Paulo Maia e Carmo Via do MeioA versão de Shen Yuan do rolo que evoca Bianjing Meng Yuanlao (c.1090-1150), um funcionário governamental que viveu em Bianjing (actual Kaifeng, Henan) dos treze aos vinte e sete anos, sendo depois forçado a abandonar a cidade capital dos Song do Norte, partindo para o exílio em Hangzhou, escreveu uma nostálgica recordação desse lugar. Que se lê como uma ilustração da expressão «menghua», um sonho projectado no passado de um paraíso perdido, por vezes referido como a utopia do imperador Amarelo sobre Huaxu, a terra da harmonia e felicidade perfeitas. Em Dongjing menghua lu, «Sonho do esplendor da capital oriental», editado pela primeira vez em 1187, a cidade é descrita como um lugar onde “A paz se prolongava dia após dia: viviam lá muitas pessoas e havia de tudo em abundância, jovens com longas tranças não se entretinham senão com danças e tambores, os mais velhos com os cabelos salpicados de branco não ligavam a escudos ou lanças. As estações e os festivais seguiam-se uns aos outros cada um com as respectivas situações para apreciar. Noites iluminadas por candeeiros e madrugadas ao luar, períodos de neve e tempos de floração, clamando habilidades e subindo alturas, formando reservatórios e jardins onde se pode passear. Erga-se o olhar e lá estão pérgolas verdes e quartos pintados, entradas bordadas e sombras preciosas. Carruagens decoradas competiam pelo estacionamento na Avenida Celestial e cavalos ajaezados lutavam para passar nas ruas imperiais. (…)” Mas a mais comum evocação de Bianjiang é uma pintura intitulada Qingming shanghe tu, que se pode traduzir como «Sobre a margens do rio durante o festival Qingming» (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 528,7 cm, no Museu do Palácio em Pequim) cuja autoria, no rolo, é atribuída a Zhang Zeduan (1085-1145) e mostra a buliçosa vida em torno do rio Bian. O seu singular fascínio originou inúmeras cópias e recriações das quais cerca de cem estão hoje em vários museus e colecções. Shen Yuan (act. 1728-48) é autor de uma das mais intrigantes recriações (rolo horizontal, tinta sobre papel, 34,8 x 1185 cm, no Museu do Palácio, em Taipé) que se diz ter sido apenas um guia para outra versão colorida executada por cinco pintores da corte de Qianlong. No entanto ela exibe um domínio do desenho, da perspectiva e certos pormenores que a tornam ímpar. Nela está a única confirmação de que a cena decorre no festival Qingming, «o dia de varrer as sepulturas», através de três figuras que se vêem na primeira parte junto de um túmulo, num gesto evidente de quem chora, a eloquente expressão do pesar. Na parte central que representa a ponte dita «ponte arco-íris» onde no original um navio de grande porte se encontra em risco de bater ao passar criando um grande alvoroço, Shen Yuan resolve o perigo riscando linhas rectas que são os cabos que puxam o navio, guiando-o a partir das margens.
Ana Cristina Alves Via do MeioA riqueza e os seus deuses Desde os tempos mais recuados houve quem na China desprezasse a riqueza. Podemos encontrar entre estes os seguidores mais fiéis das filosofias confucionista, daoísta e budista. O cavalheiro confucionista ou o sábio daoísta pouco ligam aos bens materiais. Para estas filosofias, mais importante do que a riqueza material, são os bens espirituais, que cada um vai desenvolvendo como pode: os valores morais, no caso confucionista, e os existenciais, impregnados de espiritualismo, no caso daoísta. Também aos budistas interessa, sobretudo, a libertação dos desejos materiais, a fim de escapar à terrível roda das reincarnações. Mas, o certo é que, desde os tempos mais recuados muitos, muitíssimos, mesmo, têm sido os que, entre os chineses, amam devotadamente a riqueza. Estes situam-se a um nível mais popular, são a grande maioria da população. Não obstante, neles se incluem muitos dos eruditos, capazes de suspender, no dia-a-dia, com admirável facilidade, os preceitos filosóficos que vão transmitindo nas aulas, conferências e outros momentos teóricos das suas actividades. Enfim, para a maioria, a riqueza é um bem inestimável. Há até um deus, o da riqueza, ou vários, dependendo das versões, a que as pessoas prestam culto de modo a enriquecer rápida e prolongadamente. A riqueza, na China, tem uma dimensão religiosa e, por vezes, até mística. Este povo adora com fervor religioso certos bens materiais, como o dinheiro, o ouro, e todos os metais preciosos, as pedras, também preciosas e, em suma, todos os objectos vulgarmente catalogados como tesouros materiais. A relação dos chineses com a riqueza abre-nos as portas ao estudo de uma religião materialista, onde este mundo e os seus bens são o verdadeiro modelo para um mundo sobrenatural, que só é superior na medida em que copiar, sem quaisquer alterações, a ordem estabelecida na terra. Nesta mundividência, há uma mensagem bem clara a reter: não basta actuar no mundo laico para se ser rico, é preciso ter fé e procurar o auxílio e a protecção das divindades ligadas à riqueza, caso contrário a sorte não será favorável. O deus da riqueza, Cai Shen, desdobra-se, em muitas versões, em dois: um militar, representado por Guandi, também conhecido por deus da guerra, e um civil que, não raro, aparece representado pelo ministro da antiguidade, Bi Gan. Este no livro da História é descrito como um servidor leal e justo, que sofreu martírios inenarráveis às mãos de um monarca cruel. O deus, ou os deuses da riqueza, são adorados com fervores redobrados entre os mais desfavorecidos, como é natural. São-lhes erguidos vários templos e altares, onde abundam oferendas, como vinho, frutas e bolos. As divindades são, também, muito apreciadas em zonas e cidades comerciais, como Cantão e afins. O deus civil é venerado por pessoas ligadas a profissões, carreiras e negócios que nada tenham a ver com o mundo militar. Já o deus militar é o protector de todos os indivíduos que, de algum modo, se relacionem com a guerra, como cutileiros, ferreiros, militares… Estes deuses vivem, como já se disse, segundo o modelo da existência terrestre. Têm mulher, família, riquezas sem fim e uma corte poderosa. Despertam um fervor intenso nos seus fiéis tanto eles, como os seus acólitos. Entre estes, um dos mais conhecidos é Liu Hai, habitualmente figurado por um menino com um colar de moedas à volta do pescoço. O rapaz faz-se acompanhar por uma criatura fabulosa: um sapo de três pernas, que devora moedas. Liu Hai é muito importante, do ponto de vista simbólico, pois mostra bem como, para a mentalidade chinesa, se interligam os desejos de riqueza e descendência masculina. Outros acólitos da divindade da riqueza são os gémeos da harmonia: He He Er Xian. Estes revelam mais uma característica importante da maneira de pensar dos descendentes do dragão – o espírito familiar. A verdadeira riqueza não surge com indivíduos isolados, mas em união e, especialmente, em família. A história do par de gémeos chega-nos através de uma lenda. Esta fala-nos de dois irmãos, nascidos de pais diferentes (nessa altura ainda não eram gémeos!), que deitaram mãos à obra, lançando-se ao negócio. Fizeram uma grande fortuna. Com a riqueza a aumentar, acabaram por se desavir. Separaram-se e só na oitava geração os descendentes se voltaram a unir, recuperando todos os bens de que os ancestrais tinham sido senhores. A harmonia e a união trazem a riqueza e, também, a longevidade e felicidade. Esta última é, muitas vezes, simbolizada num morcego, que congrega, por homofonia, a riqueza e a felicidade. Associada aos deuses da riqueza e seus acólitos, costuma surgir uma panela preciosa, que terá sido pescada por um homem de Nanjing, no rio Yanzi. O pescador pensou que o utensílio vindo às redes, seria útil para fazer a comida do cão, de modo que resolveu ficar com a panela. Para grande surpresa dele e da mulher, o objecto era mágico, logo tudo o que se punha lá dentro multiplicava-se indefinidamente. Assim sucedeu com a comida do cão, mas, também, com o gancho dourado da mulher, que, inadvertidamente, lhe escorregou da cabeça. Outros símbolos ligados ao culto da riqueza são: um cavalo precioso, provavelmente de origem budista, de cuja boca se escapam jade, moedas de todos os tipos e outros bens valiosos e que, além disso, transporta um taça repleta de jóias; um dragão-moeda, já que o seu corpo é formado por um longo cordão de moedas; uma carpa, que, por homofonia, representa a abundância, além de inúmeros cestos e caixas a transbordar de tesouros. Este mundo religioso da riqueza, repleto de seres e objectos sagrados, dá acesso ao crente a todo o tipo de bens preciosos: lingotes de ouro e prata, pedras preciosas, árvores mágicas, donde também saem moedas, e riquezas sem fim. Um grande número de frases auspiciosas, de inegável eficácia mágica, remata e coroa este cenário. Os possuidores das belas frases caligrafadas podem estar certos de obter o que elas indicam. Para citar algumas, “longa vida, riqueza e posição social”, ou, apenas, “riqueza e posição social, ou “a visita do Deus da Riqueza”… Na China, e um pouco à semelhança do espírito que anima certas filosofias cristãs do Norte da Europa, para se ser rico há, antes de mais, que acreditar. Em seguida, deve-se cultivar, incessantemente, as relações com os deuses, seus acólitos e nunca esquecer de ter sempre à mão a vasta gama de amuletos aqui referidos. Estes tanto produzem efeito a duas como a três dimensões.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO que Li Shizhuo escreveu nas suas pinturas Gao Qipei (1660-1734), o alto funcionário que se notabilizou pelas suas pinturas que dispensavam o pincel e utilizava de maneira bem-humorada as mãos e a ponta de uma unha que deixava crescer para o efeito, fez parte de uma família que, se não prolongou a sua intransmissível bizarria, enriqueceria a arte do pincel. Um seu sobrinho, Li Shizhuo (1687-1770) mostraria um conhecimento invulgar da história da pintura reflectindo o gosto de sistematização e erudição característicos dos pintores ao serviço do imperador Qianlong (r. 1736-95) a quem serviu durante cerca de vinte anos. Filho de um alto funcionário terá sido no decurso de uma viagem com o pai à região de Jiangnan, que entrou em contacto com o eminente pintor Wang Hui (1632-1717) que teria um papel essencial no ressurgir de importância da pintura ortodoxa de paisagens no fim do século dezassete, com quem terá aprendido os fundamentos da arte. E na ausência de um manual de pintura seu, as inscrições que fez em pinturas constituem um corpo crítico revelador de um saber muitas vezes partilhado nos convívios dos literatos. Em Paisagem a partir de Wu Zhen (1289-1354) e Shen Zhou (1427-1509) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo vertical, tinta sobre papel, 65,2 x 32,8 cm) ele mostra um à vontade que não é isento de certo tom autobiográfico: « As pessoas gostam das pinturas de Shitian (Shen Zhou) e dizem que alcançou os mistérios ocultos de Mei Daoren (Wu Zhen). No entanto elas não percebem que na realidade isso era uma tradição familiar que recebeu do seu pai, Hengji (Shen Hengji,1409-1477). Ontem passei em Guazhou (Yangzhou, Jiangsu) e sentado numa janela à chuva virada para as águas, pintei e pus os pontos (dian) nesta pintura cuja concepção está entre Wu e Shen.» Na adopção desse «espírito dos antigos», guyi, foi consciente da síntese informada que fizera Zhao Mengfu (1254-1322) como na Paisagem no estilo desse mestre, no Smithonian (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 94,4 x 42 cm). Li Shizhuo ao ler o tratado Bifa Ji, «Notas sobre o método do pincel», escrito em parte como um diálogo, actualizou o que nele se defende sobre a verdade do pintor. Em Paisagem a partir de Jing Hao (c.855-915) e Guan Tong (activo a meio do século X) alude a uma célebre distinção académica sobre o uso da tinta ou o domínio do pincel: «Jing Hao chamava-se a si mesmo Hongguzi. Ele escreveu o Segredo da paisagem, e certa vez proclamou orgulhoso: “Wu Daozi poderá ser excelente com o pincel mas é deficiente com a tinta. Xiang Rong pode ser excelente com a tinta mas falta-lhe o trabalho de pincel”. E assim Honggu podia reclamar ser mestre dos dois. Como resultado Guan Tong procurou-o para seu instrutor. Ele foi realmente uma figura destacada do final da dinastia Tang. Aqui tentei mostrar o melhor de Jing Hao, escondendo os seus defeitos.»
Rui Cascais Via do MeioDos quatro entendimentos e dos três tipos de coragem – Xunzi Tradução Rui Cascais Yao perguntou a Shun: “Como são as disposições inatas das pessoas?” Shun respondeu: “As disposições inatas das pessoas são verdadeiramente detestáveis! Por que razão perguntas acerca delas? Quando se tem esposa e filhos, a piedade filial para com os nossos pais diminui. Quando os nossos apetites e desejos são satisfeitos, a nossa fidelidade para com os amigos diminui. Quando o nosso estatuto e salário sobem, a lealdade para com o nosso senhor diminui. As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas são detestáveis. Porquê perguntares acerca delas? Só a pessoa meritória não é assim”. Existe o entendimento do sábio, existe o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar, existe o entendimento da pessoa mesquinha e existe o entendimento da pessoa servil. Algumas pessoas, mesmo quando falam muito, demonstram a forma apropriada e conformam-se à categoria apropriada das coisas; são capazes de passar todo um dia argumentando as suas posições e, através de numerosas reviravoltas e uma miríade de mudanças as suas categorias orientadoras continuam inalteradas – esse é o entendimento do sábio. Algumas pessoas, mesmo quando falam pouco, são directas ainda que reservadas no seu uso das palavras. Quando argumentam, conformam-se ao modelo apropriado como se fossem reguladas com exactidão pela linha de tinta do carpinteiro – esse é o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar. Algumas pessoas têm um discurso descuidado e uma conduta desordeira. Na sua forma de lidarem com as coisas muito há que pode conduzir ao arrependimento – esse é o entendimento da pessoa mesquinha. Algumas pessoas são precipitadas e imprudentes e não seguem as categorias apropriadas. Dispõem de várias competências e vasta experiência, mas não lhes dão bom uso. São rápidas na análise e de discurso refinado e fácil, mas não se preocupam com aquilo que dizem. Não se preocupam com o que é certo e com o que é errado e não separam aquilo que é direito daquilo que é torto. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros – esse é o entendimento da pessoa servil. Da coragem Há o mais alto tipo de coragem, há o tipo de coragem médio e há o mais baixo tipo de coragem. Há alguns para quem existe um padrão central para todo o mundo, segundo o qual ousam estabelecer-se. Os antigos reis seguiam um certo modo de fazer as coisas e aqueles ousam aplicar o seu entendimento dele. Em cima, não seguem os senhores de uma idade caótica. Em baixo, não se conformam às gentes de uma idade caótica. Não se inquietam com o empobrecimento ou dificuldades que possam advir das coisas que envolvem ren [humanidade]. Não consideram riqueza e honra que possam de advir das coisas privadas de ren. Se o mundo os reconhece, deseja partilhar as dores e alegrias do mundo. Se o mundo não os reconhece, permanecem com independência e sós entre o Céu e a Terra e nada temem. Este é o mais alto tipo de coragem. Há alguns que praticam os rituais com reverência e cujos pensamentos são contidos. Prezam, seguem e são fiéis a isso e dão pouca atenção aos bens materiais e à riqueza. Ousam promover e elevar aqueles que são meritórios. Ousam apontar e desvalorizar aqueles que não são meritórios. Este é o tipo de coragem médio. Há alguns que dão pouca atenção ao seu carácter, mas muita importância aos bens materiais. Encontram consolo naquilo que conduz ao desastre e depois procuram libertar-se e escapar irresponsavelmente às consequências. Não se preocupam com a verdadeira disposição do que é certo e errado. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros. Esse é o tipo mais baixo de coragem. Fanruo e Jushi são nomes de grandes arcos dos tempos antigos. Contudo, se não tivessem sido formados pelo torno do criador de arcos não se teriam feito certeiros por si próprios. A espada Cong, que foi do Duque Huan, a espada Jue, que foi do Grão-Duque, a espada Lu, que foi do Rei Wen, a espada Hu, que foi do Lorde Huang, as espadas Ganjiang e Moye, que foram de Helü, assim como as espadas Jujue e Pilü, foram todas grandes lâminas dos tempos antigos. Contudo, se ninguém as tivesse amolado nunca se teriam tornado afiadas. Se ninguém as tivesse empunhado, nada poderiam ter cortado. Hua Liu, Qi Ji, Xian Li e Lü’er foram grandes cavalos dos tempos antigos. Contudo, sem controlo de freio e rédea à frente e sem a ameaça do chicote e da vergasta atrás, para não falar da perícia de Zao Fu na sela, não conseguiriam percorrer mil léguas num só dia. Quanto às pessoas, mesmo que tivessem uma natureza inata excelente e os seus corações fossem sábios e capazes de discernir com argúcia, ainda teriam de buscar mestres meritórios a quem servir e escolher amigos meritórios com quem fazer amizade. Obtendo-se um mestre meritório para servir, tudo o que ouviremos são as instruções de Yao, Shun, Yu e Tang. Obtendo-se um amigo meritório, tudo o que veremos é uma conduta leal, fiável, respeitosa e deferente. E então se fará progresso diário na direcção de ren e de yi[justiça] sem sequer nos darmos conta. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Mas se vivermos ao lado de pessoas que não são boas, tudo o que ouviremos será trapaça, engano, desonestidade e fraude. Tudo o que veremos será uma conduta suja, arrogante, perversa, desviante e gananciosa. Além disso, sofreremos castigo e execução sem sequer nos apercebermos da sua iminência. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Há um ditado segundo o qual “Se não conheceres o teu filho, observa os seus amigos. Se não conheceres o teu senhor, observa os seus companheiros.” Tudo depende daquilo com o qual convivemos. Tudo depende daquilo com o qual convivemos.
Hoje Macau Via do MeioFalando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚 Tradução de André Bueno (continuação) 330. Quem não consegue ainda se controlar, deve afastar-se um pouco da confusão cotidiana, de modo que sua mente não veja o que a inquieta, e não se perca; assim, ele acalmará seu corpo e seu coração. Quem consegue se dominar, deve voltar para a agitação da vida, pois sua mente vê, mas não se sente tentada ou atraída, e isso o ajudará ainda mais a superar as coisas do mundo. 331. Quem ama silêncio, e detesta barulho, vai acabar buscando tranqüilidade fora do mundo cotidiano. Mas, sem o contato humano, a mente retorna ao seu estado original, e ela pode se inquietar e ficar ansiosa. A quietude está na raiz do movimento; Como compreender que eu e os outros somos um só? Como esquecer a diferença entre quietude e movimento? 332. Na montanha, a mente respira, e fica cheia de bons pensamentos; Uma nuvem que passa, o canto das garças, isso incita a mente a voar; Um riacho que murmura nas pedras, isso banha a mente em água cristalina; Fazer carinho num zimbro ou numa ameixeira, isso dá um sentimento de segurança e retidão; Com aves e cervos como companhias, a mente esquece imediatamente seus problemas; Mas ao voltar ao mundo da agitação, uma pessoa não apenas volta a relacionar-se com as coisas, mas torna-se servo delas. 333. Feliz, ande tranquilamente pelos pastos, descalço; as aves te acompanharão, e te farão esquecer seus problemas. Deixe sua mente se fundir com a paisagem; sente sobre as pétalas caídas, observe as nuvens no Céu, e deixe o sentido de ‘eu’ desaparecer. 334. Na vida, felicidade e tristeza surgem na mente. Diz o Budismo: ‘a ganância é um fogo devorador, e um abismo de sofrimento’. Ter desejos insaciáveis é como afundar num mar de amargura; Mas apenas um pensamento bom é capaz de mudar o fogo para água; Apenas um pensamento correto é capaz de levá-lo, como um bote, até uma margem segura. Assim, os pensamentos são levados, de um lado ao outro, chegando aos extremos. Devemos, portanto, ser cuidadosos com a mente. 335. Uma serra de corda corta a madeira, uma gota d’água fura a rocha; quem estuda o Caminho, deve ser constante. A água que flui se transforma em canal, a fruta madura cai do pé; quem busca o Caminho, deve procurar a perfeição. 336. Ao vencer os combates da vida, chega-se a um lugar em que a lua é clara, a brisa é suave, e a vida não é mais um mar de amarguras. Ao limpar a mente das agitações, não se escuta mais o ruído dos cavalos e carruagens, e não é necessário fugir para a montanha para conseguir sossego. 337. Quando as árvores e plantas murcham, os brotos nascem de suas raízes; O inverno é gelado, mas quando o vento sopra e as cinzas voam, é porque o sol está voltando; Mesmos nas solenidades funerais, pode-se perceber os sinais da vida; Assim, apreciamos os espíritos do Céu e da Terra. 338. Olhe a cor da montanha, quando chove; ela ganha uma beleza diferente. Ouve o som de um sininho no meio da noite; ele fica muito mais claro. 339. Vá para um lugar alto, e amplie sua mente; Contempla a água, e deixe que ela leve seus pensamentos; Leia um livro numa noite fria de inverno, e purifique seu coração; Suba uma montanha, declame poemas para o Céu, e vá para além desse mundo. 340. Para um coração aberto, dez mil tigelas são como uma vasilha de barro; Para um coração mesquinho, um cabelo é tão grande como a roda de uma carruagem. 341. Sem chuva, vento, flores e salgueiros, não existe a natureza; Sem sentimentos, anseios, preferências e hábitos, não existe mente. Somente quem controla as coisas, e não é escravo delas, tem sua vontade inspirada pelo Céu, e seus pensamentos encontram a justa medida. 342. Somente quando uma pessoa compreende a si mesma, é que pode deixar as dez mil coisas se desenrolarem, conforme suas dez mil naturezas. Somente quando se governa corretamente pela não-ação, sem reclamar méritos, mas deixando a natureza agir, essa pessoa pode ser dita sábia. 343. Numa vida ociosa, pensamentos estranhos chegam como ladrões. Numa vida ocupada, a natureza humana não pode ser percebida. Não afaste totalmente as preocupações com o corpo e a mente, mas não evite, por completo, as preocupações com a natureza. 344. A mente se perde em meio ao caos e a confusão; Mas em silêncio, ela se esvazia por completo; Ascende ao Céu, voa longe com as nuvens; Refresca-se com as gotas de chuva; Alegra-se, e entende o canto dos pássaros; Acalma-se, e pondera sobre a queda das pétalas das flores; Esse não é o paraíso? Como compreender a verdade do mundo? 345. Quando nasce uma criança, a mãe corre risco; riquezas guardadas atraem ladrões; assim, onde há razão pra comemorar, há que se preocupar também. A pobreza ensina a simplicidade e a diligência; a doença ensina a cuidar da saúde; assim, onde há razão para se preocupar, há aprendizado também. O sábio olha sorte e azar como coisas iguais, e esquece a diferença entre alegria e tristeza. 346. O Ouvido aprende escutando; ouve os ventos sibilarem nos abismos e ravinas, mas depois que passam, tudo fica em silêncio. Os estados da mente são como a lua refletida no lago; quando o céu está vazio, não se vê nada. Assim, se esquece a diferença entre “isso” e o “eu”. 347. Quando o coração está enredado em honras e benefícios, tudo o que se faz ou se diz no mundo termina em tristeza; Não se conhece as nuvens brancas, o vento puro, o rio que corre, as pedras amontoadas, o rosto das flores, a alegria dos pássaros, ou o canto do lenhador que ecoa no vale. Mas quem as conhece, se acalma; e a tristeza vai embora, pois foi ele mesmo que sossegou sua mente. 348. Observe as flores quando estão pra desabrochar; beba vinho somente até ficar um pouco tonto; dessa forma, aproveita-se muito mais as coisas. Observe as flores em todo o seu esplendor; beba até ficar bêbado; dessa forma, tudo que é bom fica ruim. Quem tem uma alta posição, deveria refletir um pouco mais sobre essas coisas. 349. As plantas crescem nas montanhas, sem que alguém lhes dê água ou estrume, e seu sabor é delicioso; As aves voam pelos campos, sem que alguém as crie ou lhes dê comida, e seu sabor é incomparável; Dá-se o mesmo com quem convive com o vulgar, mas não é contaminado por ele, mantendo sua pureza original. Tal pessoa não é um exemplo? 350. Cultivar flores, plantar bambus, brincar com as garças, observar os peixes, tudo isso deve ser feito com atenção. Quem o faz de forma vazia e displicente, sem perceber a beleza da natureza, é aquele que os confucionistas chamam de ‘superficial’, e os budistas de ‘ pretensioso’.* O que pode haver de bom nisso? *no original, ‘pessoa de boca e ouvido’ (=superficial); e ‘pessoa ignorante e arrogante’ (=pretensioso). [O primeiro despreza conhecer; o segundo ‘pretende’ que conhece.] 351. O Educado que vive nos bosques e montanhas leva uma vida austera, honesta, simples, e está sempre satisfeito; O camponês dos prados leva uma vida simples e ignorante, mas conserva sua ingenuidade e pureza; Quem foge do mundo das coisas pra depois voltar a ele, se transforma num mísero negociante; seria melhor ter morrido nos campos, sem contaminar seu corpo e alma. 352. Tome cuidado quando ganhar fortunas sem razão, ou desfrutar de alegrias não-merecidas; pode ser um teste, uma tentação imposta pelo Céu. Há gente de visão limitada, que sempre cai nessas armadilhas. 353. A vida humana é como uma marionete: Se as cordas estão em suas mãos, livres, desembaralhadas, e você pode movê-las como quiser; Então, você controla sua vida, e nada pode manipulá-lo; Só assim livra-se das cordas do mundo. 354. Vantagens e desvantagens surgem juntas; quem sabe disso, abaixo do Céu, entende que a felicidade é a não-ação. Um antigo provérbio diz: ‘Aconselha o soberano a deixar de lado suas conquistas, pois apenas uma vitória deixa dez mil crânios apodrecendo no campo’ E também: ‘Deixa em paz todas as dez mil coisas abaixo do Céu, e não se importe se sua espada enferrujar na bainha por mil anos’. Quem compreende essas palavras, pode amansar um coração impulsivo e violento, como se o refrescasse debaixo do sol. 355. Uma mulher indócil pode corrigir-se, e virar monja; um homem mesquinho pode controlar-se, e seguir o Caminho num templo. Por isso, os templos servem para o refúgio e a correção dos perdidos. 356. Quando as ondas chegam até o Céu, quem está no barco não se assusta, mas quem está de fora, fica amedrontado; Quando acontece um tumulto numa festa, quem está no salão não se impressiona, mas quem vê de fora, fica apavorado; Por isso, o sábio, quando está dentro de alguma situação, projeta sua mente para fora dela. 357. Aja menos, erre menos; Menos amigos, menos confusão; Fale menos, menos equívocos; Preocupe-se menos, menos aporrinhação; Menos astúcia, mais integridade; Quem mais trabalha* todo dia, sem cessar, forja grilhões para si mesmo, por toda a vida. *[Planeja, ambiciona, executa ações em proveito próprio, busca proveito, etc. Outro sentido possível é o de não esgotar-se, mesmo sendo o trabalho digno.] 358. Calor e frio podem ser evitados em qualquer estação, mas a inconstância das pessoas não; A inconstância pode ser controlada, mas não cura a irascibilidade; Quem controla a inconstância, e cura o coração irascível, alcança a paz no coração e a calma do espírito, como se lhe soprasse uma brisa primaveril. 359. Meu chá não é o melhor, mas eu sempre tenho um bule cheio; Meu vinho não é o mais fino, mas sempre tenho uma botija cheia; Meu alaúde é simples, mas toca bem; Minha flauta é pequena, mas não é desafinada, e me alegra; Em viver a vida de modo simples, eu não sou tão bom quanto Fuxi, mas me contento em dizer que chego perto de Jikang e Ruanji.* *Fuxi, primeiro sábio das eras primitivas chinesas; Jikang e Ruanji são integrantes do mítico grupo dos sete sábios do bosque de bambu, ascetas desapegados da vida social, e dedicados a uma vida despojada. 360. O budismo ensina: ‘siga a natureza’; O confucionismo ensina: ‘siga o apropriado’; Esses ensinamentos são a bóia com que atravessamos o Mar da vida. Os caminhos do mundo são vastos e ilimitados; Busque o Topo, e você terá mil dificuldades; Acostume-se com sua vida, sem pretender altas posições, e você viverá em paz de espírito. * O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioZhang Ruocheng, a Viela Estreita e o Espírito Livre Zhang Tingyu (1672-1755), o erudito e historiador que dirigiu a compilação da História dos Ming, foi também um político notável ao serviço de três sucessivos imperadores; Kangxi, Yongzheng e Qianlong, num tempo em que em que a grandeza e o poderio do império dos Qing alcançou um ponto alto. E mesmo se, no fim da sua vida as relações com Qianlong se deterioraram, ele seria o único funcionário oficial superior de etnia han durante a dinastia Manchu, a ter uma tabuleta póstuma em sua memória no Templo dos antepassados, Taimiao, junto da Cidade Proíbida. Conhecendo a sua biografia, dir-se-ia que essa capacidade de adaptação a um tempo de grande convulsão interna, apoiada numa facilidade de comunicação pela convergência da elevação dos espíritos, era para ele uma herança familiar. Em Tongcheng (Anhui) onde nasceu e de onde era originária a sua família, é conhecida uma história sintetizada num «provérbio» em que o seu pai é o protagonista. Diz-se que Zhang Ying o seu pai, funcionário na corte, recebeu um dia uma carta dos familiares que estavam na casa de família que lhe pediam para resolver uma disputa com o vizinho do lado acerca dos limites das duas casas, que os tribunais locais não conseguiam solucionar. A resposta de Zhang Ying veio na forma de um poema que dizia: «Escrevem-me uma carta de tão longe, a grande distância só por causa de um muro, Toda uma confusão só por causa de um ou dois metros. Olho para a Grande Muralha, longa de dez mil quilómetros, Passado é já o tempo do seu construtor, o imperador Qinshihuang.» Os familiares entenderam e num gesto de condescendência recuaram o muro, um metro. O vizinho, olhando para o gesto também percebeu e recuou igualmente o seu muro um metro, criando entre as duas propriedades uma congosta com cerca de dois metros de largura. A situação exemplar para a resolução de conflitos seria até hoje referida com os três caracteres liu chi xiang, «ruela apertada, espíritos abertos». Zhang Tingyu teria três filhos que serviriam o imperador e que se distinguiram nas artes do pincel em que a moral e a estética eram padrões que qualificavam os literatos. Ruoting (1726-1802) na caligrafia, Ruoai (1713-46) mostrou agudeza de abservação e domínio da alegoria na pintura de pássaros e plantas, e Ruocheng (1722-70) faria pinturas de paisagens em que a proporção era indiferente à dimensão. Num longo rolo horizontal, Viajando até ao sagrado cume do Sul (34,9 x 632,6 cm, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles) os lugares figurados são identificados em pormenor, como num mapa. Noutro pequeníssimo rolo, vendido no mercado (Bonhams) com inscrição de Qianlong (tinta sobre papel, 3,8 x 16,5 cm) feito para ser colocado numa «arca de muitos tesouros», duobao ge, revela intimidade com o imperador esteta que valorizou a sua própria família como um tesouro.
Ana Cristina Alves Via do MeioDai Zhen, a benevolência e o desejo Andei a ler a PESQUISA SOBRE O BEM, de Dai Zhen (戴震 Tai Chen, em Gilles-Wade), um filósofo do século XVIII (1723-77), da escola confucionista da dinastia Qing. Este pretendeu regressar às origens, afastando-se propositadamente dos neo-confucionistas dos períodos Song e Ming, cujas teorias estão impregnadas de ideias daoístas e budistas. Dai Zhen foi um filósofo que teve a felicidade de ser reconhecido no seu tempo, apesar de ter reprovado cinco vezes nos exames imperiais. Nunca chegou a mandarim, mas contribuiu decisivamente para a cultura do seu tempo, nos campos da matemática, geografia, fonologia e, naturalmente, da filosofia. A obra PESQUISA DO BEM, como o próprio título indica, é muito influenciada pelas teorias de Mengzi, ou, à portuguesa, de Mâncio. Para Mengzi (372-289 a.C), o homem é bom por natureza, por isso a bondade é a virtude-fundamento da humanidade. Ora Dai Zhen, já em pleno século XVIII vem contribuir para recuperar e desenvolver esta linha de pensamento avançada no século III a. C. Para o filósofo, o bem é uma teia composta por três virtudes: a benevolência, a justiça e a propriedade. Só o homem bom, justo e correcto vive humanamente. Por isso, deve cultivar, antes de mais, a benevolência, que é a raiz de todas as outras virtudes. Esta define-se, ao nível corpóreo, como uma força criadora, que actualiza as forças criadoras do Céu e da Terra, também elas benevolentes. Estas conjugam-se entre si e com o homem numa harmonia pré-estabelecida. Assim, o Céu é criativo, a Terra receptiva e “quem adquire a força produtiva do Céu e da Terra é benevolente. Quem obtém os princípios de ordem e da razão, é sábio” (Tai Chen’s Inquiry into Godness, Honolulu, East-West Center Press, 1971, p. 69). Os princípios morais advêm da sábia conjunção da razão e da sensibilidade. Com Dai Zhen, a bondade passa a ser perspectivada em termos de força produtiva, mas sem prescindir de um enquadramento racional. Este é um grande avanço para o aparecimento de uma nova filosofia chinesa, que procurará colmatar o fosso criado por posições filosóficas extremistas, defensoras de idealismos e materialismos exacerbados. Assim, papel de destaque conferido à bondade não leva o filósofo a esquecer que os desejos, sobretudo quando absolutizados, podem ser verdadeiramente perniciosos, por isso defende sempre a acção condutora e auto-controladora da mente nos assuntos humanos. No entanto, a razão não entra em conflito com a sensibilidade, muito pelo contrário: a bondade, enquanto força – e força de amor – é a “virtude mais elevada”(p. 70), não se limita à esfera humana, estende-se a todo o universo: “a força produtiva do Céu e da Terra assenta na benevolência” (p. 71) Mas em que consiste exactamente esta benevolência universal que o filósofo iluminista defende? Ela é uma força e pode ser definida como desejo. Que os homens e toda a natureza tenham desejos, nada de mais natural para Dai Zhen, com uma ressalva: estes desejos para serem realmente bons, isto é, para estarem de acordo com a ordem da natureza, não podem ser egoístas. Diz-nos o filósofo: “ Quem tenha desejos sem egoísmo, é benevolente” (p.72). Se pensarmos bem, o que tem dado ao desejo tão mau nome, apesar de todas as tentativas de salvação, vindas nomeadamente da área psicanalítica ocidental, é o facto de ele se expressar como uma força individual, poderosa, avassaladora mesmo, com tendência a assumir-se totalitariamente naquele em que faz a sua aparição. Alguém cegamente possuído pelo seu desejo torna-se egoísta e insuportável para os outros. No entanto, já alguém que lide sabiamente ou racionalmente com a sua sensibilidade, é um sábio, porque deixou falar em si todos os aspectos da sua natureza. O homem só é verdadeiramente superior quando faz com que “os seus desejos se conformem aos princípios da razão e da correcção “(p.97). Mais do que recalcar os instintos, interessa controlá-los e tirar o melhor partido deles, porque, não esqueçamos, é na sua força que se manifesta a virtude da benevolência. Esta força tão boa, tão positiva, encontra-se um pouco por toda a parte, por exemplo: “no crescimento dos troncos, das folhas, dos botões e dos frutos das árvores(…), por isso a capacidade da actividade criativa é chamada benevolência”(p.74) Segundo o filósofo, a natureza do homem – com os seus desejos, sentimentos e poder racional – não podia ser melhor. Há até um acordo básico entre toda a natureza, uma harmonia pré-estabelecida à maneira de Leibniz, que coopera para tornar a vida fácil àquele que, não só deixa falar a sua natureza benevolente, os seus desejos, como também procura desenvolver a sua pessoa, seguindo o exemplo dos sábios e o estudo aturado dos clássicos. “O caminho de suster e manter a vida encontra a sua chave em desejos, o caminho da simpatia e profunda compreensão encontra a sua chave em sentimentos. Isto porque os desejos e os sentimentos são os signos do natural.”(p. 75) E, um pouco adiante: “Os desejos formam o caminho do Homem, estão enraizados na natureza humana e encontram expressão no dia-a-dia”(p. 76). Nada têm de vergonhoso ou pecaminoso, traduzem-se em expressões amorosas que temos para com os amigos, os familiares e os filhos. Para este filósofo tão inovador, quando expressamos a nossa natureza em equilíbrio, estamos a cultivar o caminho do Céu. O pior inimigo da benevolência é, como já referi, o egoísmo e o seu maior amigo a lealdade. O Céu ao dar e a Terra ao receber estão a ser benevolentes. O homem, se proceder de acordo com eles, também dá e recebe. Logo, o melhor antídoto para o egoísmo, que mata a benevolência, é justamente o altruísmo. A natureza contém em si os princípios da razão e da bondade, há que segui-los sem medo, sendo fácil e simples como ela. O homem de Dai Zhen, este todo sensível e racional, tem que lutar contra dois inimigos. Um deles já conhecemos, situa-se ao nível da sensibilidade e é o egoísmo, que se define como satisfação exclusiva de desejos privados; o outro, é a confusão que se apodera das mentes, ao entrarem em contacto com os outros e com o mundo. Ora um homem confuso torna-se facilmente iludível e estúpido, o remédio para contornar este obstáculo mental está na educação e no estudo. Resumindo, libertamo-nos da confusão por meio do estudo e auxiliados pela virtude da fé e libertamo-nos do egoísmo através de acções leais e compassivas, atingindo assim o núcleo da teia de virtudes formada pelo bem: “sendo leais, podemos agir com benevolência, tendo fé podemos realizar a justiça e possuindo compaixão, no que diz respeito às outras pessoas, podemos praticar a propriedade”(p. 101) Mas não esqueçamos que, para o filósofo, o “protótipo” das virtudes é a benevolência, esta força altruísta que pode ser desenvolvida com lealdade: “um homem que tem os seus próprios desejos e que também tem em consideração os desejos dos outros, é benevolente. Um homem que tem os seus próprios sentimentos e, também, tem em consideração os sentimentos dos outros, é sábio”(p.105). Logo, depois das máximas humanas ‘amai-vos uns aos outros’ e ‘não faças aos outros o que não queres que te façam a ti’, creio que podemos avançar com nova, desta vez inspirada neste filósofo tão original: faz aos outros aquilo que eles benevolentemente desejem.
Carlos Morais José Via do MeioO Gu e o Da E É sobejamente conhecido que os excessos da juventude acarretam, por vezes, consequências trágicas e irreparáveis. Infelizmente, a história fervilha de exemplos que vão do malogrado Ícaro a ídolos recentes do rock’n roll, ancorados em razões que ultrapassam o nosso modesto objectivo. Ora também a famosa Montanha do Sino, na parte norte da Cordilheira do Oeste, assistiu a uma história do género com repercussões na fauna que desde então ali passou a habitar. Em tempos já esquecidos, reinava na Montanha do Sino um deus chamado Zhuyin (Dragão-Tocha), que era suposto ser responsável pela luz e pelo breu, pela chuva e pelo vento. Além dele, nesta montanha abençoada, cabriolava também o seu filho Gu (que significa Tambor), geralmente na companhia de Qinpi, seu amigo de folguedos. Com o tempo, as brincadeiras de rapazes tornavam-se cada vez mais ousadas e distantes da protecção paterna. Os dois mancebos atreviam-se a fazer incursões noutras terras, por vezes distantes da sua montanha natal. E foi precisamente numa dessas temerárias excursões à encosta sul do Monte Kunlun que Gu e Qinpi mataram Baojiang, ele próprio um deus menor. A razão que os levou a cometer este teocídio não é relatada em nenhum documento credível. Provavelmente, nenhuma razão os movia, a não ser demonstrarem a si mesmos o seu poder: coisas de rapazes com problemas de afirmação identitária que, pelos vistos, também ocorrem entre seres divinos. No entanto, apesar da tenríssima idade dos dois meliantes, o crime não ficaria impune. Ao saber da morte de Baojiang, o Imperador do Céu (outras fontes garantem ter sido Huangdi, o Imperador Amarelo) condenou-os à morte e ele próprio os executou sobre um abismo situado nos contrafortes da Montanha do Sino. Sendo seres de origem divina, ao morrerem imediatamente se metamorfosearam em dois animais de singulares características. Gu adoptou a forma de uma ave com corpo de coruja, bico direito, marcas amarelas e cabeça branca que, quando resolve emitir sons, o que lhe sai da garganta é semelhante ao canto do cisne, embora no grasnar do Gu não sejam reconhecidas tendências mórbidas. A tradição afirma que avistar um gu é sinal de que uma grande seca vai afligir aquela região. De notar ainda que, na sua primeira vida, antes de ter ocorrido a referida metamorfose, Gu possuía um corpo de dragão encimado por uma cabeça humana. Já da antiga forma de Qinpi não existe descrição. Sabemos é que, depois de executado, se transformou numa fabulosa ave de rapina, com corpo de águia, salpicado de negro, cabeça branca, garras de tigre e bico encarnado. Dão-lhe o nome de Da E, que significa Grande Falcão. A sua aparição, temperada por assustadores grasnidos, é augúrio da proximidade de uma guerra fratricida. E, nestes preparos, assim andam os dois pela Montanha do Sino: duas aves de rapina, talvez inseparáveis, senhoras dos céus e das encostas escalavradas daqueles montes perdidos na imaginação da China Antiga.
Julie Oyang Via do Meio“Toda a beleza tem algo em comum: a absoluta necessidade de ser vista!” Um ponto de situação com Michael Xincheng Du, coleccionador de arte e de antiguidades chinesas, especialista na cultura pré-histórica Hongshan, aproximadamente 10.000-5.000 aec. Quando era jovem, dirigia um bem-sucedido negócio de consultoria em Shenzhen, que, na altura, era a cidade modelo da China do futuro. Por uma curiosa reviravolta do destino, Michael instalou-se no Canadá e entregou-se de corpo e alma ao ainda mais curioso mundo da arte e do coleccionismo de antiguidades, conquistando um grande número de admiradores em todo o mundo. O que é que o move? A Beleza! A arte e cultura são tesouros através dos quais a humanidade se expressa. Por isso, na sua opinião, a Beleza é o legado derradeiro? Beleza é poder. A Beleza espoleta a inigualável paixão humana pela criação e estimula o melhor do nosso intelecto e força espiritual, patenteados em artefactos soberbos. A beleza transcende o prazer estético: é o único instrumento humano eficaz para a auto-descoberta! A Beleza é um assunto sério. Foi a sua auto-descoberta após três anos de hiato devido à pandemia? Conhece Oscar Wilde… O esteta dizia que ser belo é melhor do que ser bom. Eu diria que o belo é mais inteligente do que o inteligente. Tenho dificuldade de falar da pandemia. Como sabe, tive de suspender a actividade do meu espaço de leilões de arte, que tinha inaugurado pouco antes do surto da doença. A Baozhen International Art Auction House está localizada na Península de Shandong, a província natal de Confúcio, e abrange no total uma área de aproximadamente 32.000 metros quadrados, dos quais 2.000 são dedicados a exposições permanentes. Além disso, temos espaços educativos e de entretenimento e lazer. Estava ansioso para fazer algo que verdadeiramente me apaixonasse. Temia não vir a cumprir a minha missão nesta vida. Encontrou a sua paixão em algo mais ancestral do que antigo — a misteriosa cultura Hongshan, situada entre os anos 10.000 e 5.000 AC. Tenho de admitir que é um assunto muito controverso. Os historiadores tradicionais não sabem como lidar com este período. Tudo na Cultura Hongshan contradiz a cronologia oficial, não só da História chinesa como da História mundial! A Cultura Hongshan parece sugerir que a história humana fez planos que não nos atrevemos a sondar. Neste momento, estou a trabalhar em conjunto com o Museu Hanjiangxue, o maior museu privado da China. O seu fundador, Qiu Jiduan, possui uma colecção impressionante que transcende a Cultura Hongshan. O museu clama por explicações que exijam o menor número de conjecturas. Estou, em conjunto com Qiu Jiduan, a planear a realização de uma série de televisão com 30 episódios que funcionará como uma janela única para audiências internacionais. Eu e minha equipa estamos a trabalhar numa proposta ousada para explanar os ciclos da civilização chinesa. É algo que nunca foi feito a uma escala tão ambiciosa e que eu simplesmente adoro! Vai provar que a mitologia chinesa é inventada a partir de eventos reais? A mitologia é um símbolo do sistema. Mas eu quero ver para além disso. A mitologia chinesa contém códigos cósmicos que revelam a criatividade humana na aurora da civilização, quando a humanidade experienciava o conhecimento científico do real bem como quando tentava entender a ciência da natureza de uma forma mais profunda. Ao designá-los simplesmente por mitos criamos um obstáculo que não permite tomá-los a sério. Aparentemente, são significativamente mais do que apenas histórias repletas de simbolismo e de metáforas. Há mais de 25 anos, descobri a Cultura Hongshan e senti-me muito atraído pela sua excentricidade. Os fantásticos enigmas que talvez um dia venham a rescrever toda a história da humanidade. Todos sabemos que a história é um local pouco seguro, mas agora pode tornar-se ainda mais perturbador. Estou muito entusiasmada com a série de que falou. Pode falar um pouco mais sobre o assunto? Os antigos egípcios tinham Nefertiti. Alguém conhece a Deusa da Criação Chinesa e a sua fulgurante e inteligente história de criação? Mas desta vez a minha abordagem é diferente. Quero fazer uma série de televisão épica: para mostrar pela primeira vez ao mundo a sua Beleza! Quanto mais me embrenho no mundo ancestral, mais me sinto inspirado e intrigado pela interrogativa que colocavam na origem da civilização! Estou empenhado em recuperar a beleza grandiosa da Deusa do Templo que representa a mais alta escala, o nível mais elevado e a expressão mais proeminente de crenças que podem mesmo não ser deste planeta. Acredita que a Deusa do Templo da Cultura Hongshan é dedicada a visitantes extraterrestres que criaram a Humanidade com a sua tecnologia? Tive longas trocas de ideias com o americano futurista Nova Spivack sobre este assunto. Estamos ambos convencidos que compreendemos mal o nosso passado — assim como no futuro nos irão compreender mal a nós. A série de televisão é uma boa forma de alargar a dança criativa das possibilidades. Também quero que cada vez mais pessoas adquiram conhecimentos sobre arte e cultura chinesa, que é imensamente desconhecida lá fora. Deve dizer-se mais vezes às pessoas que, apesar de tudo, o passado está vivo. O nosso passado civilizacional contém elementos secretos direccionados para o progresso e para o futuro. A energia da Beleza, que tem um poder nutritivo em todos nós. Concordo consigo. A grandiosidade não vem de tentar alcançar o possível. Admiro o alcance da visão de Qiu Jiduan pelas actividades que desenvolve há décadas e pela majestade da colecção exibida no seu museu privado. Tenho pena que o Museu Hanjiangxue não seja tão famoso como o British Museum ou o Louvre. Penso que é um erro. A civilização chinesa é requintada, refinada é seguramente “não aborrecida”. 30 episódios é o começo. Se eu apenas tentar trabalhar arduamente e me mantiver fiel a mim próprio, vou ser capaz de desvendar cada item do tesouro que é esta colecção de tirar o fôlego. Vou devolver o poder ilimitado do passado! Toda a beleza tem algo em comum: a absoluta necessidade de ser vista!
Hoje Macau Via do MeioQiu Jin – Poesia e luta Artigo de António Izidro I Foi um século de humilhação, bullying e de dominação agressiva do Império do Meio por potências estrangeiras a partir de 1840 até à recuperação, em 1945, do último reduto no nordeste de Shangdong ocupado por japoneses e alemães. Um período de vexames na história da China, marcado pelos conflitos armados Sino-brtiânicos por causa do ópio que a Companhia das Índias Orientais inglesa introduzia ilegalmente no território chinês, para envenenar o povo e equilibrar as contas do comércio com a China, a que se seguiram os conflitos com o Japão e a França e, claro, a ocupação da Aliança das Oito Nações em 1900 (Áustria- Hungria, Alemanha França, Itália, Japão, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América). Pelo meio, os chineses assistiram penosamente à assinatura de tratados desiguais a coberto dos quais as potências estrangeiras obrigaram a monarquia chinesa a ceder territórios, franquear portos marítimos, incorporando nesses tratados demandas indemnizatórias para reparar as guerras. Enfim, uma China humilhada, esquartejada, repartida pelas nações invasoras, o palco que o povo chinês coabitou com matanças, saques, escravização das mulheres chinesas e tudo o que as potências estrangeiras podiam fazer para consolidar a ocupação. Qiu Jin (1875-1907) foi uma escritora defensora do feminismo e activista do movimento revolucionário de Outubro de 1911 que pôs fim ao regime monárquico. Nasceu em Fujian, filha de pai funcionário do governo e de mãe literata, pelo que Qiu Jin recebeu uma educação esmerada, especializando-se em história e literatura. Desde jovem eram já evidentes os dons de escrita e o grande patriotismo, nesse período conturbado da colonização estrangeira. Perturbava-a a incapacidade dos imperadores Qing, sofrendo derrota após derrota. Viu nascer a Rebelião dos Boxers, de 1899, movimento anti-colonislista e anti-monárquico, que foi repelido pelas tropas governamentais e a coligação das nações estrangeiras. Com o coração magoado e desfeita em lágrimas, Qiu Jin partiu, em 1904, para o Japão e aí juntou-se às estudantes chinesas em Tóquio, pregando a salvação nacional e a defesa dos direitos da mulher. Os argumentos aduzidos iriam confirmá-la como destacada líder do movimento feminista, devido também aos seus dotes oratórios. Fundou dois periódicos, “Mulher Chinesa” e “Língua Vernácula”, como base do movimento, insistindo na emergência de quebrar as correntes do feudalismo, restituir a identidade à nação e no papel da mulher na implementação de uma nova cultura chinesa. Os últimos anos da sua vida foram de maior envolvimento, tendo assumido a direcção escolar de Datong na província de Zhejiang, em cujas instalações montou o quartel do movimento, de onde eram enviados mandatários para promover a revolta. Ela própria percorria entre as cidades de Hangzhou e Xangai, delineando programas de acção e incitando o povo. No dia 6 de Julho de1907, Qiu Jin recebeu a notícia da malograda revolta da cidade de Anhuei. Após a prisão dos revoltosos, era iminente que o exército imperial também viesse cercar a escola. Aconselhada a abandonar, ela preferiu não fugir. “O sucesso de uma revolução oculta sangue”, dizia. As cores do outono Qiu é o apelido da escritora e agradava-lhe particularmente a palavra que significa outono, a estação do ano pintada pela cultura tradicional comum com as cores da desolação, dos sentimentos mórbidos. Os antigos eruditos escreviam deploravelmente que primavera era a inquietação das jovens diante do envelhecimento, vendo o tombar das flores e que no outono o sombrio tolda os olhos dos jovens, não lhes permitindo ver o fundo da estrada onde a sua heroicidade caminha. Outono esmorece a alma, e algo parecido escreveu Pessoa em Cancioneiros: Esqueço-me das horas transviadas o Outono mora mágoas nos outeiros E põe um roxo vago nos ribeiros… Hóstia de assombro a alma, e toda estradas… (…) No meu cansaço perdido entre os gelos E a cor do outono é um funeral de apelos Pela estrada da minha dissonância… Qiu Jin foi presa no dia 10 de Julho de 1907 e decapitada no dia 15. Antes da execução, deram-lhe um folha de papel para assinar a confissão. Nela, a escritora e heroína escreveu tão só sete caracteres: 秋風秋雨秋煞人 Outono ventoso, outono chuvoso, outono fatídico sobre mim se derrama As obras de Qiu Jin oferecem uma visão sumamente reveladora do seu sonho e ideal em resposta ao período histórico conturbado em que vivia. São conhecidos cerca de 13 trabalhos, entre colecções de poemas, ensaios e romances produzidos. ´Sentimentos´ e ´Hora fremente´(em chinês clássico) foram compostos durante uma viajem ao Japão, onde encetaria acções de consciencialização às jovens estudantes chineses a aderirem ao movimento feminista. Notório é o estilo da escrita, cultivando ainda uma poesia muito atrelada à forma de poetizar dos antigos, não dispensando, por exemplo, evocar exemplos da antiga história análogos à situação política do seu tempo. De resto, pode-se ler nos poemas a mágoa pela pátria decadente, sem esconder um certo o sentimento de culpa de não ter contribuído mais para a causa revolucionária. 有怀 日月无光天地昏 沉沉女界有谁援? 钗环典质浮沧海 骨肉分离出玉门 放足湔除千载毒 热心唤起百花魂 可怜一幅鲛绡帕 半是血痕半泪痕 Sentimentos Sol e lua sem luz, céu e terra em densas trevas quem deste abismo ajudará a mulher a levantar-se? Empenhei as minhas jóias para atravessar o mar, apartada da família, sigo pela Porta de Jade. Meus pés de mil venenos desenfaixo e a alma das mulheres clama, flores brancas em botão. Dói-me este pobre lenço de seda fina, metade de sangue manchado, metade em lágrimas ensopado. ____________________ Porta de Jade – antigo posto de vigia na Grande Muralha que dava acesso às regiões do nordeste. Panos dos pés – a nefasta tradição de as mulheres enfaixarem os pés com panos apertados para preservar a elegância feminina. 感时 莽莽神州叹陆沉,救时无计愧偷生。 搏沙有愿兴亡楚,博浪无椎击暴秦。 国破方知人种贱,义高不碍客囊贫。 经营恨未酬同志,把剑悲歌涕泪横! A hora fremente A pátria submersa no lamento verde de infindos prados e como pesa nada ter para salvar o país. Em grãos esparsos de areia desfez-se o reino de Chu, as armas de Buó Lang surpreenderam o reino de Qin. Pátria e povo destroçados, ainda assim se erguerão desta infausta pobreza. Deploro o esforço vão dos meus camaradas, entoo a canção triste das espadas e das lágrimas. ___________________ Os ´grãos esparsos da areia´, a desagregação que levou o Reino de Chu a sucumbir no ano 223 a.C. Buó Lang, a actual província de Henan onde Qing Shihuang, o unificador do império, foi surpreendido por um exército bem armado. A analogia que a poeta faz nestes dois episódios da antiga história com a ausência de unidade nacional da China do século XIX, feita prisioneira por nações estrangeiras manifestamente mais poderosas. Não é difícil perceber quanto esta poetisa da revolta ansiava definir-se pela masculinidade e com ela contribuir vivamente à causa revolucionária. Aprendeu as artes de cavalgar e espada, não raras vezes surpreendendo vestida à rapaz nas actividades clandestinas, depois de aos 18 anos o pai lhe ter arranjado um casamento e em vão tentado fazê-la uma dama, enlace que, porém, não acabaria bem. Os néscios, desde logo o próprio marido, não entendem a essência da sua personalidade, dirá mais tarde num poema. Se a heroicidade cumpre por regra um trajecto, o início do seu envolvimento na libertação da pátria aconteceu numa das idas à capital, onde o movimento revolucionário em curso lhe tomou a alma. A compreensão que teve do estado do país propôs-lhe novas ideias, levando-a então a tomar a decisão de empenhar-se no movimento de salvação nacional e de libertação da classe feminina. 滿江紅 – 小住京華 小住京華 早又是中秋佳節 爲籬下黃花開遍 秋容如拭 四面歌殘終破楚 八年風味徒思浙 苦將儂 強派作蛾眉 殊未屑 身不得 男兒列 心卻比 男兒烈 算平生肝膽 因人常熱 俗子胸襟誰識我? 英雄末路當磨折 莽紅塵 何處覓知音? 青衫溼 O rio corre vermelho – uma curta estadia na capital Estou na capital faz poucos dias, o festival da Lua já espreita. Flores nas cercas mostram-se amarelas, purgam de impurezas o outono Baladas de guerra ventam das quatro direcções enquanto me liberto do cerco dos inimigos. O sabor desta solidão de oito anos traz-me saudade dos aromas da minha terra. Forçaram-me a que donzela nobre me tornasse, mas neste corpo de mulher, sem poder perfilar com os homens, bate um coração masculino da ala dos que não se vergam, mescla de alma e coração por causas alheias ardia. Hoje os néscios estranham o espírito da minha essência. Os heróis passam por provações até ao fim do seu caminho Imensidão, mundo de pó, onde encontrarei uma alma gémea? Pela minha veste escorrem lágrimas _________________ «O rio corre vermelho» é um título comum a várias expressões artísticas sobretudo em poesia épica. As baladas – referem-se aos conflitos pelo poder entre os reinos de Chu e Han ( séc. 3 a.C.). Durante o cerco, as tropas de Han entoavam baladas prenunciando a queda do Reino de Chu. A mesma mágoa perante duas realidades: os problemas da nação e a saudade pela família, expressos neste desabafo a uma amiga em poema que, porém, transparece a pretensão da autora querer contornar a inquietação da alma, levando-a a compor em pusamán, uma versão vistosa usada em cânticos para danças da dinastia Tang, entoados por bailarinas da corte. Percebe-se a musicalidade da letra pusamán, que não é traduzível, mas a métrica são obrigatoriamente os versos pentassílabos e heptassilábicos. 菩薩蠻 – 寄女伴 寒风料峭侵窗户 垂帘懒向回廊步 月色入高楼 相思两处愁。 无边家国事 并入双蛾翠 若遇早梅开 一枝应寄来! Mensagem para uma amiga – poema em versão pusamán Ventos frios, janelas trespassadas, divago pela casa, as cortinas bem fechadas. De novo o luar ensopa este alto pavilhão, e invade de tristeza meu saudoso coração. No país todos os dias problemas redobrados, duas mulheres atentas, os sobrolhos arqueados. Se ameixeiras em flor, vires mais cedo este ano, pensa em mim e por favor: Manda um ramo!
Ana Cristina Alves Via do MeioFiguras femininas na mitologia chinesa Na mitologia chinesa as deusas personificam virtudes e atributos tipicamente femininos. Retive algumas figuras, que me parecem particularmente importantes para um discurso sobre o feminino chinês. A CRIADORA. Nu Wa , irmã ou esposa de Fuxi, o Primeiro Imperador, é a segunda na linha dos grandes imperadores míticos. Sobre esta força feminina, meia serpente, meia humana, há dois relatos famosos ligados à criação dos seres humanos. No primeiro, a deusa cria os seres a partir de um barro moldado pelas suas próprias mãos. Criou-os sozinha e porque, ao passear sobre a terra, sentia uma solidão imensa, já que apenas tinha por companhia a paisagem natural e os animais. No segundo relato Nu Wa acasala com o irmão, depois de ter obtido licença prévia dos deuses, a fim de começar a humanidade. Em ambas as versões, e psicanálise à parte, parece-me importante frisar a ausência de um marido real. Na primeira versão, a deusa está completamente sozinha, na segunda é acompanhada por um membro da família no acto de criação, que não o seu marido de direito. Cabe exclusivamente à mulher chinesa tradicional, não só a concepção, como o acompanhamento e educação dos filhos. As criadoras solitárias sucedem-se na mitologia. Elas concebem pelo facto de comerem ovos de aves, tal como é o caso da Rapariga de Yousong que engole ovos de andorinha. Jian Di, a mais velha de duas irmãs muito belas, ficou grávida depois de ter engolido dois ovos de andorinha. E assim nasceu Xie, o patriarca do povo Yin. Ou, ainda, no mito da Criança Abandonada, Jiang Yuan, membro do clã Youtai, concebeu através do encontro com uma pegada de gigante. Deu à luz um filho, que primeiro abandonou e, depois, adoptou, após inúmeras peripécias. Este viria a ser o ilustre patriarca do povo Zhou. A PACIFICADORA. É ainda Nu Wa quem nos apresenta uma das virtudes femininas mais apreciadas pelas “duas metades do céu”: a capacidade de harmonizar e até anular forças destrutivas. Em Nu Wa remenda o firmamento, a deusa surge a repor a ordem no mundo, após parte do céu ter desabado, muito possivelmente na sequência de um conflito entre os machos celestiais. Ela quer e consegue remendar o firmamento para que os seus filhos humanos possam voltar a viver bem. A DUPLA. A figura da duplicidade é bem representada por Xi Wang Mu, ou seja, pela Rainha Mãe do Oeste. Esta deusa distante, que vive na Montanha de Jade, em Kunlun, é bastante masculina de aparência. Alguns investigadores chegam mesmo a levantar a hipótese de ela ter começado por ser um homem. A verdade é que, embora tenha forma humana, possui cauda de leopardo e dentes de tigre. Mas a sua duplicidade não se circunscreve ao domínio físico. Dela dependem as doenças, as calamidades e a própria morte, tanto na faceta positiva como na negativa. Assim, encontramo-la a espalhar pragas, mas também, a distribuir elixires e pêssegos da imortalidade. Recorde-se, a título de exemplo, o mito de Chang E voa para a Lua, onde a Rainha Mãe do Oeste recompensa com o elixir da imortalidade o arqueiro Hou Yi, pelo facto de ter abatido os nove sóis. A ESTRANHA. É a figura típica da estrangeira, da mulher que não pertence ao povo chinês. As heroínas estrangeiras são sempre mais animalescas, mais bárbaras, mais selvagens, tal como aquelas fêmeas que pertencem ao Povo das Mulheres. São uma espécie de amazonas, que têm medo dos homens e morrem em contacto com os chineses. São altas e claras, possuem o corpo coberto de pêlos e ostentam uma farta cabeleira até aos pés. Não têm seios e amentam os filhos pela raiz do cabelo, que é branca. Quando dão à luz bebés masculinos, estes não conseguem ultrapassar os 3 primeiros anos de vida. Logo, estas mulheres, não podiam ser piores… A TRABALHADORA. Também o mundo mítico se divide entre deusas que trabalham e deusas de enfeite. Nem todas as deusas trabalhadoras personificam o próprio trabalho. Há, no entanto, dois exemplos notáveis de criaturas míticas cuja função parece esgotar-se na acção laboral. O primeiro é o de Lei Zu, a mulher do Imperador Amarelo, que ensinou às chinesas a arte de fabricar a seda, o segundo é o da tecedeira. Recorde-se o trágica estória de amor do Vaqueiro e da Tecedeira. A tecedeira é filha do imperador celestial. Dela e das irmãs, mas sobretudo dela, dependem as belas cores das nuvens do céu. Numa visita à terra, a tecedeira acaba por se casar com um vaqueiro. Têm dois filhos e ela vive feliz, mas no céu, todo o panteão olímpico passou a andar muito mal vestido, porque a tecedeira deixou de trajar as nuvens com as lindas cores da manhã e do entardecer saídas dos seus dedos. Logo a deusa foi obrigada, pela sua família celestial, a regressar ao céu. O marido e os filhos foram atrás dela. No entanto, para que a tecedeira não seja distraída dos seus trabalhos, apenas se reunem uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua. O resto do tempo, ela, a estrela Vega, e ele, a estrela Altair, vivem separados pela via láctea. A AMANTE. A figura da mulher que espera apaixonadamente o seu marido é admiravelmente representada por Nujia, a esposa de Yu, o Grande. Este foi o fundador da dinastia dos Xia. O imperador, ocupadíssimo e amantíssimo da sua terra mãe, lutou anos a fio para tornar a China um país viável. Atravessou montanhas, domou rios, e esteve tão ocupado nestas tarefas que durante treze anos não foi a casa. A mulher, ao expressar a sua dor profunda, compôs o primeiro poema de amor chinês: Ó homem que eu espero, saberás tu que o tempo é longo… ( Charles Meyer, in La FEMME CHINOISE, 4000 ans au Pouvoir, Lattes, 1986). A MULTIFACETADA. Chang E é o melhor exemplo da deusa humana ou multifacetada. Ela é, dependendo das versões, curiosa, desobediente, insegura, ciumenta, amorosa, traída… A esposa de Hou Yi, que viria a ser a deusa da lua, a quem é dedicada a festa do Bolo Lunar, é humaníssima nos seus defeitos e qualidades. Sobre a sua história há inúmeras versões. Resumindo, tenho lido sobretudo a versão em que ela, movida pela curiosidade, descobriu o elixir que o marido havia guardado e o tomou às escondidas. Na versão de Huainanzi, compilada por Liu An, o arqueiro Hou Yi foi pedir o elixir da imortalidade à Rainha Mãe do Oeste para libertar a mulher da sua condição mortal. Mas Chang E não aguentou o tempo de austeridade e pobreza exigido para a purificação e bebeu o elixir sozinha, fugindo em seguida para a lua. No poema Tian Wen, composto por Qu Yuan, ela resolveu tomar o elixir, depois de ter descoberto que Hou Yi se havia enamorado pela mulher de He Po, divindade do rio. Num bailado mais recente, intitulado A Viagem à Lua, Chang E voou para o céu por ter sido enganada por Pang Meng, chefe de uma tribo e aprendiz de Hou yi, que para suplantar o mestre, não só lhe afastou a mulher, como acabou por o matar. BELDADES PASSIVAS. A beleza é para os chineses um atributo essencialmente feminino. Os deuses escolhem deusas belas. Casam-se e vivem em sistema de concubinato numa harmonia perfeita. No relato das Damas de Xiang, as duas deusas do rio Xaing são de uma beleza inexcedível. As princesas da água, respectivamente Ehuang e Niuying , filhas de Yao, foram cedidas pelo pai a Shun, o quinto imperador. E foram todos muito felizes. Quanto Sun morreu as damas choraram abundantemente… BELDADES ACTIVAS. Os chineses vivem deslumbrados e aterrorizados com beleza feminina. Abundam os relatos de perdição, por causa de belas megeras. Não têm conta as estórias de imperadores, nobres e até homens vulgares que “caíram nas garras” de damas muito sedutoras. Assim, cito dois entre os inúmeros casos famosos, Zouxin, o terceiro imperador Shang, distinguiu-se pelos seus actos malévolos. Tinha uma força extraordinária e adorava toda a espécie de prazeres. Possuía também uma concubina, Daji, a quem procurava satisfazer, através de suplícios horrorosos, que infligia aos que caíam em desgraça. Dizem que por ela se perdeu a dinastia Shang. Outro caso, este já na dinastia Zhou, é o do imperador You e da sua paixão por Baosi. Ela não ria e o imperador, que adorava a concubina, tentava que ela sorrisse. Até que um dia descobriu que o som do rasgar da seda lhe despertava um leve sorriso. Escusado será dizer que, a partir de então se rasgaram quilómetros de seda, por causa daquele sorriso. Mais tarde, You conseguiu que ela risse. Para tal mandava acender o lume numa torre tipo farol. Mas o fogo costumava chamar a atenção dos estados vassalos de Zhou para o facto do soberano necessitar de auxílio. Tantas vezes ele acendeu o lume só para ouvir o riso da sua concubina favorita quando os guerreiros acorriam em vão, que, certa vez, era mesmo preciso apoiar o imperador e ninguém se mexeu ao ver a fogueira. E assim se perdeu a dinastia Zhou. A mais temida de todas as figuras femininas é a da bela activa, porque na China a bela não liberta o monstro, pelo contrário, revela o monstro…
Paulo Maia e Carmo Via do MeioComo Zhang Ruitu viu o luxo ao entardecer Zhu Youjiao (1605-1627), que reinaria como o imperador Tianqi (r.1620-7), foi retratado na sua pose solene, rodeado de abundantes símbolos do seu poder, o qual segundo se deduz da crónica, o jovem monarca desprezava. Literatos cultos que olhassem para o retrato, de que existem dois exemplares, um no Museu do Palácio, em Taipé (rolo vertical, 203,6 x 156,9 cm, tinta e cor sobre seda) e outro no Museu de Arte de Indianapolis, reconheceriam aquela projecção do luxo. Mas os opulentos e sofisticados têxteis, o minucioso trabalho das vestes bordadas e de todos os outros objectos que o rodeiam, como a cadeira de dragão ou o painel por trás dela, seriam percebidos como indícios da maré luxoriante que o engoliria. Comparando com os retratos imperiais do início dos Ming, que depois Qianlong reuniria em 1748, na sua galeria Nanxun, a «fragrância do Sul» na Cidade Proibida, nota-se que a autoridade é aí projectada de maneira porventura mais humilde, mais centrada na pose e na pessoa do imperador. O curto mandato de Tianqi seria pontuado por uma série de decisões erradas e fenómenos naturais desfavoráveis como cheias e consequentes fomes e descuidos desastrosos, lidos de maneira supersticiosa como sinais de mau agouro. E o poder que o monarca descurava, era delegado no ambicioso eunuco Wei Zhongxian (1568-1627) que, pelo modo subtil como tinha de implementar as decisões que tomava, criou uma rede imperceptível de lealdades e inimizades. Alguns letrados brilhantes próximos do poder, quando Wei cai em desgraça, seriam arrastados nessa vaga de repulsa. Para um letrado de Jinjiang (Fujian) que passara o exame imperial em 1609, essa foi uma oportunidade de exprimir o seu olhar independente. Zhang Ruitu (1570-1641) foi identificado como fiel a Wei Zhongxian e só pagando uma multa escapou à prisão, mas teve que se retirar do serviço público e regressou à sua terra natal, em 1628. Aí, indiferente às teorias de Dong Qichang, recriou a seu modo as paisagens monumentais dos Song do Norte, como o rolo vertical Montanhas ao longo das margens do rio (tinta sobre seda, 167 x 51,4 cm, no Metmuseum) onde, com a sua expressiva caligrafia, escreveu: Embarcações deixam a cidade e entram na floresta, Estando as margens do rio afastadas, elas flutuam no céu. Num rolo vertical da sua caligrafia (no Museu Britânico) anotou a sua versão do luxo: “Sozinho no cume mais alto, sobre camadas de rochas, aprecio a vista do entardecer sobre pinheiros e trepadeiras sinuosas. Vejo pássaros voando ao longe na floresta, encontrando o monge que regressa ao luar. O céu atrás das árvores é baixo um metro, metro e meio; estão longe centenas, milhares de nuvens de contornos nítidos. Sento-me num supedâneo de juncos, tudo está tranquilo e em silêncio, excepto o som cadenciado do sino trazido pelo vento a partir de uma fila de cavernas.”
Ana Cristina Alves Via do MeioO calão chinês O calão chinês é muito interessante. O seu estudo possibilita a compreensão de algumas características psicológicas fundamentais do povo chinês. Os elementos tradicionais na cultura chinesa têm um sentido específico nesta gíria. Assim, a madeira representa a estupidez. Uma pessoa pouco dotada ou lenta é uma cabeça, ou pedaço, de madeira: mu dou ge da. O fogo e a água têm sentidos complementares, ou opostos, diríamos nós à maneira ocidental. O fogo, huo, simboliza a inteligência, o entusiasmo e o calor. Negócios em fogo, ou como um fogo vermelho, hong huo, estão muito prósperos, se fosse à portuguesa iam de vento em popa. A água, shui, representa a frieza, o excesso, a falsificação: a do mar é usada para referir algo de muito vasto. Um falador é uma boca de mar, hai kou, e de um grande beberrão, diz-se que aguenta um mar. Logo, uma chuva miudinha, mao mao yu, só podia ser um assunto sem importância. A água em geral, shui, é utilizada para significar a falta de qualidade. Shui huo é uma mercadoria de segunda e shui fen é um produto falsificado. Possui um vento brilhante, feng guang, quem tem fama e posição social. Lei, ou o trovão, é usado como metáfora para todo o tipo de calamidades e catástrofes. Já o raio, zhen, tem melhor destino, pois significa sensações fortes, agitação, começo. O ferro, quando aplicado às relações, significa intimidade e estabilidade. Um amigo íntimo é de ferro, tie ci, mas uma pessoa de ferro e, sobretudo, um galo de ferro, não tem bom sentido, refere alguém de natureza má e agarrada ao dinheiro. E, ainda, uma boca de ferro, tiezui, é um falador nato. A terra, tu, é o elemento da falta de sofisticação e ignorância. Um ser telúrico é rude e pouco trabalhado. Os vegetais nem sempre têm um sentido muito positivo na gíria chinesa. Uns planos que vegetaram, caile, deram com os burrinhos na água. E ter cor de vegetal, aquela entre o verde e o amarelado, é um péssimo sinal, pois pode revelar doença. Porém, alguém que come vegetais, chi su de, revela uma natureza maleável e de trato fácil. Por que motivo em calão chinês despedir alguém é fritar uma lula, chao you yu, é mistério digno daquele que foi o grande Império do Meio. A comida tem os seus riscos e os medicamentos também. Diz-se de quem tem um comportamento mal-educado, ou impróprio, que tomou o medicamento errado, chi cuo yao le. Também os que comem pólvora, chi qiang yao, são malcriados. Para falar de relações sexuais, sobretudo quando aplicadas a mulheres, nada melhor do que o dou fu. Quem come dou fu, chi dou fu, está a deleitar-se sexualmente com uma mulher que não é a sua. E, ainda, um pequeno artigo ou obra publicada num jornal é um pedaço de dou fu – dou fu kuai. O mamar doce significa na gíria comer algo tenrinho, chi ruan fan, e aponta especialmente homens que vivem à custa de mulheres. Os que são desconfiados comem o (próprio) coração, chi xin. A personificação do egoísmo é dada pela expressão comer sozinho, du shi. Esta refere quem não gosta de partilhar comida ou outros bens. La mei zi é uma rapariga com picante, quer dizer, corajosa e de língua afiada. E a comida é bonita, mei shi, se for deliciosa, porque os chineses têm uma alma estética verdadeiramente gastronómica. Assim, um bom garfo não é aquele que come muito, mas o que ingere comida bela: meishijia. A namorada, a amante, ou a mulher são puro mel, mi, tal como na tradição anglo-saxónica. Já a massa, especificamente no calão, porque no dia-a-dia simboliza longevidade, é usada como metáfora para indivíduos fracos ou moles. Os massas chineses são os nossos pastéis. O branco umas vezes representa pureza, como quando é utilizado em bai shengsheng, a fim de referir a alvura da pele de uma mulher, no entanto pode, ainda referir o que é simples, vulgar e até traiçoeiro. Neste último caso, aparece frequentemente associado ao olho branco do lobo. Uma pessoa muito famosa é da hong da zi, ou seja, muito vermelha e muito púrpura. Mas o encarnado nem sempre tem um sentido positivo, por vezes representa ciúme e ressentimento, como na expressão : ter a doença dos olhos encarnados. O preto possui um sentido muito pejorativo, significa a ganância, a maldade e a esperteza velhaca. Quando se quer falar de alguém ganancioso e mau diz-se ter coração preto, hei xin, ou de lobo, lang xin . O amarelo, na gíria, nem sempre simboliza o melhor. O tio amarelo, huang bobo, fala à toa, irresponsavelmente. Mas já uma flor amarela, até no calão, é usada para sugerir uma virgem, huang hua gui nu. Também os celibatários são identificados com a cor amarela, quer no masculino quer no feminino – huang hua hou sheng e huang niu. A revista pornográfica e outro material especificamente sexual é amarelo. As costas, em estar de costas, traduzem o azar. Nós diríamos para situações deste tipo que acordámos de rabo voltado para a lua. Os olhos são as nossas janelas para o mundo no calão chinês. Algo ou alguém que não é chamativo não faz levantar os olhos, quando o é, pelo contrário, bate nos olhos ou fere a vista. Os pés e os sapatos têm um sentido muito especial na cultura chinesa. Ninguém ainda esqueceu os famosos lótus de oiro, ou as damas de pés deformados. A quem pretende fazer a vida num inferno a alguém, diz-se que quer (levar a) calçar sapatos de cristal, isto é, muito pequenos e apertados: chuan shui jing xie. O sangue anda associado ao sofrimento físico e psíquico. Sair sangue, chu xie, utiliza-se para aquele que tem de pagar uma soma avultada e vomitá-lo, tu xie, significa que alguém está, ou vai, vomitar o dito, por uma acção que terá ou não cometido. Soprar, chui, é vangloriar-se no calão e os narizes grandes, da bizi, somos nós, os estrangeiros. Por isso, não temos grande beleza. Já um nariz velho, lao bi, é empregue para falar de excesso ou grande duração. Assim, muito tempo decorrido, ou uma grande quantia gasta são narizes velhos. Ainda em relação à idade, há algumas expressões particularmente grosseiras na gíria chinesa: os mais velhos são os que não há meio de morrer – lao bu si de. Os ignorantes e as pessoas do mundo rural também são velhos, ou saloios à portuguesa: lao maor. Moer os dentes, mo ya, é uma metáfora empregue para falar horas a fio, ou sem nexo. Ter o coração barulhento, nao xin, é estar terrivelmente irritado. Um cabeçudo, tou da, é alguém que pode ter uma dor de cabeça física ou psíquica, neste último sentido porque se vê terrivelmente atrapalhado com algo. Um cabeça ou cabecilha, tal como em português, é um chefe, no bom ou no mau sentido. E gostar de brincar à maneira yin (feminina), wanr yin de, significa apreciar esquemas e jogos baixos. Mais uma leitura favorável do elemento feminino… Tanto na gíria chinesa como portuguesa, há quem tenha a língua comprida. Para os descendentes do dragão, parece ser da mulher este atributo, assim diz-se chang she fu, ou mulher de língua comprida. Os chineses têm, ainda, o rabo comprido, wei ba chang, quando não fecham as portas e as coisas podem ir por água abaixo, ou melhor, por mar abaixo, no País do Meio, quando não correm bem. Há tábuas rasas, cuo banr, em Portugal e na China, só que aqui sair ao pai tem os sentidos acrescidos de fraqueza e fragilidade. O nosso emprenha pelo ouvido possui uma certa correspondência em chinês. Aos influenciáveis chamam-lhes os orelhas moles – erduo gen zi ruan. A expressão febre para referir obsessões e fanatismos também é comum na China. É a fashaoyou, ou febre dos vídeos, dos telemóveis, etc.. Há estrelas, xing, sobretudo no mundo do espectáculo, a oriente e a ocidente. Na China, as pessoas também se atrevem a mostrar os dentes, gan ya kai, especialmente no universo do comércio, quando pedem elevadas somas por um determinado produto. A electricidade funciona como metáfora sexual, ainda, na Terra Amarela e tem-se um choque eléctrico, guo dian, quando nos cruzamos com alguém muito atraente. Às promoções em flecha, habitualmente referidas aos quadros, chamam-lhes flechas de fogo – huo jian gan bu. Há teimosos como mulas, jue lu, em Portugal e na China. Também no País do Meio se abre os olhos, kai yan e não se tem cura, meizhi, quer em território luso, quer chinês, com uma diferença: ser um caso perdido pode significar algo extremamente positivo, como um espectáculo muito bom, no Oriente. Na cultura chinesa, que é eminentemente rural, o galo, tanto ao natural, como de fogo, tem um sentido óptimo, mas se for artificial, a saber de ferro, como já vimos, ou de porcelana representa uma pessoa má. Alguém com voz gutural e rouca tem voz de pato, gong ya sang zi. Às galinhas, ji, é reservado o triste fado da prostituição e os gatos, sobretudo esmaltados, liuli mao, são do pior. A vaca, niu, no calão chinês, simboliza o orgulho, a arrogância e o vangloriar-se. Os cobras, renshe, são imigrantes ilegais e o chefe cobra, shetou, é um traficante de gente. Os idiotas chapados são 205, ou er bai wu. O 2 tem um sentido muito próximo da gíria portuguesa. Existem cidadãos de segunda e, claro, mulheres de segunda. Estas são as que casam pela segunda vez, er guo tou ou er hun. Também a amante é uma segunda mulher, er nai e uma senhora, que perdeu a virgindade ou é divorciada, é uma mercadoria de segunda, er shou huo. Se juntarmos o 2 ao 5, obtemos 25, que representa uma pessoa incompetente. E há 5 vícios maus, wu du ju quan: a gula, a bebida a luxúria, o jogo e a droga. A gordura não é formosura como há uns tempos em Portugal, mas felicidade e riqueza. Assim, quem engorda, fa fu, cria felicidade e riqueza. Das crianças é rei, haiziwang, aquele que é naturalmente líder, ou então, pasme-se a ocidente, o professor. E atenção às madrastas, porque ser criado por uma madrasta quer dizer receber pouca atenção. Os novos imperadores são os filhos únicos e os deuses, shangdi, os consumidores. A propósito, quem tem uma conta para enterrar, maidan, ou melhor, para pagar?
Carlos Morais José Via do MeioO Man-man Ele há quem se interrogue perante determinados fenómenos naturais se estes não terão sido criados para induzir na humanidade determinados valores, incitar a certos comportamentos e evitar outros, como se a própria Natureza fosse um imenso livro de moral, quiçá de religião. E há, é claro, quem troce deste pressuposto, sublinhando que na Natureza existem exemplos capazes de satisfazer os mais opostos argumentos e nada fora do ser humano deve ser considerado na construção de uma verdadeira moral. Isto apesar do que é verdade e justo aqui nesta cidade, passa por aberração e mentira naquela, e assim por diante… Ora tomemos o seguinte exemplo. Pelo monte Chungwu esvoaça um pássaro, cujas características já fizeram a desgraça de incontáveis pedras de tinta, dada a quantidade de textos que a sua existência estimulou. Poderia, afinal, tratar-se apenas de mais uma espécie de pato selvagem, como existem tantas outras, nos céus imensos da China. Mas não. De seu nome man-man, trata-se de uma ave que apresenta o surpreendente predicado de cada indivíduo desta espécie contar apenas com um olho e uma asa. Esta peculiaridade acarreta ao man-man a obrigação de se juntar a outro da mesma espécie para conseguir levantar voo e cruzar os céus, ou seja, de voar em par. De uma forma geral, um man-man não consegue sobreviver ou sequer desempenhar quaisquer tarefas sem a presença de outro. Em geral, um man-man macho junta-se a uma fêmea, mas têm sido detectados casos em que duas fêmeas ou dois machos empreendem juntos o voo e a vida. Inevitavelmente, a descrição do man-man remete-nos para o mito do andrógino, tal qual nos narra Platão. Nele se descreve um tempo arcaico em que seres completos, possuindo características femininas e masculinas, capazes de se auto-reproduzir, terão irritado os deuses, devido à sua vaidade e arrogância. Para os castigar e pôr termo a esta situação, os divinos seres cortaram os andróginos ao meio, condenando assim cada metade a desesperadamente procurar a outra, o que explicaria os desvarios do amor. Se o andrógino do mito grego é castigado pelos deuses e tal explica a origem de seres divididos pela metade, já sobre o man-man chinês paira um turvo silêncio quanto à sua origem. Nada nos textos nos remete para um excesso de vaidade, arrogância ou pesporrência que tivesse condenado esta estranha ave a procurar a outra metade para sobreviver. Nada nos indica que, noutros tempos, as duas metades do man-man tivessem estado juntas. A necessidade do outro não deriva de um castigo, mas de um aflitivo estado natural, que nada deve a intervenções divinas. Na mitologia chinesa antiga, avistar um man-man era considerado de mau agoiro. Contudo, a partir da dinastia Han, a sua dupla figura começou a surgir em decorações funerárias como símbolo do amor conjugal e assim se espalhou pela cultura popular até aos nossos dias e mesmo para além deles.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioNi Yuanlu pintou uma pedra ou uma nuvem? Mi Fu (1052-1107), o poeta e pintor dos Song, um dia ao tomar posse como magistrado no distrito de Wuwei (actualmente em Anhui), quando caminhava para a residência oficial, parou admirado diante de uma pedra. Logo envergou as vestes formais e segurando a placa do seu posto nas mãos, inclinou-se numa longa vénia de respeito perante o capricho silencioso da erosão natural e dirigiu-se ao monólito: «Pedra, minha irmã mais velha». Noutra ocasião tomou uma decisão que iria lamentar toda a vida, ao trocar uma das pedras de moer a tinta da sua lendária colecção por uma nova casa que nomeou Retiro de Montanhas e Oceanos. Viver retirado do Mundo era uma ambição dos literatos a exemplo de Tao Qian (365-427) que explicitou em muitos poemas essa utopia, e de modo particular nos vinte que compôs «estando ébrio», de onde deriva uma caracterização que parte dessa situação: yinjiu, a «vida na solidão rural». No fim dos Ming altos funcionários desesperados com o declinar inexorável da dinastia referiam-se a essa quimérica terceira porta, depois da inocência, do conhecimento convencional, a percepção livre e espontânea. Como o poeta e pintor de Shangyu (Zhejiang) Ni Yuanlu (1593-1644) no poema Imprevisto estando ébrio: Não ficarei com os pés atados à janela do Sul mas, com eles desembaraçados, irei dez mil li para onde quer que me guiem. Como ficar indiferente a livros preciosos ou longas espadas? Em pleno dia cantarei alto a cada coisa maravilhosa. Dado que o mestre Yang* só encontrou desprezo ao escrever sobre mistérios, terei Du Fu, que bebia muito, como guia. E não é preciso perguntar o que farei com a minha vida: seguirei adiante, contemplando montanhas, com um bastão de bambu na mão. Ni Yuanlu, na última página de um álbum de 1640 (tinta e cor sobre seda, c.21,5 x 20,1 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton), escreveu uma nota: Acordei cedo e como não tinha compromissos onde estar, fiz este álbum de pinturas, sinceramente, para o quinto irmão, Xianru. Nessas dez folhas ,intituladas Amizade na Pedra (Shijiao tu), representou sucessivamente dez rochas diversas como personalidades, em que se reconhecem as quatro qualidades das pedras analisadas por Mi Fu: Shou, a estatura elegante e erecta, Tou, os buracos que permitem a passagem do ar e da luz, Lou, os canais e rachas Zhou, a superfície e textura. Noutra pintura invulgar, Nuvem pedra (rolo vertical,tinta sobre seda, 130,8 x 45,4 cm, no Metmuseum) ele dirige-se à figura pintada como se fora um ser ciente: Não é estúpida nem engana, Será uma nuvem, será uma pedra? O último ano da vida de Ni é também o último da dinastia Ming e não é uma coincidência: leal aos nós da amizade, vendo que não podia seguir adiante, ele mesmo se retirou do caminho onde observava a lentidão das nuvens e a ainda maior das pedras. * Wanli (1127-1206)
Ana Cristina Alves Via do MeioVoos imortais Só os pássaros imortais voam na verdadeira acepção do termo, isto é, livremente, sem quaisquer condicionalismos ou restrições naturais; os outros, os pássaros do mundo foram feitos para voar: voam segundo um plano estabelecido pela própria ordem natural. Têm uma liberdade condicionada, mesmo assim representam, para maioria das culturas – e os chineses não são excepção –, uma ordem superior, simbolizam, habitualmente, os valores mais sagrados para as sociedades humanas. Os chineses que, como todos os orientais, mais facilmente criam empatia com os seres da natureza, identificam-se inteiramente com os pássaros. Estes são imagens vivas de homens e mulheres, de seres sábios, poderosos, autênticos, livres, imortais. Os símbolos variam ou aperfeiçoam-se consoante a filosofia que os adopta. Assim, para os confucionistas os pássaros, especialmente as fénix masculinas, personificam o governante justo, que traz consigo o mandato do céu e o dita à terra. Para os daoístas, os pássaros são, na maioria dos casos, símbolos da liberdade, autenticidade e sabedoria imortais. É interessante notar que, tanto para os daoístas como para os confucionistas, simbolizam os vários tipos de poder. Mas os pássaros não são escolhidos apenas pelas filosofias eruditas para representar uma ordem ética e ontológica superior: também ao nível popular é completa a identificação entre as aves e o melhor que a natureza humana tem. Os pássaros aprisionados simbolizam os próprios grilhões humanos. Diz-se que antigamente os homens ricos da China tinham belos pássaros engaiolados que identificavam com concubinas. Tanto as aves como as concubinas estavam inteiramente à mercê destes poderosos e serviam apenas para lhes ornamentar o ego, por causa da sua bela aparência. Entretanto, a sociedade chinesa foi-se democratizando, no sentido mais etimológico da palavra, e hoje o costume popularizou-se, por isso, já encontramos muitos homens do povo a passear as suas belas “concubinas” nas ruas e nos jardins. A Fénix, que como vimos pode ser masculina, representa normalmente o princípio feminino. Ela é a parceira do dragão e simboliza a imperatriz. Qualquer mulher que a traga pintada, por exemplo, na roupa, é “rainha” enquanto a ostentar. O corpo da fénix representa as cinco qualidades consideradas humanas: a cabeça, a virtude; as asas, o dever; as costas, o comportamento; o peito, a humanidade; e o estômago, a confiança. Já a fénix masculina é a incarnação de uma ordem e de uma justiça sobre-humanas, como nos recorda, tanto Confúcio, como Zhuangzi, o segundo maior filósofo daoísta. Numa fábula apresentada por este filósofo daoísta, a coruja possui uma sabedoria inteiramente mundana, luta pelos bens da terra e tritura tudo o que lhe possa dar alimento, como ratos mortos e já meio decompostos. Ela representa o homem prisioneiro do mundo que pretende governar; a fénix, pelo contrário, aparece, em contraponto, como uma ave sobrenatural, surgida do mar Meridional, em voo para o mar do Norte. Esta pousa apenas em certas árvores sagradas, come e bebe de fontes celestiais (XVII,2). Os pássaros, como todos os outros seres, estão condicionados pela sua própria natureza, têm asas, é natural por isso a sua apetência para o voo, que personifica o gesto verdadeiramente livre. Deste modo, as aves optam pelos impulsos espontâneos que as governam, opondo-se, sempre que lhes surge oportunidade para tal, a ordens artificiais, como a humana. Segundo a filosofia daoísta, o caminho da liberdade é preparado pela obediência à natureza de cada um. Assim, Zhuangzi relata-nos que um pequeno faisão do pântano tem pular dez vezes sobre um pé, só para comer razoavelmente e deve correr cem passos antes de beber um pouco de água. Não obstante o esforço, evita o galinheiro onde poderia sobreviver sem canseiras. (III,3) Pássaros como os grous são símbolo, por exemplo, de figuras humanas imortais e, como tal, da própria sabedoria imortal. Corre que Qing Wu, o pai do Feng Shui, ou Fong Soi em cantonense, terá vivido durante a dinastia Han e adquirido a sua sabedoria intuitiva de grous imortais. Estes metamorfosearam-se em homens para lhe transmitirem a sabedoria divina. Foi assim que ele aprendeu a reconhecer a energia que flui na terra e a seleccionar os locais para sepulturas, susceptíveis de transformarem em reis e sábios todos os descendentes de defuntos que nelas fossem enterrados. Os pássaros não são apenas o símbolo da liberdade, dos poderes humanos e divinos, da sabedoria imortal, da feminilidade, nuns casos, da masculinidade, noutros; eles são também, em muitas das lendas chinesas, o porto de abrigo de almas desprotegidas e atraiçoadas. Recebem as almas, protegem a sua autenticidade e verdade mais profundas e, depois, devolvem-nas à vida, no momento oportuno, para que seja feita justiça. Após este abrigo, os ressurgidos são felizes para sempre. Quantas raparigas chinesas, mortas à traição, não se transformaram em pássaros encantados para depois recuperarem a forma humana e a felicidade junto de familiares, amigos, ou amantes de que tinham sido afastadas? Há muitas lendas sobre este tema. Entre elas, por exemplo, a do Homem-Cobra. Este ficou sem a mulher, depois de uma irmã mais nova a ter morto para poder ocupar o seu lugar. A rapariga transformou-se num pássaro encantado que ia contar a sua história a uma das janelas da casa do novo casal. A irmã mais nova apanhou o pássaro, comeu-o e deitou os seus ossos à terra. Passado pouco tempo, no lugar dos ossos cresceu um lindo bambu, onde se abrigou a alma da irmã mais velha. A irmã voltou a cortar o bambu e fez dele um fole, que acabou por dar a uma velha pedinte. Esta, ao cabo de várias peripécias, recuperou a rapariga, proporcionando assim um reencontro feliz entre o homem-cobra e a sua mulher. O pássaro, ou melhor os seus ossos, transformaram-se em mais um elemento do ar, a madeira do bambu, que permitiu continuar a albergar aquela alma desprotegida pela sociedade humana, mas votada, devido à protecção das aves, a regressar à vida. Não têm conta na tradição chinesa os milagres narrados de retorno à existência que os seres do ar proporcionam aos humanos. Os pássaros acolhedores preservam as almas, alimentam-nas e devolvem-nas tão puras como anteriormente, mas muito mais leves, porque as libertam, com o auxílio do tempo, das penas que as haviam afligido. Há, por isso, que sabiamente seguir a via dos pássaros chineses e optar, sempre que possível, pela liberdade. Esta não é uma liberdade imortal, plena, mas uma liberdade obediente, condicionada aos ritmos da própria natureza. Tece-se na submissão ao quotidiano, é a liberdade possível. Há, ainda, segundo a sabedoria das aves, uma espaço a evitar – o do cativeiro, o das gaiolas, o das prisões artificiais, criadas pela mente e mãos humanas, que tantas vezes se atraiçoam a si próprias e aos outros. Quando a situação de cativeiro acontece, há que seguir, mais uma vez, o exemplo das aves: suportá-la estoicamente e aproveitar para escapar ao primeiro descuido dos donos.
Rui Cascais Via do MeioA Grande Compilação – 1 Xunzi Tradução de Rui Cascais Se o senhor dos homens exaltar o ritual e honrar os meritórios, tornar-se-á num verdadeiro rei. Se a sua acção se basear acima de tudo na lei e se preocupar com o povo, tornar-se-á num líder hegemónico. Se a sua preocupação fundamental for com o lucro próprio e se dedicar frequentemente a enganar, então estará em perigo. Se quisermos estar próximos de todos os quatro lados ao mesmo tempo, não há lugar melhor do que o centro absoluto. Assim, e de acordo com o ritual, o verdadeiro rei sempre habitará o centro do mundo. Segundo o ritual, o Filho do Céu faz instalar biombos fora de portas e os senhores feudais instalam biombos dentro de portas. A razão de instalar biombos fora de portas é não querer ostentar o que está no seu exterior. A razão de instalar biombos dentro de portas é não querer ostentar o que está no seu interior. Segundo o ritual, quando um senhor feudal chama o seu ministro, o ministro não espera que preparem a sua carruagem, mas parte a correr com a roupa em desalinho. As Odes dizem: Lá vai ele desalinhado Pois o chama o homem do Duque. Segundo o ritual, quando o Filho do Céu chama um senhor feudal, este vai numa carruagem puxada por homens. As Odes dizem: Vou agora na minha carruagem, Lá até aos prados; Um emissário do Filho do Céu Vem a dizer-me “Anda cá”. Segundo o ritual, o Filho do Céu usa uma veste com o bordado de uma montanha e um alto chapéu cerimonial. Um senhor feudal veste roupas negras e põe chapéu. Um grande oficial enverga vestes inferiores e um alto chapéu cerimonial. Um oficial regular enverga vestes de pele e um chapéu de couro. Segundo o ritual, o Filho do Céu tem por acessório um ting, um senhor feudal tem por acessório um shue um grande oficial tem por acessório um hu.2 Segundo o ritual, o Filho do Céu usa um arco esculpido, um senhor feudal usa um arco vermelho e um grande oficial usa um arco negro. Quando os senhores feudais se reúnem uns com os outros, devem usar os seus conselheiros como intermediários, devem fazer-se acompanhar por oficiais treinados no curso da sua viagem, devem empregar pessoas de ren para ficarem para trás a zelar pelas coisas. Quando perguntamos por alguém, devemos usar um gui. Ao fazer perguntas a uma pessoa bem-criada, devemos usar um bi. Ao convocar alguém, devemos usar um yuan. Ao despedir alguém embora, devemos usar um huan.3 Quanto ao senhor dos homens, quando nele está estabelecido um coração de ren, o entendimento é seu servo e o ritual o completa. Assim, um verdadeiro rei sempre põe ren em primeiro lugar, pois a ordem Celestial de implementação assim o dita. O Registo de Rituais de Averiguação diz, “Quando o dinheiro gasto é copioso, isso prejudica a virtude. Quando os recursos utilizados são opulentos, isso perturba o ritual”. Esta história de ritual, história de ritual – será somente uma história de jades e sedas? As Odes dizem: Estas coisas são tão encantadoras Basta só que se adequem apropriadamente. Se não for atempada nem tiver cabimento, se não for respeitosa nem de boa forma, se não for animada nem alegre, então, mesmo que seja encantadora não se trata de propriedade ritual. Quem atravessa as águas marca os lugares mais fundos, de modo a que ninguém caia neles. Aqueles que ordenam as pessoas marcam aquilo que é caótico, de modo a que ninguém caia em erro. Os rituais são os seus marcadores. Os antigos reis usavam rituais para marcar aquilo que lançaria o mundo inteiro no caos. Se descartarmos os rituais estaremos a jogar fora os marcadores. E assim, as pessoas ficam perdidas e confusas e encontram calamidades e sarilhos. É por isso que os castigos e penas se tornam profusos. Shun disse, “A verdade é que sigo os meus desejos e, ainda assim, obtenho ordem”. Assim, génese dos rituais é para benefício dos meritórios até ao povo comum, não para benefício do sábio perfeito. Contudo, eles também são meios de nos tornarmos sábios. Se não os estudarmos, não o conseguiremos. Yao estudou com Jun Chou, Shun estudou com Wucheng Zhao e Yu estudou com Wangguo. Depois dos cinquenta, não devemos realizar o ritual do luto por inteiro.4 Depois dos setenta, devemos manter só o uso de roupas de luto. No ritual de “boas-vindas pessoais”, o pai fica de pé, voltado para sul. O filho ajoelha-se, voltado para norte. O pai realiza uma libação e ordena-lhe: “Vai acolher a tua companheira e realizar as tarefas ancestrais. Guia-a com reverência para que sirva respeitosamente como sucessora da tua mãe. Possamos, assim, ter constância”. O filho replica, “Sim. Temo apenas não ter capacidade para isto. Como ousaria esquecer as tuas ordens?” Quanto à “conduta apropriada”, esta significa a realização de rituais. Quanto ao ritual, é através dele que quem é nobre é tratado com respeito. Através dele, os idosos são tratados filialmente. Através dele, os seniores são tratados com deferência. Através dele, os jovens são tratados com bondade. Através dele, os inferiores são tratados com generosidade. Oferecer presentes aos membros da nossa casa é como empregar comendas e recompensas para com o estado e seus clãs. Mostrar ira aos nossos servos e concubinas é como aplicar castigos e penas à miríade do povo comum. A pessoa exemplar trata os seus filhos com amor sem se deixar enfeitiçar por eles; dá-lhes tarefas, mas sem os rebaixar e guia-os no Caminho sem os forçar. Na sua raiz, o ritual destina-se a tornar consensuais os corações das pessoas. Por isso, aquilo que não está prescrito no Clássico dos Rituais, mas serve para tornar consensuais os corações, também contém propriedade ritual. As principais e mais gerais tarefas do ritual servem para ornamentar a felicidade quando se destinam aos vivos, para ornamentar o desgosto na despedida dos mortos e para ornamentar o poder que inspira temor quando envolvidos em assuntos militares. Tratar os familiares como é apropriado para eles, tratar velhos amigos como é apropriado para eles, tratar os servos como é apropriado para eles, tratar os trabalhadores como é apropriado para eles – estas são as gradações de ren. Tratar os nobres de modo apropriado para eles, tratar os veneráveis de modo apropriado para eles, tratar os meritórios de modo apropriado para eles, tratar os idosos de modo apropriado para eles, tratar quem tem senioridade de modo apropriado para eles – estas são as classes de yi. Chegar à regulação apropriada na execução destas coisas é a ordenação que reside no ritual. Ren é cuidado e por isso produz afecto. Yi é boa ordem e por isso produz a conduta apropriada. O ritual é a regulação apropriada e por isso produz o completar [destas coisas]. Para ren, há uma vizinhança apropriada. Para yi, há um portal apropriado. Se, ao tentarmos ser ren, habitarmos numa vizinhança que não lhe é apropriada, então não somos ren. Se, ao tentarmos ser yi, usarmos o portal que não lhe é apropriado, então não seremos yi. Oferecer bondade sem boa ordem não constitui ren. Seguir a boa ordem sem a regulação apropriada não constitui yi. Seguir a regulação apropriada sem harmonia não constitui propriedade ritual. Harmonia sem expressão externa não constitui musicalidade. Por isso digo: no que respeita a ren, yi, propriedade ritual e musicalidade, o seu completar é unificado. A pessoa exemplar habita em ren através de yi e só assim é ren. Realiza yi através do ritual e só então é yi. Na implementação do ritual, regressa às raízes e completa os ramos, e só então é ritual. Quando a mestria dos três é total, só então é o Caminho. Os bens e dinheiros [oferecidos para um funeral] são chamados “donativos”. As carruagens e cavalos são chamados “contribuições”. As roupas e vestes são chamadas “presentes”. A parafernália é chamada “prendas”. Os jades e conchas são chamados “oferendas”. Os donativos e contribuições são usadas para assistir aos vivos. Os presentes e prendas são usados na despedida dos mortos. Se estes não chegarem enquanto o corpo ainda está em câmara ardente, ou se as nossas condolências aos vivos não chegarem enquanto ainda estão de luto e tristes, isso não é considerado propriedade ritual. Assim, avançar cinquenta léguas ao viajar para participar num evento auspicioso, avançar cem léguas num dia ao nos apressarmos para participar num funeral, e assegurarmo-nos de que as nossas contribuições e prendas chegam a tempo das cerimónias – estes são os pontos principais da propriedade ritual. O ritual é aquilo que puxa o governo. Se não aplicarmos o ritual na actividade de governar, o governo não avançará. Dada a grande variedade de tópicos aqui coberta, este capítulo poderá ter sido compilado pelos estudantes de Xunzi. Alguns segmentos são praticamente idênticos em capítulos anteriores. Ting 挺, shu e hù 笏são implementos rituais feitos de diversos materiais e usados como insígnias. Gui, bi, yuan, jue e huan eram peças de jade de diversos formatos mostradas ou oferecidas à pessoa a quem estes actos eram dirigidos. O comentador Yang Liang, da dinastia Tang, explica que as partes do ritual a evitar são as que envolvem chorar vigorosamente e saltitar.
Hoje Macau Via do MeioHan Shan – Os poemas da Montanha Fria Tradução de António Graça de Abreu 141 Vivo algures numa aldeia, no campo, não tenho pai, não tenho mãe. Não tenho nome, nem família ilustre, chamam-me “velho Zhang” ou “velho Wang”. Ninguém me ensina coisa alguma, pobre e simples, tal foi o meu destino. No coração, gosto muito da verdade, firme e sólida como um diamante. 142 O tempo passou por aqui, regresso hoje, após setenta anos. Velhos amigos, já nenhum me visita, foram enterrados em túmulos antigos. Hoje, os cabelos todos brancos, mas guardo ainda as nuvens da montanha. Que posso ensinar aos homens do futuro? Apenas palavras do passado. 143 É sagaz o espírito do homem superior, ouve, conhece a essência das coisas. É claro o espírito do homem mediano, pensa, entende o que é necessário. É lento o espírito do homem inferior, difícil penetrar num crânio entorpecido, só quando o sangue lhe sobe às meninges, compreende como foi demasiado longe. Surpreendidos, todos olham o culpado, no julgamento amontoa-se o povo da cidade. Condenado, o cadáver é tratado como lixo, ninguém tem mais nada a dizer. Rapazes, gente crescida, um golpe e cortam o corpo em dois, Um rosto de homem, um coração de animal. Quando terminarão estes negócios? 144 Alcandorado nas rochas, num lugar secreto, escondido, impossível de descrever. Não há vento, as lianas agitam-se, não há névoa, os bambus envoltos em bruma. Os regatos cantam, mas para quem? De súbito, na montanha, rolos e rolos de nuvens. Ao meio-dia sentado na minha cabana, para sentir o sol subindo no espaço. 145 Vejo os homens do mundo, perdidos, calcorreando os caminhos da poeira, sem entender por onde vão, nem como abandonar as rotas sem regresso. Os dias felizes, quantos, no fim de contas? os parentes, os amigos, tudo tão de passagem… Mesmo diante de mil medidas de ouro é melhor ser pobre, sob os pinheiros. 146 O lucro, a fama, o teu coração exausto, cem vezes envolvido pela cobiça. O acender de um pavio, a ilusão de passagem, em breve serás enterrado no desconforto de um túmulo. 147 A cadeia de montanhas, as águas soberbas, a névoa escondendo o horizonte verde. O vento acaricia, humedece o meu chapéu, o orvalho entra no meu casacão de palha. Nos pés, as sandálias gastas do viandante, na mão, um velho bastão de junco. Ao longe, olho ainda esse mundo de poeira e ilusão, o sonho, o que tem a ver comigo?… 148 Recordo os dias da minha juventude, caçando tantas vezes junto a Pingling. Não era do meu gosto vir a ser mandarim, buscar a imortalidade, também não me agradava. Quase voava no meu corcel branco, gritando atrás de lebres, soltando o meu falcão cinzento, ignorava que um dia conheceria o exílio. Agora, os cabelos todos brancos, quem cuidará de mim?… 149 Nuvens, as montanhas entram pelo azul do céu, um caminho afastado, a floresta densa, ninguém de visita. De longe, a lua solitária, iluminada e pura, de perto, o esvoaçar, o chilrear dos pássaros. Velho, sentado, diante de cumes verdejantes, nostálgico e tranquilo, no planalto entre os montes, Os cabelos brancos, o ano passado, hoje, o coração livre, como uma onda correndo para leste. 150 Solitário, sentado diante da falésia, a lua redonda ilumina todo o céu. Dez mil coisas mostram-se ao luar, naturais, sem nenhum disfarce. O espírito claro, a essência do simples, abraço o vazio, atravesso o mistério. Um dedo aponta a lua, lá longe, a lua, no meio do coração. 151 Há quantos anos habito na Montanha Fria, despreocupado, cantando, livre de todas as penas? A cancela sempre aberta para o silêncio, o mistério, doces, as águas do ribeiro, sussurando. As lages da sala, no chão um caldeiro com cinábrio, resinas de pinheiro, incenso, rebentos de cipreste. Tenho fome, uma bolinha desta panaceia, harmonia no coração, encostado às rochas. 152 A falésia fria, na essência, sempre bom, ninguém atravessa estes caminhos. Nuvens brancas ao acaso pelos montes, cumes azuis, guinchos dos macacos, na distância. Não mais parentes e amigos, sigo o curso dos dias, vou envelhecendo. Forma e conteúdo, frio e calor, tudo muda, imutável uma pérola no coração. 153 Encontrei uma menina na casa do leste, ainda não completara dezoito anos. A oeste, todos os homens a queriam p’ra si, combinou-se uma boda, houve um casamento. Assaram-se carneiros, mais de mil convidados morderam a carne, saciaram a gula. Tão felizes, riam de alegria, chegará um dia a colheita das lágrimas. 154 Hoje, sentado diante da falésia, sentado até ao levantar da névoa. Um simples arroio frio de cristal, a dez léguas, ainda os cumes e picos de jade. Imóveis as sombras das nuvens ao nascer o dia, o luar da noite ainda flutua no vazio. No meu corpo nem manchas, nem poeiras, no meu coração nem traço de inquietude. 155 Velho, doente, perto do fim, mais de cem anos, rosto amarelo, cabelos, brancos, ainda adoro a montanha! O corpo coberto de peles, sigo o meu destino, afastado de vez das seduções do mundo. Quando se usa o coração para renome e fama entram no corpo cem diferentes desejos. Esvoaça a vida, extingue-se a candeia, dissipa-se a ilusão, no túmulo, enterrado o corpo, temos o não ter. 156 Habito a montanha, ninguém me conhece. Entre nuvens brancas, o silêncio, sempre o silêncio.
Roderick Ptak Via do MeioMazu e o primeiro título oficial atribuído em 1123 O primeiro título e os seus muitos significados A história de Mazu 媽祖, a deusa chinesa dos marinheiros, faz parte do passado de Macau e tem sido repetidamente mencionada na comunicação social local e em publicações académicas. Muitas destas obras discutem a ascensão do culto de Mazu e a história de cada um dos templos que lhe são dedicados. De acordo com os textos tradicionais, o seu culto começou no início do período Song, numa pequena ilha chamada Meizhou 湄洲, perto da costa de Fujian. Ao que parece, esta divindade era então simplesmente conhecida como Meizhou xiannü 湄洲仙女, e / ou por outros nomes, e só recebeu o popularizado nome de Mazu muito mais tarde. Hoje em dia as pessoas também se lhe referem como Tianfei 天妃 e/ ou Tianhou 天后 (Tinhau em cantonês), mas no presente artigo, por uma questão de conveniência, chamar-lhe-emos apenas Mazu. Há uma razão simples para chamar novamente a atenção para esta divindade, na presente edição do Hoje Macau: Em 1123, há cerca de 900 anos, o Governo chinês, pela primeira vez, honrou Mazu com a concessão de um título oficial. Isto significa que, desde então, Mazu ascendeu à esfera das divindades oficialmente reconhecidas. Ter-lhe atribuído um título implicou também que o culto local fosse elevado a um assunto de importância nacional. Por outras palavras, o ano de 1123 marcou o crescimento da crença no poder protector de Mazu. O título concedido a Mazu foi escrito numa prancha de madeira, posteriormente oferecida a um templo local de Fujian. A inscrição consistia apenas em dois caracteres: shunji 順濟. O significado preciso destes dois caracteres permanece vago porque, por si só, aparecem em diferentes contextos e combinações. Shun indica conceitos como “obediência”, “prosperidade”, “conveniência”, etc. De um modo mais geral, contém componentes semânticos, que transportam a ideia de “concordar com”, ou “estar em conformidade com”. Quanto a ji, em muitos casos trata-se apenas de um verbo: “ajudar”, “salvar”, “aliviar”, etc. Por exemplo, podemos traduzir a frase verbo-objecto ji chuan 濟川 por “atravessar uma corrente” e a ideia subjacente será “resolver uma grande crise”. No Budismo podemos encontrar o termo ji du 濟度, ou “ajudar [alguém] a atravessar [um mar de tristeza] (kuhai 苦海)”; de novo, num sentido lato significa “ajudar [alguém em perigo]”. “Completar um assunto” pode ser grafado em chinês como ji shi 濟事. Além disso, segundo alguns estudiosos, o termo moderno jingji 經濟 (economia) deriva de jing shi ji min 經世濟民, literalmente “gerir / criação de regras / o mundo e ajudar pessoas”. Sequências relacionadas aparecem nos primeiros textos. Assim, no período Sui (581–618) podemos encontrar a seguinte equação: jingji zhi dao 經濟之道 (a forma de gerir e ajudar) = jing guo ji min 經國濟民 (governar o país e apoiar o povo). Tomados no seu conjunto, estes exemplos sugerem que podemos de facto associar muitos significados à combinação shunji. Mas, não há dúvida, que implica “a vontade de ajudar”, tanto em sentido genérico, como quando se aplica a “ajudar quem atravessa os mares”. A segunda opção alude à esfera Budista (através do não nomeado “mar de tristeza”), e claro que também pode ser relacionado com o mundo oficial da política, de forma metafórica: “dispostos a ajudar [o Governo].” Outros aspectos interessantes dizem respeito à gramática: Shunji pode querer dizer “[A Deusa está] disposta a ajudar [alguém]”, “[Ela tem sempre] vontade de ajudar [os outros]”, ou podemos ver a frase como um apelo: “Possa [a Deusa] ajudar [os que estão em perigo /ao atravessar o mar]!” Em qualquer dos casos, o sujeito gramatical não está claramente manifesto; é por isso que aparece entre parênteses. Além disso, o tempo permanece indefinido. Uma outra possibilidade seria tratar shun e ji como duas entidades distintas: “obediência” e “auxílio”. Podemos expandir esta interpretação para: “Sê obediente e auxilia [nos]!” ou “[Ela] obedientemente presta (presta/prestará) auxílio”. E, em termos políticos: “Obedientemente apoiou [o Governo]!” Várias destas sugestões submetem implicitamente a divindade em questão à autoridade do Estado, a menos que argumentemos que o elemento “obediente(mente)” se reporta à hierarquia dos deuses e deusas: Por outras palavras, Mazu obedecia às ordens de uma divindade superior e, consequentemente, prestava auxílio. Concessão de títulos a divindades: motivos e antecedentes É claramente difícil traduzir muitos dos títulos e nomes que a corte imperial atribuía a divindades e a instituições religiosas, porque as suas dimensões semânticas são bastante “flexíveis”. A combinação shunji é um exemplo típico do que acabámos de dizer. Os leitores também terão reparado noutro aspecto importante ligado às interpretações possíveis de shunji. Falo das expectativas e pontos de vista do Governo. Antigamente, a concessão de um título estava frequentemente condicionada por algumas variáveis. Em primeiro lugar, as autoridades imperiais tinham de se certificar que a divindade em questão tinha auxiliado ou salvo um indivíduo em particular, ou um grupo de pessoas, de forma eficiente. Em segundo lugar, o Governo não estava por aí além interessado em casos de ajuda divina a pessoas comuns, nem na realização dos seus desejos; em vez disso, o que realmente contava, era a ajuda divina no interesse do Estado, quer esta ajuda fosse prestada à administração pública, ou ao exército. A questão-chave era que o “milagre” realizado fosse em benefício do Estado. Em terceiro lugar, quando o Governo concedia um título a uma divindade, não só demonstrava a sua gratidão pela ajuda recebida, como implicitamente expressava a esperança ou expectativa de que a mesma divindade continuasse a auxiliar o Estado no futuro. Em termos metafóricos, tinha sido celebrado uma espécie de “acordo” entre a esfera secular e a esfera divina: A divindade realizaria futuros milagres e o Governo premiá-la-ia simbolicamente. Presumivelmente um tal acordo só era possível porque as pessoas acreditavam em diversas divindades protectoras e noutras criaturas com poderes sobrenaturais. Segundo a opinião generalizada, muitos destes espíritos tinham deveres especiais. Embora o panteão divino estivesse organizado hierarquicamente, com algumas divindades muito influentes e outras pouco influentes, certos segmentos desta hierarquia não permaneciam estáticos; de facto, não raras vezes diversos espíritos lutavam entre si para subir de estatuto. Nessa altura, era claramente oportuno que um espírito desenvolvesse uma “liaison” estável na esfera humana. Um tal acordo iria fortalecer a posição dessa divindade em relação às outras. Por isso, a concessão de títulos também era benéfica para a esfera humana, ou para o Estado enquanto tal. Como tal, a concessão de títulos e de outras honras implicava uma situação em que todos saíam a ganhar. Em vários casos, podemos ligar um aspecto adicional e muito mundano ao acto de homenagear um espírito ou uma divindade “ascendente”. Não raras vezes, um culto religioso – quer fosse budista ou pertencesse ao reino do Taoismo, ou ainda operasse como uma entidade separada – tornava-se importante dentro de um contexto regional. Dito de outra forma, contribuía para a formação das identidades locais. O Governo Central tinha de estar atento a estes processos, mais genericamente, às actividades desenvolvidas na distante periferia do império. Claramente, as sociedades secretas, em associação com templos e santuários, eram encaradas como um perigo quando deixavam de respeitar o controlo do Estado. Ao conceder títulos, oferendas e fundos a estas instituições, a corte tentava aumentar a lealdade dos cidadãos das zonas distantes. Em alguns casos, ao que parece, a população local beneficiou, de facto, das iniciativas do Governo e respondeu positivamente aos seus esforços; noutros casos, as medidas simbólicas não foram suficientes para garantir a lealdade dos povos que viviam em locais remotos e isolados. Um enviado à Coreia em 1123 Então, agora, podemos interrogarmo-nos sobre os possíveis antecedentes da concessão do “rótulo” shunji a Mazu no ano de 1123. Para começar, os anos 20 do séc. XII foram marcados por instabilidade política na maior parte do Leste asiático. Os Song 宋 comandavam o centro e o Sul da China, mas não o Norte, partes do qual estavam sob o domínio do Estado Liao 遼. Além disso, as regiões mais a norte, para lá da fronteira do Estado Liao, eram dominadas por outra potência – o Estado Jin 金. Durante algum tempo, Song aliou-se a Jin contra Liao, esperando vir a enfraquecer este último. No entanto, a corte Song não percebeu que Jin era extremamente ambicioso e que não só queria eliminar Liao, como acabaria por enviar tropas contra si própria. Nessa altura, Koryǒ 高麗 na península coreana, era outro grande “actor” do Nordeste asiático. Aparentemente, tentou avisar Song dos planos expansionistas de Jin. Os contactos entre Song e Koryǒ tiveram de ser feitos por via marítima porque estes estados não tinham fronteiras comuns; o Estado Liao, à semelhança de um peixe-balão, separava os dois. Por vezes, esta separação dificultava os intercâmbios oficiais. Seja como for, em 1122 o imperador Song deu ordens para enviar uma missão diplomática a Koryǒ, mas foi só no Verão de 1123 que a delegação deixou Ningbo 寧波. Era constituída por oito navios dos quais sete acabaram por se perder devido a temporais e a outros infortúnios. Embora a interpretação da macro-situação no Nordeste asiático durante estes anos não coloque problemas, o verdadeiro objectivo da missão que começou em 1123 permanece insondável. No entanto, existe um extenso relato deste episódio, repleto de detalhes, relacionado com a rota marítima e com diversos acontecimentos. Esse livro escrito, por Xu Jing 徐兢, tem por título Xuanhe fengshi Gaoli tujing 宣和奉使高麗圖經 (Um Relato Ilustrado de uma Missão Diplomática à Coreia no Período Xuanhe). Entre outras coisas, conta-nos que Lu Yundi 路允迪 era o chefe da diplomacia chinesa. Outras fontes também se referem a esta viagem, mas geralmente de forma breve. Mesmo assim, podemos dizer que os navios e as tripulações usados na missão eram originários de diferentes localidades costeiras. Assim, parece que Xu Jing viajou num navio cuja tripulação era proveniente de Fuzhou 福州, ou de uma zona vizinha. Em contrapartida, Lu Yundi embarcou num navio cuja tripulação vinha provavelmente, na sua maioria, de Putian 莆田. Putian, podemos acrescentar, é o distrito ao qual pertence a pequena ilha de Meizhou, onde começou o culto de Mazu. Segundo Xu Jing, quando o navio em que viajava, começou a ter problemas, a tripulação pediu auxílio ao Espírito da Ilha de Yan (Yanyushen) 演嶼. Evidentemente, esta divindade estava associada ao Condado de Lianjiang 連江縣 perto de Fuzhou. A história da embarcação de Lu é diferente. Alguns estudiosos acreditam que era capitaneada por um homem de Putian. Daí, em situações de aflição, a tripulação rezaria certamente a uma divindade diferente – nomeadamente a Mazu. Tanto Lu como Xu sobreviveram à viagem, firmemente convencidos que os espíritos dos mares os tinham protegido. Na verdade, algumas fontes relatam que durante as tempestades, uma divindade feminina aparecia no cimo do navio de Lu e o mar acalmava. Mais genericamente, em obras chinesas posteriores, quando eventos semelhantes eram descritos, fazia-se frequentemente referência a uma luz vermelha sobre o mastro e algumas ilustrações chegam a mostrar uma deusa vestida dessa cor. Outras fontes contam que esta divindade segurava uma lanterna vermelha. Na maior parte dos casos estes relatos apontavam para a presença de Mazu. Sem dúvida, estas narrativas lembram ao leitor os chamados fogos de Santelmo, um fenómeno natural caracterizado por uma súbita descarga de luz no mastro do navio, ou num objecto semelhante, especialmente quando estava mau tempo. Quando os sobreviventes, e especialmente Lu Yundi, voltaram à China, informaram certamente a corte dos detalhes da viagem. Claro que terão mencionado a ajuda divina que os salvou. Presumivelmente a corte debateu o assunto e acabou por decidir que fosse concedida a prancha de madeira acima mencionada ao Templo de Shengdun 聖墩廟 em Ninghaizhen 寧海鎮, perto de Putian. Como foi dito, a prancha tinha inscritos dois caracteres shunji – i.e., o título concedido a Mazu. Putian fica na parte continental de Fujian, a alguma distância de Meizhou. Isto conduz-nos a uma questão interessante: Porque é que o Governo enviou a prancha com o primeiro título oficial de Mazu a uma localidade situada no continente e não ao Templo de Mazu em Meizhou, geralmente tido como o primeiro templo dedicado a esta divindade? E porque é que tudo isto aconteceu em 1123, numa altura em que se tornava evidente que Jin iria eliminar Liao num futuro próximo? Os possíveis motivos para homenagear Mazu em 1123 Aqui vamos entrar no vasto território da especulação. Putian fica a cerca de meio caminho entre Quanzhou 泉州 e Fuzhou. No início do Período Song, destacou-se como localidade importante para o Exército, mas não podemos avaliar realmente a sua importância relativa dentro da complexa estrutura da cintura costeira de Fujian. Também, no início do séc. XII, a crença em Mazu ainda não se tinha espalhado por toda a zona costeira desta Província; essencialmente o culto a Mazu ainda estava limitado a Meizhou e a Putian. Meizhou estava confortavelmente localizada perto da tradicional rota marítima que liga Zhejiang via Fujian a Guangdong, mas a ilha tinha pouca população e não tinha verdadeiras perspectivas de se vir a tornar um centro mercantil. Rodeada de férteis terras agrícolas, Putian estava provavelmente mais bem situada do que Meizhou para este fim. Tinha mais habitantes e uma maior actividade económica. Não é impossível que o Governo tivesse considerado esses factores como argumentos para conceder a prancha shunji ao Templo de Shengdun, e não ao da Ilha de Meizhou. Para além de tentar compreender o contexto regional, temos também certamente de considerar a cooperação da China com o Estado de Jin durante o período que decorreu entre 1120 e 1123. Ambas as partes concordaram com algumas alterações territoriais, mas Jin não cumpriu as suas promessas. Houve provocações mútuas, e parece que a corte de Song começou a ter dúvidas sobre os planos a longo prazo de Jin. Então, talvez, ao enfatizar simbolicamente a importância da cintura costeira da China, os funcionários de Song quisessem garantir a lealdade dessas regiões na eventualidade de um conflito militar com Jin. Este argumento pode ainda ser associado a outro aspecto: Quando Lu Yundi voltou da Coreia, o Governo não só concedeu um título a Mazu, como também homenageou outras divindades fujiansenses, nas quais se incluía Yanyushen. Parece, portanto, que as autoridades centrais desejaram expressar o seu interesse no bem-estar de diversas regiões de Fujian. Se aceitarmos este ponto de vista, o que através foi dito, nomeadamente o desejo da corte imperial de fortalecer Putian, pode tornar-se insustentável. Mas voltemos brevemente ao embaixador-chefe. Lu Yundi que transmitiu à corte imperial o que tinha aprendido em Koryǒ. Provavelmente terá mencionado os avisos de Koryǒ sobre o comportamento agressivo de Jin. Isto leva-nos a outra questão: Ao proteger o navio de Lu, Mazu assegurou que estes avisos chegavam às autoridades da capital da China. Além disso, alguns funcionários Song bem informados sabiam certamente muito bem o que se passava na fronteira a norte. Assim, é muito provável que Lu Yundi tenha confirmado a opinião destes homens de vistas largas. Se esta assumpção estiver correcta, então a corte imperial tinha boas razões para recompensar Mazu pela sua extraordinária ajuda. É certo que o acima exposto é altamente especulativo. As fontes escritas não nos contam os detalhes relevantes. Portanto, podemos pensar em muitas outras explicações. Por exemplo, o Governo Song tentou banir repetidas vezes as actividades ilegais dos chamados wu 巫, ou shamans. Os primeiros textos dizem-nos que Mazu, antes de ascender aos Céus, era uma mulher solteira, que praticava uma tal de “feitiçaria”. É possível que as pessoas provenientes de Meizhou e / ou Putian falassem favoravelmente de Mazu nos seus círculos, dentro da capital imperial, com o propósito de melhorar a sua reputação. Se assim foi, isso terá provavelmente motivado o Governo para melhorar a posição de Mazu. Daí, talvez possamos argumentar que a concessão de um título oficial a esta deusa, tenha sido o resultado de um longo debate interno e de um processo de avaliação, e não uma medida que tenha sido tomada abruptamente devido às mudanças políticas no Norte. Seja como for, conceder o título shunji a Mazu foi um acontecimento importante. A partir daí, Mazu tornou-se uma divindade muito popular. O seu culto espalhou-se ao longo da costa da China, para Norte e para Sul. Um pouco mais cedo ainda, nos finais dos anos 20 e durante os anos 30 do séc. XII, Jin lesou o Estado de Song de várias maneiras e ainda o forçou a mudar a capital para diferentes locais. Quando, finalmente, a corte Song se estabeleceu em Hangzhou 杭州, perto da costa, a zona costeira do Império tornou-se mais importante do que aquilo que já era. A partir dessa altura, Mazu recebeu mais títulos, devido ao seu contínuo apoio ao Estado. Alguns textos chegam a afirmar que ela ajudou as tropas Song nas suas acções militares contra Jin. Em suma, o ano de 1123 tem um forte valor simbólico. Com efeito, podemos sentir-nos tentados a argumentar que a concessão de títulos às divindades nesse ano prefigurou, ou acompanhou, a maior mudança da constelação geral do Leste asiático. Pelo menos, e sem dúvida, esta medida altamente simbólica promoveu certamente a ascensão de um novo e poderosos culto. Além disso, esta ascensão andou de mãos dadas com a expansão das redes comerciais de Fujian, especialmente nos tempos das dinastias Ming e Qing. Hoje, Mazu está “activa” ao longo de ambos os lados do Estreito de Taiwan; actualmente é a divindade mais importante de Taiwan. Finalmente, a sua influência também se torna visível através do facto de os seus crentes tentarem comparar os seus feitos aos de Guanyin 觀音. Claro que ninguém sabe dizer se essa tendência poderá conduzir a uma “fusão” dos dois cultos, ou a um gradual “destronamento” de Guanyin por Mazu. Edições de textos tradicionais Mazu wenxian shiliao huibian 媽祖文獻史料彙編, ed. Zhonghua Mazu wenhua jiaoliu xiehui et al. 中華媽祖文化交流協會. Sér. I, 4 vols., Beijing: Zhongguo dang’an chubanshe, 2007. Sér. II, 5 vols., Beijing: Zhongguo dang’an chubanshe, 2009. Sér. III, 7 vols., Fuzhou: Haifeng chubanshe, 2011. Mazu wenxian zhengli yu yanjiu congkan 媽祖文獻整理與研究叢刊, ed. Mazu wenxian zhengli yu yanjiu congkan bianzuan weiyuanhui 媽祖文獻整理與研究叢刊編纂委員會. Sér. 1, 20 vols., Xiamen: Lujiang chubanshe, 2014. Sér. 2, 20 vols., Fuzhou: Haixia wenyi chubanshe, 2017. Mazu wenxian ziliao 媽祖文獻資料, ed. 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Hoje Macau Via do MeioLivro IX – Zi Han 9.1. O Mestre raramente (abertamente) falava acerca de vantagem pessoal, do mandato do Céu ou do sentido da benevolência.171 9.2. Um aldeão de Daxiang disse: “Confúcio é grande! O seu conhecimento é vasto, embora não seja conhecido por qualquer área em particular.” Ao ouvir tal coisa, o Mestre disse aos seus discípulos: “Em que me deveria especializar? Talvez na condução de carruagens? Ou talvez na arte do arqueiro? Não, julgo que aprenderei a conduzir carruagens.”172 9.3. O Mestre disse: “O uso de um barrete de cânhamo está prescrito na conduta ritual. Hoje as pessoas usam um barrete de seda de baixo preço. Quanto a isto, sigo o uso geral. O acto de bater cabeça ao entrar no templo está prescrito na conduta ritual. O facto de hoje se bater cabeça apenas junto ao altar é uma vaidade. Apesar de ir contra o uso geral, eu ainda bato cabeça logo à entrada do templo.”173 9.4. Há quatro coisas das quais o Mestre se abstém: arbitrariedade, inflexibilidade, teimosia e egoísmo.174 9.5. Quando o Mestre se encontrou cercado em Kuang disse: “Com o rei Wen há muito morto, não será que a nossa herança cultural reside aqui dentro de nós? Se o Céu quisesse destruir esse legado, nós, os que viemos depois, não teríamos tido acesso a ele. Se o Céu não o quer destruir, o que podem os homens de Kuang contra mim?”175 9.6. O grande ministro perguntou a Zigong: “O teu Mestre é um sábio, não é? Então porque domina tão diversos talentos?” Zigong replicou: “O Céu proporcionou-lhe ser um sábio, mas também lhe deu muitos talentos.” Ao ouvir isto, o Mestre disse: “O que sabe de mim o grande ministro? A minha família era pobre, por isso aprendi, quando jovem, inúmeros ofícios. Será que uma pessoa exemplar precisa deles? Penso que não.” 9.7. Lao disse: “O Mestre diz de si próprio que aprendeu todos esses ofícios por nunca ter sido nomeado para um cargo.”176 9.8. O Mestre disse: “Será que possuo sabedoria? Não, não possuo. Mas se um simples camponês me coloca uma questão para a qual não tenho resposta, abordo-a de todos os lados até conseguir responder.”177 9.9. O Mestre disse: “A Fénix auspiciosa não aparece; o Rio Amarelo não revela o seu mapa mágico. Tudo está perdido para mim!”178 9.10. Ao encontrar pessoas vestidas de luto ou em roupas de cerimónia oficiais, como ao encontrar cegos, ainda que estas pessoas fossem mais jovens do que ele, o Mestre costumava levantar-se de imediato e, ao passar por elas, estugava o passo. 9.11. Yan Hui dizia da Via do Mestre, com um profundo suspiro: “Quanto mais olho para cima, mais alto me parece; quanto mais o penetro, mais duro se torna; quando o procuro à minha frente, logo dou por ele atrás de mim. O Mestre é excelente a conduzir-me passo a passo: com cultura, alarga o meu horizonte; com os ritos disciplina o meu comportamento; de tal modo que mesmo que eu quisesse desistir, não poderia. Ainda que nela esgote todas as minhas capacidades, é como se à minha frente se erguesse uma barreira intransponível. Mesmo que a queira seguir é como se não houvesse estrada.”180 9. 12. Estando o Mestre gravemente doente, Zilu fez com que alguns dos discípulos passassem por servos para o assistir. Mas quando recobrou a saúde, Confúcio disse: “Esta comédia já durou tempo demais, caro Zilu! Se eu não tenho servos, mas fingir tê-los, a quem enganarei? Será que enganarei o Céu? Além disso, não seria melhor morrer nos braços dos meus discípulos do que nos braços de uns servos? Se é verdade que não terei um grandioso funeral de estado, também é verdade que não morrerei à beira da estrada.”181 9.13. Zigong disse: “Temos aqui uma excelente peça de jade, será melhor guardá-la numa caixa ou tentar vendê-la por bom preço?” O Mestre respondeu: “Vendam-na! Vendam-na! Mas esperem pelo preço certo!”182 9.14. O Mestre quis ir viver entre os nove clãs dos bárbaros Yi do Leste. Alguém lhe perguntou: “E o que farias a respeito da sua rudeza?” O Mestre respondeu: “Se uma pessoa exemplar fosse viver entre eles, que rudeza poderia haver?”183 9.15. O Mestre disse: “Foi só no meu regresso a Lu, vindo de Wei, que revi o Livro de Música e pus na ordem correcta as ‘Odes do Reino’ e os ‘Hinos Cerimoniais’.” 16. O Mestre disse: “Servir o duque e os seus ministros na corte e servir os meus maiores no lar, em questões funerárias dar o meu melhor e não me deixar dominar pela bebida – como poderiam estas coisas incomodar-me?” 9.17. O Mestre estava sobre a margem de um rio e observou: “Assim passa a vida, sem se deter, noite e dia.”184 9. 18. O Mestre disse: “Ainda estou para conhecer a pessoa que ame mais a virtude do que a beleza das mulheres.”185 9.19. O Mestre disse: “Se ao empilhar rochas para erigir uma montanha a apenas um cesto do fim me detiver, fui eu que me detive. Se ao encher um canal para nivelar o solo tiver despejado um só cesto e continuar, sou eu que faço progresso.”186 9.20. O Mestre disse: “Se houve alguém que escutou com toda a atenção as minhas palavras, essa pessoa foi certamente Yan Hui.” 9.21. O Mestre disse acerca Yan Hui: “Que pena! Só o vi progredir e não conseguir.”187 9.22. O Mestre disse: “Existem rebentos que não florescem e flores que não dão fruto.”188 9.23. O Mestre disse: “Os jovens devem ser tidos em alta consideração. Afinal, como saber se não suplantarão os nossos contemporâneos? Já quem chega aos quarenta ou cinquenta anos e nada fez de notável, não merece a nossa consideração.” 9.24. O Mestre disse: “Como não concordar quando avisadamente nos corrigem? Porém, o importante é regenerar o nosso comportamento. Como não se contentar com doces palavras de aprovação? Porém, o importante é compreender o seu real significado. Aqueles que se contentam com elogios, mas não compreendem o seu significado; ou aqueles que concordam com preceitos avisados, mas não regeneram o seu comportamento — não sei o que fazer com eles!”189 9.25. O Mestre disse: “A base da vossa conduta deverá ser o cumprimento da palavra e o darem o vosso melhor. Não façam amizade com ninguém que não seja, pelo menos, vosso igual. Se se desviarem do caminho, não hesitem em rectificar a vossa conduta.”190 9.26. O Mestre disse: “Um comandante de três exércitos pode ser capturado à força, mas nem a um homem do povo se pode retirar a força de vontade.”191 9.27. O Mestre disse: “Se há alguém que não sente vergonha em usar um fato remendado junto a alguém que se veste de raposa e arminho, esse é Zilu! Não causa mal e não inveja, / cavaleiro sem medo nem lamúrias, / como poderia não ser excelente? ” Zilu repetia estes versos sem cessar, de tal modo que o Mestre lhe disse: “O que poderá haver de excelente nesse teu caminho?”192 9.28. O Mestre disse: “Só quando chega o frio percebemos que o pinheiro e o cipreste são os últimos a perder as folhas.”193 9.29. O Mestre disse: “Os sábios não se confundem; os benevolentes não sentem ansiedade; os corajosos não temem.”194 9.30. O Mestre disse: “Podemos estudar com alguém e não seguir a sua via; podemos seguir a mesma via de alguém e não necessariamente tomarmos posição a seu lado; podemos tomar a posição de alguém e não necessariamente julgar as coisas da mesma maneira.” 195 9.31. “As flores da cerejeira selvagem / Inclinam-se e agitam-se. / Como não pensar em ti?/ Mas é tão longe a tua casa…” O Mestre disse: “Se ele realmente pensasse nela, o que importaria a distância?”196 171. Esta passagem tem provocado inúmeras discussões entre os comentadores porque se há tópicos que Confúcio constantemente refere são precisamente a vantagem pessoal, o mandato do Céu (que alguns interpretam como “destino”) e a benevolência. Como explicar então que aqui seja dito que ele “raramente” os menciona? Huang Shisan, comentador da dinastia Qing, para resolver esta dificuldade, considera que o termo han (raramente) é aqui usado como substituto de xuan (abertamente), argumentando que no chinês clássico (e dá como exemplo outros textos, como o Comentário de Zuo) os dois caracteres são permutáveis. Então aqui han tomaria o sentido de xuan, o que permite ler a frase como “O Mestre falava abertamente de…”. De facto, este sentido adequa-se muito melhor à realidade dos Analectos. No entanto, outros comentadores entendem que o sentido será “O Mestre raramente falava de vantagem pessoal e do mandato do Céu, pronunciando-se antes sobre a benevolência.” Contudo, nestes Analectos, Confúcio é, várias vezes, bastante crítico sobre quem privilegia a vantagem pessoal, e também se refere ao mandato do Céu, nomeadamente quando fala de si mesmo. 172. Também esta passagem tem sido sujeita a diferentes leituras. A primeira e mais comum entende a resposta de Confúcio como um sarcasmo, na medida em que sendo a condução de carruagens a menos nobre das artes, o Mestre mostraria aqui o seu desprezo pela especialização ou pela simples aquisição de saberes técnicos. Contudo, há quem interprete exactamente ao contrário e considere que o Mestre reconhece que deveria possuir algum conhecimento específico, de modo a tornar-se mais útil e, num acesso de humildade, escolheria a menos considerada das artes. 173. O barrete de cânhamo era bastante mais complexo que um simples barrete de seda. Portanto, aqui é defendida a frugalidade, apesar de ser uma inovação ritual. Por outro lado, bater cabeça à entrada implicava que se pedia permissão para entrar, portanto acrescentava uma maior dose de respeito. Esta passagem demonstra a importância e o respeito que Confúcio tinha pelos rituais, ainda que admita uma inovação desde que esta seja portadora de um bom sentimento. A conclusão será que o mais importante no ritual é o modo como o coração se encontra no momento de o praticar. 174. Tratam-se, todas elas, de categorias do egoísmo, que nos fazem afastar da natureza moral original e que teremos de combater para de novo a adquirir. De realçar o distanciamento em relação a “verdades absolutas”, o que faz do confucionismo um pensamento em permanente mutação consoante as realidades sociais, históricas ou mesmo individuais que encontra e que deverão ser avaliadas a cada momento antes de se empreender qualquer acção. 175. Segundo Sima Qian, ao passar por Kuang, Confúcio foi confundido com Yang Hu de Lu, que teria feito mal aos habitantes daquele terra, e foi detido durante cinco dias, até que tudo se esclareceu. Entretanto, tendo Yan Hui chegado a Kuang, o Mestre disse-lhe: “Pensei que estavas morto”, ao que Yan Hui respondeu: “mas Mestre, como me atreveria a morrer se vós ainda estais vivo?”. Confúcio assume-se aqui, num raro gesto de vaidade, como o fiel depositário das tradições rituais e literárias do rei Wen, considerando que nada de mal lhe poderia acontecer pois se essas tradições não devessem ser preservadas elas teriam desaparecido com Wen. De algum modo, invoca a vontade do Céu como destino. 176. A sua origem relativamente humilde terá forçado Confúcio a aprender tarefas consideradas menores e servis, que ele não considera essenciais para se ser uma pessoa exemplar. Em 9.6. o Mestre parece perder a paciência para este tipo de observação e imediatamente assume as suas origens modestas, apesar de considerar que para se ser uma pessoa exemplar não existe a necessidade de aprender ofícios menores. No entanto, este tipo de afirmação prova que o confucionismo dá mais importância ao mérito pessoal do que à filiação, posição que na sua época e nas épocas subsequentes era algo a ter em elevada consideração. 177. Além da humildade decorrente desta afirmação, Confúcio elabora aqui o seu método de inquirição: examina qualquer problema de todos os pontos de vista possíveis até optar pela resposta que lhe parece não apenas fazer mais sentido, mas que implicará uma maior eficácia na acção, de acordo com a autenticidade interior (cheng) e a benevolência (ren). 178. A fénix e o mapa foram presságios auspiciosos enviados pelo Céu no passado para indicar que um rei-sábio surgia para trazer harmonia ao mundo. A fénix terá surgido durante o reinado de Shun e uma criatura com corpo de cavalo e cabeça de dragão terá emergido do Rio Amarelo no tempo de Fu Xi. Nas suas costas trazia marcas que inspiraram Fu Xi a criar o sistema de escrita chinês e os hexagramas do Livro das Mutações. Portanto, Confúcio considera que na ausência de um rei-sábio não haverá lugar para ele e para a sua Via, inspirada nos reis do passado. 179. Levantar-se e estugar o passo são sinais de respeito. O Mestre demonstra esse respeito pela dor, pela posição social e pela deficiência física. 180. Yan Hui dá aqui conta da dificuldade em seguir a Via do Mestre e da extrema força moral necessária para o fazer. Mas o próprio Mestre reconhece a extrema dificuldade de constantemente praticar o Meio. (Zhongyong, 3) 181. Talvez Zilu tivesse vergonha de seguir um mestre de tão baixa condição que nem servos possuía para o acompanharem na doença e, portanto, não teria modo de cumprir a conduta ritual devida a uma pessoa de alta condição. Mas Confúcio imediatamente desmonta a charada que Zilu organizou, preferindo a autenticidade dos discípulos a falsos servos. É certo que o Mestre aprecia os ritos acima de tudo, mas nunca os que são efectuados sem verdadeira autenticidade (cheng). 182. Trata-se aqui de uma metáfora. A peça de jade representa a pessoa exemplar que não se deve eximir de servir um governante quando entende existirem condições para isso. Mas, por outro lado, deve esperar pelo governante que siga a Via correcta, ou seja, esperar que lhe surja “o preço certo”. Fan Ziyu comenta: “A pessoa exemplar está sempre disposta a servir, mas também despreza qualquer oferta que não esteja de acordo com a Via. O letrado que espera da abordagem ritualmente correcta é como um pedaço de jade à espera do preço certo… ele não vai certamente comprometer a Via para obter recompensas ou gabar-se do seu jade quando o procura vender.” 183. É de tal modo eficaz o poder do exemplo que até os bárbaros seriam influenciados por ele. 184. Aqui temos a constatação da impermanência, do impiedoso fluxo do tempo e da mutação dos dez mil seres. Alguns comentadores classificam esta frase como um “lamento”, na medida em que Confúcio referir-se-ia ao facto do tempo passar e ele não ver implantada a sua Via. Mas outros limitam-se a ler nesta frase a base ontológica do pensamento chinês tradicional, que recusa essências e prescreve um constante devir, cujo ritmo se baseia, geralmente, na alternância entre o Yin e o Yang. Já nos escritos de Xun Zi encontramos uma descrição das características da água que nos levam por outros caminhos: num diálogo com Zigong, Confúcio revela encontrar na água as qualidades de virtude, rectidão, benevolência, sabedoria, semelhança ao Dao, etc. (Xun Zi, cap. 28) 185. Existem inúmeras explicações para esta sentença do Mestre que vacilam entre a explicação histórica (Sima Qian), situando-a num episódio em que o lugar que ele deveria ocupar foi entregue pelo duque Ling de Wei à sua consorte Nizan, quebrando assim as regras da conduta ritual; até aos que a lêem de forma mais filosófica, como é o caso de Xie Liangzuo, que comenta: “Amar uma mulher bonita ou odiar um mau cheiro são exemplos de sinceridade. Se se pudesse amar a virtude da maneira que se ama a beleza feminina, isto significaria amar sinceramente a virtude. Infelizmente, poucas pessoas são capazes de o fazer”. 186. Confúcio refere-se ao cultivo de si. Se, apesar de ter trabalhado arduamente, interromper esse trabalho, terá sido para nada; mas se estiver no início e continuar, tal significa um avanço, ainda que não chegue ao fim. Zhu Xi comenta: “Se o aluno é, ele mesmo, capaz de se fortalecer e não desistir, então os seus pequenos esforços acumulados resultarão num grande sucesso. Se, pelo contrário, ele pára a meio caminho, deita a perder tudo que já conseguiu. A decisão de parar ou seguir em frente está inteiramente dentro de mim, e não é determinada por outros”. 187. Frase proferida depois da morte precoce de Yan Hui que, por partir tão cedo, não chegou a realizar completamente a Via, apesar de ser o aluno favorito do Mestre. Também é lido como “Só o vi progredir e nunca desistir”. 188. Zhu Xi comenta: “A aprendizagem que não está completa é assim, por isso é que a pessoa exemplar valoriza a sua persistência.” 189. O Mestre critica os que só superficialmente, por interesse ou vaidade, aceitam críticas ou elogios, mas não procuram modificar-se interiormente, nem considerar o real alcance do que lhes é dito. 190. Ver 1.8. e respectiva nota. 191. Kong Anguo comenta: “Embora os três exércitos tenham muita gente, os corações dessas pessoas não estão unificados, pelo que se pode privar à força um tal grupo do seu comandante e, por conseguinte, capturá-lo. Embora um homem do povo seja insignificante, se conseguir agarrar-se firmemente à sua vontade, não se poderá tirar-lha”. Esta passagem é lida por vários comentadores como relacionada com o cultivo de si e a força de vontade necessária para o exercer através do estudo. Contudo, é também possível detectar aqui o travo de um reconhecimento da possibilidade de resistência individual à iniquidade dos governantes. Esta poderá ser inquebrantável, muito mais forte do que “três exércitos”. 192. Os versos são do Livro das Odes e citá-los será talvez o objectivo primeiro do Mestre, enquanto elogia capacidade de Zilu, capaz de permanecer humildemente vestido junto de pessoas de alta condição, sem com isso se sentir humilhado ou invejoso. Mas Zilu, pessoa irreflectida, deixa-se tomar pela vaidade de ter sido elogiado pelo Mestre, o que provoca a reacção negativa de Confúcio que lhe diz, traduzindo em português mais simples, “por esse andar, não vais a lado nenhum.” Zhu Xi comenta: “Zilu estava constantemente a recitar a estrofe, o que indica que ele estava muito satisfeito consigo mesmo no que diz respeito às seus capacidades e, portanto, poderia não estar a perseguir suficientemente progressos ao longo do Caminho”. 193. É quando enfrentamos condições adversas que o carácter e a moral da pessoa exemplar são realmente postos à prova. He Yan comenta: “O objectivo da metáfora é que mesmo as pessoas comuns são capazes de se regularem e de se ordenadarem… e, portanto, aparentemente semelhantes à pessoa exemplar quando se vive numa era bem governada, mas é apenas numa era caótica que reconhecemos a rectidão da pessoa exemplar e a sua integridade inabalável”. 194. Sun Chuo comenta: “Os sábios são capazes de distinguir claramente entre as coisas, e, portanto, não se confundem. Aquele que está à vontade na benevolência é constante na sua alegria, por isso está livre de ansiedade”. Já o corajoso não se deixa intimidar pela força física ou ameaças, por isso não sente medo. Mas o que aqui será mais interessante é a definição pela negativa e não pela positiva, ou seja, confusão, ansiedade e medo, sintomas que refutarão um estado de perfeita virtude. 195. Algo surpreendente esta passagem, na medida em que admite um distanciamento, mesmo a nível de comportamento, entre discípulo e mestre, entre amigos, entre governante e o seu sucessor. Aqui Confúcio reconhece a cada um a sua própria via e não a necessidade de imitação ou emulação. 196. Mais uma passagem que tem sugerido variadas interpretações. Estará o Mestre a falar realmente do amor por alguém ou do amor à virtude? Ou meramente critica a falta de empenhamento, não possível quando se trata de um sentimento verdadeiro?
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO monge peregrino de Chen Xian Liang Kai (c.1140-c.1210), autor de um célebre rolo vertical em que o poeta Li Bai é figurado a caminhar, noutro rolo horizontal representaria Oito monges eminentes (tinta e cor sobre seda, 26,6 x 64,1 cm, no Museu de Xangai), um dos quais é identificado como o monge de Shandong, Xiangyan Zhixian (c.820-89) que descreveu num poema a sua inesperada iluminação quando ao varrer o chão subitamente ouviu uma pedrinha a cair: Um acontecimento e esqueci tudo o que sabia, Não mais confiarei no aperfeiçoamento livresco, Toquei na lição do Buda E não cairei em explicações de segredos mansos. Em mais nenhum lugar se encontrará um traço, Fora do falar e comportamento comum. Aqueles que encontraram a Via, de todos os lados, Todos dizem ter a mais elevada explicação. O pintor Japonês Kano Motonobu (1476-1559) que foi um dos que naquele país demonstraria a sua afeição pelas narrativas e pinturas peregrinas que vinham com mercadores e monges Chineses, representou-o sozinho a varrer o chão entre brumas, como no desejo de divisar um ideal. Essa admiração alcançaria um ponto alto quando anos mais tarde, no turbulento fim da dinastia Ming chegaram a Nagasaki os monges do mosteiro Huangbo, em Fujian, aí designado Obaku. E lá inovariam aspectos do convívio social como na variação da celebração da tradicional cerimónia do chá, o chanoyu, a «água quente para o chá» que exaltava «um acontecimento, um encontro», para o mais informal senchado, «a via do chá de infusão» em que as pequenas folhas eram usadas inteiras e não maceradas, no decurso do qual era apreciado o espírito literário valorizado pela elite dos Ming através da observação de pinturas, caligrafias, poemas e objectos decorativos. Para além da afectação do exotismo havia um genuíno apreço pela cultura levada pelos monges, que deixaram de chegar a partir do ano 1723 e morrendo o último dos que foram para lá em 1784. Arai Hakuseku (1657-1725), o político e erudito confucionista no breve período em que os dirigentes Japoneses abraçaram a lição de Kong Fuzi, deixou claro esse respeito num conselho sobre o modo de expressão em prosa ou poesia: Deve-se tentar escrever de tal maneira que seja facilmente compreensível pelos Chineses. Nem seria preciso dizê-lo já que a escrita teve origem na China, na sua essência ela é chinesa. As pinturas levadas pelos monges de Huangbo incluíam algumas menos conhecidas no seu país, como as do pintor Chen Xian (act. 1634-54). Num rolo horizontal ele figurou Vinte e quatro luohans, Sakyamuni, Guanyin e Xuanzang (tinta e cor sobre seda, 49,5 x 731,3 cm, no Smithonian); todos estão de pé ou sentados menos Xuanzang, que caminha. E, coisa fascinante no monge em trânsito, quando saíu de sua casa, algo buscava mas já no gesto simples do seu caminho de curiosidade se perceberá uma revelação, para si e para os que o viram passar.
José Simões Morais Via do MeioApós a Felicidade Perpétua de Yongle (XVI) O Imperador Yongle, cujo nome significa Felicidade Perpétua, nascera em Nanjing a 2 de Maio de 1360 com o nome de Zhu Di e teve Zhu Yuanzhang (o Imperador Hongwu, o primeiro da dinastia Ming) como pai e escolheu para mãe a Imperatriz Ma, apesar de, segundo consta, ser ela uma princesa mongol. A consorte de Zhu Di (朱棣 1360-1424) era a Imperatriz Xu (徐, 1362-1407). Casados em 1376, tiveram três filhos e quatro filhas, sendo o mais velho Zhu Gaochi (o futuro Imperador Hongxi), o segundo filho Zhu Gaoxu, o terceiro Zhu Gaosui, Zhu Gaoxi foi o número quatro, mas de diferente mãe, sendo as filhas, a mais velha Zhu Yuying, a princesa Yong’an, e as princesas Yong Ping, Ancheng e Xianning. A Imperatriz Xu morreu em 1407. Como terceiro Imperador da dinastia Ming, Yongle reinou desde 17 de Julho de 1402 e morreu aos 64 anos no dia 18 do sétimo mês de Jiachen (甲辰), 22.º ano do seu reinado, a 12 de Agosto de 1424, quando regressava de uma campanha contra os mongóis. Com a morte por doença do Imperador Yongle, o seu filho mais velho Zhu Gaozhi (1378-1425), a 7 de Setembro de 1424, tornou-se o Imperador Hongxi (1424-1425) e voltou a colocar a capital em Nanjing. Zheng He retornara de Palembang e já há muito soavam vozes contra as dispendiosas viagens. Logo nesse dia, já como imperador, Hongxi mandou suspender as viagens marítimas e manteve os barcos da armada para a defesa de Nanjing. Pouco mais de 8 meses reinou Hongxi, pois morreu a 29 de Maio de 1425, e o seu filho Zhu Zhanji (1399-1435), conhecido como Ming Xuanzong, tornou-se a 27 de Junho de 1425 o Imperador Xuande (Propagação da Virtude), ficando no trono até 31 de Janeiro de 1435. Zhu Di (朱棣 1360-1424), preocupado com a sucessão, dera atenção ao primeiro filho Zhu Gaochi, nascido no 11.º ano do reinado de Hongwu, colocando-o a ser educado por oficiais do mandarinato, ministros confucionistas que o apoiaram até chegar a Imperador Hongxi (1424-1425). Mas a especial dedicação de Zhu Di foi com o neto Zhu Zhanji (1399-1435), nascido no dia 9 do segundo mês do ano 32.º de Hongwu e educado por os Grandes Eunucos. Viria a ser o Imperador Xuande (1426-1435) que, em 1426, criou a Escola Neishutang em Beijing para os eunucos poderem estudar, pois desde o tempo do seu avô, o Imperador Hongwu, o recrutamento para a Administração só podia ser feito por via das escolas e exames públicos, estando aos eunucos vedado aprender a ler, escrever e frequentar a escola. Zhu Di, enquanto Príncipe de Yan, em Beijing nos anos de 1380, contratara professores para no palácio darem aulas aos filhos príncipes, acompanhados por jovens eunucos, como Ma He (mais tarde Zheng He). Devido à inicial necessidade de conquista e defesa, os eunucos tiveram instrução em acções militares e foram o apoio nas conquistas de Zhu Di até 1402, quando se tornou o Imperador Yongle. Daí para a frente, a educação dos eunucos ficou mais virada para o conhecimento científico ligado à navegação, pois à China Ming estava vedada a expansão para Norte e Noroeste, bloqueada por reinos mongóis, restando os oceanos a Sul e Leste para retomar contacto com os povos anteriores aliados das dinastias Tang e Song e anunciar ao mundo a mudança no Trono do Dragão, de novo nas mãos do povo han. Navegar Para reatar as viagens marítimas foi preciso apurar a investigação, interligando todas as disciplinas conectadas com a navegação, e ao extender geografias, tanto físicas como de Astronomia, levar os juncos com segurança a chegarem aos longínquos destinos e contribuir no engrandecer da Enciclopédia de Yongle. Para comunicar com esses reinos e países de África, da Arábia, da Índia e Sudeste Asiático foi criada a escola de línguas e de intérpretes. Daí os eunucos começarem a ser promovidos e ganharem mais responsabilidades, obtendo altos cargos, tanto em terra, a comandar posições militares, como no mar, com Grandes Eunucos a capitanear as frotas de centenas de juncos e milhares de homens, como a da grande armada capitaneada por Zheng He. Estas viagens, ao contrário das realizadas anteriormente por os mercadores chineses no período Tang e Song, tinham o selo imperial do Celeste Império da dinastia Ming, sendo os produtos trocados num comércio não praticado a nível particular, mas apenas entre países ou reinos com o estatuto oficial de vassalos e daí a oferta de produtos raros ao receber tributos como forma de aceitar protecção e render vassalagem à erudição dos presentes. Sentado no Trono do Dragão, Senhor Supremo filho do Céu, o Imperador Hongwu, não se sentindo muito seguro com um dos seus ministros, em 1380, extinguiu o Secretariado, até então composto por dois primeiros-ministros (o da esquerda, civil e o da direita, militar) responsáveis pela administração de todo o país e em seu lugar criou seis Ministérios: Assuntos Públicos, Finanças, Ritos, Guerra, Justiça e Obras Públicas, com os ministros a responder e despachar directamente com ele, Imperador. Investiu nos exames imperias (keju) para recrutar funcionários, Oficiais Civis e Militares para a Administração. Quando o Imperador Yongle faleceu em 1424 deixou muitos problemas por resolver e apenas em 1428, no reinado do Imperador Xuande, ficou fechada a questão da guerra no Vietname iniciada em 1406. A dinastia Trân foi destronada de Annan no Vietname em 1400 pelo revoltoso Ho Quy Ly (1400-1401), monarca que aí criou a dinastia Ho, sendo o seu segundo filho Ho Han Thu’o’ng a governar o reino Dai Ngu de 1401 a 1406. Como a dinastia Trân era vassala da China, logo em 1406 as tropas Ming avançaram para ajudar o príncipe Trân Thiên Bính, mas ele e o embaixador chinês foram vítimas de uma emboscada das forças Ho a 4 de Abril, sendo ambos mortos. Em 11 de Maio de 1406, o Imperador Yongle enviou dois exércitos para acabar com a dinastia Ho e restabelecer a Trân. A campanha militar chinesa contra Dai Ngu (Norte do Vietname) ocorreu entre 1406-07 e assim ficou Dai Ngu incorporado na dinastia Ming e o Imperador Yongle mudou o nome de Annan para província de Jiaozhi. A interferência chinesa iniciada em 1407 teve grande resistência do povo vietnamita, intensificada desde 1418 com uma guerra de guerrilha, a desgastar o cercado exército Ming retido na selva. Tal levou o Imperador Yongle a sair do Vietname em Julho de 1421, apesar da sua independência em relação à China apenas ter ocorrido em 1428 com o Imperador Xuande. Este, a 25 de Março de 1428, ordenou a Zheng He e a outros eunucos para supervisionarem a reconstrução do Grande Templo Bao’en (o Pagode de Porcelana era parte do templo) em Nanjing, que terminou de ser edificado em 1431. Os juncos da armada do Tesouro, retidos desde 1422 em Nanjing para a defesa da cidade, foram libertados dessa função no ano de 1431, pois a 29 de Junho de 1430, no nono dia do sexto mês lunar do quinto ano do reinado de Xuande, Zheng He foi instruído por o Imperador para viajar aos países bárbaros e proclamar ter sido Sua Majestade Xuande, o quarto [quinto] Imperador da dinastia Ming, entronizado. Os preparativos para a sétima viagem duraram mais de um ano e antes de partir, Zheng He, com 60 anos, foi ao novo templo de Tianfei, em Liuhe, pedir à deusa Mazu a bênção para a viagem, deixando aí uma estela. Já Gong Zhen (巩珍), natural de Nanjing e conselheiro do Imperador Xuande, se tornara secretário do almirante Zheng He e servindo como tradutor na sétima viagem, iniciada no sexto dia da 12.º Lua do quinto ano do reinado do Imperador Xuande, a 19 de Janeiro de 1431, a registou no seu diário, publicada em 1434 no livro Xiyang Fanguo Zhi (西洋番国志), Anais dos Países Estrangeiros no Oceano do Oeste ou Lenda dos Países Estrangeiros.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Retrato Impossível de Yinyuan Longqi Yiran Xingrong (1601-68), o monge de Hangzhou que foi para Nagasaki e que foi conhecido no Japão como Itsunen Shoyu, terá sido o responsável pelo convite feito ao mestre do mosteiro Huangbo em Fujian Yinyuan Longqi para vir para o Japão em 1654, no tempo da transição Ming-Qing. Num tríptico, Yiran representou os três mestres da Escola do Budismo chan: Linji, Deshan e Damo (Bodhidharma) os dois primeiros a três quartos, voltados para Damo, de frente e no meio (rolos verticais, tinta e cor sobre papel, 124,4 x 39,6 cm, no Museu de Arte da Universidade de Michigan) do modo como tradicionalmente eram representados os monges budistas desde a dinastia Song, cohecido como dingxiang, neologismo budista que foi a tradução fonética da palavra indiana usnisa, o alto na cabeça do Buda significando a sua iluminação, que se diz invisível ao olhar de seres vivos. Sobre o retrato de Deshan, à esquerda, outro monge mestre de caligrafia Muan Xingtao (1611-84) conhecido no Japão como Mokuan Shoto, escreveu: «Um único ponto no grande vazio, uma única gota num grande barranco, Ele queimou o sutra quando lhe surgiu a iluminação. Com o seu bastão, aponta tanto para os sábios como para a gente comum, Neste mundo de Carma, acção e consequência, ele é um verdadeiro buda.» Quando Yinyuan se tornou o venerado mestre do mosteiro Obaku no Japão, também retratos seus foram feitos do mesmo modo. Num deles, feito por um autor desconhecido (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 119,4 x 57,8 cm, no Metmuseum) ele apresenta-se de corpo inteiro; o cabelo e a barba brancos não ocultam um suave sorriso, a sobrepeliz vermelha sobre o ombro esquerdo segura por um anel colocado em cima do lugar exacto do coração e, calçado com sapatos da mesma cor, os pés repousam sobre um escabelo. Na sua mão esquerda um enxota-moscas, na direita um longo bastão irrompe no meio de um poema. Muan Xingtao é também o autor desse poema: «Segurando o bastão ele aponta directamente para a Humanidade, E no entanto, como ele era originalmente sem forma, este retrato não é verdadeiro, A sua forma não pode ser percebida como forma, A sua benevolência é apenas a sua natural benevolência. Se, de repente, conseguires entender esta lei, Então o teu espírito poderá vaguear para além do Mundo.» Muan Xingtao foi reconhecido, com Yinyuan e Jifei Ruyi (no Japão chamado Sokhui Noitsu, 1616-71) como um dos “Três pincéis do mosteiro Obaku”. O último, na pintura Luohan lendo ao luar (no Metmuseum) com um pincel largo desenhou a lenta figura de um monge de costas sentado no chão, segurando um rolo que aparenta ler. Porém, nada dele nem da lua se percebe. E escreveu, com o fulgor ligeiro de uma dança: «A lua e o papel são da mesma cor. A pupila do olho e a tinta são as duas negras. O sentido maravilhoso alojado no círculo, Está para além da compreensão.»
José Simões Morais Via do MeioYongle e a campanha contra os Mongóis (XV-2) Três meses depois da inauguração do Palácio Imperial em Beijing e dois após a partida da sexta viagem marítima, na noite do dia 8 da 4.ª lua do ano Xin Chou (辛丑), 19.º ano do reinado de Yongle, devido a uma trovoada, na noite de 9 de Maio de 1421, deflagrou um grande incêndio na Cidade Proibida. Este foi o ponto de viragem do reinado de Yongle. Estava doente e tudo começou a correr mal ao terceiro Imperador da dinastia Ming. Cinco dias depois, ordenou a suspensão temporária das viagens marítimas e transferiu os fundos para custear as suas últimas três campanhas contra os mongóis. O território da China entre 1279 a 1368 fora governado pelos mongóis do clã dos Borjigin, descendentes de Genghis Khan, sendo a dinastia Yuan afastada pelo povo han, após vinte anos de lutas e revoltas, que criou a dinastia Ming em 1368, conquistando quase toda a China, ficando os mongóis no poder em Shaanxi até 1369, em Sichuan até 1371, e Yunnan até 1382. O décimo primeiro e último Imperador Yuan da China, o mongol Khan Toghan-Temur (1333-1368), com o nome póstumo Shundi e de templo Huizong, era filho do Imperador Mingzong e fora coroado Imperador a 10 de Julho de 1333 e aí reinou até 10 de Setembro de 1368, quando fugiu para as estepes do Norte. No planalto da Mongólia criou a dinastia Yuan do Norte onde, entre 1368 e 1370, foi o Imperador Shun de Yuan, fazendo a capital em Shangdu, mudando-a em 1369 para Yingchang. Desde Maio de 1370, Zhu Di (1360-1424), o futuro Imperador Yongle, no reinado do seu pai o Imperador Hongwu, o primeiro da dinastia Ming, combatia no Norte os mongóis, sendo em 1380 colocado como príncipe de Yan a governar Beiping, pois as fronteiras do Norte encontravam-se ameaçadas por constantes investidas dos mongóis, vencendo-os em 1390, após dez anos de duros combates. Quando Tögüs Temür (1378-1388), o terceiro Khan da dinastia Yuan do Norte já com a capital em Karakorum, foi em 1388 derrotado pelo exército Ming, a maior parte das tribos mongóis renderam-se à dinastia Ming, que os incorporou em três forças militarizadas a servirem de proteção às regiões fronteiriças do Norte. No entanto, os mongóis Oirat e os mongóis do Leste permaneceram hostis para com os Ming até 1408, quando Mahmud, chefe dos mongóis Oirat, enviou uma missão tributária à corte Ming que, em 1409, ofereceu aos líderes Oirat o título de Wang (Rei vassalo). Tal exacerbou o conflito entre os Oirat e a dinastia Yuan do Norte, levando ainda em 1409 o Khan Öljei Temür (1408-1412) a executar o embaixador chinês. Na Mongólia Central e do Leste em 1403, Bunyashiri do clã Borjigin declarara-se Khan Öljei Temür e promoveu Arughtai a Grande Chanceler, mas a dinastia Yuan do Norte não foi reconhecida pela maioria dos clãs mongóis, levando o Khan Öljei a atacar a Confederação dos Quatro Oirats, que governava a Mongólia do Oeste. CAMPANHAS MILITARES CONTRA OS MONGÓIS Entre 1410 e 1424 o Imperador Yongle empreendeu cinco campanhas militares contra os mongóis no planalto da Mongólia. Na primeira campanha, Yongle partiu de Beijing em Março de 1410 levando seis exércitos e cem mil soldados e perante tal multidão Bunyashiri pretendeu fugir, mas o seu ajudante de campo Arughtai não concordou e assim se separaram, seguindo em diferentes direcções. O exército Ming deu primeiro caça às forças de Bunyashiri, derrotando-as a 15 de Junho de 1410, mas Bunyashiri conseguiu fugir. De seguida foram os Ming combater as forças de Arughtai e após uma batalha este escapou com o que sobrou das suas tropas. O Imperador Yongle regressou a Beijing a 15 de Setembro de 1410 e mais tarde Arughtai enviou-lhe cavalos como tributo, recebendo privilégios comerciais dos Ming. Na Primavera de 1412, o mongol Oirat Mahmud encontrou-se com Bunyashiri e matou-o e por isso pediu uma recompensa à corte Ming, mas não sendo atendido Mahmud ficou zangado e daí fez prisioneiros os enviados Ming. O Imperador Yongle mandou um eunuco para os libertar, mas a tentativa não teve sucesso. Mahmud sentindo-se ameaçado, em 1413 despachou 30 mil tropas mongóis ao encontro do exército Ming e a iminente guerra foi denunciada à corte Ming por Arughtai. De Beijing saiu o Imperador a 6 de Abril de 1414, a liderar a campanha contra os mongóis Oirats, que foram esmagados e forçados à retirada, fugindo Mahmud ao exército Ming. O Imperador retornou a Beijing em Agosto de 1414, [mas só chegou à capital Nanjing a 14 de Novembro de 1416] e Mahmud pretendeu reconciliar-se com a corte Ming, mas Arughtai antecipando-se, atacou e matou Mahmud em 1416. Arughtai esperava ser de novo recompensado pelos Ming, mas apenas foi agraciado com títulos, sem conseguir os ambicionados privilégios comerciais. Hostilizado, começou a atacar as caravanas Ming que percorriam os caminhos comerciais do Norte e em 1421 deixou de enviar tributo, conquistando no ano seguinte a fortaleza de fronteira Xinghe. Tal levou o Imperador Ming a lançar em 1422 a terceira campanha militar e com um imenso exército atacou Arughtai, mas ele fugiu estepes dentro, terreno não propício aos chineses e por isso apenas 20 mil homens foram em perseguição. Estes acabaram por ser capturados e enviados para a comandaria Uriankhai, nas mãos de Arughtai. Irritado, Yongle foi atacar três tribos mongóis Uriankhai, não envolvidas com as hostilidades de Arughtai, regressando o exército Ming a Beijing a 23 de Setembro de 1422. MORTE DO IMPERADOR Em Agosto de 1423, o Imperador Yongle lançou uma quarta campanha, numa acção preventiva contra as forças de Arughtai e de novo este fugiu ao confronto com as tropas Ming. Esen Tügel, um comandante dos Mongóis do Leste rendeu-se aos Ming e em Dezembro, o Imperador Yongle retornava a Beijing. Já Zheng He regressara da sexta viagem marítima no nono mês do ano Gui Mao (癸卯) (21.º do reinado de Yongle, 1423) trazendo os enviados de 16 reinos e países da Ásia e África, incluindo Mogadíscio, Brava, Suoli, Adem, Djeffer, Meca, Ormuz, Calicute, Cochim, Kayal, Lacadive, Ceilão, Lambri, Sumatra, Aru e Malaca em número de 1200 pessoas. Para receber os dignitários estrangeiros das missões diplomáticas e de amizade à China, a corte Ming organizou uma grande e espectacular cerimónia. Devido a Arughtai continuar a varrer a fronteira Norte da China, em Kaiping e Datong, Yongle lançou em 1424 a quinta campanha. Partindo no início de Abril na direcção das forças de Arughtai, este de novo evitou encontrar-se com as tropas de Yongle. Alguns comandantes Ming queriam persegui-lo, mas o Imperador sentindo-se muito fatigado, ordenou o fim da campanha e o regresso a Beijing. Em 12 de Agosto, o Imperador já bastante doente, faleceu na viagem de retorno. Na capital encontrava-se desde Abril de 1424 Sri Maharaja (Xi-Li-Ma-Ha-La, 西里麻哈剌) a fazer uma visita oficial à corte Ming para comunicar a morte de seu pai, o Xá Megat Iskandar e para o Imperador Yongle o proclamar sucessor do Reino de Malaca. Enviado ainda por o Imperador Yongle, Zheng He em 1424 partira numa missão diplomática a Palembang acompanhado pelo capitão de guerra da armada Zhou Wen na posição de vice-Qian Hu (comandante de mil soldados). Zhou Wen (周闻, 1385-1470) nascido em Hefei com o nome Shang Shengyuan (尚声远), não era eunuco e ocupara o lugar do seu meio-irmão, cuja posição militar era de Bai Hu (a controlar cem soldados), após este morrer. Devido ao porte físico, alto e forte, em 1402 aos 18 anos fora promovido em Taicang e escolhido como oficial militar por Zheng He para o acompanhar nas viagens das expedições de 1409 (a Ormuz), 1413, 1417, 1421 (onde só foi até à Índia). Devido à morte do Imperador Yongle a 12 de Agosto de 1424, Zheng He com Zhou Wen regressaram de Palembang, encontrando já Zhu Gaozhi, o filho mais velho de Yongle, desde 7 de Setembro de 1424 como Imperador Hongxi, o quarto da dinastia Ming.