Ode ao Traseiro 

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma fascinação contemporânea pelo rabo. Talvez sempre tenha existido, mas só recentemente me apercebi que um rabo grande está na moda. Há quem aumente os seus rabos, há quem proteja os seus rabos com um seguro contra todos os riscos (estava a pensar na Jennifer Lopez especificamente, mas há quem diga que é mito urbano)! O traseiro está no centro de todas atenções, tanto masculinas como femininas. Porque é que o traseiro é especial? Porque é que é tão desejado?

Há partes do corpo feminino que são mais obviamente sexuais, como as mamas ou a vulva. Mas o rabo informa-nos da perfeita razão entre a cintura e as ancas, um grande sinal de fertilidade e, por isso, é uma grande fonte de atracção pelo sexo masculino, dizem-nos os biólogos da evolução (porque os homens só vão para cama com mulheres de corpos potencialmente paridores, claro). Assim, as razões para o fascínio masculino são muito mais facilmente entendidas – evolução isto, evolução aquilo, quer dizer que consegue ter muitos filhos, consegue subir escadas com genica, um rabo redondinho e musculado é sinal de saúde… E não nos podemos esquecer que um rabo com o ângulo perfeito de 45 graus consegue aguentar uma garrafa de cerveja como se fosse uma prateleira (afinal de contas para que é que serve um bom rabo?). Ou que um bom tamanho de rabo é preditor de uma mulher mais empática, com melhores qualidades sociais e maior inteligência emocional. Eu podia estar a brincar, mas não estou. É desta forma que os grandes mestres da informação sexual e cibernética andam a espalhar a sua sabedoria, a objectificar o rabo o mais que podem, e torná-lo na obsessão mais tonta da cultura pop contemporânea. Esta tendência de naturalizar a objectificação feminina mascarada em teorias simplistas da evolução humana já me chateia. Chateia-me mesmo.

Nem tudo é tão dramático, claro. Um bom rabo é giro de se ver, de se tocar e de se fazer o que nos bem apetecer (com consentimento, óbvio). Tanto para homens como para mulheres! Mas alvitrar razões para as mulheres gostarem de um bom rabo, não é tão fácil para os mentores do sexo das revistas cor-de-rosa. Se os homens gostam de rabos das mulheres pela fertilidade, não faz muito sentido que o contrário também se aplique, i.e., as mulheres gostarem dos traseiros fofinhos masculinos porque garantem produção filial. Talvez um rabo mais musculado seja capaz da palpitação incessante para o coito bem sucedido, não sei. A psicologia da evolução não tem ajudado na explicação do fenómeno.

Acho que muitos estarão de acordo quando digo que o rabo é uma área de conforto, é fofo, macio, dá gosto em beijar e deixa todos os envolvidos no acto amoroso verdadeiramente felizes. O rabo é daquelas zonas do nosso corpo que é de muito difícil acesso, e por isso é que a sua fascinação é crescente, e a tentativa de tirar proveito dos rabos dos outros faz parte da nossa auto-descoberta. Os nossos traseiros, para além de simplisticamente bonitos, são misteriosos e dignos de alguma atenção amorosa e sexual. Como dizia o James Joyce nas suas cartas de amor muito traseiro-cêntricas, quão grande é o prazer de observar umas ‘nádegas frescas e roliças’.

Agora, se este nosso saudável fascínio vale a obsessão actual ao que o rabo é sujeito, ao ponto de incentivar mulheres de todo o mundo ou a pôr implantes de silicone nas bochechas, ou a usar daquelas cuecas com umas próteses almofadadas para criar a ilusão perfeita de que as calças estão bem cheiinhas… Isso é que não. Pelo menos que haja uma aceitação da diversidade de rabos que há por aí. Essas razões para a procriação não valem nada se não se gostar da pessoa, parece uma coisa demasiado óbvia de se dizer, mas vale sempre a pena reforçar. Nós não vivemos na idade da pedra. Quando quisermos assentar e constituir família, quem é que vamos escolher? A pessoa que tem os mesmos valores que nós, as mesmas ideias de como criar um filho, os mesmos planos de vida, ou escolher alguém que tem um rabo grande para garantir que se dá bem a parir um bebé?

10 Jan 2017

Liberdade. O resto não

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]egeto no princípio do erro e por isso amo a liberdade. Não me seria tragável morar onde a minha possibilidade de ler ou escrever fosse sujeita a censura. Foi assim que aprendi a ser humano e desumano. Foi assim que me tornei no monstro que hoje sou, excepção idílica de um homem, longe da definição corrente, quimera racionalizável e impotente.

Sim. A impotência de ser livre, de explanar os desejos, de fazer exactamente o que quero como se fizesse exactamente aquilo que desejo, algo de abstruso e desleal, no qual me reconheço pouco ou nada, quando penso no caos, na entropia, no mal. Habitante de refúgios, sentinela da ignomínia, eis-me exposto sem peias e de meias para parecer mais ridículo.

Ser livre, pensar hoje e amanhã. Pensar errado ou estimulado, o que vem a ser a mesma coisa. Mas pensar livre dentro das usuais algemas. Exigir o fim da verdade ou do caminho, da via sem dúvidas, das curvas sem outro mundo, esse que fica à espera, muito quieto… do outro lado. Eis o arquétipo, eis a liberdade.

Sim. Criticar os uns e aderir, por instantes, aos outros. Sim. Ser do mesmo e do inominável se assim me apetecer. E ser também desdizer tudo o que disse, porque assim me apetece e ser mais: ser bálsamo, cura e religião.

Desprezar-me-ia… tivesse eu outra certeza além da voz e nela não palpasse a minha insignificância, distância ao ser e ao devir, e por isso nela cavalgar com furor. Será amor?

Não. São interesses, são abismos ávidos, sem recuo nem paixão. Sade rex, num mundo novo, apenas profetizado, do sexo para a mão. Punheta. Japão. Futuro breve, excisão. Nada afecta a minha mão. Somos livres. Biltres exigentes e sem provas anunciadas. Somos nada. Somos mão. E simplesmente desfrutamos da liberdade inclusiva, excessiva, imponderável, sem sentido definido. E onde está o indivíduo? Onde estaciona o homem novo? Curiosamente fechado, ligado, interligado, enquadrado… havia alguma aflição… No problema: há o Japão. À medida exacta da mão que gere, que fere, que range e exangue se distrai sobre o falo rijo de antanho.

Era a liberdade. Não interessa o tamanho ou o discurso. Era a explanação de tudo o que não existe, do que foi desdito pela História e pela glória anunciado. Disseram-nos: foi pecado. Mas nós continuámos indecentes. Queríamos lá saber. Havia dentes, dentadas, noites sufragadas de esperança. E a presença das doenças, sem nos amedrontar. Não há meia liberdade. Ou tudo ou nada. Ou tudo ou a estrada. Não há vida de outro modo, a não ser na China, longínquo país de outras danças.

E eis-nos feitos crianças, sem nada de novo entender, à excepção do sofrimento, desta coisa de não ser real quando o real nos aponta assim, de dedo em riste e berbequim. A furar, a furar, a meter buchas, parafusos, e nós pregados ao muro de todas as lamentações.

Não digam não. Digam sim. Não vale a pena dizer não. O mundo é curto e terno. O universo acaba ali. As novidades são de ontem, os antigos de amanhã pertencem, sempre pertenceram, ao Inverno. São velhos e morrem todos os dias para alívio de um mundo corrente. Junta algum óleo e mete a sertã ao lume que comida, dizem, haverá. E a liberdade? Por onde se distrai a dissoluta puta, que tanto assusta clientes como passantes imbecis?

Não sei. Houve uma noite em que a persegui, sem dizer nada. Ela saíra de um clube a meio da estrada. Era fino, repenicado, cheio de laços e de frufus. Abordei-a mas não acrescentei. Fiz de rei. Era o meu peito e nada tinha para dizer. Esgotara-se na desdita, na crítica, avalanche e nevoeiro, condição primeira do homem livre.

Haja coragem! Enfrentemos a confusão! O resto, queira-se ou não, é só prisão, é só algemas. De fora ficam poemas, folga doce a ilusão. E o que prefiro? As vossas festas que tudo rompem e tudo me deixam na mão? Bate o ritmo, severo e cru, bate o ritmo, certo e inoperante, como nunca o ritmo foi. Liberdade, por favor… bem sei, conheço o ritmo… ouvi-o nos barcos, fui remador… ouvi-o nas varandas… baixinho:  — Só há liberdade a sério quando não houver o rumor rasteiro da verdade, quando a transparência me liquidar sem piedade nem unção.

Que homem  é este? Que final da História hoje nos atordoa? Não importa quão funda se apresenta a fossa… a quem recusarei a mão? Antes a merda. Antes o povo que me descoroçoa, me abate e aflige. Antes, verdadeiramente antes, o que realmente me atordoa. Tão pouco, tão fraca, tão exangue, esvaída: a liberdade tem um nome: não é querida, nem amor, nem dor, nem manifesto. Protesto e tenho razão, por hoje. Amanhã não tenho outra certeza que a de ser relativamente livre, de alucinar face ao destino. Sou menino, dizeis. Sou livre, sou livro, sou discurso ou intenção. O resto não.

9 Jan 2017

Um ano novo sem um bom começo

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara muitos um novo ano significa uma nova esperança, representa um bom progresso e implica uma coisa melhor. Passados estes primeiros dias do ano novo, não me parece que tenham tido esse significado, representando sim dias cheios de preocupações, ansiedade e angústia.

Sem qualquer aviso, o Governo decidiu anunciar, no último dia do ano, aumentos para várias taxas relacionadas com licenças, inspecções de veículos, exames de condução e remoção e depósito de veículos e motociclos, dento do universo da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT). Esta medida tornou-se o tema quente da primeira semana do ano, uma vez que só a taxa de remoção de veículos que estejam estacionados de forma ilegal varia agora entre os 400 e 1233 por cento.

A explicação do Executivo foi bastante “razoável”, ao afirmar que as taxas não foram alteradas nos últimos dez anos, estando desfasadas do mercado. Também o secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo do Rosário, disse que a medida serve apenas para recuperar os custos que o Governo perdeu nos últimos 20 anos.

Num outro artigo de opinião referi que o Governo gosta sempre de fazer políticas sem ouvir ou considerar verdadeiramente a população, voltando agora a repetir o mesmo erro. Isso contraria totalmente o principio da governação “ter por base a população”.

Todos sabem que o território está sobrecarregado com um grande número de veículos e que é necessário um controlo efectivo quanto a esse asusnto. No ano passado a DSAT tomou algumas medidas, tendo aumentado as taxas de estacionamento nos parques públicos. Depois do aumento de imposto, parece que o Governo continua a considerar que o dinheiro pode resolver os problemas, mas não me parece que esse meio económico seja o ideal para resolver a questão.

As pessoas gostam de conduzir motas porque é muito mais conveniente, podem chegar aos locais mais rapidamente e evitam ter de apanhar os autocarros públicos, onde todos andam como sardinhas em lata. Muitos têm automóvel porque têm família, têm de transportar idosos e crianças, algo que os autocarros não conseguem dar resposta. Acredito que todos aqueles que conduzem em Macau têm experiência com multas. Não encontram lugares para estacionar em lado nenhum e ainda assim recebem logo a mensagem da PSP, a avisar: acabou de ser multado.

Mesmo com o Governo a obrigar as pessoas a assumirem esses custos, não acredito que isso vá levar a uma redução do uso dos veículos, pois os transportes públicos continuam a não dar resposta para quem quer chegar ao trabalho e à escola a tempo. Andar a pé é sem dúvida uma maneira mais ecológica de deslocação, mas é difícil para quem vive longe do local de trabalho, sobretudo entre a península de Macau e a ilha da Taipa.

Não posso negar que esta medida tem um efeito dissuasor para os graves infractores ou para aqueles que desejam comprar veículos, mas o aumento excessivo não tem em consideração os residentes em geral. Muitos dizem que as multas frequentes para as infracções de trânsito são uma “recuperação da comparticipação pecuniária” por parte do Governo de Macau. Esse é um lado desconhecido do programa de atribuição de cheques do Executivo.

O aumento das taxas pode não constituir um grande problema, mas é algo que deveria ser feito passo a passo. Uma vez que é difícil resolver definitivamente o problema dos transportes públicos em Macau, os residentes vão continuar a ter o seu próprio carro, a correr riscos e a assumir encargos. Mais parece que os governantes não conhecem as amarguras dos pequenos residentes.

6 Jan 2017

Carta a quem manda

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uerido Chefe, queridos secretários,

Venho por este meio pedir-vos que façam um exercício de imaginação. Não dói, não demora mais do que uns minutos, poucos, não vos retira o estatuto que diligentemente conquistaram. Não vos obriga a sair do sofá, a levantar da cadeira, a respirar o ar puro com que a cidade nos brinda. Sendo um esforço mental, é certo, trata-se de um exercício de imaginação simples, que não vos cansará, habituados que estais a lidar com processos difíceis, questões complicadas, assuntos pesados.

Imaginem-se comuns mortais, com vidas banais e comezinhas. Imaginem-se com dois filhos, ou três, de tenra idade. Imaginem-se a vestirem-nos à pressa, a enfiarem os miúdos nas cadeiras do automóvel, a conduzirem no pára-arranca. Esta semana há mais uma obra na estrada que, na semana passada, ainda não tinha sido plantada. Imaginem-se a terem paciência, imaginem-se a imaginarem que ainda têm tempo de deixar as crianças em duas escolas diferentes.

Imaginem que não têm motorista. (Imagine, senhor Chefe, que não tem batedores, imagine que a polícia não lhe abre caminho.) Imaginem que não têm onde estacionar porque não há estacionamento. Imaginem ter de parar no primeiro buraco que encontram para tirarem o descendente mais velho do carro, mais a mochila, a lancheira e ainda o chapéu-de-chuva em dias de pluviosidade intensa. Imaginem terem de fazer tudo isto a correr porque os medalhados agentes da polícia de trânsito não perdem uma só oportunidade de multar pais prevaricadores. Imaginem-se a fazer isto tudo outra vez, dez ou 20 minutos mais tarde, conforme as novas obras que, entretanto, se tiverem inventado. Imaginem-se a irem trabalhar depois de duas discussões com dois senhores agentes, que vos tratam como se uma infracção administrativa fosse um crime de sangue. Imaginem-se a chegar ao trabalho a tempo, com duas multas no bolso que em nada ajudam às propinas das crianças.

Imaginem-se a optarem por andar a pé, o que significa andar de autocarro. Os filhos, os chapéus-de-chuva, as mochilas, os sacos do futebol e do ballet, as lancheiras e todos juntos numa viatura que, com sorte, passa a cada 20 minutos, à hora certa. Com sorte, imaginem, as portas do autocarro abrem-se porque, apesar de cheio, cabem mais três ou quatro sardinhas na lata que faz as curvas em duas rodas. Imaginem-se a pararem na central, a tirarem os miúdos do autocarro, a apanharem outro, o outro afinal ainda não chegou, já estão atrasados mas, dada a vossa capacidade de imaginação, imaginem-se a fazer tudo a tempo.

Imaginem-se a decidirem andar de táxi. Imaginem-se com uma criança ao colo e outras duas agarradas às pernas, a sujarem as calças do fato com migalhas de bolacha, enquanto tentam chamar a atenção de um motorista que, compenetrado que está na descoberta de turistas, não vos vê. Se vos visse, também não pararia para vos levar ao destino, que não vos reconheceria. Imaginem que ninguém vos conhece, que ninguém se apieda de vós.

Imaginem-se a levar um pai velhinho, ou uma mãe velhinha, em cadeira de rodas, ao hospital, lá no alto. Num exercício quase impossível, imaginem-se a tentar entrar num táxi em que o motorista vos ajude a guardar a cadeira no porta-bagagens. Imaginem-se a não conseguirem apanhar um táxi no regresso a casa, o pai, a cadeira de rodas, o saco dos medicamentos e o chapéu-de-chuva, que a água abunda nesta terra. Imaginem-se a terem de apanhar um autocarro com um pai velhinho, ou uma mãe velhinha, em cadeira de todas. Imaginem-se a serem multados porque decidiram levar o carro e lá dentro o pai velhinho, ou a mãe velhinha, em cadeira de rodas. Imaginem-se pessoas.

Imaginem agentes da polícia que violam as regras do trânsito só para vos virem multar: galgam separadores e deixam os veículos em que andam onde lhes apetece, para irem de bloco em punho dizerem que o vosso comportamento é errado, porque passou um minuto no parquímetro que não vos dá recibo. Imaginem que eles não vos conhecem, não vos reconhecem.

Imaginem-se comuns mortais, sem direito a medalhas, apesar das maratonas diárias, dos ossos cansados, da pilha de multas para pagar na secretária, da frustração, da esperança de que um dia tudo isto possa ser mais simples. Imaginem-se pessoas e percebam que há coisas que não se resolvem castigando, mas oferecendo opções.

Imaginem que têm de viver nesta terra e digam aos vossos subordinados medalhados que a Administração, antes de mais, tem de ser uma pessoa de bem.

Com os melhores cumprimentos.

6 Jan 2017

Expectativas para 2017

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s eleições para a Assembleia Legislativa terão lugar em Setembro de 2017. Com a aproximação deste acto eleitoral a população poderá vir a ser mobilizada pelo Governo para manifestações de apoio. As palavras e as acções dos políticos e, eventuais incidentes em que venham a estar implicados, passarão a estar na ordem do dia. Mas, acima de tudo, aparecerão muitos indivíduos a reclamar por justiça para o povo e a bater-se pela democracia e pelo bem-estar social, utilizando fundos do Governo para conquistar votos para si próprios.

Neste contexto, os macaenses devem encarar esta questão de forma racional não se deixando influenciar pelos interesses envolvidos. Quando andam todos atrás de proveitos pessoais, a sociedade sofre com isso e também o nosso futuro.

Há pouco tempo o Governo implementou medidas para regular a circulação automóvel, como o aumento substancial das multas a veículos que estacionam em locais não permitidos durante muito tempo. Esta medida foi muito mal recebida pelo público e houve quem chegasse a propor a organização de manifestações de protesto. Estes aumentos de multas, e taxas de parqueamento, já tinham sido propostos pelo Governo há alguns anos atrás no âmbito das políticas de transportes terrestres. Mas na altura os críticos ultrapassaram largamente os apoiantes. Na verdade, se os condutores em vez de estacionarem em locais proibidos deixarem os carros nos parques, não serão penalizados pela nova legislação. Mas como não existem locais suficientes para parqueamento legal que satisfaçam as necessidades dos cidadãos, o que irá acontecer se não se tomarem as medidas adequadas?

Têm também sido tópicos de discussão os actos de omissão e as arbitrariedades por parte de funcionários do Governo. Há pouco tempo, o marco de fronteira do Templo de Lin Kai, da área de San Kio, tornou-se outro assunto polémico. O marco, uma pedra de pequenas dimensões, estava colocado desde há muitos anos junto a uma casa antiga, adjacente ao Templo, e quem por ali passava mal dava pela sua existência. A antiga casa foi recentemente demolida e no mesmo lugar foi construído um prédio novo. O local onde o marco está colocado tornou-se subitamente o sítio de passagem para que entra e sai das lojas do andar térreo do novo edifício. Por causa disso houve quem sugerisse que o marco deveria ser deslocado para outro lugar. Felizmente, esta sugestão não vingou e o marco continua onde sempre esteve, sem ter sido obrigado a “emigrar” à força.

Talvez haja quem defenda que não é nada por aí além deslocar a pedra alguns metros para a direita. Mas se aceitarmos esta ideia, então a “Lei de Salvaguarda do Património Cultural” de Macau pode ser considerada letra morta. Se a deslocação da pedra fosse encarada como uma coisa de somenos, não haveria razão para o empreiteiro não a ter mudado de sítio quando construiu o edifício. E de facto isto não aconteceu porque o marco está protegido pela “Lei de Salvaguarda do Património Cultural”, já que é parte integrante do Templo de Lin Kai, considerado património cultural, ao abrigo da protecção estatutária, e não pode ser removido nem deslocado. Para deslocar o marco, serão necessários procedimentos estatutários governamentais ou de uma associação abalizada para o efeito. Quem cometer uma transgressão terá de enfrentar a punição estipulada por lei. Afinal de contas, em Macau ainda impera o estado de direito.

A minha expectativa para 2017 é que Macau se torne em pleno sentido uma sociedade regida pelos princípios do estado de direito, onde todos os cidadãos respeitem a lei e a acção do Governo siga o mesmo exemplo. Quanto aos candidatos a deputados para a Assembleia Legislativa, desejo que para além de virem a ser “fazedores” de leis, também as defendam e não se limitem a ser políticos cuja única preocupação seja a de conquistar votos.

6 Jan 2017

Strategic Design: a variável secreta da Inovação Empresarial

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] seguro afirmar que a inovação é um dos principais motores da economia global. Novos produtos e serviços estão a concorrer com negócios antigos – o chamado “old money” – e há muito enraizados na nossa cultura, levando a que os mais desatentos os dêem como dados adquiridos. Vejamos o exemplo da Uber e a revolta que gerou nos transportes públicos e privados tradicionais. Há muito tempo que se dava como adquirido que o transporte de passageiros da localização A para localização B era uma necessidade com todas as soluções já descobertas, intensivamente testadas e validadas. A inovação tecnológica encarregou-se rapidamente de provar que essa afirmação era tudo menos verdadeira e que estaríamos no limiar de uma revolução.

Como em todas as revoluções, são as pessoas que têm o papel principal. A revolução gira em torno de um descontentamento com determinados conceitos e valores que são unilateralmente impostos. No passado, quando o “old-money” reinava, o produto era dono e senhor – uma ditadura em termos de modelo de negócio. As marcas não queriam saber das pessoas nem do que estas consumiam. A estratégia era completamente invertida: existiam produtos limitados e as pessoas consumiam o pouco que existia no mercado, sem grandes alternativas de expressar a sua opinião ou de mostrar o seu descontentamento.

Mas será a inovação tecnológica por si só é suficiente para gerar um novo paradigma de negócio? Será que a tecnologia foi a principal variável desta equação? Transcrevendo esta mesma equação: de um lado está uma necessidade que precisa de ser colmatada, do outro lado está a inovação tecnológica. É suficiente? Retratando de uma forma mais prática: de um lado está a necessidade de transporte de passageiros, do outro está a tecnologia para tornar empresas como a Uber possíveis.

Colocando as variáveis nesta posição, estamos a descrever exactamente o modelo de negócio de tempos passados onde a simples fórmula “Problema resolvido é igual à soma da necessidade com a tecnologia.” Então o que distingue o “old-money” do “new-money”? O que faz com que, por exemplo, o maior grupo hoteleiro, com 8.000 (oito mil) quartos esteja avaliado em $7B e o Airbnb, com 0 (zero) quartos esteja avaliado em $30B?

A resposta para estas perguntas é tão simples que este artigo pode parecer irrelevante: a forma de ouvir os consumidores mudou. Existe mais uma variável na tal equação que funciona tão naturalmente que passa despercebida aos olhos de quem a consome: O Strategic Design.

Este processo oferece às empresas uma forma de olhar para o negócio como um todo e não apenas para as partes que pareçam mais frágeis. E muitas vezes essa fragilidade não está no produto ou serviço, está na experiência que estes oferecem aos seus consumidores, às pessoas. A experiência de utilização de um serviço, produto ou mesmo de uma marca é vital para o seu sucesso e, nos dias de hoje, não está apenas ligada à própria utilização mas também ao que a precede e sucede.

Como referi anteriormente, a necessidade de transportar pessoas sempre existiu. E sempre existiram formas de a satisfazer. A pergunta que impera é: as soluções que existiam no mercado ofereciam uma boa experiência de utilização a quem as procurava? O mercado mostrou rapidamente que não. E é neste “não” que as empresas têm de trabalhar.

A geração de novas ideias e conceitos é óptima para a inovação, mas esta fase é só o início do processo. As ideias precisam de ser validadas por quem vai usufruir delas: as pessoas. Os consumidores que vão comprar têm de ser ouvidos e esse feedback é crucial para as marcas e para as empresas. O sucesso do Strategic Design, aliado à tecnologia, facilmente é validado quando empresas como a Uber, Paypal, Airbnb e Netflix – entre muitas outras – o utilizam para manter viva a experiência que oferecem ao seu público-alvo.

Nesta nova Era as empresas não podem olhar para o passado em busca de orientação, o sucesso depende hoje da intersecção de novas tecnologias com as rápidas mudanças nas expectativas dos clientes. É necessário que os empresários, empreendedores e decisores, descubram quem está no mercado e oferece aconselhamento em Strategic Design, para que possam começar a desenhar experiências de utilização que cativem o cliente desde o primeiro contacto com o seu negócio.

5 Jan 2017

It’s the 2017 way, suckers!

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho andado durante estes primeiros dias do ano ocupado com coisas mais mundanas, como seja dormir, por exemplo, mas não queria deixar de abrir as hostilidades para 2017 aqui nas páginas do Hoje. Assim, e de forma a ser mais digerível do que a doçaria da quadra que amanhã termina, apresento os meus “dois tostões de prosa” na forma de itens numerados, para assim facilitar também a consulta.

  1. 1) Lamento imenso o que sucedeu a José Pereira Coutinho, que viveu na véspera de Natal aquilo que é apenas o início um drama familiar. Mais do que o impacto que possa ter na sua imagem política, o caso que envolve o nome dos filhos do deputado e presidente da ATFPM é algo que mudará muito mais do que a sua agenda profissional. Quem passa por isso sabe o que custa. Tenho a certeza que ele enfrentará com garra mais este desafio, como tem feito sempre até hoje. Uma mensagem de força e coragem para Pereira Coutinho.
  2. 2) Já no próprio dia de Natal e seguinte chegou-nos a notícia da morte de George Michael, ídolo da juventude dos anos 80 e ícone homossexual depois disso, e actualmente as duas coisas, conforme as vontades. O cantor que formava a metade mais visível dos “Wham!” escreveu em 2011 nas redes sociais que “nunca pediria desculpa pela sua orientação sexual”, e que “nem todos os homens o são [“gay”] mas…AH AH!” – assim, tal e qual. Bem, parece que o Jorge Miguel sabia de algo que eu ignoro por completo, e agradeço a atenção, apesar de nunca me ter ocorrido esta dúvida. E paz à sua alma, que até nisto era grande, o Jorge.
  3. 3) E também a propósito da onda de óbitos no meio das celebridades, o actor Charlie Sheen cometeu um desabafo, também nas redes sociais, onde se lia: “Deus, o Trump a seguir, por favor”. Caiu logo o Carmo e o Capitólio, pois razões que podeis imaginar, e por isso gostava de deixar aqui uma coisa bem clara: se me virem a suspirar qualquer coisa do tipo “Deus me livre”, não estou a rogar ao criador que elimine fisicamente alguém ou alguma coisa que me aborreça. Pelo sim e pelo não…e se fosse assim tão fácil…
  4. 4) Começando e acabando com Macau, parece que não houve fogo de artifício oficial na passagem de ano, por razões de logística (?). Mas no COTAI as munições chegaram a tempo, o que me levou achar graça a um comentário que li por aí algures: e que tal deixar o foguetório a cargo de quem entende da poda?

Feliz 2017!

5 Jan 2017

O ano da máscara

[dropcap]P[/dropcap]revisões fazem os bruxos ou, na melhor e mais enigmática das hipóteses, o Yi Jing. Da minha parte, teríeis cassandricas opções, pois que a paisagem não inspira discursos belos e ainda menos idílios. Mas tal não será caso para grandes desesperos. Aliás, a malta de hoje não é de desesperar. A coisa sagra-se mais em deixar andar o comboio e aproveitar o deslizar da carruagem, sem mesmo reparar por quais carris se rola ou se enrola ao deslizar.

É assim o mundo e podia ser pior, rezaria o Dr. Pangloss* se rezar lhe ajuntasse vantagem, nesse exacto mundo que ele percepciona e não noutro, lamentavelmente, oculto a olhares burgessos. E assim continuaremos em 2017, não muito diferente de 1917, à excepção de uma revolução cujo desfecho resultou na morte das revoluções.

Andámos muito desde então. Para a frente e também para trás. Muito se liquidou: algumas coisas bem, outras não. Há uma cegueira cíclica nesta humanidade indecisa: o extermínio de pessoas e de livros. Aos últimos, hoje, não é preciso queimá-los. Eles encarregam-se disso.

E é neste espírito, imerso e paradoxal, que vos proponho em 2017 o adensar da máscara, o aumentar da distância em relação ao outro, a construção de muros entre nós e esse México que por aí anda. E esses mexicanos que o paguem. Sejamos realmente a trampa que estamos mortinhos por ser. Provavelmente alguém nos dará razão.

Propaguemos um outro email, ainda nosso mas não totalmente, domínio do nosso ego virtual e não realmente implicado no que verdadeiramente pensamos ou sentimos. Máscara. Máscara por trás de máscara. Máscara. Máscara pintada, retocada, maquilhada; máscara exultada. Máscara gigante ou máscara anã. Máscara matrioska. Sem sobressaltos por detrás da máscara da máscara. Máscara adamascada ou em tule. Não importa: em caso algum a pele se vislumbra.

Não ousamos outro modelo, outra via, que não a via das máscaras. Impotentes ou guerreiros, vagabundos ou burgueses, sedentos ou esfomeados, 2017 exigirá a mascarada, nos melhores momentos a mascarilha. Fingiremos ser; actividade que praticamos sem remorso e quantas vezes sem presunção.

E o que fica, perguntais, quando já manso no lar ousais a máscara tirar e por debaixo outro careto vos pergunta sem cessar o que fazer do abismo que mesmo num sono sem fundo arrogante se interpõe? Nada. Talvez viver.

Viver assim… ausente, no meio do nevoeiro. Sem cão, sem estrela, sem ideias de permeio. Só tactear: ser alheio, afastado das formas, dos verdadeiros corpos, dos verdadeiros copos, das orações; nada agarrar, passar fantasma, roçagar. Viver de exílio, mestre da saudade e da cidade interdita a contemporâneas efabulações. Preferir o nevoeiro às luzes rançosas. Escolher o tenebroso, a jugular impenitente, sempre a saltar à nossa frente, a deixar-se abocanhar, plena de vida, pujante de amor, ou não fôra ela natureza e mãe e tudo.

E o sabor do nosso sangue, interdito e intermitente, que tanto se ergue em tempestades como repousa ignorante e parvo em colos de além-fronteiras, onde o sossego nos maquilha de rosa e cor-de-vinho de Bordéus, alucinada cor de mantos e desmedidas cortinas.

Estaremos menos sós. A solidão é tão impossível como o convívio. As máscaras encontrar-se-ão. Dar-se-ão bailes, cruzeiros, manifestações de massas. Espectáculos de rua, mariposas, ajuntamentos. Serão breves como os dentes. Retornaremos ao sonho porque não há mais nenhum lugar para ir. O mundo encontra-se, francamente, esgotado. Nessas horas frágeis encontraremos o ano. 2017. Como poderia ser qualquer outro: os sonhos não conhecem o tempo, apenas se alimentam de espirais. Nós, omnívoros, comemos tudo.

Um Bom Ano para os uns e para os outros.

*Personagem de Voltaire para quem vivemos sempre no melhor dos mundos e da bajulação aos poderosos havemos de usufruir alguma vantagem.

4 Jan 2017

Feliz Ano Novo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]screvi este artigo precisamente no primeiro dia do ano, é tempo de dizermos adeus a 2016 e de darmos as boas vindas a 2017.

Por esse mundo fora as pessoas celebram de maneiras diferentes a chegada do novo ano. O website “https://abcnews.go.com/US/wireStory/years-revelers-ring-2017-times-square-44495056” informa,

“Cai uma chuva de papelinhos e lança-se o fogo de artificio enquanto as câmaras de televisão cobrem a imensa multidão que em Times Square se despede de um ano estonteante, marcado por umas eleições presidenciais azedadas, e grita a plenos pulmões votos para um 2017 melhor.

Um mar de participantes abraçou-se e beijou-se, depois de descida de uma bola de cristal gigante enquanto soavam as doze badaladas da meia-noite.

“Vai começar tudo de novo. Este ano só quero encontrar a felicidade e deixar as coisas más para trás,” disse Maria Raimilla, de Richfield Park, New Jersey, logo após a meia-noite.”

Uma multidão a comemorar a chegada do novo ano em Times Square, não é propriamente uma novidade. No entanto, os votos de cada pessoa para o Ano Novo são sem dúvida únicos. O website revelava os desejos de um casal de namorados,

“Enquanto se faziam ouvir as doze badaladas da meia noite e a chuva de papelinhos se derramava sobre a multidão, Jason Magee beijou a namorada e disse, “Vamos começar do zero. ‘Bora lá!””

O beijo é uma das melhores formas de demonstrar afecto e é presença indispensável sempre que um par de namorados celebra em conjunto a chegada de um novo ano.

As expectativas de um outro casal para 2017 são um pouco diferentes.

“Lori Haan, de Tucson, Arizona, e o marido visitaram Nova Iorque pela primeira vez nesta ocasião. Lori confidenciou-nos que está ansiosa por 2017.”

Encontrar a felicidade em 2017 e deixar para trás tudo o que é negativo deverá ser o desejo de toda a gente. No entanto, como é que isso se concretiza? Há alguns dias atrás a estação televisiva de Hong Kong TVB, passou uma peça de um canal americano que mostra como é que as pessoas na prática “deixam para trás as coisas negativas”. É engraçado. Têm de escrever num papel todas as coisas más que lhes aconteceram, verificá-las, e deitar os papeis no lixo. Depois o caixote do lixo será limpo da forma habitual. As pessoas que se juntam para este ritual partilham uma sensação de alegria. Acreditam que vale a pena despender duas ou três horas do seu tempo para se verem livres das “coisas más”, e garantir que a “limpeza” foi feita antes da chegada do novo ano, e a seguir festejarem a sua vinda. O mais interessante é que algumas pessoas escreveram “Donald John Trump” nas suas listas, dando a entender que o novo Presidente não é bem-vindo. Pelos vistos querem “apagá-lo” das suas vidas.

Na China o primeiro de Janeiro não assinala propriamente o início do novo ano, porque se rege por um calendário diferente. O primeiro dia do novo ano lunar chinês chega a 28 deste mês. Daqui a quatro semanas. Por esta razão, as comemorações na China continental não foram tão efusivas. Os chineses mais velhos não celebram de todo este dia, mas os mais novos já fazem a festa. Os jovens começam por limpar as suas casas. Deitam fora todo o lixo e também qualquer coisa de que já não venham a precisar em 2017. Deitam fora não só o lixo como as coisas que já não querem. O princípio é o mesmo dos americanos que deitam fora os papeis onde escreveram as listas de coisas negativas. Têm em comum o desejo de esquecer o que foi mau e as expectativas de um 2017 melhor. Depois da limpeza, os jovens juntam-se para irem a um local onde se celebre a chegada do ano novo. Tradicionalmente na China a limpeza das casas deverá ser feita no terceiro dia do ano. Os novos hábitos da juventude demonstram a simbiose cultural entre o Oriente e o Ocidente.

Nesta época em Macau podemos assistir a celebrações de boas-vindas ao ano novo, já que esta cidade é fruto da união da cultura chinesa com a cultura portuguesa. Em Hong Kong também se celebra em grande estilo a chegada do novo ano. As pessoas juntaram-se na Praça Golden Bauhinia, para fazerem a contagem decrescente para 2017. Lança-se fogo de artificio e as celebridades actuam num mega-espectáculo. Desta forma se vê que Macau e Hong Kong são representantes de uma miscigenação cultural.

Seja qual for a nossa nacionalidade, todos desejamos deixar para trás o mau e acolher o bom em 2017. Aproveito também eu esta ocasião para desejar aos meus leitores tudo de bom para o novo ano. Esqueçamos as coisas más, demos as boas vindas a 2017 e aos novos começos.

Feliz Ano Novo para todos vós.       

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
3 Jan 2017

Assexual

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a biologia, a assexualidade é um conceito que designa uma reprodução dependente de um único interveniente, cada indivíduo é capaz de se auto-reproduzir. Mas este conceito não se estende à sexualidade humana, como devem calcular. Não há grande biologia que permita a criação de vida sem o envolvimento de um óvulo e de um espermatozóide. Por isso, não é sobre essa assexualidade que resolvi escrever. Refiro-me à assexualidade única e exclusivamente humana, que tem características distintas. Como qualquer outro conceito sexual, a discussão sobre a assexualidade e a forma como se define é complexa, mas a maioria tende a concordar que se trata de uma orientação sexual. Há quem prefira homens, mulheres ou ambos, mas há quem também prefira nenhum dos anteriores. As pessoas que sentem atracção sexual por nada nem ninguém e, por isso, não têm vontade de ter sexo,  identificam-se como assexuais. Todos os outros serão definidos como sexuais, com preferências distintas, especialmente em relação ao género com quem se querem envolver.

Assexualidade tem ganho alguma atenção social, académica e legal pela forte aposta na divulgação de uma orientação sexual que tem sido silenciada ao longo dos anos, por várias razões. Talvez passasse despercebida porque em tempos era desejável não mostrar/praticar o que o desejo sexual de cada um ditava. Mas hoje em dia, em certas sociedades hipersexualizadas, uma orientação que evita o sexo pode soar estranho. Por isso muitas questões ficam a pairar: qual será a diferença entre assexualidade ou alguma disfunção sexual? Será que a assexualidade é uma orientação sexual? Será uma escolha? De que forma assexualidade se relaciona com amor? Como sabemos quem é assexual ou não?

Entender a assexualidade de forma a não cair no erro de a julgar uma disfunção ou uma forma de celibato tem sido a temática de muitos ensaios. Celibato exige uma escolha de não querer envolver-se no acto sexual, enquanto que uma disfunção afecta o desejo e performance, mas não a atracção sexual per se. Em ambos os casos há espaço para fantasias, e são situações que podem ser provisórias – bem tratas caso seja uma disfunção, ou decididas em contrário, caso seja celibato. A assexualidade não é uma condição que possa mudar ao longo do tempo, tal como ninguém ‘deixa’ de ser heterossexual ou homossexual só porque sim. A etiologia desta orientação não é clara (tal como nenhuma orientação sexual o é), que dificulta a entender as nuances destas diferenças. A verdade é que indivíduos assexuais até podem envolver-se em relações sexuais, podem sentir amor e querer investir num relacionamento a longo prazo, e podem masturbar-se, apesar de o fazerem numa regularidade mínima. Como poderiamos esperar, existe uma grande diversidade de vivências que se encaixam no ‘guarda-chuva’ da assexualidade. Há ainda classificações como demisexual ou gray-assexual que incluem um espectro de experiências entre assexualidade e sexualidade. Demisexual são aqueles que só conseguem sentir atracção sexual por quem sentem grande intimidade, e definem-se pelo sentimento e não pela acção (por vezes não se chega a vias de facto) enquanto que gray-assexuais poderão sentir esporadicamente atracção, apesar de ser comum não o identificarem de forma clara.

As comunidades e movimentos que se comprometem a educar todos os interessados sobre o que a assexualidade é, como por exemplo The Asexual Visibility & Education Network (www.asexuality.org/), ajudaram a definir uma identidade para os que não se sentiam dentro dos padrões ditos ‘normais’ e, assim, contribuiram à necessidade de reconhecer (em  todas as áreas da nossa vida) uma forma de identificação sexual entre outras minorias sexuais. Facilmente nos deparamos com um largo espectro que não depende de uma definição estanque (e isto acontece em todas as direcções, sexual ou assexual), e que exige complexos processos identitários. Estes termos/conceitos/categorias são importantes, não porque estão a explorar  as biologias ou fisiologias da ausência de atracção, mas diferentes sexualidades que necessitam de ser entendidas. Precisamos de nos entender a nós próprios e aos outros, e isto é especialmente necessário quando as expectativas heteronormativas relacionais, sexuais e familiares tentam (estupidamente) ser prescritivas da normalidade. O normal é o que nos faz bem, é o que nos faz feliz, é o que é fiel aos nossos desejos e vivências. Assexual é normal, tal como sexual o é.

3 Jan 2017

Especial 2016 | Raimundo do Rosário é a personalidade do ano

Personalidade do ano – Raimundo do Rosário

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Secretário para os Transportes e Obras Públicas chegou, viu e…convenceu. E porquê? Porque – vejam lá bem! – é capaz de tomar decisões, algo que há muito não se via pelas bandas do seu pelouro. Ao segundo ano da sua presença no Governo, as coisas parece que querem andar, ainda que emperradas pelas areias do costume. Ele diz que não sabe, não diz que não pode e não teme atirar o prazo das obras para as calendas, quando esse é o seu triste destino. É o caso do metro ligeiro, entre outras. Raimundo do Rosário conhece bem os interesses locais, demasiado bem para ser optimista. Mas, nesta RAEM do quanto-menos-te-mexes-melhor, foi uma lufada de racionalidade, desassombro e eficácia, bem necessária depois da Era Glacial que se seguiu ao incidente Ao Man Long e ao empata-obras que o substituiu. Ninguém espera que faça milagres ou que os milagres se façam por si, mas deverá manter a mesma postura e demonstrar a mesma vontade em defender o interesse público se quiser terminar o ano em 2019 a sua passagem pelos mais altos cargos do Governo da RAEM com uma nota extremamente positiva. Depois da sua presença em Lisboa, na delegação de Macau, será o final dourado de uma distinta carreira como servidor da coisa pública.

Ralhete do ano – Li Keqiang

A presença do primeiro-ministro expôs as fraquezas do Governo local, que, além de ser manso e garantir a mansidão popular,pouco efectuou no sentido de implementar os desígnios de Pequim. De tal modo que Li Keqiang não se coibiu de, em “édito-rei”, exigir as medidas que há muito deveriam estar longe do papel e das intenções. Os governantes coraram e a oligarquia encolheu os ombros, pois pouco disto lhe interessa. Todos disseram que sim e as cabeças ficaram a abanar até o pó da carruagem de Li assentar no fim da estrada. Depois, a partilha do bolo continua. A ver vamos se o discurso criativo do primeiro-ministro cai em saco roto ou não.

Governante do ano – Lionel Leong

O Secretário para a Economia e Finanças é o homem das “missões impossíveis”: uma, diversificar a economia de Macau; duas, convencer os empresários locais a dotarem-se de uma postura contemporânea e menos ambiciosa. Outro deixaria correr o marfim, mas Lionel Leong tem-se distinguido pelo modo como está por dentro dos dossiês e parece por isso levar a sério as suas hercúleas tarefas. A cadeira no Olimpo ainda está à vista.

Revelação do ano – Wong Sio Chak

Raramente a polícia é trampolim para mais altos voos, mas o ano de 2016 revelou um Wong Sio Chak, ex-director da judiciária e agora Secretário para a Segurança, de peito firme e asas abertas, angariando apoios ao supremo cargo na RAEM. Nesse sentido, é uma revelação. A prosseguir nessa heróica senda, faz tremer os liberais pela sua postura, um tanto ou quanto militarizada, e a visão, que partilha sem pudor, de uma sociedade securitária, talvez demasiado regrada, uma espécie de Singapura retardada e fora do tempo. Treme a Macau do laissez-faire, laissez-passer, um dos traços identitários mais fortes desta terra. Temem os que preferem um mundo de “amplas liberdades democráticas”, tal qual Álvaro Cunhal nos ensinou.

Desilusões do ano

Festival de Cinema – Pariu um rato. Mais uma vez o que poderia ter sido e até parecia que ia ser, não chegou a ser nem metade. Filmes premiados com salas vazias, e, sobretudo, uma irrelevância final, muito fruto da exclusão de Marco Muller, que chegou a ser confrangedora. Macau demonstrou não ter capacidade para aquilo que anunciou. O Governo, depois da casa desfeita, ainda quis pôr um freio na bizarra situação. Conseguiu mas o cavalo não chegou a sair da estrebaria. Prometeu muito. Pariu um rato. Porque a rolha foi roída pelo rei da Rússia.

Hotel Estoril – Convidar e desconvidar Siza Vieira não lembra a ninguém. Ah..não..espera…aconteceu a Oese de Pecos, onde afinal nada parece haver de novo. A não ser os novos estudos, as novas consultas e os novos concursos.

Evento do ano – Fórum Macau

A presença de primeiros-ministros e outros figurões já seria suficiente para destacar este evento, cuja importância para a RAEM é, sobretudo, apreciada por quem o vê de fora. As medidas anunciadas por Li Keqiang foram muito bem recebidas por todos os países participantes, e, sobretudo, por quem ficou à porta a roer as unhas: São Tomé e Príncipe. De tal modo que, entretanto, a ilha já se divorciou da ilha e arranjou casório com o continente. O Fórum desempenha o seu papel…

Instituição do ano – Centro do Bom Pastor

A aprovação da lei da violência doméstica foi uma grande vitória para as organizações que por ela combateram e nenhuma esteve mais perto da linha da frente do que o Centro do Bom Pastor, dirigido pela irmã Juliana Devoy. Se esta lei foi aprovada e se hoje as pessoas gozam de protecção contra a violência como nos países civilizados, tal deve-se muito aos incessantes esforços desta instituição e da sua face mais conhecida.

Artista do ano – Ivo M. Ferreira

O filme “Cartas da Guerra”, baseado na obra epistolar de António Lobo Antunes, está a ter uma visibilidade única, se pensarmos que se trata de uma obra de um residente de Macau e que, além das críticas esfuziantes, foi pré-seleccionado para os Óscares. Ivo M. Ferreira mostra até que ponto é possível existirmos e que este céu cinzento da descrença local bem pode esperar. Ele vai ali, já volta.

Figura Internacional do ano – António Guterres

Avíssaras! O secretário-geral da ONU é português e os portugueses conhecem bem a sua capacidade para o diálogo e, de um modo geral, para a conversa, a conversinha e mesmo para a converseta. Este é, aliás, um traço comum ao puro lusitano. Pode ser que esta capacidade, aliada a um também lendário malabarismo numérico, façam de António Guterres o homem com o perfil certo para o cargo. O mundo parece pensar que sim.

Vergonha do ano – Ho Chio Meng

É muito aborrecido, para não dizer chato, saber que o antigo procurador da RAEM foi preso e acusado de 1500 e tal crimes. Não sei…é assim uma sensação desagradável pensar que o responsável máximo pela defesa dos interesses públicos andava a meter a mão em massa que não lhe pertencia nem era suposto pertencer. A sua detenção foi um golpe duro na credibilidade do sistema judiciário de Macau. E, se pensarmos que este senhor foi um dia putativo candidato ao cargo de Chefe do Executivo, colhendo apoios nas mais variadas paróquias, que isto nos sirva de lição para um futuro não muito longínquo.

Livro do ano – Delta literário de Macau

O livro do consagrado e respeitado professor Carlos Seabra Pereira, publicado pelo Instituto Politécnico de Macau, constitui um marco na crítica literária de Macau. Nele são referidos e apreciados os principais autores que escreveram ou escrevinharam por estas terras, num esforço que se reconhece praticamente exaustivo e titânico. Até hoje nada se tinha escrito assim.

Exposição do ano – Ad Lib

A craveira internacional de Konstantin Bessmertny é um dado de facto mas a sua arte, inquietação e reflexão não descansam à sombra dos louros justamente recolhidos. A exposição que apresentou no Museu de Arte de Macau é um exemplo maduro da sua capacidade artística e da imaginação critica a que nos habituou.

Filme do ano – Sisterhood

Ainda longe da exigência técnica e plástica de “Cartas da Guerra”, “Sisterhood” é um enunciado corajoso e desassombrado de Tracy Choi, luminosa crueza na sociedade morna, hipócrita e desenxabida de Macau. A realizadora mostra mão e um sentido próprio para o seu trabalho. espera-se mais.


Prémios especiais

O que mais me irá acontecer do ano – Helena de Senna Fernandes

E de repente cai-lhe no colo um festival internacional de cinema, cujo director desapareceu misteriosamente, embora para parte certa. A directora dos Serviços de Turismo teve de assumir a cabeça do animal. Salvou-a ver extensamente filmes “nos aviões” e a persistência com que repete o seu filme favorito: “Música no Coração”

O que vou fazer se me deixarem do ano – Alexis Tam

O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura lançou uma mão-cheia de projectos mas, a cada um deles, praticamente sem excepções, foi contestado pelas auto-denominadas “forças vivas da população”. E Alexis Tam, sistematicamente, recuou e fez mais consultas, que é como quem diz, lavou daí as suas mãos. A sua pele deve estar seca.

O pêndulo de Foucault do ano – Ho Iat Seng

A eterna reserva moral da RAEM, enquanto presidente da Assembleia Legislativa, revelou-se um homem com uma desmedida tendência para a harmonia e o consenso. E também para a prudência quando tal é necessário. De tal modo que é capaz de embalar e fazer adormecer um frasco de anfetaminas.

O vira disco e toca o mesmo do ano – Ng Kuok Cheong

Os acontecimentos em Hong Kong retiram cada vez mais margem de manobra aos democratas locais. E Ng Kuok Cheong é um bom exemplo disso: este ano a sua criatividade levou-o a querer discutir o sufrágio universal na Assembleia Legislativa, como tem feito todos os anos. E, como em todos os anos, levou uma nega quase geral.

O grande salto em frente do ano – Casinos

Jogo a cair, receitas a baixar, e os casinos de Macau a investir como cães danados. No Cotai, se juntarmos os trapinhos recentes de todos eles, a coisa vai parar à módica quantia de 17 mil milhões de patacas. Isto quando as renovações das licenças estão em águas de bacalhau. É o que se chama uma aposta.

O Auslander Raus! Do ano – Ella Lei e companhia

Quando toda a gente sabe que Macau parava sem mão-de-obra estrangeira, a qual precisamos como de chao min para a boca, de gente qualificada e não só, a deputada Ella Lei e companhia continuam a defender que a causa das causas é expulsar os trabalhadores alienígenas. Isto numa cidade onde o desemprego não atinge os dois por cento. De facto o ridículo não mata e a perda de tempo também não.

O centro é onde eu quiser do ano – Song Pek Kei

O Governo quer uma biblioteca central no centro da cidade. Parece lógico. Pois. Mas nem para todos nasce esse sol. A deputada Song Pek Kei entende que a biblioteca central deve ser nos novos aterros. O problema é que deixa de ser central, capisce? Não? Pois…

O a gente manda e mainada do ano – Táxis

As multas não os demovem, os fiscais não lhes metem medo. Eles são os taxistas de Macau. Fazem o que querem e ao Governo mostram…pirilau. Por essas ruas acima, navegam como querem, cobram o que lhes apetece e nada de levantar a grimpa que ainda te partem o focinho. São a prova de que este é um Estado falhado.

30 Dez 2016

Deixem-se de disparates

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]odia ser esta a minha mensagem de ano novo para os leitores do Hoje Macau, mas isto seria injusto para a grande maioria deles, os que têm a cabeça bem assente num par de ombros – pelo menos penso que são a grande maioria. Mas não, prefiro antes explicar o que quero dizer com aquela mensagem colocada em tom tão grave na forma de título: 2016 entrará para a História como “o ano de todos os disparates”. Tivemos o Brexit na Europa, umas eleições muito “sui generis” nos Estados Unidos, a lembrar os clássicos “western” americanos, de “cowboys” contra peles vermelhas, e talvez o mais grave de tudo: a ascensão da “mentira” ao estatuto de “verdade alternativa”. Daí o ano do disparate – foi fértil em disparates, e na forma como tantas vezes se deu a eles provimento.

Tudo isto tem a ver com um defeito inato dos media convencionais: dão as notícias. Não dão boas ou más notícias, nem pouco mais menos, ou conforme o gosto do freguês. Dão notícias, ponto, e uma característica que salta a vista das notícias é que “nem todas agradam a toda a gente”. Os profissionais deste media, alguns financiados por dinheiros públicos, precisam de dar as notícias, e da competência ou falta dela nesta função depende a sua credibilidade, e quase sempre o próprio emprego. Os profissionais dos media dão as notícias para garantir o seu sustento, e é-lhes indiferente que a notícia agrade ou não à maioria, e muito menos a ele próprio. É assim a realidade, crua e nua. E o que seria se os chatos dos jornalistas SÓ nos dessem notícias que nos fizessem felizes? Sei lá, que estavam a chover rebuçados de um arco-íris, por exemplo? Seria bestial, apenas se fosse possível. Este seria o cenário ideal para dar asas à fantasia e deixá-la voar, mas as notícias que as pessoas procuram e querem nelas acreditar sem procurar confirmar se são ou não credíveis são muito, mas muito menos idílicas. E é aqui que entram os “social media”. O que são, afinal?

Mentirosos encartados e com uma agenda pérfida – é isto que são os “social media”. Já está, e para os mais distraídos – que são cada vez mais, infelizmente – recordo que este é um artigo de opinião, e na minha opinião quem vive da calúnia pura e simples, na sua forma mais intriguista e venenosa devia estar preso. Os “social media” alegam que os media convencionais “escondem a verdade”, a mando “da nova ordem mundial” (?), e que anda tudo “ao serviço das grandes corporações”. Tal como os próprios “social media”, com a diferença de que as “grandes corporações” deles são outras que não as da concorrência. Basta entrar em qualquer desses depositórios de calúnia e verificar os patrocinadores que aparecem nos cantos do ecrã. É daquelas coisas que aconteceu em 2016, também: um ataque de miopia colectiva que não deixou muita gente ver o que está mesmo à frente do seu nariz.

Pode ser que alguns leitores, e arrisco que seja a maioria, esteja a notar neste artigo um tom “algo agressivo”, enquanto outros poderão estar a apreciar aquilo que tem vindo a ser designado por “desrespeito pelo politicamente CORRECTO”. Reparem como destaquei o “correcto” naquela frase: desde quando é que algo “correcto” pode estar errado e merecer esse desprezo?! Enlouqueceram de vez? O politicamente correcto é o que impede que oiçamos aquilo que não gostamos de ouvir, especialmente porque é irrelevante, atroz, e não serve nenhum outro fim que não seja o de agredir.

Apesar da natureza e condutas criminosas dos “social media”, os media convencionais não estão de todo isentos de culpa. Talvez estejam demasiado acomodados, ou mecanizados, mas o mundo que nos é dado a conhecer parece estar à beira do fim. Ficamos com a impressão de que o tempo e os recursos se estão a esgotar, e que precisamos de deitar as mãos ao que resta, e esquecemo-nos dos mais fracos e necessitados. É o mundo que temos: o mundo dos humanos. Humanos que dão uma visão do mundo cheia de defeitos próprios…dos humanos. E nem eles têm a culpa que em 2016 as celebridades tenham caído como tordos.

Feliz 2017, e vá lá, juizinho.

30 Dez 2016

A perfeição

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi um ano bom por esse mundo fora. Morreu gente que é imortal, elegeram-se pessoas tortas, fizeram-se guerras estúpidas, tão estúpidas como todas as outras guerras de que reza a história, a comprovar que nós, os comuns mortais, não aprendemos. Morreu gente sem nome a tentar chegar a uma terra nova, a fugir da miséria, a fugir de onde nunca quis sair, com as raízes ainda agarradas ao corpo. Houve gente morta por quem mata só porque sim, numa outra guerra estúpida que nos diz, todos os dias, que os homens não sabem nada uns dos outros.

Nós, por cá, tudo bem. Não há mal grave que dure por aqui. Os nossos dilemas, colocados em perspectiva, são coisas pequenas, leves, a roçar a insignificância. Os nossos males não têm armas nem sangue, não nos invadem a casa, não nos deixam com o coração nas mãos, com medo de fecharmos os olhos e de nunca mais os podermos abrir.

Mas com as dores dos outros podemos nós bem. Por mais que, num exercício quase religioso, façamos a relativização da nossa dor perante o sofrimento alheio, é-nos impossível fugir ao dramatismo das pequenezas do quotidiano. Porque é o nosso quotidiano e é nele que respiramos. E porque é dos homens quererem sempre mais. Ainda bem.

Sucede que, por estes lados do mundo, a medida da perfeição está ali ao virar da esquina, como se fosse facilmente atingível. A malta contenta-se com pouco na cidade onde tudo, ou quase tudo, podia ser infinitamente melhor. Resmunga-se, mas baixinho, não vá o vizinho ouvir e perceber exactamente o que acabou de ser resmungado. Critica-se, mas sempre com um elogio no princípio e no fim, como se de uma moldura se tratasse, para que as bordas do reparo não provoquem rasgos nas sensíveis almas criticadas.

Por estes lados do mundo, nunca sou eu que penso – são eles, a população, o povo. O povo é que não gosta, a população é que diz que é melhor ter cuidado, eles é que estão descontentes com o rumo da situação. Nunca sou eu que penso porque não tenho coragem de pensar. E também nunca somos nós, que a colectividade caiu em desuso.

Com as dores dos outros podemos nós bem e até com as dores daqueles que nos deviam ser próximos, mas não são. Por aqui, encobrimos histórias feias, não lavamos roupa nos jornais, os cafés às vezes servem de lavandaria mas rapidamente se esconde a roupa, mais o detergente, quando a palavra dita ousa ser perigosa para o estado feliz em que nos encontramos, nós, gente sem guerras nem sangue, nem ideias e muito menos opiniões.

Passou mais um ano que foi mau, mas nós por cá tudo bem. Enquanto o emprego for certo e houver bacalhau no Natal, nós por cá tudo bem. Engolimos tudo com um tinto e preparamo-nos para a contagem decrescente, conta-se baixinho e grita-se baixinho, dançar é que não que ainda pensam que sou louca, olhem que bem comportados que somos todos nós, tão assim, tão de bem com tudo. Com as dores dos outros podemos nós bem.

30 Dez 2016

Assinalar o regresso de Macau à soberania chinesa

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste ano, em que se celebra o 17º aniversário do regresso de Macau à soberania chinesa, a Associação de Novo Macau não organizou nenhuma manifestação para se manter a par da nova realidade social. Em vez disso, apostou no incentivo à consciência cívica, exortando os jovens residentes que atingiram a idade de 18 anos a recensear-se, já que as próximas eleições para a Assembleia Legislativa estão à porta. Só através do voto podem os macaenses escolher as pessoas certas para deputados e ajudar a diminuir os efeitos negativos da corrupção eleitoral.

O Governo da RAEM não cancelou o mega-espectáculo realizado no Estádio de Macau, e a Associação de Novo Macau não se opôs. Os macaenses puderam desfrutar da actuação de artistas famosos de Hong Kong pela módica quantia de 50 patacas. As pessoas pareciam estar felizes, embora a verdadeira felicidade seja ainda uma miragem.

Em Macau os preços do sector imobiliário e dos alugueres de casas não desceram, apesar dos ajustes económicos na China. Os macaenses parecem ter-se habituado à inflação e aos transportes públicos sobrelotados. Por seu lado o Governo continua a valorizar a diversidade do desenvolvimento no discurso, mas não nas acções. Com lojas por alugar na Rua de São Paulo e com a desvalorização contínua do Yuan, os macaenses parecem ficar à margem do “tal desenvolvimento”. A forma como as pessoas se sentem inconscientemente felizes não é decididamente bom sinal.

Durante a cerimónia do hastear da bandeira e no banquete celebrativo oficial, que assinalaram o Dia do Regresso de Macau à Soberania Chinesa, o hino nacional chinês fez-se ouvir. No hino existe um verso que diz, “quando a Nação chinesa atinge os momentos de maior perigo”.  Por enquanto em Macau as pessoas ainda não chegaram aos momentos de maior perigo. Mas se continuarem indiferentes, depois não será tarde demais?

Na verdade, o dia de Macau deveria ser assinalado em retrospectiva e reflexão. No último fim de semana fui a Hong Kong devido a alguns compromissos. Um deles era uma conferência académica promovida pela Universidade de Pedagogia de Hong Kong e subordinada ao tema “A Juventude das RAEs de Hong Kong e Macau: Identidade, Educação para a Cidadania e Participação Cívica – Conferência de 2016”. Estiveram presentes muitos académicos de Hong Kong, da China continental, de Macau e Taiwan, nos quais se incluía o Professor Byron Weng, jurista de grande reputação. A conferência versava o sentimento de identificação da juventude de Hong Kong e de Taiwan com a China continental. Concluiu-se que estes jovens se sentem cada vez mais afastados da China, apesar de toda uma série de reformas políticas. Para ultrapassar este problema, deve ter-se em consideração os aspectos culturais da China, mais do que propriamente os aspectos políticos. Os académicos chineses consideraram unanimemente que o conceito de “Um País, Dois Sistemas”, requer modificações de forma a ajustar-se às novas realidades sociais. No entanto, os académicos vindos de Macau insistiram na preservação do conceito original, ou seja, “Hong Kong governado pelos seus habitantes, Macau governado pelos seus habitantes e desfrutando de um elevado grau de autonomia”.  Após aturadas discussões, a visão idealista dos macaenses conquistou a aprovação da maioria dos participantes. No domingo compareci no seminário “Pensar a Missão dos Cristãos e a Problemática de uma Sociedade em Ruptura”. O Professor Associado Chan Ka Lok, da Universidade Baptista de Hong Kong, ex-membro do Conselho Legislativo da cidade, foi um dos oradores. O Professor Ka Lok fez uma intervenção sobre “a reconstrução da sociedade civil”, advogando que esta deve partir das comunidades.

A visita de dois dias a Hong Kong valeu o esforço, mas deixou-me exausto. Macau necessita de promover a educação cívica e de criar uma sociedade civil sólida. Discursos vazios de sentido são prejudiciais para os países e também para Macau.

30 Dez 2016

Turismo de Natal

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que dou o meu humilde contributo a esta grande empresa que é o Hoje Macau (afinal é época de “dar”), este ano deve ser a minha vez de desejar as Boas Festas aos leitores, uma vez que nenhum dos feriados da quadra natalícia caiu a uma quinta-feira. Mas é com muito gosto que o faço, naturalmente, e aqui: Bom Natal e até ao meu regresso. Sim, tal como qualquer outra pessoa que não tem uma boa razão para ficar em Macau pelo Natal e tem quatro dias de férias, vou aproveitar e dar uma volta aqui por perto, onde pelo menos dê para sentir algum do ambiente natalício. O ano passado foi Xangai, este ano é Taipé.

Mas em primeiro lugar gostaria de saudar a comunidade macaense e os restantes cristãos naturais de Macau, pois parece invasivo estar a inclui-los neste rol de lamentações. Estes são os hóspedes do Natal de Macau, na terra deles, e os restantes são convidados. Quem não gosta não é obrigado a comer, e se não quiser ficar à míngua, se calhar o melhor é fazer-se à vida. Dito isto, desejo uma santa consoada aos cristãos de Macau que vão tomar com as suas famílias a ceia de Natal. E agora os outros.

Quem é natural de Portugal e tem aí uma boa parte da família, é natural que faça um esforço suplementar em termos financeiros e de gestão das férias para passar o Natal junto de quem tem saudades, e vice-versa, claro. A estes, que aproveito igualmente para saudar, a época consagrada ao dia 10 de Dezembro e seguintes é chamada de “fuga de Macau” – longe que te quero, lá vou eu, beijinhos a quem fica. Quem acha que as “saudades” são uma coisa que precisa de maturação, ou simplesmente não se pode dar ao luxo de ir “marcar o ponto” a Portugal todos os natais, vai ano sim/ano não, e quando é “não” vai para a Tailândia com o agregado familiar, ou no ausência deste, com amigos e amigas na mesma condição. Acho óptimo, não façam daqui segundas leituras. É uma das muitas vantagens de estar aqui a viver, e não em Portugal. Que bom para nós.

Na eventualidade de nem sim nem sopas, não há disponibilidade, férias ou vontade de sair de Macau, não deve o expatriado comum entrar em depressão. O que é isso, se em Macau os locais aderem ao Natal, ou mais ou menos isso. Primeiro, o dia 25 é feriado para toda a gente, o que por si já é mais que suficiente para não ignorar a noite da consoada. Talvez para quem comemora o Natal na sua vertente cristã e junto da família isto pareça demasiado “insonso”, mas no fundo isto não difere muito do que sentimos em relação ao Ano Novo Chinês, onde por vezes damos connosco a pensar: “What’s the point?”. Ficar em Macau no Natal não é “a mesma coisa” que sair, mas também não representa o fundo do barril da solidão, p’lamordedeus.

O que faz falta em Macau (olha, parece o nome daquela ex-rubrica de um título da concorrência) era…sei lá, mais luzes de Natal, como aqui ao lado em Hong Kong? E que tal uma árvore de Natal no centro da maior praça que não fosse um sólido geométrico feito de papelão, por exemplo; as árvores tinham folhas, da última vez que vi uma. Para evitar esta onda de turismo daqui para fora NO Natal, era preciso que Macau investisse no turismo DE Natal. Como? Talvez com outra coisa que não fosse casinos, e casinos, e mais casinos.

Feliz Natal.

29 Dez 2016

Rumo ao Estado de Direito Socialista

“Since China’s reform and opening began in 1978, the country has come a long way on the path of Socialism with Chinese Characteristics, under the leadership of the Communist Party of China. Over 30 years of reform efforts and sustained spectacular economic growth have turned China into the world’s second largest economy, and wrought many profound changes in the Chinese society.”
“The Road to the Rule of Law in Modern China” – Quanxi Gao, Wei Zhang, Feilong Tian

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uanto mais importante se torna a China, mais difícil se converte o entendimento da sua realidade. O mundo ocidental na diversidade dos países que o compõem tem a sua visão peculiar, própria e especial da China, devido ao crescente aumento de empresários, estudantes e turistas que viajam para o país, que acrescido do conhecimento de especialistas na matéria cria maior confusão na aprendizagem da realidade chinesa.

A Noruega pode parecer uma inesperada fonte de conhecimento sobre a China pelos estudos que tem produzido, mas tal visão expressaria um mito sobre a Noruega, de ser um lugar remoto e voltado para dentro, quando na realidade se trata de um país geograficamente grande, mas demograficamente pequeno e altamente próspero, fortemente dependente das exportações de petróleo para o resto do mundo, e que tem uma grande participação na estabilidade global. É um aliado americano forte na OTAN e mantém um sofisticado mecanismo de defesa. Tem uma cultura cosmopolita e integra refugiados de todo o mundo como seus cidadãos.

A Noruega tem um forte interesse em tendências em todo o mundo, inclusive na China, e o seu Comité do Prémio Nobel da Paz, que não faz parte do governo, concedeu dois prémios Nobel da Paz a pessoas nascidas na China. Assim, não é de estranhar que a política externa da Noruega e o estabelecimento da segurança mantenha um olhar atento sobre os assuntos globais. Para um país pequeno, a política de segurança é menor sobre o equipamento, e maior sobre a compreensão das línguas, culturas e história de outros países, a fim de aprender o que estimula as suas políticas e como podem ser acomodadas ou resistir.

A China, conjuntamente com o mundo árabe, foi frequentemente como o clássico “outro” para um Ocidente sempre em mudança, que esforça por definir e redefinir-se a si mesmo. Vindo do ambicioso mas inseguro poder comercial e militar de Veneza do século XIII, Marco Polo retratou a China como infinitamente rica e poderosa. O pensador do Iluminismo François-Marie Arouet Voltaire, enquanto argumentava contra o obscurantismo religioso, defendia que a China era o lar da racionalidade secular.

A China para Adam Smith, durante a primeira revolução industrial, foi um exemplo de advertência de estagnação económica e Friedrich Hegel, escreveu na era napoleónica, a inverdade de que a China exemplificava um país sem heróis, revolução ou progresso, relegado para um estatuto fora da história. Ao longo dos anos, o Ocidente foi vendo a China como pobre ou rica, supersticiosa ou racional, bárbara ou civilizada, passiva ou guerreira. O Ocidente, com efeito, definiu a sua própria identidade, criando uma imagem da China como o seu oposto imaginário. Actualmente, encontramo-nos em um período, que não é o primeiro, do suposto declínio ocidental. O Ocidente sente-se desunido, indeciso, ineficiente e fraco. As representações de uma China em ascensão como unida, decisiva, eficiente e forte dão significado concreto a essas características, sendo quase negativo que a China esteja realmente a estender-se e em ascensão.

O seu produto interno bruto (PIB) aumentou dois dígitos durante três décadas, e o seu orçamento militar cresceu consequentemente, afirmando os seus interesses nacionais principais com vigor crescente. A questão fundamental é de saber, se a ascensão da China é realmente equivalente ao declínio do Ocidente, ou se trata do seu acompanhamento natural ou é mesmo a sua causa. Quando vemos a China como uma ameaça, estamos a vê-la como realmente é?

A chamada ameaça da China é uma mudança de forma, para usar uma frase de Karl Marx, um espectro que assombra o mundo pós-Guerra Fria da dominação americana, sendo difícil identificar o que os teóricos da ameaça chinesa realmente temem. Pode-se resumir o discurso, indicando três tipos de preocupações, que actuam por vezes em conjunto. O primeiro tipo é económico, pois a China tornar-se-á a maior economia do mundo, indo absorver toda a tecnologia ocidental e inundar o Ocidente com os seus produtos; a sua moeda será a reserva do mundo; estabelecerá padrões para produtos de tecnologia e de consumo e forçará o mundo a adoptar a maneira chinesa de fazer negócios.

O segundo tipo é militar, pois o crescimento económico da China fará que tenha cada vez mais poder militar para continuar as suas existentes reivindicações territoriais e expandir a sua influência regional, além de estender os seus interesses estratégicos no exterior, como trabalhadores, campos petrolíferos, investimentos, entre outros, e irá sentir-se contrafeita de projectar o poder militar para proteger esses interesses. É de prever que irá dominar primeiro a sua região e depois quiçá o mundo.

O terceiro tipo é normativo, pois o sucesso do modelo chinês porá fim ao domínio do “soft power” da democracia e dos direitos humanos. A China reescreverá as normas internacionais existentes sobre o livre comércio, direitos humanos, intervenção humanitária, assistência ao desenvolvimento e usará a sua influência financeira para influir não só a mídia nacional, mas também estrangeira, o pensamento académico e a cultura pública. Existem duas formas de avaliar tais receios, sendo o primeiro, através da possibilidade de projectar as tendências existentes no futuro, o que poderíamos chamar de previsão na trajectória. Este tipo de previsão é correcto na maior parte das vezes, porque a maioria das tendências geralmente continuam a desenvolver-se na mesma direcção. Mas tal previsão tem eventualmente a garantia de errar, porque cedo ou tarde a história nos surpreende.

A segunda abordagem é a de pensar sobre todas as formas improváveis em que as situações poderiam sair da trajectória, e tentar identificar os cenários mais inverosímeis. Este tipo de previsão é errado na maioria das vezes, mas cedo ou tarde tem uma boa percentagem de ser correcto, porque, a longo prazo, a única situação certa é a ocorrência de algo inesperado. Se pensarmos sobre a improvável ameaça da China, devemos, em primeiro lugar, incorporar os factos e tendências de que o regime chinês está sob controlo estável, apesar de muitos e diversos desafios às suas regras. Excluindo a possibilidade de desordem política, a economia continuará a crescer, ainda que tenha começado a desacelerar, como aconteceu com todas as economias de rápido crescimento, e é de esperar que a taxa de crescimento continue a abrandar.

O governo chinês enfrentará uma agenda complexa de segurança interna e externa, em um futuro distante, e deve gerir os desafios internos decorrentes de mudanças sociais rápidas, cepticismo ideológico e insatisfação entre grupos étnicos e religiosos, lutando com as queixas da população rural, cujas terras estão a ser confiscadas ou poluídas, e com os residentes dos centros urbanos que se opõem à actividade de fábricas poluentes e produtos de consumo inseguros.

É de esperar que Taiwan continue a resistir à integração na República Popular da China. Os principais vizinhos da China, como o Japão, Índia e Rússia, e os seus fortes vizinhos, como a Coreia do Sul, Vietname e Indonésia, continuarão a resistir à influência chinesa. Os Estados Unidos não sairão da Ásia. A prosperidade da China continuará a depender da sua interdependência com a economia global, como fonte de matérias-primas e energia, e como um mercado para as suas indústrias.

A China continuará a apostar fortemente na paz e nas estabilidades regionais e globais, para que a sua economia não seja perturbada, sendo improvável que, no futuro previsível, procure ou seja capaz de expulsar os Estados Unidos da Ásia ou de destruir o sistema global. Isso não significa que a ascensão da China não apresente nenhum desafio ao “status quo”. É possível a existência de um atrito contínuo entre a China e muitos dos seus vizinhos, dado tentar melhorar a sua posição em litígios territoriais.

A China continuará a desafiar o argumento dos Estados Unidos, de que pode conduzir legalmente exercícios navais e operações de inteligência até doze milhas náuticas ao largo da costa chinesa, e continuará a pressionar Taiwan para a reunificação, ao abrigo do princípio da existência de uma só China, que o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, parece querer contrariar. Assim, é de esperar atrito entre a China de um lado e os Estados Unidos, e os seus aliados regionais do outro. Tais fricções carregam o risco da escalada, sendo improvável de conduzir a conflitos armados. É um exagero confundir esse risco de conflito local, com o risco de a China tomar conta do mundo.

E quanto à mudança fora da trajectória? Quanto maior for o período de tempo, mais provável é a ocorrência de algo dramaticamente diferente, basta pensar na queda da União Soviética ou da Primavera Árabe. Naturalmente, esse tipo inesperado de mudança é intrinsecamente imprevisível, mas devemos ser capazes de identificar alguns tipos de mudanças históricas radicais, com menor improbabilidade, que outras de acontecer. Por exemplo, observando a situação interna da China, podemos identificar vulnerabilidades essenciais no modelo económico, sendo a primeira a que inclui o pesado tributo que a degradação ambiental produz no solo, água, ar e saúde pública, tornando o actual modelo de crescimento insustentável, se não for invertida a actual tendência rapidamente.

A segunda vulnerabilidade económica é a estrutura demográfica de uma população em envelhecimento, e a terceira é o estímulo do crescimento rápido pelo pesado, e muitas vezes improdutivo, investimento estatal em infra-estrutura e imobiliário, através de empréstimos de bancos estatais. Tendo em consideração esses factores, é possível descartar um ressurgimento do crescimento de dois dígitos e a regra na possibilidade, embora não inevitável, de um declínio dramático do crescimento ou da possibilidade da ocorrência de uma crise económica.

O sistema político chinês não é tão vulnerável como se possa pensar, não sofrendo do complexo da falsa estabilidade a longo prazo, como acontece, nas mal realizadas democracias, como por exemplo, as do Japão, França e Estados Unidos, entre muitos outros países. Os líderes chineses afirmam oficialmente que se deve reformar e melhorar o seu sistema político, criando democracia de estilo socialista e construindo o Estado de direito socialista, ou seja, o sistema político chinês permanece em construção, e mesmo que a população dê ao regime altas notas de desempenho, vê o sistema actual como uma estação no caminho da evolução política, em direcção a uma futura forma de governo desconhecido, e a ser criado. A mudança política deve ser pacífica e gradual.

O ambiente internacional da China é potencialmente turbulento. A China faz fronteira com um dos países mais instáveis do mundo, a Coreia do Norte, governada por uma ditadura pessoal anacrónica, dividida em conflitos entre facções, e armada com armas nucleares, que governa uma população carecida. Se esse regime cair ou desencadear uma guerra, a China pagará um grande preço. Outros regimes instáveis que fazem fronteira com a China, incluem a Birmânia, Paquistão, Afeganistão, Tajiquistão, Quirguistão e Cazaquistão.

Os conflitos étnicos ou a ascensão de movimentos extremistas poderiam produzir fluxos de refugiados ou paraísos terroristas nesses lugares que ameaçariam a segurança da China. A desordem na África ou no Médio Oriente, podem no futuro ameaçar os suprimentos de petróleo, cobre e outras matérias-primas necessárias à China. A polarização das relações com a Europa e Estados Unidos, poderá ameaçar os seus mercados de exportação e a sua estabilidade financeira. Em contrapartida, é difícil pensar em mudanças plausíveis, fora da trajectória existente, no ambiente de política externa da China que melhorariam a sua segurança.

É improvável, por exemplo, que qualquer um dos maiores países vizinhos decida aliar-se à China porque a desconfiança é alta em toda a região. A alteração da trajectória existente, que é susceptível de ocorrer cedo ou tarde, tende a diminuir ao invés de aumentar a ameaça da China. Todavia, alguns mitos sobre a China são verdadeiros. A China está localizada em uma parte diferente do mundo, em relação ao Ocidente e tem as suas prioridades, necessidades de segurança e visão do futuro, e nem sempre vê o mundo, da mesma maneira que vêem os ocidentais. Está cada vez mais estreitamente ligada ao Ocidente e não se está a afastar, pelo que é urgente que entendamos essa verdade.

29 Dez 2016

Os desafios da prosperidade

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Tratado de Roma que criou a então Comunidade Económica Europeia faz 60 anos em Março. Quando a Europa caminha para uma idade próxima da reforma, aqueles que acreditam no projecto europeu têm muito que fazer para mostrar que a União não é um daqueles funcionários que já não tem capacidade para se regenerar e abraçar novos projectos. Desde a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, aquilo que se denomina agora União Europeia (UE) terá contribuído para o período de paz mais longo da história da Europa e para o desenvolvimento das instituições democráticas – condição sine qua non para a adesão ao projecto europeu – em vários países que se encontram hoje na linha da frente da defesa de algumas das políticas europeias. A criação do mercado único europeu, no qual a circulação de pessoas, bens, serviços e capitais é assegurada – um mercado constituído por quase 510 milhões de pessoas –, o modelo do Estado social e o apoio às regiões periféricas e mais pobres da Europa contribuíram para a melhoria das condições de vida de dezenas de milhões de pessoas. São europeias algumas das principais marcas mundiais – de automóveis, de computadores, de bancos, de seguradoras –, que alcançaram dimensão global pela sua integração no espaço regional europeu. Embora seja mais fácil criticar do que elogiar – a Europa enquanto projecto comum de 28 Estados tem estado na mira de populistas e nacionalistas – o que é facto é que a União tem contribuído para vários feitos que convém ter sempre em consideração quando se fazem balanços.

Em ano de eleições muito importantes para o futuro da Europa, 2017 vai trazer legislativas na Holanda e na Alemanha e presidenciais em França, os desafios à solidariedade europeia vão ser imensos. Os defensores da integração europeia vão ter de trabalhar arduamente nos próximos meses para enaltecer as virtudes do projecto europeu a populações cada vez mais descrentes nos méritos da integração económica, monetária, fiscal e política. A ideia de que o projecto europeu está em crise parece por estes dias ser uma evidência. Mas foi este mesmo projecto, baluarte da paz, da economia de mercado, dos direitos humanos e da democracia, que serviu de fonte de inspiração para outras organizações internacionais um pouco por todo o mundo.

No entanto, os movimentos populistas têm ganho adeptos nas últimas duas décadas, mas mais notoriamente nos últimos cinco anos, à custa de um discurso anti-Europa, anti-imigração, pró-nacionalista, pró-soberanista. Aqueles que concluem que a União é um projecto que só funciona em tempos de expansão económica parecem estar por cima. Fazer o contraponto a esta argumentação não é fácil, sobretudo quando o objectivo primeiro dos partidos do centro – aqueles mesmos que trouxeram a Europa até este estado de coisas – é também o de ganhar eleições.

A crescente onda populista que marcou 2016 – as mensagens políticas do “leave” tinham essas características, apelando aos sentimentos mais básicos dos britânicos e prometendo um Reino Unido mais forte sozinho, abrindo a porta à saída de imigrantes do país – vai estar presente nas campanhas políticas do próximo ano. Logo, em Março, na Holanda, o discurso anti-imigrantes vai ser repetido por Geert Wilders, o presidente do Partido da Liberdade, que, à semelhança do seu congénere austríaco, tem estado a ganhar adeptos de uma forma espectacular.

Em Abril e Maio, com a primeira e segunda voltas da eleição presidencial, Marine Le Pen vai procurar explorar ao máximo a desilusão dos franceses com a actual situação económica e prometerá uma França que não se dobra a Bruxelas. Uma França sem euro – ou mesmo sem União Europeia –, pois Le Pen já ameaçou também com a realização de um referendo.

Na Alemanha, as hipóteses de vitória do partido Alternativa para a Alemanha são nulas. Mas, o discurso anti-imigração pode, tal como na Holanda, contribuir para fragmentar o parlamento e obrigar a soluções governativas mais imaginativas.

O problema com todas estas eleições e com as mensagens anti-Europa, anti-imigração, anti-solidariedade é que os valores que têm contribuído para o avanço da UE vão estar permanentemente em xeque. O que, quando passam 60 anos sobre a assinatura do Tratado de Roma, não augura nada de bom para aquilo que é hoje a Europa.

Um pouco como a Organização das Nações Unidas que, desde a sua criação, em 1945, se expandiu a várias áreas de intervenção, desde os direitos humanos, manutenção de paz, apoio às instituições do estado de Direito, ambiente, assuntos laborais… um sem número de actividades, também a União Europeia, enquanto entidade supranacional, tem, ao longo dos últimos 60 anos, abraçado cada vez mais áreas e regulado cada vez mais áreas de actividade – sobretudo económicas – que favorecem as condições de expansão do mercado. Tendo em conta o estado a que as coisas chegaram agora, a ideia de que a Europa deve aproveitar os “ataques” de que tem sido alvo, para se repensar, não é de todo despropositada. Afinal, o grande objectivo comum, como sintetiza a recentemente aprovada Estratégia Global da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, é o da prosperidade dos seus povos. E eles parecem estar a precisar de ser de novo convencidos dos méritos do projecto.

28 Dez 2016

2016 chegou ao fim

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ais um ano que passou. Acho que a maioria irá concordar que o ano não correu muito bem. Para o espírito português tendencialmente pessimista e trágico, tudo o que aconteceu neste querido 2016 deixou os nossos corações de sobressalto, a esperar sempre o pior. A expectativa é de que o ano de 2017 não venha a piorar estas ansiedades, mas que tranquilize… Nós queremos histórias felizes. Nós queremos conquistas justas e inclusivas.

O ano passado de 2015 acabei o ano com um artigo que revia as grandes vitórias legais de inclusão e de desenvolvimento do domínio sexual e de género. Houve alguns desenvolvimentos interessantes, não houve? Foram aprovadas leis (por todo o mundo), e popularizaram-se trends, que suscitaram saudáveis discussões sobre o tema do sexo e do género. Este ano não consigo estar tão satisfeita. A verdade é que, a meu ver, houve um retrocesso severo na forma como certas temáticas sexuais foram abordadas. Podem olhar de perto para o que está acontecer na Polónia sobre o aborto, ou para os Estados Unidos com a nova presidência e a assuntos relacionados com homossexualidade, educação sexual e outros temas que são considerados polémicos. Talvez o 2017 nos traga mais coisinhas boas, mais abertura para falar daquilo que temos vergonha e pouco à vontade – mas que deve ser discutido. Mas claro que nem tudo foi assim tão mau:

– Fu Yuanhui foi a rainha dos Jogos Olímpicos porque falou sobre a m-e-n-s-t-r-u-a-ç-ã-o, o período, o Benfica, o sangue entre as pernas, aquela altura do mês. Não falou assim tanto quanto isso, mas referiu-o de boca cheia! Sem vergonhas;

– Sun Wenlin e o seu parceiro Hu Mingliang tentaram pedir recurso a uma tentativa de legalizar o casamento homossexual, foi recusado, mas foi considerado um dos maiores momentos pelo movimento LGBTQ+ na China;

– Houve a oportunidade de fazer sexo com o planeta, colectivamente, numa instalação artística em Novembro em Sydney, uma oportunidade de divulgar formas de amor pelo planeta e a eco-sexualidade.

– Na Turquia, depois de muita manifestação e indignação nas ruas, foi possível parar uma proposta lei que iria absolver violadores se estes casassem com as suas vítimas. Uma vitória para a voz popular feminina.

– Houve uma maior preocupação (e.g. graças a um jornal britânico e à sua rubrica vaginal dispatches) com as questões vulvares e vaginais. Tentou-se perceber como se parece, como cheira, como reage. O mistério feminino desvenda-se no entendimento anatómico e fisiológico das partes femininas que precisa de uma atenção contínua e que irá continuar para o ano 2017.

Nem tudo foi mau, mas muita coisa foi má, e para não alimentar o pessimismo não irei listar essas coisas tristes. Queremos pensar no futuro, no optimismo e na esperança que servem de combustível para todos movimentos de luta e justiça em todos os campos da nossa vida, incluindo no sexual.

Depois de um Natal cheio de comida, e já que andamos a rebolar de doces e coisas boas, desejo a todos uma passagem de ano cheia de amor e, quiçá, cheia de sexo se assim vos aprazer, para queimarem essas calorias extra. O ano 2017 que vos traga marotices de todos os tipos, inspiradas pela imaginação, sabedoria e educação do que é uma sexualidade livre, consentida e bem informada. Porque já chega 2016! Não podemos mais contigo. 2017: chega bem rápido.

28 Dez 2016

Sexus Festivus

[dropcap]P[/dropcap]ara os que estão cansados do tradicional Natal e que gostavam de ter uma alternativa, aqui está uma proposta: o Festivus do Sexo. A inspiração vem directamente da celebração inventada pela família de um dos escritores da série Seinfeld, que acabou por incluí-la num episódio e torná-la muito popular. No enredo conta-se a história de como o pai do George inventou uma nova celebração para Dezembro, de forma a substituir o Natal. O dia não é o mesmo, mas o de 23 de Dezembro, e para quem nunca acompanhou a série e não sabe o que raio é o Festivus, uma explicação detalhada é requerida.

O Natal, apesar da original condição re- ligiosa, tem sobrevivido com uma crescente dependência consumista. As crianças que- rem ver um Pai Natal generoso e as pessoas querer agradar a tudo e a todos com prendas, prendas e mais prendas. O Festivus resultou de muita frustração natalícia, o que levou a uma família a criar seu próprio feriado com tradições muito peculiares associadas. Não há árvore de Natal, mas sim um poste de alumínio completamente nu, desprovido de qualquer decoração. Antes de começar o jantar, que não tem um menu específico, cada pessoa tem direito a verbalizar as suas queixas e frustrações em relação aos presentes nesta celebração. Se um filho não dá atenção suficiente aos pais, os pais que lhe digam na cara! Se a sogra é um pesadelo, a nora que se queixe! No fundo esta é uma tentativa de socializar e tornar tradição a má disposição que também é tão típica natalícia, apesar da expectativa ser sempre a contrária. Ainda há mais uma tradição, as proezas de forças, onde o anfitrião desfia um convidado para uma luta de corpo a corpo, até que um seja declarado o vencedor.

Para os casais solitários a passar um Natal a dois (que acontece a muitos quando estão fora dos seus países de origem) e não há fa- mília alargada por perto, a proposta é de um Sexus Festivus. Esta será uma festa crítica ao consumismo natalício mas altamente sexual. O poste de alumínio tradicional, podia-se converter num strip pole. Este seria o símbolo do Sexus Festivus e o incentivo para o pessoal tirar a roupa, de forma sensual, acompanhada da sua música favorita. Homens e mulheres por igual. O objectivo é despirem-se por completo.

Claro que o tradicional ‘momento de queixas’ não se encaixa no espírito deste meu evento criado. A minha proposta seria mais sensual e simpática. Em vez de queixas, devem elogiar o seu parceiro por todas os momentos sexuais proporcionados no último ano, detalhadamente. Para mostrar que se preocupam e que estão de facto agradecidos por terem um parceiro tão sexualmente gratificante (não há nada como reforçar o bom comportamento). As proezas de forças é que não se alteraria muito do formato original, não seria uma luta de corpo a corpo, mas sexo de corpo a corpo, do mais desenfreado e inspirado. Ganha quem mais conseguir proporcionar orgasmos, se quiserem manter o factor competitivo na equação.

O jantar para o Sexus Festivus caria à descrição das mentes sexualmente inspiradas. Poderiam querer alimentos de especiarias afrodisíacas, ou mesmo formas fálicas e vulvares criadas pelas frutas e legumes de eleição. A imaginação poderia ainda sugerir fazerem um daqueles jantares de ‘sushi body’ onde o corpo nu seria utilizado como a plataforma onde a comida é apresentada, neste caso, sushi. Mas poderia ser de outra coisa qualquer! Esta seria a altura ideal para todos os aficionados por sito lia (sexo+comida), ou simplesmente curiosos, misturarem o sexo com os prazeres do estômago num jantar muito especial. O jantar Sexus Festivus!

Acho que todos concordamos que o Natal até pode ser divertido, mas não há nada como criar a nossa festa cheia de tradição sexual. Um exclusivo para os que podem, porque muitos que até querem terão que se contentar com o bacalhau, as couves, as rabanadas, as prendas pouco inspiradas e as intrigas familiares. Desejo-vos a todos um feliz e tranquilo Natal, e os que se atreverem, um muito orgásmico Sexus Festivus.

20 Dez 2016

Parem de se sentir bem convosco próprios

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi só uma vez. Os governantes de Macau, sobretudo o chamado “secretário dos cinco anos brilhantes”, defendem que as medidas ou as actividades que o próprio Governo realiza “obtêm grande sucesso”, ou que “ganham bons comentários da maioria da população”, apesar de existirem várias opiniões ou criticas que revelam exactamente o contrário.

É irritante observar que eles se sentem bem meramente consigo próprios, além de virem a público dizer que a maioria dos residentes também concorda com o que se passa. Antes de dizerem isso, não devem ter ouvido as críticas da sociedade, as que são difundidas nas redes sociais e nos meios de comunicação social, ou então apenas fazem ouvidos moucos.

A harmonia é uma das características associada a Macau, à sua sociedade e às suas gentes, mas não é surpreendente que muitas pessoas prefiram ficar em silêncio sobre coisas que realmente não gostem, em vez de falarem dos problemas existentes. Olhando por aí, é fácil desmentir o que os dirigentes do Governo defendem de bom.

A primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, que acabou esta semana, é o exemplo mais recente. O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, salientou aos jornalistas que o festival foi organizado com grande sucesso, que recebeu todas as mensagens positivas, tendo ainda falado da surpresa de muitos com o sucesso da realização do festival pela primeira vez.

Não posso negar os bons comentários que foram feitos e que o secretário ouviu, mas não deve ter ouvido falar das outras opiniões de especialistas e espectadores de festival expressas nas redes sociais. Essas críticas falam de salas vazias na exibição dos filmes seleccionados no festival, em momentos onde apenas os realizadores de renome e os actores apareceram para falar do filme com apenas dez espectadores. Seria curioso saber o que eles pensaram nesse preciso momento.

Quando eles pensavam que os filmes não foram suficientes para despertar a curiosidade das pessoas, para as levar a comprar bilhetes, veio a saber-se que, antes dos filmes começarem a ser exibidos, já os bilhetes estavam esgotados. Então para onde foram esses bilhetes? Para as personalidades VIP convidadas pela organização do festival? Para os funcionários e familiares? Pode ter acontecido o caso de que, muitos dos que queriam realmente ver os filmes não conseguiram comprar bilhete.

Mas as críticas não ficam por aqui. Um espectador do filme “Gurgaon” partilhou a sua opinião à publicação “All About Macau”, sobre a ida de um grupo de 50 estudantes à sala de cinema, tendo-se deparado com a falta de legendas em chinês, o que levou a que não tenham usufruído do filme, pela falta de entendimento do mesmo.

Os responsáveis por esta edição do festival não podem tapar os olhos a esta situação. Tratando-se da primeira edição, o Governo deve prestar mais atenção a todas as reacções, quer sejam elogios como críticas. Num território tão pequeno, se todos fizerem ouvidos de mercador às críticas existentes, a cidade morrerá aos poucos, porque onde não há críticas, não há melhorias.

16 Dez 2016

Olongapo city

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau: para que se possa continuar permanentemente a amá-la, é preciso por vezes deixá-la, e depois de uma boa dose de “mordidelas do real” (reality bites, em estrangeiro) as reconciliações sabem sempre melhor. Esta terra não existe. Por isso sempre que se proporciona um tempo de férias superior aos três dias que compõem um fim-de-semana prolongado, convém dar um pulinho a uma das muitas exóticas paragens que temos mesmo aqui à mão de semear. O destino dos quatro dias da “ponte” entre o feriado do dia 8 e o fim-de-semana passado foi Olongapo, no arquipélago das Filipinas. Outra vez as Filipinas.

Existe entre a maior parte da população de Macau mais ou menos informada uma noção completamente absurda de que as Filipinas “são um lugar perigoso”, e onde as probabilidades de se apanhar com um tiro vindo de direcção incerta. Com uma área três vezes maior que o território de Portugal continental e ilhas, e uma população de mais de 100 milhões, o país tem muito mais para oferecer do que a sua capital, Manila, que é o único lugar que não recomendo. A duas, três, ou se valer mesmo a pena cinco horas de carro daquela infernal cidade (conte com duas horas só para sair de Metro Manila, se chegar durante o dia) existem lugares paradisíacos, onde a festa não acaba na hora de se pagar a conta – divide-se tudo por seis, o câmbio da pataca – e até parece dado! Eu sei que é desagradável capitalizar os ganhos de uma economia desafogada como é a nossa às custas da miséria alheia, mas no fundo não é isso que TODA a gente faz? Falando do mais importante: Olongapo.

A 174 km e 3 horas de automóvel de  Manila encontramos a cidade de Olongapo – a sensação é a mesma de quando se conduz de Lisboa ao Algarve. O nome desta “cidade de 1ª classe, altamente urbanizada”, estatuto que adquiriu em 1983, deriva do tagalog “ulo ng apo”, ou “a cabeça do velho”, e tem origem numa velha lenda que não vou aqui contar por incluir decapitações e outras imagens pouco agradáveis. Durante os anos 60 e 70 foi considerada a “Sin city” das Filipinas, muito por culpa da base naval norte-americana estacionada na baía de Subic, que fez de Olongapo uma espécie de bordel privativo. A base foi encerrada em 1992, e as suas instalações aproveitadas para se criar a Subic Bay Freeport Zone (SBFZ), o “pulmão” da economia da cidade, que se transformou na 12ª mais populosa do país em pouco mais de uma década.

Tirando a pequena nota histórica, o que procuramos quando vamos de férias em Dezembro para um lugar com sol e praia? Sopas e descanso, naturalmente, e em Olongapo a combinação das duas resulta na perfeição. Gostei de poder comer um “lugaw”, um primo filipino da canja, logo que cheguei na madrugada de quarta-feira, e numa loja quase ao lado do hotel. Apetece-lhe comer um bife da vazia às 5 da manhã? Em Olangapo pode-se comer isso e muito mais a qualquer uma das 24 horas do dia. Os “go-go bars” e os “gringos” pançudos e velhotes estavam lá, também, mas eram uma mera distracção no caminho da praia, ou de mais uma aventura pelo cosmopolita centro da cidade e os seus “shopping malls”. Olongapo estende-se por 8 km da costa de Subic, mesmo no sopé das montanhas de Zambales, de onde se ergue o Pinatubo, o maior vulcão do mundo ainda em actividade. Uma das suas erupções, em 1991, deixou Olongapo completamente coberta de cinza.

Depois de tudo usufruir, a sensação com que se volta a Macau de um país como as Filipinas é a de um grande “e se…”. Riquíssima e diversificada em recursos naturais e humanos, minada até ao caroço pela corrupção, as Filipinas são o exemplo acabado de uma nação falhada, que tinha tudo para ombrear com o Japão e a Coreia no topo das economias asiáticas. O novo presidente do país, o controverso e inflamado Rodrigo Duterte, propõe resolver com pulso firme alguns dos maiores problemas com que o seu povo se debate. Enquanto isso vai criando outros muito piores que ficarão para resolver depois dele. Tem sido assim, nas Filipinas, desde o tempo em que os “yankees” faziam de Olongapo a sua “bitch”. Depois é só baralhar e voltar a dar.

15 Dez 2016

Tábua rasa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s declarações do presidente-eleito dos Estados Unidos da América (EUA) sobre a política de uma só China irritaram particularmente Pequim. As palavras usadas pelo porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros chinês são prova do grau de perplexidade. É fácil perceber porquê. Donald Trump acaba de questionar uma política norte-americana com mais de 37 anos. Trata-se de uma espécie de linha de força da política externa de Washington, que esteve na base da aproximação dos EUA à China, iniciada por Richard Nixon e os esforços diplomáticos de Henry Kissinger.

Desde 1971, um ano antes da histórica visita do então Presidente norte-americano a Pequim, que todos os presidentes americanos têm defendido a política de uma só China. Embora só tenha sido articulada oficialmente em 1979, com a adopção pelo Congresso Norte-Americano da Lei das Relações com Taiwan (Taiwan Relations Act, TRA), a política tem sido quase integralmente respeitada e reafirmada nas declarações públicas dos governantes norte-americanos.

A política estabelece que há apenas um governo legítimo que representa a China, o da República Popular da China. Foi nessa altura que os laços formais dos EUA com o governo nacionalista de Taipé foram cortados. No entanto, embora reconheça a política de uma só China, para Washington, o estatuto de Taiwan está por ser definido. Quanto a isso, a política norte-americana defende uma resolução pacífica.

Como não se trata de um Estado soberano com o qual os Estados Unidos mantenham relações diplomáticas, a lei estabelece que tipo de relações podem ser estabelecidas com Taiwan. Ao longo destes 37 anos, isto tem permitido todo o tipo de trocas comerciais entre a ilha e os EUA, incluindo a venda de equipamento militar e de armas a Taipé. Aliás, a TRA é clara sobre o assunto: cabe ao congresso norte-americano determinar que tipo de assistência deve ser dada a Taiwan “para manter uma capacidade suficiente de autodefesa”.

Trata-se pois de uma política dúbia. Ou, utilizando a linguagem que se encontra expressa, por exemplo, na recente Estratégia Global da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, trata-se de pragmatismo baseado nos princípios. Outros diriam que se trata de realismo puro e duro, dos interesses, das trocas comerciais. Mas isto é o que tem, de facto, marcado as relações entre Taipé e Washington.

Ao nível das visitas formais de representantes norte-americanos a Taiwan, o seu número tem sido escasso, de facto. De acordo com o levantamento efectuado pelo Congressional Research Service, um centro de estudos que dá apoio aos congressistas norte-americanos na elaboração de legislação, entre 1979 e 2014 apenas seis representantes de Washington visitaram Taiwan. Entre 1979 e 1992 não há registo de qualquer missão a Taipé; as visitas começaram apenas em 1992 e entre 2000 e 2014 nenhum responsável político norte-americano veio até este lado do globo. Nenhum destes dirigentes é oriundo dos chamados sectores sensíveis da governação: negócios estrangeiros, defesa, política externa ou assuntos internos. São de áreas específicas da administração, como o comércio, transportes, pequenas e médias empresas ou ambiente. A política norte-americana quanto a uma só China tem sido na prática respeitada quase ao milímetro.

O que não quer dizer que não haja vontade de a mudar. Apesar de ser uma pedra basilar das relações com Pequim, recordada esta semana pelo ministro dos Negócios Estrangeiros chinês (“A política ‘uma só China’ é a fundação do relacionamento saudável nas relações sino-americanas”, disse Wang Yi, na esperança que não venham a deteriorar-se), existe a intenção de mudar o conteúdo da TRA. Na tensão permanente que marca as relações entre o poder legislativo e o poder executivo nos EUA, há pouco mais de dois anos, um grupo de 29 membros da câmara de representantes escreveu a John Kerry sugerindo uma revisão da política que estava há mais de 20 anos sem ser alterada. As novas condições existentes em Taiwan, que havia passado por uma transformação estrutural, com a abertura democrática, permitiriam um outro tipo de relações com a ilha. Debalde. Apenas 21 Estados mantêm relações diplomáticas com Taiwan. Nações pequenas, fazendo parte, quase todas, do grupo de países em desenvolvimento económico, com as quais Taipé gasta 200 milhões de dólares norte-americanos em projectos de apoio ao desenvolvimento.   

É evidente que o conteúdo da política externa do Presidente Trump é ainda pouco claro. Mas as nomeações que tem feito pressagiam que tudo poderá vir a ser posto em causa. Por exemplo, no que diz respeito a Taiwan, Trump tem-se rodeado de pessoas, como um antigo embaixador de George W. Bush nas Nações Unidas, John Bolton, que advogam um outro tipo de relacionamento, menos próximo de Pequim.

Donald Trump parece não querer deixar pedra sobre pedra no actual sistema internacional. Deu a entender isso na campanha eleitoral, quando insinuou uma retirada dos EUA da Europa, no âmbito da NATO, para desespero dos países que fazem fronteira com a Rússia; quando declarou que a Coreia do Sul e o Japão deveriam robustecer os seus orçamentos militares, mesmo recorrendo ao nuclear, para confrontarem a ameaça da Coreia do Norte; quando afirmou que com ele na Casa Branca a presença militar norte-americana seria reforçada no Mar do Sul da China. Estas primeiras declarações sobre política externa mostram que, de facto, a incerteza sobre o posicionamento dos EUA no mundo será a nota dos primeiros tempos da sua presidência. Uma espécie de caixa de pandora com consequências imprevisíveis.

15 Dez 2016

Evitemos a “quebra de palavra”

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]egundo noticiava no passado dia 5 o CHINAXIAOKANG.COM, um destacado membro do Governo de Hong Kong, o Secretário de Estado das Finanças, Zeng Junhua, ter-se-ia recusado a responder a algumas questões postas por escrito pelos deputados do Conselho Legislativo, Liang Guoxiong, Luo Xiaoli, Luo Guancong e Yao Songyan. A posição de Zeng estará relacionada com o processo administrativo movido pelo Governo de HK contra aqueles quatro deputados.

Como é sabido, uma das funções do Conselho Legislativo é a monitorização do desempenho do Governo. Esta monitorização é principalmente feita através de interpelações orais. As interpelações escritas são usadas raramente, ao contrário do que acontece em Macau onde ambas as formas são frequentes.

Como foi referido, a recusa de responder às interpelações está relacionada com o processo administrativo que o Governo moveu aos deputados. Há algumas semanas atrás, o Congresso Nacional Popular fez uma análise explicativa do artigo 104 da Lei Básica de Hong Kong. Nesta análise encontram-se indicações sobre a forma como o juramento de lealdade deve ser feito, o que valida um juramento, e em que circunstâncias pode ser aceite. De acordo com o espírito do documento, o Governo da RAEHK concluiu que os juramentos de lealdade destes quatro deputados eram inválidos e, desta forma, iniciou-se o processo administrativo. Se o Governo ganhar o processo os deputados serão afastados do Conselho Legislativo definitivamente.

Dado que a legitimidade das suas funções está a ser posta em causa, parece razoável que Zeng tenha ignorado as questões que lhe colocaram. Mas a atitude do Secretário de Estado das Finanças foi severamente criticada no Conselho Legislativo. Os seus opositores não encontraram razões válidas para o seu comportamento. No entanto Zeng considerou que o silêncio, nestas circunstâncias, era a resposta adequada visto que as capacidades legais dos referidos deputados estão a ser postas em causa pelo Governo local. Zeng avançou que a omissão de resposta tinha sido aconselhada pelo Secretário de Estado da Justiça.

Mas surpreendentemente, da parte da tarde, Zhang Bingliang, Secretário de Estado da Habitação e Transportes, manifestou a sua vontade de responder às questões dos quatro deputados, durante a reunião do sector da Habitação. Zhang afirmou que se a sua resposta não interferisse no processo administrativo, estaria disposto a dá-la. Esta mudança de posição oficial levou as pessoas a questionarem porque é que de manhã Zeng se tinha recusado a responder às perguntas.

Estas posições contraditórias dos dois membros do Governo indiciam a forma como o Executivo está a lidar com este processo. O silêncio do Secretário de Estado das Finanças reafirma a convicção de que a capacidade legislativa dos deputados está a ser posta em causa. Responder-lhes seria reconhecer-lhes essa capacidade e desvalorizar o processo em curso.

Para justificar esta posição Zeng alegou ter recebido “conselho legal para se manter em silêncio”. Mas, perante as críticas, o Governo da RAEHK reviu a sua posição e, na pessoa do Secretário de Estado da Habitação e Transportes, surge a vontade de responder “se a sua resposta não interferir no processo administrativo”. Desta vez o que se salienta é a não interferência no processo administrativo.

E será que esta argumentação vai ser aceite em Tribunal? Provavelmente sim. No Direito Civil, existe uma figura legal chamada “Quebra de Palavra”, que basicamente obriga ao cumprimento da palavra dada. Se houver “quebra de palavra”, a parte lesada pode pedir uma indemnização.

As preocupações do Governo de Hong Kong são compreensíveis. Se o Governo responder aos deputados, o Tribunal pode ser levado a crer que as suas capacidades legais estão a ser reconhecidas. Parece ser uma posição prudente. Mas quando muda de postura e afirma desejar responder “desde que não haja interferência no processo administrativo”, afigura-se-nos que está a agir de forma mais adequada, garantindo a função supervisora dos deputados e ao mesmo tempo não descurando o processo administrativo em curso.

Do ponto de vista legal o silêncio é a melhor forma de evitar a quebra de palavra, mas do ponto de vista social não cai bem. O silêncio do Governo perante as questões dos deputados pode ser encarado como falta de respeito pelo Conselho. Neste caso, o equilíbrio entre a lei e o interesse público terá de ser remetido para um Conselheiro Jurídico.

13 Dez 2016

A Psicanálise

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo teorizado complexifica-se na sua diversidade ideológica, e reduz-se a uma possível doutrina. Estas ideias e experiências do sexo bebem um pouco daquilo que sabemos e daquilo que experimentamos, que depois se misturam em discursos ricos e especializados sobre o tema (isto para dizer que no que toca a sexo, especialmente, a ideologia não é o único preditor para a forma de como ela é sentida e imaginada).

A psicanálise trouxe uma perspectiva do sexo a domínio público, e só por isso (independentemente do seu conteúdo) foi recebido com algum choque/fascínio – ou recusado de todo. A este discurso estavam associadas não só perspectivas do sexo mas perspectivas psicoterapêuticas que em muito contribuíram para a forma como percebemos a doença mental hoje em dia, e o sexo tornou-se conceito chave da psique humana. Com a grande praga histérica do séc. XIX, médicos tentavam perceber o que é se passava com a mulheres, que entravam em grandes estados de ansiedade, irritabilidade e tendências ‘promíscuas’. Até então julgavam que elas padecessem de um mal físico – o seu útero estaria fora de controlo. Não é por acaso que histeria vem do termo grego hiteros, que quer dizer útero. Desde a antiguidade clássica que se entendia a explosão emocional feminina como uma desconexão do útero e das suas necessidades, ou seja, o útero era uma entidade própria e potencialmente problemática, e por isso, o foco do problema. Um tratamento possível (mas extremo) era uma histeroctomia.

Mas Freud veio mudar o paradigma ao reforçar a condição psíquica/mental do conflito sexual, sendo esta a principal razão para a manifestação histérica. A cabeça é que devia ser tratada, não o órgão reprodutor per se. Com o desenvolvimento de terapias do foro ‘psico’, assim fundou a psicanálise, que incluía uma teoria do desenvolvimento humano que girava em torno da sexualidade. E assim um neurologista se tornou psicanalista.

Já se passaram mais de 100 anos desde que estas ideias psicanalíticas vieram a público, e o imaginário sexual que fora descrito continua entre nós, presente e activo. Na gíria popular ouvem-se conceitos de especificidade psicanalítica: fala-se de recalcamentos, líbido, mecanismos de defesa, ego, inconsciente, complexo de Édipo. Mas sempre me perguntei sobre qual seria a ‘lição’ retirada desta teorização para forma como o sexo (e o género) é entendido hoje em dia. As teorias feministas têm a dizer uma ou outra coisa, já que a linguagem psicanalítica sobre as mulheres veio atrasar tentativas de emancipação ao longo da história. Problemas: (1) define um estado de inveja do pénis como parte do desenvolvimento psicossexual feminino (2) entende que a satisfação sexual é alcançada através da penetração vaginal, única e simplesmente (3) define a condição feminina através da maternidade (4) considera que tudo fora do comportamento ‘normal’ feminino da época, é automaticamente problematizado. Entre outros.

Claro que tudo isto acontece como uma pescadinha de rabo na boca. As ideias psicanalíticas vieram reforçar ideologias heteronormativas, e as ideias (expectativas) heteronormativas da sociedade em geral reforçaram teorias e perspectivas académicas.

Não sou especialista em psicanálise para poder espremer outras considerações acerca das consequências reais da psicanálise. Surpreende-me, contudo, que seja uma perspectiva psicológica muito popular na cultura pop, encontramo-la nos filmes, nas artes plásticas, na música ou na literatura. Dá que pensar o que a psicanálise poderá ainda dizer sobre nós, como sociedade, e da nossa forma de pensar o sexo. Talvez somente mergulhando nos meandros simbólicos e inconscientes do sexo contemporâneo poderemos ver uma inveja do pénis ainda – ou o medo da castração masculina. Talvez ainda possamos assistir ao desejo do filho de matar o pai por ciúmes da mãe, ou dos ciúmes da filha, chamado complexo de Electra. Pode ser que nos recantos do nosso inconsciente ainda faça sentido que o sexo vaginal de penetração seja o único tipo de sexo que nos satisfaz e que nos dá sanidade. Talvez nada disto faça sentido e a sexualidade permanece como sempre foi, um mistério.

13 Dez 2016