Tarefas urgentes

[dropcap]T[/dropcap]aiwan vai realizar este mês eleições locais (popularmente designadas por “eleições nove-em-um”). Ko Wen-je, que concorre de novo à presidência da Câmara de Taipei, tem sido criticado pelo seu adversário por ter suspendido no termo do anterior mandato os “Subsídios aos cidadãos séniores durante o Festival Duplo Nove”. Em resposta, Ko declarou, “se não for necessário pagar dividas, eu empresto já o dinheiro”. No entanto, Ko salientou que a sustentabilidade dos subsídios é importante, mas que é preciso suspendê-los porque a cidade está endividada. Sublinhou ainda que é importante não sacrificar os interesses da maioria em prol dos da minoria, nem sacrificar o interesse nacional em favor dos interesses partidários.

As declarações de Ko foram largamente apoiadas pelas redes sociais, que consideram que ele não se deveria candidatar a Presidente da Câmara de Taipei, mas sim a Presidente da República. Este homem não representa nenhum partido político, foi sempre um não alinhado. Tem sido o seu estilo contrário a populismos e o seu discurso independente que lhe franquearam o apoio de muitos eleitores. Nas eleições para a Assembleia Legislativa de Macau em 2017, muitos colégios eleitorais fizeram campanha com várias promessas aos cidadãos. Mas quantas delas foram cumpridas? Para falar francamente, o Governo da RAEM está “a colher o que semeou”.

A apresentação do Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2019 está agendada para esta semana. Este será o último relatório que Chui Sai On apresentará até ao final do seu mandato como Chefe do Executivo. Já não se encontra sob a pressão da reeleição, nem precisa de lutar para ganhar votos. Estas Linhas de Acção Governativa para 2019 não vão certamente conter quaisquer surpresas.

Mas, mesmo antes da apresentação do Relatório das Linhas de Acção Governativa, Chui Sai On já deu a entender que não vai haver más notícias ao nível da Segurança Social. A continuidade do Plano de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico e o aumento dos salários da Função Pública são dados adquiridos numa cidade que desfruta das avultadas somas provenientes dos impostos sobre a indústria do jogo. Para Chui Sai On, a prioridade é completar com sucesso o último ano deste derradeiro mandato e realizar a transferência de poder pacificamente. E para os cidadãos, qual será a prioridade?

Segundo os números da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, o valor da importação de mercadorias situou-se em 20,97 mil milhões de patacas no segundo trimestre de 2018, representando um aumento de 23.2 por cento; o valor da exportação de mercadorias situou-se em 3,22 mil milhões de patacas, correspondente a um aumento de 20.5 por cento, no qual o valor da exportação doméstica baixou 8.4 por cento e o valor da reexportação aumentou em 26.3 por cento. O défice da balança comercial  aumentou de 14,35 mil milhões de patacas no segundo trimestre de 2017, para 17,75 mil milhões de patacas.

A avaliar por estes números, a economia de Macau é actualmente sustentada pela indústria do jogo. A chamada diversificação moderada da economia não passa de um slogan. Esta situação de dependência do consumo de jogadores e de turistas, deixará o Governo de Macau numa posição frágil, se vier a haver problemas ao nível da economia externa. Nessa altura, a enorme despesa com os salários da Função Pública e os custos altíssimos decorrentes das políticas de segurança social vão tornar-se num pesadelo para o Chefe do Executivo.

Desde que o Comissariado da Auditoria publicou um relatório sobre o desempenho e a eficácia do Instituto Cultural, muitos departamentos governamentais aprenderam a seguir os procedimentos à risca. Preferem contratar serviços externos a pagar salários baixos a trabalhadores temporários. Dê lá para onde der, o trabalho tem de aparecer feito e, já que é pago pelo Governo, é preferível não correr o risco de infringir alguma lei ou regulamento. A gestão rígida da administração do Governo da RAEM e a prática da irresponsabilização colectiva são as principais causas do aumento exponencial do número de funcionários públicos e da ineficácia do desempenho do Governo. Toda a gente está habituada a viver em paz e abundância, e há muito que está esquecida a importância da preparação para a adversidade futura. Face a isto, quais vão ser as nossas tarefas prioritárias?

Será possível que, dentro de um ano, o Regime de Previdência Central Obrigatório, co-financiado pelo Governo, venha a substituir o Plano de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico? Poderão os membros do Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais, que vai ser criado em 2019, representar plenamente toda a sociedade? Poderá o Governo recuperar os terrenos não aproveitados no prazo estipulado, de acordo com a Lei de Terras? Virão a ser extintos os cargos oficiais excedentários no termo do mandato deste Governo? Irá o Governo local solicitar ao Governo Central o poder para autorizar o salvo-conduto singular?

Há tantos assuntos para resolver, mas com quantos iremos conseguir lidar?

16 Nov 2018

Eleições dentro de três anos

[dropcap]O[/dropcap]utubro marca o início da 2.ª sessão legislativa da sexta Assembleia Legislativa. Durante o ano que passou, nem uma única organização levou a cabo qualquer sondagem para auscultar a opinião do público sobre a actuação da Assembleia Legislativa e dos seus deputados. Mas, ultimamente, os comentários que ouvi a algumas pessoas sobre esta Assembleia não foram muito positivos, sobretudo no que diz respeito à sua capacidade de supervisionar as obras de que o Governo da RAEM está encarregue.

É preciso apresentar provas que justifiquem as acções, porque as visões subjectivas não servem como critério de avaliação. Após o termo da 1.ªsessão legislativa, foi emitido um relatório de actividades da Assembleia relativo a este período. Nos Anexos VII e VIII do relatório, são mencionadas em detalhe todos as intervenções de cada deputado, bem como o número de vezes em que pediram o uso da palavra, no período de antes da ordem do dia, e, finalmente, as interpelações de cada um deles.

A Assembleia Legislativa é composta por deputados eleitos por sufrágio directo, indirecto e nomeados. Independentemente da forma como acederam à Assembleia, todos os deputados têm direito à mesma remuneração, os mesmos direitos e os mesmos deveres. No entanto, após um estudo mais aprofundado do relatório, apercebi-me de que nenhum dos sete deputados nomeados tinha apresentado qualquer interpelação escrita ou oral, no decurso da 1.ªsessão legislativa. Será que nenhum deles tinha nada a assinalar sobre o desempenho do Governo da RAEM, durante estes 10 meses? No que respeita ao “uso da palavra no período de antes da ordem do dia”, apenas um dos sete deputados nomeados assinou uma intervenção neste âmbito.

Quanto ao desempenho dos deputados nomeados pelo Chefe do Executivo, acabam por não servir de mediadores entre o público e o Chefe do Executivo. Este sistema de nomeações advém da “Declaração Conjunta entre a China e Portugal” e foi promulgado através da Lei Básica de Macau. O objectivo legislativo original era proteger os portugueses residentes, uma pequena comunidade de Macau. Hoje em dia, é por demais evidente que esse objectivo inicial se perdeu. Perante isso, porque é que é necessário continuar a manter sete lugares para deputados nomeados que são incapazes de proferir qualquer interpelação quando se trata de avaliar a actuação do Governo da RAEM?

O desempenho dos deputados nomeados demonstra as limitações inerentes ao sistema de nomeações. E o que dizer sobre a actuação dos deputados eleitos por sufrágio indirecto? A avaliar pelo relatório de actividades da Assembleia Legislativa durante a 1.ªsessão legislativa, verifica-se que dois dos deputados eleitos por sufrágio indirecto, dos sectores cultural e desportivo, não apresentaram qualquer interpelação escrita, nem oral, nem pediram o uso da palavra no período de antes da ordem do dia. Este fenómeno está relacionado com o facto de a actual eleição por sufrágio indirecto em Macau ser feita a partir de pessoas colectivas com capacidade eleitoral activa dentro de cada um dos sectores da sociedade. Pode aperfeiçoar-se este tipo de eleição em Macau adoptando o método eleitoral através de Circunscrições Sectoriais – Functional Constituency – usado em Hong Kong.

Mas para além disso, a taxa de comparência dos deputados durante a 1.ªsessão legislativa foi satisfatória. Há contudo que salientar que, dos quatro deputados com 100% de presenças, três foram eleitos por sufrágio directo e apenas um foi nomeado.

Durante os próximos três anos, o desempenho destes deputados, quer tenham sido eleitos directa ou indirectamente, irá influenciar as suas probabilidades de reeleição. Os que já anunciaram que não se irão recandidatar, terão de preparar convenientemente os seus sucessores. Se o sistema politico de Hong Kong e de Macau não sofrer futuramente grandes alterações, o número de lugares reservados para os deputados nomeados manter-se-á igual. Quanto às alterações na eleição por sufrágio indirecto, será necessário um esforço da população de forma a exigir que o voto passe a pertencer aos eleitores de cada sector. Já em relação à eleição por sufrágio directo, as possíveis mudanças serão provavelmente ditadas pelo campo democrata, com raízes na Associação de Novo Macau. Se os meus leitores prestarem atenção às recentes movimentações registadas nas organizações mais consagradas ao longo de toda a comunidade, repararão que os diferentes partidos já começaram a preparar as próximas eleições para a Assembleia Legislativa, que terão lugar dentro de três anos.

Para tornar a Assembleia Legislativa num verdadeiro plenário que defenda o bem estar do povo, todos nós teremos de monitorizar o desempenho dos deputados. Quem for tomar assento na próxima Assembleia Legislativa é uma escolha que só vai depender da consciência dos eleitores .

19 Out 2018

Realojamento dos galgos

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] canídromo Yat Yuen de Macau, a única pista de corrida de galgos da Ásia, encerrou oficialmente este ano, após ter proporcionado entretenimento aos aficcionados durante mais de oito décadas. Este encerramento tinha sido anunciado pelo Governo da RAEM, dois anos antes, quando em 2016 comunicou que o canídromo teria de mudar de instalações até 2018. Em 2017, o Governo fez saber que o prazo da concessão da Companhia de Corridas de Galgos Macau (Yat Yuen), S.A., do exclusivo da exploração das corridas de galgos na Região Administrativa Especial de Macau, iria ser prorrogado, com início em 1 de Janeiro de 2017 e terminaria em 20 de Julho de 2018. Por outras palavras, a Companhia de Corridas de Galgos Macau tinha dois anos para preparar a mudança e o encerramento das instalações. No entanto, a situação não foi encarada de forma séria e os proprietários tentaram por todos os meios estender o prazo de concessão do exclusivo da exploração das corridas de galgos, de forma a ocuparem indefinidamente o Campo Lin Fung. Foram sempre persistindo neste objectivo até o prazo estar a chegar ao fim, e desta forma não planearam atempadamente o realojamento dos galgos, que foram sendo usados neste negócio como trunfos na manga dos responsáveis. Embora seja prática corrente no mundo dos negócios maximizar o que se tem a seu favor, neste caso os animais acabaram por ser as vítimas desta má gestão.

Por insistência do Governo da RAEM, a Companhia de Corridas de Galgos Macau acabou por sair na data marcada. As diversas propostas que tinham apresentado para realojamento dos animais revelaram-se impraticáveis. Falaram em colocá-los em 11 vivendas e em alugar um prédio desocupado no distrito Pac On, na Taipa, para criar um centro de adopção dos cães. Mas nenhuma destas propostas resultou. Finalmente, os mais de 500 galgos irão ser temporariamente realojados numa quinta em Coloane, adjacente ao Asilo Vila Madalena.

Segundo se sabe, esta quinta era usada para cultivar plantas decorativas, que eram posteriormente vendidas nas feiras na véspera do Ano Novo Lunar. Mas como a produção local de plantas ornamentais foi substituída pelas que se importam da China, o negócio e a quinta foram abandonados.  O IACM afirmou que não lhe parecia haver qualquer problema em alojar os cães numa quinta desocupada, tal como se mantêm cães em locais em construção para fins de segurança, uma prática local bastante comum. Mas alojar no espaço desta quinta mais de 500 animais vai criar uma série de problemas e esta situação não deverá ser menosprezada.

O realojamento dos animais vai exigir que se cimente o solo da quinta e que se instale um sistema de esgotos e de drenagem para os mais de 100 contentores que vão ser instalados para acolher os animais. Este empreendimento implica obras em larga escala e necessitaria da aprovação das autoridades competentes, antes de se iniciarem os trabalhos de construção. Caso contrário a construção seria considerada ilegal. E realmente foi o que se veio a verificar, porque as obras começaram sem autorização e já foi emitida uma ordem provisória de suspensão, que não foi acatada pela Companhia de Corridas de Galgos. No entanto as autoridades não consideraram o incumprimento da ordem como um crime de desobediência qualificada. A omissão de acções por parte do Governo encontra-se sem dúvida sob o slogan “actuação em obediência à lei”.

O Asilo Vila Madalena em Coloane acolhe um grupo de idosos vulneráveis, ao cuidado de um grupo de freiras que vivem em isolamento, indiferentes aos assuntos mundanos. Mas mesmo assim, estas frágeis freiras têm um grupo de simpatizantes que lutam para que se lhes faça justiça. Após a comunicação social ter feito a cobertura do realojamento dos galgos, na quinta adjacente ao Asilo Vila Madalena, o Chefe do Executivo e dois secretários visitaram o local. Os representantes da Companhia de Corridas de Galgos Macau e da organização que supervisiona o bem estar dos animais estiveram também presentes, a fim de se debruçarem sobre toda a problemática do realojamento. O Governo da RAEM também reiterou que os direitos e os interesses dos idosos do Asilo são a sua prioridade deste caso. À partida, a controvérsia sobre o realojamento chegará ao fim ainda esta semana. Desde que a instalação dos galgos na quinta não afecte os vizinhos idosos, os animais irão permanecer no local até estar terminado o processo da sua adopção, o que se prevê venha a acontecer num prazo de seis a oito meses. Caso este processo não tenha um final feliz, os cães regressarão ao Canídromo de Yat Yuen e os responsáveis serão penalizados por não terem tratado a tempo e horas do seu realojamento. Há ainda a salientar, que depois do processo de adopção estar concluído, a quinta não voltará a servir como local de cultivo porque o solo vai ser todo cimentado. Nessa altura, irá o Governo exigir que os responsáveis voltem a tornar o terreno arável?

5 Out 2018

Um ano depois

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]ntes de mais nada, quero agradecer a todos os funcionários públicos que estiveram na frente das operações a cumprir o seu dever durante a passagem do tufão, bem como a todo o outro pessoal e voluntários que trabalharam árduamente para limpar a cidade após a passagem da tempestade. Sem a sua dedicação, nenhum plano por mais perfeito que fosse teria resultado.

O Governo da RAEM retirou ensinamentos da catastrófica destruição provocada o ano passado pelo tufão “Hato” e, desta vez, estava preparado para lidar com a destruição e as inundações causadas pelo“Mangkhut”. Por exemplo, o Chefe do Executivo assumiu a coordenação da toda a situação, a colaboração entre os diversos departamentos foi reforçada, ao passo que as forças de segurança e a protecção civil se aplicaram na organização das tarefas e na mobilização de todas as unidades. Até mesmo a Província de Guangdong forneceu a Macau uma série de equipamentos de emergência. A situação foi bem avaliada e as medidas tomadas, antes e depois da tempestade, foram bem planeadas e, como tal, o resultado foi satisfatório e digno de louvor.

O desempenho do Governo da RAEM nesta situação mereceu os elogios de toda a comunidade. Mas, no entanto, existem ainda muitos aspectos que merecem análise e que podem ser melhorados. Um ano após a desastrosa passagem do “Hato”, os problemas causados pelas inundações nas zonas ribeirinhas de Macau continuam por resolver. As comportas contra inundações ainda não são completamente eficazes, e as zonas onde foram instaladas ainda alagam. Os moradores afectados pelas inundações continuaram a sofrer cortes no abastecimento de água corrente e de electricidade. Os comerciantes das áreas inundadas, que são afectados por este problema pelo menos uma vez por ano, vêem os seus equipamentos destruídos regularmente e os negócios são sistematicamente prejudicados.

Nas áreas alagadas, pudemos ver os funcionários das lojas a trabalhar árduamente para a secar o chão e limpá-lo dos detritos acumulados. Embora estes lojistas tenham tomado providências antes da passagem do tufão, nem todos os seus bens puderam ser salvos, devido à impossibilidade de serem removidos ou desmontados. Uma pequena livraria situada na Travessa dos Mercadores perdeu um terço do seu stock de livros aquando da passagem do “Hato”. Este ano, um quinto dos que restaram foi destruído pelo “Mangkhut”. Enquanto o problema das cheias no Porto Interior não forem resolvidos, quem é que vai ter vontade de abrir um negócio na zona ?

Durante o “Mangkhut”, a CEM tomou a iniciativa de suspender as suas subestações, para evitar os acidentes decorrentes das inundações. Por isso, mesmo os comerciantes que possuiam bombas para extracção das águas das cheias, não as conseguiram pôr a funcionar por falta de electricidade. Os moradores das zonas baixas viram-se também confontados com a falta de água corrente e de electricidade. Não é um pouco irónico que esta situação ocorra em Macau, uma cidade com um PIB no top 10 da Ásia?

De acordo com as vítimas das cheias, mesmo que a comporta contra inundações consiga impedir as águas do mar de inundarem as ruas, não consegue impedir as águas dos esgotos de subirem e alagarem os apartamentos. Para solucionar este problema terá de ser feita uma total impermeablilização da rede de esgotos.

Nos anos 60, embora não houvesse subida da água do mar no Distrito de San Kio, as cheias eram inevitáveis sempre que chovia intensamente. Sempre que havia inundações, as crianças da zona tinham uma diversão: apanhar os peixes que se espalhavam pelas ruas, vindos das lojas que vendiam aquários. Os adultos, por sua vez, estavam ocupados a tentar fixar as tampas dos esgotos de forma a impedir que se transformassem em “géiseres” mal-cheirosos. Nesse tempo, quando os moradores iam buscar água aos poços, situados geralmente entre duas casas, não se surpreendiam quando no balde também vinham de brinde alguns peixinhos. Todos estes acontecimentos eram encarados como “coisas normais” até o Governo português ter levado a cabo um projecto de drenagem em larga escala, que acabou com o divertimento das crianças e com o infortúnio dos adultos.

Há quase 20 anos que Macau regressou à soberania chinesa. Durante este espaço de tempo surgiram novos edifícios nas zonas baixas do Porto Interior. Os trabalhos de desassoreamento nas duas margens vão continuando, a capacidade urbana está a atingir o ponto de saturação e a cidade sofre com o envelhecimento da rede de esgotos. O Governo da RAEM promoveu o desenvolvimento económico, mas negligenciou a qualidade de vida das pessoas. Após tantos anos, o reordenamento do Porto Interior não saiu ainda da fase de planeamento. Passou um ano sobre a destruição provocada pelo “Hato” e os recentes danos provocados pelo “Mangkhut” demonstraram que as medidas paliativas tomadas pelo Governo não são assim tão eficazes. A prevenção das inundações deverá ser uma prioridade do Executivo. Se a Holanda o consegue fazer perfeitamente, Macau também terá de consegui-lo.

21 Set 2018

O mercador de Veneza dos tempos modernos (1)

[dropcap style=’circle’] “O [/dropcap] Mercador de Veneza” é uma famosa peça de William Shakespeare. O protagonista, um agiota, exigiu uma libra da carne do seu devedor, António, quando este falhou o pagamento da dívida, de acordo com o contrato celebrado. No entanto, nem uma só gota de sangue de António poderia ser derramada durante a ablação. A história tem um extraordinário enredo mas, quinhentos anos mais tarde, um caso semelhante ocorreu com o Governo de Macau.

Segundo o comunicado de imprensa da Direcção dos Serviços de Economia (DSE) e do Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância (GPTUI), como foi impossível localizar os bens do avalista (a empresa-mãe Eagle Airways Holdings Limited) da “Viva Macau”, a quantia de 212 milhões de patacas cedida pelo Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização (FDIC) à “Viva Macau” não poderá ser recuperada. O tribunal mandou arquivar o respectivo processo de falência por os bens da Viva Macau serem insuficientes para pagar as dívidas. Vale a pena mencionar que a “Eagle Airways Holdings Limited” tinha assinado cinco notas promissórias como garantia dos empréstimos concedidos à “Viva Macau”, sem que tenha sido avançados quaisquer bens físicos para efeitos de penhor. E esta é uma Empresa de Investimento de Hong Kong registada com um valor nominal de 10.000 HKD por acção.

Quando eu era deputado da Assembleia Legislativa, redigi três interpelações escritas (a 13 de Janeiro e a 16 de Setembro de 2010 e a 19 de Julho de 2013) sobre o empréstimo de 212 milhões de patacas do FDIC à “Viva Macau”, e sobre a possibilidade de recuperação das verbas quando não existiam bens para efeitos de penhor. A resposta que obtive tinha este teor, “Para garantir o pagamento do empréstimo, a empresa (Viva Macau) forneceu um avalista. Se a divída não for paga na totalidade, o FDIC pode processar a empresa e o seu avalista de acordo com a lei e os regulamentos aplicáveis”; “O Governo da RAE atribui grande importância a este caso e empenhar-se-á ao máximo para levar a cabo todas as acções legais ao seu alcance, de forma a salvaguardar o erário público. Os advogados irão cobrar a divída junto da entidade responsável de acordo com a lei”; “no que respeita à incapacidade da “Viva Macau”’ de efectuar o pagamento dentro do prazo, o Governo da RAE empreenderá todas as acções legais ao seu alcance para cobrar a divída”.

Embora o Governo da RAEM tenha apoiado a “Viva Macau” na solução do seu problema financeiro, acabou por falhar no contributo ao desenvolvimento sustentado da indústria da aviação de Macau. Pelo contrário, devido a uma série de irregularidades no processo do empréstimo, a quantia de 212 milhões de patacas não será recuperada e o Governo sofrerá uma avultada perda. Se todos os comerciantes deste mundo forem iguais ao “Mercador de Veneza”, que só queria ganhar dinheiro e se recusava a pagar as suas dívidas, a justiça social irá à banca rota.

30 Jul 2018

Objectivos comuns

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Secretário Geral do Comité Central do Partido Comunista da China (PCC), Xi Jinping, tinha anunciado durante o 18º Congresso Nacional do Partido, que teve lugar em 2012, os dois objectivos estratégicos para a China, que deveriam coincidir com dois importantes centenários. O primeiro seria a concretização de uma “sociedade moderadamente próspera” no ano do 100º aniversário da fundação do Partido (2021), com o PIB e o rendimento per capita a duplicarem em relação aos valores de 2010. O segundo, e o mais desafiante dos dois, seria a transformação da China num país socialista forte, moderno, democrático, civilizado e harmonioso até 2049, ano que que se celebrará o 100º aniversário da fundação da República Popular da China.

A maioria de nós não irá chegar a 2049 e, como tal, nunca saberemos se este objectivo se irá ou não cumprir. Mas, quanto às metas estabelecidas para 2021, espero que todos os meus leitores as possam vir a testemunhar.

O conceito de “sociedade moderadamente próspera” vem do Confucionismo e da antiga China que sonhava com a criação de “uma sociedade altamente unificada”. Esta sociedade ideal, partilhada por todos, é em muitos aspectos semelhante ao “estado utópico” de que nos fala Platão, à “sociedade comunista” proposta por Karl Max no “Manifesto do Partido Comunista” e à “Nova Jerusalém” mencionada na Bíblia.

A procura de uma co-existência verdadeiramente pacífica deveria ser o objectivo comum de toda a Humanidade, independentemente das crenças religiosas, filosóficas ou políticas. No entanto, durante milhares de anos, a ganância dos homens foi-se multiplicando ao ritmo do progresso de uma civilização materialista. As guerras e as mortandades foram-se sucedendo, tornando a utópica “sociedade altamente unificada” um sonho cada vez mais distante. Parece portanto muito difícil concretizar esse tipo de sociedade num espaço de apenas três anos!

Existem três grandes discrepâncias que a China terá de ultrapassar para atingir a tal “sociedade unificada”, a saber: o fosso económico entre as regiões do sudeste e do noroeste, o fosso económico entre as zonas urbanas e as zonas rurais e o fosso económico entre os pobres e os ricos das cidades. Se estas discrepâncias não forem ultrapassadas, toda esta retórica não passará de um conjunto de palavras ocas. Se olharmos para o aumento constante da disparidade entre os pobres e os ricos, proveniente do actual crescimento económico da China, compreenderemos que o Governo vai ter de se esforçar bastante se, nós próximos três anos, quiser ver construída” uma “sociedade altamente unificada”. O sonho de Xi Jinping não deverá ser uma utopia pessoal, mas sim o sonho comum de 1,390 milhões de pessoas.

A pessoas devem ter sonhos. Esses sonhos devem transformar-se em ideais, trabalhados com afinco para um dia virem a ser realidade. O mundo está em constante mudança e a China precisa de renovar para se adaptar âs novas situações e não ficar para trás. Liu Xia, viúva de Liu Xiaobo, laureado com um Nobel, deslocou-se ao estrangeiro para receber cuidados médicos. Este incidente demonstra que existem várias maneiras de resolver um problema, mesmo numa sociedade autoritária. Na era que vivemos, a comunicação racional é a melhor forma de garantir a sobrevivência.

Após mais de 200 dias de suspensão, o deputado da Assembleia Legislativa, Sulu Sou, retomou finalmente as suas funções. Como mandatário da Lista de candidatos da Associação de Novo Macau às eleições legislativas de 2017, considero a minha missão cumprida. Considero que para mim chegou a hora de participar na construção de uma sociedade mais equalitária e mais justa com uma nova abordagem.

Martin Luther King tinha um sonho que ainda não foi realizado. A Nova Jeusalém mencionada na Bíblia representa também um sonho que, para se tornar realidade, precisa do esforço permante de todos os cristãos. Decidi deixar a Associação de Novo Macau depois de uma participação de 25 anos, uma decisão tomada para melhor poder realizar o sonho da criação de uma nova era.

“O Homem é o caminho da Igreja”, uma directiva mencionada no “CENTESIMUS ANNUS” emitido pelo Papa João Paulo II em 1991. Quer o sonho de Martin Luther King, a obtenção da igualdade racial, quer o de Xi Jinping, o renascimento da nação chinesa, necessitam da participação das pessoas e é necessário que um número cada vez maior trilhe a mesma senda. Vivemos todos sob o mesmo céu, independentemente da raça e das opções políticas. Só caminhando em conjunto podemos ver realizado o sonho de todos nós.

13 Jul 2018

O caminho a trilhar

[dropcap style=’circle’] Z [/dropcap] hang Rongshun, antigo vice-presidente do Gabinete Jurídico do Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular, assumiu o cargo de subdirector do Gabinete de Ligação do Governo Central em Macau, no passado dia 26. Formei a minha primeira opinião sobre Zhang quando o ouvi dizer que os membros do Comité Consultivo dos órgãos municipais de Macau não deviam ser escolhidos através de eleições directas. Independentemente do intuito legislativo e da interpretação da Lei Básica de Macau, todos têm direito a exprimir as suas opiniões. Eu, pelo meu lado, subscrevo a perspectiva do falecido Prof. Xiao Weiyun da Universidadde de Pequim, que fez parte da Comissão da Redacção da Lei Básica de Macau, sobre a designação dos membros dos órgãos municipais. A criação da Lei Básica destinou-se a assegurar que a filosofia de “um País, dois sistemas” prevaleceria sobre a que defendia “um País, um sistema.” Se os membros do Comité Consultivo para a criação dos órgãos municipais forem escolhidos por eleição directa (uma pessoa, um voto), reforçaremos a fidelidade de Macau à Lei Básica e garantiremos estabilidade a longo prazo.
Quando o actual vice-presidente da China, Wang Qishan, era ainda vice-primeiro ministro do Conselho de Estado, recomendou um livro intitulado “O Antigo Regime e a Revolução”. O livro foi escrito pelo politico francês Alexis-Charles-Henri Clérel de Tocqueville, e apresenta uma análise crítica das causas da Revolução Francesa (1789). A insurreição que desencadeou a revolução surgiu de forma espontânea, sem uma frente organizada. Foi um enorme movimento social impulsionado pelos “Estados Gerais”, que pretenderam solucionar a crise económica que a França atravessava. Perante esta crise, desencadeada pelo Rei Luis XVI, o terceiro estado (burguesia, pequeno clero e povo), reagiu, durante a Assembleia dos Estados Gerais, com um movimento que ficou conhecido como “O Juramento do Jogo da Péla”. O objectivo era criar uma constituição que limitasse os poderes do rei. Este acontecimento, num país sem equilibrio entre os diversos estratos sociais, fez tremer a sociedade enquanto um todo e deu lugar a “ tumultos sem precedentes e a um terrível caos.”
Wang Qishan compreende que a reforma do antigo regime seja acompanhada por uma crise. Eu acredito que a chave para eliminar a crise é a manutenção do “equilíbrio.” No entanto, perante a situação política actual e as disposições do Governo da RAEM, temo que a concentração excessiva de poder possa vir a provocar o “desiquilíbrio social”.
O Governo da RAEM criou uma enorme quantidade de corpos consultivos. Se estes orgãos conseguirem maximizar as suas funções, será sem dúvida benéfico para a actual administração. No entanto, a recente revisão da Lei do Trânsito Rodoviário e a construção do crematório Sa Kong, na Taipa, foram muito criticadas pela opinião pública. Para além de estar mal preparado para organizar uma consulta pública, o Governo da RAEM não reuniu um número suficiente de pareceres junto das autoridades competentes nestas matérias.
A situação actual pode descrever-se desta maneira: o Governo da RAEM vela pelos interesses dos “patriotas muito devotados a Macau”. Mas, mal surge um problema, as alianças formam-se em torno dos interesses individuais. As políticas governamentais têm sido repetidamente canceladas ou “postas na prateleira”, provocando um decréscimo da credibilidade do executivo. Se não houver representação dos diversos sectores sociais nos futuros órgãos municipais de Macau, é expectável que entraves semelhantes surjam durante o seu processso de implementação.
Depois de 20 anos volvidos sobre o regresso de Macau à soberania chinesa, tanto o território como a China passaram por processos de mudança, sendo certo que a China continental sofreu as maiores alterações. Na situação actual, sobretudo quando o Executivo da RAEM vai ser substituido dentro de 16 meses, a única forma de manter o “equilíbrio social” é assegurar a participação de todos os sectores da sociedade.
Desde a eleição da Assembleia Legislativa, em 2017, que Macau não tem tido um momento de paz devido aos vários problemas que se têm sucedido. Parece ter chegado a hora de parar com as divergências e de repensar a forma de reunir esforços em prol do bem comum. O desenvolvimento da nossa sociedade depende da participação de todos os cidadãos sob a liderança do Governo da RAEM. Os direitos e deveres de cada pessoa e de cada organização devem ser equilibrados de forma a podermos ter “opinião pública” e “democracia” em vez de nos ficarmos pelo “populismo” e pelos “votos.”

29 Jun 2018

Mais uma farsa

[dropcap style=’circle’] U [/dropcap] m comunicado de imprensa do Gabinete para as Infra-estruturas de Transportes pôs um ponto final na “nada-morta” consulta pública sobre a alteração da “Lei do Trânsito Rodoviário”. Se esta decisão do Governo da RAEM foi tomada na sequência de algum bom conselho, no sentido de evitar aborrecimentos, ou se foi fruto de um recuo perante as dificuldades do projecto, é uma questão que deixou de ter importância. Que eu tenha tido conhecimento, esta é a terceira vez em que o Governo volta com a palavra atrás. Sempre que o Executivo se contradiz, mina a sua credibilidade e desperdiça o esforço dos funcionários de primeira linha que dão o seu melhor em prol dos projectos governamentais. E como este executivo só estará mais 18 meses em funções, parece-me que o tempo se está a esgotar para mostrar a sua capacidade de governação. O Governo Central vai ficar agradado se a transição para o futuro Executivo se fizer pacificamente.
Lembro-me que no início de 2011, o Chefe do Executivo promulgou um Regulamento Administrativo a fim de cancelar os lugares reservados da Auto-Silo da Nam Van (Pak Wu), a bem do interesse público. Mas, a seguir à promulgação, os detentores dos lugares reservados oposeram-se ao seu cancelamento e aliaram-se a pessoas influentes para manifestar o seu descontentamento. Em resultado dessa acção, o Chefe do Executivo promulgou outro Regulamento Administrativo que revogava o anterior. Até agora, a questão sobre o cancelamento dos lugares reservados permanece em aberto. Nessa altura, o chefe da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, Wong Wan, que defendia um maior acesso do público aos lugares de estacionamento, pediu para ser deslocado das suas funções, porque percebeu que se estava a esforçar em vão.
Outra reviravolta abrupta nas políticas do Governo aconteceu aquando da controvérsia sobre a passagem do Metro Ligeiro através dos arruamentos da Zona Nova de Aterros do Porto Exterior (NAPE). Inicialmente, o Executivo insistia que fazer passar as linhas através das ruas da NAPE era seguro e a única solução possível. As equipas do Gabinete para as Infra-estruturas de Transportes realizaram inúmeras reuniões com residentes da zona. Embora fossem alvo das críticas do público, estes funcionários continuaram a defender as políticas governamentais a este respeito. Nessa ocasião, fui convidado para uma destas reuniões. Mereceram-me toda a admiração estes funcionários dedicados, que enfrentaram corajosamente os residentes, apesar da falta de apoios. Mas, finalmente, o Governo acabou por afirmar que as linhas passariam ao longo da periferia da NAPE, e não dentro da zona, pondo desta forma um ponto final na controvérsia. A inconsistência das políticas orientadoras tornou imprevisível o inicio do funcionamento do Metro Ligeiro na Península de Macau.
No que respeita à morte prematura da revisão da “Lei do Trânsito Rodoviário”, a culpa deve ser atribuída à forma como as autoridades competentes lidaram com o assunto. Como se podia ler no comunicado de imprensa do Governo, já que a “Lei do Trânsito Rodoviário” foi promulgada há mais de 10 anos, as suas cláusulas precisam de ser alteradas de acordo com as modificações no contexto social, especialmente no que diz respeito à “condução sob influência do álcool”, “condução sob influência de substâncias psicotrópicas” e ao “sistema de dedução de pontos”. A comunidade já chegou a um consenso sobre estas matérias e as emendas à “Lei do Trânsito Rodoviário” já estão na agenda. No que respeita ao aumento das multas, medida que irá afectar inúmeros condutores, as autoridades precisam de proceder de forma cautelosa. O Conselho Consultivo do Trânsito foi empossado da responsabilidade de assessorar o Governo na formulação das políticas globais para os transportes terrestres, melhoramento das vias, gestão de veículos, e optimização das estradas e das infra-estruturas pedestres. Então porque é que as autoridades responsáveis não auscultaram de antemão a opinião do Conselho para poderem propor um aumento de multas mais razoável e mais realista? Se o Governo respeitasse este corpo consultivo, os vogais do Conselho não teriam criticado publicamente o aumento das multas, o que criou uma situação extraordinária.
Confúcio afirmou que os governos devem ser credíveis e que têm de conquistar a confiança do povo. Caso contrário, caminham para o seu próprio declínio. Quando as políticas promulgadas pelos líderes podem ser alteradas de forma arbitrária e inconsistente, abrem-se as portas ao populismo. A cena política torna-se palco de negociatas obscuras e o povo sofre as consequências.
Existe também um ditado chinês que alerta as pessoas para terem sempre muito cuidado em tudo o que fazem, perfeitamente aplicável ao actual Governo, mesmo estando apenas a ano e meio de terminar as suas funções. É preciso muita cautela para evitar que pessoas mal intencionadas engendrem mais alguma farsa.

15 Jun 2018

Foquemo-nos no estado de direito

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ulu Sou, com o mandato de deputado suspenso, que tinha sido acusado do crime de desobediência qualificada, foi condenado a uma pena de 120 dias de multa pelo Tribunal de Primeira Instância, a 29 de Maio. Scott Chiang, outro dos acusados, recebeu uma pena idêntica pelo crime de reunião ilegal. Como ambos podem ainda recorrer da sentença, o resultado final permanece uma incógnita.

O conceito de “estado de direito” é um valor universal e a pedra basilar do socialismo. Quando comparado com o “estado popular”, revela-se mais eficaz no que diz respeito à restrição dos abusos de poder, à implementação da ordem social, à gestão social, à redução das contradições e conflitos sociais e, em última análise, na obtenção da paz social.

O julgamento de Sulu Sou captou a atenção do público e dos media. A sentença do Tribunal de Primeira Instância terá certamente a sua base legal. Se a acusação e a defesa não a aceitarem, podem tentar revertê-la apelando para uma instância superior, o que é uma prerrogativa de qualquer estado de direito. Desde que este assuntos sejam tratados com transparência, correcção e justiça, a comunidade terá de aceitar a justeza das decisões do Tribunal.

No artigo “Olho por olho …” publicado em Fevereiro, falei sobre os combates “não-violentos” e exortei as pessoas a desistirem da ideia de fazer justiça pelas próprias mãos. Mahatma Gandhi disse um dia “olho por olho e ficamos todos cegos”. Esta afirmação nasceu da sua experiência enquanto testemunha da luta sangunária entre Hindus e Muçulmanos.

Estudei numa escolar secundária que defende a liberdade e onde os estudantes podem falar livremente com os professores. Nessa altura, o professor perante uma classe cheia de adolescentes enérgicos e apaixonados pelos seus ideiais, confidenciou que, em jovem, tinha sido apoiante do “Movimento 4 de Maio”. Esta conversa acalorada entre o professor e os alunos não degenerou em conflito, nem os alunos foram punidos por terem debatido estas questões. O fosso entre o professor e os alunos foi transposto através do diálogo. Tolerância, consideração, entendimento e diálogo são as melhores formas de resolver os problemas.

Uma lei injusta é aquela que ainda não foi revista. Conheço uma legista de Hong Kong, ligada ao campo pró-democrata, que faz questão de obedecer à lei porque acredita no estado de direito como arma para corrigir as “leis más” e que nunca se envolveria em actos de violação da lei. Quando os opositores não obedecem à lei, os ditadores ganham a força da razão. Daí resulta que a sociedade fica fora de controlo e as pessoas começam a atacar-se umas às outras. A frase de Gandhi não revela fraqueza nem submissão, mas sim a posição de um homem corajoso.

Os políticos devem ser pessoas de mente aberta e nunca devem agir em proveito próprio. O juizes terão de fazer respeitar a lei e o povo deve assegurar que a sociedade continua a ser por ela governada. Desde o “Movimento dos Guarda-Chuva”, parece que, tanto o Governo de Hong Kong como os seus opositores, perderam a paciência. A luta entre os dois campos só poderá agravar as clivagens sociais. É necessário que haja consenso para ultrapassar as cisões.

Se Gandhi ainda fosse vivo, o índice de felicidade da Índia e do Paquistão seria muito maior. Se Yitzhak Rabin ainda fosse vivo, a paz entre Israel e a Palestina seria uma realidade. Sob a liderança do Presidente Xi, que defende o socialismo de características chinesas, a possibilidade de Hong Kong e Macau atingirem o equilíbrio depende do empenho das suas populações na implementação plena do estado de direito.

1 Jun 2018

De quem depende a segurança do Estado?

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] Chefe do Executivo deslocou-se à Assembleia Legislativa para responder a algumas questões dos deputados. A maioria dos 33 representantes, à excepção de Ho Iat Seng (Presidente da Assembleia), de Cheung Lup Kwan e do deputado suspenso Sulu Sou, colocaram questões de circunstância. Foram muitos poucos os que levantaram questões significativas, pelo que daqui não saiu nada que valha a pena ser discutido. Parece-me mais interessante dedicarmos algum tempo a analisar o Artigo 23 da Lei Básica.
Os meus leitores provavelmente saberão que o Governo de Macau aprovou legislação para implementar o Artigo 23 da Lei Básica, em 2009, e que a “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” foi então promulgada. Embora, ao longo dos 19 anos que decorreram desde o regresso à soberania chinesa não tenha havido em Macau nada que pusesse em risco a segurança do Estado, 9 anos após esta data foi introduzida legislação, que, de certa forma, pretendia concluir a missão da recuperação do território para a China. No entanto, obediência absoluta não quer dizer lealdade absoluta. O Governo de Macau vai introduzir uma série de leis e de regulamentos associados à “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” e irá criar os respectivos departamentos estatais.
Macau confia na indústria do jogo para obter enormes dividendos e a prosperidade da sua economia está dependente dos turistas da China continental. A voz dos dissidentes locais mal é ouvida. O Governo de Macau dá todos os anos dinheiro aos seus residentes, o que provoca que se habituem a viver um estilo de vida “patriótico e apaixonado por Macau”. Os novos imigrantes veem Macau como um paraíso, e mais de 100.000 trabalhadores estrangeiros chegam aqui em busca de riqueza e não de “revoluções”. Acredita-se que esta cidade é um dos lugares mais seguros de toda a China.
Aprovar legislação relacionada com o Artigo 23 da Lei Básica é uma necessidade política. Mas qual é o objectivo de introduzir leis e regulamentos paralelos? Será para mostrar à população de Hong Kong que, futuramente, o seu sistema virá a ser igual ao de Macau, em termos de segurança do Estado?
Se for este o caso, temo que a visita de Qiao Xiaoyang a Hong Kong para explicar e promover a Lei Básica, e os seus esforços para abrir o caminho para a aprovação de legislação de acordo com o Artigo 23, tenham sido feitos em vão. E tudo isto porque Macau é absolutamente obediente e é uma cidade sem crises. Hong Kong e Taiwan não têm qualquer inveja de Macau no que respeita ao papel que desempenha nesta matéria. Uma boa governação é o melhor garante da segurança do Estado, muito mais do que leis e regulamentos restritivos.
Na História da China houve diversas dinastias muito fortes. Uma delas foi a Dinastia Qin, a quarta em termos de poderio militar, apenas precedida pelas Dinastias Yuan, Tang e Han. Contava com uma população de 25 milhões de almas, e os seus exércitos tinham um milhão e meio de soldados, cerca de 6 por cento da população, a maior percentagem de todas as dinastias. Então porque terá a Dinastia Qin durado apenas 15 anos, apesar de todo o poderio militar?
Para solidificar a sua estadia no poder, os Qin não promulgaram leis para garantir a segurança do Estado, em vez disso implementaram legislação do foro criminal muito restritiva, para eliminar os factores que potencialmente pusessem em risco essa segurança. Por exemplo, promoveram a queima de livros e o sepultamento de intelectuais para eliminar as dissidências e demoliram as muralhas das cidades para vigiarem melhor os seus moradores. Além disso, todos os que tivessem conhecimento de uma infracção cometida por outrém e não o denunciassem, eram considerados tão culpados como o infractor. As armas pessoais foram apreendidas em todo o País e transformadas em 12 esculturas metálicas.
Resumindo, o primeiro Imperador da Dinastia Qin fez tudo o que pôde para passar a coroa de geração em geração. Infelizmente, para ele, o resultado não foi o esperado. Pouco tempo depois da sua morte, o novo Imperador Qin foi destronado. Várias décadas após do fim da Dinastia Qin, um intelectual da Dinastia Han passou pelas ruínas da Dinastia Qin e escreveu um artigo onde analisava a queda desta linhagem. Esta família real não se extinguiu por não ter promulgado leis de segurança do Estado e leis e regulamentos paralelos a elas associados, caiu sim, por não ter governado com “benevolência e com justiça”. Se o intelectual Han tivesse nascido décadas antes e o primeiro Imperador Qin tivesse tido hipótese de o ouvir, poderia ser que tivesse ordenado aos seus descendentes que governassem o País com benevolência e com justiça. Nesse caso, a governação da China dos nossos dias poderia ser a continuação da administração da Dinastia Qin.
No entanto, não existem “ses” na História, apenas relações ocasionais.

11 Mai 2018

Peço desculpa à população de Macau

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ste ano assinala-se o 25º aniversário da promulgação da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau. É mesmo necessário envidar sérios esforços para estudar esta lei aprofundadamente.

Recentemente, devido à discussão na Assembleia Legislativa da proposta de lei sobre a criação do “Instituto para os Assuntos Municipais”, voltei a debruçar-me detalhadamente sobre a Lei Básica. Consultei também a versão chinesa desta lei, escrita em caracteres simplificados, pelo Professor Xiao Weiyun, que integrou a Comissão da Redacção da Lei Básica de Macau. Quando comparei a versão do Professor Xiao com a versão oficial do Governo de Macau, percebi que existe um problema na escrita (dos caracteres) da versão oficial. Nunca me tinha apercebido desta questão e aposto que na versão portuguesa não existe qualquer problema.

Na escrita chinesa cada palavra é representada por um caracter, e cada caracter tem a sua origem e o seu uso devido. Mas devido à utilização dos caracteres simplificados na China, os habitantes de Macau podem por vezes confundi-los com os tradicionais. A diferença de uma palavra (caracter) pode resultar numa mudança de sentido. Duas palavras diferentes (dois caracteres diferentes), não podem ser usadas indiferenciadamente na Lei Básica, pois pode dar azo a uma confusão grave, sobretudo se considerarmos o rigor que deve existir a este nível. Sinto que tenho de pedir desculpas à população de Macau por esta falha, porque não a detectei quando estudei a Lei pela primeira vez, numa época em que era mais jovem e muito naïve.

O problema a que me tenho vindo a referir pode ser encontrado no Artigo 95 da versão chinesa da Lei Básica. Os caracteres problemáticos são o “托” e o termo “委托”, situados na segunda frase do Artigo. De facto, a palavra correcta é “託” é não “托”. O radical da palavra chinesa (caracter) deverá ser “言” em vez de “手”. Assim, o termo correcto será “委託” e não “委托”, porque “委託” significa ser depositário de confiança ou estar autorizado, ao passo que “委托” quer dizer usar a mão para erguer alguém.

Hoje em dia, os chineses, onde me incluo, usam com frequência os caracteres simplificados, fazendo várias confusões entre caracteres semelhantes ou usando caracteres parecidos indiferenciadamente, algo que não deveria acontecer. O Professor Xiao viveu na China e para ele era normal escrever com caracteres simplificados. No livro “Discussão sobre a Lei Básica de Macau” (論澳門基本法) publicado pela Universidade de Pequim na versão simplificada, é natural aparecer o caracter “委托”. Mas já não é natural que, na versão em chinês tradicional, da “Revista de Administração Pública de Macau” publicada pela SAFP, em Janeiro de 1993, apareça o caracter “委托” grafado nos seus conteúdos. Este caracter incorrecto conseguiu abrir caminho até à versão oficial da Lei Básica de Macau. Acredito que, ao longo destes 25 anos, pessoas mais eruditas em chinês do que eu, devem ter dado pelo erro, mas não se manifestaram.

Além disso, no ensaio “A estrutura política da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau”, escrito pelo Professor Xiao, quando são referidos os “órgãos municipais” (sem poder político e estes são incumbidos pelo Governo…), mencionados no Artigo 95 da Lei Básica, o autor defende que “os órgãos municipais respondem pelo trabalho desenvolvido pelas duas câmara municipais existentes e que são outorgados/autorizados (委託) para desenvolver as tarefas designadas e dar pareceres de carácter consultivo ao Governo, mas não têm poder politico”. No seu ensaio, o Professor Xiao afirma claramente que a competência dos “órgãos municipais” assenta nas câmaras municipais existentes, mas não menciona que os membros da direcção dos “órgãos municipais” não podem ser eleitos directamente. Antigamente, os membros da direcção das câmaras municipais podiam ser eleitos directamente.

Enquanto assistia ao debate da Assembleia Legislativa na televisão, ao ouvir algumas interpretações da Lei Básica, percebi que é difícil encontrar quem realmente entenda e defenda o verdadeiro intuito desta lei. O Professor Xiao já faleceu, mas deixou-nos muitos documentos e ensaios valiosos para nos servirem de referência. É uma pena que ninguém lhes dê o devido uso.

13 Abr 2018

Liderança colectiva ou oligárquica

Pelo que consta, Xi Jinping voltou a ser eleito para o cargo de Presidente da China no 13º Congresso Nacional do Povo (CNP), tendo sido Wang Qishan designado para Vice-Presidente, Li Zhanshu para Presidente do Comité Permanente do CNP, Wang Yang para Presidente do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, e Li Keqiang terá sido reeleito como Primeiro Ministro.

A nova liderança da China, com Xi Jinping no centro do poder, está finalmente definida. Os resultados foram conhecidos antes da votação dos delegados do CNP, o que quer dizer que a votação é uma mera formalidade. A situação é semelhante à que ocorreu aquando da eleição do Chefe do Executivo de Macau.

Se prestarmos atenção à História do povo chinês, compreendemos que a sua noção de democracia e de liberdade é débil, este povo sempre se acostumou a viver sob o autoritarismo. Mesmo quando o sistema imperial foi derrubado na China, há cem anos atrás, e Yuan Shikai foi eleito como o primeiro Presidente da República, pouco tempo depois declarou-se Imperador. A ideologia de Sun Yat-sen, que incluía uma série de pensamentos políticos ocidentais, não passou de um conjunto de teorias. Combatia a ideologia imperial que tinha vigorado por muitos séculos, alicerçada no sistema feudal, e não se revia no comunismo que defendia a ditadura do proletariado.

Os “Três Princípios do Povo” e os “Cinco Poderes da Constituição” implementados por Sun Yat-sen, inspirados no pensamento político ocidental, não passaram de teorias que não conseguiram combater de forma eficaz o sistema imperial enraizado numa sociedade feudal, nem o comunismo que defendia a ditadura do proletariado. Chiang Kai-shek em Taiwan e Mao Tsé Tung na China, permaneceram no poder até ao fim das suas vidas. No fim de contas, do que é que a China precisa, de uma liderança colectiva ou de uma liderança oligárquica?

Depois de Deng Xiaoping ter passado pela Revolução Cultural, formulou um novo conjunto de regras para o jogo do poder. Embora nunca tenha assumido o título de líder supremo da Nação chinesa, tendo sido sim o arquitecto da reforma e das políticas de abertura, para não falar da influência significativa que exerceu sobre as Forças Armadas, não lhe foi difícil mudar o Secretário Geral do Comité Central do Partido Comunista. Mas para a China, é difícil compreender o significado da verdadeira democracia, da liberdade e o conceito do estado de direito.

Durante a ascensão e a queda das Dinastias na História da China, o papel desempenhado pelo povo e pelas instituições foi importante, embora sujeito à influência de condicionalismos internos e externos. No entanto, qualquer medida produz uma panóplia de efeitos e o seu sucesso depende da capacidade de se adaptar à situação existente.

Após o incidente de 4 de Junho de 1989, as reformas do sistema político estagnaram. Mas as reformas económicas geraram lucros gigantescos, enquanto o poder se transformava num ninho de corrupção.

A liderança colectiva foi gerando problemas institucionais e, gradualmente, foram-se formando grupos de interesses. Através de jogos de poder, os interesses individuais foram vingando. Em resultado dessas manobras, foram surgindo diversas questões no seio do Partido Comunista e da própria sociedade. Quando a crise se instalou, o autoritarismo oligárquico deu entrada na cena política.

A emenda constitucional revogou a restrição para a reeleição do Presidente da Nação e a indigitação de responsáveis vai contra a prática habitual, até aqui conhecida como “até aos sete fica, aos oito vai-se” (os responsáveis de topo deveriam ficar no poder até aos 67 anos e reformar-se aos 68). Tudo isto demonstra que a China precisa de um poder central forte de forma a enfrentar a incertezas que se avizinham.

A duração desta situação vai depender das mudanças sociais. Durante 13º Congresso Nacional do Povo, a única coisa que me agradou foi a manutenção da cerimónia do “juramento de lealdade”. É um acto simbólico do estado de direito. É a promessa de que o País será governado de acordo com a lei.

Existem relações circunstanciais entre as pessoas, a sociedade e o sistema e estes elementos estão na origem da liderança colectiva e da liderança oligárquica. A prevalência de qualquer uma delas está nas mãos das pessoas envolvidas.

23 Mar 2018

A sabedoria de Deng Xiaoping

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] 13.º Congresso Nacional do Povo e o Comité Nacional da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês vão reunir-se em Pequim. Um dos objectivos das sessões plenárias é a criação de uma emenda ao Artigo 79 da Constituição da República Popular da China, que anule o limite de dois mandatos consecutivos do Presidente e do Vice-Presidente.

 

Os conteúdos que vão ser agora revistos foram inseridos na Constituição em1982, sob a liderança de Deng Xiaoping, o pioneiro da Reforma e da política de abertura da China. O Presidente da República Popular da China é nominalmente o líder supremo do País. Mas, na realidade, o Presidente da Comissão Central Militar do Partido Comunista da China é quem detém o maior poder. Mao Tsé Tung deteve este cargo até à sua morte. Deng Xiaoping nunca foi Presidente da China, mas sim Presidente da Comissão Central Militar, o que explica a força da sua liderança. Pensando nesta distribuição de poder, porque é que foi introduzido em 1982 o limite de dois mandatos consecutivos para o Presidente e para o Vice-Presidente? Porque Deng Xiaoping era um homem sábio.

 

Como sabemos, depois do Partido Comunista ter fundado a República Popular da China em 1949, Mao Tsé Tung e Liu Shaoqi assumiram a presidência em sucessão, entre 49 e 68. Depois de Liu Shaoqi ter sido afastado em 1968, durante a Revolução Cultural, o lugar de Presidente foi cancelado por algum tempo. Mas o lugar de Primeiro-Ministro, pelo contrário, foi ocupado por Zhou Enlai desde 1949, até à sua morte em 1975. Deng Xiaoping e os antigos quadros do Partido que atravessaram a Revolução Cultural, sabiam que o poder corrompe e que “o poder absoluto corrompe absolutamente”. Foi por isso que Deng “reformou” a Constituição em 1982, libertando-a das ambiguidades que conduzem à corrupção.

 

Nas “Obras Escolhidas de Deng Xiaoping”, podemos ler, “Para salvaguardarmos a democracia popular, o estado de direito tem de ser fortalecido. É preciso assegurarmo-nos que a democracia se institucionaliza e se legitima, e garantir que este sistema e as leis não mudam se houver alternância de líderes, ou se os líderes mudarem os seus pontos de vista ou os seus objectivos”. Em obediência a este princípio, na emenda de 1982 à Constituição, ficou definido que o Presidente e o Vice-Presidente da China não podiam servir para lá dos dois mandatos consecutivos. Para além disso, no Artigo 87, declara-se que o Primeiro Ministro, o Vice-Primeiro Ministro e os Conselheiros de Estado têm igual limitação de mandatos. Mas, para salvaguardar a liderança do Partido Comunista, não se estabeleceu limite de mandatos para os líderes do Partido nem para o Presidente da Comissão Central Militar. Seguindo os princípios orientadores estabelecidos por Deng Xiaoping, até à presente data, todos os líderes da China respeitaram o limite de mandatos. Jiang Zemin e Hu Jintao foram ambos Presidentes por dois mandatos. E tanto Zhu Rongji como Wen Jiabao ocuparam o cargo de Primeiro-Ministro por dois mandatos consecutivos. Se estes líderes não tivessem respeitado a Constituição, Jiang Zemin ou Hu Jintao ainda poderiam ser hoje em dia Presidentes da China.

 

Para impedir a concentração de um poder permanente nas mãos de um só líder, que pudesse vir a desencadear outra catastrófica Revolução Cultural, Deng Xiaoping dedicou muito tempo a introduzir alterações cuidadosamente pensadas. Mas, apesar disso, o modelo da liderança conjunta caiu em 1989.  Hu Yaobang e Zhao Ziyang, foram os melhores concretizadores do pensamento de Deng Xiaoping. Após a morte de Hu e a demissão de Zhao, os sucessores conseguiram manter o limite de mandatos, no entanto a luta pelo poder na China nunca deixou de existir. A centralização excessiva do poder e o surgimento de sectores de pressão, os poderosos grupos plutocráticos, aumentaram em muito a corrupção. O vigoroso ataque a este flagelo desencadeado nos últimos anos por Xi Jinping e por Wang Qishan conquistou o coração do povo. Mas a edificação de um sistema eficaz é ainda mais importante, porque impede as pessoas de prevaricar a priori. O estado de direito é sempre melhor que o situacionismo.

 

Deng Xiaoping já morreu há mais de duas décadas, mas, por mais clarividente que fosse, nunca poderia ter previsto as emendas à Constituição que estão a ser preparadas. Quando o sistema não se desenvolve da melhor maneira, será inevitavelmente substituído pelo autoritarismo político.

9 Mar 2018

O ano do cão danado

[dropcap]O[/dropcap] novo ano chinês, que começou em Fevereiro, está sob a influência do signo do Cão. Sou cristão e, como tal, não me interesso minimamente por previsões astrológicas. Mas, se atentarmos nos diversos incidentes ocorridos recentemente, podemos facilmente adivinhar que este vai ser um ano turbulento.

Em primeiro lugar, o mercado bolsista sofreu uma depressão a nível global em Fevereiro, provocando uma queda no Índex Hang Seng de Hong Kong superior a 3000 pontos. Este desaire foi seguido de uma tragédia. Um acidente com um autocarro provocou 19 vítimas mortais. Em Macau, o Comissariado contra a Corrupção emitiu o relatório da investigação sobre o projecto de construção num terreno situado no Alto de Coloane, onde se refere a possibilidade de ter havido administração imprópria ou, mesmo, ilegalidade respeitante à concessão do terreno. O relatório foi entregue ao Ministério Público, enquanto o público aguarda por mais notícias relativas ao desenrolar do processo. Só uma investigação mais aprofundada poderá revelar a verdade e libertar as pessoas da suspeita de conluio entre representantes do Governo e empresários com interesses na concessão do terreno.

Acredito em Deus, creio que a verdade não teme o confronto e estou confiante que o mal nunca prevalece sobre o bem. E também acredito em relações profundas. A corrida às acções e a especulação estabeleceram preços recorde dos títulos a nível mundial. Mas os analistas de mercado não contaram às pessoas toda a verdade e limitaram-se a encorajar os pequenos investidores a apostar na bolsa, provocando-lhes enormes prejuízos. Mas voltando ao acidente em Hong Kong, é absolutamente ridículo verificar que algumas pessoas atribuem as culpas ao movimento “Occupy Central”. Se prestarmos atenção às notícias, compreendemos que esta tragédia não pode ser dissociada da exploração dos trabalhadores numa sociedade capitalista. Os motoristas são tratados com muito pouco respeito. Os requisitos para exercer a profissão não apresentam qualquer exigência. A transportadora só se preocupa com o lucro e negligencia as possíveis consequências de um serviço de má qualidade. Era só uma questão de tempo até acontecer uma fatalidade.

Quanto ao projecto de construção no Alto de Coloane, cheguei a encarregar-me da inquirição deste caso quando fui deputado na Assembleia de Legislativa. Nessa altura, os representantes do Governo indiciados alegaram que os documentos da concessão do terreno estavam escritos em português e recusaram-se a responder às minhas perguntas. Durante os últimos anos, muitas pessoas tentaram aprofundar este caso. Acredito que se acabará por provar que as dúvidas que sempre alimentei sobre este assunto tinham razão de ser.

Não há fumo sem fogo, mas o preço tem de ser pago por quem ateia o incêndio e não pelos inocentes. 2018 poderá ser o ano em que os “vilões” de Hong Kong e de Macau virão a revelar a sua verdadeira natureza. Nos últimos anos, soube-se que funcionários superiores da China continental foram castigados por corrupção. É uma consequência do alastramento deste problema nos tempos que correm. Sob a liderança do Presidente Xi, desenvolveu-se uma luta cerrada à corrupção e os resultados são promissores. Acredito que após a conclusão dos congressos do CNP e da CCPPC, que terão lugar em Março, e que serão marcados por algumas mudanças individuais, o Governo central terá mais disponibilidade para prestar atenção aos assuntos de Hong Kong e de Macau.

Enquanto melhor amigo do Homem, a principal tarefa do cão é guardar o dono e os seus bens. Um cão que abana a cauda a qualquer estranho pode ser muito simpático, mas não convém ao seu dono. Macau precisa de mais do que um cão feroz para defender os interesses do seu povo e impedir que seja roubado pelos corruptos. Quer se trate do Comissariado contra a Corrupção, a comunicação social ou o público em geral, todos têm de cumprir o seu papel e guardar Macau das investidas malignas.

No ano do cão, espero que trilhemos a senda do combate à corrupção e lutemos pela manutenção da paz.

2018 poderá ser o ano em que os “vilões” de Hong Kong e de Macau virão a revelar a sua verdadeira natureza.

23 Fev 2018

O grande desafio

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente, dois apelos a instâncias superiores da justiça, um na RAEM e o outro na RAEHK, chegaram ao fim. Em Hong Kong, o Tribunal de Última Instância aceitou o apelo de Joshua Wong, Nathan Law e Alex Chow que recorreram da sentença do Tribunal de Primeira Instância.

Os activistas tinham sido condenados a penas de prisão por terem tentado forçar a entrada na sede governamental, na sequência dos protestos associados à “revolta dos guarda-chuvas”. A sentença inicial foi revista e o Tribunal optou por pena suspensa e prestação de serviço comunitário. Os três jovens saíram em liberdade. Em Macau, o deputado Sulu Sou apresentou um recurso no Tribunal de Segunda Instância, contestando a decisão do plenário da Assembleia Legislativa de suspender as suas funções, mas o Tribunal recusou o apelo bem como o pedido de providência cautelar. Se Sou não recorrer para o Tribunal de Última Instância, a questão relativa à legitimidade dos procedimentos que levaram à suspensão do seu mandato na Assembleia Legislativa chegará ao fim. O Tribunal Judicial de Base retomará o julgamento do seu caso.

Os finais distintos dos dois apelos demonstram a independência do poder judicial em ambas as regiões. Qualquer avaliação de sentenças de um Tribunal só pode ser feita através de processos jurídicos. É a salvaguarda da independência do poder judicial à luz do enquadramento legal. Um acto político não equivale ao estado de direito e não pode violar a justiça processual. Caso contrário, o estado de direito será substituído pela anarquia. Prefiro não falar sobre estes dois apelos, mas gostava de partilhar os meus pontos de vista sobre a lei através de um filme que vi.

A TV Cabo de Macau passa muitas vezes um filme intitulado “O Grande Desafio”. É baseado numa história real protagonizada por Melvin B. Tolson, um poeta negro americano, que foi professor na década de 30. O filme conta como Melvin Tolson fundou e treinou a primeira equipa de debate do Wiley College, uma escola do Texas para negros, que viria mais tarde a vencer um desafio contra a equipa da Universidade de Harvard. É uma demonstração da difícil luta dos negros contra a discriminação racial.

Como o filme passava repetidamente, acabei por vê-lo várias vezes. Para mim, um dos momentos altos da história é a apresentação do argumento de James L. Farmer, Jr. (filho de um pastor negro) durante a última sessão do debate, na qual citou a famosa frase de Augustine Hippo, “Uma lei injusta não é uma lei”, para contrapor a afirmação da equipa de Harvard, “nada do que ataca o estado de direito pode ser legítimo”. Nesse tempo, os negros não tinham os mesmos direitos dos brancos perante a lei. James L. Farmer afirmou ainda que, perante uma lei injusta, tinha o direito e o dever de a combater de todas as formas possíveis. Não através da agressão, mas sim com acções não-violentas.

O Movimento da Não Violência continua a ser uma doutrina que surgiu com as lutas sociais dos anos 30. Há algum tempo atrás tive uma conversa com um membro pró-democrata do sector jurídico de Hong Kong. Ele defendia que a lei deve ser respeitada por todos os sectores da oposição. Se pensamos que uma lei é má, devemos lutar para corrigi-la, não para quebrá-la. Se todos transgredirem a lei porque a acham desadequada, a ordem social será destruída e só podemos esperar o pior. Estas palavras merecem-nos alguma reflexão.

Nos últimos 100 anos da História da China houve sempre ausência de legitimidade democrática, dando origem à violência institucional, que tem um impacto muito maior do que qualquer outra violência. No processo de construção de uma sociedade governada pela lei, é vital encarar a sociedade como um todo, independentemente dos sistemas e do papel desempenhado pelos representantes da autoridade. Se tivermos a coragem de falar a verdade abertamente, podemos enfrentar grandes desafios. Quem ousar viver uma vida de verdade, será sem dúvida uma pessoa realizada.

9 Fev 2018

O amigo macaense

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 19 de Janeiro recebi um telefonema de um amigo para me informar que o Carlos Manuel Coelho tinha falecido. Esta notícia encheu-me de tristeza. É sempre difícil aceitar a morte, mesmo quando sabemos que a pessoa em causa sofria de problemas de saúde há algum tempo.

Conheci o Carlos Manuel Coelho há mais de vinte anos, quando ele trabalhava na Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ), sediada num edifício da Avenida do Conselheiro Ferreira de Almeida. Nessa altura, fui à DSEJ para entregar as candidaturas dos meus alunos às actividades de Verão e foi o Carlos que recebeu os impressos. Vinte anos volvidos, voltei a encontrá-lo. Tinha ido dar uma palestra à escola onde ele trabalhava como assistente do Reitor e ele honrou-me com a entrega de uma medalha comemorativa. Há quatro anos atrás, tornei-me também assistente do Reitor, na mesma escola onde o Carlos trabalhava, e desta forma tornamo-nos colegas. Em Junho de 2016, deixei de trabalhar na referida escola e assim terminou também a nossa parceria laboral.

Carlos Manuel Coelho tinha um belíssimo nome chinês, Kou Vai Lon, que ligava muito bem com a sua imagem. Quem não o conhecesse, ficava invariavelmente com a ideia de estar perante uma pessoa arrogante. Mas após alguma convivência, esta impressão dissipava-se. No entanto, há quem diga que nem toda a gente gostava dele. Mas a partir do momento em que se tornava nosso amigo, sentíamo-nos abençoados.

Nas eleições de 2014 para a Assembleia não fui reeleito, mas, apesar disso, não pude continuar a cumprir todos os meus antigos compromissos laborais. Acabei por ter de abandonar a escola, onde tinha estado durante muitos anos, e iniciar um novo trabalho num ambiente completamente diferente. Enquanto funcionário público, que dedicou décadas da sua vida à educação, Carlos Manuel Coelho ensinou-me muito sobre como lidar com pessoas e situações, embora, devido à minha personalidade, não tenha posto tudo em prática. Contudo, ele fazia análises muito certeiras sobre tudo o que o rodeava e ajudou-me a abrir os olhos para determinadas realidades. De todo o trabalho que, durante anos, desenvolveu ao serviço do Governo, o que o enchia de maior orgulho era o Festival Juvenil Internacional de Dança, cuja organização estava a seu cargo. Mas o que mais me impressionava era a sua entrega à promoção do ensino do Português na escola onde trabalhava.

Graças à excelente educação que recebeu, Carlos Manuel Coelho tinha um completo domínio da língua portuguesa, o qual desejava partilhar com a comunidade. Para além de organizar aulas de Português na sua própria escola, também o ensinava noutros locais, o que lhe valeu um amplo reconhecimento. Levou ainda o ensino da lusitana língua aos jardins de infância, organizando jogos e encenando para os mais pequeninos acontecimentos do dia a dia. Um dos cacifos do seu escritório estava atulhado de tubos de papel higiénico e outros materiais que coleccionava para mais tarde usar como ferramentas pedagógicas. Era difícil avaliar pela sua aparência como era na verdade um pedagogo tão apaixonado.

Carlos Manuel Coelho vestia-se com bom gosto e tinha um sentido da vida muito particular. Na sua mensagem do Weibo podia ler-se, “A vida é curta, por isso aproveitem cada dia ao máximo”. Ao fim de dois anos de o conhecer, acabei por ir aprendendo, aos poucos, a apreciar a Arte e a vida. Sabia confeccionar excelentes pratos macaenses, especialmente doçaria. Tinha também profundos conhecimentos sobre mobiliário em cerejeira e porcelanas. Estava sempre pronto a ajudar e a partilhar o que sabia, mas só se nos considerasse amigos.

Por vezes, convivemos com certas pessoas durante anos e nunca passam de conhecidos. Mas, de outras, com quem nos identificamos, ficamos amigos num abrir e fechar de olhos. Com o Carlos Manuel Coelho, verificou-se o segundo caso.

Ultimamente tem acontecido de tudo em Macau. Muitas destas coisas são a paga do que as pessoas fizeram ao longo dos anos. A vida é curta na verdade e eu fui um privilegiado por ter conhecido o Carlos Manuel Coelho, que foi um grande amigo. Que o Senhor tenha a sua alma e olhe pela sua família.

 

26 Jan 2018

Deixem as balas voar

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om a abertura ao trânsito na Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau marcada para este ano, a Construção da Região Metropolitana da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau estará prestes a acontecer. De acordo com as tendências actuais, o papel político da RAEM e da RAEHK e as suas funções estratégicas serão certamente reajustados.

Após o encerramento do Congresso Nacional do Povo (CNP) e a da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), que terão lugar no próximo mês de Março, as lideranças aos mais diferentes níveis serão confirmadas. Vão ser atribuídas novas tarefas e lançar-se-á de imediato mãos à obra para a criação de um novo figurino político. O tempo passa e não espera por ninguém, tal e qual como as reformas e as políticas de abertura. Para a China, as grandes preocupações políticas concentram-se no que se passa em casa e no estrangeiro, ao passo que os acontecimentos que ocorrem em Hong Kong e em Macau são vistos como questões locais. Mas, seja como for, a China não tolerará nunca quem queira destabilizar os seus macro ou micro-territórios.

Depois do regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade tem confiado à indústria do jogo o seu florescimento económico. Quem tem poder e influências consegue gerir a economia em proveito próprio. A situação de Macau, socialmente próspera e politicamente ultra-estável, é criada pela coordenação entre grupos representantes de diversos interesses. No entanto, sob esta superfície de super-estabilidade, a administração do Governo está minada de corrupção e os preços das matérias-primas e das propriedades sobem continuamente.

A sociedade está apenas virada para o lucro e, mesmo instituições e organizações chinesas sediadas em Macau, acabaram por ser contagiadas por este modus vivendis. Mas se pensarmos bem, quando as coisas vão longe demais numa certa direcção, acabam por surgir forças contrárias que as virão combater. As mudanças acabam sempre por acontecer mais cedo ou mais tarde, é tudo uma questão de saber quais devem chegar em primeiro lugar. É voz corrente que, se o CNP e o CCPPC terminarem favoravelmente, os assuntos de Macau serão agendados para discussão, numa antecipação à mudança nos lugares-chave do Governo da RAEM, prevista após a eleição do Chefe do Executivo, em 2019.

Até 2019, Hong Kong, Macau e Taiwan passarão por eleições locais. Em Taiwan, as eleições estão marcadas para finais de 2018 e o seu resultado vai influenciar directamente o futuro do Partido do Progresso Democrático (PPD) e do Kuomintang da China (KMT) e afectará indirectamente as perspectivas de unificação pacífica com a China. Para o KMT e para o Presidente Xi Jinping são questões da mais alta importância.

Em Hong Kong, a eleição circunscrita a um círculo, para preencher quatro lugares em aberto no Conselho Legislativo, está marcada para 11 de Março de 2018. Uma outra eleição similar, para preencher mais dois lugares vagos, está marcada para o final do ano. Estas duas eleições podem ser encaradas como “uma injustiça política” deixada pelo antigo Chefe do Executivo Leung Chun-ying. É o preço a pagar pela população de Hong Kong, e também pelo Comité Permanente do PNC que usou o seu poder para interpretar a Lei Básica, donde resultaram estas eleições. “Hoje é sobre Hong Kong, amanhã será sobre Taiwan”, aposto que o Governo Central não ficará propriamente feliz se isto vier a acontecer.

Da mesma forma, “Hoje é sobre Macau, amanhã será sobre Hong Kong”. Esta é uma frase muito usada pelo campo da pan-democracia de Hong Kong nos seus comentários ao princípio “um país, dois sistemas”. Durante um certo período, o despertar das consciências do campo democrático de Macau ficou a dever-se ao trabalho empenhado dos seus membros na Assembleia Legislativa.

Mas, com a chegada do jovem Sulu Sou ao hemiciclo, aconteceu uma mudança na forma de discutir e debater os assuntos. Sulu Sou foi eleito sob o slogan “levar as reformas e o desenvolvimento sustentado à Assembleia Legislativa”. A entrada de sangue novo na Assembleia deveria ter-lhe trazido vitalidade. No entanto, algumas pessoas tomarão uma decisão política errada, ao transformarem um caso simples numa questão complicada. Esta decisão teve como consequência a suspensão do mandato de Sulu Sou. E, no pior dos cenários, Sulu Sou pode vir a ter o seu mandato cessado por decisão política da Assembleia Legislativa.

Se vier a ser o caso, a Assembleia Legislativa e a sociedade em geral sairão diminuídas. Se Sulu Sou tivesse optado por apresentar recurso da decisão e por pedir uma nova votação do seu círculo eleitoral, o processo demoraria um ano ou mais.

A 4 de Dezembro de 2017, a Assembleia Legislativa tomou uma decisão política insensata. Foi como se tivesse dado um tiro no princípio “um país, dois sistemas”. Como as balas ainda andam à solta, deixemo-las voar por mais algum tempo. Eu acredito que a população de Macau tem discernimento e também acredito na independência judicial, no princípio “um país, dois sistemas” e na erudição da cultura chinesa. Mas uma coisa em que não acredito é em elites políticas.

12 Jan 2018

Um Natal muito diferente

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]urante a época natalícia a cidade ficou apinhada de turistas, muitos dos quais chegaram de propósito para assistir ao “Festival de Luz de Macau”. Outros vieram atraídos pelo ambiente particularmente festivo que se vive em Macau nesta altura, muitos deles oriundos da China continental. Será que isto quer dizer que na China não se celebra o Natal?

Os leitores que estão mais atentos às notícias saberão certamente que existe no país uma atitude de boicote a todas as “festividades ocidentais”, especialmente depois do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, que colocou um maior enfase na ideologia. No entanto, o Natal, que é uma “festividade ocidental”, não consta da lista negra dos dirigentes.

Embora um dos valores mais importantes dos chineses sempre tenha sido a “confiança cultural”, a cultura tradicional foi severamente atingida pela “Campanha Anti-Direitista” (1957) e pela “Revolução Cultural” (1966). A campanha “Esmagar os Quatro Velhos e Cultivar os Quatro Novos” colocou Confúcio e os seus ensinamentos sob fogo cerrado. Quando o tempo de vida de uma cultura está quase a chegar ao fim, a confiança passa a ser apenas um slogan. Como as autoridades chinesas estão perfeitamente cientes da situação, desenvolvem inúmeras iniciativas para levar a pessoas a interessar-se de novo pelos valores da cultura tradicional. São disso exemplo o trabalho do Instituto Confúcio e a promoção do estudo dos clássicos da literatura. A par destas manifestações, surgiu na China nos últimos anos uma espécie de moda que leva as pessoas a interessar-se pelo Cristianismo.

O aumento de importância da “cultura cristã” na China demonstra falta de auto-confiança. Hoje em dia, a informação e as tecnologias de comunicação estão muito avançadas, as pessoas deslocam-se para estudar no estrangeiro e as viagens de negócio são muito frequentes. Como a cortina de ferro já “subiu” `há muito tempo, é contraproducente suprimir à força o que passou a ser moda. Abraçar o que é novo é um dos traços que caracteriza a cultura chinesa erudita, que permitiu à Nação absorver a novidade e a diversidade e tornar-se sistematicamente mais forte. O Budismo, uma religião estrangeira, faz desde há muito parte da vida do povo chinês. Por seu lado, as ideologias comunistas de “ocidentais”, como Marx, Engels, Lenine e Estaline, tornaram-se a estrela guia do Partido Comunista Chinês desde algumas décadas a esta parte. Aparentemente as necessidades políticas suplantam as necessidades sociais!

A menos que surja uma segunda Revolução Cultural na China, as reformas e as políticas de abertura irão sofrer sérios retrocessos. O Natal, à semelhança de outras festividades religiosas, vai tornar-se parte da cultura chinesa.

O Natal é a época de celebrar o nascimento de Jesus Cristo. Os cristãos, para além de observarem os Seus ensinamentos, são nesta época obrigados a cumprir diversos deveres sociais.

Assisti à última sessão pública de consulta da Proposta de Lei sobre o “salário mínimo” organizada pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, no dia 23 de Dezembro. No documento posto a consulta, o Governo de Macau proponha o salário mínimo de 30 patacas/hora, bastante menos que os 34.50HKD/hora de Hong Kong. Como o nível de vida de Macau é superior ao de Hong Kong, esta quantia é manifestamente insuficiente para suprir as necessidades básicas. Durante a sessão de consulta, um dos oradores, representante dos trabalhadores, defendeu que só 2.800, dos 44.200 empregados que ganham menos de 30 patacas hora, são residentes locais. Assim, não existe necessidade de fixar um salário mínimo, estes trabalhadores “não residentes” estão dispostos a aceitar valores inferiores pelo seu trabalho.

Macau importa trabalhadores não residentes desde o tempo da administração portuguesa, sob o pretexto de colmatar a deficiente oferta de serviçais domésticos. Mas é suposto importarmos “trabalhadores não residentes” ou “escravos não residentes”? Seguindo este raciocínio, a questão do salário mínimo não se aplica a trabalhadores domésticos nem a trabalhadores com deficiência. Mas os trabalhadores não residentes, de acordo com a lei de Macau, desfrutam de alguns dos direitos dos residentes. Logo, não existe qualquer motivo para não contemplar os “trabalhadores não residentes” com o salário mínimo.

No séc. XXI Macau vai estar apenas focado na eficiência dos mercados e na economia, em detrimento das questões laborais. Deve prestar-se mais atenção à defesa da dignidade do trabalho. Jesus escolheu nascer num estábulo para se identificar com os pobres. Mas hoje em dia as pessoas esqueceram esta mensagem, embriagadas pela procura do prazer imediato.

29 Dez 2017

Uma má decisão política

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] comentador de Hong Kong, Johnny Lau, afirmou que um político deve possuir três qualidades: ética, coragem e discernimento políticos. Os deputados da Assembleia Legislativa não têm necessariamente de ser especialistas em leis, existem conselheiros jurídicos na Assembleia que se ocupam dessas matérias. Quando os deputados discutem as propostas de lei e as colocam à votação, estão a lidar com questões de ordem política. Estas decisões derivam dos antecedentes pessoais de cada um, do estrato social que representa e do interesse geral, que deve sempre ser tido em consideração. Mas, acima de tudo, é uma decisão que devem tomar com discernimento, conscientes das suas repercussões em termos sociais.

Em termos históricos não existem “ses” e a História é irreversível. Quando acontecem infortúnios a única possibilidade é tentar remediá-los. Mas se as “terapias” falham, todos os envolvidos são apontados como responsáveis. Portanto, a melhor forma de lidar com o infortúnio é fazer tudo para o evitar. O resultado da votação pela suspensão do mandato do deputado Sulu Sou foi bem claro: 28 votos a favor e 4 contra. Esta decisão, quer em termos pessoais, quer em termos colectivos, é uma má decisão política.

Em qualquer lugar deste planeta, para manter a estabilidade política é necessário disponibilizar aos opositores os canais apropriados para expressarem os seus pontos de vista, e não empurrá-los para um beco sem saída. Encorajar os jovens a juntarem-se ao sistema vigente, permite-lhes expressar as suas opiniões dentro desse sistema e chegar a um consenso social por via do debate. Mesmo as pessoas comuns, se se sentirem inseridas, escusam de inventar inimigos que não existem. E já que o Conselho Legislativo de Hong Kong se tornou um campo de batalha onde se digladiam os opositores políticos, não há qualquer necessidade de a Assembleia Legislativa de Macau se vir a tornar num “barril de pólvora”.

O parecer submetido pela Comissão de Regimento e Mandatos sobre a suspensão do mandato do deputado Sulu Sou não era tendencioso e a análise dos conselheiros jurídicos da Assembleia lembrava a todos os deputados que o propósito da imunidade parlamentar é proporcionar a todos os representantes a possibilidade de cumprirem em pleno os seus mandatos. A imunidade dos deputados deve ser defendida a todo o custo, pois destina-se a evitar julgamentos de parlamentares. Quando um deputado estiver numa situação em que pode vir a ser julgado, a situação deverá ser muito bem analisada para apurar se existem provas muito consistentes que apoiem a acusação. Também é necessário analisar se essas provas substanciais entram ou não em contradição com os princípios fundamentais do direito à imunidade dos deputados. A questão é que uma suspensão do mandato transcende o deputado em causa e passa a envolver a Assembleia como um todo, especialmente no que respeita à manutenção da estabilidade e da dignidade do Parlamento.

É lamentável que os deputados que votaram a favor da suspensão do mandato de Sulu Sou não tenham tido em consideração a dignidade da Assembleia Legislativa. Esta atitude vai enfraquecer inquestionavelmente o desenvolvimento político de Macau no futuro. As lutas não terão de existir se não houver opressão. Quando a luta substitui a discussão e a comunicação, cria-se um cenário em que, ao fim e ao cabo, todos ficam a perder. Não nos esqueçamos das sábias palavras de Mohandas Karamchand Gandhi, “Olho por olho e o mundo fica todo cego”.

Antes da Assembleia Legislativa ter decidido pôr a suspensão do mandato do deputado Sulu Sou à votação, o cenário ainda parecia promissor porque qualquer pessoa sensata não iria optar por “vencer a batalha, mas perder a guerra”. Desejaria sim pôr fim à discussão o mais rapidamente possível e, após o termo do mandato de Sulu Sou, tomar as medidas que fossem necessárias, o que teria sido a decisão certa. A Assembleia Legislativa decidiu efectuar a votação a 4 de Novembro, e não nos dias 5 e 6 dedicados ao debate das Linhas de Acção Governativa da área dos Transportes e Obras Públicas. Parece-me ter sido uma resolução acertada, caso contrário Sulu Sou teria sido privado da última possibilidade de se defender.

Infelizmente, as melhores expectativas não se vieram a concretizar. Actualmente Sulu Sou está sob suspensão do mandato e terá de enfrentar um julgamento. Não se sabe se irá ser condenado ou apenas sentenciado a uma prisão de 30 dias, essa decisão competirá ao juiz. As duas partes envolvidas poderão vir a apelar da sentença, se assim o desejarem. Mas o que sabemos é que a Assembleia Legislativa perdeu um deputado e que este caso político vai alimentar o falatório da cidade. Se a situação tivesse ido mais além e, em vez da suspensão estivéssemos a falar de cancelamento do mandato e de uma re-eleição para substituição do cargo, Macau ia enfrentar o caos. Quando atiramos uma pedra a um lago criamos uma ondulação momentânea mas, não tarda, o lago volta a serenar. Mas se continuarmos a atirar pedras para o lago, acabamos por nos molhar. Macau tem talentos, mas falta-lhe pessoas com discernimento político.

 

15 Dez 2017

Suspensão ou expulsão?

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Agosto, os jornais publicaram o relatório da “Sondagem sobre o nível de interesse na eleição para a Assembleia Legislativa”, organizada pela Associação de Desenvolvimento e Pesquisa da Inteligência Criativa de Macau e pelo Instituto de Investigação Social e Cultural da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau. A sondagem foi realizada através de um questionário online. Os 456 questionários preenchidos registaram uma pontuação média de 46.2%, abaixo dos 60% considerados positivos. Um dos organizadores desta sondagem foi o Prof. Pang Chuan, um dos deputados nomeados pelo chefe do Executivo da actual Assembleia Legislativa.

A 6ª. Assembleia Legislativa assumiu oficialmente funções há menos de dois meses, durante os quais muitas sessões já tiveram lugar. Tirando a área de Transportes e Obras Públicas, que ainda não foi totalmente debatida no âmbito do Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018, as quatro áreas restantes já foram objecto de debate. O público tem estado mais ou menos a par do que se passa na Assembleia através das transmissões televisivas e dos jornais. Dos diversos temas levados a debate, destacamos aquele que se tornou assunto de conversa em toda a cidade, ou seja, a “impossibilidade de contratar um camionista, mesmo que se lhe pague 40.000 patacas”. Se o desempenho da actual Assembleia Legislativa também vier a ser avaliado, pergunto-me qual será a classificação do Prof. Pang Chuan, já que também é deputado.

Aposto que estão todos de acordo que Sulu Sou Ka Hou é o deputado da actual Assembleia Legislativa que mais se destaca do geral. Numa altura em que os mandatários nomeados pelo chefe do Executivo estavam a ser criticados pelos participantes de um fórum público, pensaram que as criticas que lhes eram dirigidas tinham partido dos “apoiantes de Sulu Sou”. Mas por que é que o deputado mais jovem se tornou o centro das atenções na Assembleia? Porque pode vir a ser o primeiro representante a ver o seu mandato suspenso, ou mesmo cancelado, pelo plenário.

No que diz respeito ao alegado envolvimento de Sulu Sou em reuniões ilegais, que terão tido lugar antes da sua candidatura a deputado, a Acusação está completamente a par da situação, mas eu também estou, já que fui mandatário da lista do “Novo Progresso de Macau” , que concorreu às eleições para a Assembleia Legislativa. As outras listas que difamaram o “Novo Progresso de Macau” durante o período eleitoral, também estão certamente bem informadas. De facto, os membros da lista do “Novo Progresso de Macau” analisaram os possíveis impactos que as acções desenvolvidas pelas forças policiais no âmbito do caso da “Doação de 100 milhões de yuans feita pela Fundação de Macau à Universidade de Jinan, em Guangzhou”, teriam, a curto prazo, no processo de Sulu Sou. Os membros da associação fizeram uma análise detalhada e uma avaliação dos riscos deste caso, e foram de opinião que as acções de Sulu Sou são absolutamente sustentáveis em termos legais.

A acusação é uma coisa e o julgamento é outra. Esta polémica não teve um efeito significativo nas eleições. Mas o que interessava era utilizar as acções de Sulu Sou como trunfo para atacar a oposição durante o processo eleitoral. No entanto, nessa altura, não existiram críticas directas aos seus comportamentos, apenas alguns rumores caluniosos e sem fundamento. E porque é que este assunto não foi trazido à baila de forma frontal? Será que não lhe deram importância? Os opositores de Sulu Sou não mencionaram este tema intencionalmente, porque, se o tivessem feito teriam também de falar do caso da doação da Fundação de Macau à Universidade de Jinan, no qual Sulu Sou monitorizou as acções do Governo da RAEM, e isso apenas abonaria a favor do jovem deputado. Por isso, os opositores na sua “esperteza”, evitaram o assunto.

Quando a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa reconheceu que Sulu Sou tinha sido eleito e submeteu este reconhecimento à aprovação do Tribunal, a equipa do “Novo Progresso de Macau” não ousou ter um segundo de descanso. Por agora, as audições e o julgamento de Sulu Sou são meros procedimentos rotineiros. A existir problemas, talvez passem antes do mais pela razoabilidade, ou falta dela, da acusação feita pela polícia. Depois disso, compete à Assembleia Legislativa decidir a forma como vai resolver a situação deste jovem deputado que desempenha o seu dever no hemiciclo sob o lema “Reformar a Assembleia Legislativa rumo ao Desenvolvimento Sustentável”.

Já que se costuma dizer que a ausência de notícias é bom sinal, eu reformulo e passo a dizer, a ausência de opiniões é bom sinal. O parecer da Comissão de Regimento de Mandatos sobre Sulu Sou não é de todo tendencioso, o que quer dizer que os membros da Comissão foram incapazes de encontrar razões válidas para apoiar o termo do seu mandato. Se um deputado poder ser suspenso ou expulso sem provas substanciais, estar-se-á a ir contra a vontade dos eleitores e a prejudicar a própria Assembleia Legislativa.

Recentemente, alguns jovens de Hong Kong saíram da prisão sob fiança após apresentação de recurso. Todos eles agradeceram a Rimsky Yuen, “Secretário da Justiça,” por ter permitido que os apoiantes da desobediência civil aprendessem uma lição valiosa e por ter ajudado a população a tomar consciência do valor do “estado de direito” em Hong Kong.

Se o mesmo se passar em Macau, pergunto-me se os interessados irão “agradecer a Wong Sio Chak, o Secretário para a Segurança”.

 

1 Dez 2017

O Chefe do Executivo e o deputado

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Chefe do Executivo Chui Sai On apresentou na Assembleia Legislativa, durante uma hora, o “Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018”, no passado dia 14 de Novembro. Segundo o relatório, tudo irá permanecer em consonância com o status quo, registando-se um aumento no orçamento da segurança social. A temática do Relatório versa, como de costume, a redução de impostos, a distribuição de dinheiro e os aumentos salariais, sem surpresas nem inovações. O Chefe do Executivo deve pretender chegar ao fim do seu mandato, que termina dentro de apenas dois anos, de forma estável e pacífica. O que o futuro nos reservar virá a ser da responsabilidade da próxima Administração.

Comparado com a segurança derivada do Relatório das Linhas de Acção Governativa, o deputado Sou Ka Hou enfrenta uma guerra aberta. Os leitores terão provavelmente conhecimento de que, na véspera da apresentação do Relatório, a Assembleia Legislativa, o Ministério Público e as Forças de Segurança de Macau emitiram os seus próprios comunicados de imprensa sobre o envolvimento de Sou Ka Hou no caso das “reuniões ilegais” e sobre a acusação que lhe foi feita de “prática do crime de desobediência qualificada”. O julgamento do deputado está marcado para breve. No seu comunicado de imprensa, a Assembleia Legislativa afirmava que, de acordo com o Estatuto dos Deputados à Assembleia Legislativa, o caso tinha sido enviado para discussão à Comissão de Regimento de Mandatos e que se aguarda o seu parecer. O Ministério Público forneceu apenas um apanhado geral dos pormenores do caso no seu comunicado. Estes dois órgãos públicos prestaram esclarecimentos sobre a situação. Mas, as Forças de Segurança de Macau emitiram uma nota explicativa contendo 27 pontos críticos, semelhante à reconstituição detalhada de um crime, de uma forma que cria nos leitores a sensação de estarem a presenciar um julgamento.

Em Macau, uma sociedade regida pela lei, antes de um suspeito ser julgado, deverá ser tratado ao abrigo do princípio da “presunção de inocência”. Este direito legal, que assiste a todos os réus, é reconhecido pela Convenção Internacional das Nações Unidas e é uma salvaguarda fundamental dos direitos humanos. Neste aspecto, Macau não é excepção. No entanto, as autoridades do Governo da RAEM parecem ter abraçado e trazido para a praça pública a causa da acusação, o que não deixa de ser estranho. O caso aconteceu há um ano atrás. A condenação de Sou por “reuniões ilegais”, só poderá ser decidida no Tribunal Judicial de Base. Mesmo depois da deliberação deste Tribunal, qualquer uma das partes pode apresentar recurso. É um assunto de competência jurídica. Já quanto à permanência de Sou Ka como deputado, a decisão caberá, após parecer da Comissão de Regimento de Mandatos, à Assembleia Legislativa, que reunirá em sessão plenária para o efeito. Esta decisão será tomada, com a presença de todos os deputados, por escrutínio secreto, mas Sou não será o único a enfrentar as consequências, os outros 33 deputados também serão afectados.

Após ter apresentado o “Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018”, o Chefe do Executivo deu uma série de entrevistas. Um dos jornalistas lembrou-o que, desde que assumiu o cargo, tem vindo a alertar a população para o potencial risco que existe na compra de propriedades imobiliárias, que registam aumentos constantes de preço. O Chefe do Executivo comentou que o mercado imobiliário se rege pela lei da oferta e da procura e que a maioria dos compradores são residentes, sendo que alguns deles adquirem uma segunda habitação. O problema de raiz está no facto de o rápido crescimento da economia de Macau apenas beneficiar um pequeno grupo, sendo a maioria afectada de forma negativa. Hoje em dia, quem detém poderosos interesses na sociedade controla a distribuição dos recursos e, de forma alguma, abre mão do seu domínio.

Confrontado com uma série de problemas sociais, o Governo da RAEM recorre basicamente ao Plano de Comparticipação Pecuniária e às pensões para minorar a insatisfação e distribui subsídios para garantir o apoio de associações e organizações. Macau é conhecido por ser “uma sociedade com muitas associações e organizações”. Muitas delas, subsidiadas pelo Governo, garantem apoio às suas políticas. Nos tempos que correm, com a entrada em alta das taxas do jogo, esta aliança com as organizações e associações, prontas a patentear o seu “patriotismo e amor a Macau” tem, até certo ponto, criado uma falsa sensação de super-estabilidade. Em resultado desta situação, a discrepância entre os ricos e os pobres, e a complementar crise escondida, têm vindo a tornar-se cada vez mais graves. Pessoas mais jovens, como é o caso de Sou Ka Hou, sem qualquer apoio das associações tradicionais, são muitas vezes apanhadas na teia quando tentam agir de forma genuína contra uma situação de injustiça. Sou Ka Hou defendeu activamente posições de oposição de forma bastante destemida, acabando diversas vezes por ser estigmatizado e rotulado de defensor da “Independência de Macau”.

A forma como a Assembleia Legislativa lidar com este caso, dará uma oportunidade à população e aos eleitores de Macau de ficarem a conhecer o seu funcionamento e a verdadeira natureza dos seus deputados. Nos próximos dois anos, tempo que falta até ao termo do seu mandato, o Chefe do Executivo Chui Sai On não deve ser sujeito a mais pressões. Mas para Sou Ka Hou, este biénio será certamente um período de teste.

17 Nov 2017

Em defesa do artigo 95 da Lei Básica

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o seguimento do 31 de Dezembro de 2001, o Governo da RAEM nada fez para implementar as disposições estipuladas pelo Anexo I da Lei Básica de Macau. Não seleccionou representantes dos membros dos órgãos municipais a integrar a Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo. Foi por esse motivo que os 2º, 3º e 4º mandatos dos Chefes do Executivo foram exercidos sob uma “lei deficitária”. E isto porque antes da extinção dos órgãos municipais provisórios, em 2001, o Governo da RAEM não fez uma gestão correcta dos tempos previstos. Tinha sido dado um período de dois anos, a contar do regresso de Macau à soberania chinesa, para organizar a criação do órgão municipal sem poder político, mas tal não aconteceu. O resultado foi a ausência de representantes dos membros dos órgãos municipais a integrar a Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo, durante os três mandatos dos Chefes do Executivo. A quota destes representantes foi preenchida por membros de Macau no Comité Nacional da Conferência Consultiva do Povo Chinês.

Ao longo dos últimos dez anos e, apesar de muitas pessoas terem lutado pela constituição do órgão municipal sem poder político, a antiga secretária para a Administração e Justiça, Florinda Chan, afirmou que este órgão “poderia ou não vir a ser criado”. Estas declarações explicam porque é que, enquanto esteve no poder, não tomou quais quer medidas neste sentido. Além disso, os sucessivos Chefes do Executivo nunca deram grande importância à criação destes órgãos e quem tem grandes interesses a defender sempre a boicotou. Até agora as coisas foram permanecendo na mesma, mas nesta altura já não são permitidas mais desculpas nem mais adiamentos. No actual documento de consulta, pode ler-se “atendendo rigorosamente às disposições consagradas na Lei Básica de Macau…. procurando-se que os mesmos sejam criados legalmente conforme o consagrado na Lei Básica de Macau em inícios de 2019 e de forma a que sejam criados os representantes dos membros dos órgãos municipais a integrar a Comissão Eleitoral do 5.º Mandato do Chefe do Executivo”.

Perante esta situação, pergunto-me se os 2º, 3º e 4º mandatos dos Chefes do Executivo foram legítimos, já que foram eleitos através da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo, com uma composição imperfeita (não obedecia escrupulosamente à Lei Básica de Macau). Se estes mandatos foram legítimos, então a Lei Básica de Macau não passa de um pedaço de papel sujeito a interpretações aleatórias. Se foram ilegítimos, de quem é a responsabilidade? Embora a população de Macau seja tolerante, quem desconsidera a lei não deve tomar essa tolerância como um dado adquirido.

Para implementar escrupulosamente o Artigo 95 da Lei Básica de Macau, é preciso respeitar o seu conteúdo legislativo durante o processo de criação do órgão municipal sem poder político. O actual documento de consulta sugere que todos os membros dos dois conselhos do órgão municipal sejam nomeados pelo Chefe do Executivo. Mas esta forma de nomeação é completamente inaceitável porque não se ajusta à realidade de Macau. Além disso, não está de acordo com o propósito legislativo da Lei Básica, na qual o órgão municipal sem poder político está estabelecido como um corpo estatutário, com a possibilidade de ser organizado pelos membros da população, de forma a existir participação na gestão de questões sociais, assuntos relacionados com a vida do dia a dia, bem-estar social e, ainda, sugestões e aconselhamento do Governo nas suas decisões.

Para se compreender melhor o que acabei de dizer, passo a citar um trecho da obra do Professor Xiao Weiyun, antigo membro da Comissão de Redacção da Lei Básica de Macau e professor de Direito na Universidade de Pequim. Segundo Xiao, a razão pela qual o Artigo 96 da Lei Básica só contém uma frase, “A competência e a constituição dos órgãos municipais são reguladas por lei”, fica a dever-se a “ter sido tido em consideração que, os diferentes sectores de Macau têm pontos de vista próprios sobre competência e sobre a constituição dos órgãos municipais”, e é por isso que a Lei Básica só estabelece princípios orientadores no Artigo 96, de forma a poder lidar com as necessidades emergentes no futuro. Foi dada flexibilidade ao Governo da RAEM no que respeita à definição de competência e à constituição dos futuros órgãos municipais”.

Mas terá o Governo tido qualquer flexibilidade na redacção do documento de consulta sobre a “Criação do órgão municipal sem poder político”? Em que altura é que os diferentes sectores de Macau declararam oficialmente que queriam desistir do direito de se tornarem membros dos conselhos dos órgãos municipais? O que se propõe actualmente é que todos os membros do Conselho de Administração Municipal” e do “Conselho Consultivo Municipal” sejam nomeados pelo Chefe do Executivo, o que constitui uma desobediência ao Governo Central e aos princípios da Lei Básica orientadores do desenvolvimento gradual da democracia na RAEHK e na RAEM. Esta proposta é um desrespeito à constituição dos órgãos municipais, já que esta contempla a inclusão de cidadãos e lhes confere o direito de opinião e aconselhamento.

Actualmente, o IACM tem três Conselhos Consultivos de Serviços Comunitários (na Zona Norte, na Zona Central e nas Ilhas), com membros nomeados pelo Governo na sua totalidade, e realiza colóquios abertos sobre assuntos comunitários a intervalos irregulares. A permanência destes conselhos está dependente das necessidades futuras. A nomeação dos membros do órgão municipal sem poder político (pertencentes ao Conselho Consultivo Municipal), com acção nos domínios da cultura, recreio e salubridade pública, deverá ser feita pela população. Desta forma estes representantes da população têm uma oportunidade para participar na “gestão de questões sociais, assuntos relacionados com a vida do dia a dia, bem-estar social e, ainda, de sugerir e aconselhar o Governo nas suas decisões”. Os respectivos sistemas de nomeação podem ser baseados no modelo já existente dos Conselhos Consultivos de Serviços Comunitários, que define três zonas, e o número dos seus membros deve ser determinado pela quantidade de habitantes de cada uma delas. Defendo ainda que um número considerável de membros do Conselho de Administração Municipal deverá pertencer ao Conselho Consultivo Municipal, para facilitar a coordenação entre os dois Conselhos.

Os membros dos conselhos do órgão municipal sem poder político, devem ser escolhidos através de eleições representativas e não apenas por nomeação do Chefe do Executivo. A implementação e a interpretação dos Artigos 95 e 96 da Lei Básica encerram propósitos legislativos que não podem ser distorcidos segundo a vontade de cada um.

3 Nov 2017

Enquadramentos e pontos de fuga

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 6ª Assembleia Legislativa iniciou os trabalhos esta segunda-feira, com a cerimónia de juramento de lealdade dos 33 deputados, que teve lugar durante a parte da manhã. A primeira reunião plenária aconteceu durante a tarde tendo-se procedido à eleição do presidente, do vice-presidente e dos 1.º e 2.º Secretários da Assembleia. A ordem de trabalhos afigurava-se simples, mas ao longo da discussão dos vários pontos percebeu-se que a questão era mais complexa. Tratava-se de um plano bem pensado para estabelecer o enquadramento político da Assembleia.

Existem 14 deputados eleitos por sufrágio directo que, se se agruparem, acabarão por vir a ter uma influência considerável no hemiciclo. No entanto, apenas três quartos actuaram em conformidade com o espírito do sufrágio universal durante a eleição do presidente da Assembleia. Os restantes agiram de acordo com o que era esperado, do que resultou uma adesão à pré-estabelecida “lista de enunciados” da Assembleia Legislativa.

Ho Iat Seng foi reeleito presidente da Assembleia Legislativa com 30 votos a favor, resultado por demais esperado. Chui Sai Cheong obteve a vice-presidência com 29 votos, revelando plenamente toda a subtileza das suas negociações com o campo Pró-Regime. No caso de Kou Hoi, a eleição para 1.º Secretário faz parte da sua carreira e do seu percurso na Assembleia Legislativa. A eleição de Chan Hong para 2.º Secretário, resulta de uma troca de favores. Como toda a sessão foi transmitida em directo pela televisão o público pôde verificar as novas disposições na Assembleia Legislativa. Para escapar a este cenário vai ser necessário muito esforço mental durante os próximos quatro anos.

Antes da votação para a presidência da Assembleia, Sou Ka Hou, o mais jovem dos deputados, solicitou a Cheung Lup Kwan, que presidia à reunião plenária, que os eventuais candidatos à presidência do plenário pudessem falar para se ficar a conhecer as suas propostas. Mas o pedido foi recusado por Cheung, que alegou falta de tempo e de precedentes. Além disso nenhum dos outros deputados apoiou o pedido de Sou. Finalmente, os 33 deputados votaram e o resultado foi o que já se esperava. O processo da eleição de Chui Sai Cheong para vice-presidente foi similar, mas teve dois pontos a salientar. Em primeiro lugar, Ho Iat Seng obteve mais um voto de apoio do que Chui Sai Cheong, demonstrando que um dos quatro deputados da chamada “Frente Liberal” aceitou as condições pré-estabelecidas com a condição de não oferecer qualquer resistência. Em segundo lugar, a eleição de Chui Sai Cheong para vice-presidente é uma forma de satisfazer o chamado equilíbrio de poderes entre representantes dos trabalhadores e representantes do patronato. Aliás esta é uma prática habitual desde o regresso de Macau à soberania chinesa. A escolha de Chan Hong para 2.º Secretário não passa de um arranjo de bastidores. Aparentemente, o vice-presidente da Assembleia Legislativa não tem grande autoridade nem responsabilidade, mas a alteração no enquadramento político significou uma mudança na distribuição de poderes.

Antes do Chefe do Executivo ter apontado os sete deputados nomeados, Lam Heong Sang, antigo vice-presidente da Assembleia Legislativa (que tinha declarado a intenção de não se candidatar à eleição por sufrágio indirecto em representação do sector do trabalho), afirmou numa entrevista que não se importaria de ser nomeado deputado pelo Chefe do Executivo. Este excerto da entrevista pode levar os leitores a pensar que o equilíbrio de poderes na Assembleia, entre o sector que representa os trabalhadores e o sector que representa o patronato, será mantido através da reeleição de Ho Iat Seng e de Lam Heong Sang. Mas na realidade o que se passa é bem diferente. Não faço ideia porque é que o sector do Trabalho foi persuadido a abster-se de participar, mas sei de ciência segura que, quando Chui Sai On resignar em 2019, o seu irmão mais velho, Chui Sai Cheong, irá manter-se como vice-presidente da Assembleia Legislativa até 2021. Se Ho Iat Seng se demitir do cargo de Presidente da Assembleia Legislativa, para se candidatar à eleição para Chefe do Executivo de Macau, talvez possa realizar o sonho de se retirar em 2021. Nesse caso é provável que Chui Sai Cheong assuma o cargo de presidente da Assembleia e continue a desempenhar um papel importante na cena política.

Para além dos membros da Mesa da Assembleia Legislativa, a disposição dos lugares dos deputados no parlamento também é mais uma manifestação do novo paradigma político. Alegadamente, a Assembleia Legislativa informou os deputados de que, pela primeira vez, os seus lugares seriam escolhidos por sorteio. Posteriormente poderiam trocar entre si. Mas esta decisão foi objectada pelos deputados reeleitos, pelo que apenas os novos deputados se sentaram em lugares “sorteados”. O procedimento do sorteio vem substituir a prática tradicional da escolha dos lugares por ordem de chegada, que nos parecia justa. A seguir ao sorteio, os deputados com afinidades políticas foram trocando de lugares de forma a ficarem juntos e os independentes ficaram onde lhes calhou. No fim de contas, a disposição dos deputados continua a ser determinada pela vontade da maioria.

A Assembleia Legislativa é o centro de poder da RAEM. Não poderá caber apenas aos novos deputados a criação “de pontos de fuga no enquadramento”, vai depender também da sociedade civil e da sua vontade de se fortalecer e de tomar as rédeas do próprio destino.

20 Out 2017

Suicídios políticos à beira rio

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]embro-me de há quatro anos atrás ter escrito um artigo durante o Festival Duanwu (Festival do Barco do Dragão). Quatro anos volvidos, a história repete-se por causa das eleições para a 6ª. Assembleia Legislativa, com data marcada para 17 de Setembro próximo.

Não tive oportunidade de aprender História com o Padre jesuíta Benjamim Videira Pires, mas dou aulas numa escola fundada por ele. Tendo sido historiador e director de um colégio, surpreendi-me quando soube que vestia roupas muito usadas. Levou uma vida modesta, marcada pela procura da Verdade, precisamente o oposto do que acontece com os políticos.

De todos os suicídios cometidos por causa da política, o mais surpreendente é sem dúvida o de Qu Yuan, que se atirou ao Rio Miluo. Qu foi governador do Estado Chu, mas perdeu os favores do Rei devido a intrigas urdidas por outros ministros. Vendo que o seu Estado estava à beira do declínio, e não conseguindo encontrar forma de o salvar, Qu optou por se suicidar o que, bem vistas as coisas, não é forma de salvar um país.

Uma outra história ocorreu dezenas de anos depois desta. Xiang Yu, que ficou do lado dos derrotados durante o Conflito Chu–Han, lançou-se ao Rio Wu. Na guerra, Xiang não tinha rival. Desenhou uma estratégia e levou a cabo um ataque muito ofensivo que o fez vencer o combate. Mas, apesar da vitória pessoal a sua facção foi derrotada e, com vergonha de enfrentar a corte imperial, decidiu matar-se em vez de aceitar o convite do barqueiro que se ofereceu para o levar para a outra margem do rio. Há quem diga que se ele tivesse atravessado o rio, talvez tivesse vencido a batalha. Na minha opinião e, baseado no que ele fez nas horas que antecederam o seu suicídio, acho que nunca teria conseguido aceitar a derrota. E, mesmo que tivesse atravessado o rio, a derrota dar-se-ia mais cedo ou mais tarde. Quando as pessoas não assumem as consequências das suas acções e decidem suicidar-se para fugir ao fracasso, serão dignas da nossa compreensão?

A última história passa-se em “Hou Kong” (Rio Hou)”, antigo nome de Macau. A vida é realmente enigmática. Um suicídio por razões políticas acontece em Macau, uma cidade sem rio.

A duração de uma vida política depende da capacidade de se saber lidar e valorizar as circunstâncias. Dois provérbios chineses, “tem a sabedoria de te retirares quando os problemas te submergem” e “retira-te quando tiveres conquistado o reconhecimento”, são adágios reconhecidos pelo valor das verdades que encerram. Eles ajudam as pessoas a lembrar-se que há um tempo para seguir em frente e lutar e um tempo para nos afastarmos. Só quando sabemos abrir mão de certas coisas é que podemos conservar o mais importante. Quando alguém se quer manter na mesma posição por demasiado tempo, sem aceitar avanços ou inovações, fica cada vez mais conservador e a sua carreira política termina mais cedo ou mais tarde. Acabará por perecer, às suas mãos ou às mãos de terceiros.

Quem gosta de História tem de conhecer o passado e antever o futuro. Macau está mergulhado em contradições devido ao seu rápido desenvolvimento económico, que se irão reflectir no processo eleitoral para a Assembleia Legislativa.

9 Jun 2017