Manuel de Almeida VozesSímbolos da nostalgia “(…) onde estão as boas pessoas quando acontecem coisas más? Quando acontecem coisas más, as boas pessoas ou estão caladas ou então a agir mal” George Orwell (1903 – 1950) [dropcap]A[/dropcap] geometria do vazio traz consigo escolhas de vida, gestos variados, sentidos diversos – um mundo de passagem. São ciclos de vida. “Envelhecendo eu revelo o meu carácter não a minha morte”, até porque, e segundo Max Weber (1864 – 1920), “os homens já não morrem saciados da vida, mas simplesmente cansados”. As sociedades modernas quebraram, fruto do tédio, do privilégio e da agonia intelectual. Não alimentamos os sentimentos. Não se cresceu com o que se aprendeu. É triste. O medo faz parte da estratégia – “este não é tempo para a indiferença” -, o medo paralisa o Homem, a Humanidade. George Orwell usa esta sugestiva frase: “O importante não é manter-nos vivos, é manter-nos humanos”. Paramos, bloqueamos. O medo é uma infecção contagiosa. O medo ajuda a impôr as ditaduras. O que nos dizem e como nos dizem, o que existe e como existe, o que fazemos e como fazemos, está certo? Não podemos cristalizar o desejo, a escolha, a opinião. Temos de pensar de mente aberta e criativa. Temos de descobrir algo de novo e pungente a cada dia. Acabar com estes caminhos obscuros de fragmentos de ignorância. Não há presente sem futuro – “um futuro que se constrói igual ao passado, não é futuro e por isso não tem futuro” -, só que a raiz dos males futuros está a ser plantada (?) nos erros que se cometem no presente. Percebem? Somos de hábitos sem grandes vícios. Existimos. Franquear fronteiras? À fé? À fantasia? Ao pecado? À caridade? À fraternidade? Há uma peça belíssima de Alves Redol (1911 – 1969), justamente apelidada de “Fronteiras Fechadas”, editada postumamente, em 1972. Relembro aqui o autor de “Barranco de Cegos”, após anos de ausência, não só pelo Homem, um dos grandes entre os maiores do Neorrealismo, mas sobretudo pelo seu carácter, já que, ao longo da sua obra, sempre tentou ser “um operário das letras ao serviço de uma obra artística colectiva”. Temas quentes nessa peça do autor de “Gaibéus”: a coragem de quem passa fronteiras clandestinamente à procura de uma vida melhor e/ou a fuga da opressão – cinco mulheres – a condição feminina; as ideologias; a cláusura; o enriquecimento ilícito dos traficantes; a avareza. Apesar dos anos, “Fronteiras Fechadas” mantém uma grande actualidade, também porque os grandes temas de Alves Redol foram, são e serão sempre, aos olhares atentos, temas do presente. As suas grandes questões são políticas, económicas, sociais e culturais – faltou-lhe a questão da saúde. No passado dia 10 de Junho, nas “Comemorações do Dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas”, o Cardeal José Tolentino de Mendonça deixou uma mensagem em que alertava para os perigos do modelo de sociedades que se estão a construir, palavras que merecem uma reflexão. E passo a citar “O desafio da integração é imenso porque se trata de ajudar a construir raízes e essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade” e, acrescentava, “Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes. A comunidade não se reforça esquecendo as periferias, mas fazendo delas motor da sua própria coesão”. É preciso que a identidade germine e o orgulho de pertença cresça, para que todos nós – sem excepção de credos e etnias -, possamos participar no bem comum da cidade. Razão que persiste e se perpetua. Ao espanto ou desencanto? Ao desencontro ou ao encontro? Para quando a confissão dos pecadores e/ou perdão dos hereges? Onde estão os “sacerdotes” da ordem e do poder? Por onde se passeiam os perdedores do culto das palavras, vãs e inúteis? Não esperem um novo ciclo de “Concertos da Vida”. A época foi adiada. A incompetência não é negociável, até lá, as ideias continuarão a ser uma forma de contaminação e intimidade. Até quando? Estamos a viver uma fase crítica. Recuamos no tempo. Vivemos numa época subordinada aos três movimentos de Newton (1643 – 1727), que são as leis de base da mecânica clássica: aceleração, reacção e inércia. Haja saúde! “O Mundo é o que é, os humanos que não são nada, que se permitem não ser nada, não têm lugar neste mundo.” V.S. Naipul (1932 – 2018)
João Romão VozesEpopeias coloniais [dropcap]T[/dropcap]erminado muito simpático pequeno-almoço na minha primeira manhã em Banguecoque tinha duas horas livres até ao início da conferência que havia de decorrer no mesmo hotel onde estava hospedado. Com tempo demais para me aborrecer à espera e de menos para me dedicar à exploração da magnífica cidade, decidi-me por breve visita a museu de história que sabia próximo, mas pouco orientado para turistas estrangeiros. Em todo o caso, fui agradavelmente surpreendido pela exibição de um mapa do século XVII representado o sudoeste asiático, da Índia até ao Japão, claramente identificado por brasão português. Era uma segunda-feira de manhã, não encontrei quem me pudesse informar melhor, mas suponho que se tratasse de uma das primeiras – senão a primeira – representações cartográficas da região e certamente um bom exemplo dos possíveis contributos da expansão do conhecimento e das vantagens da interculturalidade inerente às viagens marítimas portuguesas da época. Já a conferência tinha terminado e Banguecoque revelado uma parte ínfima dos seus múltiplos e magníficos encantos quando tive oportunidade de sair da cidade num animado e interessante grupo com umas 30 pessoas de origens bastante diversas. Um dos sítios onde estive foi no extraordinário Wat Mahathat de Ayutthaya, uma das antigas capitais do reino do Sião, detalhadamente apresentado por um velho guia que a determinado momento se apercebeu da presença de pessoas portuguesas. Desde então, informou e reiterou pelo menos três vezes que os portugueses tinham sido os primeiros europeus a marcar presença no território que hoje corresponde à Tailândia. Talvez haja uma boa razão para essa efusiva referência: na realidade, a Tailândia nunca foi colonizada, nem por Portugal nem por outros países, o que eventualmente ajudará a olhar para este passado como um território de encontros e intercâmbios, mais do que de violência e exploração. Não foi assim quando estive em Goa, uma das antigas zonas portuguesas em território da Índia, também para um evento académico, que incluía vários participantes portugueses, alguns até com responsabilidades organizativas relevantes. Talvez por isso, logo no discurso de boas-vindas, com as tradicionais mensagens de boas-vindas à cidade, um professor local tenha evocado a importância histórica de 1962 e da independência de Goa em relação ao império colonial português. Uma relação histórica mais tensa, portanto, com toda a conflitualidade e violência associadas à colonização a marcar discursos contemporâneos. Pouco disto se vê na historiografia para turistas que oferece a Velha Goa, mais orientada para triunfalistas exibicionismos: os restos mortais do Padre Francisco Xavier miraculosamente conservados desde o século XVII na Basílica do Bom Jesus, mesmo em frente à Sé Catedral de Goa onde se celebrava em exposição a vida da santificada Madre Teresa e de João Paulo II, o papa que “libertou o mundo do comunismo”, nem mais nem menos. Francisco Xavier é também figura de relevo no Japão, onde o jesuíta é referenciado nos livros de história como o primeiro padre católico em terras japonesas, antes de ser banido o catolicismo. Tive oportunidade de visitar a Igreja que o homenageia, em Kagoshima, em tranquilo passeio pela zona de Nagasaki, no sul do Japão, terras das “igrejas escondidas”, onde comunidades cristãs mantiveram secretamente os seus cultos após a proibição do cristianismo. Também a terras nipónicas os portugueses foram os primeiros europeus a chegar, através do porto de Nagasaki. O Japão concedeu na altura privilegiada licença para comércio internacional com mercadores portugueses e chegou até a construir o porto de Dejima, exclusivamente dedicado ao comércio com Portugal, com todas as infra-estruturas logísticas inerentes e residências para capitães e altas personalidades. Duraria pouco, no entanto: o espaço havia de servir como área de “confinamento” para os portugueses, que haviam de ser também o primeiro (e historicamente o único) povo a ser expulso do Japão. O porto seria entregue a mercadores holandeses, que haviam de ficar com o exclusivo do comércio internacional com o Japão e hoje Dejima é uma relevante atração turística de Nagasaki, reconstruído em parceria com uma universidade holandesa e recriando o ambiente da época, com típicas habitações holandesas e as instalações portuárias para as embarcações e o comércio. Para se perceber esta mudança de atitude dos japoneses em relação à presença portuguesa socorro-me do legado de Wenceslau de Moraes, cônsul português no Japão na transição de século XIX para o XX, que havia de viver no país do sol nascente até à sua morte, em Tokushima, perto de Kobe, em 1929. Também visitei o pouco que resta da sua memória na pequena cidade: um busto difícil de encontrar, uma minúscula referência à casa onde vivia, o discreto túmulo onde o corpo foi sepultado, com a da sua esposa e sobrinha, ambas japonesas. O museu Moraes que ali existia já foi encerrado e toda esta tristeza sobre o seu legado histórico diz muito sobre a inépcia e o desleixo das políticas culturais portuguesas fora do país. Sobram os livros, no entanto, onde Moraes analisa com bastante detalhe diferentes aspectos da história do Japão e em particular da relação com Portugal. Moraes adianta uma explicação para a proibição do cristianismo e a expulsão dos portugueses, socorrendo-se de um encontro entre um “shogun” (autoridade máxima à época no Japão) e um mercador castelhano, em que este, depois de descrever a imensidão do reino, incluindo toda a América Latina, explica que o sucesso dessa conquista se deve a enviar primeiro os padres e só depois o exército. Segundo Moraes, os japoneses, não só entenderam o perigo das ambições colonialistas dos países ibéricos – com a inerente violência física, exploração económica e domínio político – como entenderam o papel decisivo da religião nesse processo. Neste sentido, continuarmos a olhar para este período da história e do mundo como uma “epopeia marítima” ou um processo de “descobrimentos” e “intercâmbio de culturas” contribui certamente para ocultar parte significativa destes processos: a intenção estrategicamente definida de conquistar e subjugar pela violência outros povos e territórios. Ajuda a perceber como Portugal contribuiu para o desenvolvimento da cartografia na Tailândia, mas impede que se perceba porque fomos o primeiro e único povo europeu a ser expulso do Japão.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Covid-19 e economia (III) “If you know the enemy and know yourself, you need not fear the result of a hundred battles. If you know yourself but not the enemy, for every victory gained you will also suffer a defeat. If you know neither the enemy nor yourself, you will succumb in every battle.” Sun Tzu The Art of War [dropcap]A[/dropcap] pandemia que atingiu a Europa do Sul com muito mais força abre algumas possibilidades para se definir, e partindo da sua própria ideia de desenvolvimento para influenciar positivamente as outras economias e sociedade nacionais. Que a Europa do Norte tenha sido menos infectada e tenha menos mortos que a Europa do Sul não é um acidente. Apesar dos muitos incêndios, apesar da taxa de congestionamento nas suas cidades, o ar da Europa do Sul está menos poluído, a matéria particulada atmosférica, que muitos estudos demonstraram, ser um veículo importante para a propagação do vírus, está menos presente. Em todo o mundo, a Covid-19 atingiu as áreas onde o crescimento económico tem sido mais forte. Também aí os mais afectados foram os pobres, e se tudo voltar um tipo de parecer quase “normal” serão ainda os pobres de todo o mundo que mais pagarão, mas talvez pela primeira vez na história, a possibilidade está a abrir-se para imaginarem um novo tipo de desenvolvimento. Mesmo na Europa do Sul um desenvolvimento baseado nas riquezas que possui. A terra, a cultura, os seus jovens instruídos que terão cada vez menos oportunidades de migrar e que terão de tentar inventar ali as suas vidas. Pensar no seu território como uma ideia diferente de estar no mundo. Talvez olhando para a Europa do Norte, em vez do Norte que não cresce, para o Sul, onde há países cujas possibilidades de desenvolvimento são mais promissoras. Se houver paz, fim à dependência do petróleo e da mineração; se a energia da água, do sol e do vento for utilizada; se a diversidade biológica e cultural for preservada, a agricultura pode ser uma alavanca decisiva para a recuperação económica. Homologa monoculturas com o objectivo de exportar as próprias especificidades de cada país para o mundo em vez de seguir os modelos que outros impõem. É uma agricultura que regressa a ser de proximidade, o mais perto possível na produção e consumo, e precisamente por esta razão capaz de exportar os seus produtos como as muitas cooperativas fazem nos territórios retirados dos latifúndios, e aqueles onde os escravos dos campos se libertam para produzir um orgânico livre de pesticidas e de corporações. E na Europa do Sul é possível e realista criar cadeias energéticas limpas e locais para fornecer energia às indústrias de transformação de alimentos de qualidade e às pequenas e médias empresas localizadas nos sectores de inovação mais elevados, digitais e não, explorando no território o conhecimento que as universidades e os centros de investigação produzem e cuja maior inovação poderia ser gerar bens que duram e são reparáveis por muito tempo, e cujos componentes são concebidos para serem reciclados. Um desenvolvimento local verdadeiramente circular, porque não polui e produz o mínimo de resíduos possível. Um modelo de desenvolvimento local que também pode falar aos países, aqueles que terão de pensar de novo e regenerar-se, depois de terem prosseguido um crescimento que envenenou o ar e a terra, e se reduziu ao desperdício produzido, mulheres e homens que também terão de repensar como dar valor às suas áreas internas e de pobreza e marginalidade que também existem dentro das fronteiras. Neste contexto, é também necessário tirar o turismo dos velhos termos do turismo de massas, que tem esmagado as cidades de arte ao ponto de pôr em perigo a sua sobrevivência, o que as tem desertificado como cidadãos, transformando bairros inteiros em lugares para alugar a cada dia; retomar esse modelo seria não só um desastre do ponto de vista ambiental e climático, mas também profundamente irrealista. Durante algum tempo, não teremos exércitos de turistas vindos de todo o mundo para fazer visitas controladas por agências, nem navios de cruzeiro cheios de pessoas que se aglomeram em visitas rápidas às cidades mais badaladas e depois são desviados para alguma saída ou aeroporto usado por algumas nacionalidades desejosas por aterrar na Europa. Os aeroportos, que os fortes poderes, continuam a invocar quererem construir deixou de ser importante. Quando os europeus começarem a mover-se, terão de ir para lugares onde o ar esteja limpo, a distância entre as pessoas possível, a arte e a beleza ancoradas à vida dos cidadãos e à paisagem que os acolhe. As pequenas cidades no interior serão o destino, mais do que os endereços canónicos e as grandes cidades. Se quiserem entrar nos novos tempos que nos esperam, terão de recuperar a beleza da vida que perderam. O vazio dos turistas nos centros históricos das grandes cidades é preocupante, mas o que importa e deve inquietar mais do que qualquer outra realidade é o vazio dos cidadãos. Também deste ponto de vista, a Europa do Sul e as áreas interiores poderiam ensinar algo aos lugares mais ricos e mais “desenvolvidos”. A agricultura, indústria jovem e de qualidade, energia limpa, ar saudável, turismo generalizado, diálogo com os países do Sul e hospitalidade para aqueles que vêm do mar em busca de um futuro. Estes são os elementos para um desenvolvimento local que redime a Europa do Sul e a torna um ponto de referência para o desenvolvimento de toda a Europa. Contudo, será necessário investimento público para preencher a lacuna da cidadania nas áreas interiores e não apenas nas grandes metrópoles. As pessoas fugiram das zonas interiores porque não havia maneira de chegar e sair; porque muitas vezes as grandes infra-estruturas, as auto-estradas, os caminhos-de-ferro de alta velocidade, faziam um vazio à sua volta; porque as estações e os caminhos-de-ferro periféricos fecharam. E pouco a pouco as bibliotecas, escolas, lojas, farmácias, em muitos casos até as estações de correios desapareceram. As lojas locais são as que tornam a vida possível em regiões de muitos países, mas são também as que precisam de ser defendidas na periferia das nossas cidades. Apoiando para que o vírus não os mate, mas pensando para mais tarde num regime fiscal de apoio, talvez financiado pelo que a Amazon deveria pagar, e desencorajando a propagação de híper e supermercados, que têm sido as únicas realidades em muitas cidades que preencheram os espaços deixados vazios pelas indústrias fechadas. As primeiras obras para as quais se deve dar a mão terão de ser aquelas que servem para consertar o território ferido, para voltar a tornar habitável o que se deixou ir para o abismo. E os primeiros grandes investimentos culturais terão de ir para os municípios e associações que mantiveram viva a cultura e história desses territórios, que redescobriram e fizeram descobrir o prazer de visitar os bosques, o campo, o conhecimento e a vida passada e presente da sua natureza. Antes dos museus e das grandes exposições devemos reabrir a possibilidade de experimentar arte e cultura em lugares cheios de história mas esquecidos. Haverá necessidade de jovens arqueólogos e historiadores de arte, biólogos, jovens capazes de desenhar estradas e escolas e de interligar o seu pequeno mundo renascido com o grande mundo, jovens, e há muitos deles, não em busca de riqueza e consumismo, entre outras coisas cada vez menos possíveis, mas de um trabalho que dê sentido às suas vidas e às vidas dos outros. E assim tentar inverter o curso que levou ao abandono de países e territórios interiores para aglomerar os megalópoles, com o resultado de ter em conjunto o crescimento da poluição urbana e a desertificação de territórios inteiros. Para a Europa do Sul é talvez mais decisivo do que para qualquer outro país que o New Deal inventado em Bruxelas mas que se verá insuficiente possa reiniciar a economia e a sociedade verde. São os países em que as consequências seriam mais graves se a necessidade de um novo começo fosse ofuscada pela indispensabilidade de uma reconversão ambiental da economia. A começar pela indústria deverá colocar-se dinheiro público para reiniciar os negócios. Mario Draghi tem razão pois sem nova dívida pública, há falência. Mas precisamente por esta razão, porque uma lógica pura de mercado não se mantém; porque mesmo os mais teimosos dos liberalistas apelam à intervenção do Estado, é possível e necessário colocar condições sobre a transferência de recursos públicos para o sistema empresarial. Nem todas as dívidas são iguais. A saúde, investigação e educação são investimentos decisivos se quiser construir um sistema industrial capaz de escolher qualidade e inovação. E por isso deve ser legítimo contrair dívidas, garantir direitos constitucionais essenciais, mas ao mesmo tempo planear um desenvolvimento de qualidade, e não de pura concorrência, limitando ainda mais o custo do trabalho e dos direitos. E nas empresas, esta pode ser uma das condições, encorajando também com recursos públicos percursos de aprendizagem ao longo da vida, por um lado ligados às transformações organizacionais e de produto das empresas, e por outro ao desejo de crescimento civil e cultural dos trabalhadores. A superação de toda a discriminação de género pode e deve ser também uma condição, intervindo tanto nas diferenças salariais que ainda penalizam as mulheres, como nos bloqueios dos percursos profissionais. As empresas devem ser obrigadas a fazer um balanço energético, e a explicitar as acções que pretendem empreender para poupar energia, e a utilizar energias renováveis. A este respeito, serão necessárias iniciativas para facilitar o crédito às empresas, reforçando as garantias estatais para os bancos que optam por suspender o crédito aos poluidores e deslocar a sua actividade para o apoio aos que se convertem às energias renováveis e à sustentabilidade, para o ambiente e para os trabalhadores. Outra condição possível e necessária é o compromisso de não despedir e de não deslocalizar a sua produção e os seus escritórios fiscais para fora de cada país; de não utilizar a externalização de partes da produção para dar trabalho a empreiteiros com contratos e direitos inferiores aos que seriam devidos aos trabalhadores ao abrigo de contratos nacionais. As transformações produtivas necessárias para garantir a saúde daqueles que trabalham, tais como as resultantes de reconversões, devem ser obrigatoriamente negociadas e partilhadas com os sindicatos de trabalhadores. Mas será também decisivo redefinir as empresas com participação pública, colmatando as pesadas omissões do passado. O fim da política industrial de muitos países data do tempo em que foi decidido privatizar para ganhar dinheiro e reduzir a dívida pública, sem qualquer projecto de desenvolvimento industrial na base. A venda de algumas indústrias públicas significou também o encerramento de importantes centros de investigação industrial, que constituíram a interface quase única entre as universidades, a investigação e o sistema industrial. Raciocinar em termos de mercado puro e simples significava encerrar e reduzir as actividades que seriam decisivas para uma conversão verde. Historicamente, em todo o mundo, a maior parte do investimento público em investigação passou dos militares para os militares, aquele para o qual os recursos não eram medidos e para o qual todas as dívidas eram permitidas com repercussões importantes também em outros campos. Sem um forte investimento estatal destinado a gerir o sistema de defesa americano de uma forma mais descentralizada e menos vulnerável, a Internet nunca teria nascido. O desafio é ver se somos capazes de tornar a saúde, a luta contra o aquecimento global, a mobilidade inteligente uma alavanca pública para a investigação e a inovação produtiva tão importante e mais relevante do que qualquer tema militar ou geoestratégico. Este não é um desafio pequeno, e no qual uma grande parte do nosso futuro e do futuro do mundo está a ser jogado. E esta poderia ser a missão fundamental na Europa do Sul para redefinir o futuro de uma indústria pública esmagada pelo extractivismo e pela guerra de outros. Há esperança, mas uma das realidades que se tem dificuldade em aceitar, emocionalmente, é que estamos apenas no início desta crise. Em muitos países as taxas de mortalidade estão a diminuir, mas noutros estão a começar a subir e vice-versa. Há países que conseguiram controlar aparentemente o vírus isolando-se a si ou do resto do mundo, mas é difícil ver outros a fazê-lo, a longo prazo. Até obtermos uma vacina eficaz, vamos ter de encontrar formas de viver com este vírus. Uma abordagem, para os países que o podem controlar, significa distanciamento social, uso de máscaras em público, muitos testes, e rastreio extensivo. Testes generalizados, juntamente com rastreio, significam que as pessoas que foram infectadas podem ser detectadas, isoladas, e tratadas antes de o espalharem a outras pessoas. Mas fazê-lo envolve grandes questões de privacidade. Uma lei de emergência como da Coreia do Sul significa que as entidades oficiais podem localizar os movimentos utilizando câmaras de vigilância e acedendo a dados a partir do nosso telefone. Quem se tiver cruzado com alguém que tenha testado recentemente positivo, é-lhe enviado um texto e é-lhe dito para reportar a um centro de testes. Se o teste for positivo, pode ser enviado para um abrigo governamental ou mandado para casa, dependendo das circunstâncias. Se o teste for negativo, ainda tem de se auto-isolar e descarregar uma aplicação que informa a polícia se sair à rua. Pode ser preso ou enviado para a prisão por não cumprimento. Alguns países, como o Reino Unido, estão a experimentar o uso voluntário de aplicações de rastreio, para que as pessoas saibam quando tiverem sido expostas ao vírus. Mas especialistas dizem que para ser eficaz, pelo menos 60 por cento da população precisaria de descarregar e utilizar a aplicação. Será que um número suficiente de pessoas o faria voluntariamente? Agora que existem testes de anticorpos fiáveis, podemos também obter a utilização generalizada de passaportes de imunidade. Estes seriam documentos digitais, provavelmente guardados no telefone, que provam que foi infectado e que está imune (o que parece não ser o caso) . As pessoas com passaportes imunitários seriam autorizadas a regressar ao trabalho e a uma vida diária relativamente normal. Mas os passaportes de imunidade estariam abertos à fraude, e algumas pessoas, que testam negativo, poderiam ser tentadas a tentar ser infectadas para que possam obter um passaporte de imunidade. Seguindo em frente, teremos quase certamente de utilizar uma abordagem de “levantar, suprimir, levantar” ao distanciamento social. As crianças regressarão à escola, as universidades abrirão, e as restrições às reuniões sociais serão relaxadas. Mas assim que houver sinais de que o vírus se está a espalhar novamente, os travões continuarão a funcionar. A incerteza contínua será extremamente prejudicial para a economia. A par dos prejuízos para a economia, é provável que haja uma segunda e terceiras vagas como aconteceu no passado, não só mais infecções mas também mais doenças mentais. Durante a última recessão, de 2007 a 2009, o aumento do desemprego levou a um pico nas taxas de suicídio nos Estados Unidos e na Europa, que aumentou em mais de dez mil pessoas. Abraços, apertos de mão, e grandes encontros sociais são o menu inexistente para o futuro previsível. As pessoas estão a tornar-se intensamente ansiosas para sair de casa e conviver. O que irá acontecer às pessoas idosas? Como podemos mantê-los a salvo sem os conservarmos fisicamente isolados? Pelo lado positivo, espero que as pessoas continuem a lavar as mãos, o que poderá reduzir drasticamente o risco de outro grande surto. Espero que viajemos menos e trabalhemos mais a partir de casa. Apreciaremos mais os nossos profissionais de saúde e as pessoas que trabalham na assistência social. Esta crise pode, paradoxalmente, tornar-nos mais comunitários. Pode até fazer-nos preocupar mais com o estado do planeta, exercer pressão sobre os políticos para acabar com o comércio ilegal de espécies ameaçadas, que desempenharam um papel tão importante na actual crise. Vai ser um longo e difícil caminho de regresso a qualquer forma de normalidade. Mas se formos optimistas, temos de esperar que esta pandemia faça sobressair o melhor de nós e reúna o mundo para lidar mais efectivamente com os futuros desafios globais.
Manuel de Almeida VozesTudo é disperso, nada é inteiro “Ninguém sabe que coisa quer. Ninguém conhece que alma tem, Nem o que é mal nem o que é bem. (Que ânsia distante perto chora?) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro” Fernando Pessoa (1888 – 1935) em [dropcap]T[/dropcap]odos sabemos que uma evidência não é absoluta garantia da extinção da polémica – “a nossa História pertence-nos é como a colonização: reprimiu-nos mas não nos roubou as almas, transformou-nos mas não nos mudou a identidade”. Uma divergência nunca se deve transformar numa dissidência. Por vezes o inaceitável é facilmente aceitável, fruto do sistema que criámos para “viver”. Não no que somos, mas sim como vivemos/pensamos. Um escândalo em câmara lenta vai deixando de escandalizar, de forma lenta – existe mas torna-se dissolúvel. Já poucas ou nenhumas forças nos restam para lutar. Não podemos viver de abstrações filosóficas ou doutrinárias. Temos de transgredir, transformar o presente. A vulneralidade não será uma experiência existencial? Omite-se a verdade conscientemente. Interrogação do poder fundador das palavras – crítica da linguagem (?) – ou palavras exaltadas. A sociedade civil tem de ter capacidade intectual para resolver alguns dos vários problemas que se nos colocam neste “mundo” contemporâneo. Não podemos esperar por ordens superiores para organizar diferentemente as “nossas” vidas. Valores, normas, estratégias, ética, criatividade, lazer, solidariedade, para combater causas “imperiais”, ambiente, património, racismo, xenofobia, repressão consumo, autoritarismo, capitalismo, globalização, energia, destroços, remendos do dia a dia,…… ou seja tornar o ilimitado limitado – sem silêncios discretos. Temos de procurar uma maior dignidade para as nossas vida. Não nos podemos excluir da mudança. Temos de saber cruzar, intersectar a consciência global com a inquietação individual (procurar um mundo de recolhimento intelectual). A ignorância é a causa podre do desrespeito. Respeitar é conhecer. Até porque nunca é tarde para emendar, mas é preciso corrigir o rumo. Falta-nos a capacidade da incapacidade. Temos de saber governar o “nosso” poder. Não podemos usar o “nosso” poder para nos destruirmos – usemos a “nossa” Voz. É o iludir da razão, desiludindo os pensamentos. Sem justificações. As misérias vêm ter connosco. São as misérias que nos conhecem. O que estamos a viver e a forma como vivemos é um problema político, que exige respostas cívicas. É que não poucas vezes protegemos o atrevimento, a ignorância, o demérito, a incompetência, a deslealdade. Esta misteriosa continuidade entre aparição e dissolução, entre presença e indefinição. Fazemos escolhas por defeito. Desprezamos o pensamento. Improviso? Mudados os tempos, de tolerantes e livres, os tempos de ontem, a inflexíveis e obstruídos, os tempos de hoje…mudados os tempos. Temos de saber reinventar as nossas aspirações – “ com o optimismo de quem anseia alívio e sem a euforia de quem espera transformações”. Sociedade obediente, silenciosa e submersa como se nos estivessem a pagar a ociosidade e os privilégios (?). Sem modelo, nem definição. O grande problema são as visões monolíticas da sociedade. Não existem contradições (pensamentos). Hesita-se muito entre a teoria e a prática, ou por outras palavras, entre a acção e o pensamento, mas, ao não se saber gerar pensamento, não se estimula o debate de ideias. Procuram-se… É preciso termos tolerância contra os dogmas e pragmatismo contra a utopia. Até porque não vamos incutir ao povo noções desajustadas da realidade. Como alguém disse: “Utopia é pensar que podemos continuar como até aqui, quando tudo indica o colapso de uma civilização baseada na competição, na ganância, na opressão, na exploração e na violência contra o outro, seja o humano, o animal ou a Terra”. Os pavões não dormem à noite e só gritam quando sentem o tigre….. “A tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para descobrir o que significa estarmos no mesmo barco.” Luís Vaz de Camões em , Canto IV
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesTribunal virtual II [dropcap]A[/dropcap] semana passada, analisámos a introdução de uma novidade no sistema jurídico da China continental – o Tribunal Virtual. O Tribunal Virtual é uma aplicação que liga todos os tribunais do país e que permite a interacção de juízes, procuradores, advogados de defesa, queixosos e réus e possibilita o julgamento online. Hoje, vamos tentar perceber o tipo de problemas que este sistema pode implicar. Os tribunais online surgiram nos Estados Unidos nos anos 90. Embora nessa altura os telemóveis fossem muito diferentes do que são hoje, já existia internet. Inicialmente destinavam-se apenas a resolver conflitos relacionados com o comércio online. Com o passar do tempo o campo de acção destes tribunais foi-se alargando aos servidores de email e de serviços móveis e ainda a outras áreas, como dívidas e crédito mal parado, desde que o delito em causa fosse de gravidade menor. Desde de Novembro de 2019 que o Reino Unido tem em funcionamento um tribunal online para julgar casos de dívidas inferiores a 10.000 libras. No Canadá, o Tribunal Cível online julga casos de dívidas até 5.000 dólares canadianos. Na Turquia o departamento jurídico está totalmente informatizado, permitindo aos advogados descarregar ficheiros, pagá-los e submeter os documentos online. Com base nesta experiência, podemos ver que muitos países e regiões têm tribunais online, mas nenhum deles possui um programa que dê assistência às partes em litígio. O Tele Tribunal da China é de facto o primeiro a nível mundial a integrar todo o processo e toda a documentação jurídica, tendo em vista uma maior eficácia. É fácil de perceber e de utilizar e é da maior conveniência para os litigantes e para as instituições jurídicas. Esta plataforma é algo de que nos podemos orgulhar. Na medida em que as partes e os funcionários não se deslocam ao Tribunal, o julgamento só começa depois do programa efectuar o reconhecimento facial. E aqui surge a primeira questão. E se alguém forjar ou obtiver por meios ilícitos os dados que permitem o reconhecimento facial? Como é que o tribunal se pode proteger desta eventualidade? Na abertura do processo, deverá perguntar-se se é vontade expressa dos litigantes recorrer ao julgamento online? Se ambas as partes concordarem, será aconselhável deslocarem-se pelo menos uma vez ao tribunal para que se faça um reconhecimento presencial antes do julgamento? Pela mesma lógica, neste sistema é impossível fazer uma verificação física das provas. As partes têm de aceitar as provas incondicionalmente antes do julgamento. Se pensarmos que os litigantes se devem deslocar ao tribunal para se proceder ao reconhecimento facial, deve também considerar-se a possibilidade de, nessa altura, fazerem o reconhecimento das provas. É a solução mais adequada. Os tribunais online utilizam ferramentas electrónicas com câmaras integradas. Se uma das partes fizer um vídeo do julgamento, pode usá-lo contra o juiz, na eventualidade de perder o caso, tornado-se desta forma numa arma de retaliação. Esta situação agrava-se nos países ou regiões onde o resultado do julgamento depende do júri. Se os rostos dos jurados aparecerem na gravação, as suas vidas podem correr risco. Terá de ser pensada uma forma de impedir estas gravações. A segurança das pessoas é um factor determinante para decidir que casos podem ser julgados desta forma. Claro que um caso de dívida não levanta problemas. Podem também ser elegíveis, assuntos familiares como divórcios e heranças. Só podem ser julgados online réus que não arrisquem pena de prisão; esta é também a prática britânica. Se estivesse em causa uma pena de prisão, não haveria maneira de evitar o risco de fuga após o pronunciamento da sentença. Quer o julgamento se realize num tribunal físico ou num tribunal online, as partes são obrigadas a juramento sobre a veracidade das suas declarações. O juramento é uma cerimónia solene. Será que o juramento online pode ter a mesma solenidade e criar o impacto pretendido? Ou seja, deixar bem claro o aviso que, caso as declarações sejam falsas, o declarante arrisca pena de prisão? Poderá o tribunal assegurar que as partes compreendem as consequências de declarações incorrectas? Na situação de pandemia que vivemos, é necessário o distanciamento social e, como tal, reduzir o número de julgamentos presenciais. Por isso, é adequado optar pelos julgamentos online. A lei define os padrões básicos dos nossos comportamentos. Os procedimentos jurídicos garentem que a lei é correctamente aplicada. Os procedimentos jurídicos não podem falhar, caso contrário a justiça não será feita. Por isto, a implementação dos interrogatórios online deve assegurar que os procedimentos são respeitados, não podem ser apressados e cada passo deve ser verificado, de outra forma os interesses dos envolvidos não serão respeitados. Não nos esqueçamos que estes interrogatórios são feitos através de telemóveis e de computadores. Se os juizes e os advogados não tiverem suficiente preparação informática e as partes envolvidas não tiverem computadores pessoais, pode ocorrer um grande número de problemas técnicos que conduzirão a deficiências nos interrogatórios. Só quando todas estas questões tiverem resposta, poderemos considerar a próxima pergunta – Macau tem condições para implementar julgamentos online? Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesA estratégia do bridge O “Mahjong” é o jogo de mesa mais popular na China. É estranho que os chineses se interessem tanto por jogos individuais, como o “Mahjong” e o “Pai Gow”, onde não entra em linha de conta o espírito de equipa. Excepção à regra foi Deng Xiaoping, o líder supremo da República Popular da China entre 1978 e 1989, que tinha uma paixão pelo bridge, possivelmente por ter estudado em França. O bridge é um jogo de cartas com 4 jogadores divididos em duas equipas de 2. Além do factor sorte, a estratégia e o entendimento entre os parceiros de equipa é essencial. O meu conhecimento deste jogo não é muito aprofundado, mas estou plenamente convencido que para um líder político é do maior interesse estudar a sua estratégia. Pensemos em Hong Kong como um campo de batalha entre a China e os Estados Unidos, sendo o comércio a arma a que ambos recorrem. A China não pode à partida ter os trunfos porque os Estados Unidos são uma super -potência. Pelo contrário, sempre que a China faz um movimento estratégico, os Estados Unidos tiram proveito dessa jogada e colocam-na numa posição passiva. Outro factor de grande importância neste jogo é a escolha dos parceiros. Os Estados Unidos têm do seu lado o Reino Unido, a França, a Alemanha e o Japão, ao passo que a China tem a Coreia do Norte, Cuba, o Irão e o Paquistão. Basta olhar para este alinhamento, para perceber que o cenário não é favorável à China, cujo maior vizinho é a Rússia que acabou de celebrar o 160º aniversário da conquista ao Império Qing da cidade portuária de Vladivostok. Por enquanto, a Rússia não é inimiga da China, mas também não é aliada. No quadro actual, se a China jogar a carta errada vai fracassar. As relações internacionais são um jogo de força e de habilidade. Quando Deng Xiaoping visitou os Estados Unidos, estava plenamente consciente de que a ideia de “ultrapassar a Grã-Bretanha e ombrear com os Estados Unidos” não passava de um slogan político. Por isso, o caminho certo era continuar com a política de reformas e de abertura da China ao mundo, e o recurso à ciência e tecnologia ocidentais para promover a economia chinesa. De facto, a China demonstrou a sua capacidade para se tornar “a fábrica do mundo”, devendo-se grande parte desta eficácia ao seu dividendo demográfico. Deng Xiaoping afirmou certa vez, que as reformas e a abertura iriam enriquecer inicialmente um pequeno grupo de pessoas, mas que depois a riqueza se iria estender a um grupo muito maior. Infelizmente, as reformas políticas na China não conseguiram acompanhar o ritmo das reformas económicas, tendo conhecido um enorme revés em 1989 (com o incidente de 4 de Junho). O desenvolvimento económico da China durante os últimos 30 anos atingiu o nível da “bolha”, e as reformas e a abertura passaram a estar envolvidas em corrupção. Para reverter esta tendência, é necessário reformar o sistema político porque um governo autocrático não é a solução do problema. Um jogador de bridge experiente pode transformar uma “má mão” numa “boa mão”, mas um jogador pouco hábil pode fazer precisamente o contrário. Desde que Hong Kong promulgou a “Lei de Defesa Nacional para Hong Kong” a 1 de Julho, as perseguições tornaram-se frequentes. Comparando com Macau, onde a “Lei relativa à defesa da segurança do Estado”, entrou em vigor em 2009, e onde nunca houve qualquer tipo de instabilidade, recordamos a teoria política do filósofo chinês Laozi, que afirmava que se um Governo for clemente o povo será honesto. Quanto mais duras forem as medidas políticas, mais o povo terá vontade de se rebelar contra elas. Quanto mais severa for a lei, maior será a vontade do povo de a violar. É uma situação que se assemelha a “jogar bridge”, na medida em que os jogadores têm de manter o sangue frio se quiserem ganhar o jogo. É isto que explica porque é que Deng Xiaoping conseguiu atravessar “vários altos e baixos” na sua carreira política e mesmo assim ter-se tornado o arquitecto do plano de Reformas e de Abertura da China. O Governo de Macau, confrontado com o surto de Covid-19 e com a necessidade de recorrer à sua reserva financeira para colmatar os problemas económicos internos, vai precisar da ajuda do Governo Central. Para já, não tem outra forma de lidar com o impacto da pandemia. O que é digno de louvor é ter-se mantido de cabeça erguida e não optar por seguir certas tendências de forma indiscriminada.
João Romão VozesRacista sou eu [dropcap]V[/dropcap]ivo num país onde se apreciam os transportes públicos, claramente preferidos em relação ao automóvel nas deslocações quotidianas nas grandes cidades: não é coisa de pobre, é uma questão de racionalidade do urbanismo, da ecologia e da qualidade de vida. Naturalmente, além da inevitável bicicleta, também utilizo estes transportes: um comboio convencional e um “monorail” quase diariamente e autocarros muito ocasionalmente. Também é natural que os veículos estejam frequentemente cheios em zonas urbanas, ainda que a ocupação tenha, felizmente, diminuído bastante nos tempos em que as vivências em espaços públicos são manifestamente afectadas pela presença do covid-19 – ou pelo menos pela ominipresença de um mais que justificado e generalizado medo. O que é menos “natural”, tendo em conta a quantidade de gente que usa estas formas de transporte, é que raramente alguém se sente ao meu lado. Não deixa de ser bastante conveniente e simpático nos tempos que correm, mas sempre causa algum “desconforto”, para dizer o mínimo, em tempos de convivências “normais”, ou pelo menos não afectadas pelo temor de contágios potencialmente mortíferos. Não é coisa minha e já mais de uma vez encontrei textos com descrições semelhantes escritos por pessoas estrangeiras a viver no Japão – o “síndroma do lugar vazio”, como lhe chamou um desses cronistas do ciberespaço. Poderá haver diferentes causas, explicações e motivações para o fenómeno, mas na generalidade dos casos este manifesto ostracismo só é ultrapassado com pessoas que me conhecem – amizades, colegas ou alunas que ocasionalmente coincidam comigo num transporte público. Outra peculiaridade japonesa tem a ver com a utilização de um alfabeto (o chamado “katakana”) exclusivamente utilizado para a adaptação de palavras com origem em línguas estrangeira – normalmente o inglês, ou na realidade o americano, já que é dos Estados Unidos que chegam os grandes impactos culturais, económicos ou políticos. A utilização deste alfabeto implica algumas curiosas mutações, já que há regras que têm que ser mantidas, por exemplo em relação aos sons. Uma delas, com efeitos muito significativos, é que as palavras terminam sempre com o som de uma vogal (com excepção do som “m”). Aliás, mesmo as sílabas no interior das palavras têm que terminar com sons de vogais. Uma das muitíssimas palavras que sofre pesadas mutações neste contexto é a palavra “half” (metade, em inglês), que na adaptação ao “katakana” se torna “ha-fu”, com um “a” vagamente prolongado e um “fu” final que lhe dá um toque quase insuspeito de se querer dizer “half”. Vem isto a propósito de ter rapidamente reparado que a minha filha, recentemente nascida no Japão, com mãe japonesa, e certamente portadora de enorme graciosidade, era carinhosamente tratada na maternidade onde nasceu como “ha-fu”, a expressão que, vim a saber agora, é generalizadamente utilizada para designar descendentes de uma pessoa japonesa e de uma pessoa estrangeira. Por ser tão graciosa rapidamente se tornou bastante popular entre o pessoal do hospital, mas ainda assim é “ha-fu”, meia-pessoa, portanto, designação com a qual terá que viver enquanto cá estiver e para a qual teremos certamente as nossas estratégias de defesa e contra-ataque rápido, sempre que for caso disso. Vêm estes casos sintomáticos de um certo racismo estrutural e estruturante, não violento nas suas manifestações imediatas mas não necessariamente inóquo nas suas consequências pessoais, sociais ou políticas, a propósito da vaga racista que tem crescido um pouco por todo o lado, auto-legitimada pela representatividade institucional de movimentos abertamente xenófobos e/ou fascistas, como podemos testemunhar também em Portugal. Pela parte que me toca, não é de agora, que estou no lado da minoria, que o assunto me preocupa: já nos anos 90, numa das minhas primeiras crónicas na imprensa comercial, tinha escrito sobre racismo após o assassinato de Alcino Monteiro. Volto ao tema após o bárbaro assassinato racista do Bruno Candé: este racismo manso e sonso com que vivemos quotidianamente não deixa de ser discriminatório todos os dias, mesmo se a violência extrema de um assassinato ocorra raramente. Está tudo lá, contra os que são menos e estão na posição mais débil. O mínimo que a decência nos exige perante a discriminação sistemática é usar a nossa posição de privilégio para estar ao lado e defender quem é atacado e discriminado. Foi por isso que cedo me juntei a grupos como o SOS-Racismo, lá vão uns 30 anos, e por este lado destas trincheiras vou ficando, que o mundo ainda não está para esta trégua. Nada disto me impede, infelizmente, de usar também conceitos e formulações racistas. Continua a ser para mim um exercício sistemático contrariar as ideias e o contexto da sociedade em que fui educado – e em que o racismo e as inerentes discriminações estão profundamente enraizadas, estruturando em grande medida a forma como olhamos para outras pessoas ou sociedades: os franceses que são pretensiosos, os ingleses que são snobs, os espanhóis que não são de fiar, uns bêbados, os russos, umas putas, as russas e as brasileiras, uns gandulos, os marroquinos ou mesmo os alentejanos e até eu próprio, algarvio. Um saco de porrada para todas as ocasiões, os pretos. Não é só em anedotas que se traduzem todos os estereótipos e preconceitos com que olhamos para pessoas, de formas só aparentemente inofensivas: isto estrutura, de facto, formas de discriminação. Contrariar essas formas de violência no meu próprio pensamento continua a ser uma tarefa que tomo como essencial para poder olhar o outro como a pessoa que é e não como o rótulo que lhe foi colado. Há uma educação e uma sociedade profundamente racistas que nos deram a todos estas formas de olhar de cima para baixo sobre toda a diferença. Reparo, entretanto, na quantidade enorme de pessoas que na imprensa ou nos ciberespaços da vida contemporânea garantem que não são racistas, enquanto discutem acaloradamente se o seu país é ou não racista. Uma discussão estéril e inconsequente, evidentemente, que atira para longe o olhar que devia ficar perto: em vez dessa imprecisa generalização de “o país”, talvez fosse mais produtivo cada pessoa olhar para si própria, como o racismo estrutura tão frequentemente o seu próprio olhar e como procurar que esse olhar tantas vezes preconceituoso e redutor não se traduza em discriminações e formas de violência sobre as outras pessoas.
Olavo Rasquinho VozesOs nomes dos tufões e de outras tempestades [dropcap]A[/dropcap] questão dos nomes dos ciclones tropicais tem sido alvo de curiosidade, havendo, no entanto, uma certa confusão sobre este assunto. Na realidade, em torno do globo terrestre, há várias bacias onde se desenvolvem este tipo de tempestades, as quais, devido a tradições há longos anos arreigadas nas populações, são identificadas por designações diferentes. A prática tem demonstrado que a identificação dos furacões, tufões e ciclones com nomes próprios, contribui para que os cidadãos prestem mais atenção à sua evolução e possíveis consequências. No entanto, em cada uma destas regiões, os critérios adotados para esse efeito são diferentes. As principais zonas de formação e desenvolvimento de ciclones tropicais, e as respetivas designações gerais, são as seguintes: Atlântico Norte (incluindo Mar das Caraíbas e Golfo do México) – Furacões Zona central e leste do Pacífico Norte (a leste da linha de mudança de data) – Furacões Oeste do Pacífico Norte e Mar do Sul da China – Tufões Oceano Índico (Golfo de Bengala e Mar da Arábia) – Ciclones Oeste do Pacífico Sul e sueste do Oceano Índico – Ciclones (Ciclones Tropicais Severos) Sudoeste do Oceano Índico – Ciclones (Ciclones Tropicais) Fora destas regiões ocorrem esporadicamente fenómenos meteorológicos com as características de ciclones tropicais. É o caso dum ciclone tropical que se formou no Atlântico Sul, em março de 2004, e que afetou o Brasil. Por ter ocorrido no Atlântico Sul, não foi aplicado um nome da lista de furacões previamente elaborada, pelo que, com certa controvérsia, os meteorologistas brasileiros lhe chamaram Catarina, por ter afetado o Estado de Santa Catarina. Tem acontecido, embora raramente, furacões passarem a ser designados por tufões, quando se deslocam para oeste, no Pacífico Norte, depois de transpor a linha internacional de mudança de data. Inversamente, um tufão pode passar a furacão quando se desloca de oeste para leste, atravessando essa linha. Tal aconteceu com o furacão John em 1994 que, tendo-se formado no Atlântico Norte, atravessou a América Central, entrou no Pacífico e, continuando a deslocar-se para oeste, atravessou o meridiano 180, entrando na região dos tufões. A certa altura inverteu o sentido do movimento e reentrou na parte leste do Pacífico, voltando a ser classificado como furacão. A coordenação das atividades de cooperação nas várias bacias é levada a cabo por organismos regionais (comités) do Programa dos Ciclones Tropicais da Organização Meteorológica Mundial – OMM (WMO Tropical Cyclone Programme). São estes comités que, sob proposta dos respetivos membros, estabelecem os critérios e selecionam os nomes das tempestades. Na bacia onde a Região Administrativa Especial de Macau está inserida (Oeste do Pacífico Norte e Mar do Sul da China), os nomes dos tufões constam de uma lista que se pode consultar no site do Comité dos Tufões (WMO/ESCAP Typhoon Committee – www.typhooncommittee.org), cujo secretariado está sediado em Macau desde 2007. Os nomes são propostos pelos membros dos vários comités, e são discutidos nas sessões anuais. No caso do Comité dos Tufões, cada um dos 14 membros propôs dez nomes, o que perfez uma lista de 140. Os nomes são retirados quando estão associados a tempestades que causaram estragos significativos, pelo que a lista tem de ser atualizada nas sessões anuais do Comité. Por exemplo, o nome do tufão Hato (Pombo, em japonês), que causou um número elevado de vítimas nas Filipinas, Macau e China, já não consta da lista. Em geral os nomes dos ciclones tropicais são de pessoas, alternadamente masculinos e femininos, dispostos por ordem alfabética, com exceção na bacia em que Macau se insere, e também no Mar da Arábia e Golfo de Bengala. No caso dos tufões, os nomes podem ser de animais, monumentos, objetos, etc., e estão colocados sequencialmente, sem ser por ordem alfabética, não podendo ter mais de três silabas. A pronúncia não deve ser suscetível de interpretações erróneas em quaisquer das línguas dos países membros. Já tem acontecido alguns nomes terem sido retirados, não pelo facto de as tempestades terem causado graves consequências, mas para evitar suscetibilidades religiosas. Entre os nomes propostos por Macau contam-se Bebinca (nome de uma conhecida sobremesa com origem indo-portuguesa, muito popular em Macau) e Sanba, com origem na designação em chinês das Ruínas de São Paulo. Tempestade tropical Bebinca, no Golfo de Tonkin – 17/8/2018 O nome Bebinca já foi usado quatro vezes (2000, 2006, 2013 e 2018), até à presente data, e em nenhum dos casos passou de tempestade tropical severa. Bebinca – sobremesa de origem indo-portuguesa Antes do século XX, estes fenómenos meteorológicos eram geralmente identificados fazendo referência às datas das ocorrências ou aos locais onde as suas consequências mais nefastas se fizeram sentir. É o caso, por exemplo, do tufão que quase destruiu Macau de 22 para 23 de setembro de 1874, que causou cerca de cinco mil vítimas mortais. Quando se pretende referir esta tempestade, é simplesmente identificada por “Grande Tufão de 1874”. Outro exemplo é o caso do “Grande Ciclone Bhola” (Great Bhola Cyclone), o ciclone tropical que até à presente data é considerado o mais mortífero de todos, causando entre trezentas mil a meio milhão de vítimas, em 1970. Foi assim designado por ter afetado a região de Bhola, no então Paquistão Oriental. Ventos fortes da ordem de 200 Km/h provocaram uma maré de tempestade que, coincidindo com a maré alta, fizeram com que o mar invadisse grande parte do delta do rio Ganges. Devido à fraca resposta do governo central do Paquistão, esta tragédia provocou um forte sentimento que levou o povo do então Paquistão Oriental a intensificar a luta pela independência, o que aconteceu em 1971, passando o novo país a designar-se Bangladesh. A ideia de identificar os ciclones tropicais com nomes de pessoas parece ter sido do meteorologista inglês, Clement Wragge, radicado na Austrália, que iniciou essa prática na década de noventa do século XIX, dando-lhes nomes de mulheres, figuras míticas e políticos. No que se refere aos furacões, a partir de 1953 passaram a atribuir-se-lhes oficialmente, por ordem alfabética, nomes de mulheres, o que perdurou até 1978. Acontece que, com o crescimento do movimento de emancipação das mulheres, foi considerado que não seria correto atribuir exclusivamente nomes femininos a tempestades que causavam tanta destruição. A feminista norte-americana Roxcy Bolton foi quem mais lutou para que houvesse alternância de nomes femininos e masculinos. Bob foi o primeiro nome masculino a ser atribuído a uma tempestade tropical, em julho de 1979, tendo sido Ana o primeiro nome feminino desse mesmo ano. O sistema depressionário que dá origem a um tufão, furacão ou ciclone, começa por ser uma zona depressionária que vai evoluindo no sentido da diminuição da pressão atmosférica. Quando, nas cartas meteorológicas, é possível representar graficamente essa zona por um sistema de isóbaras fechadas, passa a designar-se por Depressão Tropical (Tropical Depression). Quando os ventos máximos sustentados forem iguais ou superiores a 34 nós (63 km/h) passa a Tempestade Tropical (Tropical Storm). Quando forem iguais ou superiores a 64 nós (119 km/h) passa a designar-se por Tufão, Furacão ou Ciclone, conforme as regiões. No caso do oeste do Pacífico Norte e Mar do Sul da China, há ainda a considerar uma categoria intermédia, entre a Tempestade Tropical e o Tufão, que é a Tempestade Tropical Severa (SevereTropical Storm), quando os ventos máximos sustentados atingem valores iguais ou superiores 48 nós (88 km/h) e inferiores a 64 nós. Note-se que o sistema depressionário só começa a ser designado pelo nome internacional quando atinge a categoria Tempestade Tropical. É frequente ouvir-se, ou ver-se escrito, que ocorrem anualmente cerca de vinte tufões nas Filipinas, o que na realidade não está correto, na medida em que esse número abrange não só os tufões, mas também as tempestades tropicais e as tempestades tropicais severas. Para evitar esta ambiguidade, o Regional Specialized Meteorological Centre do Japão (centro meteorológico de referência para os membros do Comité dos Tufões), nos seus relatórios, emprega frequentemente a expressão “named tropical cyclones”. No caso das Filipinas, além dos nomes internacionais, usam-se também nomes locais, para melhor sensibilizar o público. Por exemplo, o tufão Haiyan, que em novembro de 2013 causou neste país cerca de 6.000 vítimas mortais, foi chamado Yolanda. No caso dos furacões (Atlântico Norte e leste do Pacífico Norte) estabeleceu-se a escala de vento de furacões de Saffir-Simpson (Saffir-Simpson Hurricane Wind Scale – SSHWS), referentes a vento máximo sustentado (maximum sustained wind) no intervalo de um minuto: Categoria 1 – 64 a 82 nós (119–153 km/h) Categoria 2 – 83 a 95 nós (154–177 km/h) Categoria 3 – 96 a 113 nós (178–208 km/h) Categoria 4 – 114 a 135 nós (209–251 km/h) Categoria 5 – > 135 nós (> 250 km/h) Define-se ventos máximos sustentados (maximum sustained winds) num ciclone tropical, o valor máximo da média da velocidade do vento que se verifica na zona mais próxima do olho da tempestade, num determinado intervalo de tempo. A Organização Meteorológica Mundial aconselha que este intervalo seja de 10 minutos mas, na realidade, nem todos os países seguem este conselho, considerando intervalos de 1 e, em alguns casos, de 2 e 3 minutos. Esta disparidade de critérios faz com que não se possa aplicar aos tufões a escala de Saffir-Simpson, criada especificamente para os furacões. Nas mesmas condições, os ventos máximos sustentados referentes a intervalos de 1 minuto são superiores em cerca de 14% aos referentes a 10 minutos. Alguns países, além das categorias preconizadas pela OMM para os ciclones tropicais (Depressão Tropical, Tempestade Tropical e Tufão, Furacão ou Ciclone) adotaram também os conceitos de Super-Tufão e Super-Furacão, os quais não têm a mesma definição em todas as regiões. No caso da região onde Macau está inserida (oeste do Pacífico Norte e Mar do Sul da China), a tempestade toma a designação de Super-Tufão quando os ventos máximos sustentados são iguais ou superiores a 100 nós (185 km/h). Recentemente, na Europa, também se passou a identificar as depressões muito intensas alternadamente com nomes masculinos e femininos, por ordem alfabética. A Irlanda e o Reino Unido iniciaram esta prática em 2015 e, em 2017, o grupo de países constituído por Portugal, Espanha e França, mediante acordo entre os respetivos Serviços Meteorológicos, recorrem também a uma lista de nomes. A primeira depressão a ter nome em Portugal, foi Ana, em 2017, seguida por Bruno. Os cinco países acordaram no estabelecimento de uma lista comum. Analogamente ao que se procede no caso dos ciclones tropicais, os nomes são retirados das listas quando os estragos causados pelas tempestades são significativos.
Manuel de Almeida VozesO viver a existência das palavras AS PALAVRAS “São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Outras, orvalho apenas. Secretas vêm, cheias de memória. Inseguras navegam: barcos ou beijos, as águas estremecem. Desamparadas, inocentes, Leves. Tecidas, são de luz e são a noite. E mesmo pálidas verdes paraísos lembram ainda. Quem as escuta ? Quem as recolhe, assim, cruéis,desfeitas, nas suas conchas puras ?” Eugénio de Andrade (1923/ 2005), poeta. [dropcap]A[/dropcap]o escrever, o que me interessa é estabelecer encontros e desencontros entre diversas realidades. Ou partindo do sentido da reconversão fazer da desorganização uma organização ordenada de palavras, ou fazendo das divergências convergências de encontro de pensamentos, ou da inacção em acção de ideias, ou tornar o invisível, visível da realidade. Uma reconstrução – a sobrevivência. Não gosto de trocar a realidade pelas sombras projectadas ou imagens desfocadas, uma realidade que se transmuta – -, ou uma aversão à ambiguidade. Deixaram-nos na incumbência de interpretar a utilização manipuladora das palavras. Será que estamos a fazer o trabalho de casa? Não haverá uma subserviência ao politicamente correcto. O concreto não é irritante pelo que mostra, mas por aquilo que denuncia. Escrever é de alguma maneira subverter. Faz-me lembrar a história da borboleta – símbolo da metamorfose. A borboleta transforma-se, mas é livre (não há muitos). Vive pouco tempo, mas aproveita-o como ninguém. Defeitos (?) Alguns. Virtudes (?) Muitas – “quem não se contradiz, não diz nada”, então por estas bandas… A quantas metamorfoses já assistimos em Macau? A um número infinitivamente grande. Os portugueses são previsíveis e unânimes. Como se olha nos olhos de quem agiu ou age como se fosse dono? Existem muitas sombras no calcorrear da vida – subporções de ideias ou o obliterar da existência, porque perdemos a ressonância emocional. “Temos a tendência para Ler o que confirma as nossas ideias” – é preciso um esforço maior e saber questionar, já que o tempo dilata-se e a expectativa instala-se, despejamos os destroços enferrujados da memória. As palavras têm o poder de se reflectir como espelhos. As imagens opostas (a realidade) têm leituras invertidas. Cada um de nós é um manual profusamente ilustrado, com páginas soltas, com destinos traçados não que aguardem uma desgraça – com um sentido épico – numa das curvas da vida. As viagens são feitas de reflexões e memórias. Temos de viver menos com exclamações e ilusões e com mais interrogações, sem convenções e preconceitos. Esperam-nos desafios e adversidades. “A nossa capacidade de não ver as coisas é infinita. É que passamos a vida, por irresistível inclinação antropológica, a construir e a pintar mundos para nós mesmos” – na opinião do filósofo norte-americano, Nelson Goodman (1906 – 1998 ) – ,“a nossa indisciplina mental é perdulária”. Vivemos num Mundo de contradições. Há uma certa fragilidade e efemeridade da vida, há uma certa obscuridade do pensamento, o que nos torna almas ansiosas que necessitam de respostas. Ninguém no-las vai dar. Teremos de as saber encontrar. Saberemos (?), o tempo urge. A esperança faz-nos depreciar o presente. A mudança, como sabemos, começa quando começamos a pensar nela. Não nos podemos queixar, não tivemos uma disrupção inesperada, o que não temos de momento é capacidade de construir opostos – pontes -, pensamentos íntimos, é um malogro geracional, continuamos, enfim, uns prestáveis poetas…criamos fissuras para sobreviver, vivemos ainda de crenças, mas a um cidadão, nos tempos que correm, não lhe é permitida a ambiguidade, eu sei que nos conformamos desde que haja compensações. É o dilema da existência… “Os azares das palavras são mais terríveis que os azares do tempo!” Palavras – a sua influência depende de três coisas : “de quem as diz, da qualidade do que se diz e da frequência com que se diz” – as palavras. Segredos omitidos, palavras não ditas, saborear o saber da sabedoria, a insatisfação existêncial das palavras! “ As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um” Almada Negreiros (1893-1970)
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesOs dois modelos de Macau e de Hong Kong [dropcap]E[/dropcap]m Agosto, teve início a segunda fase do cartão de consumo de Macau. Ao contrário do que aconteceu na primeira fase, agora, a Macau Pass vai cobrar uma taxa de 0,5% sobre cada transacção efectuada com o cartão. O intuito original do cartão de consumo foi a promoção do consumo e da economia e, sobretudo, proporcionar um incentivo às pequenas e médias empresas nas quais se apoia o comércio de Macau. Apoiando este sector evita-se o fecho das lojas e garante-se a manutenção dos postos de trabalho. O Governo de Macau investiu cerca de 2,2 mil milhões de patacas na primeira fase do cartão, cuja utilização não estava sujeita ao pagamento de taxas. O valor a aplicar na segunda fase será de aproximadamente de 3,685 mil milhões de patacas. A Macau Pass Company estabeleceu esta taxa de acordo com as práticas internacionais, que obriga os comerciantes ao pagamento de uma percentagem por cada pagamento electrónico. O “Acordo de Prestação de Serviços do Macau Pass” assinado pela Companhia Macau Pass e pelos representantes dos comerciantes estipula que estes serão responsáveis pelo pagamento da taxa sempre que o cartão Macau Pass é usado, taxa essa que nunca deverá ser cobrada aos clientes. A utilização do cartão de consumo criado pelo Governo é semelhante ao Pass Card de Macau, e fica igualmente sujeito ao pagamento de taxas. Solidária no combate à epidemia, a Macau Pass Company não cobrou taxas na primeira fase. O valor de 0,5% cobrado na segunda fase, é mais baixo do que aquele que se aplica aos cartões de crédito. Esta taxa destina-se apenas a cobrir as despesas operacionais e não à obtenção de lucro. Como este valor não pode ser cobrado aos consumidores, vai sair directamente dos bolsos dos comerciantes e reduzir os seus lucros. A epidemia diminuiu o afluxo de clientela, o volume dos negócios baixou drasticamente. Por tudo isto, os comerciantes já estão a lidar com muitas dificuldades e esta taxa ainda veio piorar a situação. A Companha Macau Pass é a única que trabalha com os comerciantes na utilização do cartão de consumo. O aparecimento deste cartão obrigou os lojistas à aquisiçao do equipamento necessário, que também aceita outros cartões electrónicos como o “Cartão Macau Pass” e o “Mpay”. Com o aumento desta quota de mercado, a segunda fase do cartão de consumo já não está isenta das taxas, o que foi naturalmente contra as expectativas da população. No entanto, para a Companhia Macau Pass, os seus lucros provêm da aplicação da taxa. Na primeira fase do cartão a isenção da taxa representou a solidariedade da Companhia para com o Governo de Macau, em tempos de dificuldade. Se a isenção se mantivesse nesta segunda fase, como é que a companhia ia suportar as despesas operacionais? Podemos facilmente perceber que os benefícios de uns, representam os prejuízos dos outros. Mas podemos reflectir sobre esta questão a partir de outro ângulo. O Governo de Hong Kong recusou-se a distribuir dinheiro pela população durante muito tempo. Este ano, após solicitação de muitos sectores, concordou finalmente em distribuir a cada residente a quantia de HK$10,000. Mas, ao mesmo tempo, levantou-se outro problema. De que forma é que este dinheiro ia ser distribuído? O Secretário das Finanças de Hong Kong, Chen Maobo, anunciou que 20 instituições bancárias tinham sido convidadas para prestar assistência na distribuição destas verbas, e que mil milhões de dólares tinham sido reservados para despesas administrativas. Soube-se recentemente que as taxas envolvidas nesta operação não excederiam os HK$500 milhões. 20 Bancos a cobrarem apenas 500 milhões parece ser um bom exemplo. Revela que a atitude da administraçao pública é diferente da atitude comercial do sector privado. Quando se pede a instituições privadas que implementem medidas governativas, quais devem ser escolhidas, quantas serão necessárias, quais os custos operacionais e quem é que tem a responsabilidade de os pagar? Estas questões devem ser pensadas em profundidade. A epidemia continua a existir e ninguém sabe quando irá terminar. Questões relacionadas com a companhia que opera o cartão de consumo, a quantidade de agências envolvidas e a gestão das taxas, lembram-nos que se a terceira fase do cartão de consumo for implementada, será necessário reflectir muito bem antes de o fazer; para que todas as partes se possam sentir satisfeitas. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Covid-19 e economia (I) “Mankind does not reflect upon questions of economic and social organization until compelled to do so by the sharp pressure of some practical emergency.” Richard Henry Tawney Religion and the Rise of Capitalism [dropcap]O[/dropcap] grande economista italiano, Federico Caffè, amargamente polémico contra uma ciência económica que fez desaparecer as pessoas por detrás dos números considerava que ser economista, significava colocar o trabalho e o bem-estar das pessoas em primeiro plano. O pensamento económico fazia sentido se o seu objectivo fosse o combate à pobreza, ao desemprego e ao sofrimento da humanidade. Infelizmente, a corrente económica tomou um caminho diferente e continuou a dar prioridade aos números, e orientou as práticas dos governos e dos poderosos, justificando a enorme concentração da maior parte da riqueza do mundo em poucas mãos. Leu a globalização como uma prática em que todos poderiam ganhar, confiando na lógica pura do mercado e na forma como os negócios e as finanças tendiam a maximizar os lucros. A reorganização das cadeias de produção à escala global, procurando lugares no mundo onde fosse possível produzir a menor custo, era vista como uma operação que beneficiaria toda a gente; que aumentaria a capacidade de obter lucros daqueles que detinham o poder e a riqueza; ao mesmo tempo permitiria o desenvolvimento industrial dos países mais pobres e a manutenção de preços mais baixos ao consumidor nos países desenvolvidos; valorizou, do ponto de vista turístico e residencial, talvez para os idosos que lutavam nos seus países para viver das suas pensões, lugares no mundo esquecidos por Deus; ensinou os pobres a tirar o maior proveito possível dos seus recursos naturais, transformando as práticas tradicionais de sobrevivência em agricultura industrial de grande escala, criação intensiva de gado, trazendo também à tona formas de individualismo consumista nesses países, em detrimento de antigos laços comunitários; os indivíduos perdidos nas megalópoles, arrancados das suas aldeias e a possibilidade de viverem do seu trabalho nas suas terras. Tudo se baseia na previsão de crescimento infinito. E quando o crescimento da economia real abranda, o centro da economia desloca-se para as finanças. E as decisões mais importantes para o trabalho e a vida das pessoas concentram-se nas mãos cada vez mais distantes e invisíveis dos senhores do crédito e da bolsa, que são, entre outras, aqueles que sabem utilizar e explorar o poder dos algoritmos melhor e mais rapidamente do que qualquer outro. A crença de que a financeirização da economia continuaria o crescimento atrofiado, foi a forte ideia que fez aceitar esta expropriação gigantesca do poder dos Estados e dos cidadãos. Tudo começou no final da “era dourada”, a era do pós-guerra no início dos anos de1970, quando o aumento da produção também trouxe consigo um aumento do emprego, rendimento e consumo. O aumento do preço do petróleo e das matérias-primas restringiu as margens de lucro, assim como a possibilidade de redistribuição de algumas delas aos trabalhadores. A automação industrial reduziu o emprego necessário para a produção de bens de consumo e de capital. As novas tecnologias de informação e comunicação e a contentorização da logística permitiram manter juntos ciclos de produção que tiveram as suas fábricas espalhadas pelo mundo, numa procura contínua de locais onde o trabalho custou menos e o limiar dos direitos sociais foi mais baixo. O número de consumidores solventes foi reduzido. Fomos confrontados, pelo menos nos pontos altos do desenvolvimento capitalista, com uma crise cada vez mais evidente de superprodução. E é então que a procura do lucro é libertada de qualquer responsabilidade para com os trabalhadores, o território e os países. A única responsabilidade é para com os detentores de grandes participações. Uma transição que nos diz bem, com um certo avanço sobre a mesma análise económica, “Pretty Woman”, o filme mais culto do início dos anos de 1990. Richard Gere e o seu parceiro aprenderam que o dinheiro é feito com dinheiro, e que a produção, a cidade, os trabalhadores são pura sorte no ciclo de valorização do capital. Compram fábricas para as desembrulhar, e transformam a produção material em dinheiro para serem valorizadas nesse circuito de grandes finanças onde em poucos segundos trocam valores iguais ao PIB de todos os países do mundo. A esta concepção abstracta da valorização do capital corresponde uma concepção igualmente abstracta do amor. Na verdade, Richard vai às prostitutas. Então as regras de Hollywood prevalecem sobre a realidade. Richard Gere é demasiado bem-parecido para ser apenas um pedaço de carne, e Julia Roberts é demasiado glamorosa para acabar por ser uma prostituta. E o amor que se torna uma verdadeira relação entre as pessoas é correspondido pelo regresso do especulador, que devolve a fábrica ao antigo patrão, ainda convencido de que para ganhar dinheiro era preciso fazer os trabalhadores trabalhar e produzir bens. Uns finais felizes que a América e a moda ainda queriam ouvir. As coisas, como é bem sabido, não se resolveram dessa forma. As fábricas de Detroit tornaram-se cidades fantasmas. A produção em massa deslocou-se para países sem assistência social e sem sindicatos, onde centenas de trabalhadores podem incendiar-se em armazéns dilapidados. São os Richard Geres não redimidos pelo amor que fazem o dinheiro ir para todo o mundo e continuar a ir para as prostitutas. Os estados competem para interceptar uma parte do fluxo. Ao competir com aqueles que cobram menos impostos, os que reduzem as taxas, os que baixam os seus limiares de bem-estar. Mas era necessário encontrar uma forma de convencer até os cidadãos do Ocidente de que esse fluxo de riqueza também seria bom, que o crescimento da riqueza lhes permitiria manter o seu modo de vida, esse modo de vida americano agora generalizado no mundo, para defender os Estados Unidos, e não só, que também são legítimos para fazer guerras. O recurso à dívida nasce a nível das massas. O que não é apenas um problema para os Estados. Mas é a consequência quase inevitável dos longos anos em que os trabalhadores foram convidados a ganhar menos e a consumir mais. Em que surgiram supermercados em vez de fábricas. Em que a identidade das pessoas passava cada vez mais do trabalho para o consumo. A crise financeira do subprime, das hipotecas desfeitas para que mesmo aqueles que não tinham dinheiro para comprar casas pudesse comprá-las, dos cartões de crédito aparentemente sem fundo, e das hipotecas que nunca foram reembolsadas. Porque a valorização do capital necessita que mesmo aqueles que vêem os seus rendimentos reduzidos, os que perdem os seus empregos, continuem a consumir. Quando termina o sonho de uma melhoria colectiva das condições de trabalho e de vida, e uma vez acabada a era que tinha visto crescer a classe média, os pobres são convidados a ter os sonhos dos ricos. Consumidores em dívida para com os sonhos dos ricos, sonhos que a publicidade e os meios de comunicação social lhes apresentam todos os dias como pré-requisitos para uma vida decente, são, no entanto, a longo prazo, devedores insolventes. E a maioria dos Estados que estão cada vez mais dependentes dos créditos das grandes finanças internacionais estão também a tornar-se rapidamente insolventes. A crise financeira de 2008 resultou da acumulação de insolvência, que acabou por ser determinada pela manutenção do horizonte de crescimento infinito, enquanto os factores que o crescimento real podia suportar estavam a diminuir rapidamente. A resposta foi mais uma vez predominantemente financeira, mas pelo menos nessa altura foi construída alguma forma de cooperação entre Estados e instituições económicas internacionais para encontrar uma resposta coordenada à crise. O governo dos Estados Unidos avançou rapidamente, tendo o ex-presidente Bush convocado o G20 para implementar uma estratégia coordenada para evitar que o colapso do sistema financeiro dos Estados Unidos conduzisse ao colapso de toda a economia global. A liderança política americana parecia estar consciente de que uma catástrofe nascida no interior das suas fronteiras poderia dominar o mundo, e que isto teria efeitos perturbadores na própria economia dos Estados Unidos a longo prazo. Os limites e contradições dessa resposta têm sido examinados há muito tempo. Acima de tudo, o facto de os instrumentos financeiros e as dívidas vivas para travar a crise financeira terem sido depois transmitidos, através de sucessivas políticas de austeridade, aos cidadãos mais pobres, que eram mais do que culpados por essa crise. Mas a diferença fundamental entre essa crise e esta é que a primeira era principalmente financeira, e o restabelecimento da ordem nas finanças parecia e talvez fosse a principal necessidade. A crise actual, por outro lado, nasceu e afecta a economia real e nada é mais real do que a vida das pessoas, bloqueia as formas habituais de produção de rendimento e consumo, e torna-se financeira atirando para as mesas das autoridades monetárias internacionais, finanças globais, nas mesmas listas da bolsa, milhares de mortos e um grande número de actividades produtivas de bens e serviços, bens agrícolas e industriais, comércio e turismo, à beira da falência. E explica porque é que, apesar das injecções maciças de liquidez, da queda drástica das taxas de juro, a bolsa americana continua a estar em vermelho profundo, e as taxas de desemprego nos Estados Unidos estão a aumentar exponencialmente. Nem na América nem na Europa podem os instrumentos monetários e financeiros resolver a crise. Isso já estava a acontecer no mundo antes da Covid-19 e os fenómenos, como o enorme alongamento das cadeias de produção que tinha afectado os salários dos trabalhadores no Ocidente e causado o êxodo de muitas empresas em todo o mundo, o crescimento cada vez mais rápido da China que se tinha tornado o principal motor da economia globalizada e o abrandamento no resto do mundo do ritmo de crescimento tinha reagido com o regresso do proteccionismo. Os deveres, o encerramento das fronteiras às pessoas e em alguns casos também às mercadorias, até a uma verdadeira guerra comercial entre países e continentes. A ideologia win-win do neoliberalismo triunfante, que prometia crescimento e bem-estar a todos, foi seguida pelos “mors tua vita mea”. Jenny Offil num belo e recente romance, “Weather”” “Pergunta. Qual é a filosofia do capitalismo tardio? Resposta. Dois caminhantes vêem um urso faminto a uma curta distância. Um deles tira os seus sapatos de corrida da mochila e calça-os. “Não se pode correr mais depressa que um urso” diz o seu parceiro. “Só tenho de correr mais depressa do que tu”, diz ele.” O Estado, cujo papel económico e social tinha sido negado por Reagan e Thatcher, reaparece juntamente com a reafirmação do nacionalismo. Os soberanistas, a começar por Trump e Johnson, muito mais perigosos que os soberanos fascistas da Europa Oriental, afirmam a primazia da sua própria nação sobre todas as outras, e a defesa dos interesses dos seus cidadãos prevalece sobre todas as outras considerações e faz com que qualquer apelo à solidariedade internacional seja em vão. Este facto tem tido algumas consequências na gestão da própria pandemia. Durante algum tempo Trump e Johnson colocaram a preservação da competitividade da sua economia acima da defesa da saúde dos seus cidadãos e dos cidadãos do mundo. E é o nacionalismo competitivo, para além dos erros de organizações únicas, que provocou o enfraquecimento de todas as instituições internacionais destinadas a proteger a saúde e o ambiente, auxiliando e difundindo a educação e a cultura como a OMS, UNICEF e UNESCO. A Covid-19 e as dificuldades económicas que se seguirão estão destinados, na situação actual, a acentuar estas tendências e a tornar a guerra comercial ainda mais aguda, principalmente entre os Estados Unidos e a China e com todos os vários actores a medir os seus músculos nesta guerra. A começar pela competição selvagem em curso para o controlo das matérias-primas e dos recursos naturais. O petróleo, as florestas e a água estarão no centro da luta com algumas consequências desastrosas para África e para a maior parte da América Latina. O extractivismo, a flexão de cada recurso natural e cultural para a valorização económica capitalista, aumentará de intensidade. E a lógica da globalização continuará inexoravelmente, que tem destruído progressivamente a economia de subsistência, provocando o êxodo para as megalópoles do Terceiro Mundo de milhões de camponeses, concentrando a produção de riqueza no petróleo, nos recursos minerais, no cultivo de produtos exportáveis no Ocidente, na China e na Rússia. Tudo isto é uma das causas generativas do aquecimento global e da desertificação nesses países, bem como de muitas guerras, com a consequência de que alistar-se nos exércitos de ditadores e nas fileiras do Islão fundamentalista ou fugir para o Ocidente são a única forma de milhões de jovens africanos sobreviverem. Se o mundo dentro e depois da Covid-19 for este, a Europa arrisca-se a ficar para sempre à margem. E nenhuma medida financeira pode conseguir resolver este nó que faz da Europa, para não falar de países individualmente, um pote de panelas que colide com panelas de ferro. Para recomeçar, precisa de se repensar e passar realmente da lógica da concorrência, a da compreensão que ainda impede a adopção de medidas comuns sérias e incisivas, para a da cooperação e da solidariedade. Face a isto, pensar em termos puramente financeiros e monetários parece muito limitado. O aumento da liquidez não resolve o problema da insolvência previsível da maioria das pequenas e médias empresas. Deve ser considerada a intervenção directa dos Estados-Membros, apoiada por recursos disponibilizados pela Europa muito acima dos setecentos e cinquenta mil milhões de euros, que garantiriam a protecção dos trabalhadores e das empresas contra a perda de rendimentos resultante da cessação da produção e da actividade comercial causada pela Covid-19, como os agricultores afectados pela doença das vacas loucas e outras catástrofes naturais, ou os habitantes de cidades e aldeias varridas por terramotos ou inundações, foram compensados. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, referiu-se repetidamente à necessidade de um Plano Marshall Europeu. Deve-se recordar que o Plano Marshall foi em grande parte uma transferência directa de recursos dos Estados Unidos para a Europa, os mais fortes e ricos da época, na crença de que era do seu interesse ressuscitar toda a Europa dos escombros da guerra dado ser mercado para as suas exportações, parceiro produtivo na nova economia industrial triunfante e aliado na nova divisão do mundo em áreas de influência. Um Plano Marshall Europeu só é possível se os países mais ricos da Europa, e antes de mais a Alemanha, aqueles que se opõem à mutualização comum da dívida (os chamados Eurobonds, que são muito menos abrangentes do que o Plano Marshall), reconhecerem a necessidade no seu interesse, de os países do Sul da Europa manterem a sua vitalidade económica ao mais alto nível possível. Um caminho decididamente diferente daquele que caracterizou as intervenções em resposta à crise financeira de 2008, que ultrapassou decisivamente a lógica dos empréstimos condicionados à transferência de poder e à redução da despesa pública e do bem-estar, e que viu a Europa dividir-se entre países do Norte e países mediterrânicos com graves consequências para a vida e as instituições sociais destes últimos. Não só da Grécia. As reduções nos cuidados de saúde, educação e investigação são também filhos dessa história. Mesmo os grandes intérpretes da Europa competitiva e orientada para o mercado estão convencidos de que é necessário mudar a arma. O ex-presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi em particular, com o seu discurso no “Financial Times”, explicou que a recessão é agora inevitável, e que a única forma de não se transformar numa depressão sem fim são intervenções estatais decisivas que absorvam, através de um aumento da dívida pública, as crescentes dívidas privadas, dos cidadãos certamente, mas especialmente das empresas e bancos. São convidados a tornar-se um instrumento de política pública, concedendo crédito ao sistema empresarial mesmo sem garantias, mas com a garantia de que o Estado assumirá as insolvências. Alguma esquerda italiana até aplaudiu, saudando o regresso de Draghi, um antigo aluno de Federico Caffè, à órbita cultural do seu antigo mestre. Na verdade, a proposta do “Super Mario”, como muitos meios de comunicação italianos lhe chamam, pareceu a tentativa mais sensata para o regresso à normalidade económica atingida pela crise pandémica, da qual ninguém se sente culpado de forma alguma, nem mesmo aqueles que saquearam a Terra e feriram profundamente os ecossistemas em nome do crescimento infinito do fantasma. Se ninguém for responsável, se tudo o que temos de fazer é restaurar o funcionamento normal da economia, ninguém terá de pagar. E no entanto, mais cedo ou mais tarde, alguém irá pagar pelo aumento das dívidas.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesLevar o navio a bom porto [dropcap]H[/dropcap]avia uma canção muito popular no tempo da Revolução Cultural, cujos primeiros versos diziam mais ou menos o seguinte, “A boa navegação depende do piloto e o crescimento dos seres vivos depende do Sol”. Mas, para além do Sol, também é necessário que haja água; de outra forma os seres vivos morrem de desidratação. No que respeita à navegação, o piloto é sem dúvida importante, mas o capitão e a restante tripulação também são indispensáveis, porque impedem que o piloto siga na direcção errada e que choque com um iceberg ou que encalhe nas rochas. Mas se o capitão pilotar o navio e cometer um erro, todos sofrem as consequências. Vou recorrer ao enredo de um filme para me explicar melhor. Um grupo de pessoas apanhou numa carrinha vermelha, à noite, em Mong Kok, Hong Kong. O condutor muito exaltado, conduz a toda a velocidade. Se os passageiros não conseguirem travar o condutor, o deus da morte esperará por eles na próxima curva. No mundo em que vivemos, os países estão constantemente a disputar um jogo de xadrez. A proliferação do populismo e do nacionalismo, associada aos efeitos da COVID-19, está mergulhar o mundo em águas turbulentas. Depender apenas do piloto para garantir uma navegação segura, vai conduzir-nos a um grande desastre. Quando Ho Iat Seng se candidatou às eleições para Chefe do Executivo de Macau, nunca imaginou que teria de vir a lidar com uma das situações mais desafiantes dos últimos 100 anos. Enquanto piloto da RAE de Macau, como é que irá abordar o futuro da cidade? Com o aparecimento de uma terceira vaga de COVID-19, e sabendo nós que antes do final do ano não estar disponível uma vacina, é muito pouco provável que a economia de Macau se comece a erguer nesta segunda metade do ano. De acordo com os dados do Inquérito ao Emprego, a taxa de desemprego dos residentes subiu 3.5% e a taxa de subemprego também cresceu entre 0.5% e 2.6%. Todos os peritos na matéria afirmam que estes valores vão continuara a aumentar. Para já, é impossível prever quando é que esta tendência se começará a inverter. A única esperança é que o Governo Central retome a política de “Vistos Individuais”. O Governo de Macau sustém a economia doméstica através do plano de subsídio de consumo, das excursões locais e da formação subsidiada, finaciados pela reserva financeira acumulada aos longo de anos. O objectivo é apoiar a economia até que a epidemia acabe. Mas que rumo vai tomar Macau a seguir à pandemia? Tanto Hong Kong como Macau adoptaram o sistema político executivo, liderado pelo Chefe do Executivo. Qualquer decisão errada que o Chefe do Executivo tome vai reflectir-se em todos os sectores da sociedade. Este problema agrava-se quando a equipa administrativa é incompetente, ou quando é composta por alguns elementos de extrema-esquerda. As sugestões de que Macau deveria ter uma lei como a Lei da República Popular da China sobre a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong, e ver os nomes portugueses das suas ruas alterados, partem precisamente desses elementos extremistas. Quando um navio se inclina só para um lado, é certo que vai ao fundo. Ninguém nega a importância de salvaguardar a segurança nacional, no entanto é preciso ter em conta a eficácia da lei que a deve assegurar. Depois da Lei da República Popular da China sobre a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong ter sido introduzida em Hong Kong, as reacções locais e internacionais serviram de barómetro para medir essa mesma eficácia. Pilotar um navio é uma honra e uma responsabilidade. Mas se o piloto não for hábil, e apenas se mantiver no leme por amor ao poder, quer os passageiros quer a tripulação serão as suas vítimas. Deng Xiaoping disse certo dia, “A China tem de manter a vigilância contra as tendências de “Direita”, mas antes de tudo deve combater as tendências de “Esquerda”; as tendências de “Direita” podem arruinar o socialismo, mas as de “Esquerda” também. Quando a extrema-esquerda se cruza com a extrema-direita, o resultado é sempre conflituoso. A COVID-19 é um novo tipo de vírus, que pode ser combatido com vacinas. Mas os virus politicos matam silenciosamente e é muito difícil encontrar uma cura definitiva. Para levar um navio a bom porto, para além do piloto e do capitão, toda a tripulação tem de participar sempre que necessário; caso contrário o navio naufraga e para os seus ocupantes não haverá mais nada para além da morte.
Manuel de Almeida VozesO (des)equílibrio da existência [dropcap]D[/dropcap]esvalorizamos valores – existimos –, há chantagem em vez de princípios, há vassalagem no lugar de dignidade e o mais preocupante é que o debate público está centrado “em pontos específicos, mais formais do que substanciais, mais conjunturais do que estruturais”. Continuamos sem uma estratégia, um esforço intelectual, um código de existência, ou seja, já não somos capazes de produzir sons de ruído. “Não há tempo para desesperar, o desespero é para os privilegiados”- segundo James Baldwin (1924 – 1987) – há uma obstrução do passado. Problemas existem: políticos, sociais, económicos, jurídicos, culturais, laborais, mas nós longe das obsessões por quimeras “empoeiradas” e, sem vontade de um entendimento colectivo de aventura e compromisso, aprendemos a lição – recapitulação da matéria da lição anterior -, sentamo-nos como bons alunos, que sempre fomos, a aprender – de que se deve evitar encenações -, só o palco principal é para os actores. Não se trocam argumentos, atiram-se farpas – fruto dos agasalhos das tertúlias, existe (?), do calor da discussão, ruído (?), dos injustiçados da razão, calúnias (?), das movimentações ocultas, pecado (?) opinião objectiva, idealismo (?), decisões concretas, emoção – “Não procuro esconder nada; o tempo vê, escuta e revela tudo”. A reflexão íntima? As conversas nunca deveriam ser desperdiçadas. Onde estão aquelas “desfechadas” e duras falas? Devemos exercitar a emoção. Carregamos paciência. Ultrapassamos facilmente escolhas, curiosidades, destinos, pesadelos, ímpetos, represálias, até à meta final, esperança. A esperança desobstrui os problemas. É próprio das pessoas que entram na velhice contemplar a vida passada, com interesse, e olhar o futuro como uma “desforra” do interesse – é um balanço da “caixa” da vida, o débito e o crédito -, virtudes antigas, novas exigências. A curiosidade da vida – mudanças, contradições, polémicas -, traz consigo vitórias e derrotas. A vivência é difícil e complexa, talvez não estejamos destinados a procurar, apenas a encontrar – possuímos uma qualidade abstracta. O nosso atraso é mais cultural – existência sem destino -, do que material, somos almas dilaceradas pela dúvida, ouvimos as liturgias do poder (uma combinação perfeita entre sagrado e profano), condenámos mas não existimos -, vivemos num mundo de sombras e de ambiguidades. Ajoelhamo-nos ao poder. Temos voz nos bastidores. Poderíamos ter aproveitado este hiato temporal, para arrumar o que esta(va) desarrumado, até porque o destino tem que ser uma ambição, não uma fatalidade. “Não conseguimos reconhecer uma derrota ou o mérito de uma vitória alheia”. Procuramos o estatuto de “Ter”, esquecemos o “Ser” e, à nascença, abandonamos o “Estar”. Muitas histórias, muitos acontecimentos, – fomos perdulários no bem comunitário (relação/confronto), mas mantivemos fidelidade à palavra – os “restos” do passado. Ouve uma paragem no tempo entre o antes e o depois – o chamado “passo em branco”. Na continuidade da “Novidade (1999)”, aceitamos os “factos” com tremor e temor. Soubemos desconstruir o guião social. Fomos interlocutores entre saber e poder. O discurso oficial apostava na franqueza e excluía a intimidade – sem querer quebrar os laços. A palavra no tempo. É nobre, a desconfiança saudável. A memória, a cultura, o conhecimento. Existe – é um fardo pesado —, mentalmente o sentido físico do pesadelo. Porquê? Não soubemos fazer convenientemente o “Luto” e isso deixa marcas futuras. Como sabem existem diversos estágios de um luto. Primeiro, a negação; depois, a raiva; a seguir, a resignação; e finalmente, a aceitação Não nos deixaram ouro, incenso e mirra – levaram na bagagem -, deixaram-nos na “praia”, onde a terra acaba e o mar começa. Aboliram antes de partir o pensamento absoluto do debate e a diabolização do pensamento crítico, ganhámos uma pobreza desenganada, a ironia – foram as prendas, dos rostos ausentes. Existimos fruto da prudência… Não há “reinos” de oposição, desamor, conflitos ou angústia. Este texto é pura ficção, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Não esperem palmas – já não há público na plateia…
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSobre o prazer e as suas dificuldades [dropcap]O[/dropcap] prazer – e vamos assumir o conceito de forma mais geral, onde cabe o sexo e muitas outras actividades – não é fácil de ser conquistado pelas mais variadas razões. Razões pragmáticas a conceptuais fazem parte do debate por quem luta pelo prazer. Inclusive, até por quem não assume posição nenhuma mas, com o seu silêncio, contribui para a complexidade do prazer na contemporaneidade. Passo a explicar como é que o prazer é afectado por três níveis de análise, para simplificar. Corpo. Muitas vezes olham-se para as barreiras mais palpáveis ao prazer procurando o nível de comprometimento do corpo. Existem várias patologias que comprometem o prazer, podem ser problemas anatómicos e até neurológicos. Só que utilizar esta classificação deixa o prazer abandonado num estado de incompreensão, onde é definido pela capacidade sensorial de um corpo que reage e espera por reagir, única e simplesmente. Mente. Depois vem uma visão mais psicológica do prazer, aquele em que o prazer não depende exclusivamente de um estado de corpo, mas de uma disponibilidade mental, cognitiva e emocional, para lhe dar forma. Falando assim parece vago, eu sei. Mas todos os estudos sobre o orgasmo, apontam para uma visão conjunta entre corpo e mente. Os estudos sobre disfunções sexuais também mostram a importância da terapia, o trabalho de desenvolvimento pessoal, em resolvê-los. Que estado mental é, então, desejado? É um estado de aceitação: do corpo que se tem, dos medos que se têm, das ansiedades, receios, desejos e prazeres. Mantenho a definição vaga para não cair em fórmulas rígidas, e mantendo a diversidade de escolas psicoterapêuticas e do entendimento de mente, o prazer depende de um corpo (que não tem que ser perfeito), e da aceitação e desenvolvimento de quem somos, para quê e como. Social. A seguir vem a visão social do prazer, que, como uma matryoshka, a boneca russa, se interpenetra no entendimento do prazer do corpo e da mente. Claro que somos bombardeados por imagens e representações sobre o que é o prazer, mas também somos afectados de forma mais profunda do que isso. O “social” contribui para a forma como podemos ou não assumir e aceitar o nosso corpo e a nossa individualidade dentro dos sistemas de privilégio e opressão vigentes. A interconexão do que se passa cá dentro com o que se passa lá fora não pode nunca ser negligenciada. Quem é que é merecedor de prazer e porquê? Só com esta interrogação é que se pode explorar de que forma é que as estruturas sociais moldam o acesso ao prazer e as formas como ele pode ser vivido. Estes três níveis, e a forma como estão ligados uns aos outros, reforça a necessidade de uma visão integrada (interdisciplinar!) do prazer. Onde o corpo, a mente e a sociedade estão em movimentos perpétuos de ligação. Esta conceptualização também mostra que a luta pelo prazer tem que ser feita por várias frentes. Perceber o nosso estado do corpo é importante, ter disponibilidade para estar em contacto com as nossas dificuldades, fragilidades e recursos é importante, estar pronto para lutar contra a injustiça social também é importante. Só assim é que poderemos libertarmo-nos do velho mito de que o prazer é de alguma forma pecaminoso. Pelo contrário, aceitar que podemos ter prazer é talvez a pré-condição para o bem-estar, não só com o sexo, mas nos pequenos momentos do dia-a-dia. Perceber o prazer e aceitá-lo, talvez seja a peça do puzzle que nos falta para outro tipo de consciência global. E para os que responderão com uma definição de prazer egoísta, tenho a acrescentar que o verdadeiro prazer resulta de uma dinâmica complexa, nada solitária, onde a responsabilidade é partilhada entre o próprio e os outros.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSegunda fase do cartão de consumo [dropcap]E[/dropcap]m Macau, a notícia da semana é o anúncio do recarregamento o cartão de consumo com mais 5.000 patacas. Este valor destina-se a subsidiar o consumo no período compreendido entre 1 de Agosto e 31 de Dezembro. O plano de subsídio ao consumo divide-se em duas fases. A primeira decorreu entre Maio e Julho, durante a qual todos os cidadãos receberem um cartão carregado com 3.000 patacas. Nesta segunda fase, até porque abrange um período maior, o valor sobe para 5.000 patacas. O propósito deste cartão é colmatar o impacto da COVID 19 na economia e, sobretudo, apoiar o pequeno e médio comércio. Na primeira fase foram emitidos 624.000 cartões e o Governo investiu um total de 1.87 mil milhões no mercado. Nesta segunda fase, o cartão mantém um limite diário de 300 patacas, que podem ser gastas no pagamento de bens e serviços, mas que não podem ser convertidas em dinheiro vivo. O cartão nunca pode ser substituído por outro, mesmo em caso de perda. Os detentores de cartões podem recarregá-los num dos 190 postos disponíveis para o efeito. Este apoio ao consumo é uma medida muito benéfica para todos, especialmente para as pessoas que ficaram desempregadas e para àquelas perderam os seus negócios. Esta iniciativa, em conjunto com outras medidas, tem sido vital para apoiar a população mais carenciada. O comércio é também obviamente revitalizado, o ciclo económico mantêm-se e a vida vai seguindo, dentro do possível, o seu curso normal. Desde que Macau continue sem novos casos de infecção, a economia e a vida das pessoas irão melhorando aos poucos. A avaliar pela situaçao actual, é de crer que ainda há-de passar muito tempo até conseguirmos vislumbrar o fim da pandemia. Não será tão depressa que as receitas do Governo, alimentadas pela indústria do jogo, voltarão a aumentar. A revitalização da economia vai depender sobretudo do consumo das pessoas. Só aumentando a confiança dos residentes, pode a nossa economia ir recuperando pouco a pouco. A segunda fase do plano de apoio ao consumo, desempenha este papel. Desde que mantenhamos a distância social, podemos continuar com a nossa vida habitual, idas ao café, ao restaurante, às lojas, etc. Mesmo que gastemos pouco dinheiro, estamos a dar um sinal de confiança no regresso à normalidade, e a dar mostras de que acreditamos que a epidemia irá acabar e a vida vai voltar a ser o que era. Na medida em que este cartão é uma medida chave para incentivar o consumo, manifestamos o nosso apreço por os comerciantes terem ficado isentos das taxas normalmente associadas aos pagamentos electrónicos. Desta forma, os comerciantes são aliviados da carga fiscal. No entanto, temos de manifestar o nosso descontentamento com os comerciantes que aumentam o preço dos produtos, devido à implementação do cartão de consumo. Este comportamento anula o efeito pretendido. Uma estratégia que foi delineada para promover a economia, e ser benefécia para todos, ficará comprometida desta forma. Devemos considerar colocar numa “lista negra” os comerciantes que agem desta forma. Como a epidemia ainda irá durar por algum tempo, há quem se interrogue se irá haver uma terceira fase do plano de apoio ao consumo. Apenas cinco meses nos separam do final de 2021. Se a situação sanitária em Macau se mantiver favorável, e não surgirem novas infecções, a economia irá recuperar pouco a pouco e a pertinência do cartão de consumo irá desaparecendo; mas se surgirem novas infecções, especilmente vindas do exterior, a economia vai ser afectada e o cartão de consumo vai continuar a ser necessário. Na impossibilidade de prever o desenrolar da epidemia, a abordagem cautelosa e optimista para lidar com a situação, será criar uma reserva de dinheiro e fazer os gastos estritamente necessários. O cartão de consumo é temporário e este tipo de estímulo à economia é igualmente temporário. No período que se seguir, a recuperação e o crescimento económico vão continuar a depender do consumo de todos nós. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Covid-19, ciência e trabalho (II) [dropcap]H[/dropcap]á uma grande vontade por parte de muitos jovens em alguns Estados-Membros da UE de trabalharem para o bem comum através do serviço público ou civil e que nasceu da experiência dos objectores de consciência, influenciados pelo padre italiano Lorenzo Milani que trabalhou como escritor e pedagogo na escola popular Barbiana, aberta “doze horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano”. A sua actividade educacional com crianças pobres sob os seus ensinamentos levou a várias cartas críticas bem como o seu trabalho, escrito em conjunto com os seus alunos da montanha. A “Carta a um professor” expôs o classismo e a selectividade da escola obrigatória; a “Carta aos capelães militares” e a “Carta aos juízes” foram epístolas públicas como resultado de uma reacção ao “Comunicado dos capelães militares licenciados da região da Toscana” e o seu subsequente processo judicial. É importante considerar a sua afirmação de que a obediência já não é uma virtude. Aqueles que foram para a prisão para afirmar a ideia de servir o seu país não com armas, mas ajudando os fracos e oprimidos, combatendo a miséria e a privação cultural dos países e das periferias urbanas deve ser um exemplo. Os jovens que hoje estão envolvidos em dezenas de projectos sociais e culturais com migrantes, ciganos e crianças pobres pela Europa e mundo devem ser considerados. Serve a quem entender como sendo uma recompensa que lhes permita um mínimo de autonomia pessoal, e que talvez pense que terá uma experiência que lhes será útil para encontrar um emprego, se a economia e a política ultrapassarem o esquema perverso em que o trabalho socialmente útil deve ser livre e voluntário, e o trabalho que vale a pena pagar é o trabalho que é feito para produzir bens que não são tão úteis ou prejudiciais como os usados para fazer a guerra. Mesmo no trabalho físico em fábricas será necessário manter distâncias. Deve ser uma condição para retomar a produção. Para garantir a saúde daqueles que trabalham. Os empresários discutem mais com os políticos e autarcas do que com os sindicatos; os sindicatos e os trabalhadores não confiam neles com razão pois houve greves para que não fossem obrigados a trabalhar na produção de bens não essenciais, e em locais onde a segurança não estava garantida. Afinal, vivemos em um mundo que em Janeiro de 2020 não havia Covid-19 e hoje são milhões de infectados e centenas de milhares de mortos. A incapacidade de decidir sobre quais as zonas vermelhas em determinados países, a fim de não interromper a produção considerada essencial para a competitividade económica, causou centenas de mortes. A Covid-19 torna evidente uma contradição que sempre atravessou o mundo da produção e do trabalho. Que põe em relevo a dialéctica entre as necessidades de lucro, competitividade e a saúde e vida dos trabalhadores. Do ponto de vista dos que trabalham, decidir se trabalha para viver ou para morrer. De repente ou pouco a pouco. O reinício do trabalho deve ser em todo o lado uma oportunidade de ter uma discussão séria sobre a saúde no local de trabalho, abordando, para além da protecção contra o vírus, as condições que fazem com que a doença e a morte acompanhem normalmente a vida das pessoas que trabalham. A questão do distanciamento no local de trabalho pode ser uma enorme oportunidade para os sindicatos e trabalhadores associarem a protecção da saúde a uma re-discussão dos regimes de tempo de trabalho e da organização do trabalho. Se não se quiser que a Covid-19 dure para sempre de forma insidiosa, ou talvez regresse com maior força, nunca mais se conseguirá entrar e sair do trabalho, e começará tudo de novo. Terá de ser concebido um regime flexível de tempo de trabalho, e as suas obrigações contratuais serão as de manter em conjunto as necessidades das empresas e as necessidades das pessoas no trabalho. As necessidades de estudo e de cuidados pessoais e familiares, os seus prazeres e os seus deveres como cidadãos activos e responsáveis. O oposto do pedido feito a muitas categorias de trabalhadores, de uma vontade ilimitada de trabalhar horas extraordinárias, de trabalhar a tempo parcial indefinidamente, de responder sem demora ao apelo da empresa, sem qualquer possibilidade de planear a sua vida para além do trabalho. Mas esta possibilidade será tanto mais forte quanto mais associada estiver a uma redução global do tempo de trabalho. É incrível que, quase um século após a sua conquista, estejamos ainda ancorados a oito horas como horas normais de trabalho, após os extraordinários aumentos na produtividade laboral devido aos avanços tecnológicos, e com aqueles que nos esperam com a intensificação da automatização de grande parte da produção de bens e serviços. Numa situação difícil como esta, é complicado imaginar que a redução das horas de trabalho trará mais emprego, mas será uma forma de defender o que vai além da utilização pura e simples do subsídio de desemprego, licenças e amortecedores sociais. É a premissa para uma distribuição mais justa e mais sensata dos benefícios dos ganhos de produtividade nos próximos anos. A distância no trabalho pode ser, como para o trabalho à distância, uma forma de acorrentar as pessoas ainda mais à lógica de um algoritmo impessoal, aproveitando, para aumentar o ritmo e controlo, a condição de relativo isolamento dos trabalhadores, ou uma forma de expandir os espaços de autonomia, responsabilidade e profissionalismo dos trabalhadores. O trabalhador espaçado verá a sua possibilidade de intervir em processos e produtos, de corrigir erros, de modificar e melhorar a mesma postura do seu corpo em relação às operações. Será mais pessoa, dentro de um processo colectivo. Este aumento de responsabilidade e autonomia deve ser reclamado profissionalmente e também traduzido em salário. Apoiado com toda a formação necessária. Talvez a partir daqui os sindicatos possam encontrar uma forma de entrar na negociação individual, que nos últimos anos tem aumentado muito através de uma relação directa entre o empresário e o trabalhador individual, retirando do processo de negociação quotas salariais cada vez mais substanciais. É necessário tornar transparente o enriquecimento profissional do trabalhador, certificar e valorizar as competências adquiridas através do trabalho e da formação, tentar inverter a história dos últimos anos que esmagou os sindicatos sobre o trabalho padrão, que tinha faltado no fundo do trabalho confiado aos tarefeiros, e no topo da lista, as alterações qualitativas do trabalho. Mas para que isto seja possível, será necessário curar outra ferida existente entre pessoas que trabalham em indústrias e serviços, hospitais e aeroportos com as mesmas tarefas mas com salários e direitos radicalmente diferentes. Nos estaleiros navais, por exemplo, dois terços dos trabalhadores que passavam pelos portões pela manhã fazem parte dos tarefeiros de outros países, e trabalham frequentemente com contratos e salários de romenos, albaneses e polacos. E enquanto a grande maioria dos trabalhadores são sindicalizados, ninguém fala com os trabalhadores das empresas, excepto por vezes o sindicalismo básico. Ainda mais grave, deste ponto de vista, é a situação logística. Os armazéns dos supermercados enchiam-se de trabalhadores mal remunerados e na sua maioria intermitentes. E mesmo nos hospitais havia uma enorme diferença de salários e direitos entre os trabalhadores e os das empresas e outras instituições para as quais a maioria das tarefas era subcontratada. O estreito confronto sindical da reabertura, mais do que nunca, deve ser inclusivo, e recuperar a fragmentação dos contratos e direitos que caracterizaram o antes Covid-19. Uma negociação precisa e articulada, mas que deve ser enquadrada na iniciativa de um novo Estatuto de Direitos. No entanto, estes serão tempos difíceis para os trabalhadores. Muitos verão os seus rendimentos reduzidos, outros perderão os seus empregos e demasiados terão de procurar um novo emprego. Todos serão sujeitos a pesada chantagem, pois ou recomeçam como antes, fazendo o de então, mesmo que seja prejudicial para si e para o ambiente, ou perdem os seus empregos. Os sindicatos teriam de ser incisivos para que os trabalhadores adquirissem o direito de participar nas escolhas de produção da empresa, para terem uma palavra a dizer sobre as mudanças necessárias e para que a produção não prejudique a saúde e o ambiente. Na produção ambientalmente sustentável pode haver mais trabalho, e de melhor qualidade, do que a produção poluente. Por exemplo, o edifício de recuperação e reutilização pode encontrar muito mais espaço do que aquele que cimenta novas partes do território, para onde os abutres do impulso de emergência olham; e tal como nas energias renováveis, para a quantidade de energia produzida, são necessárias muito mais pessoas do que nas centrais eléctricas a carvão e a gás. Será necessário pensar, se não quisermos sofrer as mudanças necessárias, se o acordo verde vai começar, sendo necessário, um grande projecto de formação para permitir aos trabalhadores exercerem o seu direito a ter uma palavra a dizer sobre inovações, produtos e tecnologias. Afinal, este é um requisito fundamental de um trabalho digno. O liberal socialmente responsável como é John Dewey disse que “O trabalho é uma actividade que conscientemente inclui o respeito pelas consequências como parte de si; torna-se trabalho forçado, se as consequências estiverem fora da actividade, como um fim para o qual a actividade não é senão um meio”. Será necessário apoiar com recursos públicos os trabalhadores que decidam gerir sós as empresas abandonadas pelos empresários, nacionais ou estrangeiros, e aqueles que construíram a produção e trabalham nas actividades económicas tiradas a organizações falhas ou ilícitas. O trabalho que pode aumentar imediatamente é o da administração pública. A pandemia suspendeu a desconfiança do trabalho público alimentada pela corrente liberalista e pelos meios de comunicação social que durante anos martelaram os cidadãos com a ideia de que o público é desperdício e o privado é bom. As pessoas tocaram na seriedade, profissionalismo, dedicação dos que trabalham na saúde pública, no espírito de sacrifício e criatividade dos professores que passaram muitos dias sem abandonarem os seus alunos. Condutores de eléctricos e metropolitanos. Os colectores de lixo que continuaram a viajar por cidades desertas com os seus veículos. E por aqueles que, desde os cobardes dos incêndios postos, à polícia, à Protecção Civil, aos milhares de voluntários de associações seculares e religiosas, que se comprometeram a tapar os buracos do sistema de segurança e a não deixar ninguém sozinho. Começam a perceber-se, após anos de propaganda absurda e desviante, como os funcionários públicos em relação à população estão mais presentes que em países de outros continentes. O pós-Covid-19 poderia ser uma boa altura para apresentar as contas e tapar os buracos mais sensacionais. A começar pelas escolas e pelos cuidados de saúde. O último ataque ao público que está a começar é contra a burocracia que está a travar com as suas restrições os grandes projectos de infra-estruturas que devem recomeçar, custe o que custar. É necessário evitar práticas longas e inúteis, mas vale a pena salientar que muitas vezes a causa do cumprimento e do abuso da construção e da paisagem é a mesma, tendo enfraquecido quantitativa e qualitativamente, os números e o profissionalismo, o sistema de protecção com reduções à superintendência e ao planeamento público com cortes de despesas aos gabinetes técnicos e de planeamento territorial das autoridades locais. A fim de recomeçar rapidamente, legalmente e com respeito pelo ambiente e pelo território, haverá também necessidade de investir e contratar. Muitas das questões requerem uma visão e iniciativa europeias. A começar pelas regras necessárias para evitar o dumping salarial e de direitos, que está na raiz tanto das vias de externalização das empresas como da selva contratual que caracteriza o regime de muitos tarefeiros. Tal como o salário mínimo e o rendimento de cidadania só podem ser europeus em perspectiva. As mesmas transformações produtivas e inovações empresariais vão para além da dimensão nacional. As cadeias de produção e de valor atravessam fronteiras. Os sindicatos dos trabalhadores da Europa, cuja ausência, para além das evocações retóricas e da moda, foi o que mais pesou nesta crise, terão de ser construídos rapidamente, a fim de lhes garantir solidariedade e justiça social. No entanto, o trabalho que recomeçar terá de tratar do território, do povo, dos sujeitos mais fracos como prioridade. Reconhecendo neste terreno o trabalho que já existe e o novo trabalho que é necessário e dando-lhe valor. Uma ideia feminina de trabalho terá de se tomar, para vencer o desafio, uma prioridade também entre os homens. O novo mundo, como dizem dois grandes homens como Alain Touraine e o Papa Francisco, será feminino ou não.
João Romão VozesA escola das meninas [dropcap]P[/dropcap]or coincidências da história, ou pelo menos da cronologia, nasci no Maio de 68 e entrei na escola primária em 1974, poucos meses após a Revolução de Abril, no grupo de crianças a quem coube inaugurar o ensino público em regime democrático. Entre outras coisas, as turmas passaram a ser mistas, com rapazes e raparigas na mesma sala, uma característica trivial do ensino contemporâneo, mas radicalmente inovador à época. Ainda assim, lembro-me de que eram apenas quatro as raparigas que faziam parte da minha turma, quase completamente masculina, portanto. Além das turmas, coube-nos também inaugurar as escolas mistas, já que até aí rapazes e raparigas frequentavam a escola primária em edifícios diferentes. Na vila onde vivia, antes do 25 de Abril tínhamos a “escola dos meninos” e a “escola das meninas”, na boa tradição salazarista. Quase 50 anos passaram e agora trabalho numa grande e moderna cidade japonesa, por obra de outras coincidências, do campo da geografia ou de outros fenómenos mais complexos. Também é por vaga coincidência que estou de regresso à escola a tempo inteiro, desta vez como professor, profissão cujo exercício não tinha sequer remotamente planeado mas que se foi posicionando nos incertos horizontes da precariedade contemporânea como uma bastante razoável alternativa para sobreviver confortavelmente em terras nipónicas – ou mesmo noutras, se vier a ser o caso. Foi então nesta outra geografia e neste outro momento histórico que me voltei a confrontar com uma certa banalidade na separação por género dos processos educativos. Neste caso, não é que haja – pelo menos de forma generalizada – escolas especificamente orientadas para rapazes: o que há frequentemente, pelo menos na generalidade das grandes cidades, são escolas de diversos níveis de ensino exclusivamente dirigidas a raparigas. Vou deixar de lado, pelo menos por enquanto, as limitações deste binarismo de género cada vez mais anacrónico e dos problemas que vai levantando (também por cá) e fico-me por algumas das causas e consequências deste fenómeno com que lido agora bastante mais de perto. Surpreendem facilmente quem cá chega as desigualdades de género no Japão, país de reconhecida competência na liderança dos progressos tecnológicos das sociedades contemporâneas: ainda que a tendência seja crescente, são menos de metade as mulheres adultas que participam no mercado de trabalho japonês. Aliás, é frequente remeterem-se à pacatez e ao recato do lar após o casamento, mesmo quando têm níveis avançados de educação e competentes desempenhos profissionais. Tornam-se esposas e eventualmente mães a tempo inteiro. Na realidade, chega a ser difícil encontrar lugares em creches, mesmo tratando-se de um país onde é tradicionalmente baixa a natalidade. O universo laboral é largamente masculino e quando mais se sobe nas hierarquias de decisão, poder e salários, mais acentuada é essa dominação. Não será um caso exclusivamente japonês, no entanto: na realidade, têm fraca expressão histórica na Ásia os movimentos feministas que desde os anos 1960 reivindicam igualdades e liberdades, sobretudo na América e na Europa. Em grande medida, são essas desigualdades que justificam a existência de Universidades (e escolas secundárias, também) só para mulheres: num universo com ampla dominação masculina, a participação activa das mulheres implica a aquisição de competências que ultrapassam largamente os domínios técnicos do exercício de qualquer profissão, requerendo também outro tipo de conhecimentos e práticas, ligados a formas de comunicação, colaboração ou negociação. Em todo o caso, parece haver um longo caminho a percorrer até que estas novas competências tenham impacto efectivo num universo laboral e social amplamente dominado por uma cultura patriarcal que se traduz no controle dos vários poderes de decisão, do espaço doméstico e familiar às estruturas de representação política, passando, naturalmente, pelos postos de trabalho. Não por acaso, há iniciativas legislativas recentes a oferecer significativos incentivos fiscais às empresas que empreguem mulheres – até porque o envelhecimento populacional também gera uma certa escassez de força de trabalho – mas tendem a ser relativamente lentos os impactos destas medidas sobre culturas e estruturas de poder profundamente enraizadas na sociedade. Aliás, mesmo com 50 anos de movimentos feministas na Europa ou na América, a plena igualdade está ainda hoje manifestamente longe de ter sido alcançada. Não posso dizer que conhecesse pouco desta realidade antes de vir viver para o Japão: na realidade, o meu conhecimento era completamente nulo. Mas é numa destas universidades femininas que trabalho actualmente, num belo campus com amplos espaços verdes, arquitectura moderna e tecnologias avançadas, que oferece condições de trabalho extraordinárias. São pouco mais de 5.000 alunas, jovens japonesas diligentes e educadas, sistematicamente compenetradas no seu trabalho, num generalizado ambiente de tranquilidade e gentileza. Já entre os professores, no entanto, a maioria é masculina. E também quando se entra nos topos das hierarquias de direção e administração, a presença feminina é minoritária. Talvez não tivesse sido esse o plano original da corajosa mulher que fundou a universidade há mais de 100 anos, mas é, ainda assim, um contributo visível e relevante para desenvolver futuros diferentes. As improváveis coincidências da história e da geografia acabaram por me proporcionar um muito singular, surpreendente e estimulante projecto profissional, portanto.
Manuel de Almeida VozesO desconforto da vida “Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar”. Fernando Pessoa (1888 – 1935) [dropcap]A[/dropcap] vida das pessoas baralha narrativas fáceis, não são novelas, contos – viajar através da vida -, é um longo, sinuoso e árduo caminho. Não somos apenas fruto das nossas escolhas. Outros nela interferem de maneira abusiva, pelo prazer de mandar, desequilibrar, inquietar. Existem também sociedades que esvaziam o “cidadão” da sua capacidade de escolher, transformando-o num simples fantoche, marionete – subjugam-no. São governos malévolos. Ao instinto que sonha, à razão que ordena, à inteligência que observa e compara, à justiça com alma, à ética com rosto, à curiosidade pela inocência do futuro, tudo se perde na ditadura da ilusão. Uma vida com propósito, significado e prazer, é dar voz a mais e melhor política, lutar pela protecção ambiental – não por moda ou em abstracto -, defender o património cultural – material e imaterial -, “enfrentar uma política educativa vocacionada para fomentar o facilitismo e a ignorância”. Devemos exigir um ensino que contribua para formar indivíduos cultos, interessados e activos – seres pensantes – Homens Livres. Já nem falo de Saúde (falta poder de decisão), nem de Habitação (é preciso articular ferramentas). Há “massa”… Há uma máxima de Tolstói, que se aplica a Macau, que nem uma luva e, passo a citar: “há quem passe pelo bosque e apenas veja a lenha para a fogueira”. São intrigantes, complexas, vadias, esdrúxulas certas crónicas de vida – engolir em silêncio, sofrer vinganças sobre ideias, assédio moral, crimes sexuais, enclausurar a ambição, a tortura que atordoa a velhice – os direitos do cidadão não podem depender de uma capacidade tecnológica – , a dor dos catequistas do regime – queixam-se –, mostram um ar deprimido, violência doméstica, viver a utilidade do inútil, o vejetar no mundo subversivo social. Os caminhos a seguir são sempre um dilema. O desconforto, o imprevisível da vida. A grande crise que se vive hoje em dia é uma crise de valores e comportamentos individuais e de vida em sociedade. Não “é a economia, estúpido!”. Existe défice de cultura, educação, ciência, civismo – há uma grande histeria de ignorância e estupidez. Não se ouvem ruídos, mas silêncios, precisamos de uma vida que decline os silêncios. Temos de reavaliar a base espiritual da sobrevivência… Pode-se comprar o coração do povo, mas, espero, nunca se comprará a inteligência da sociedade. Apesar desta permanecer incapaz de perguntar, descobrir, exigir. (Isto são apontamentos dos meus cadernos de tendências, tento reconstruir o pensar, delinear, perscrutar o horizonte – a luz crepuscular da vida –, cheio de omissões e contradições da minha longa caminhada existencial. Permanecer ou atravessar?) Valerá ainda a pena construir espaços (lugar) e tempos ? Não, denotamos já uma expressão de cansaço existencial (um desenraizamento da identidade), é preferível guardar o “silêncio da memória do que o ruído da celebração”. A vida flui – Macau será a morgue onde jazem as ilusões! Lembram-se da história da Fada Oriana, da Sophia? Castigada. Perdeu as asas e a varinha de condão. Só ao tentar salvar uma velha que estava a cair do abismo, mesmo sem asas e varinha, saltou do abismo e agarrou a velha pelos pés. Aí, apareceu a fada rainha que lhe devolveu as asas e a varinha de condão. Perceberam ? É esta a história…
Tânia dos Santos Sexanálise VozesGordofobia Persistente [dropcap]O[/dropcap] recente confinamento trouxe os mais variados discursos sobre o corpo e o aumento de peso. Desejos de dietas pós-covid estão ao rubro. O tempo de confinamento trouxe ansiedades, muitos desejos de comida e movimento de menos. O sedentarismo não é dos estados mais aconselháveis ao corpo, de facto. Mas é sempre intensa a forma como se teme ser-se gordo, ou engordar. E aqui surge a gordofobia. A construção da gordura como má pode alterar-se com os tempos. Houve épocas em que a gordura era boa de forma mais hegemónica. Agora é que fomos induzidos a pensar que a magreza é um estado último, e que todos estão em algum caminho para alcançá-la. Basta folhear as páginas das revistas e dos jornais para perceber que há pouco espaço para os corpos que não se encaixam nesta visão limitada de beleza. Quantas vezes é que os filmes utilizaram a narrativa da rapariga ‘cheiinha’ que sofre uma transformação e a sua vida muda por completo, e para melhor? Repreender o corpo com gordura, seja das mais variadas formas, só gera mais ansiedade, desconforto e sofrimento. E claro, a tendência de responsabilizar as pessoas pelas suas gorduras torna a conversa demasiado simples. Assumir que a gordura é um produto da vontade desresponsabiliza as dinâmicas socio-culturais que contribuem para o problema também. A gordofobia é uma delas. Já se documentou todo o tipo de discurso de ódio. Desde comentários nas redes sociais até um episódio, no mínimo, caricato, onde cartões foram distribuídos pelo metro de Londres por um grupo que odiava gordura, gordos e tudo o que isso representa. A gordofobia nem sempre é assim tão declarada. A discriminação mais silenciosa está na forma como os espaços foram criados para um tipo de corpo. As cadeiras dos espaços públicos são desenhadas para certas pessoas e as lojas de roupas não servem a todos. Não ajuda, também, que a OMS tenha definido a obesidade como uma epidemia – apesar da intenção ser boa. Esta nomenclatura perpetua a narrativa de que é necessário travar uma guerra química e médica contra tudo o que é gordura. A investigação mostra como esta classificação não incentiva atitudes e/ou comportamentos que ajudem a mitigá-la. Pelo contrário. Ler noticias sobre a epidemia da obesidade faz com que a discriminação contra a gordura aumente. Estas dinâmicas não se ficam pelos meios de comunicação social, ou no simples dia-a-dia. As comunidades profissionais e médicas têm sido acusadas de um viés anti-gordura, sob diagnosticando problemas sérios à conta disso. Os depoimentos são terroríficos. Cancros que não foram diagnosticados atempadamente porque os profissionais assumiram que a queixa apresentada seria resolvida se o paciente emagrecesse. Mesmo sabendo que o índice de massa corporal possa não ser um bom indicador de saúde, persiste a ideia de que as gorduras se associam à preguiça, gula e doença, e as magrezas à energia e saúde. Começou a ser necessário contestar estes estereótipos, e é o que vários activismos estão a tentar fazer; criando novas linguagens e formas de estar. Ainda assim, neste posicionamento onde a gordura é orgulhosamente apresentada, sem desculpas e justificações, percebemos a forma ainda deficiente que a sociedade tem em lidar com a diferença de corpos. É preciso contrair a surpresa e resistência sociais. A aceitação do corpo é importante a vários níveis, seja o corpo grande, pequeno, às bolinhas e nas gradações da diferença. Só com aceitação é que se pode atingir um estado necessário para o bem-estar individual e colectivo. O medo generalizado de que a aceitação da gordura cria mais gordura é despropositado. O mais importante neste momento é lutar contra a tentativa de invisibilizar os corpos – e não cometer a violência de fazer desaparecer as pessoas que neles habitam.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSalários da função pública [dropcap]D[/dropcap]ia 17 deste mês, a comunicação social de Macau anunciou que o Governo não vai cortar os salários nem os benefícios dos funcionários públicos em 2021. André Cheong, secretário para a Administração e Justiça, apelou a que as pessoas não dêem ouvidos aos rumores e que, em conjunto, combatam a epidemia e revitalizem a economia. Recentemente, circulou o boato de que o subsídio de Natal dos funcionários públicos não iria ser pago e que os salários iam sofrer cortes. Num quadro de grande recessão económica, muitos trabalhadores têm os salários reduzidos, outros os salários congelados, há ainda quem esteja de licença sem vencimento e quem tenha perdido o emprego. A crescente vaga de más notícias, combinada com a redução de despesas administrativas não essenciais, deu origem a uma série de conjecturas. As afirmações de André Cheong deram segurança aos funcionários públicos e serviram para acabar com as especulações. Em Macau, os salários dos funcionários públicos são determinados através da ponderação de quatro factores, de acordo com o parecer da “Comissão de Avaliação das Remunerações dos Trabalhadores da Função Pública”. O Governo decide a variação salarial da função pública para o ano seguinte, na segunda metade do ano em curso. A Comissão foi criada em 2012. Sob a alçada da Secretaria para a Administração e Justiça, tem 11 membros designados pelo Chefe do Executivo, entre os quais se encontram académicos, representantes da Câmara do Comércio de Macau, da Federação da Indústria e do Comércio de Macau, da Associação dos Profissionais de Saúde. Conta ainda com a participação de funcionários públicos aposentados, representantes de fraternidades, representantes do Instituto de Investigação em Administração, bem como do Serviços de Administração e Função Pública, etc. O mandato dos membros tem a duração de dois anos. Para se pronunciar sobre os salários do ano seguinte, a Comissão tem de ter em conta a situação financeira do Governo, as tendências dos salários do sector privado, a inflação e o parecer das organizações de funcionários públicos, antes de emitir a sua opinião e submetê-la ao Governo. Como não existe uma fórmula para ponderar estes quatro factores, de forma a determinar os aumentos salariais, há quem diga que este sistema carece de transparência. Assim sendo, uma das soluções seria criar uma fórmula de cálculo em que cada um dos factores correspondesse a uma certa percentagem. Com um método de cálculo claro, seria mais fácil compreender os ajustes salariais da função pública doravante. A sociedade de Macau é muito sensível à questão dos aumentos salariais da função pública. A principal razão é porque se considera que os funcionários públicos são “Bem Pagos”. “Bem Pagos”, quer dizer ter salários mais elevados e mais benefícios do que os trabalhadores que desempenham funções semelhantes. A julgar pelo número de candidatos, podemos ver o quão atractiva é a Função Pública em Macau. Mas existe uma diferença entre “Aumentos Salariais” e ser “Bem Pago”. Os funcionários públicos são bem pagos, em parte porque estão sujeitos a um regime jurídico especial. Este tipo de restrições jurídicas são desnecessárias no sector privado, mas no serviço público são uma necessidade, e os funcionários são obrigados a obedecer-lhes. Por exemplo, a sociedade exige que os funcionários públicos tenham carácter nobre e integridade. Com tal, e de acordo com a Lei Básica, o Chefe do Executivo e os directores dos departamentos têm de declarar publicamente os seus bens, antes de assumirem o cargo. Outros altos funcionários são também obrigados a declarar os bens junto da Comissão contra a Corrupção e do Tribunal, em consonância com o sistema de declaração de propriedade do Governo de Macau. A declaração de bens pode ser supervisionada pelo Governo, mas também o pode ser pelo público em geral. Desta forma, os bens dos funcionários públicos podem ser consultados por todos. Diz-se que todos os funcionários públicos deviam ficar felizes por poderem declarar os seus bens; mas isto é uma questão de opinião e não se pode generalizar. No entanto, quando foi implementado o sistema de declaração de bens, o objectivo foi ficar a conhecê-los publicamente e não ficar a conhecer o sentimento dos seus proprietários. As entradas das salas de entretenimento e de jogo estão vedadas aos funcionários públicos, à excepção dos três primeiros dias de cada ano. Esta proibição garante a integridade dos servidores públicos, mas também os impede de se divertirem. Os funcionários públicos são responsáveis pela implementação das políticas governamentais. Na vida do dia a dia existem muitas normas estabelecidas. Cabe à função pública a responsabilidade de fazer com que o sistema funcione segundo as regras. Quanto melhor desempenhar a sua função, maior apreço terá o Governo. Se os funcionários públicos forem substituídos com frequência, e os novos não estiverem acostumados com os procedimentos, a imagem do Governo sofrerá danos. Pode afirmar-se que uma equipa estável de funcionários públicos é um factor importante para a estabilização da sociedade em geral. Como tal, o serviço público deve ser estável e com o menor grau de atrito possível. Uma das condições que garante um serviço estável é ser “Bem Pago”. No entanto, por serem “Bem Pagos”, os funcionários públicos são alvo de críticas. Com a actual recessão económica, com trabalhadores estão confrontados com o congelamento de salários e com o desemprego. O sector privado não vai aumentar os salários de forma significativa. A influência que esta situação vai ter no ajuste dos salários dos funcionários públicos no ano que vem, é sem dúvida um factor de preocupação social. A formulação e a implementação das políticas do Governo requerem o esforço dos servidores públicos. É evidente que estes dão as boas vindas aos aumentos salariais, mas de momento a sociedade não vai acolher necessariamente bem a decisão do Governo de aumentar a Função Pública. Para ter em linha de conta a opinião da população e simultaneamente manter o estatuto de funcionários públicos “Bem Pagos”, e equilibrar os dois factores “Bem Pago” e Aumento Salarial”, será necessária uma grande destreza e o resultado não vai poder agradar às duas partes. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Covid-19, educação e trabalho (I) “Nothing in life is to be feared, it is only to be understood. Now is the time to understand more, so that we may fear less.” Marie Curie [dropcap]V[/dropcap]ai ser preciso muita ciência e investigação para a saúde das populações e do mundo. O que mais se lamenta, juntamente com os cuidados de saúde, é que tenham sido reduzidas as despesas nos anos infaustos da austeridade neoliberal ou que nos degradámos ao financiar apenas o que prometeram ser útil no presente. Tudo foi reduzido em termos de despesas como a ciência e a investigação básica, que se move a longo prazo e tem como principal interesse alargar as fronteiras do conhecimento. E da ciência, em tempos de pandemia, temos exigido verdades irrefutáveis. Os políticos queriam respostas inequívocas sobre o momento e as consequências da pandemia. Respostas que os libertariam da fadiga e da responsabilidade pelas suas escolhas. Os cientistas mais sérios admitiram os limites dos seus conhecimentos, e afirmaram que a verdade vem muitas vezes de tentativas e erros, e que a ciência séria nunca está livre de dúvidas, e que através destas se aborda a verdade. E que, portanto, a verdade depende do que se quer fazer e para onde se quer ir. E isto foi e é incerto. Na incerteza, o sonho da política tem sido sempre tentar salvar cabras e couves. O melhor cientista para os políticos é aquele capaz de paradoxismos. Salvar vidas e, ao mesmo tempo, assegurar que a economia e os lucros comecem a recuperar o mais rapidamente possível, para no futuro crescer rapidamente e respeitar o ambiente e o planeta. Mas os cientistas que estudaram sem terem de responder a mandatos impossíveis deram as suas respostas. Se não reduzirmos as emissões nocivas para a atmosfera, se não abrandarmos o aquecimento global, não haverá futuro. Que a política faça as suas escolhas a partir daqui. Dar prioridade ao financiamento da investigação para produzir e circular sem poluir. Os políticos que tomem as suas decisões e tentem ganharem o consenso das pessoas, evitando o mal do presente, e planeando um futuro em que a vida ainda seja possível. A mediação entre os impulsos contraditórios, o consenso a curto prazo, o projecto de um futuro habitável é a tarefa de cada um, e é uma empreitada pela qual seremos julgados pelas gerações presentes e futuras. A ciência só pode lançar luz sobre como as escolhas irão pesar no equilíbrio do mundo. É suficiente e progride para sustentar a necessidade de a financiar como merece e para a tornar uma pedra angular essencial do desenho do renascimento. A relação entre a ciência e a política não pode ser apenas a relação entre o poder político e os peritos. Se compreendido desta forma, corre o risco de ser funcional a impulsos autocráticos e tecnocráticos. Afinal, esta é a lógica dominante no actual discurso da Covid-19 em que a única coisa importante é a decisão, desde que se baseie nas opiniões autorizadas dos responsáveis. Colocando de lado o que deveria ser o principal problema, a relação entre ciência e a democracia. Como a ciência, com as suas verdades e dúvidas, pode alimentar o discurso público, e como o discurso público alimenta a ciência. Para que isto aconteça, é necessário um salto qualitativo no nível de conhecimento e educação das pessoas. Isto é difícil e urgente em todo o lado, em que cada país vê a sua população na base das classificações internacionais para os níveis de educação da população adulta e para as competências alfanuméricas básicas, aquelas que permitem até os textos mais simples serem lidos e compreendidos. E num mundo em que as escolhas que orientarão a ciência e a investigação terão repercussões decisivas na vida das pessoas, o aumento dos níveis de conhecimento generalizado torna-se decisivo para a estabilidade da democracia. É necessárias mais escolas para as crianças, jovens e adultos, para recuperarem rapidamente dos desastres causados pelas reduções de despesa na educação no passado recente. Todo o sistema de escolas e universidades, lembrando que os professores puseram em prática acções extraordinárias para continuar a permanecer perto dos alunos no tempo da Covid-19. Desenvolveram conhecimentos na área do ensino à distância, e para muitos foi a primeira vez, dentro de um sistema que não estava preparado, e não os preparou para estas tarefas. Mas, ao mesmo tempo, revelou ainda mais profundamente o quê e quão fortes são as desigualdades que pesam nos processos de aprendizagem. A educação à distância tornou mais evidente o que era conhecido, ou seja, o quanto as diferenças sociais das famílias (rendimento, conhecimentos) pesam sobre o presente e o futuro das crianças. Mesmo antes, ter ou não ter o seu espaço para estudar e brincar era um indicador decisivo do sucesso escolar. A aprendizagem à distância fez-nos tocar brutalmente com as nossas mãos em pontos sensíveis, colocando impiedosamente à frente dos nossos olhos crianças que tinham o seu quarto, computador, “tablet” e pais que os podiam acompanhar discretamente no seu percurso, e crianças que tentavam navegar em ferramentas que tinham a oportunidade de utilizar pela primeira vez, em salas cheias e com pais que estavam preocupados em fazer muito mais, como combinar o almoço com o jantar, e ajudar os seus filhos a navegar. Especialmente porque nunca tinham navegado antes. Uma diferença que marca uma discriminação de classe em todo o lado, e que é ampliada em muitos países e em certas áreas de um mesmo país. Entre cidades e zonas interiores, de acordo com as margens que ainda dividem os níveis e as possibilidades de ligação e de competências digitais das pessoas dentro de cada país. Em muitos casos, o ensino à distância amplifica as formas de transmissão do conhecimento, que estão na base da dificuldade da escola em ser verdadeiramente inclusiva. Disciplinarismo, ensino do individualismo, a lição frontal como uma forma quase exclusiva de transmitir conhecimentos. O clássico de “Eu ensino a minha disciplina e os alunos têm de aprender”. A forma como sempre se dividiram alunos e de contrastar o tempo inteiro, as experiências de cooperação educacional, a boa escola que tentou partir da experiência dos estudantes e do conhecimento do seu contexto social, dos pais trabalhadores, agricultores e desempregados. É maravilhoso como os professores de boas escolas têm tentado manter uma relação colegial com os seus colegas e propor aos estudantes caminhos que levam em conta a sua experiência mesmo em condições tão difíceis. Os que tentaram fazer a escola inclusiva mesmo à distância. Mas aqueles que tentaram utilizar a educação à distância neste sentido têm um desejo desesperado de regressar à sala de aula, de estar à frente dos rostos dos seus alunos. As tecnologias didácticas inovadoras são uma ferramenta indispensável para acompanhar os estudantes a manterem o sentido crítico e a inteligência activa num mundo onde as imagens e as palavras dos meios de comunicação, desempenharão um papel cada vez mais importante nas suas vidas e no seu trabalho futuro, mas uma ferramenta que de forma alguma pode substituir a comunidade educativa que é construída na relação presencial entre professores e estudantes. O regressar à sala de aula, onde desde o princípio se ensinou a ideologia da tecnologia que compreende e tudo resolve. A moda da passagem do século, que pregava o ensino à distância como o grande recurso do futuro, capaz de substituir a educação obsoleta em presença, felizmente está em crise, mesmo nos Estados Unidos onde nasceu. Retornar a classes mais pequenas para o número de alunos e maiores para o espaço disponível, em escolas capazes de utilizar o território como um recurso educativo. Os campos, parques, praças, muros e arcos das aldeias como lugares de ensino. Abertos durante o dia e a noite para permitir a presença de crianças e jovens em grupos mais pequenos, e aberto às necessidades de conhecimento dos adultos. E talvez até mesmo valorizando, tornando-o no eixo da recuperação educacional, o que aprenderam em casa. As coisas que aprenderam sobre o vírus e as vidas dos membros da família. Manter a ciência conjuntamente com a literatura e a arte que abrem a imaginação. Conceber um novo humanismo a partir da escola. Para isso será necessário exaltar e não reduzir a autonomia da escola como comunidade educativa e como capacidade de se relacionar com o território em que está inserida. Fora e contra qualquer processo de corporatização, que nos últimos anos tem sido favorecido por ter concebido a autonomia como uma forma de reduzir os custos escolares, obrigando as escolas a procurar recursos no “mercado”. E também acentuando a desigualdade de desempenho e resultados entre as escolas, com base nas diferenças de riqueza e rendimento dos locais que as acolheram. A precariedade de uma parte substancial do pessoal, o baixo reconhecimento económico do pessoal docente e do pessoal técnico e auxiliar, numa altura em que se pedia a todos que aumentassem a sua carga de trabalho, foi a outra razão para a crise de autonomia escolar. A escola pós-covid-19 vai precisar de pessoal estável e digno. Uma tecnologia adequada a estas tarefas terá de ser utilizada como um instrumento, que só pode ser uma tecnologia própria e concebida para ser inclusiva e não divisiva. Será necessário dinheiro, mas também para isso precisamos de um novo pensamento económico capaz de privilegiar a produção de homem para homem em detrimento da produção de bens para consumo, ou mesmo de bens – a indústria da guerra – que as pessoas destruam. Mesmo no trabalho, a distância tem enfatizado as divisões e desigualdades. Tal como com os estudantes, aqueles que trabalham foram divididos entre os que podem trabalhar a partir de casa e os que não podem. Entre os que cuidam e actualizam os algoritmos da Amazon e os da linha de montagem do armazém, ou circulam pela cidade em carrinhas, bicicletas e ciclomotores. Entre aqueles que fazem trabalho intelectual a partir do seu quarto e os que ficam no hospital, cara a cara com os doentes. Entre os gestores que podem dar ordens mesmo remotamente e os trabalhadores que têm de produzir e transformar a matéria-prima. Na maioria das situações, a possibilidade de trabalhar a partir de casa é proporcional aos níveis de rendimento, conhecimento, e por vezes até poder. A distância também passa entre os que trabalham a partir de casa com um nível médio-alto de autonomia e os que trabalham a partir de casa como uma engrenagem que os direcciona para o detalhe. Entre os profissionais e os trabalhadores na Internet. Entre os que têm uma bela casa e têm um trabalho que os recompensa e gratifica, e os que vivem em espaços confinados e desligam a Internet para fazer face às despesas. E entre aqueles que são homens e mulheres. Porque trabalhar a partir de casa não atenua mas enfatiza as diferenças de género. A coincidência do local de trabalho e local de vida para muitas mulheres significava acrescentar ao trabalho o peso quase exclusivo do trabalho de proteção. Um peso enorme quando em casa há crianças que já não vão à escola, idosos que não são auto-suficientes, membros da família com deficiências, e juntamente com o apoio institucional, desapareceu também a possibilidade de utilizar a ajuda doméstica e “babysitters” e mesmo práticas de auto-ajuda a nível parental e de vizinhança. Não poder sair de casa reforçou em muitos casos as correntes que as ligam a homens violentos. Não é coincidência que os pedidos de ajuda dos centros não-violência tenham aumentado em mulheres espancadas. Acima de tudo, devemos aceitar as desigualdades e a fragmentação do mundo do trabalho, que a própria crise da Covid-19 trouxe à luz do dia. Descobrimos dramaticamente que o fundo de despedimento e os sistemas de segurança social em vigor não cobrem todo o trabalho. E que são precisamente os empregos que eram realmente “essenciais” nesta fase, os prestadores de cuidados que zelam pelos idosos e que permitem que muitos deles escapem ao pesadelo de residências de cuidados de saúde ou lares de terceira idade, os trabalhadores agrícolas que lhes era permitido fornecer os alimentos quando tudo estava ainda em aberto, uma grande parte dos trabalhadores do comércio alimentar que permaneceram disponíveis, e aqueles que trouxeram às casas necessidades básicas de bicicleta ou motocicleta, e especialmente mulheres trabalhadoras, que limparam e higienizaram hospitais e lares muitas vezes com protecção sanitária improvisada, e que são precários, instáveis, sem direitos e muitas vezes dependentes de empregadores e cooperativas que lhes pagam contribuições por menos de metade do trabalho efectivamente realizado. As formas de extensão a muitos sectores do fundo de despedimento e os subsídios temporários não são suficientes para os tranquilizar quanto ao futuro. O reinício deve ser acompanhado de medidas para resolver estas intoleráveis desigualdades. A começar pelos migrantes, sem cujo trabalho se perdem as colheitas de frutas e legumes de grande parte dos países. A solução deve ser a sua regularização imediata, quebrando a espiral perversa sobre a qual as máfias e corporações prosperam. Isto foi dito por um empresário em frente ao seu grande campo de alcachofras não colhidas que “contrataria migrantes que se encontram nos centros e que querem e precisam de trabalhar, mas não lhes pode dar um contrato se não estiverem pelo menos legalizados. Mas a legalização só poderá ser feita se tiverem pelo menos um contrato de trabalho”. A prorrogação das autorizações de residência até ao final do ano não resolve o problema estrutural e não dá qualquer garantia às pessoas que se tem vindo a explorar como trabalhadores durante anos, recusando-se a considerá-los cidadãos. Regularizá-los é o movimento para dar alguma certeza à produção agrícola e retirá-la da influência mafiosa em muitos países, com benefícios a longo prazo também na condição de trabalhadores de cada país. Mas esta condição vai para além do trabalho agrícola. Não muito diferente é a situação dos migrantes que trabalham na logística, na construção civil, nos muitos empreiteiros da mesma indústria. A regularização deve afectá-los a todos. E é uma questão de civilização e de respeito pela dignidade humana, ainda mais do que económica. O segundo é o salário mínimo de que o próprio Papa Francisco falou. Um salário para todos os trabalhadores, começando pelos “invisíveis”, que fazem serviços essenciais para a vida das comunidades. Os muitos no trabalho de ajuda, em casas, empresas de limpeza, em tarefas que muitas vezes permitem a sobrevivência de famílias inteiras, os muitos “trabalhadores” qualificados que inserem dados nas máquinas da economia virtual, os muitos trabalhadores independentes ligados a uma cadeia que muitas vezes nem sequer consegue ver quem está a puxar os cordelinhos. O “irregular” da cultura, precário e mal pago, que são os que disponibilizam o património cultural do país às pessoas. Os trabalhadores da indústria do entretenimento, talvez o mais ocasional e intermitente de todos, que pagam por cada contribuição de desempenho para uma pensão que nunca amadurecerá. A garantia de um salário digno para todos é também a base para a construção de um novo sistema de previdência social que estende o gozo dos direitos agora totalmente disponíveis apenas aos trabalhadores que são regularmente enquadrados e contratados. Tem havido muita discussão sobre os rendimentos da cidadania, os seus méritos e limitações. Acima de tudo, a forte condicionalidade que exigiria dos pobres uma vontade de trabalhar em qualquer lugar, perto ou longe, excluindo qualquer possibilidade de construir um projecto de vida próprio. Há mesmo quem pense em utilizar a Covid-19 para reforçar a chantagem. Alguns agricultores europeus e americanos gostariam de os enviar para trabalhar nos campos, talvez de graça e talvez deixando os migrantes nos centros de acolhimento, que gostariam de trabalhar por um salário justo e com um contrato decente, ou para os enviar para as emergências do vírus. Ao invés, seria tempo de se voltar a pôr a mão na consciência de forma a alargar o valor de combate à pobreza, que a Covid-19 corre o risco de aumentar dramaticamente, bem como construir projectos educativos e culturais que, para além de dinheiro para sobreviver, se preocupasse em fazer as pessoas repensar o futuro, com percursos individualizados, valorizando o pleno trabalho para preencher as lacunas. O que uma gestão pura através de algoritmos e esquemas largados a partir de hierarquias burocráticas superiores não permite. É necessário dissolver a ambiguidade que resulta de se ter mantido indevidamente unido a luta contra a pobreza e as políticas laborais activas. Além disso, seria paradoxal se, ao mesmo tempo que se apela justificadamente a uma ajuda incondicional à Europa, os países continuassem a subordinar a ajuda aos pobres a condições muitas vezes irrealistas, sempre chantageantes tendo em conta que até final de 2020 podem morrer cerca de doze mil pessoas por dia como consequência da crise de fome originada pela pandemia da Covid-19.
Carlos Morais José A outra face VozesSob o céu de Palmyra [dropcap]P[/dropcap]assara por Palmyra mas de Palmyra não saíra. Um esgaço de gente, eu, somente, a espaçar entre os doentes. Palmyra nunca ficava para trás e nós — que bem para a frente andávamos! Talvez às voltas, em círculos vários, complexas ovais, mas ali estava de novo Palmyra, sob as nossas sombras esticadas; e a noite que se aproximava; e o suão se levantava. E em Palmyra dormiria. Ali atendia o dia. A noite pertencia à lei. Todas as noites as passei em Palmyra. Vagueei sob arcos e arcadas, grandes portas e escadas, visitei ruelas, lojas, tabernas. Conheci os donos das esquinas, os senhores dos bairros. Era, amiúde, convidado para jantar. Conheci mulheres e elas conheceram-me, embora a nenhuma me vinculasse por me saber mera passagem. Todos os dias saía de Palmyra e me metia ao caminho. Talvez de um forte, talvez do mar, de um porto. Sonhava barcos no dorso do meu camelo. E comandava embalado toda uma tripulação. Pensava na cidade onde pretendia atracar. Teria ela mar ou um mero rio? Depois sentia um solavanco maior, um bramido e despertava do meu devaneio. A besta acabava de se ajoelhar, já noite crua, às portas da cidade de Palmyra, não muito longe da Fonte Eterna, de onde tantas vezes olháramos o contraluz do castelo e, num gelo súbito, tremêramos. Estava em Palmyra e outra noite se estendia à minha frente. Um velho recolhia cacos. Interpelei-o: “Velho Mestre, apresenta-me à rainha. Ouvi que ela ordena sobre Persas e Romanos e ainda outros povos cujo nome é terrível e não se deve pronunciar”. O velho aquiesceu. Nessa noite, adormeci sossegado na taberna. Mas outro dia espairecia e ao caminho eu me fazia. E para Leste me dirigi, para Leste indiquei o meu olhar. Desta vez fi-lo sozinho, oscilante no dorso de meu dedicado animal. E, em devaneios, sob o sol ainda tépido da manhã, o velho do nada me aparecia e me dizia ter a rainha anuído a meu tão ousado intento. E o coração pulsava desmedido sob a pele, pois já longe me julgava. Forte bramido: meu camelo que ajoelha e eu acordo em terra de Palmyra, lá no seu largo outonal. Ali aterro em solo quente, ainda oscilante da viagem, mas quente fornalha, a escaldar, quase miragem, não fossem reais as armas que estendidas me esperavam. E, por detrás de estandartes, de homens de várias artes, soldados e generais, ministros e sicofantes; sem manobra de intenção, surge impávida a rainha. “Dizem-me que queres sair de Palmyra e não o consegues. Todos os dias, porém, o tentas. Levas a tua magra tenda e ala pelo deserto, que preferes a esta cidade. O que pretendes de mim?” “Que intercedas junto aos deuses que me tramam. Morfeu e a sua dama. Os deuses dos caminhos desta terra, os do deserto, os da falta de água.” “Vai-te, homem. Sai da minha cidade. Ninguém quer ouvir o teu resmungo, a acidez da tua língua estrangeira, a rigidez desse discurso, as várias cores dos teus costumes.” E gargalhava. E assim, sob tochas, me levaram à rua e da rua ao largo e do largo às muralhas onde o meu camelo me esperava. O dia já despontava. E montado por mim dei. Tinha finalmente a esperança, sagrada por ordem real, de me afastar de Palmyra. E tão crente, tão seguro, estava de por fim poder partir que — mal ordenei ao bicho: “Oriente!” — dei por mim logo a dormir. Sonhava com a cidade que eu tanto desejava e via Palmyra ao fundo, chorosa e definhada. Lá para trás, ficava. Palmyra, a santificada, a da fonte sempiterna, a sempre núbil do deserto. E por toda a noite errei. Devo ter dado voltas e revoltas, ter voado da gangrena ao desespero, editado ânsias de corvos e prateleiras de ícones abandonados. Era o mundo um cemitério. Vasto, orgíaco de morte. Acordei num bramido de joelhos. Era ainda em Palmyra onde, do pesadelo, o nobre animal me acoitava. Havia uma porta entreaberta e um guarda, que generoso acolhia: “Entra, palerma. Todas os dias…: para onde tanto vais?…” “Tenho um encontro prometido em Samarra. Mas em Palmyra sempre me vejo e dela não consigo sair. Quando me afasto de Palmyra, logo adormeço e sonho, desemboco em devaneios e sempre por mim dou de volta, a esta mesma cidade. Tentei o chá, o café, as raízes interditas. Mas sempre os devaneios me tomam. Diz-me — tu que vês os homens e as mulheres a passar —, o que posso eu fazer?” “Continua a tentar, rapaz. Todos dias. Mantém pronta a tua tenda. Alguma vez o camelo te levará para Oriente e te depositará ainda estremunhado no mercado de Samarra, onde cumprirás o teu encontro. Ninguém te poderá acusar de chegares atrasado ou de não teres firmemente tentado. “Entretanto, devaneia no dorso do teu animal e pelo teu pé nas travessas desta cidade. O que poderás fazer é devanear: de dia pelo deserto e de noite pelas tabernas de Palmyra.” O guarda, que era um crente, acrescentou ainda: “A bondade divina permitiu a miríade dos seres e das manias. Por isso, também para a tua doença haverá um lugar sob a roda do céu.”
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesCem anos de mudanças [dropcap]O[/dropcap] filósofo da antiga China, Lao Tzu, disse, “A felicidade e a desgraça andam de mãos dadas. A felicidade traz muitas vezes consigo o infortúnio e o infortúnio está sempre escondido na felicidade”. Todas as coisas deste mundo têm aspectos positivos e aspectos negativos, à semelhança dos polos positivo e negativo das forças electromagnéticas. Os acontecimentos encaminham-se na direcção positiva quando chegam ao extremo da negatividade. A positividade e a negatividade são duas faces da mesma moeda, não forças opostas como Hegel nos demonstrou através da sua dialéctica. Toda a gente sabe discorrer sobre a razão, mas apenas muito poucos agem de forma razoável. O egoísmo daqueles que detêm o poder mergulha o mundo na confusão e na inquietação. As obras de Orwell, “O Triunfo dos Porcos” e “1984” ultrapassaram largamente a ficção, foram antevisões do mundo em que vivemos. Só aqueles que fizeram uma leitura aprofundada destas obras podem entender a verdade subentendida nas entrelinhas e por isso evitarão cometer os erros descritos nestes textos “ficcionais”. A pandemia de COVID-19 tem vindo a assolar o mundo nos últimos seis meses. Enquanto escrevo este artigo, há registo de mais de 13 milhões de infectados a nível global e o número de mortos anda perto dos 600.000, e isto para não falar do enorme abalo económico que já se faz sentir por toda a parte. Este vírus não apareceu do nada. Se surgiu na natureza ou se foi criado em laboratório, é um enigma que só pode ser desvendado pelos cientistas através de estudos aprofundados sobre o seu processo de mutação. Mas esta pandemia trouxe consigo grandes mudanças a nível planetário, para além de todo o sofrimento que já causou. O Partido Comunista da China foi fundado em 1921, apenas dois anos depois do Movimento do 4 de Maio (1919), o mesmo ano em que Sun Yat-sen estabeleceu o Governo Nacional em Guangzhou (Cantão). No plano internacional, 1918 foi o ano do fim da I Guerra Mundial e da fundação da Liga das Nações, impulsionada pelo então Presidente americano Woodrow Wilson. Quer estivéssemos na China ou na Europa há cem anos atrás, a vida seria certamente mais difícil do que é agora. No entanto, a vitalidade e as crises florescem em tempos difíceis, o que comprova a filosofia de Lao Tzu. Volvidos 75 anos do final da II Guerra Mundial, e 40 e tal anos após a China ter implementado a política de reformas e de abertura, parece que a Humanidade deixou de celebrar os tempos de paz. O barril de pólvora, constituído pela situação geopolítica de Médio Oriente persiste e o Museu Hagia em Istambul vai voltar a ser uma mesquita. O ping-pong diplomático entre a China e os Estados Unidos vai tornar-se uma guerra comercial. Hong Kong, desde há muito distinguida com o título de “Pérola do Oriente”, está actualmente desfeita em pedaços tão afiados que facilmente cortará as mãos dos que lhe estão próximos. E, mais, sob o domínio dos nacionalismos e dos populismos o mundo está a tornar-se um local muito perigoso. Deng Xiaoping disse que o progresso das reformas não podia ser revertido, porque voltar atrás nos conduziria a um beco sem saída. A COVID-19, as frequentes cheias, os diversos tremores de terra, as pragas de gafanhotos, a lei de segurança nacional em Hong Kong, o conflito Sino-Indiano, a contenda Sino-Americana….são testes constantes à sabedoria e perseverança da nação chinesa. O resultado positivo ou negativo que daqui pode advir dependerá apenas da responsabilidade colectiva do povo chinês. A 15 de Julho, os visitantes que cruzarem as fronteiras entre Macau e a Província de Guangdong deixam de ser submetidos a quarentena obrigatória. Com esta decisão espera-se trazer alguma dinâmica à economia das duas regiões, num cenário em que ainda existe receio de propagação da COVID-19. Nos 20 anos que decorreram após o regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade tem vivido quase exclusivamente da indústria do jogo, e nunca reflectiu sobre as consequências de depender economicamente de um único sector. Nestes últimos seis meses em que se tem feito sentir o impacto da pandemia, o Governo da RAE e a população devem ter compreendido a realidade actual de Macau. Posto isto, 2020 é o ano decisivo para que Macau procure pelas suas mãos próprias a mudança, ou então para que fique à espera de ser mudado.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBondage japonês [dropcap]O[/dropcap]p Kinbaku e o Shibari costumam ser indiscriminadamente utilizados para se referir ao bondage de tradição e arte japonesas. Para os mais cuidadosos, existem diferenças entre os dois conceitos, Shibari refere-se à arte japonesa de amarrar alguém, enquanto que o Kinbaku se refere a esta mesma prática com ligação emocional associada. Tudo começou com uma forma particular de amarrar prisioneiros com complexos nós e posturas, para assegurar que os prisioneiros ficavam imóveis. Depois, reza a história, que esses oficiais levaram os nós, e as formas de amarrar, para outros contextos, digamos, mais sexuais. O bondage ocidental está longe de ser tão bonito como o japonês. Enquanto que o ocidental faz uso de apetrechos mais comuns, como por exemplo, algemas, o oriental usa as cordas e nós intrincados criando verdadeiras composições humanas de tensão e sensualidade. Rapidamente que o interesse pela prática disparou, tanto por aficcionados do BDSM como também por artistas. Mas esta é uma prática que precisa de mestria, não é para qualquer um. Como em muito do que se conhece da cultura japonesa, exige estudo, dedicação e sensibilidade para fazê-la acontecer. Muitos viajam até ao Japão para aprender com os mestres durante anos, e aos poucos começam a exportar os seus ensinamentos, seja para praticar no quarto ou em performance. Já existem livros, escolas, centros e grupos de estudo por este mundo fora. Mas muitos dos mestres nesta arte de amarrar queixam-se do perigo da apropriação ocidental superficial e rápida. Esta não é uma actividade que se aprenda num workshop de curiosos de fim-de-semana. O processo deve ser longo, moroso e dedicado, para quem quiser dominar esta arte de amarrar. Amarrar o outro, neste contexto, tem que ser de forma controlada e cuidada. Dizem os especialistas que são necessários cuidados para não magoar os amarrados – que depois serão pendurados nas mais incríveis posturas. As posturas depois dependerão das dinâmicas de poder que ali existam e do propósito último da prática. A maioria dos que escrevem sobre a experiência de serem amarrados concorda que há dor e prazer associados. A contenção e suporte que as cordas dão são qualquer coisa que nunca haviam sentido. Não só se entregam à pessoa que está a tratar do assunto, mas às cordas, deixando-as suster a fragilidade e vulnerabilidade pessoais. O risco de lesões está sempre lá. Dizem os especialistas que a comunicação tem que ser rápida e atenta para prevenir o pior. O diálogo e a negociação são muito importantes em qualquer prática BDSM, não só para garantir a segurança, mas para a total entrega e confiança na prática e entre os praticantes. Se o consentimento não existir, só fica a violência, e isso de kinky, não tem absolutamente nada. Apesar do bondage contemporâneo já incluir este shibari/kinbaku, esta foi uma recente aquisição pela cultura BDSM. Foi com a globalização e intercâmbio – onde as redes sociais contribuíram bastante para isso – que se começou a assistir a um diálogo intercultural do sexo e das práticas kinky mais fora da caixa, inspiradas nas mais variadas tradições culturais. Curiosamente, no Japão, o shibari/kinbaku é muito mal visto, porque, tudo o que é relacionado com o sexo, as gentes ainda têm muita dificuldade em encarar. Com sorte que os interessados nas práticas de bondage o trouxeram para uma nova visibilidade – o que outrora foi uma forma de tortura, e, agora, uma possível forma de dominação sexual e de arte.