura. Há lançamentos de livros, há debates, há Fundações que têm uma programação intensiva, há jornais e revistas como nunca houve.

A sociedade civil tem feito alguns eventos de muito interesse como a “Rota das Letras”, “This is My City”, o Albergue tem feito também inúmeras exposições. Questiono, porém, qual a fatia da população que a tudo isto acede e que identifica como seu, como necessário, como imprescindível. Está a ser feito um esforço para a elevação do nível cultural da população, mas penso estarmos ainda longe do desejável…

E na comunidade macaense, além do minchi e do chupa-ovo, o que se pode passar?
Sinceramente, não sei dizer qual será o seu futuro. Penso que, mesmo sendo pequena, deve ser considerada indispensável. A comunidade tem mostrado capacidade de se organizar em diferentes Associações, o que para mim revela a sua vitalidade, seja para a “comisaina” ou para outros fins que a agrega enquanto grupo identitário. A autenticidade deste sentir, pensar e estar na cidade enriquece o tecido social. Não nos esqueçamos de que, a meu ver, a comunidade macaense, de que orgulhosamente faço parte, é uma nação de indivíduos com histórias genéticas todas diferentes, mas unidas pela ligação umbilical a Macau.

Tem espraiado a sua criatividade por áreas diversas, da banda desenhada à fotografia, da pintura à moda, passando pelo design de espadas, entre outros. Existe alguma área em que se sinta mais à vontade ou a cada momento experimenta uma inclinação específica?
Costumo dizer que tenho as minhas “gavetas” abertas. Cada uma delas corresponde a uma área. Atrevo-me a pensar que me sinto à vontade em todas essas áreas.

Nos anos 90, muitos pensaram que, devido à sua óbvia qualidade e originalidade, a sua marca de moda acabaria por se impor a nível mundial, mas isso não chegou a acontecer. Por quê?
Abri a “gaveta da moda” no início dos anos 90, a convite do Governador Melancia, representando em Lisboa uma das potencialidades que Macau poderia oferecer. Participei na Europália, na Bélgica, tendo sido convidado para ficar pela Europa a desenvolver um projecto. Razões pessoais e familiares levaram-me a ficar por aqui, mas após este arranque demorou apenas 4 anos até ser convidado por Pequim para me apresentar com um stand e uma passagem de modelos. Levei comigo uma importante empresa portuguesa que fabricou a colecção que dei o nome “Mãe China”. Seguiu-se a minha nomeação honorífica para Consultor Honorário de Moda de Pequim e conversações nas quais reconheciam A.CEJUNIOR como um nome para a China e, com o tempo, para o mundo, oferecendo e solicitando condições que considerei estupendas para ambas as partes. Para grande espanto meu, a empresa portuguesa minha parceira recusou… Isto insere-se bem nas (des)”aventuras” que já referi. 

Por que razão se deixou enredar pela arte do trajo?
Comecei a interessar-me pelo vestuário por uma razão muito prática e particular. Quando me tornei director do Museu precisava de andar engravatado e não havia pronto-a-vestir em Macau, só alfaiates. Então, passei a desenhar as proporções dos meus fatos para um alfaiate vizinho mos confeccionar. Uma das minhas características, quando me interesso por uma coisa, é ir até ao fundo do assunto. Desmanchei casacos comprados em Portugal para ver e perceber como eram feitos. E foi uma coisa que se foi prolongando e o desenho de moda passou a surgir na ponta do lápis, aliado a leituras, referências e memórias.

De algum modo, as suas criações refaziam ou situavam-se em pontos da antiga Rota da Seda, uma ideia que o actual governo da RPC deseja reactivar. Já pensou apresentar uma proposta no sentido de dar o seu contributo para esse objectivo?
Sim, tive uma colecção chamada “Rota do Oriente”, outra chamada “Samarkanda”, e ainda outra chamada “Mandhala no Topo do Mundo”. Recordo-me que no tempo do Governador Carlos Melancia, após o êxito da minha apresentação em Portugal, em 1990, o eng. Melancia defendia a ideia de que o Governo deveria apoiar-me para lançar o nome de Macau. Na altura eu era o único. Agora isso não acontece, mas a minha Rota da Seda mantém-se, agora mais amadurecida. Curioso é que, como já contei, a apresentação em Pequim foi coroada de êxito e a própria R.P. da China me quis aproveitar.

Ou seja, admite regressar à moda ou isso são águas passadas?
Hoje em dia há muitos jovens, muitos mesmo. Todos têm sonhos. É evidente que sonhar não é um exclusivo dos jovens, mas no contexto actual não sei. A minha preocupação é sobretudo que os jovens que se querem lançar por estes caminhos se municiem com suficiente bagagem cultural que é o verdadeiro alimento para a criatividade.

Passemos à fotografia. No seu trabalho, em geral, existe uma coerência que se liga à questão do detalhe, do pormenor, como se destacasse algo do seu contexto, exibindo esse algo desconectado, em si mesmo, ou nos dissesse que há mundos dentro de mundos. Por quê este fascínio, ou se quiser, obsessão?
Não é obsessão. Fascínio admito que sim. Não encontro uma explicação lógica senão o facto de ter desenvolvido uma forma peculiar de olhar a realidade, talvez em busca de uma transcendência indecifrável. Algo que me toque plásticamente mas não só. Algo que não seja vulgar nem dramático mas que assuma uma força telúrica ou espiritual sob a forma de uma beleza plástica que não requeira explicações da minha parte.

Nas suas fotografias, parece existir uma busca de beleza primeva, pré-humana, quase divina ou simulatória da presença de Deus. Considera-se religioso? Identifica-se com algum credo actual?
Essa busca não é voluntária. Aliás ao termo busca eu preferia “encontros”. Diria que aquele que mais importância teve para mim foi “Primum Lumen”, um encontro com a luz a manifestar-se de maneiras extremamente belas e cujos registos fotográficos mostram essa beleza. Sou religioso no sentido mais livre do termo. Identifico-me com esta frase verdadeiramente primeva: “como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao. Sem um nome deve ser a Mãe de todas as coisas, com um nome é o antepassado dos deuses”.

Como lê os recentes desenvolvimentos da política internacional, nos EUA e na Europa? E qual o papel da China?
Trump representa uma América desconhecida para mim e, também, um lado mais conhecido, que é o do espectáculo. A Europa por ser lado, debate-se com um dilema que há 20 anos discutia com o prof. Roberto Carneiro: qual seria o futuro de uma Europa com a migração que já se fazia sentir então, sendo a indagação feita sobre o que seriam os produtos de casamentos entre cristãos e muçulmanos. Hoje as coisas agudizaram-se profundamente. Há 20 anos não havia o DAESH. Por seu lado, tenho para mim que a China tem agido de uma forma sábia, aproveitando os vácuos criados pela nova administração americana e manifestando-se também como uma potência confiável no jogo de forças onde Putin também parece ter-se intrometido, nesta grande confusão que é o mundo actual.

40 anos depois, valeu a pena ou a vida é, fundamentalmente, uma grande chatice?
Diria que valeu e vale a pena. Tenho-me como um homem novo.

14 Fev 2017

Arte | Decreto de Donald Trump mina exposições e intercâmbios

A decisão de barrar a entrada nos Estados Unidos de cidadãos de vários países muçulmanos está a ter consequências práticas aos mais diversos níveis. Há curadores e artistas com projectos que passaram a ser impossíveis. Existe ainda o receio de que Donald Trump acabe com o financiamento para a arte

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] alerta é deixado por artistas e curadores que trabalham com arte do Irão: a impossibilidade de acesso aos Estados Unidos para aqueles que constam da lista de países malditos definida por Donald Trump está a ameaçar o intercâmbio, a organização de exposições e a realização de residências artísticas.

O Art Newspaper conta que dois artistas iranianos cancelaram uma viagem dos Estados Unidos para o Canadá, com receio de terem problemas no regresso a casa, apesar de serem detentores do cartão de residência permanente. Iam à cerimónia de inauguração de uma exposição de arte contemporânea no Museu Aga Khan.

A publicação explica que até mesmo os cidadãos iranianos que têm passaporte americano ou os que residem nos Estados Unidos há muitos anos se sentem ameaçados e inseguros. Para reforçar a sensação de incerteza, as notícias que dão conta dos planos da Administração Trump em relação ao fundo nacional para as artes: diz-se que o Presidente quer acabar com este mecanismo.

O responsável pela revista online Reorient, Joobin Bekhrad, cancelou, por enquanto, as viagens para os Estados Unidos. Bekhrad faz um trabalho significativo na divulgação da arte do Médio Oriente e tem dupla nacionalidade – é iraniano e canadiano. “Dizem que, por ser também canadiano, não devo ter razões para me preocupar, mas não acredito”, explica. “Vou sentir falta de ir a exposições, mas penso que não valem a humilhação.”

Sanções para a arte

Têm sido realizadas várias exposições importantes de artistas iranianos nos Estados Unidos. O Warhol Museum confirmou esta semana que vai para a frente com uma mostra do artista iraniano (também com nacionalidade americana) Farhad Moshir, programada para Outubro. “O artista aborda tradições e o isolacionismo histórico do Irão, demonstrando, em simultâneo, o poderoso apelo e influência da cultura ocidental no seu país natal”, declarou um porta-voz do museu.

Já a curadora Roya Khadjavi-Heidari que, no ano passado, organizou uma exposição de arte iraniana e cubana no nova-iorquino Rogue Space, admite estar preocupada com um projecto que tem em mãos: uma iniciativa agendada para Abirl, composta por 30 trabalhos de três irmãos do norte do Irão, Morteza, Mojtaba e Sina Ghasemi.

Khadjavi-Heidari está fortemente envolvida em programas de intercâmbio cultural e o decreto presidencial tem um forte impacto no seu trabalho. “Julgo que não se pensou nas consequências, é uma medida que vai trazer muitas complicações. A arte nunca fez parte das sanções, sempre conseguimos trazer obras com alguma facilidade”, aponta. “Estou preocupada. Será impossível a estes três artistas conseguirem os vistos de entrada.”

Em Paris, a curadora Leila Varasteh recorda que, mesmo sem a iniciativa de Donald Trump, já era difícil fazer chegar ao Ocidente obras de artistas iranianos, por causa das sanções a Teerão propostas pelos Estados Unidos e que os países europeus subscreveram.

“É difícil ir buscar arte e não posso pagar aos artistas porque, se o fizer, congelam as minhas contas bancárias”, explica. “Durante a Administração Obama, houve ainda uma pequena esperança que agora desapareceu. É uma pena porque as trocas culturais entre os Estados Unidos e o Irão eram fantásticas. Tudo aquilo que vem do Irão está a ser cancelado, de dentro do país e também dos iranianos que vivem no estrangeiro.”

Ainda assim, os protestos nos Estados Unidos e na Europa contra as novas interdições de entrada em solo norte-americano fazem com que Leila Varasteh diga que “a esperança está a voltar aos poucos”.

Medo de estar, medo de sair

Nascida no Irão, a artista Bahar Behbahani vive em Brooklyn e tem dupla nacionalidade. Com uma exposição neste momento em New Hampshire, confessa não se sentir segura, não obstante o facto de ter passaporte norte-americano.

Behbahani tem sido aplaudida por uma série de trabalhos que têm por base os jardins persas. Em 2007 fez um filme sobre uma mulher no Irão que observa um jardim perfeito, mas fá-lo de pernas para o ar. Na semana passada, diz a artista, teve a mesma sensação de deslocamento e estranheza nos Estados Unidos. “Quase dez anos depois, senti-me de novo ao contrário. Na última semana senti-me confrontada com a minha nacionalidade, mas também com o facto de ser artista. Não é relevante de onde se vem, quando nos sentimos ameaçados com as notícias de que o fundo para as artes poderá ser eliminado. Isso também é uma ameaça”, afirma. “Não sou só eu a ter esta sensação. Há tantos americanos que se sentem também de pernas para o ar, em vários aspectos. São tempos difíceis para todos.”

O artista iraniano Shahpour Pouyan, a viver em Nova Iorque com um cartão de residência permanente, diz sentir-se “preso”. “Não posso deixar o país e, como artista, tudo isto significa que não posso fazer exposições e mostrar os meus trabalhos lá fora”, explicou ao New York Times. Shahpour Pouyan é um dos artistas que cancelou a viagem ao Canadá.

3 Fev 2017

José Drummond na lista final do Sovereign Asian Art Prize

É a terceira vez que José Drummond, artista plástico português radicado em Macau, é nomeado para o prémio mais importante da região vizinha na área das artes. O reconhecimento lá fora não acompanha o que se passa em casa

[dropcap]T[/dropcap]rata-se de uma nomeação directa, conquistada pela presença este ano no Sovereign Asian Art Prize. José Drummond foi finalista na edição de 2016, tendo o seu trabalho sido mostrado na Christie’s, garantindo um lugar na competição do próximo ano. Regressa ao mais importante prémio das artes em Hong Kong com três trabalhos, todos eles feitos com caixas de luz. É a terceira vez que o artista português, a viver em Macau há mais de 20 anos, entra na lista daqueles que a organização entende serem os melhores da Ásia. “É sempre bom. Não acho que os prémios sejam completamente reveladores do trabalho que as pessoas fazem no trajecto da sua carreira, mas são veículos de reconhecimento que acabam por ser importantes, especialmente nos dias de hoje”, comenta José Drummond ao HM. “Nesse sentido, é óptimo.”

Organizado anualmente, o Sovereign Asian Art Prize convida artistas contemporâneos, que estejam a meio da carreira, para submeterem três trabalhos online. As obras são depois avaliadas por um júri da região constituído por especialistas em arte, que escolhem os 30 melhores trabalhos.

É esta selecção que vai estar ex- posta num local público em Hong Kong, sendo que se segue depois uma nova apreciação. O artista vencedor recebe 30 mil dólares norte-americanos. À excepção da obra vencedora, os restantes trabalhos são leiloados durante a gala de atribuição dos prémios. Além da obra seleccionada pelo júri, é ainda distinguido o trabalho que mais votos recebeu do público que foi ver a exposição.

“É um dos prémios mais importantes da região Ásia-Pacífico”, contextualiza José Drummond. “Já começo a ser um repetente, é a terceira vez que estou nesta fase. Penso que será a primeira vez que acontece a um artista de Macau.” O artista português foi o único do território presente na fase final da iniciativa.

DA NOITE E DO DIA

Na edição de 2017, Drummond concorre com um media que tem uma presença importante na sua obra: as caixas de luz. “Tem que ver com o meu interesse em espelhar todos estes conceitos à volta da luz e da sombra. Depois, embora sejam fotografias tiradas no momento, há sempre nos meus trabalhos uma condição teatral, cenográfica, quase encenada. É por isso que tenho optado, para estas séries, pelas caixas de luz.”

As três obras a concurso resultam de fotografias tiradas à noite, um momento em que a cidade se transfigura. Na sequência de um trabalho que tem vindo a fazer, as imagens obedecem a uma narrativa poética, que “tem que ver com o estado de desassossego, com a insónia”.

No primeiro trabalho, “Think of the saddest thing in your life”, vê-se uma fotografia tirada num lago. “É só água. Digo, a determinada altura no texto, como a água pode ser tão opaca quanto a vida. Temos esta ideia de que a água é transparente, mas não é”, observa. “Mais uma vez, tem que ver com a teoria da luz, com as cores. Nesse trabalho usei luz que transformasse a cor normal do lago. Ficou azul porque forcei a que casse assim.”

“All those moments at night when you’re not with me”, a segunda fotografia, “é mais próxima de um instantâneo” e está relacionada com uma investigação que o artista plástico tem estado a fazer, associada à ideia da “ausência do outro, que nos leva a deambular pelas ruas”.

Trata-se de uma série em que José Drummond procurou captar situações que entende serem interessantes na cidade. A imagem em questão mostra o recanto de uma pessoa que “colecciona coisas inúteis que recolhe do lixo”. “Colecciona garrafas de plástico e pendura-as à entrada de casa. Tem as portas de casa abertas e consegue-se ver tudo o que se passa lá dentro.” Há uma certa organização no espaço fotografado, explica: “Tem uma cadeira pendurada, há uma lógica muito pessoal que nos faz confusão. Esta pessoa em especial tem sido objecto da minha investigação há algum tempo, com fotografias em diferentes momentos do dia e com objectos diferentes”.

“Não acho que os prémios sejam completamente reveladores (…), mas são veículos de reconhecimento que acabam por ser importantes.”
JOSÉ DRUMMOND, ARTISTA PLÁSTICO

A fotografia enviada para Hong Kong tem “um ar quase de ficção científica”. “Não tenho qualquer intervenção na imagem, a não ser clicar”, refere. No entanto, o lado cénico mantém-se. “Tudo aquilo é encenado, mas por outra pessoa.” A fotografia insere-se numa série em que Drummond vai à procura de pessoas que estão, de certa forma, fora do que é convencional, “personagens que são deixadas para trás” na sociedade.

O último trabalho, “When my hands make your heads spin”, tem a morte como subtexto. “É uma reflexão. São dois ravers no final de uma festa. O final da festa significa também quase o final do corpo. A paz é quase morte, naquele sentido. Depois de toda a excitação e do excesso que possa ter havido, há depois este momento, completamente oposto”, mostra. “Esta dualidade entre vida e morte é um lado que tenho andado a explorar. É muito difícil falar sobre a morte e registá-la. Nunca conseguimos fazer uma boa representação da morte porque não sentimos a nossa; só a sentimos através da morte dos outros.”

LÁ FORA

Nos últimos anos, José Drummond tem sido mais valorizado fora de Macau do que em casa. “De algum modo, parece que o meu trabalho vai sendo mais reconhecido fora de Macau do que aqui”, diz.

Além do lugar conquistado entre os finalistas da edição de 2016 do Sovereign Asian Art Prize, o artista teve o seu trabalho exposto na Berlin Transart Trienalle, em Agosto passado.

Durante este ano, participou em festivais de vídeo de Portugal, Espanha e Áustria. Juntamente com a artista Peng Yun, teve uma obra no Rosalux Project Space em Berlim. Por cá, fez um trabalho especificamente para a última edição do Festival Literário Rota das Letras.

José Drummond teve ainda um ano muito activo enquanto curador. Foi responsável por mais uma edição do VAFA e do festival de vídeo experimental EXIM, além do papel desempenhado na selecção de obras para a exposição que assinala o nono aniversário da Art For All, cuja inauguração está marcada para esta semana.

O ano do artista plástico termina com uma projecção de um trabalho na Cinemateca Paixão, no próximo dia 28, que serve de introdução à obra que, em Janeiro de 2017, vai apresentar.

20 Dez 2016

Das paisagens vagas como vagas são

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]maginar que me detenho simplesmente num intervalo do tempo a olhar um destes objectos. Sempre os objectos-cenário. E um ser encenador. Imaginar que qualquer um que seja me diz de momento tudo o que é suficiente nesta paragem. De alinhar números e letras de equações várias. Afastar essa folha da mente, obsessiva e exaustiva sem soluções visíveis. A faltar um detalhe que desenrole a revelação de uma das incógnitas, que seja. Uma só, e, na inércia seguinte, resolver alguma das equações. Que se alinham irresolutas em letras e números e números e letras. Que desenham ao todo e pelas suas partes incompletas, um padrão bonito a negro sobre o branco da folha, antes vazia, e depois com o mesmo sem sentido. Antes vazia. Talvez. Penso, de caminho. Desenvolver uma fórmula, uma chave. Qualquer coisa distinta. Evoluir do círculo perfeito e estanque. Desenhar bigodes nos vês e florzinhas nos pês.

Mas às vezes a distância abismal entre tudo e nada, está na misteriosa definição de um detalhe ínfimo. Um factor esquivo que se furta à absolvição da incógnita. A Matemática é um universo de abstracção quase de fulgor mágico. Talvez porque a vontade e as suas ramificações por inúmeros andares, lhe é desconhecida. Aqui mesmo ao lado, o candeeiro de luz baixa, a apontar rigorosa e permanente essa luz de todos os dias para baixo. Uma mesa de madeira quente e confortável para encostar um cotovelo e o outro a olhar a vida. Eu. Os cotovelos calmos e sólidos em espera de uma irresolução qualquer. Em redor uma penumbra de recorte difuso em gradação quase invisível, em que se encontram e desencontram os objectos de sempre, mas em segundo plano, como domesticados adormecidos até uma nova luz os contemplar. Animar. Um recanto do mundo que parece só por si suficiente. A terra do nunca e o território do ainda não amanhã talvez. Do talvez já não. Do ainda não ontem, do já, do nem assim, do já nem assim, ou do nem sei bem. Derivas indistintas na rota dos ventos e bolinas nas outras navegações de iguais ondas. De devir, do porvir imiscuído nas variáveis do já visto, ou de sombra diluída em liquidez. Sombras, brilhos, fosforescências nocturnas. Instrumentos de navegação obsoletos. Algo a fechar as pétalas púdicas para a noite. As pálpebras a encostar a uma córnea friorenta. Uma mão a procurar o rosto para conforto mútuo.

O candeeiro de todos os dias. A deixar uma penumbra a vogar sobre a outra metade da casa, daí para cima. A delimitar como se uma força terna dentro do seu abraço, um espaço dentro do espaço. Uma figura, uma espécie de figura, retrógrada como tantas coisas de que gosto, que ilumina da esquerda. Como deve ser. Para que a mão que mais voa não lhe distorça o percurso da luz. Não lhe encha a cabeça metálica de sombras e outras ambiguidades.

Mas, pura ilusão. Porque dele, sem culpa nem intensão, emergem factores de definição que se alternam e acrescentam nos dias, como se uma personalidade própria, definida e animada, respondesse a uma qualquer interrogação muda. Não a faço mas destilo-a talvez dos olhos sonolentos e distraídos com que muitas vezes verifico que está ali, e nele digo que estou. Também. Do que não quero falar me responde o que não pergunto. Por vezes mesmo o que não oiço. E sei que não é dele esse reflexo que dali se emite sem curva possível. Directo e devolvido. Claro. Há sempre qualquer coisa de variável ali. A dimensão. A crescer exorbitante até quase sentir a tentação de me encostar a ele na rua. A luz a variar numa temperatura entre o frio e o quente dos ossos e da pele. Nem sempre complementar. O contorno frio ou a calote como um crânio docemente recoberto de uma pele macia e sem pelo. Quase a apetecer passar-lhe uma mão como se de um bicho se tratasse. Aquela calote por momentos uma cabeça. A haver uma síntese química qualquer na evocação de um objecto de afecto, mesmo por uma forma qualquer de similitude, que apela ao tacto. O afecto precisa do tacto como percurso. De se esvair no tacto como a expiração que retorna a si e se distende sem parar. E de tacto. Muito tacto no lidar. Algum pensamento. Mas não concha. Os pensamentos- concha tendem a ser tóxicos se não evaporam por uma válvula qualquer. Ou as palavras. Que até o podem ser. O brilho metálico de uns dias a reabsorver-se num tom aveludado dos outros. E a tomar um carácter quase orgânico. E a lâmpada como uma ideia fixa mas sempre invisível. À espreita, em cada movimento inadvertido que faça. Que dizer se o óbvio é que há sempre qualquer coisa que não é deste meu candeeiro de anos, que se distrai dele dia após dia e diz algo que não lhe pertence, partindo dele e sendo ele…Sempre igual e igualmente inerte na sua imanência. E sempre um outro em resposta às perguntas que não faço.

Inocentes objectos. Mas nada há neles de inocente depois. De serem arrastados de fantasia em fantasia vindo parar a casa. Neutros nessa decisão. Moldam-se. Sem o fazer. Sem que nada na matéria se mova no sentido dessa outra matéria tremenda que é o olhar. Qualquer olhar despido de limpidez. Ou cegueira, quase podia dizer. E um rosto. Um corpo estranho. De paisagens vagas. Como vagas que são. Mas lá, o olhar.

Gostava tanto de ser de uma aldeia longe. Sem relógios para saber as horas do mundo, as minhas para além do daqui a pouco e do há pouco foi. Esta obsessão pelo tempo que me pára e me foge e me prende e me falta. O tempo uma moda e os horários a tirania. Eu queria fugir do tempo ou tê-lo a todo o tempo. Sem medida. Não esta sucessão de tiras e nós. Eu queria ser numa aldeia o acordar sem horas. De relógio. E sem fios, a que me prende uma mímica em que não me reconheço eu. Reconhece-se ele – esse candeeiro – no olhar que lhe deito, é o que quase suo perguntar.

Às vezes olho essa de mim, a perscrutá-la como se de fora, e como se fora o fosse. Mas não lhe sinto perfume, briho. Não lhe sinto calor, nem no calor que sinto, e porque é das sensações. E frio. Mas é resposta. Defesa da pele. E assim vejo essa personagem-pessoa, visível invisível, e desconfio da desconfiança  e  não reconheço nem conheço. E se ninguém entende, nem eu. E se não conheço não existo. Mas entristeço dela. Dessa que não movo. Como marioneta. De fios estragados, menos um. Um fio, e imprimir um gesto. Um fio e mover-me noutro, a estacar noutro. Impedimentos estruturais, fios a menos, ou fios a mais. Emaranhados e partidos e embaraçosos. Nos braços e nas pernas. De pano.

Passo a partir do candeeiro, que não sendo pessoa, se esgota num momento qualquer. E ali num outro sítio da casa e como sempre, aqueles olhos em vários pares, como continhas e com a mesma natureza dura e objectiva. Ou não. E que nunca dormem. Ou dormem sempre. Como se deitam nos dias, assim ficam para toda a eternidade. Olho. Cada boneca agora, de recreios vagos. Como diz o outro. Rosto hermético de porcelana. Olhos revirados de espanto ou impaciência. Sem mãos que componham o vestido. A ter que esperar que alguém se lembre. Desconfortável, hirta e descomposta em cima do psiché. Coisa ridícula. Sempre à espera. Ou então que não se acenda a luz para ninguém lhe ver os culotes empoeirados e o cabelo sintético talvez natural, um pouco descomposto. Visita-se essa descomposição, em fuga. E aquela poeira nos olhos e sem que os dedinhos lhe cheguem a aliviar as cócegas. Jesus…Que impasse, e sem poder fechar os olhos. Nunca. Destino pesado de charme. Depois falam dela e das roupas estilizadas. Mas as roupas, são ela, e por isso furibunda. Conversas e conversas e desconversas e ninguém que lhe diga na face quebrável um mimo directo. A precisar de um banho. É o que é. E pimenta na língua. Mas a boca não abre e os pensamentos não saem. Tudo certo. Então. Por terras de fantasia.

Volto. E, de repente, salta-me Buster Keaton para a página meio cheia, como de um comboio em andamento e. E sim. Tudo aquilo que aquele rosto nunca disse, nunca dizia. Dizia sempre alguém por ele. Simples projecção na plástica receptividade de um rosto neutro, complexa interpenetração de sentidos entre duas realidades que nem tangentes necessitam de ser. Basta agrupá-las. Basta imiscuir uma na outra por proximidade, justaposição. Aleatória. E como um espelho vivo, o que era rosto e inexpressivo passa a reflexo e rico em representações. De quem…Sabe-se, de quem olha. Mais do que do que é contemplado. E depois, saindo do cinema, e como um dia o disse Kafka: “The right understanding of any matter and a misunderstanding of the same matter do not wholly exclude each other”.

Mas, de permeio, o efeito Kuleshov, nessa, até às vezes abusiva atribuição de sentidos diferentes, a um mesmo rosto inexpressivo, consoante as imagens que lhe associamos. Que lhe colamos com a mesma subjectiva intuição ou aleatoriedade, com que o fazemos a um pisa-papéis e nele uma libelinha se encerra no cerne de vidro grosso, e a um livro sobre escravidão infantil contemporânea. Só para empilhar duas realidades soltas e limpar o pó da mesa nos espaços vazios. Produz sentido. Ou o reflexo do contracampo, que enriquece a linguagem cinematográfica. Que entorpece a leitura dos outros numa envolta de significados nossos, que é como uma armadilha. Para quem está no campo e quem se esconde no contracampo. Ou podia dizer o contrário. E quem esconderia o quê de quem. A inexpressividade da máscara, rosto esponja, ou o excesso do outro a submergir o rosto por detrás. O efeito da expectativa. Do desejo. Que age por defeito do objecto a inscrever, talvez. Permeável ou neutro. Inexpressivo ou vazio puro. Como resolver uma equação assim. Nada de grave no reino da fantasia. Esse revelador fotográfico – onírico.

Não é linguagem do cinema, é a expectante natureza humana. A derramar de si. Sobre a paisagem vazia. Ou a terra porosa. O rosto fechado. Em aberto. A natureza de vasos comunicantes a destilar de um lado o que é lapso ou lacuna no outro. Vasos comunicantes, de incomunicabilidade congénita, percorridos de um mesmo líquido. Mas, os sentimentos não oferecem dúvidas. A existência sim. E as pessoas, não têm que ser perfeitas. Os encontros sim. Ou então, dizer de outra maneira. Que os sentimentos não oferecem dúvidas, mas os objectos, sim. E o tempo. De uns com os outros.

16 Dez 2016

A Grande Festa: Pequeno guia prático para o Spectaculum

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá patente na sala maior de exposições temporárias do Museu de Arte de Macau uma mostra chamada Ad Lib, de Konstantin Bessmertny.

Independentemente da etimologia latina e da linguagem musical, Ad Lib representa a convergência dos discursos plásticos e da criatividade patente num autor proveniente da escola russa de pintura.

Porém, para saber é necessário aprender. Depois, opera-se a decantação do aprendido, eliminando o excesso, para que, então, se possa partir para o caminho da identidade e afirmação artística.

Se tivesse vivido na Paris dos finais do século XIX, talvez Konstantin tivesse uma atracção idêntica a Degas ou a Toulouse-Lautrec. Como vive em Macau, é aqui que encontra inspiração para a elaboração de algo que apetece chamar de Espectáculo, para um olhar sobre alguns espectáculos da vida.

Esta não é uma instalação nem uma mera exposição de pintura. É, antes do mais, a apropriação e um retrato plural denotativo de todos os elementos da realidade, com a capacidade de recuperar toda a envolvência para a sua/nossa festa.

Espectaculum vem do latim spectare, ver, e de specere, olhar, e aí caímos no caminho também desejável da semiótica que Konstantin nos oferece. Entre o olhar e o ver vai a distância dos signos.

A MORTE DA LIBIDO E O APETITE

O apetite é essencialmente insaciável e, quando opera como critério de acção e prazer (isto é, em todo o mundo ocidental desde o século XVI), infalivelmente descobrirá modos de expressão (mecânicos e políticos). Marshall McLuhan

Não sendo nem Degas nem Lautrec, afastadas as hipóteses de Bosch e Peter Breughel o Velho, resta admitir que Konstantin só pode ser ele mesmo, elevado à potência que a ele próprio se conferiu nesta exposição.

Entre o Spectaculum e a Grande Boeuffe que é este evento, sente-se patente a libido criativa do artista, que aborda a carne como carne, liquidada que está a subtileza da sensualidade e do erotismo para apenas ficarem mulheres reduzidas a figurantes, que assim os homens querem e anseiam ter à disposição para consumo, sem preliminares que desconhecem, bem como cenas onde a boçalidade e o burlesco presidem. Há, nestes mundos retratados por Konstantin Bessmertny, um apetite insaciável, um elogio à ganância das sensações e à gula dos momentos.

Estas grandes pinturas, não no tamanho mas sobretudo no alcance, de escárnio e sarcasmo, retratam o grotesco e o trágico social, oriundas de uma imaginação toda ela alimentada pelo impenitente e impertinente olhar de Konstantin Bessmertny.

A KINETOGRAFIA E A PINTURA

Em formato panorâmico, Konstantin apresenta uma série de pinturas nas quais transporta para a tela cenas do grande écran e onde introduz subtítulos, mais uma vez provocatórios e inteligentes, intervindo na simulação de uma outra linguagem através da sua.

Artur Bual, quando nos finais dos anos 1960 profetizou que a linguagem do futuro seria o cinema, estaria muito longe de imaginar que hoje qualquer um pode filmar com um telemóvel. Todo o passado converge, assim, para esta interpretação do fotograma, congelamento do kinético, afirmação profética de inquestionáveis e inconvenientes verdades.

É neste constante deambular, nestes saltos entre temáticas onde reside a irrequietude de um espírito culto, lúcido e, consequentemente, crítico, escondido sob a aparente paródia dos excessos e dos gostos kitsch, que emerge o confronto entre a(s) obra(s) e o público, aqui mais habituado ao culto do politicamente inócuo, esse sim, por omissão, ignorância ou auto-censura, falhado.

ASSAMBLAGES

Assambler, juntar, junta. Não de bois, mas do carro outrora de luxo que, para além de objecto recuperado e de desfile de ostentação, nos remete para aquilo em que se tornou: carcaça ferrugenta, passeando cacos de gesso clássico, memórias de outros séculos.

Mais além, um escocês funde-se com um samurai, de mergulho, operando-se a fusão do absurdo, metáfora outra que mereceria mais do que provocar riso ou estupefacção. A arte com conteúdo, perdoe-se-me a redundância, é em si uma afirmação a ser degustada, analisada, reflectida.

VICTORIA, BAKUNIN E RASPUTIN

Três grandes retratos ocupam uma parede da sala de exposições. A rainha Victoria apresenta pechisbeques, unhas de silicone na mão direita, e um sem número de condecorações, cada uma delas merecedora de análise. O olhar deve percorrer toda a tela, porque a cada centímetro quadrado se depararão insólitas surpresas.

E se este retrato é assim, os de Bakunin e Rasputin devem merecer o mesmo escrutínio.

Konstantin Bessmertny estabelece, com esta exposição, um marco na História da arte de Macau difícil de igualar. Na sua mostra estão contidos todos os ingredientes para uma análise e crítica dos costumes que por aqui e em toda a parte reflectem uma porção da natureza do ser humano.

LER ENTREVISTA COM KONSTANTIN BESSMERTNY
15 Dez 2016

Omar Camilo, artista plástico: “Já conheço Cuba, não preciso voltar atrás”

É uma das virtudes de Cabo Verde: a pureza das coisas. Omar Camilo é um cubano que prefere não falar de Havana porque, diz, escolheu a Cidade da Praia e é sobre ela que pinta. “Alma” é uma exposição em que também há fotografia e é a razão que o trouxe a Macau

[dropcap]O[/dropcap] que poderemos esperar de “Alma”, a sua exposição na Casa Garden?
A sua pergunta inclui a resposta: a alma (risos). Há 15 anos que moro em Cabo Verde, que tem um magnetismo que fez com que ficasse lá. Conheço outros países, outros continentes, mas em Cabo Verde há um certo magnetismo, não sei se é do vulcão, das pedras. É um país tão simples, num século e tempo tão cheio de coisas, que acaba por ter essa simplicidade, do espaço, das suas gentes, dos seus percursos. Isso atrai-me e magnetiza. Escolhi ficar em Cabo Verde e apaixonei-me pela sua essência. Então a “Alma” é a apresentação da humanidade dessa raça cabo-verdiana, muito particular, que não é completamente africana, mas também não é completamente europeia. Cabo Verde é um arquipélago completamente fascinante pela sua múltipla identidade. Diria que são nove nações numa apenas. Há coisas que não se explicam, os sentimentos e as emoções não se explicam muito bem. Ou se gosta ou não se gosta.

E sentiu logo essa paixão por Cabo Verde.
Estava em Cuba, fui realizador, e já tinha ido a vários países. Já tinha ido a todo o mundo, Tóquio, Brasil, Chile. Tinha estado na Europa e regressei a Cuba. Houve uma delegação cabo-verdiana que foi a Cuba com o Presidente do país e mais ministros, e na agenda pediam um assessor de comunicação. Então estive um tempo em Cabo Verde, já com outro Governo. E fui. Apaixonei-me por Cabo Verde, por uma crioula, acabei a minha missão, fui a Cuba, fechei tudo, entreguei todos os documentos e voltei por minha conta. A primeira viagem foi em 2002, a segunda já foi em 2003. Cabo Verde mostrou-me outra faceta da minha arte, que eu não conhecia. Era realizador e poeta, e em Cabo Verde comecei a fazer fotos. Claro que o cinema tem uma componente de imagem, mas não me dedicava apenas a isso. Em Cabo Verde não havia e não há ainda um movimento de cinema, então parei. Pensei que já tinha feito cinema durante anos e que estava na altura de experimentar outra coisa. Fiz então fotojornalismo e fotografia artística. Trabalhei apenas para a Agência Lusa. Comecei a pintar, mas já pintava há 37 anos. Há seis anos isolei-me de tudo, parei de fotografar e dediquei-me apenas à pintura e à escrita. Às vezes escrevo livros de poesia ou pinto, ou então faço as duas coisas em simultâneo. Não coloco fronteiras entre uma arte e outra. Toda a arte é minha, sinto as coisas e faço. Aquele desenho [aponta para a parede], faz referência a um dos meus poetas preferidos…

Jorge Luis Borges.
Sim. Escrevo poemas meus sobre pintura e também escrevo e desenho sobre poetas que me tocam.

Nomeadamente Fernando Pessoa, com o quadro que mostrou há pouco.
Borges representa a minha anterior cultura e Pessoa representa a actual cultura. São dois elementos sólidos do meu conhecimento de letras. Conheço mais Borges, desde criança, e Pessoa só conheci há cinco ou seis anos. É fascinante.

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Nunca tinha lido antes?
Sim, li o “Livro do Desassossego”. Mas uma coisa é ler e outra é sentir. Fui muitas vezes a Lisboa, Portugal, na Rua Augusta, Bairro Alto, e uma coisa é ler, outra é andar por onde o poeta andou. Sentir um pouco a fome que ele sentiu, os pés cansados. A essência é uma coisa que não se explica, e aí começamos a apaixonar-nos e a entender. Sentir é o último estágio do conhecimento.

A exposição que vamos ver é então um pouco de tudo isso, dessas experiências desde que começou a pintar a tempo inteiro.
Não reduziria isso a um tempo. O que vamos ver na exposição é uma experiência dos últimos 52 anos. Vamos guardando coisas em várias gavetas e depois sai. Tudo passa por mim, a minha leitura do universo. A mostra que trago hoje é, na fotografia, a essência cabo-verdiana. O que eu acho que é o ser-se crioulo. Na pintura sou mais aberto, mais livre. Na fotografia, capto o que escolho, ângulos, luz. Na pintura sou livre. Toda a minha obra, fotográfica e de pintura, é património cabo-verdiano. A minha obra cinematográfica é de Cuba.

Artisticamente falando, porque não regressou a Cuba?
O mundo é muito grande e já conheço Cuba. Senti Cuba e falta-me conhecer muita coisa. Sempre tive o ponto fixo de morar em Cabo Verde, mas ainda não conheço a Índia, a China. Preciso de conhecer coisas que só conhecia de ler em criança, sempre fui muito curioso. Mas preciso de sentir, de tocar. Já conheço Cuba, não preciso de voltar atrás. Ninguém me perguntou onde queria nascer. A minha nação por naturalidade é Cuba, mas por escolha é Cabo Verde.

O que o fez sair de Havana? Sentia que artisticamente já tinha feito tudo?
Nunca se faz tudo. É impossível. Quem acha que já fez tudo é porque está morto, como ser humano e artista. Fui em trabalho para Cabo Verde e apaixonei-me pelo país.

Sentia-se realizado em Havana?
Não vou entrar por aí (risos). Vamos falar de Cabo Verde. Mas se me pergunta o que sinto em relação à morte de Fidel, respondo o seguinte: qualquer ser humano que morre no mundo é um pedaço do universo que morre. Não fico feliz pela morte de nenhum ser humano. Para mim todos os seres humanos têm o mesmo direito à vida, seja Fidel, um xeque árabe ou um menino libanês, sírio, um idoso africano.

E sobre o futuro de Cuba, que é também o seu país?
Vamos falar de Cabo Verde, e sabe porquê? Esse tema é tão atractivo que se entro por aí vou desviar as atenções. Fui convidado pela associação para mostrar a minha obra sobre Cabo Verde. Vamos esquecer que nasci em Cuba. Quero falar do imenso esforço que a Associação de Divulgação da Cultura Cabo-verdiana fez, porque se não fossem eles não estaria aqui. Tenho uma inexplicável gratidão por esta associação, não se explica. Sei o esforço que foi feito por todos. Um artista sozinho não é nada, se não há um transporte, um elemento que coloque a tua obra no lugar certo, não és nada.

Além de Borges e Pessoa, que outros escritores portugueses o fascinam?
Conheço as peças de teatro de Luís de Camões. Não conheço muitos escritores portugueses, apenas Pessoa e Camões. Já conheço Pessoa desde adolescente.

Pessoa representa toda a cultura portuguesa?
Para mim sim. Mas ainda não conheço muito para poder falar muito. Se me perguntasse sobre a cultura latino-americana, foram muitos anos… Só comecei a ter mais contacto nos últimos anos quando me isolei de tudo e comecei a pintar, porque antes tinha uma vida muito agitada, fazia fotografia, campanhas presidenciais, dava aulas na universidade. Mas foi uma escolha cara e radical.

Disse numa entrevista que paga caro por ser livre. Continua a pagar esse preço?
Continuo. O artista que decide ser apenas isso tem de ser muito individualista, marcar um território muito específico no tempo e espaço, renunciar a muitas características da vida mais convencional. Muitas vezes temos de renunciar à família, para mergulhar numa coisa é preciso fazer o foco nessa coisa. Há seis afastei-me, não definitivamente, de tudo e de todos. Claro que preciso do afecto, do amor sentimental, da família. Dei um espaço bastante egocêntrico em relação ao trabalho da arte, em prol do isolamento. Pinto e escrevo quase todos os dias, partilho da ideia de Ernest Hemingway, que dizia que “A inspiração passa quando estamos a trabalhar”. Obrigo-me a trabalhar. O tema da inspiração é uma justificação dos preguiçosos intelectuais. Para tudo é preciso disciplina, acordo cedo, bebo chá, faço exercício e depois escrevo e pinto. Tenho essa disciplina mas por prazer, não por obrigação.

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Disse que não há indústria do cinema em Cabo Verde. Não poderia regressar ao cinema e dar esse pontapé de arranque?
Para dar alguma coisa de mim, alguém tem de desejar isso. Acho que já respondi. Há um grupo de rapazes a começar a fazer coisas, com algum entusiasmo. Na vida há processos degrau a degrau. Já fiz cinema. Este artista, eu, é um inquieto, está sempre à procura, está sempre inconformado. O cinema faz parte do passado. Já senti o prazer de ser cineasta. Mas continuo a sê-lo, porque a minha obra é um conjunto. Tenho uma obra só, com diferentes ferramentas.

Gosta muito da filosofia oriental.
Fascina-me. Não sou um estudioso, mas fascina-me. É como amar uma mulher, não preciso de um catálogo: quando vejo fascina-me, emociona-me, o coração bate. Não conheço datas, não leio livros. Todo o meu corpo está tatuado com elementos orientais e não latinos. Só coloquei esta rosa para me lembrar que sou latino.

Não fala do futuro e do presente de Cuba, falemos então do futuro de Cabo Verde. O que deseja para Cabo Verde?
Desejo aquilo que os cabo-verdianos desejarem para si mesmos. Os povos têm o direito e a responsabilidade de escolherem e desejarem o seu futuro. Há uma coisa que me preocupa: em comparação com o país que conheci há 15 anos, e o de agora – sobretudo a Cidade da Praia –, está a hipertrofiar em coisas. É importante cultivar a filosofia de ser em vez de ter. O que amo em Cabo Verde é que ainda não há o vício de ter, ter. As pessoas vendem a sua alma para ter coisas, na relação com as coisas. Em Cabo Verde as coisas eram mais simples e humanas. Vamos ter o primeiro grande casino e isso vai mudar algumas coisas. É demasiado caro para Cabo Verde. Preocupa-me que se perca o mais importante de Cabo Verde.


A exposição de Omar Camilo é uma iniciativa da Associação de Divulgação da Cultura Cabo-verdiana. A inauguração está marcada para hoje, às 18h30, na Casa Garden. Os trabalhos de fotografia e as pinturas do artista cubano estão expostos até ao próximo dia 11.

6 Dez 2016

Mais de 60 artistas participam na “6075 Macau Hotel Art Fair”

Começa esta quinta-feira a segunda edição do evento “6075 Macau Hotel Art Fair”, que vai mostrar obras de arte de mais de 60 artistas pelas paredes dos quartos do Hotel Regency. Pela primeira vez, a Fundação Stanley Ho participa ao patrocinar um prémio

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] habitual verem-se obras de arte em galerias ou em espaços maiores de exposição, como feiras, mas desta vez os amantes da pintura poderão vivenciar a arte de outra forma. A partir desta quinta-feira e até domingo, o Hotel Regency, na Taipa, acolhe a segunda edição da “6075 Macau Hotel Art Fair”, onde quadros de cerca de 60 artistas, vindos de várias regiões da Ásia, estarão expostos nas paredes dos quartos e nos corredores.

Após a primeira edição, organizada em Janeiro deste ano, os promotores decidiram apostar nas obras de arte de artistas nascidos após 1975 – daí os números “6075”. De Macau participam 11 entidades, sejam galerias de arte ou artistas em nome individual, incluindo a AFA – Art for All Society.

De Hong Kong chegam trabalhos de quatro galerias, enquanto a China domina em termos de participações, com 15 entidades. Além de Taiwan, que também esteve representada na primeira edição, a Macau Hotel Art Fair contará com a presença dos trabalhos da Myanmar Ink Art Gallery, constituindo uma estreia no território.

A segunda edição fica também marcada pelo lançamento de uma nova área artística, intitulada “Special Discovery”, e que se dedica a abordar apenas uma forma de arte. Esta conta este ano com a participação da Academia de Arte da China.

Outra das novidades prende-se com a participação da Fundação Stanley Ho, que patrocina o prémio “Dr. Stanley Ho Foundation Art”. Este visa “seleccionar potenciais artistas com performances excepcionais por forma a apoiar o seu futuro desenvolvimento e encorajar novas criações”. O Governo faz-se representar através do apoio concedido pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) na divulgação de jovens artistas de Macau.

Terra dinâmica

“Os artistas vão trazer vitalidade a cada quarto de hotel ao apresentar os seus projectos a solo. Ao exibir trabalhos de artistas emergentes e ao colaborar com galerias, tal como curadores e críticos, a segunda edição da 6075 Macau Art Fair irá estabelecer-se como uma plataforma de trocas culturais e de ligação com agentes e artistas de grande potencial”, apontam os organizadores.

O facto de o evento se realizar num hotel constitui “uma forma inovadora de mostrar a arte ao público, para que a audiência possa observar a arte de diferentes ângulos e perspectivas e estimular mais as emoções e a imaginação”.

A organização deste evento está a cargo da leiloeira Poly Auction e da entidade SOCIL cultural, criada este ano para “expandir o desenvolvimento das indústrias da arte e cultura”, que pertence a Sabrina Ho, filha de Stanley Ho. O objectivo da exposição no Hotel Regency é proporcionar “uma plataforma para as trocas culturais e a conexão de coleccionadores de arte com obras de grande potencial”, além de tentar “promover o turismo local” e mostrar Macau como uma “capital artística jovem e dinâmica”.

Quanto à primeira edição, os organizadores falam de “sucesso” em termos de vendas, tendo sido vendidas cerca de 500 obras, sendo que atraiu “um notável número de visitantes, incluindo coleccionadores e entusiastas da arte”.

22 Nov 2016

Konstantin Bessmertny: “O único caminho é o da dúvida e do desafio”

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onheço Konstantin Bessmertny “desde sempre”. Nesse tempo, o ponto fulcral onde se consagravam os artistas que viviam em Macau era a Galeria do Leal Senado, espaço central, muito apetecível, mas muito exigente. E era assim para que houvesse um critério perceptível e legível a todos, assente num só parâmetro: qualidade.

Konstantin vinha da Escola Russa de pintura, o que o qualificava à partida e as portas abriram-se-lhe. Macau ganhou um pintor, todos ganhamos.

Mais tarde, com os casinos a multiplicarem-se, emergiu o tema que lhe proporcionou o arranque definitivo para um outro patamar, tendo Macau como leit motiv.

A sua próxima exposição no Museu de Arte de Macau justificou esta conversa, que partilhamos com os leitores.

A.C.J.- Em latim, ad libitum significa a bel-prazer, o que remete para a noção de liberdade. Pensas que isto se trata de um lugar-comum? Acreditas na liberdade? Gostarias de definir a tua noção de liberdade?
K.B.- A liberdade é certamente um ingrediente essencial da criatividade. No entanto, deve acarretar responsabilidade e respeito mútuo. Mas, na verdade, a palavra liberdade é hoje usada na realpolitik para encobrir a barbárie, a impunidade e a decadência.

Em termos artísticos, a liberdade de expressão traduziu-se numa democratização da criatividade e, gradualmente, efectuou a passagem linear da “arte” à “anti-arte” e, finalmente, à “não-arte”. Vivemos num tempo semelhante ao período imediatamente antes da queda do Império Romano, quando entretenimento e design se tornaram nas coisas mais importantes.

Van Gogh é fantástico para decorar quartos de hotel, Rothko é excelente para um átrio de escritório e Warhol para uma sala de estar. Qualquer artista de Zhuhai ou de outra “cidade artística” nos pode executar uma fantástica cópia. Na verdade, comecei a pensar que a história da arte, desde meados do século XIX, quando a Europa foi inundada por objectos decorativos exóticos vindos das colónias, não passa de um encadeamento de revoltas por parte de diletantes desprivilegiados contra o status quo temporário e que a liberdade, nessa progressão, era apenas um baixar da fasquia.

Penso que a liberdade na arte deveria significar uma busca por algo anterior a toda esta ramificação de “ismos”, desafiando as doutrinas e instituições artísticas dominantes.

A minha história favorita a este respeito é a seguinte:

Sviatoslav Richter estava a tocar a Fuga N.14 em fá sustenido de Bach ao piano. Gene Simmons, da banda Kiss, com o seu rosto pintado, apareceu, lançou as mãos à sua guitarra baixo e exclamou na direcção de Sviatoslav – “Agora és livre, por favor dá asas à tua expressão!”

A.C.J. – De alguma forma, fazes lembra-me Hieronymus Bosch ou Peter Brueghel, o Velho. Vês alguma semelhança entre o que se faz no século XXI e o trabalho daqueles artistas? Como reagirias à palavra “sátira” nas tuas obras? Pensaste, porventura, num público específico para esta exposição?
K.B. –Acabei de visitar a exposição do 5.º centenário de Bosch no Museo del Prado.

Uso com frequência composições maximalistas com narrativas que cobrem toda a superfície da tela, recorrendo normalmente à linguagem visual da alegoria ou da fábula. Gosto de recorrer à sátira e ao sarcasmo que tenho na minha caixa de ferramentas. Adoro recorrer a todos os símbolos e formas semióticas de comunicar disponíveis e construir ideias complexas.

Prefiro não me dirigir a um público específico. O que quero é desafiar-me a mim mesmo, sem me preocupar com o número de “likes”. Preferiria ter apenas um “like” de alguém cuja opinião me seja importante.

Imagina, por exemplo, que colocavas uma imagem de uma obra tua no Instagram. Preferias ter um “like” de Da Vinci, ou 1000 “likes” dos fãs de Kardashian?

A.C.J. – Será que Ad Lib satisfaz a tua libido artística? De que forma se tornou Macau numa espécie de desafio, ou, em termos mais simples, numa inspiração para ti?
K.B. A minha percepção do mundo mudou desde que comecei a trabalhar em Macau. O que aqui descobri foi uma versão miniatura da Babilónia, na qual os seres humanos misturavam deliberadamente tudo o que estava à sua disposição. É como se um ser superior e invisível conduzisse as suas experiências primeiro em Macau e, só depois, no resto do mundo. Devido à dimensão de Macau, e à sua relativa transparência e liberdade, é possível, sem grande esforço, observar o homem no seu melhor e no seu pior.

Para mim, este é indubitavelmente um dos locais mais inspiradores do mundo. Nisso, estou inteiramente de acordo com Ian Fleming (“Thrilling Cities”).

A.C.J. – Vejo no teu trabalho a inclusão de muitos capítulos da história da arte do século XX, desde o uso da iconografia (vindo da arte Pop) até todo um leque delirante. Esperas ser compreendido pelo espectador médio? Qual é o teu objectivo? Será o de provocar? Porquê? E depois qual será o próximo efeito?
K.B. – Podia apenas indicar-te as obras de Mario Vargas Llosa, “Notas sobre a morte da cultura”, e de Octavio Paz, “Corrente Alterna”.

A.C.J. – Espectáculo, Panem et Circenses
K.B. – A alta cultura (clássica) foi rebaixada e a baixa cultura (folclórica, tribal, decorativa) foi elevada a cultura pop de modo a satisfazer a procura popular e o lucro. A sociedade que estamos hoje a criar venera apenas “lucro” e “sucesso financeiro”. A base da pirâmide sente-se feliz quando é bem entretida e tem a barriga cheia.

Existem fórmulas fáceis para um sucesso temporário quando se tem por alvo um público dilatado. Mas eu ainda prefiro seguir os meus valores. Sinto o dever de influenciar e educar, mesmo a um público que seja presa da ilusão.

No que se refere a doutrinas e instituições artísticas, creio que o único caminho é o da dúvida e do desafio.

A.C.J. – De uma perspectiva mais pedagógica, e considerando também que as tuas origens estão na escola russa, na qual a cultura tinha uma importância crucial (como em todas as grandes escolas artísticas), como vês Macau enquanto local que possa acalentar quem aspire a ser artista?
K.B. – De início, estive em Macau apenas para uma exposição colectiva em 1992. Dadas certas circunstâncias, tive de prolongar a minha estadia. Tive inúmeras oportunidades de deixar Macau, o que, de facto, fiz em diversas ocasiões. Mas, gradualmente, apercebi-me de que Macau era o lugar ideal para sobreviver enquanto profissional, sem ter de entrar no ambiente híper-competitivo de uma grande cidade, como Paris, Londres ou Nova Iorque. Aqui, podia prosseguir as minhas experiências e projectos, podendo depois expor em qualquer outro lado.

Felizmente, desde há algum tempo, Macau é uma pequena cidade artística muito activa, com a primeira bienal de arte asiática e uma comunidade substancial de verdadeiros apreciadores de arte. Agora é uma cidade muito diferente, apesar de ainda haver algo no ar que me faz sentir inspirado e cheio de energia.  Obviamente, dada a sua dimensão e outros factores, Macau não consegue suportar uma comunidade artística muito alargada, embora exista algum espaço para iniciativas artísticas não comerciais.

A.C.J. – Como vês a compatibilidade entre o formalismo de Macau, os resíduos de confucionismo tradicional chinês na Educação e a necessidade de transformação que deveria ocorrer quando mergulhamos no mundo de Kant, Nietzsche, Oscar Wilde e Bachelard?
K.B. – Eu estenderia essas questões a um mundo mais amplo, para além de Macau. Em algumas áreas, como no jogo e entretenimento, Macau poderá ser uma das cidades mais importantes do mundo. Mas noutras, é apenas como uma pequena cidade de província. Uma das suas características é, precisamente, o seu potencial ilimitado de desenvolvimento, mas necessita de um melhor sistema educativo e de uma competição mais aberta. É ainda uma extraordinária encruzilhada cultural e melting pot, podendo deveras produzir algo de inesperado a partir de todos os ingrediente à sua disposição.

A.C.J. – O catálogo desta exposição não é aquilo que se esperaria. Tem um formato de revista. Recorres a ele para completar o delírio de toda a exposição, trata-se de uma mais uma provocação ou, ainda, de uma nova forma de liberdade?
K.B. – Vivemos num tempo de transição, em que não podemos aplicar antigas fórmulas. A fórmula do catálogo é uma experiência. É uma paródia do brilho superficial, do glamour e do pop. Mas também contém aquilo que se espera de um catálogo convencional. Entramos agora na idade digital. Livrarias, revistas e quiosques de jornal começam a fechar, mas talvez esta seja também uma forma de introduzir valores diferentes numa forma de comunicação moribunda e de manter todos os profissionais à tona.

O catálogo da minha recente exposição na galeria Rossi & Rossi teve a forma de cartas de tarot.

28 Out 2016