Plano Director I ½ – “What goes around, comes around”

[dropcap]N[/dropcap]uma sequência de tarefas toma-se ½ por algo não somente intercalado em ordem, mas algo que se instala, muitas vezes em sentido de crise, e que protela a tarefa seguinte.

No caso de 8½ de Fellini, a circunstância prendeu-se com o efeito alienatório da modernização na criatividade, o alegado bloqueio criativo que disso resultou, e a dificuldade em realizar um filme, na sequência de 8 já realizados.

No caso da RAEM, a circunstância prende-se com a consulta sobre Plano Director, e a crise coloca-se logo no início da sua discussão, com a dúvida de quem irá estar apto a intervir nesse Plano, por via de que nomeações e com que garantias. Isso face ao modo como sucessivas notícias, sobre o futuro da Biblioteca Central de Macau, formaram moldes institucionais de actuação profissional.

Em 30 de Agosto último o Executivo da RAEM anunciou que a Biblioteca Central de Macau não seria mais no edifício do antigo Tribunal e passaria a ser algures na península de Macau.

Em 10 de Setembro anunciou que seria exactamente no lote do Hotel Estoril no Tap Seac. Decisão que comunicou já suportado em quatro estudos alternativos, por ateliers internacionais.

Desejavelmente pensar-se-ia que qualquer destas notícias foram resultado de decisões tomadas e de estudos efectuados durante a noite. Razão por que os arquitectos que a RAEM já contratados para os mesmos objectos de estudo apenas puderam tomar conhecimento das novas circunstâncias no mesmo dia em que foram anunciadas.

Pressupõe-se também que os arquitectos estrangeiros consultados não foram informados de que já existiam arquitectos nomeados para o mesmo objecto de estudo.

Os arquitectos estrangeiros em causa pautam-se por desempenho admirável, só podem saber que os arquitectos não estão autorizados a atravessarem-se nas nomeações já formadas por um Dono de Obra a outro arquitecto, sem previamente consultarem o arquitecto já nomeado, desejavelmente obter a sua anuência e a relação contratual estar esclarecida.

Efectivamente a relação de um arquitecto com um Dono de Obra pressupõe-se ser de confiança, regulada por um contrato pautado por regras da boa fé, como qualquer contrato, com objecto próprio e objectivos exclusivos, pois dois objectos de arquitectura não podem ocupar o mesmo espaço, nem o mesmo programa é para ser realizado aqui e ali ao mesmo tempo.

Mas também algo com que os arquitectos da RAEM já atentaram quando, em abstracto, se atravessaram à nomeação feita ao arquitecto Siza Vieira, expressando interesse no mesmo objecto de “estudo”, e razão por que o Executivo da RAEM recuou, e prosseguiu com o concurso público de arquitectura para o antigo Hotel Estoril.

Com tudo isto fragilizaram-se moldes de intervenção respeitável, e abortaram-se 2 projectos em curso, que resultaram de 2 concursos públicos de arquitectura, a Biblioteca Central, no antigo edifício dos Tribunais, com assinatura do arquitecto Carlos Marreiros, e o Centro Juvenil de Actividades Culturais, Recreativas e Desportivas do Tap Seac no lote do antigo Hotel Estoril, com assinatura do arquitecto Chu Chan Kam.

Obviamente que nem as novas decisões foram tomadas, nem os novos estudos foram realizados durante a noite, pelo que, mesmo que o Executivo da RAEM não estivesse ainda em capacidade de apresentar aos órgãos de comunicação social toda a nova estratégia, sabia que a mesma afectava posições com uns, que era seu dever salvaguardar desde logo, eventualmente pedindo o mesmo sigilo que pedira a outros, e não confrontá-los como esse desenvolvimento, aquando da mesma apresentação pública. Não andou bem.Mas também a prática sequer é nova, ou mesmo exclusiva do Executivo.

Em 1999, antes da obra da nova sede da Assembleia Legislativa estar concluída, projecto que também resultou de um concurso público de arquitectura, o deputado Fong Chi Keong, na sombra, promoveu modificações à obra, que vieram a ser projectadas por Omar Yeung, arquitecto da sua confiança pessoal.

Essas modificações prosseguiram em projecto que só veio à luz em 2000, no dia seguinte à recepção provisória da mesma obra. Não na versão de um conceito ou ideia para discussão, mas já de projecto de obra, o qual pressupunha um acordo já formado, e pressupunha fases anteriores de projecto já aprovadas por “detrás dos panos”.

O arquitecto Omar Yeung, à data, também não se encontrava registado na DSSOPT, pelo que recorreu à assinatura do arquitecto Alan Kong.

Em 2006, essas circunstâncias foram observadas pelo órgão judicial administrativo da RAEM que contemplou a medida como “ajustada com a realidade social de Macau, por ser uma cidade pequena, com pouca população, que não consegue sustentar grande número de arquitectos qualificados e célebres”, assim como “permite que os arquitectos com fama mundial, mas não estão inscritos na DSSOPT, possam conceber projectos de construção em Macau, desde que o termo de responsabilidade seja subscrito por um arquitecto inscrito, elevando assim a imagem e o nome da RAEM”.

Admite-se que isso tenha sido proferido em abstracto, na medida em que o arquitecto Omar Yeung, só passou a ser famoso em Macau, e não por obra de arquitectura, depois de ter sido constituído arguido no caso Ao Man Long, todavia absolvido.

Mas proferido já em concreto a respeito dos actos da arquitectura, sendo que o mesmo não se admite, por exemplo, nos actos da advocacia.

Em verdade, a imagem e o nome da RAEM já foi elevada desde que parte do seu património construído foi reconhecido como património universal, nomeadamente reportando a épocas em que era uma cidade muito mais pequena, com muito menos população, e por artefactos de que sequer se conhece os autores.

Pelo que muito possivelmente deparamo-nos com o mesmo “efeito alienatório da modernização”. Aquele que já colocou um realizador em crise na realização de um filme, e que, na RAEM, coloca em crise a preparação, encomenda, desenvolvimento e construção de obra pública de arquitectura, desejavelmente respeitável e consequente, em todos os seus trâmites.

À data de todos estes factos, já a Associação de Arquitectos de Macau, a AAM, munira departamentos da RAEM com um documento que servia de guião para a organização e condução de concursos de arquitectura, cujas condições eram aquelas em que a AAM aceitava participar, e a falta era razão para alertar os arquitectos de não estarem reunidas condições para uma participação segura.

Como a AAM também sempre esteve designada, desde a sua génese, para representar os associados em situações que lhes geram vulnerabilidade e que são transversais a toda uma comunidade profissional, para que se reiterem os preceitos que assistem, e os arquitectos não tenham que enfrentar essas situações sozinhos.

Como também a mesma associação já tinha votado nas assembleias gerais da União Internacional de Arquitectos de que faz parte, uma directiva que regula a actividade dos arquitectos em nações de acolhimento, a qual se pauta por parcerias efectivas de trabalho com os arquitectos locais.
Efectivamente, “what goes around, comes around”, se disso não se cuidar, mesmo que passem 20 anos.

Algo que o arquitecto Carlos Marreiros optou por não cuidar durante o seu mandato de presidente da AAM, e consequência que hoje colhe por mero capricho do destino.

Efectivamente o exercício da arquitectura na RAEM é um verdadeiro complexo de contradições e de faltas convertidas em dívidas.

Faltas da RAEM, perante os residentes, pois a cidade carece de um tecido urbano visual e funcionalmente qualificado. Perante os arquitectos porque não proporciona um ambiente profissional em que as suas aptidões se desenvolvam. Prefere concursos de concepção/construção que reservam um valor perceptual baixo para pontuar a concepção arquitectónica. Organiza concursos de arquitectura que a nada conduzem, como se isso não constituísse frustração intelectual e financeira. Vê-se agora em necessidade de recorrer ao estrangeiro, para obter algo verdadeiramente qualificado.

Faltas dos arquitectos da RAEM perante a população da RAEM, sempre que não usaram as oportunidades que tiveram para gerar ou empreender algo relevante, e perante os seus colegas arquitectos sempre que se atravessaram nos seus objectos de estudo.

Faltas da Associação dos Arquitectos de Macau, por não cumprir o que está estabelecido nos seus estatutos, seja perante os associados, seja perante a população da RAEM, não produzindo as recomendações necessárias que um Executivo sensato escutaria para seu próprio resguardo.

E surge esta epifania, apenas a pretexto de uma biblioteca, mas que bateu forte, na alvorada de um Plano Director, perante a possibilidade de intervenientes e organizadores virem pautar-se por mais do mesmo, se outras garantias não existirem.

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