Budismo Chinês: Mentalismo com Características Chinesas

Numa breve contextualização histórica do Budismo com características chinesas, acredita-se que este, fundado por Gautama Shakyamuni (c. 560-c. 480 a.C.) príncipe indiano, afastado do poder real para nutrir a via espiritual, terá entrado na China na versão do Grande Veículo, Mahāyāna (大乘Dà Chéng ), aquela que se desenvolveu a partir do século III a.C., surgindo como um alargamento de via, já que floresceu a partir do Pequeno Veículo, Hīnāyāna (小乘Xiǎo Chéng), na crença de ser possível renunciar à iluminação total em prol do benefício da humanidade, a favor da qual Budas cederiam o seu lugar a Bodhisattvas (菩萨/薩Púsà), seres que voltavam propositadamente as costas à dimensão transcendente para se manterem ao nível imanente a auxiliar todos aqueles que necessitam de apoio.

Acredita-se ainda na versão popular que o Budismo terá chegado à China no século I, no reinado do Imperador Han Mingdi (汉/漢明帝, 28-75), na sequência de um sonho com um ser voador dourado, talvez uma visão de Buda, que o terá impulsionado a enviar emissários à Índia em busca das escrituras budistas.

Mas segundo eminentes estudiosos do Budismo como o mestre budista Nan Huai-Chin defende em Basic Buddhism (1997), ou o pensador Daisaku Ikeda em The Flower of Chinese Buddhism(1986), esta filosofia religiosa ter-se-á consolidado na China com o estabelecimento da Escola da Terra Pura (净土 Jìngtǔ) pelo patriarca Hui Yuan (惠远遠, 334-416).

Mas este não é ainda o budismo que se considera com características tipicamente chinesas, por várias razões, entre as quais a defesa de mentalismo parcial, em que a humanidade renasceria num paraíso buda, a Terra Pura, a terra do Buda Amitabha. Este é popularmente retratado com pele vermelha e uma tigela mendicante, que contém o elixir da longevidade/imortalidade (Alves, 2007: 92). Ele é o da infinita luz, que preside ao paraíso ocidental, onde os seres renascem, apenas na condição masculina, para atingirem o estado de iluminação perfeita.

Este tipo de Budismo, que pressupõe a unidade mental, mas que na prática implica uma visão parcial da existência onde o princípio masculino Yang (阳/陽), concretamente encarnado em homens, é privilegiado, bem como os métodos concretos de acesso à Terra Pura, nos quais se enfatiza a repetição do nome do Buda, as escrituras e seus mantras e a contemplação de várias imagens mentais, que vêm a distanciar a escola, bem como uma outra, a da Plataforma Celestial (天台Tiāntái), fundada por Huiwen (惠文) no século VI, daquela que se considera a linha budista mais representativa da mentalidade chinesa – o Budismo da Meditação ou Chan (禅 Chán), fundado por Bodhidharma (菩提达達摩) no séc. VI, tendo chegado à China durante a dinastia Liang (梁), vindo do Sul da Índia para a maioria dos estudiosos, mas há também quem lhe atribua nacionalidade iraniana e o suponha a entrar na China a partir da Ásia Central via a Rota da Seda.

De acordo com Fung Yu-lan/ Feng Youlan (馮友蘭冯友兰) no seu segundo volume de History of Chinese Philosophy (1983:390) todas as escolas da Meditação/Chan concordam em cinco pontos fundamentais: 1) a verdade última é inexprimível; 2) a via espiritual não pode ser ensinada; 3) nada se ganha, mas pode-perder se muito na e com a vida; 4) os ensinamentos budistas não contêm nada de especial; 5) o tao cultiva-se diariamente, transportando a água e cortando a lenha.

Se atentarmos bem, nestes cinco pontos que tornam tão característico este Budismo da Meditação chinesa, verificamos que ele ganha toda a sua especificidade no encontro com o Taoismo, já que também para os grandes filósofos taoistas a verdade última não é conceptualizável nem, portanto, nomeável. Também o Mestre taoista, o Santo (圣聖 n人Shèngrén) não ensina através de palavras, teorias ou doutrinas, mas com a sua postura silenciosa e modelar.

Os taoistas não esperam que a vida lhes acrescente algo, mas temem sinceramente que lhe seja roubada a visão espontânea, natural, que lhes confere as melhores características, a virtude do Recém-nascido (婴儿/嬰兒Yīng’ér), manifestando uma imensa suavidade e flexibilidade. Além disso, também para os taoistas o melhor do mundo reside em -se ser simples, cumprir com todas as pequenas acções quotidianas que nos colocam no caminho da vida, afastando a morte.

O Budismo que cultiva a perspetiva mentalista e, simultaneamente, se oferece como um hino à vida simples do comum dos mortais, que rejeita escrituras e dogmas, bem como aforismos de grandes mestres e, em última análise todos os ensinamentos escritos, é, a meu ver, o verdadeiro Budismo Chinês, aquele que no século XXI tem através das suas escolas, sugestivamente denominadas montanhas, beneficiado a sociedade, ao levar os seus membros a prolongarem a atuaçãos dos Bodhisattvas, empenhando-se ativamente em beneficiá-la através da criação e desenvolvimento de instituições sociais tão necessárias como escolas, hospitais, lares, etc.

Mas voltemos ao ponto de partida de mentalismo chinês. A mente exercita-se por se desprender de todas as formas físicas e intelectuais, de modo a oferecer-se ao meditador como pura energia. Para trás ficou o ego, o senhor bélico que na caligrafia chinesa é re-apresentado como uma espada contra outra, o Eu (我 Wǒ) . Este só traz problemas por estar sempre pronto para uma boa luta, como a etimologia indica sem falhar.

Como se adquire então a concentração no poder mental? É seguindo mais uma vez os antigos ensinamentos taoistas, tranquilizando a mente, silenciando-a, bem como ao corpo, já que um e outro são inseparáveis, transformando a nossa forma física numa montanha, quieta, silenciosa e pacífica, de modo a polir com calma e tranquilidade a mente, que de tijolo tosco se há-de transformar em espelho brilhante. O objectivo final é, recordemo-lo, unir a nossa energia mental à universal, através da postura correcta, do cultivo do Sopro Vital (气/氣).

Os patriarcas da Escola Chan conheciam muito bem, por um lado, O Clássico das Mutações (易经/經 Yì jīng), por outro, os princípios básicos da filosofia taoista. Sabemos que entre os oito trigramas do Clássico das Mutações se encontra o Criativo/ Céu (乾Qián), o Receptivo, a Terra (坤Kūn) , a Montanha (艮Gèn) e o Fogo (离離 Lí), sendo estes os trigramas, que no seu jogo de composição hexagramático, nos levam ao entendimento dos princípios essenciais do Budismo Chinês.

O corpo necessita de se imobilizar como uma montanha, de modo a dar origem ao poder mental, descrito como, fogo, lanterna, lâmpada a arder num monte escuro de mistério, que medeia entres dois princípios fundamentais, o Criativo celestial, figurado como um manto branco gelado, brilhante, cujo brilho a mente humana partilha como pérola, e uma terra negra, recetiva, palco passivo onde todas as transformações da energia celestial ocorrem.

Assim se oferece o 56º hexagrama, o do Viajante (旅 lǚ) no Clássico das Mutações, constituído pelo trigrama na base Montanha tranquila (艮Gèn) e no topo pelo Fogo ( 离離Lí) aderente, brilhante, activo e inteligente. O Fogo na Montanha, a fogueira a arder sob um solo tranquilo e pacificado será assim uma figuração adequada para o verdadeiro budista, um viajante tão impermanente como o mundo onde nasceu, que busca activamente a permanência através do seu poder mental.

É assim que julgo dever compreender-se a tese do sexto patriarca Huineng (慧能, 638-713), retirada do Registo dos seus Diálogos (《六祖慧能語錄》) “uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos ”(一燈能除千年暗Yī dēng néng chú qiānnián àn) (Jiang 1997: 36), sendo que a lanterna é naturalmente a mente iluminada.

E Huineng completa a passagem com a seguinte afirmação: “Tal como uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos, assim a sabedoria pode extinguir centenas de milhares de anos de ignorância e estupidez.” (一燈能除千年暗, 一知惠能滅)(Ibidem), ou seja, a sabedoria é o fogo que arde sem se ver, pedindo emprestado o verso a Luís Vaz de Camões, mas que é justamente figurada por ele.

Ora este fogoso saber vai permitir “derreter” todas as divisões, fronteiras e oposições, favorecendo a criação de uma energia mental una e pronta a fundir-se com unidade essencial e espiritual do coração-mente (心 xīn)que comanda o universo budista, em que Buda e o coração significam a mesma coisa, como nos ensina o quarto patriarca dos Chan, Daoxin (道信, 580-651) , nos Registo dos Diálogos do Quarto Patriarca (《四祖道信語錄》) aquele cuja leitura etimológica do nome aponta para a “Confiança no Caminho ”, e esse tem de ser o Caminho do coração-mente (Jiang, 1997:12-15).

Um dos textos que considero mais emblemáticos da filosofia Chan é aquele em que o monge da dinastia Song Jingxuan (警玄, 943-1027) se refere a Um Pássaro Negro na Neve na Noite Escura (夜放鳥雞帶雪飛) do Registo dos Diálogos de Jingxuan (《警玄語錄》) do Vol. 14 da Fusão das Fontes das Cinco Lanternas (《五燈會元》), também da dinastia Song, por reunir os opostos num jogo complementar, onde facilmente visualizamos uma espécie de Supremo Último (太极Tàijí), no qual um pássaro negro voa sobre a neve na noite escura, logo as únicas formas que permanecem são a máxima criatividade, aqui representada pela neve, já que o princípio celestial é branco em complementaridade com a telúrica e misteriosa escuridão.

Procura-se reter o dinamismo perdendo as formas, sendo o poder mental como um espelho, um diamante, a neve, pérola branca, esta contém o conjunto das cores sem refectir especificamente qualquer delas, ou podendo fazê-lo a todas, e joga com um outro dinamismo, o do chão da noite e do pássaro negro. Este oferece-se como a ausência de forma e de cor, traduzindo a condição adequada ao coração-mente refletor, como de resto termina a passagem na qual Jingxuan agradece ao Mestre por lhe mostrar como era o coração dele, um pássaro negro onde sobressai a neve na noite escura (Jiang, 1997: 345).

Um pouco antes dos primeiros patriarcas Chan viveu Santo Agostinho, o Bispo de Hipona e um dos nossos maiores patriarcas cristãos (354-430). Nasceu em África na atual Souk Aras da Argélia. Era de uma grande sensibilidade, intuição e afecto, valorizando a amor cristão acima de tudo. É dele o famoso aforismo ama e faz o que quiseres. Mas o amor ao qual ele se referia era altruísta, universal, capaz de ligar toda a humanidade, porque vindo diretamente de Deus.

O autor de grandes obras religiosas como Confissões, Cidade de Deus e A Trindade, foi também um grande pensador filosófico da linha platónica, tendo-nos deixado nove diálogos, entre os quais aqui se distingue o último que nos ofereceu, O Mestre . Neste diálogo, esbatem-se as fronteiras entre a transcendência e a imanência, aproximando-o, por isso, da tradição oriental e, especificamente, chinesa.

Há um mestre que ensina, Jesus, alcançável pela mente, explica Santo Agostinho ao filho Adeodato: “nessa luz interior da Verdade, de que é iluminado e goza aquele que se denomina homem interior” (1984: 71). A divindade habita no interior da pessoa e dá-se a conhecer diretamente através da mente, poder racional, coração ou buda.

Afinal que diferença há entre Buda, o Homem Interior e o coração-mente? O certo é que todos estes nomes se deixam figurar por uma luz iluminante que permite contemplar diretamente a verdade, à maneira ocidental, ou a sabedoria através “ dessa visão íntima e pura, que conhece pela sua contemplação o que eu digo, e não pelas minhas palavras” (Santo Agostinho, 1984: 71).

Assente fica que a verdadeira sabedoria habita no interior, na mente e que em ambas as linhas filosóficas se desconfia e muito das palavras. Assim, também no pensamento cristão agostiniano se privilegia a intuição, muito acima do discurso, para o conhecimento da realidade ou, como o filósofo lhe chama, das coisas: “Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade.” (Santo Agostinho, 1984: 72).

Se a vida venturosa do cristão agostiniano, implica o conhecimento intuitivo e amor a este Mestre interior, não é menos verdade que a natureza é digna da melhor das contemplações enquanto belíssimo sinal de Deus. É evidente que há grandes diferenças entre ambas as tradições e não chegamos com Santo Agostinho a uma visão imanentista e panteísta, mas sim ao método contemplativo que rejeita as palavras enquanto instrumento privilegiado da verdade, favorecendo, à maneira taoista e budista, a ligação direta à realidade sem interferências intelectuais, ou pelo menos tão poucas quando possível.

Por último, e num regresso ao nosso ponto de partida, reafirma-se que o budismo mais caracteristicamente chinês é o Chan, que habilmente equilibra e doseia os rigores mentalistas com um louvor incessante à natureza e a à vida, sendo por isso que o Mestre Chan Huiji (慧寂,807-883) defende estar a via de Buda no quotidiano ao qual somos ligados na sua expressão , “pelos olhos, ouvidos e nariz (眼裏耳裏鼻裏)” (Jiang, 1997:250 ).

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau.
______________. 2007. A Mulher na China. Lisboa Tágide.
Ikeda, Daisaku. Le Boudhisme en Chine. Monaco: Éditions du Rocher, 1986.
Nan Huai-Chin. 1997. Basic Buddhism. Exploring Buddhism and Zen. York Beach, Maine: Samuel Weiser, Inc.
Jiang Lansheng. 1997. 100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 《禪宗語錄一百則》Hong Kong: 商務印書館有限公司.
S. Agostinho. 1984. O Mestre. Braga: Faculdade de Filosofia.
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.

27 Mar 2023

Sexta Viagem Marítima de Zheng He (IX)

Zhu Di (1360-1424), como príncipe de Yan, governara Beiping desde 1380, quando as fronteiras do Norte se encontravam ameaçadas por constantes investidas dos mongóis, tendo-os vencido em 1390, após dez anos de duros combates. Conquistando ao seu sobrinho, o imperador Jianwen (1398-1402), Nanjing, a então capital da dinastia Ming, em 1402, Zhu Di tornou-se imperador e logo começou a pensar mudar-se para o Norte, devido à estratégica posição.

Em 4 de Fevereiro de 1403, já como Imperador Yongle, proclamou passar Beiping a chamar-se Beijing (Capital do Norte), mobilizando mais de 136 mil famílias de Shanxi para aí irem viver. A construção da nova capital começou em 1406, usando partes de Dadu, a capital da anterior dinastia mongol Yuan, e foi planeada com três partes: a Cidade Proibida onde se situava o Palácio Imperial, a Cidade Imperial, local desde a Porta Wumen até à Porta Qianmen e a Cidade Interior.

Beijing originariamente tinha vinte portas, nove das quais para a cidade interior, sete nas muralhas da cidade exterior e quatro para a Cidade Proibida. Cada porta tinha a sua função, sendo a Desheng para receber as tropas que regressavam vitoriosas e a Anding de onde partiam as expedições militares.

Em 1407 iniciou-se a edificação do Palácio Imperial, com a ajuda de 230 mil trabalhadores especializados, entre habitantes locais e de todas as zonas do país. A Cidade Proibida tinha um perímetro de três quilómetros com um diâmetro no eixo Norte-Sul de 760 metros e de Oeste para Leste de 766 metros.

Rodeada por muros com 7,9 metros de altura e um fosso na parte exterior a toda a volta, na parte Sul situavam-se os pavilhões onde o Imperador trabalharia nos assuntos do Estado e realizaria as cerimónias e na parte Norte, a zona da residência do Imperador, da esposa e concubinas.

Na Cidade Interior foi na altura edificado o Templo do Céu, Tiantan, onde inicialmente eram venerados o Céu e a Terra.

Enquanto prosseguiam as construções na cidade de Beijing, o Imperador Yongle mandou reparar e dragar o Grande Canal para o tornar mais largo à navegação e facilitar o transporte dos cereais da zona de Jiangnan, o celeiro da China, de Hangzhou até à nova capital, ficando essa obra terminada em 1415. Também a Grande Muralha foi reforçada para proteger o território Ming dos mongóis, que tinham retornado às suas estepes.

A transferência da capital de Nanjing para Beijing realizou-se no primeiro dia da primeira lua de 1421, mas no dia 8 da 4.ª lua desse mesmo ano Xin Chou (辛丑), 19.º ano do reinado de Yongle, devido a uma trovoada três pavilhões da Cidade Proibida arderam, tinha já a armada partido para a sexta viagem marítima de Zheng He. Alguns oficiais criticaram junto do Imperador as expedições considerando ser o incêndio um sinal divino.

VIAGEM de 1421 a 1422

Na quinta viagem marítima vieram dezasseis embaixadas da Ásia e África que chegaram a Nanjing no 7.º mês lunar do ano 17.º de Yongle (ano Ji Hai 己亥), 8 ou 17 de Agosto de 1419, mas como desde 1417 o Imperador aí não voltou, foram pelo Grande Canal levados até Beijing por Zheng He.

Sem fazer trasfega, os tributos prosseguiram no segundo maior junco da armada, o barco cavalo, assim chamado por ser muito rápido devido aos oito mastros e dez velas, que não entrou no Rio Yangtzé, mas por mar foi até Tianjin, passando só aí a navegar no Grande Canal para percorrer a última etapa até à capital.

No oitavo mês lunar os enviados de Ormuz (Hulumosi), Zufar (Zufa’er em Omã), Adem, Mogadíscio, Zheila (Ra’s), Brava (Bu-la-wa), Cambaia (Khanbayat), Calicute (Guli), Cochim (Kezhi), Jiayile (Kayal no Sul da Índia), Ganbali (Sudoeste da Índia), Ceilão (Xilanshan), Lambri, Aru (Haru), Semudera e Malaca (Manlajia) foram recebidos por o Imperador em Beijing.

No 18.º ano de governação de Yongle, ano Geng Zi (庚子), em 1420 o Imperador mandou o Grande Eunuco (Tai Jian) Hou Xian (侯显, 1365-c.1438) ao Golfo de Bengala para tentar terminar com o conflito e estabelecer a paz entre o Sultanato de Delhi e o reino tributário da China de Bengala (Bang Ge la), assim como levar de volta os enviados do Sudeste Asiático, onde se encontrava o Sultão de Malaca Megat Iskandar Shah e família.

Já os embaixadores provenientes dos reinos do Mar Arábico e África de Leste esperaram quase dois anos para serem enviados aos seus países, pois a ordem imperial para a sexta viagem marítima de Zheng He só foi dada na Primavera do ano 19.º de Yongle (ano Xin Chou, 辛丑, 1421), 3 de Março de 1421, após a inauguração da nova capital. O Grande Almirante foi então despachado com cartas imperiais e prendas para os governantes desses países.

Zheng He navegando pela costa do Sudeste da China chegou ao porto de Vijaya no Zhancheng, de onde enviou uma pequena frota ao Sião (Xian lu) com o recado para o Rei tai deixar em paz o reino de Malaca, enquanto a armada seguiu com destino a Malaca, e daí para a ilha de Sumatra, visitando os reinos de Lambri, Aru e Semudera. Em Semudera a armada foi dividida em quatro esquadrões, sendo o de Zheng He (郑和) o mais diminuto, enquanto os outros três, um comandado por o Grande Eunuco Hong Bao (洪保), o outro por o Grande Eunuco Zhou Man (周满), a liderar a frota com três juncos do tesouro a Adem, onde seguia Li Xing e o terceiro, comandado por um outro Grande Eunuco, Zhou Wen (周文), do qual na China não há já nenhuma referência, terá ido a Cambaia (Khanbayat). Todos estavam incumbidos de transportar os embaixadores de retorno às suas terras.

No Ceilão (hoje Sri Lanka) os esquadrões separaram-se, seguindo Zheng He para o Sul da Índia, Jiayile, Cochim, Ganbali e Calicute. Hong Bao viajou por Liushan (ilhas Laquedivas e Maldivas, esta governada por um sultão somali da dinastia Hilaalee conectado a Mogadíscio) para chegar ao Golfo Pérsico e deixar em Ormuz o enviado, dirigindo-se depois a Mogadíscio, onde se encontrou com o esquadrão de Zhou Man que vinha de Jedá, seguindo depois para Brava, Melinde e Mombaça, na costa Oriental de África.

O Grande Eunuco Zhou Man, que liderou o esquadrão com três juncos do tesouro, foi à Arábia, passando por Dhofar (Zufa’er) em Omã e pela costa de Hadramaut no actual Iémen foi a LaSa, dirigindo-se depois ao porto de Adem, onde ofereceu ao Rei vestes e barrete de Oficial chinês. Tal visita ficou registada no livro Yingya Shenglan (瀛涯胜览) [Visão em Triunfo no Ilimitado Mar] escrito por Ma Huan (1380-1460). Daí foi a Jedá e no regresso passou por Socotra, por Zheila (Saylac), já na costa Somali, seguindo até Mogadíscio, onde se encontrou com o esquadrão comandado por Hong Bao.

No regresso, atravessando o Oceano Índico vários esquadrões agruparam-se em Calicute e a armada reuniu-se toda em Semudera, visitando depois o Sião e em Palembang (Jiugang) Zheng He decretou que Shi Erjie, segunda filha de Shi Jinjin e neta de Jinqing, sucedesse na posição de administrador de Jiugang a representar o Imperador Ming.

Esta foi a mais curta de todas as viagens marítimas de Zheng He, tendo feito o mesmo percurso do da quinta viagem. A armada chegou a Nanjing no 8.º mês lunar do ano 20.º de Yongle (ano Ren Yin 壬寅, 1422) [3 de Setembro de 1422], trazendo enviados do Sião, Semudera, Adem e outros países que mandaram produtos locais como tributo. Os enviados estrangeiros foram via terra ou por o Grande Canal até à corte de Beijing em 1423.

23 Mar 2023

Os tesouros do letrado – Tradição e valorização dos objetos de escritório na cultura chinesa

Os objetos de escritório destinados à pintura e à caligrafia constituem uma tradição valorizada na China, sendo comum em residências de letrados profissionais e amadores. Desde o final da dinastia Zhou (c. 500 a.C.), a escrita na China é realizada com pincéis feitos de pelos de mamíferos, um elemento central do conjunto de instrumentos utilizados para essa atividade. Outro artefato importante é a “pedra de tinta”, geralmente uma placa de pedra colocada em uma caixa, com ou sem tampa, frequentemente elaborada com uma pedra específica usada para triturar a tinta produzida em bastonetes sólidos.

A pedra de tinta mais utilizada para essa finalidade foi a “duanshi”, de origem vulcânica, encontrada na província de Cantão, caracterizada por sua alta densidade e textura suave, permitindo a perfeita trituração e dissolução em água do bastão de tinta.

Além da pedra “duanshi”, outros três tipos de materiais eram empregados para a produção das pedras de tinta, sendo eles a pedra “She”, da região de Anhui, também de origem vulcânica, a pedra do rio Tao, de Gansu, uma pedra cristalina extraída do fundo de um rio, hoje inexistente, e a pedra “cerâmica” da região de Luoyang em Henan. (RIBEIRO, 2002, p. 368-369). Outros objetos frequentes no conjunto de instrumentos de escrita na tradição chinesa incluem pesos de papel, porta-pincéis para armazenar pincéis secos, descansos para pincéis, onde pincéis molhados são colocados, pequenas vasilhas feitas de cerâmica ou madeira, utilizadas para misturar tinta com água, além do descansa punho, um artefato feito de marfim, madeira ou cerâmica.

O selo é outro objeto comum nessa tradição, embora tenha sido desviado de seu objetivo original para atuar como um identificador de status e propriedade entre colecionadores. Caracteres tipicamente gravados em estilo arcaico são usados nos selos, que enriquecem e enfatizam o valor das pinturas.

O uso de selos é uma tradição elaborada e consistente que atingiu seu apogeu durante a dinastia Qing (1636–1912 d.C.). Sua origem remonta ao período da dinastia Song (960-1279 d.C.), quando as marcas produzidas por esses objetos – impressões realizadas na superfície das pinturas com um pigmento vermelho à base de óleo – começaram a ser utilizadas como precaução contra falsificações (XIN, 1997).

Na cultura chinesa, existem dois tipos de selos: um que faz referência ao nome pessoal do artista e outro contendo caracteres de reflexão filosófica. No entanto, é importante destacar que alguns selos de colecionadores e inscrições de caligrafia, com poemas, apreciações estilísticas, dedicatórias ou interpretações da obra, são posteriores à execução da pintura.

Em suma, a China é conhecida por sua rica cultura, que abrange uma ampla variedade de áreas, incluindo a escrita, a caligrafia e a pintura. Os aristocratas chineses com responsabilidades públicas não eram apenas versados em leis e administração. Eles eram verdadeiros “connaisseurs d’art”. A tradição dos objetos de escritório é um testemunho da valorização das artes e da intelectualidade na cultura chinesa. Neste texto, examinamos mais de perto essa tradição e seus elementos centrais.

Por fim, é possível afirmar que a tradição da escrita na China demonstra a alta intelectualidade do povo chinês durante as duas últimas dinastias. Segundo Julian Bell (2008, p. 106), foi nessa sociedade, considerada a mais letrada do mundo, que a arte “concebida não apenas para a elite, mas pela elite, ganhou forma”:

“A caligrafia era uma prática que unia o refinamento da sensibilidade ao refinamento da técnica. Os deslizamentos, arremetidas e saltos pulsantes do pincel cheio de tinta davam aos bem-educados uma chance de ostentar sua superioridade de espírito em corteses trocas de rolos de seda contendo poemas ou letras. O que hoje consideramos ‘pintura chinesa’ surgiu mais ou menos como um adjunto dessa arte suprema”. (BELL, 2008, p. 106).

 

Referências:

RIBEIRO, José Diogo Henriques Sêco. “A Colecção de Arte Chinesa do Poeta Camilo Pessanha”, Arquivo Coimbrão – Boletim da Biblioteca Municipal 35, 2002, pp. 368, 369.
XIN, Y., “Approaches to Chinese painting – Part I”, in “Three Thousand Years of Chinese Painting”, ed. Y. Xin, N. Chongzheng R. M. Barnhart et al., Yale University Press, Londres, 1997.
BELL, Julian. Uma nova história da arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p.106.

23 Mar 2023

As Deslumbrantes Montanhas de Verão de Qu Ding

Hongli, que reinaria como o imperador Qianlong (r.1736-95), estudioso atento da cultura que desejava preservar e restaurar, sabia de um outro imperador coleccionador e apreciador das artes cujos traços, em pinturas, caligrafias ou em carimbos, que testemunhavam o seu olhar arrebatado diante de rolos de pinturas, reconhecia e anotava como inolvidáveis.

Fê-lo, por exemplo, numa minuciosa e deslumbrante pintura que pertencera à sua colecção e à qual se quis vivamente associar, escrevendo sobre ela no ano de 1748 numa rara grelha de linhas brancas, o texto:

«Elegante antiguidade cujo fragrante perfume
ainda se sente, tantos anos depois.
Os carimbos Xuanhe, do imperador Huizong,
fazem-na ainda mais preciosa.
As figuras nela aparecem cheias de vida,
Como se as árvores e as pedras
fossem retiradas da própria natureza,
Sente-se a humidade da luxuriante vegetação
das montanhas de Verão;
Dos desfiladeiros vem o murmúrio
do ritmo repetitivo das ondas ao sol.
Empoleirados lá nas alturas, surgem amplos pavilhões.
Como nos sentiriamos debruçados na vedação
apreciando semelhante panorama?»

Essa pintura, Montanhas de Verão (Xia Shan tu, rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 45,4 x 115,3 cm, no Metmuseum), que não tem nenhuma inscrição, carimbo ou assinatura do seu autor é atribuída a Qu Ding (c. 1023-c. 1056), um discípulo de Yan Wengui (c.967-1044) cujo nome consta do rolo, e será uma de três com o mesmo título no Catálogo de pinturas da era Xuanhe, «Afirmação da harmonia», de Huizong (Xuanhe Huapu), de 1120, que regista cerca de 6396 pinturas de 231 artistas.

E nela se pode observar aquela atenção ao aspecto mutante das montanhas ao longo do ano que os tratados da dinastia Song do Norte recomendavam, «para perceber o misterioso sopro dos próprios princípios da Criação» (Han Zhuo em 1121).

Qu Ding vai pacientemente figurando, sob altivas montanhas de «árvores luxuriantes, abundantes e cheias de sombras», um dia de Verão, com a sua «coloração azul-verde que parece derramar-se por todo o lado» e as «nuvens e vapores ricos e densos» como Guo Xi (1020?-1090?) descreve no Linquan Gaozhi, a Grande Mensagem sobre Florestas e Nascentes.

Da direita para a esquerda, numa progressão em que o observador se vai apercebendo de detalhes, há pássaros voando em bandos, pescadores com as suas armadilhas, aldeias, palácios e mosteiros surgindo das brumas. E ligando tudo, pontes, em número de cinco que no Yijing corresponde a Esperando, «é favorável atravessar um grande rio».

Sobre uma dessas pontes, sentado numa mula, a reconhecível figura de um homem de cultura disponível para se deixar assombrar pelas mutações da natureza, tão exuberante e assertiva no Verão, como fizeram poetas como Su Shi que notou: «É bem verdade que estas montanhas são encantadoras, e como nos agradam ao mudar a sua face.»

23 Mar 2023

“Geografia Mundial” de Giulio Aleni (1623)

Aleni: Vida e nome chinês

Giulio Aleni foi um académico e um dos mais notáveis missionários Jesuítas sediados na China no início do século XVII. Publicou vários textos em chinês e veio a tornar-se um autor frequentemente citado e deixou uma marca inconfundível em trabalhos posteriores.

O seu livro mais significativo foi, provavelmente, Zhifang waiji 職方外紀, geralmente datado de 1623. Neste artigo, vamos fazer uma breve visita ao texto publicado há quatrocentos anos. A maioria das edições de Zhifang waiji contêm vários mapas, também eles desenhados por Aleni (e por alguns dos seus colegas). São exemplares úteis, mas menos detalhados do que certos mapas elaborados por outros Jesuítas que estiveram na China e só podem ser considerados ocasionalmente.

O nome chinês de Aleni era Ai Rulüe 艾儒略; e em latim, Julius Alenius. Ambas as versões, em latim e em italiano, estão foneticamente relacionadas com o nome chinês. O significado contido nos caracteres chineses parece ser bastante complexo. Habitualmente, ru identifica os académicos Confucionistas e os seus ensinamentos.

Ai é muito usado em botânica e frequentemente designa a planta artemísia, mas ai também quer dizer “belo”, “gaguejar”, “cultivar”, “alimentar”, “proteger”, etc. Lüe é ainda mais ambíguo. Quando usado de uma forma positiva, pode significar “estratégia”, “plano”, “resumo” e “descrever”. As conotações negativas tornam-se evidentes na associação aos verbos “apreender” e “pilhar”.

Como é óbvio, Aleni tinha aprendido chinês e aparentemente conseguia ler sem dificuldades textos clássicos, mas não sabemos dizer se ele estaria a par de todas as subtilezas contidas nos três caracteres do seu nome chinês.

Presumivelmente, a escolha da sequência “Ai Rulüe” revelava respeito pelas ideias centrais do Confucionismo e, como tal, pela cultura chinesa em sentido amplo. Se esta interpretação for aceitável, então podemos afirmar que o nome chinês de Aleni era um símbolo de sua “carreira” pessoal.

Aleni admirava muitos dos aspectos da sociedade chinesa, mas também exprimiu algumas críticas. Podemos ainda acrescentar que, nessa época, os Jesuítas tentavam encontrar paralelismos entre os aspectos essenciais da sua própria religião e os princípios fundadores do Confucionismo. Sem qualquer dúvida, esta tarefa requeria uma mente e uma alma firme, habilidade retórica e muito conhecimento.

Aleni veio da região de Brescia, no norte da Itália. Nascido em 1582, ingressou na Ordem dos Jesuítas em 1600 e estudou em Roma. Depois de ter sido escolhido para ir para a China como missionário, chegou a Macau em 1610, ainda jovem, com vinte e muitos anos. Embora estivesse interessado principalmente em astronomia, matemática e outras matérias relacionadas, ficámos a saber por confrades e amigos, que tinha uma mente viva e curiosidade por muitas coisas diferentes. Evidentemente, estas características renderam-lhe o respeito dos seus colegas chineses, com quem manteve boas relações ao longo da vida.

Em 1613, Aleni chegou a Pequim, apenas alguns anos após a morte de Matteo Ricci (Li Madou 利瑪竇) em 1610. Mais tarde viajou até às Províncias de Shaanxi e de Shanxi e às regiões de Xangai e de Yangzhou. Em 1620, chegou a Hangzhou, em Zhejiang, e em 1625 fundou a missão Jesuíta em Fujian.

Enquanto esteve em Fujian tinha contacto com muitos altos funcionários, especialmente com os de Fuzhou, e debatia com eles questões religiosas e outros assuntos de interesse mútuo. Embora tenha sido capaz de conquistar um número respeitável de estudiosos para a fé cristã, nem todos aprovaram as suas acções e, por algum tempo, tornou-se alvo de críticas severas. Por conseguinte, passou algum tempo em Macau no final da década de 1630, mas regressou a Fujian em 1639.

Em 1641 tornou-se Vice-Ministro Provincial Jesuíta para o Sul da China. Quando as tropas Manchu invadiram Fujian na segunda metade da década de 1640, causando destruição e desordem em muitas partes desta Província, Aleni retirou-se para a área montanhosa de Yenping 延平 (Nanping 南平) no interior de Fujian, onde morreu em 1649.

O texto e sua estrutura

Num período inicial, Aleni esteve em contacto com Li Zhizao 李之藻 (1565–1630) e com Yang Tingyun 楊廷筠 (1557–1627), ambos de Hangzhou. Em 1623, hospedou-se em casa de Yang e ajudou-o a terminar a sua obra Zhifang waiji, que ainda foi impressa no mesmo ano.

Hoje existem várias edições deste livro, mas não diferem muito umas das outras. Actualmente, os académicos citam principalmente a versão pontuada impressa pela editora Zhonghua shuju em 1996. Esta versão tem o título Zhifang waijiao jiaoshi 職方外紀校釋 e traz muitas anotações úteis de Xie Fang 謝方 (1932–2021), um editor actual. O presente artigo baseia-se em grande parte na edição de Xie.

O texto anotado de Xie Fang contem cinco capítulos ou juan 卷. Os capítulos debruçam-se respectivamente sobre a Ásia (juan 1); a Europa (j. 2); a África (na altura chamada Liweiya 利未亞, ou Libya; j. 3); a América do Norte e do Sul, a Antártida (então chamada Mowalanijia 墨瓦蠟尼加, ou Magellani(c)a; j. 4) e os “Quatro Mares” (si hai 四海, j. 5). Numa das primeiras edições do texto de Aleni, existe um capítulo dedicado apenas a Magellania, o que significa que essa edição tinha seis juan, mas isso não é relevante neste contexto. Os mapas publicados no Zhifang waiji, apareciam antes do primeiro capítulo. No total existiam sete, um de cada continente, mais um que mostrava a Magellania ou “as terras do sul” (Nanyu ditu 南輿地圖), um outro representando a esfera setentrional (Beiyu ditu 北輿地圖) e um mapa mundo chamado Wanguo quantu 萬國全圖.

Do Juan 1 ao 4, o texto descreve segmentos de vários países e o último juan tem sub-divisões com os nomes dos oceanos, de ilhas, de criaturas marinhas, produtos do mar, características dos oceanos, navios e rotas marítimas. De um modo mais geral, o Zhifang waiji é uma ampla descrição que sumariza as características essenciais do mundo então conhecido, do ponto de vista marítimo.

Nestas características encontram-se incluídas a vertente cultural, a etnológica, a económica, a social, entre outros temas. Muitas secções fornecem informação detalhada sobre a flora e a fauna de uma determinada região. Outras partes mencionam os nomes de cidades importantes, descrevem os monumentos locais e falam de personagens famosas. Por poucas palavras, podemos classificar o trabalho de Aleni como uma espécie de “geografia mundial”, ou como um relato etnográfico.

Os académicos chineses provavelmente considerariam que este livro pertencia a uma categoria chamada lishi dili 歷史地理 (geografia histórica). De facto, existem muitos trabalhos semelhantes na antiga China, e estes são frequentemente divididos em segmentos por país, mas os conceitos geográficos subjacentes são diferentes e normalmente não têm secções separadas sobre os oceanos. Algumas destas obras surgiram no final do período Ming. Podemos citar como exemplos Shuyu zhou ci lu 殊域周咨錄 (1574), Xian bin lu 咸賓錄 (1591) e Siyi guangji 四夷廣記 (início do século XVII). Recentemente, Elke Papelitzky chamou-lhes “Histórias do Mundo”, o que parece ser uma classificação adequada, porque esses relatos também se referem a eventos passados.

As Fontes do Texto de Aleni

O Zhifang waiji não está totalmente despojado de elementos fictícios e de fenómenos a que podemos chamar mirabilia. O mesmo pode dizer-se dos textos lishi dili . Além disso, podemos afirmar que diversos registos lishi dili se focam em questões marítimas, à semelhança do livro de Aleni, mas claro que os autores chineses nunca se fizeram ao mar, ao passo que Aleni viajou de Lisboa, passando pela India, até Macau. Não há dúvida, que algumas das coisas que menciona, são fruto da sua experiência pessoal.

Nesta altura, podemos também pensar nos primeiros relatos portugueses, como por exemplo, a Suma Oriental de Tomé Pires e O livro de Duarte Barbosa. De certa forma, ambas as obras são visões do mundo exterior a partir de uma perspectiva marítima e não de uma perspectiva continental. No entanto, enquanto Pires recolhia a informação a partir de informadores locais, Aleni ia sobretudo buscá-la a textos antigos.

As “histórias do mundo” escritas por autores dos finais do período Ming baseavam-se também na informação contida em textos arcaicos. Tal como Zhifang waiji, eram criações complexas de carácter académico. Muitas partes destas obras lembram ao leitor as expedições de Zheng He 鄭和 (1405–1433), ou lançam mão de elementos descritivos que se encontram em fontes das Dinastias Song e Yuan, e nas histórias oficiais de tempos antigos.

Quando Aleni estava a trabalhar no seu livro, consultou mapas europeus e relatos escritos do século XVI, além de utilizar fontes manuscritas, mas, por vezes, também mencionava o passado Greco-Romano. Assim, do ponto de vista dos chineses seus contemporâneos, o que ele tinha para dizer era bastante inovador para a elite intelectual Ming.

Outra característica de Zhifang waiji é a sua dimensão religiosa. Vários segmentos falam das instituições da Igreja, das ideias cristã e da bíblia. De facto, uma leitura mais atenta do texto revela que certas partes estão totalmente enquadradas numa moldura cristã. Naturalmente, outras religiões são por vezes menosprezadas.

Os registos chineses lishi dili e as “histórias do mundo” também mencionam brevemente tradições locais, mas a apresentação desses detalhes raramente é orientada por intenções religiosas. Há apenas uma ou duas excepções à regra. Por exemplo, pode dizer-se que o Yingya shenglan 瀛涯勝覽 do início do século XV tem uma marca islâmica, porque o seu autor era muçulmano. Não obstante, também é óbvio que a maioria dos autores chineses via o mundo exterior através de olhos Confucionistas.

Segundo Paolo De Troia, que traduziu Zhifang waiji para italiano, uma das fontes chave de Aleni foi o “atlas” de Giovanni Antonio Magini (1555–1617), intitulado Moderne tavola di geografia. Não sabemos ao certo como Aleni procedeu quando concebeu o texto, nem como seleccionou a informação que lhe interessava a partir das suas fontes, mas presumivelmente recebeu muito apoio de Yang Tingyun.

É sabido que este homem aperfeiçoou o chinês do texto de Aleni. Provavelmente também o aconselhou sobre a forma de organizar certos detalhes narrativos de forma a facilitar aos leitores chineses a compreensão da sua importância e significado. É muito provável que nesta parte do trabalho tenha havido muitas discussões Aleni e Yang Tingyun.

Informação adicional sobre a preparação do texto pode ser obtida nos prefácios (xu 序) a Zhifang waiji. Existem três destes prefácios, um escrito pelo próprio Aleni (datado de 1623), o de Yang Tingyun e o de Li Zhizao (também datados de 1623). Estes prefácios confirmam que Aleni não foi o único autor de Zhifang waiji.

Recorreu a alguns manuscritos incompletos de Diogo de Pantoja (Pang Diwo 龐迪我, 1571–1618) e de Sabatino De Ursis (Xiong Sanba 熊三拔, 1575–1620), além de também consultar outras fontes, nas quais se inclui o relato de Magini. No seu próprio prefácio, também menciona Wanguo tuzhi 萬國圖志. Esta deve ser uma referência ao Kunyu wanguo quantu 坤輿萬國全圖, i.e., o famoso mapa mundo de Ricci, ou a uma das suas versões preliminares. Várias cópias do mapa de Ricci sobreviveram e, embora difiram umas das outras em certos aspectos, em todos eles, os nomes chineses e outras referências são praticamente iguais. Claramente, Aleni usou estas referências no seu próprio relato, mas, muitas vezes, modificou a sua redacção. Provavelmente Yang Tingyun teve qualquer coisa a ver com isso.

A actual edição anotada de Xie Fang de Zhifang waiji contém um quarto prefácio – de Ye Xianggao 葉向高 (1559–1627) –, duas pequenas notas (xiaoyan 小言), um posfácio (ba 跋) e um memorial (zoushu 奏疏). Os sinólogos europeus raramente consideram estes textos, mas eles têm algum interesse, porque mencionam os ensinamentos de Zou Yan 鄒衍 (século II AC). Zou Yan foi um dos principais estudiosos do período pré-Han e os seus escritos perderam-se.

A partir de alguns fragmentos de textos que sobreviveram das Shi ji 史記, crónicas chinesas oficiais, sabemos que ele via o mundo como uma entidade dividida em nove continentes, cada um deles rodeado por oceanos e mares. A segmentação adicional destas esferas obedece a uma numeração. Estes conceitos tiveram um grande impacto na escrita geográfica posterior, mesmo no período Ming. Naturalmente, Aleni refutou-os. No entanto, tal como Ricci, foi prudente a esse respeito, o que provocou discussões entre os seus colegas chineses, alguns dos quais tentavam olhar para o texto de Aleni através dos olhos de Zou Yan.

Zou Yan foi um dos principais estudiosos do período pré-Han, mas os seus escritos perderam-se. A partir de alguns fragmentos de textos que sobreviveram no Shi ji 史記, primeira crônica oficial da China, sabemos que ele via o mundo como uma entidade dividida em nove continentes, cada um deles rodeado por oceanos e mares. A segmentação adicional dessas esferas obedece a um arranjo numérico.

O Mapa de Ricci e o Texto de Aleni: Empreendimentos Sino-Europeus

Este título diz-nos que podemos considerar Zhifang waiji como o produto final de um “empreendimento conjunto”, que envolveu académicos chineses e europeus e múltiplas fontes. Contudo, a bem da simplicidade, e seguindo as tradições sinológicas, continuaremos a designá-lo apenas por “o trabalho de Aleni”.

Podemos argumentar, que o mapa de Ricci, é outra criação híbrida e, portanto, um caso semelhante. O seu enquadramento metodológico, a disposição geográfica e a informação que contém sobre o Novo Mundo, Europa e África provêm na totalidade de fontes europeias. O segmento asiático é diferente: fornece muitos nomes geográficos então usados na China, seguindo assim as convenções chinesas.

Também estão incluídas referências a locais fictícios, por exemplo, o “País dos Cães” (Gou guo 狗國) e o “País das Mulheres” (Nüren guo 女人國). Estes elementos ficticios eram usados pelos académicos chineses e já aparecem em textos muitos antigos como Shanhai jing 山海經, i.e., o famoso “Livro das Montanhas e Mares”, que tem raízes ancestrais. Ricci tinha bons motivos para marcar estes locais no seu mapa. Primeiro, ao fazê-lo, expressava o seu respeito pelas tradições chinesas. Segundo, agradava aos seus amigos chineses que ficariam com a impressão de que ele próprio não refutava completamente os seus pontos de vista e as suas tradições. Terceiro, presumivelmente estes elementos eram fonte de algum entretenimento.

De facto, sentimo-nos tentados a afirmar que tanto Ricci como os seus amigos chineses tiveram a sua dose de divertimento quando adicionaram estes elementos fictícios ao mapa.

Kunyu wanguo quantu tem claramente uma dimensão diplomática. A China, enquanto País Central, e o Oceano Pacífico são representados a meio do mapa. A distribuição dos mares e dos seus nomes é quase simétrica. O oceano junto à China tem o nome de Da Ming hai 大明海, o “Mar do Grande Ming”. Perto das margens externas do mapa, encontram-se várias caixas com textos relacionados com astronomia. Estas descrições não são desprovidas de conceitos e termos tradicionais chineses, certamente para agradar aos amigos locais de Ricci.

Aleni seguiu os métodos de Ricci. Usou alguns topónimos chineses, tal como Ricci tinha feito. Tianzhu 天竺 (India), Sama’erhan 撒馬爾罕 (Samarcanda), Hulumosi 忽魯謨斯 (Órmuz), Sumendala 蘇門答剌 (Sumatra / Samudra-Pasai), Zhaowa 爪哇 (Java), Boni 浡泥 (Brunei / Bornéu), and Lüsong 呂宋 (Luzon), são disso bons exemplos. Podemos realmente encontrar estes nomes em Kunyu wanguo quantu. No entanto, Aleni modificou determinados topónimos. Assim, Dada(n) 韃靼 aparece no seu livro como Da’erda(n) 韃而靼 (Ta[r]tar). É possível que Yang Tingyun lhe tenha sugerido algumas destas alterações e transcrições ou que tenham sido tiradas das notas deixadas por Diogo de Pantoja e por Sabatino De Ursis.

Noutros casos, os Jesuítas inventaram novas designações para locais que já apareciam com um nome diferente em materiais mais antigos. Existe uma explicação simples para estas invenções: Nem os académicos chineses que assistiam os Jesuítas, nem os próprios Jesuíutas tinham conhecimento das primeiras designações. Podemos citar como exemplo as Ilhas Molucas. Ricci e Aleni chamavam-lhes Malugu 馬路古 (Ilhas Molucas), embora já tivessem sido “baptizadas” por Wang Dayuan 汪大淵 (a partir da primeira metade do século XIV) com o nome de Wenlaogu 文老古.

Regressemos à dimensão diplomática do trabalho de Aleni. Esta dimensão manifesta-se de diversas formas. Como já foi mencionado, o primeiro juan ou capítulo é sobre a Ásia, e claro que o primeiro país a ser falado é a China.

Embora a descrição não seja muito alongada, contém muitos elementos elogiosos e brevemente fala sobre a grandeza do Império Ming. Além disso, termina com uma lista de locais importantes que sistematicamente prestam tributo à Corte Ming. Neste ponto, o autor refere a geografia oficial do período Ming, Da Ming yitong zhi 大明一統志 (1461). É uma forma evidente de se proteger de críticas. Também justifica a sua observação final, nomeadamente que os segmentos que se seguem à curta parte sobre a China, tratarão exclusivamente de locais fora da jurisdição do Zhifang 職方.

O termo zhifang revela uma escolha cuidadosa. É uma referência a um serviço responsável pelos assuntos externos. Na verdade, é um termo muito antigo que transporta o leitor à antiguidade chinesa. o uso de termos antigos é um sinal de conhecimento e de respeito pelo passado distante. Metaforicamente, abre portas, e legitima o autor para expressar os seus pontos de vista. Sob esta perspectiva, o título do livro de Aleni torna-se muito claro. Zhifang waiji fala sobre “no mundo não chinês”, i.e., sobre as esferas fora do controlo da China. Portanto, em ensaios ingleses, por vezes, o título é traduzido por Records of Lands outside the Jurisdiction of the Imperial Geographer. Paolo De Troia traduz por Geografia dei paesi stranieri della Cina.

Mais algumas características de Zhifang waiji

No entanto, a apresentação de Aleni não é totalmente consistente. A parte da China inclui as zonas tártaras como dependências no Império Ming, mas o segmento seguinte faz uma descrição do local. Talvez se possa desculpar a inclusão desta entrada no waiji Zhifang considerando o seguinte: Segundo Aleni, o território tártaro era enorme.

Estendia-se desde as extremidades orientais da Europa até ao norte da China. Esta questão recorda-nos um problema que aflora em vários dos primeiros textos portugueses: os geógrafos da Europa do Sul sabiam muito pouco sobre a divisão política do Norte asiático. Circulavam mesmo rumores que o Sacro Império Romano se tinha estendido até a leste a ponto de ter tido acesso directo à orla ocidental da China.

O trecho de Aleni sobre Da’erda(n) também tem uma breve descrição do “País das Mulheres”, acima mencionado, e de Debaide 得白得 (Tibete). Outro nome, que aparece neste trecho, é Dagangguo 大剛國 (o “País do Grande Khan”).

A descrição destes locais contém certos elementos que parecem derivar do relato de Magini e, indirectamente, até da obra de Marco Polo. No entanto, ninguém se interroga porque é que o Tibete, na altura, uma parte conhecida da China, aparece com um nome estrangeiro no texto de Aleni. Ao agrupar os territórios tártaros (uma dependência do Estado Ming), o País das Mulheres (um local fictício que recorrentemente surge no folclore chinês e europeu), e as terras altas do Himalaias – significa que pretendia passar uma mensagem política oculta nesta miscelânea geográfica?

Aqui podemos saltar para o segmento final do juan sobre a Ásia: Este segmento tem o título Dizhonghai zhudao 地中海諸島 (Ilhas do Mediterrâneo), mas só descreve Ge’a (Ge’e) 哥阿 (Quio), Luodedao 羅得島 (Rodes) e Jibolidao 際波里島 (Chipre). No tempo de Aleni, estas ilhas encontravam-se sob o domínio Otomano; o que certamente explica o seu aparecimento no juan da Ásia. Existe um segundo segmento sobre as ilhas do Mediterrâneo. Aleni colocou-o no final do juan sobre a Europa. Além disso, o juan sobre a África e o juan da América também terminam com uma parte sobre ilhas. Isto reforça a nossa impressão inicial, quando considerámos que Zhifang waiji é uma obra com uma forte componente marítima. Actualmente, os académicos chineses falam muito sobre haiyang wenxue 海洋文學 (literatura marítima) e sobre haiyang wenhua 海洋文化 (cultura marítima); encarado deste ponto de vista, talvez Zhifang waiji possa ser incluído uma destas categorias.

No entanto, não nos podemos ficar por aqui. O juan da Europa começa com uma longa descrição deste continente e das suas características culturais. É dada muita ênfase ao sistema educativo. Refere que existem muitas escolas onde os alunos estudam shishu 史書 (História / textos históricos) e shiwen 詩文 (poesia e prosa, ou obras literárias), e onde aprendem a escrever ensaios. Também refere que existem exames frequentes. Aqui é usado o termo rushi 儒試.

Pode traduzir-se por “Exame confucionista”, ou talvez por “exame abrangente”. Aleni diz-nos, que os estudantes bem-sucedidos são admitidos em instituições de ensino superior. Os alunos mais brilhantes tornam-se professores.

Estes trechos vão claramente ao encontro das expectativas chinesas. A ideia é mostrar que a Europa, tal como a China, valoriza a aprendizagem, especialmente na área das humanidades, or wenke 文科, e que ambas as zonas desenvolveram sistemas eficientes para promover as questões culturais. Por outras palavras: a Europa e a China estão ao mesmo nível, ao contrário das regiões selvagens dos tártaros, de África e de outras partes do globo.

De longe, a secção mais alargada e mais elogiosa do juan europeu é sobre a Itália. Como seria de esperar, Aleni fala do seu próprio país com orgulho e com uma argumentação sólida. Itália é apresentada como o crème de la crème do continente europeu. As descrições da França e da Alemanha são muito mais breves. Relativamente a esta última, encontra-se uma observação interessante: Os soberanos de Yalemaniya 亞勒瑪尼亞 (Alemanha), quando são coroados, ficam dependentes do Papa de Roma.

Ao ler estas passagens, os académicos chineses pensavam certamente no período Zhou, durante o qual o Império do Meio foi fragmentado em vários feudos. Provavelmente também se recordariam do sistema de tributos implementado pela Corte Ming: Com alguma frequência, o Imperador Ming reconhecia um Rei estrangeiro como o legítimo governante do seu país. Existem muitas referências a estes actos formais no Ming shilu 明實錄. Contudo, a dimensão do segmento sobre a Alemanha sugere que o Sacro Império era pequeno em comparação à China Imperial. Aleni tinha claramente de desvalorizar o Norte pouco hospitaleiro em favor do mundo mediterrânico.

Aleni continua dizendo que a Alemanha é um país frio. Diz ainda que os alemães são bons a aquecer as suas casas com poucos recursos e que são pessoas práticas. Uma visão do futuro? Uma previsão a longo prazo das atitudes infantis que podemos associar ao actual Governo de Berlim e ao Movimento dos Verdes?

Seja como for, Aleni é um homem do Sul. Colocou o segmento da Yixibaniya 以西把尼亞 (Hispania), simbolicamente, no primo loco do juan da Europa e, ao mesmo tempo, este segmento é o segundo maior do capítulo. Curiosamente também, termina com a observação de que a Espanha teria muitas colónias: mais de vinte países grandes e mais de cem pequenos e médios (以西把尼亞屬國大者二十餘,中下共百餘。). O termo para colónias/dependências é shuguo 屬國, uma antiga expressão técnica encontrada em fontes chinesas tradicionais.

Uma mensagem oculta que se poderia encontrar neste trecho seria a de que a Espanha é mais influente e tem mais poder do que a China, porque o segmento sobre as dependências desta última só lista oito estados tributários.

Portugal, os Açores, a Madeira e as Canárias

Sim, Aleni parecia jogar com os factos e com as palavras. O seu segmento sobre a Hispania continua com a seguinte observação: “O território mais ocidental chama-se Portugal” (其在最西者曰波爾杜瓦爾). A formulação chinesa parece vaga. Gramaticalmente, o primeiro caracter poderia querer dizer que Portugal é a parte mais ocidental de Espanha, uma dependência (de pequenas a médias dimensões). É certo que Aleni não criou um segmento separado para Portugal. Pode haver uma razão simples para esta disposição inesperada: O seu livro foi publicado quando Portugal estava sob o domínio da coroa espanhola; Aleni menciona-o. No entanto, também podemos perguntar, se ele favorecia Castela, a nação beligerante da Península Ibérica?

Aleni evita deliberadamente o uso do antigo e controverso nome Folangji 佛郎機, assinalando que os muçulmanos (Huihui 回回) o haviam usado para todos os “Ocidentais” (xituren 西土人). Ele também parece justo quando afirma que Lisboa é a porta da Europa para o Extremo Oriente. De Lisboa, os barcos navegavamm via Dalangshan 大浪山 (Cabo das Tormentas) até à India e Macau. Mas, ainda mais importante, Portugal tem muitas igrejas e uma excelente infra-estrutura educacional. No entanto, pode haver algo mais a acrescentar.

Aleni passou muito tempo em Zhejiang e em Fujian. Fujian estava em contacto directo com Manila. Espanha era forte, Macau um pequeno enclave português que tinha acabado de sobreviver ao ataque holandês (1622). Aos olhos de alguns Jesuítas, Macau era certamente mais fraco do que Manila. Será que isso importava? Desejaria Aleni dizer à sua clientela chinesa que a Espanha poderia oferecer protecção, que o apoio das Filipinas era uma opção a longo prazo para a missão da China?

Espanha era um dos principais actores da cena global. Entre as suas muitas dependências encontravam-se as Ilhas Canárias. Tanto Ricci como Aleni referem-se-lhes sob o nome de Fudao 福島, literalmente Insulae fortunatae – um nome com ligações aos tempos Greco-Romanos e a lendas antigas. Naqueles tempos, Hierro, uma das ilhas das Canárias, foi importante porque os cartógrafos geralmente desenhavam o meridiano zero sobre ela. Os italianos chamavam a este meridiano Meridiano di Ferro ou Meridiano dell’Isola del Ferro. Daí o nome chinês da ilha: Tiedao 鐵島 (literalmente “Ilha de Ferro”).

Não muito longe das Canárias, situa-se a Madeira. Kunyu wanguo quantu, uma brochura ilustrada com um mapa, que atribuía a este belo local o nome chinês de Mudao 木島, literalmente “Ilha das Árvores”. Entre outras coisas, o texto elogia a rica vegetação da ilha.

O Mapa de Ricci também regista os Açores. Aparecem dois nomes: Hedao 鶴島 (Ilha do Corvo) e Disanqidao 第三起島 (Terceira). A sequência disan(qi)dao, “terceira ilha”, transcreve o significado do nome português; ao mesmo tempo, foneticamente as duas as versões estão relacionadas entre si. O caracter he no primeiro nome normalmente designa o grou, uma ave que simboliza vida longa no folclore chinês.

Em contrapartida, o corvo, or wu 烏 em chinês, tem conotações negativas, muito diferente da tradição europeia, onde este pássaro simboliza a sagacidade. Em relação à ilha do “Corvo” – este nome já se encontra numa antiga carta náutica de meados do século XIV, que regista a Insula Corvi Marini (Ilha do Corvo Marinho). Evidentemente, Ricci conhecia o nome da ilha, mas não estava disposto a usá-lo, porque os leitores chineses o considerariam como um símbolo negativo. Consequentemente, criou a “Ilha dos Grous” e aumentou muito seu tamanho no mapa.

Possivelmente podemos associar uma outra conotação a esta mesma ilha.: Hedao aparece na margem direita de Kunyu wanguo quantu. Assim, num certo sentido, pertence ao “extremo oriente”. Na China, o Oriente está sempre ligado a elementos positivos; o grou estava apto a ser associado a essa imagem. No entanto, é preciso ter cuidado.

Noutro lugar do seu mapa, Ricci descreve uma localização com o nome Airenguo 矮人國, o “País dos Anões”. O texto diz que os grous muitas vezes devoravam esses pigmeus. É uma narrativa que também se encontra em Plinius’ Naturalis Historiae. A conclusão poderia então ser a seguinte: o grou tem duas representações, uma positiva e, simultaneamente, outra perigosa.

Nada disto aparece no texto de Aleni. As imagens são diferentes. Na verdade, o Zhifang waiji não regista os Açores nem menciona a Madeira. Estas ilhas são apenas vagamente exibidas nos mapas associados ao texto de Aleni. No entanto, Aleni dá uma descrição das Ilhas Canárias, e esta descrição é ligeiramente mais alargada do que a que consta no mapa de Ricci. Podemos perguntar mais uma vez: Existe alguma razão para tal disposição?

Aleni e os Animais Marinhos

Como já foi mencionado, Aleni joga com vários elementos narrativos. Podemos encontrar bons exemplos na secção sobre animais marinhos, que fazem parte do último juan. Aqui encontramos diversos monstros perigosos, mas também algumas criaturas benignas. Um peixe estranho é a baleya 把勒亞, uma transcrição fonética de baleia. Quando ameaça um navio, deve atirar-se ao mar vários barris de madeira com álcool. A baleia vai engoli-los, baixa a cabeça e desaparece.

Existe uma outra história relacionada com renyu 仁魚, literalmente “peixes benevolentes”. Ren 仁 é uma das virtudes centrais da filosofia confucionista. O conceito de ren é bastante complexo e encontram-se-lhe muitas referências em Mengzi 孟子, o livro de Mêncio, e noutros textos. O renyu, assim conta a história, uma vez levou uma criança pequena para a costa, mas não prestou atenção e o pobre rapaz morreu de um ferimento. O peixe sentiu-se muito mal com esta tragédia, por isso atirou-se contra uma rocha e também perdeu a vida. Então Aleni insere esta história num outro contexto: No “país do Ocidente” (xiguo 西國) o renyu ajudava os pescadores a capturar golfinhos. Qual é a intenção subjacente a este breve relato? Será que Aleni quer dizer aos seus leitores que ren é um conceito e um fenómeno real muito importante – algo que não se encontra apenas na China, mas até mesmo no mundo animal?

Há também breves descrições do crocodilo, com referências às lágrimas de crocodilo, e ao yigouman 乙狗滿, i.e., o ichneumon, ou mangusto. Embora estes não sejam animais marinhos, entraram no texto de Aleni, provavelmente porque o autor tinha lido as secções que lhes diziam respeito na Naturalis Historiae. De facto, diversas partes da secção dos animais marinhos têm origem nesta obra clássica.

Para além destes e de outros animais, encontramos peixes voadores, o bolibo 薄里波 (pólipo), e a hainü 海女 (sereia). Os ossos desta última podem ser transformados em nianzhu 念珠 (rosários) e também podem ser usados para estancar sangramentos. Diz-se também de outas criaturas, meio humanas, meio peixes, que podem perceber as pessoas, mas que não conseguem falar. Esta quimera marítima também aparece em textos chineses antigos, nomeadamente em Shanhai jing. Recebem nomes diferentes: jiaoren 鮫人, quanxian 泉先, quanke 泉客, etc. Hoje em dia a internet está cheia de histórias e de imagens relacionadas com estas fantasias. Na antiguidade, sem dúvida que também despertavam muita curiosidade. Daí, que ao dissertar sobre a “fauna” marinha, Aleni tenha tido a certeza de vir a prender a atenção dos leitores.

Para completar a nossa imagem do mundo animal, podemos dizer que muitos segmentos encontrados no juan 5 de Zhifang waiji vieram mais tarde a ser integrados no Kunyu tushuo 坤輿圖説 (1674), um texto escrito por Ferdinand Verbiest (Nan Huairen 南懷仁; 1623–1688). Também podemos encontrar alguns dos nomes em Aomen jilüe 澳門記略 (prefácios 1751), uma das mais importantes obras chinesas sobre os primórdios de Macau, e noutros textos do período Qing. Como foi dito, Aleni deixou muitas marcas no Oriente.

Rumo a uma Dimensão Superior: O Vinho

Não seria justo descrever os missionários Jesuítas, instalados na China no período Ming, como seres supra-humanos exclusivamente interessados em pregar a sua religião e em desenvolver um trabalho académico sério. Não, de forma alguma. Através de Macau, os padres recebiam chocolate das Américas e também algum vinho. Para eles, aparentemente, o vinho era um tesouro. Durante as Dinastias Tang e Yuan, bebidas alcoólicas produzidas a partir de uvas estavam disponíveis em abundância no Norte da China, mas a Dinastia Ming seguiu por outro caminho; preferiram licores fortes e chá, enquanto noutras alturas o Governo tentava controlar, ou mesmo reduzir o consumo de bebidas espirituosas.

No entanto, os padres vindos do mundo mediterrânico, tinham crescido a beber vinho e precisavam dele. De facto, o vinho, nessa altura, era muito consumido na maior parte da Europa, possivelmente ainda mais do que hoje é. Não sabemos em que quantidades é que Aleni o conseguia obter, enquanto esteve em Zhejiang e em Fujian, a uma certa distância de Macau, mas pelo menos sabemos que ele não esqueceu as boas e velhas tradições do mundo latino.

Assim, não devemos ficar surpreendidos por ele se referir ao vinho no seu livro. Aqui, de novo, parece seguir o exemplo de Ricci. Este último, registou no seu mapa a excelência do vinho da Madeira. Aleni também menciona o vinho nas Insulae fortunatae, e claro que estas ilhas eram descritas como pequenos paraísos, tal como o seu nome sugere. Assim, aí tudo crescia por si só, o trabalho do campo era desnecessário, as pessoas viviam uma vida confortável – com vinho.

O vinho está disponível em muitos outros lugares. Sobre o vinho português dizia que não lhe conseguia resistir, que era “soberbo” (zui jia 最佳). Elejiya 厄勒祭亞 (Ellas, Grécia) também produz vinho, especialmente na ilha de Ge’erfu 哥而府 (Corfu). O vinho de Chipre é belíssimo” (ji mei 極美). Até mesmo em Yalemaniya 亞勒瑪尼亞 (Alemanha) podem encontrar-se uvas e vinho, como podemos ler na obra de Magini. Na verdade, toda a Europa tem vinho e, embora as pessoas estejam acostumadas a beber muito, não encorajam os outros a fazer o mesmo. De facto, ficar bêbado envergonha uma pessoa para o resto da vida – Aleni ajoelha-se perante a sua clientela.

O vinho pode ser conservado durante várias décadas; o vinho velho é maravilhoso e pode ser servido em ocasiões especiais, por exemplo, em bodas. Vinho, cerimónias e cortesia – estão de acordo com o conceito de li 禮, os ritos confucionistas. E também parecem estar de acordo com o que alguns académicos modernos dizem de Confúcio:

Acreditam que o grande mestre consumia regularmente jiu 酒, possivelmente vinho de uva (embora jiu seja um termo muito genérico). Claramente, pôr os princípios confucionistas em acção exige uma boa disposição espiritual.

A China foi, e ainda é, a principal cultura jiu, do mundo inteiro. Sem dúvida, vindo de Itália, Aleni foi bem-vindo no outro extremo do continente Euroasiático. O eixo espiritual tinha um lado muito prático. No entanto, havia uma pequena diferença: Ele também elogiava as azeitonas e o azeite, ambos desconhecidos na China….

As referências ao vinho no livro de Aleni e no mapa de Ricci parecem abrir mais portas. As Insulae fortunatae ficam no extremo ocidental. Tinham vinho, como já foi dito. As ilhas chinesas paradisíacas, as Penglai 蓬萊, ficam perto da costa de Shandong, a leste. Lendas antigos mencionam outras ilhas, lugares divinos cheios de maravilhas, localizados na mesma direcção. Nesta altura, a “Ilha dos Grous” vêm-nos à ideia. As direcções celestiais tiveram sempre importância no pensamento chinês. Por vezes, o Ocidente está associado ao metal. Assim, vista da China, Hierro / Tiedao perto da costa de Marrocos, fica no extremo ocidentalt; e isso também faz sentido.

No entanto, algumas coisas não se encaixam. Mu 木, para Madeira, deveria designar o leste, mas a Madeira fica perto das Canárias, no ocidente. Esse nome vem da palavra latina canis, que quer dizer cão. Ricci situou Gouguo, o “País do Cão”, perto do Estreito de Bering. Existe uma espécie de paralelismo intencional?? Cães no ocidente, cães no oriente? Pior ainda, do ponto de vista fonético, o nome chinês “Gouguo” lembra-nos o “Gog” Satanico (e Magog).

Mapas europeus registaram essas tribos no leste da Sibéria. Ricci tê-las-á colocado – juntamente com os nomes de outras tribos inspiradoras – perto do Estreito de Bering para simbolicamente impedir a Espanha de expandir a sua esfera de influência através do Pacifico para a China? Nos últimos anos do século XVI, Manila propôs-se realmente a atacar o Império do Meio! Os Jesuítas do Padroado sabiam disso. A Espanha nem sempre foi bem-vinda.

Mas, e Aleni? Ele não menciona Gouguo. Sente-se “em casa” em Zhejiang e em Fujian, não muito longe do domínio espanhol. Isso implica que existiam diferenças subtis entre o seu pensamento geo-político e os pontos de vista de Ricci?

Como podemos ver, o campo está aberto para investigações posteriores. Se tivesse nascido um pouco mais tarde, Confúcio teria provavelmente citado a biblía de forma descontraída: In principio erat vinum, et vinum erat apud Deum, et Deus semper erat felix. Aleni deixou pégadas gigantes, o seu Zhifang waiji, publicado há quatrocentos anos, é uma caixa de tesouros.

Fontes Seleccionadas

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D’Elia, Pasquale M.: Il mappamondo cinese del P. Matteo Ricci S. J. (Terza edizione, Pechino 1602) conservato presso la Biblioteca Vaticana. Città del Vaticano: Biblioteca Apostolica Vaticana, 1938.
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Nan Huairen 南懷仁 (=Ferdinand Verbiest): Kunyu tushuo 坤輿圖説. 2 cadernos, coleção Zhi hai 指海 / Baibu congshu jicheng 白部叢書集成.
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Ptak, Roderich: “Gouguo, the ‘Land of Dogs’, on Ricci’s World Map”, Monumenta Serica 66.1 (2018): 71–89.
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20 Mar 2023

Analectos – as conversas de Confúcio

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO II

為政 (Weizheng)

GOVERNAR

2.1. O Mestre disse: “Governar um país com virtude é ser como a Estrela Polar: permanecer no seu lugar, enquanto as outras estrelas volteiam em seu redor.”19

2.2. O Mestre disse: “Os trezentos poemas podem ser resumidos numa fase: ‘Pensar a direito’.”20

2.3. O Mestre disse: “Se o povo for guiado por regulamentos e mantido na ordem através de castigos, para se subtrair à severidade das leis o povo perderá toda a vergonha; mas se for guiado pela virtude e disciplinado pelos ritos, desenvolverá um sentido de honra e comportar-se-á de forma correcta.21

2.4. O Mestre disse: “Aos quinze anos, o meu coração só desejava o estudo. Aos trinta anos, estabeleci-me. Aos quarenta anos, não tinha dúvidas. Aos cinquenta anos, conhecia os mandatos que o Céu me destinara. Aos sessenta anos, os meus ouvidos estavam afinados. Aos setenta anos, podia seguir o que o meu coração desejava, sem transgredir o que é correcto.”22

2.5. Interpelado por Meng Yizi sobre a piedade filial, o Mestre respondeu: “Não a contraries”. Mais tarde, enquanto Fan Chi segurava as rédeas da sua carruagem, o Mestre contou-lhe: “Meng Yizi perguntou-me sobre a piedade filial e eu respondi-lhe: ‘Não a contraries’.” Fan Chi perguntou: “O que queres dizer com isso?” O Mestre retorquiu: “Enquanto vivos, serve os teus pais segundo os ritos; quando mortos, enterra-os segundo os ritos; depois, presta-lhes sacrifícios segundo os ritos.”23

2.6. 孟武伯問孝。子曰:「父母唯其疾之憂。」
2.6. Doutra vez, à mesma pergunta, o Mestre respondeu ao filho de Meng Yizi, Wubo: “Não lhes causar qualquer preocupação, para além da tua saúde”.

2.7. Ziyou24 perguntou sobre a piedade filial. O Mestre respondeu: “Hoje considera-se terem piedade filial os que nutrem os seus pais. Mas isso até aos cães e aos cavalos se proporciona. Se não lhes devotares respeito, qual será a diferença?”

2.8. Zixia perguntou sobre a piedade filial. O Mestre respondeu: “O que mais custa é mostrar-lhes boa cara (conter a expressão facial). Libertá-los de tarefas e servi-los em primeiro lugar comidas e bebidas, será que meramente isso pode ser considerado piedade filial?

2.9. O Mestre disse: “Posso falar um dia inteiro com Yan Hui sem que ele faça a menor objecção, como se fosse um idiota. Mas quando ele fica só, examina o que foi dito e tira as suas próprias conclusões. Yan Hui está longe de ser um idiota.”25

2.10. O Mestre disse: “Observa as suas acções, repara nos seus motivos, examina o que os satisfaz. (Se assim fizeres) quem poderá esconder-te qualquer coisa? Quem poderá esconder-te qualquer coisa?”26

2.11. O Mestre disse: “Pondera o antigo como meio de compreender o novo — tal pessoa pode ser considerada um mestre.”

2.12. A pessoa exemplar não é um mero utensílio.27

2.13. Zigong inquiriu acerca das pessoas exemplares. O Mestre respondeu: “Primeiro praticam aquilo que vão dizer, só depois o dizem.” 28

2.14. O Mestre disse: “As pessoas exemplares, ao associarem-se abertamente com outros, não seguem facções; as pessoas menores, as que seguem facções, não se associam abertamente com os outros.”29

2.15. O Mestre disse: “Estudar sem reflectir é inútil; reflectir sem estudar é pernicioso.”

2.16. O Mestre disse: “Tornar-se exímio numa qualquer doutrina heterodoxa não traz senão desgraça.”30

2.17. O Mestre disse: “Zilu31, será que te posso ensinar o significado de sabedoria? Saber aquilo que se sabe e saber aquilo que não se sabe – isto é a sabedoria.”

2.18. Zizhang estudava para os exames oficiais. O Mestre disse: “Se puderes escutar abertamente, deixa de lado aquilo de que não estás certo e fala cautelosamente do resto de modo a cometeres poucos erros; se puderes olhar abertamente, deixa de lado o que é perigoso e age cautelosamente em relação ao resto de modo a que, assim, tenhas poucos remorsos. Poucos erros nas tuas palavras, poucos remorsos das tuas acções — terás uma brilhante carreira.”32

2.19. O Duque Ai de Lu inquiriu Confúcio, perguntando: “O que se pode fazer para obter a lealdade do povo?” Confúcio respondeu: “Eleva aqueles que são verdadeiros acima dos que são corruptos e será tua a lealdade do povo; eleva os corruptos acima dos que são verdadeiros e o povo não será teu.”33

2.20. Ji Kangzi perguntou: “O que fazer para que o povo seja respeitoso, leal e zeloso? O Mestre respondeu: “Supervisiona o povo com dignidade e este será respeitoso; sê filial para com os teus maiores e bondoso com os teus mais novos e o povo será leal; eleva aqueles que têm talento e instrui os que não têm e o povo mostrará zelo.”

2.21. Alguém perguntou a Confúcio: “Por que não tens emprego no governo?” O Mestre respondeu: “Quando o Livro dos Documentos diz: ‘Tudo está na piedade filial! Ser filial para com os pais e amigável com os irmãos fará florir essas virtudes no governo’ – será que isto não é falar do exercício do governo? Será que não se pode governar sem fazer parte do governo?”34

2.22. O Mestre disse: “Não estou certo de que alguém que não cumpra a sua palavra seja viável enquanto pessoa. Se uma carruagem de grande porte não tiver uma barra para o seu jugo ou se uma pequena carruagem não tiver uma barra na sua cruzeta, como poderão ser conduzidas seja onde for?”

2.23. Zizhang perguntou: “Será possível saber o que se passou sob o Céu (天下 tianxia) daqui a dez gerações?”35
O Mestre respondeu: “A dinastia Yin adaptou a observação da propriedade ritual a partir da dinastia Xia e modo como o fez é conhecido. Os Zhou adaptaram a observação dos ritos a partir dos Yin e o modo como a alteraram é conhecido. Se houver uma dinastia que suceda aos Zhou, mesmo que tal ocorra daqui a cem gerações, a continuidade e a mudança poderão ser conhecidas.”

2.24. O Mestre disse: “Sacrificar a espíritos de antepassados que não os seus é bajulação. Não agir naquilo que é entendido como justo (義 yi) é cobardia.”

Notas

19. Um dos objectivos últimos do pensamento de Confúcio é a formação de homens capazes de governar com virtude. Alguns comentadores consideram que neste ponto estamos perto do conceito taoísta de não-acção (無為 wu wei), ou seja, que o governante deve unicamente exibir um comportamento virtuoso e exemplar, tornando-se num modelo para os outros homens que à sua volta giram como as estrelas volteiam em redor da fixa Estrela Polar. Assim, o governante ideal intervirá o menos possível no socius, ou seja, na vida das linhagens que, considerando o comportamento benevolente e recto do soberano, por ele pautarão igualmente as suas acções. De algum modo, aqui está descrita a utopia confucionista.
20. Referência de Confúcio ao livro que, segundo a tradição, ele próprio editou, o Livro das Odes (詩經 Shi Jing), que contém, na realidade, 305 poemas. É aqui citado, como súmula do próprio livro, um verso de uma dessas odes que fala poderosos cavalos de guerra criados para puxar carruagens e avançar a direito sem se desviarem do caminho desejado — tal como o pensamento e o comportamento devem avançar sem se desviarem dos seus fins virtuosos.
21. Neste ponto, estabelece-se uma oposição entre a prática de governar através de leis coercivas e de castigos e a prática de governar através de exemplos de virtude e do cumprimento dos ritos. Zhu Xi comenta: “Embora provavelmente não se atrevam a fazer nada de mal, a tendência para fazer o mal nunca os deixará”. Para o confucionismo, as meras leis ou as punições delas decorrentes não são o caminho para a governação. O governante deve, sobretudo, ser um exemplo de virtude, o que levará ao seu reconhecimento pelo povo e este deve conformar o seu comportamento aos ritos. A menorização das leis e dos castigos tornará o pensamento de Confúcio inimigo dos sábios legistas, como Han Fei Zi, por exemplo, que enformam o pensamento e a acção de Qin Huandi, o imperador que unificou o País do Meio em 221 a.E.C e fundou a dinastia Qin.
22. Aqui temos aquelas que muitos consideram as últimas palavras de Confúcio. Segundo a tradição, o Mestre terá morrido aos 72 anos. Este número levanta algumas suspeitas nas mentes mais cépticas, na medida em que se trata de um número extremamente correcto porque é um múltiplo de 9, a expressão numerológica da totalidade. Por exemplo, na mitologia chinesa, a invenção das armas e da forja é atribuída a Chiyou (蚩尤), um ser maléfico que morreu em batalha contra o Imperador Amarelo (黃帝 Huangdi), num combate mítico cuja reprodução ritual tem atravessado a história da China. Chiyou, cuja natureza aparece por vezes repartida em 72 (9×8) ou 81 (9×9) irmãos, tem um aspecto temível: cabeça de cobre com a testa em ferro e semelhanças bovinas. A tremenda batalha em que defrontou Huangdi surge recheada de contornos mitológicos, em que cada um arregimentou para o seu lado diferentes seres mitológicos: a sua legião de demónios espalha uma misteriosa neblina, no seio da qual Huangdi para se orientar inventa a bússola; depois o monarca derrota o seu inimigo graças a uma trompa mágica que imitava o grito do Dragão. Chiyou terá mesmo sido morto pelo Dragão Yin, o dragão da Chuva que, juntamente com Niu-pa, a deusa da Seca, secundava Huangdi. Duzentos anos antes da nossa era, esta figura terrível foi recuperada pelo primeiro imperador dos Han, Liu Bang (劉邦), que era suposto ostentar 72 sinais numa perna e lhe dedicou um sacrifício .
É por isso muito possível que estejamos aqui perante uma espécie de divinização de Confúcio, estabelecida por um percurso (dao) ascensional que começa pelo estudo até, aos 30 anos, compreender qual o seu lugar de excelência onde deve permanecer; para depois, aos 40 anos, adquirir certezas sobre o mundo e as coisas, não sendo já surpreendido e, aos 50 anos, entender qual o destino que o Céu (tian) lhe impusera. Aos 60 anos, de “ouvidos afinados”, distinguia imediatamente as palavras certas das erradas e, finalmente, aos 70 anos, era suficientemente sábio para agir com toda a liberdade sem que com isso causasse qualquer desarmonia. Assim, pelo menos para os neo-confucionistas, liderados por Zhu Xi, Confúcio era o Grande Sábio, um Santo, que imolava os “iluminados” do budismo.
23. Falando da governação, emerge inevitavelmente o tema da piedade filial, na medida em que o confucionismo estabelece uma relação entre a hierarquia e os deveres no seio da família e a hierarquia e os deveres na sociedade. O soberano ou o superior hierárquico deverão ser respeitados como respeitados são o pai ou o irmão mais velho. Os pontos seguintes elaboram de modos diversos esta questão. Meng Yizi 孟懿子 (531-481 a.E.C.) pertencia a um dos mais importantes clãs do reino de Lu (parte da actual província de Shandong), onde vivia Confúcio. Fan Chi (樊迟) era um discípulo menor que aparece por vezes nos Analectos.
24. Ziyou 子游 (nascido circa 506 a.E.C.), nome de cortesia de Yan Yan 言偃, foi um dos dez discípulos sábios de Confúcio (Kong men shi zhe 孔門十哲). Ziyou é frequentemente mencionado juntamente com Zixia 子夏. Era muito mais novo que Confúcio e só se tornou um seguidor do Mestre quando este já era idoso. Confúcio estimava-o especialmente pela sua educação literária. Na sua juventude, Ziyou ocupou o cargo de magistrado de Wucheng 武城 (hoje Feixian費縣, em Shandong). A sua administração era orientada pelo princípio confuciano de “amar o povo”. Quando o Mestre passou pela cidade de Wucheng, ficou muito satisfeito com a música que ali tocava. Ziyou também criticou os discípulos de Zixia, dizendo que estavam “suficientemente realizados em aspergir e varrer o chão, em responder e retorquir, em avançar e recuar, mas estes são apenas os ramos da aprendizagem, e foram deixados na ignorância do que era essencial”. Ziyou sublinhou também a importância da contenção na aplicação da moral. Por exemplo, segundo Ziyou, não era apropriado exagerar o luto. Após a morte de Confúcio, Ziyou tornou-se num professor algo desviado do caminho do Mestre. Mais tarde, foi duramente criticado por Xunzi 荀子 e nunca teve a mesma importância de outros discípulos de Confúcio.
25. Yan Hui 顏回 (521-481 a.E.C.) foi o discípulo mais importante e preferido. Nascido em Lu 魯, tal como Confúcio, o seu pai Yan Wuyao 顏無繇, foi um dos primeiros seguidores do Mestre. Trinta anos mais novo que Confúcio deve ter morrido em tenra idade. Yan Hui cresceu numa família pobre, mas tinha um amor imenso pelo estudo. Por isso, nunca aceitou um cargo e preferiu ser discípulo de Confúcio. O Mestre estimava desmesuradamente Yan Hui e elogiava-o pelo seu comportamento nobre e benevolente. Para Confúcio, era um modelo de virtude e um igual a si próprio, progredindo a cada dia no caminho da benevolência. Outros discípulos invejavam Yan Hui pela sua capacidade de saber tudo sobre um assunto. A morte prematura de Yan Hui comoveu profundamente o Mestre que terá gritado: “o Céu destrói-me!”. “Se não chorasse amargamente por este homem, por quem haveria de chorar?”, terá perguntado. Yan Hui parecia, por vezes, desesperado na sua esperança de compreender os ensinamentos do Mestre. “Olhei-os e pareciam estar mais altos; tentei penetrá-los e pareciam estar mais firmes; olhei para eles à minha frente e de repente pareciam estar atrás. O Mestre, com o seu método ordenado, conduz habilmente os homens. Ele ampliou a minha mente com o estudo e ensinou-me as restrições da propriedade ritual. Quando desejo aceder ao estudo das suas doutrinas, não o posso fazer, e tendo exercido toda a minha capacidade, parece haver sempre algo que se ergue à minha frente e, embora deseje segui-los e agarrá-los, não encontro realmente maneira de o fazer”. O Mestre instruiu-o nas quatro evasivas (não olhar, não ouvir, não falar, nada fazer contrário à benevolência), e Yan Hui prometeu seguir esta directriz embora fosse “deficiente em inteligência e vigor”. Foi exactamente por causa desta obediência obstinada que Confúcio também criticou Yan Hui como não sendo de grande ajuda para ele, porque nada havia que o Mestre dissesse que não o deleitasse.
26. Interessante esta deriva psicologista de Confúcio que a considera como parte da arte de governar. O governante terá de desenvolver a sua própria capacidade de ler o carácter alheio, além das aparências, de modo a entender as motivações mais profundas dos que o rodeiam e usá-las a seu favor no estabelecimento de uma administração recta e benevolente, aceitando uns e rejeitando outros.
27. Este famoso adágio foi sujeito a diversas interpretações. Por exemplo, a pessoa exemplar (junzi)não deverá ser entendido como alguém capaz de desempenhar uma função particular (como um utensílio/ferramenta), como por exemplo, um carpinteiro que se especializa no trabalho da madeira; pelo contrário, terá uma visão mais abrangente do mundo e das coisas. Neste sentido, poder-se-á argumentar que nele o cultivo de si não passa unicamente pela aquisição de conhecimentos específicos, mas primordialmente pela formação ética, sendo capaz da Prática do Meio (Zhong Yong). Confúcio parece assim aconselhar o governante a não desperdiçar os talentos de um junzi, utilizando-o apenas para uma função, sem aproveitar todo o seu potencial, sobretudo a sua capacidade de produzir moral e assim ser um exemplo para os outros. André Levy, contudo, traduz esta frase de modo diferente. Para ele, deve-se ler: “O homem de qualidade (junzi) não trata ninguém como um utensílio” e questiona: “não concederia (esta exegese) a Confúcio um pensamento mais elevado, conforme à sua concepção de altruísmo, amor e respeito pelo homem enquanto tal?”
28. Esta fórmula pode ser interpretada de diferentes modos. A pessoa exemplar só ensina o que já comprovou pela prática ou que assim estimula os outros a pôr em prática o que pretendem afirmar antes de o fazerem.
29. A existência de várias facções no seio dos reinos era, para Confúcio, um dos grandes problemas da sua época.
30. Por doutrinas heterodoxas, refere-se outras escolas de pensamento, nomeadamente o taoísmo e o moísmo, a quem pouco importava a tradição ritual e política que vinha de Yao e Shun e dos fundadores da dinastia Zhou, que Confúcio procurava emular. A desgraça seria o esfarelamento do frágil império Zhou em diversos reinos que, constantemente, combatiam entre si. O facto de assentar as ideias na tradição, numa espécie de Idade do Ouro, garantia ao Mestre a sua rectidão.
31. Zilu 子路 (542-480 a.E.C.), nome de cortesia de Zhong You 仲由, foi um dos dez discípulos. Nasceu em Bian 卞 (hoje Sishui 泗水, em Shandong) no reino de Lu 魯 e cresceu pobre. Era o mais velho dos discípulos de Confúcio, sendo apenas nove anos anos mais novo que o Mestre. Zilu tinha um carácter simples, corajoso e decidido, mas era também grosseiro, inculto, ousado e guerreiro; e não gostava particularmente de discussões académicas. Venerava muito Confúcio e protegia-o onde quer que fossem. Confúcio gostava do discurso directo de Zilu, que nada ocultava. Zilu seria, disse o Mestre, o único a segui-lo sobre uma jangada e a flutuar sobre o mar. Morreu cruelmente durante uma revolta no reino de Wei. Mêncio considerou-o igual aos sábios governantes do passado.
32. Zizhang é um dos 72 discípulos mais importantes de Confúcio, criticado pelos seus pares pela pressa que revelava em adquirir um posto oficial. O mais importante é cultivar as virtudes interiores, que segundo o ruismo advêm do Céu, como a benevolência, a rectidão, a autenticidade, etc. Se o fizerem, em princípio, as recompensas, como tornar-se ministro ou conselheiro, serão alcançadas, embora tal não seja certo. Mêncio diz: “Os antigos cultivavam as honras celestes e as honras humanas seguiam-se naturalmente. Hoje as pessoas cultivam as honras celestes apenas como um meio para obter honras humanas, e uma vez que recebem as segundas, abandonam as primeiras. Isto é uma ilusão e, no final, só pode levar ao desastre.”
33. Jiang Xi 江熙 comenta: “O Duque Ai foi presenteado com uma oportunidade única na vida quando o seu reino se encheu de dignos sábios. Se ele os tivesse simplesmente tratado e empregado, poder-se-ia ter tornado no verdadeiro rei de Lu. Infelizmente, preocupava-se apenas com os prazeres sensuais e deixou o controlo da administração a um bando de malfeitores. Como resultado, o coração do povo encheu-se de ressentimentos. O Duque Ai estava perturbado com este estado de coisas, e por isso fez esta pergunta a Confúcio.”
4. Esta resposta de Confúcio sublinha a contribuição de cada um para o governo, ou seja, do dever cívico, independentemente do facto de fazer ou não parte da administração do reino. Assim, a governação não está apenas nas mãos dos poderosos mas disseminada entre o povo, na medida em que o exemplo de cada um pode produzir resultados concretos ao nível de toda a sociedade. Resumindo, ninguém, rico ou pobre, governante ou governado, se pode eximir ao dever de viver com benevolência, cumprir a piedade filial e os ritos, contribuindo assim para a harmonia social e a boa governação.
35. Eis uma passagem que provoca sérias dissensões entre exegetas e comentadores. Segundo alguns, a pergunta de Zizhang refere-se ao futuro: será possível saber o que acontecerá sob o Céu daqui a dez gerações? Contudo, lida assim a pergunta, a resposta de Confúcio seria de uma atroz banalidade e, de certo modo, transviada. Pelo contrário, a ser uma questão sobre o que seria conhecido do passado daqui a dez gerações, a resposta do Mestre enquadra-se na sua crença de que algo do passado sempre permanece no futuro, ou seja, há sempre continuidade apesar das mudanças. Além disso, inscreve-se na importância que o confucionismo outorga ao conhecimento das instituições do passado. Um sintoma de mudança significativa aparece nos ritos e nas alterações que vão sofrendo com as mudanças histórico-sociais.

16 Mar 2023

Quinta viagem de Zheng He (VIII)

Quando Zheng He regressou a Nanjing da quarta viagem marítima, o que ocorreu na 7.ª lua do 13.º ano de Yongle (ano Yi Wei, 乙未), 12 de Agosto de 1415, trouxe consigo muitos enviados dos países visitados, para além de Sekandar, o usurpador do poder no Sultanato Pasai de Samudera. Mas o Imperador Yongle encontrava-se fora, pois tinha ido ao Norte, à Mongólia, combater pela segunda vez no seu reinado os mongóis e apesar de ter saído vitorioso ainda não regressara à capital, chegando apenas a 14 de Novembro de 1416.

À sua espera encontrou embaixadores de 18 ou 19 países e reinos, da Ásia [Champa, Pahang, Java, Palembang (Jiugang ou Jugang), Malaca, Samudera, Lambri, Ceilão, ilhas Maldivas, Cochim, Calicute, Shaliwanni (local indeterminado)], da Península Arábica [Ormuz, Ash-Shiher (La Sa ou Las’ã) na costa de Hadramaut no Iémen, Adem] e de África [Mogadíscio, então no seu apogeu económico e Brava (Bu-la-wa, ou Barawa, cidade na costa da Somália com bom porto e muita actividade comercial, antiga capital do Sultanato de Tunni (século IX-XIII), e pertencia então, a par com Mogadíscio, ao Império Somali de Ajuran) e Melinde (actual Quénia, que na quarta viagem quando a frota chinesa aí passou em 1414, o governante enviara uma girafa)].

Na corte Ming foram recebidos com uma grande cerimónia realizada a 19 de Novembro de 1416, oferecendo o Imperador prendas a cada um. O enviado do Raja de Cochim (Kezhi) teve um tratamento especial por ser esse reino tributário desde 1411 da China e o Raja requeria ao Imperador que o nomeasse ministro seu subordinado e o investisse como Rei, pedindo o selo oficial como representante de Yongle. O Imperador concedeu-lhe tais desejos e enviou-lhe uma carta onde atribuiu a Cochim o título .

Também Megat Iskandar Shah (母干撒于的儿沙, Mu-Gan Sa-Yu-De-Er Sha ou Xá Muhammad) aqui viera para comunicar ao Imperador ter o seu pai, o Rei de Malaca Parameswara, conhecido em chinês por Bai-Li-Mi-Su-La (拜里迷苏剌), falecido em 1414. Nesse mesmo ano de Jia Wu (甲午), 12.º ano do reinado de Yongle, embarcara para a China, segundo refere o Registo Histórico da dinastia Ming compilado na dinastia Qing, mas Fei Xin (费信) no seu livro Xingcha Shenglan (星槎 胜览) diz ter o Xá (Shah) ido à China no 13.º ano de Yongle. Quando foi recebido, o Imperador nomeou-o Rei de Malaca.

A despedida aos enviados realizou-se na corte Ming a 28 de Dezembro de 1416 onde receberam de Yongle túnicas de seda. No mesmo dia, Inverno do 14.º ano de Yongle (1416, ano Bing Shen, 丙申), o Imperador ordenou a realização da quinta viagem, instruindo Zheng He a escoltar os enviados dos 18 estados asiáticos e africanos no regresso às suas terras. Tinham vindo à corte Ming apresentar tributos e aqui estavam há quase ano e meio. O Imperador entregou ao Almirante cartas imperiais e prendas para levar aos governantes por onde a viagem iria passar.

VIAGEM entre 1417 e 1419

No 15.º ano de Yongle (ano Ding You, 丁酉, 1417) saiu do porto de Liujia, em Taicang, a armada capitaneada por Zheng He com a missão de se dirigir ao Oeste. Primeiro passou por Quanzhou, onde o Almirante visitou a cidade fundada em 711 no reinado da dinastia Tang.

Fora um notável porto na costa de Fujian, ponto de partida da Rota Marítima da Seda e rapidamente se tornara na China um dos quatro mais florescentes no comércio com o estrangeiro. Atingira o apogeu na dinastia Song, mantendo-se como principal porto durante a dinastia Yuan e contou com uma grande comunidade muçulmana até perder em dez anos toda a sua influência devido à rebelião muçulmana Ispah (1357-1366). O porto entrou em declínio e na dinastia Ming estava ligado exclusivamente às trocas com as Filipinas.

No 16.º dia do 5.º mês do 15.º ano de Yongle (31 de Maio de 1417) Zheng He em Quanzhou foi ao Templo da deusa Mazu, naquele tempo chamado Tian Fei Gong e hoje com o nome de Tian Hou, no monte Jiuri e queimando incenso pediu à divindade protecção para lhe conceder uma viagem segura. No monte Ling no Cemitério Islâmico (ShengMu) encontra-se a estela XingXiang mandada erigir por Pu Heri (蒲和日), oficial que viajava na armada e onde está referido ter o Imperador enviado Zheng He em missão diplomática a Ormuz e a outros países.

Com a mesma narrativa, outra estela (bei) ligada à quinta viagem marítima e agora desaparecida, encontrava-se na ponte Wuwei (无尾), onde se situava o porto Xunmei (浔美) junto ao monte Longtou e nela estava referido no 17.º dia do 5.º mês o Tai Jian [Grande Eunuco] Zheng He ter aqui permanecido para segurança da armada devido aos ventos fortes. Nos anos 70 do século XX, o local do porto desapareceu devido aos aterros, tal como o bei, que também fora mandado fazer por Pu Heri. Zheng He em Quanzhou embarcou muita porcelana para as trocas e prendas e seguiu viagem.

Em Vijaya (Qui Nhon) a armada dividiu-se, uma frota foi à ilha de Java e a Palembang, em Sumatra, e o grosso da armada seguiu para Malaca. Daí passou ao Ceilão onde novamente se separou, indo uma frota directamente para a costa africana, passando ao Sul das ilhas Maldivas e chegou à costa da Somália (no Corno de África).

Já a armada navegou ao longo da costa indiana, passando por o importante porto de Cambaia (Khanbayat, actual Guzerate no Noroeste da Índia, cujos mercadores tinham então relações privilegiadas tanto com Adém como com Malaca) e na Península Arábica foi a Ormuz, atingindo Oman. Aí a armada voltou a dividir-se, rumando uma frota para o Mar Vermelho e ainda na costa Arábica visitou Las’ã [Ash-Shiher, um dos portos mais antigos e importantes do Iémen, ao qual Duarte Barbosa se referiu:

“uma vila de mouros que chamam Xaer e pertence ao reino de Fartaque. Lugar em que há grandes quantidades de mercadorias, (…) muito bons cavalos que na terra há, os quais cavalos são muito maiores e melhores que os que vêm de Ormuz. Também na terra nasce muito incenso e há muito trigo, carnes, tâmaras e uvas. É este porto de mui grande escala de muitas naus e nasce aqui tanto incenso que se leva para todo o mundo.”

Shiher era a capital de um pequeno sultanato e o principal porto da costa de Hadramaut, a meia distância entre Adem e o cabo Fartaque, (actual Oman).] No Sultanato do Iémen reinava Al-Malik al Nasir da dinastia Rasulid e talvez tenha sido Zheng He quem entre 30 de Dezembro de 1418 e 27 de Janeiro de 1419 esteve em Las’ã (La Sa) para trazer de volta o enviado iemenita Kadi Waqif ad-Abdur Rahman bin Zumeirem. A frota chegou nos últimos dias de Janeiro a Adem e foi a Ta’izz [capital do Sultanato do Iémen na dinastia Rasulid] de onde saiu depois de 19 de Março e seguiu para Jedá, na costa do Mar Vermelho [actual Arábia Saudita].

De Oman a armada continuou para Mogadíscio, para se juntar à que tinha navegado directamente do Ceilão, passando primeiro por a ilha de Socotorá (à entrada do Mar Vermelho). Em Mogadíscio, nessa altura no apogeu económico e comercial, reinava então a dinastia Ajuran, uma monarquia islâmica cujo íman enviou como embaixador à China Sa’id para estabelecer relações diplomáticas e como tributo levou ouro, incenso e tecidos, assim como um leão, hipopótamos, girafas e gazelas, estes três talvez tenham seguido na viagem seguinte. De Mogadíscio chegaram a Mombaça, depois de ir a Melinde levar o embaixador.

A viagem terminou em Nanjing no 7.º mês lunar do ano 17.º de Yongle (ano Ji Hai 己亥, 8 ou 17 de Agosto de 1419) e trouxe dezasseis embaixadas cheias de prendas e um grande número de animais enviados tanto da Ásia como da África, sendo recebidos um mês depois por o Imperador, mas não em Nanjing pois este desde 1417 aí não voltou.

Entre eles estava o Sultão de Malaca Megat Iskandar Shah, sua esposa e filho, que voltava pela segunda vez à corte Ming para pessoalmente apresentar tributo a Yongle e queixar-se da invasão de Malaca por o Reino do Sião.
Esta fora a maior de todas as viagens feitas por Zheng He e em sinal de gratidão, por o envio dos seus representantes, os governantes ofereceram como tributos um grande número de animais exóticos. Ormuz deu um leão, um leopardo e rinocerontes, tendo Brava oferecido camelos dromedários e avestruzes e Adem uma girafa. Vieram também zebras e antílopes, além de outros animais de Java e Calicute como tributo ao Celeste Império.

15 Mar 2023

A evolução sociopolítica e jurídica da mulher chinesa: passado e presente de um caminho de luta (I)

Por Ana Maria Saldanha

Quando pensamos na evolução sociopolítica e jurídica da mulher chinesa, somos, de imediato, remetidos para valores, ideias e construções socio-imagéticas que buscam as suas raízes no confucionismo (o qual se impõe como sistema de valores e de pensamento na China Imperial, em particular no período da Dinastia Han (206-220 AEC)).

É, deste modo, fundamental compreender aquela proposta de sistematização do pensamento para que possamos refletir, por exemplo, sobre o nascimento, nos finais do século XIX, de um movimento feminista chinês e o porquê de este se erguer, precisamente, como oposição aos valores confucionistas.

Aliás, a ideia de submissão patriarcal remonta, precisamente, ao século XIX, quando Karl Marx e Friedrich Engels refletem sobre este tema, estabelecendo que aquela nos remete para uma relação ilimitada de dominação exercida por homens. Sobre a relação entre patriarcado e confucionismo, já Alfred Doeblin, estudioso do confucionismo, considerava que, na China, a subordinação secular das mulheres chinesas advinha de uma organização patriarcal imposta pelo sistema de pensamento confucionista.

Da China Imperial à Revolução de 1949: pequenos passos para o grande salto que virá

Ainda que na China Antiga tenham existido, como afirma Capdeville (2018), sistemas matrilineares (como é o caso da minoria étnica Na), predominaram, até ao século XX, sistemas patrilineares; o confucionismo, pela sua parte, virá acrescentar a este princípio patrilinear o princípio da hierarquia social.

A união do princípio patrilinear com o princípio confucionista advogador de um sistema social, hierarquicamente organizado, relegará, em definitivo, a mulher chinesa, para um patamar inferior, colocando-a num papel subalternizado onde predomina, nos diversos domínios da vida, a figura masculina. A linhagem da família era, então, assegurada pelos membros masculinos, o que fazia com que as funções atribuídas à mulher se circunscrevessem ao círculo familiar.

Por conseguinte, a mulher dever-se-ia submeter à autoridade masculina – primeiro, do pai, depois do marido e, finalmente, do(s) filho(s) -, sendo-lhe social e imageticamente atribuídas virtudes específicas, das quais se destacam a obediência, a docilidade, a piedade, a devoção e a castidade.

Neste contexto, à subalternização social da mulher, advogada pela proposta confucionista, juntar-se-ão atributos de beleza, especificamente femininos, os quais, por sua vez, implicavam a mutilação corporal. Referimo-nos, por exemplo, à prática – que se expandiu durante a Dinastia Song (970-1279) – de quebrar os ossos do pé das crianças do sexo feminino, mormente das classes mais abastadas, para que, depois, se procedesse ao seu enfaixamento, com vista a manter, para o resto da vida, um pé de tamanho extremamente reduzido.

Não deixa de ser significativo o facto de um ato mutilador e provocador de sofrimento, a uma criança do sexo feminino, ser no plano social, indicador de riqueza de uma família, já que o enfaixamento dos pés indiciava que a mesma se encontrava num plano económico-social superior ao das demais.

Seria, no entanto, necessário esperar pelo século XIX para que reivindicações femininas vejam a luz do dia. Com efeito, é neste século que assistimos ao nascimento, de facto, de um movimento feminista chinês: fortemente influenciado pelo exterior, este movimento terá como ponto de partida contactos de mulheres chinesas (sobretudo, de classes abastadas, que têm a oportunidade de estudar no exterior), com mulheres e organizações sociopolíticas de outros espaços sociogeográficos, nomeadamente japonesas, europeias e estadunidenses. Surgem, então, revistas femininas, que se debruçam sobre o ser mulher.

Ainda que surja quase duzentos anos depois da sua congénere europeia (a primeira revista feminina europeia é publicada em Inglaterra, em 1693), a China verá publicada a primeira revista chinesa destinada às mulheres, em 1898. As primeiras jornalistas chinesas vão, por seu lado, ter um papel fundamental na reflexão e denúncia do papel subalterno da mulher chinesa e será nas revistas nas quais participam que surgem plasmadas as primeiras reivindicações, especificamente femininas: educação das mulheres, abolição dos pés enfaixados e direitos iguais entre homens e mulheres.

Numa aliança entre feminismo e patriotismo, a educação das mulheres é defendida numa perspetiva nacional: partindo-se do pressuposto que a educação das mulheres é fundamental para uma educação de qualidade dos filhos daquelas, a educação das mulheres teria um impacto qualitativamente importante na melhoria do nível geral do povo chinês e, por conseguinte, tornaria a China num país mais forte. A educação das mulheres era, neste sentido, apresentada como uma necessidade para os próprios homens, já que, caso as mulheres não tenham acesso à Educação, os homens terão um papel de somenos importância, na sociedade.

A reflexão sobre o papel sociopolítico da mulher prosseguirá, sendo posteriormente impulsionada pela revolução de 1911 e pela sequente instauração da República, em 1912. Com efeito, este momento histórico marcará uma alteração qualitativa na condição das mulheres, na China: basta referir, a título de exemplo, a proibição do enfaixamento dos pés e a abertura de escolas mistas. Ainda assim, seja no plano sociopolítico, seja no plano jurídico, a mulher continuava a ter um papel subalternizado, pelo que a Constituição elaborada pela Assembleia Legislativa de Nanjing (tornada pública a 11 de março de 1912), não prevê, por exemplo, o sufrágio feminino ou a elegibilidade das mulheres – para desapontamento, aliás, das então sufragistas chinesas.

Pensar o papel da mulher, nas várias esferas da sociedade, tinha-se, contudo, tornado num tema que não mais poderia ser ignorado. É assim que, neste início de século, revistas e outras publicações abordarão o tema da condição feminina, denunciando a subalternidade da mulher e refletindo sobre uma igualdade desejada, então ainda não alcançada. Neste âmbito, destaca-se a revista Xin Qingnian (Nouvelle Jeunesse), publicada em 1915 e cujos editores – Chen Duxiu e Li Dazhao – se tornariam, mais tarde, líderes históricos do Partido Comunista Chinês (PCC).

A emancipação das mulheres vai, assim, encontrar-se no centro de vários debates, sendo abordadas temáticas até então silenciadas, como a (denúncia da) moral confucionista, o casamento, o concubinato, a noção unilateral de castidade, os preconceitos contra o casamento de viúvas e o encorajamento do suicídio feminino (que então se fazia, em nome da virtude e da lealdade). Na denúncia e debate que a partir de então se enceta, o tema da desigualdade entre homens e mulheres, nos diferentes planos da sociedade, volta a ser abordado, em 1919, no decorrer do Movimento 4 de Maio (que havia tido como pano de fundo a defesa da territorialidade chinesa, face às pretensões japonesas, na sequência dos acordos de Versalhes).

Este momento constituirá um clímax na história do feminismo na China, sendo marcado pela publicação de revistas de melhor qualidade, nas quais têm um papel ativo um grande número de mulheres. Publicam-se, a partir de então, várias traduções da literatura ocidental, abandonando-se a publicação de artigos que exaltavam os méritos das boas esposas e das boas mães, reivindicando-se, ao invés, o direito ao amor, à educação, à independência económica, uma educação igual entre rapazes e raparigas, o direito à herança e o controlo da natalidade.

Muitos daqueles que viriam a tornar-se destacados militantes comunistas colaboraram na imprensa que nasceu com o Movimento 4 de Maio: Chen Duxiu, Chen Wangdao, Li Dazhao, Qu Qiubai, Deng Yingchao ou Xiang Jingyu. Gradualmente, contudo, muitos destes autores chegarão à conclusão de que apenas uma mudança sociopolítica permitirá alcançar uma nova posição social da mulher, na China.

Ainda que os anos entre 1915 e 1919 tenham correspondido a uma idade de ouro do feminismo na China e que, nos grandes centros urbanos, as mulheres educadas defendessem a igualdade sexual, o direito das mulheres à educação, o direito das mulheres ao amor e o direito das mulheres ao casamento livre, a escolarização, mesmo nas escolas públicas, continuava a ser apanágio de uma elite sociocultural que se limitava, sobretudo, aos membros femininos de famílias urbanas privilegiadas. Na realidade, a posição das mulheres chinesas, fora dos grandes centros urbanos, permanecia inalterada, enquanto estruturas e práticas morais da China Imperial persistiam: a prática de enfaixar os pés, por exemplo, prolongou-se até à década de 1950, nomeadamente em espaços rurais remotos.

As reivindicações das mulheres chinesas continuarão, anos depois, a fazer-se ouvir, desta vez no interior do Partido Comunista Chinês (PCC), fundado em 1921.

O PCC passará, a partir de então, a ter um papel de relevo na denúncia da condição feminina e na necessidade de se repensarem os valores sobre os quais a desigualdade da mulher assentava. É assim que, no final da década de 1930, o PCC, nas zonas rurais por si controladas, vai, gradualmente, integrar as mulheres nas atividades políticas e económicas. Este envolvimento das mulheres vai ter como consequência a sua libertação da esfera patriarcal e familiar, trazendo-as, finalmente, para um domínio que, secularmente, lhes havia sido negado: o da esfera pública.

Vale a pena relembrar que data de 1931 o Regulamento sobre o Casamento, publicado na então República Soviética da China (nome dado aos territórios que, então, se encontravam sob o controlo do PCC). Estipula-se, então, uma idade mínima para o casamento (18 anos, para as mulheres, e 20 anos, para os homens), a obrigação de declarar o casamento às autoridades, a proibição da poligamia e do concubinato, a autorização para que os filhos escolham, entre os sobrenomes dos pais, aqueles que atribuirão aos filhos, e o divórcio por mútuo consentimento. Segundo Mallet-Jiang (2018), trata-se, precisamente, do primeiro texto legal que codifica a prática do casamento, entre indivíduos livres e iguais.

Na Lei Fundamental da República Chinesa Soviética, publicada em 1934, fixam-se as oito horas, como jornada máxima de trabalho para adultos (enquanto se regulamentam as seis horas de trabalho, para adolescentes de dezasseis a dezoito anos, e as quatro horas de trabalho, para crianças de catorze a dezasseis anos). Consagra-se o princípio de pagamento igual para trabalho igual e disposições especiais regulam as condições do trabalho feminino e infantil.

Em 1934, o PCC foi, contudo, forçado a deixar o Soviete de Jiangxi, então sob os ataques dos Nacionalistas do Kuomintang, e os comunistas iniciam uma fuga, de mais de um ano, através das montanhas, para as regiões mais remotas do oeste do país, que ficaria conhecida como Longa Marcha.

Cerca de duzentas mulheres fizeram parte desta Longa Marcha (ainda que apenas algumas dezenas tivessem chegado ao destino final – Yan’na), tendo contribuído para a organização e operações quotidianas, cuidando da comunicação com os camponeses (educação, médica, propaganda) e de serviços de logística para os soldados. Estas mulheres são, então, consideradas modelos de virtude comunista, nascendo a concepção da mulher virtuosa revolucionária (concepção esta que procura integrar todas as mulheres proletárias). Este modelo seria, a partir de então, incansavelmente transmitido através de todos os tipos de ferramentas de propaganda.

A criação da China Popular: um passo de gigante para uma igualdade secularmente negada

No campo da historiografia do movimento feminista chinês, da semiótica e da representação, é importante ressaltar a obra de Julia Kristeva, publicada em 1974, Des Chinoises. Este trabalho resulta de uma viagem que a autora realizara à China, na companhia de Rolland Barthes e de Philippe Sollers, no qual Kristeva, depois de analisar a situação analítica e histórica das mulheres ocidentais (a qual considera resultar do monoteísmo e do capitalismo), nos conduz pela família chinesa e pela situação das mulheres chinesas. Assinala, então, que, no início do século XX, as chinesas haviam participado no ataque à velha moral confucionista, a qual, assentando em valores feudais e patriarcais, se encontrava no cerne do domínio secular masculino. Kristeva assinala, deste modo, que a participação daquelas mulheres, nas lutas sociais e políticas, ao longo do século XX, havia influenciado profundamente as massas estudantis e camponesas (ainda que, segundo Kristeva, uma vez criado o Partido Comunista Chinês, as ativistas feministas tivessem optado pela luta de classes, em detrimento da luta pelos direitos das mulheres).

A autora assinala, ainda, que foi sob a influência de Mao Zedong que as mulheres obtiveram mais direitos (no plano jurídico) e um maior relevo social, assumindo, crescentemente, na República Popular, cargos e tarefas de responsabilidade.

Kristeva enceta, na realidade, um estudo do movimento feminista chinês, considerando que o mesmo não se deve desligar do movimento revolucionário posterior, assinalando não apenas a relevância do papel sociopolítico da mulher chinesa, ao longo do século XX, como a sua ligação indiscutível com as transformações ocorridas na China, nomeadamente depois de 1949.

Com efeito, ao permitir uma rutura definitiva com a China feudal, a Revolução de 1949 permitiria dar um salto qualitativo na igualdade entre homens e mulheres, quer no plano político, quer no plano familiar, quer, ainda, no plano religioso. Neste sentido, a mudança organizativa sociopolítica chinesa, operada na segunda metade do seculo XX, é concomitante com uma evolução do papel da mulher no plano sociopolítico, e consequentemente jurídico.

Já no Livro Vermelho, Mao Zedong assinalava que, ao longo da história chinesa, o homem havia estado sujeito à dominação de três sistemas de autoridade: a autoridade política, a autoridade familiar e a autoridade religiosa. A mulher, por seu lado, para além de estar submetida a estes três sistemas de autoridade, encontrava-se, ainda, submetida à autoridade masculina. O exercício destas quatro autoridades constituía, aliás, segundo Mao, a própria essência ideológica e moral do sistema feudal-patriarcal.

A República Popular iria, deste modo, contrariar a base ideológica da organização socioeconómica anterior, levando avante profundas transformações no plano simbólico, material e jurídico, com o objetivo de pôr fim aos mecanismos políticos e sociais que se encontravam subjacentes à desigualdade histórica entre o homem e a mulher.

Assim, por exemplo, aquando do Grande Salto em Frente (1958-1960), a força de trabalho representada pelas mulheres vai revelar-se fundamental, sendo crescente a sua participação no trabalho produtivo. Aliás, para que a coletivização do setor agrícola se operasse, era essencial a plena inserção da mulher no trabalho produtivo, pelo que urgia socializar todas as tarefas necessárias e libertar as mulheres das incumbências domésticas. Neste contexto, são criadas creches e cantinas, o que permitirá que, não apenas no plano doméstico, mas também (macro)económico, homens e mulheres, cada vez mais, se aproximem.

A lei da reforma agrária, promulgada em 1950, garantia os direitos de propriedade às mulheres, na mesma base que os homens, enquanto outros dispositivos legislativos promoviam o casamento democrático, baseado na livre escolha entre parceiros monogâmicos, com direitos iguais para ambos os sexos e a proteção dos interesses legítimos das mulheres. Em 1953, e de acordo com os regulamentos da era Yan’an, a lei do voto foi publicada: garantia-se, deste modo, o direito de voto das mulheres.

A Lei Eleitoral da República Popular da China estipulava, aliás, que as mulheres gozavam dos mesmos direitos de voto e de eleição que os homens. Por outro lado, como parte da força de trabalho, as mulheres são chamadas a participar na construção da nova sociedade socialista e estipula-se que devem receber o mesmo pagamento que os homens, pelo mesmo trabalho: por meio da transformação da sociedade, buscava-se a verdadeira igualdade entre homens e mulheres.

Ainda assim, a igualdade nas várias esferas (social, política, económica, jurídica) ainda estava por alcançar. Será necessário esperar pela Constituição de 1982 da RPC para que fiquem juridicamente consagradas, na Lei Fundamental do país, medidas em defesa dos direitos das mulheres. Consagra-se, então, a igualdade entre mulheres e homens, em todas as esferas da vida: mesmos direitos no acesso a um trabalho, salário igual para trabalho igual e promoção do acesso das mulheres a cargos de responsabilidade.

O artigo 48.º da Constituição da RPC estipula que “as mulheres na República Popular da China gozam dos mesmos direitos dos homens em todas as esferas da vida política, económica, cultural, social e familiar”, que “O Estado protege os direitos e interesses das mulheres, aplica a homens e mulheres sem distinção o princípio de “a trabalho igual salário igual” e forma e escolhe quadros de entre as mulheres”, enquanto o artigo 49.º consagra o princípio de que “O casamento, a família, a mãe e a criança são protegidos pelo Estado” e que “tanto o marido como a mulher têm o dever de praticar o planeamento familiar”.

Estabelecem-se, igualmente, regulamentações específicas relativas à proteção das mulheres no trabalho, dando-se o passo necessário para que, posteriormente, várias outras disposições legais fossem aprovadas. No plano jurídico, destacam-se, assim, os Regulamentos de saúde pública (1986), os Regulamentos de proteção do trabalho (1988) e a Lei para a proteção e defesa dos direitos e interesses das mulheres (1992).

Presente e futuro: o caminho ainda não terminou

Relativamente à evolução sociopolítica da mulher, na China contemporânea, importa atentar numa alteração legislativa que teve fortes implicações no papel socioeconómico e político da mulher chinesa. Com efeito, não podemos ignorar o ano de 1978 e as mudanças que, desde então, ocorreram no plano económico.

Kren Oppenheim Mason (2000) assinala que a autonomia da mulher, no seio da família, se relaciona, desde 1979, com a política do filho único (cujo fim é anunciado em 2015) e a consequente redução do número de filhos. Aponta, ainda, que, após três décadas de controle de natalidade, a China atingiu uma taxa de fecundidade cujos níveis são comparáveis aos de países ocidentais e que, ainda que a China sofra de um crescimento demográfico desigual (uma vez que o número de homens é superior ao número de mulheres), o contexto de transição demográfica influiu quer no papel da mulher chinesa, quer na sua autonomia no seio familiar.

Astrid S. Tuminez (2012), por seu lado, assinala que a proporção de mulheres, em cargos altos executivos, em todas as áreas da sociedade (educação, administração, economia), é maior na China continental do que no resto da Ásia, bem como em algumas sociedades ocidentais. A autora argumenta que a este facto subjazem certas propostas sobre os direitos da mulher defendidos por Mao Zedong.

Isabel Attané (2012), por seu lado, alerta para o que ainda é necessário fazer. A autora considera que a sociedade chinesa permanece, em muitos aspetos, apegada às tradições sociais e familiares, o que cria um paradoxo no seu seio: se, em certos aspetos – em particular no que diz respeito à educação e à saúde -, encontramos melhorias na situação das mulheres, por outro lado, no que concerne as relações com os homens, ainda permanecem disparidades, para mais num contexto demográfico que lhes é desfavorável.

O governo chinês, reconheceu, aliás, na década de 1990, que parte das mulheres permanecia à margem do processo de modernização e que a sua situação – sobretudo depois das reformas económicas – se havia tornado heterogénea, variando de acordo com as regiões, mas também de acordo com os estratos sociais (principalmente, no que diz respeito às necessidades em termos de subsistência, desenvolvimento e preservação de direitos e interesses).

Neste sentido, nas últimas duas décadas, a China tem tido como objetivo político quer reduzir as desigualdades quer procurar que a sociedade harmoniosa possa beneficiar as mulheres, permitindo uma melhor aplicação das leis que as protegem e que facilitam o seu acesso à saúde, educação, proteção social e trabalho. O governo reconheceu, igualmente, que estereótipos tradicionais persistem, pelo que ainda há um caminho a percorrer com vista à melhoria da situação das mulheres chinesas e à garantia de uma efetiva igualdade.

Apesar de grandes avanços na situação social, política e económica das mulheres, sobretudo depois de 1949, e da autonomia crescente que aquelas têm vindo a ganhar, em todos os domínios da vida em sociedade (em particular, graças ao desenvolvimento da educação e de sucessivas leis protetoras dos seus direitos e interesses), desigualdades persistem, quer no acesso à educação, ao trabalho e à saúde, quer no que concerne questões de herança, salário, representação política ou tomada de decisões no seio da família. Perpetuam-se, deste modo, disparidades, quer na esfera pública quer na esfera privada. Paralelamente (um facto que não é de somenos importância), persistem desigualdades entre as próprias mulheres, consoante vivam na cidade ou no campo, a Oeste ou a Este do país.

O desequilíbrio numérico entre os sexos pode, por outro lado, afetar quer a própria condição da mulher quer as (ainda desequilibradas) relações de género. Neste contexto, equacionar mecanismos que permitam preservar as conquistas alcançadas, em termos de igualdade, assim como práticas que permitam alterar, em definitivo, as normas que regem as (ainda desiguais) relações de poder e os valores que as fundamentam, poderão ajudar a construir caminhos possíveis, com vista a uma efetiva igualdade plena, nas diferentes esferas da vida, entre homens e mulheres.

Embora o fim do caminho não tenha sido alcançado, são os avanços realizados, sobretudo, ao longo da segunda metade do século XX, que permitiram transformações profundas no estatuto da mulher chinesa, concedendo-lhe níveis de autonomia e de reconhecimento que lhe haviam sido secularmente negados. Esses avanços e conquistas constituem, ademais, um elemento fundamental para a decifração da sociedade chinesa nossa contemporânea, assim como da sua trajetória, construção, mudanças e aspirações.

Bibliografia citada:

ATTANÉ, Isabelle (2005). La femme chinoise dans la transition économique : un bilan mitigé. Revue Tiers Monde, 182, pp. 329-357.

ATTANÉ, Isabelle (2012). Être femme en Chine aujourd’hui : une démographie du genre, Perspectives chinoises, 4, pp. 5-16.

KRISTEVA, Julia (1974). Des chinoises. Paris : Éditions des Femmes.

MALLET-JIANG, Shuaijun (2018). Mao Zedong et l’évolution des droits de la femme en Chine. Revista E- CRINI, 10, pp. 1-13.

NIVARD, Jacqueline (1986). L’évolution de la presse féminine chinoise de 1898 à 1949. Études Chinoises, Association française d’études chinoises, 5 (1-2), pp.157-184.

OPPENHEIM, Mason Karen (2000). Influence du statut familial sur l’autonomie et le pouvoir des femmes mariées dans cinq pays asiatiques. In Statut des femmes et dynamiques familiales, dir. de Maria Eugenia Cosio-Zavala et Éric Vilquin, Paris, CICRED, pp. 357-376.

SANTOS, Gonçalo & HARRELL, Stevan (eds.) (2017). Transforming Patriarchy Chinese Families in the Twenty-First Century. Londres: University of Washington.
TUMINEZ, Astrid Segovia (2012). Rising to the Top? A Report on Women’s Leadership in Asia, Université Nationale de Singapore. URL: <http://sites.asiasociety.org/womenleaders/wpcontent/uploads/2012/04/Rising-to-the-Top.pdf>

13 Mar 2023

Analectos – o principal livro do confucionismo

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO I

學而 (Xue Er)1

ESTUDAR

1.1. O Mestre disse: “Estudar para aplicar na altura certa2 aquilo que se aprendeu – não será isto uma fonte de prazer? Ter amigos que chegam de partes distantes – não será isto uma fonte de alegria? Suportar sem acrimónia não ser reconhecido pelos outros – não será isto a marca de uma pessoa exemplar (君子 junzi)?”3

1.2. Mestre You4 disse: “Desafiar a autoridade é algo muito raro em alguém que tem o sentido do dever filial e fraternal (孝弟xiaodi). E nunca se ouviu que aqueles que não têm gosto em desafiar a autoridade apreciem dar início a rebeliões. As pessoas exemplares concentram os seus esforços na raiz, pois quando a raiz se fixa, a partir dela a Via (道 dao) crescerá. E não será o dever filial e fraternal a raiz da benevolência (仁 ren)?”5

1.3. O Mestre disse: “Hábeis palavras e faces afáveis raramente albergam verdadeira humanidade (仁ren).”
1.4. Mestre Zeng disse: “Todos os dias examino a minha pessoa relativamente a três aspectos. Nos meus trabalhos para bem dos outros, terei lealmente oferecido o meu melhor? No meu convívio com colegas e amigos, terei sido sincero? Aquilo que me foi transmitido, tê-lo-ei realmente aprendido?6
1.5. O Mestre disse: “A via para reger um reino de mil carros de combate com eficácia é desempenhar os deveres oficiais com respeito e cumprir a sua palavra; ser frugal nas despesas e amar os seus pares; e usar o povo apenas na estação apropriada do ano.”7
1.6. O Mestre disse: “Enquanto irmão mais novo e enquanto filho, sê filial (孝xiao) em casa e age com deferência (弟di) na comunidade; sê reservado no que dizes e cumpre sempre a tua palavra; sê amável com todos mas apenas íntimo daqueles cuja conduta é benevolente (仁 ren). Se depois de assim te comportares ainda te sobrar energia, usa-a para te cultivares através do estudo.”8
1.7. Zixia9 disse: “Quanto às pessoas que prezam mais o carácter do que a beleza, que no serviço de seus pais são capazes de se aplicar devotadamente, que se colocam sem reservas ao serviço do seu soberano, e que no convívio com colegas e amigos cumprem a sua palavra – mesmo que delas fosse dito que não tinham frequentado qualquer escola, eu insistiria que são deveras bem educadas.”
1.8. O Mestre disse: “As pessoas exemplares a quem faltasse gravidade não teriam dignidade e o seu saber seria frágil. Que o teu fio condutor seja fazeres o teu melhor e cumprires a tua palavra. Não tenhas como amigo ninguém que não valha tanto como tu.10 E, quando errares, não hesites em emendar a tua conduta.”
1.9. Mestre Zeng disse: “Sê circunspecto nos serviços funerários, mantém os sacrifícios aos antepassados distantes e a virtude (德 de) do povo comum florescerá.”
1.10. Ziqin perguntou a Zigong11: “Quando o Mestre chega a um dado Estado e precisa de saber como este é governado, será que procura a informação ou esta é-lhe oferecida?” Zigong respondeu: “O Mestre obtém tudo o que necessita sendo cordial, contido, deferente, frugal e despretensioso. É provável que este modo de procurar informação seja diferente do modo como outros a obtêm.”
1.11. O Mestre disse: “Estando o pai vivo, julgue-se o filho pelas suas intenções; quando o pai morre, julgue-se o filho pelo que faz. Alguém que, durante três anos, se abstém de reformar os modos de seu falecido pai pode ser chamado um descendente filial.”12
1.12. Mestre You disse: “Na prática dos ritos (禮 li), atingir a harmonia (和he), através dos correctos procedimentos, é o mais precioso. Ela faz a beleza da Via e das instituições dos antigos reis, sendo um padrão de conduta em todas as coisas, grandes e pequenas. Mas realizar a harmonia pela harmonia sem respeitar as regras cerimoniais dos ritos (禮 li) não trará quaisquer resultados.”13
1.13. Mestre You disse: “É na medida em que o respeito à palavra dada corresponde à rectidão (義 yi) que as promessas devem ser cumpridas. Se a deferência seguir o rito (禮 li) mantém à distância a desgraça e o insulto. Quem age sem ofender e perder os que lhe são próximos também é merecedor de estima.”14
1.14. O Mestre disse: “As pessoas exemplares contentam-se com uma alimentação frugal e uma habitação humilde. São ardentes a agir e reticentes com as suas palavras. Andam junto a homens virtuosos e na sua companhia se corrigem. De tais pessoas deveras se pode dizer que têm amor pelo estudo.”15
15. Zigong disse: “O que pensas do ditado: Pobre mas não inferior, rico mas não superior?” O Mestre respondeu: “Não é mau, mas não é tão bom quanto: ‘Pobre mas desfrutando a Via, rico mas amando os ritos’.”16 Zigong disse: “O Livro das Odes afirma: ‘Como osso esculpido e limado, / como jade cortado e polido.’ Não é isso que tens em mente?”
O Mestre disse: “Ci, só com alguém como tu posso discutir as Odes! Com base no que foi dito, tu sabes o que está para vir.”
16. O Mestre disse: “Não te preocupes com não seres reconhecido pelos outros, preocupa-te com o facto de não os reconheceres.”17

Notas
Não é por acaso que o primeiro capítulo dos “Analectos” surge subordinado ao tema “estudar”. Com efeito, Confúcio encara a educação dos indivíduos como o meio para atingir a reforma da sociedade e assim se construir um modelo ideal de relações humanas, na qual o indivíduo possa desenvolver ao limite as suas naturais capacidades. Não se trata, no entanto, de uma mera aquisição de conhecimentos, algo que o Mestre considera insuficiente. Como é referido logo nas primeiras sentenças, o mais importante será saber quando e como aplicar esses conhecimentos. E se é na prática que o conhecimento se revela precioso, a sua eficácia só adquirirá valor se for balizado por uma ética cuja objectivo é dotar cada sujeito da capacidade de agir com benevolência (仁ren), sustentada pela rectidão (義yi) e pelo cumprimento de pressupostos rituais (禮li) modelados nos valores e hierarquias da piedade filial (孝xiao). A rectificação da natureza moral (xing) de cada sujeito passa então pelo cultivo de si (修身 xiushen), por uma educação que permitirá expurgar de cada coração (性 xin) os desejos egoístas e participar plenamente na construção de uma sociedade onde, quando realizada, predominará a harmonia.
2. “na altura certa”, shi 時. Este caracter tem sido interpretado de dois modos diferentes: por vezes, significa “repetidamente”; doutras “momento oportuno” ou “altura certa” porque também se refere às estações do ano e ao momento em que o Filho do Céu ritualmente as marcava.
3. Neste primeiro terceto de afirmações imediatamente se aflora o perfume hedonista do confucionismo, a saber, a importância da satisfação e do prazer que resulta da prática informada pelo estudo; da socialização com pessoas que partilham a mesma Via, trocando experiências e informação; e de, interiormente, para si mesmo, não depender do reconhecimento alheio. Esta abertura assume o gesto de uma promessa de felicidade.
Assim, a existência de uma pessoa exemplar (junzi) será pautada por sensações de satisfação e prazer. Estas advêm, em primeiro lugar, da realização prática dos seus estudos, não bastando a aquisição de conhecimentos mas, sobretudo, saber quando os aplicar com eficácia. Em segundo lugar, a fruição da companhia de amigos, provavelmente gente que chegava de sítios distantes para o seguirem como discípulos. O caracter 朋(peng) significa, etimologicamente desde o tempo de Confúcio, alunos de um mesmo mestre, seguidores de uma Via ou membros de uma confraria. Mas esta interpretação é contrariada por alguns comentadores que vêm na expressão de Confúcio uma simples referência a “amigos” sem que estes tenham forçosamente de se sentar à sombra das suas ideias. Em terceiro lugar, o Mestre refere-se a movimentos do coração e ao facto de uma pessoa exemplar não albergar sentimentos negativos por não ter reconhecimento social. A pessoa exemplar não sentirá ódio, nem inveja, nem ciúme ou sequer desapontamento. Este mergulho na interioridade e a presumível construção de uma harmonia interna serão o culminar do cultivo de si (修身 xiushen)e da posterior prática da benevolência (仁 ren).
4. O círculo mais interior de discípulos tratava You pelo título honorífico de “mestre”, devido à sua excepcional memória e amor pelos textos antigos, o que, de algum modo, o assemelhava a Confúcio.
5. O dever filial baseia-se no que é devido aos pais (a vida) e a fraternal no respeito devido aos irmãos mais velhos. Ambas implicam uma série de modelos de obediência e submissão, deveres, formas específicas de tratamento, etc.. Tendo sido estendido ao contexto extrafamiliar, o conceito adquire um valor político, na medida em que prescreve uma extensão do modelo familiar, logo indica a necessidade de aceitação, obediência e submissão à hierarquia social. Neste sentido, a harmonia familiar reflecte-se na sociedade como é explicado no “Estudo Maior” (II, cap. 9). Contudo, alguns comentadores acrescentam que, apesar da piedade filial e fraternal estar na raiz da benevolência, na raiz da piedade filial estão, por seu lado, a rectidão (yi), o padrão (li) e um coração rectificado pelo cultivo de si. No Jardim das Persuasões (說苑 Shuo Yuan), de Liu Xiang (77-6 a.C.E.) está escrito: “Se as raízes não forem rectas, os ramos serão certamente tortuosos, e se os inícios não florescerem, os fins certamente murcharão. Uma ode diz: ‘As terras altas e as terras baixas foram pacificadas/ As nascentes e ribeiros foram tornados límpidos/ Uma vez que as raízes estão firmemente estabelecidas, a Via crescerá’”.
6. Zeng Zi, um dos mais importantes discípulos de Confúcio, com quem ele terá composto o “Clássico da Piedade Filial”, e a quem alguns atribuem os comentários do “Estudo Maior” (大學 Da Xue). Talvez não tão dotado quanto outros, Zeng ganhou a estima do Mestre pela sua piedade filial e outras qualidades morais. Já no Estudo Maior, Zeng Zi citava a inscrição da banheira de Tang: “Renova-te com rigor dia após dia. Que haja uma renovação diária” (Estudo Maior, II,1). Aqui explica os passos que percorre para efectuar a referida renovação. Primeiro, a extensão máxima da benevolência. Segundo, uma honesta autenticidade. Terceiro, a séria disposição para apreender os ensinamentos do Mestre.
7. Instruções sobre a governação. Um reino de mil carros é uma mediana, ou seja, um dos que não é dos maiores, nem dos menores, do império, talvez como o reino de Lu de onde Confúcio é originário, dotado de um exército de médio porte. “Usar o povo na estação apropriada do ano” significa recrutar gente para o exército ou para os grande trabalhos públicos tendo em conta o calendário agrícola.
8. Confúcio sublinha aqui a prioridade de enquadrar num comportamento ético a aquisição de conhecimentos.
9. Zixia 子夏 (507– c.420 a.E.C.), nome de cortesia de Bu Shang 卜商, foi um dos dez principais discípulos de Confúcio (Kong men shi zhe 孔門十哲). Zixia era 44 anos mais novo que Confúcio e conhecido como um dos mais inteligentes e educados dos seus seguidores. O Mestre elogiou frequentemente Zixia pela sua inteligência e capacidade para explicar o significado dos clássicos como o “Livro das Odes”. No entanto, Confúcio era da opinião de que Zixia ainda não tinha alcançado a máxima plenitude de virtude, de modo que lhe disse: “Sê um estudioso segundo o estilo da pessoa exemplar e não da pessoa menor”. Após a morte de Confúcio, Zixia voltou para sua casa, em Wei, onde fundou a sua própria escola e transmitiu os ensinamentos do Mestre. Deixou de trabalhar como professor quando o seu próprio filho morreu. Certos comentadores entendem que os ensinamentos de Zixia continham princípios legistas. Esta é a razão pela qual o mestre legista Han Fei 韓非 não considerava Zixia entre as oito escolas confucionistas do seu tempo. Contudo, durante a dinastia Han (206-220 a.E.C.), Zixia foi considerado como um dos mais importantes confucionistas, na medida em que contribuiu para a canonização dos Clássicos. Para Hong Mai 洪邁 (1127-1279), de todos os discípulos de Confúcio, só Zixia era perito nos escritos antigos que mais tarde se tornariam nos Seis Clássicos.
Alguns comentadores acreditam que se trata aqui de uma referência à adequação das quatro relações: entre marido e mulher, filho e pai, soberano e ministro e entre amigos. Como You Zuo 游酢 (1053-1123), por exemplo: “Durante as Três Dinastias, estudar tinha apenas a ver com iluminar relações humanas. Uma pessoa capaz de dominar as quatro relações (mencionadas nesta passagem) pode dizer-se que tem uma profunda compreensão das relações humanas. Ao aprender isto como a Via, poder-lhe-á ser acrescentada alguma coisa? Zixia era famoso pela sua cultura e aprendizagem, por isso, se falava assim dá-nos uma boa noção do que os antigos queriam dizer quando falavam de estudar.”
10. Aqui trata-se, segundo os comentadores, claramente, de uma questão de virtude e não de filiação. Ou seja, o valor dos amigos escolhidos reside no grau da sua virtude e não na nobreza da sua linhagem.
A ideia de que não se deve aceitar um amigo que não nos é um “igual” pode parecer um pouco estranha se não conhecermos a “amizade virtuosa” no sentido que lhe dá Aristóteles. Para o Estagirita, “A amizade perfeita é a de dois homens bons e iguais em virtude. (…) Pois a igualdade e a semelhança, sobretudo a semelhança na virtude, porque, sendo constantes em si mesmos, assim permanecem a respeito do outro.” (Ética a Nicómaco, VIII) Segundo Confúcio “um amigo” (友you) é uma pessoa que partilha as mesmas aspirações morais. Devemo-nos comparar com outras pessoas em geral para avaliar o nosso progresso moral, mas o convívio virtuoso proporcionado por um amigo produz um poderoso impulso para um maior desenvolvimento moral e uma importante sensação de solidariedade, também como consolo, durante o árduo processo do cultivo de si.
11. Zigong (子貢), nome de cortesia de Duanmu Ci (端木賜) era um distinto estadista e mercador, tão apreciado como criticado por Confúcio. Se, por um lado, originário de uma família rica, Zizong possuía uma esmerada educação e era extremamente eloquente; por outro lado, denotava um grande amor ao dinheiro e pouco se preocupava com a situação dos outros. Confúcio regularmente lhe chama a atenção para a discrepância entre as suas palavras e os seus actos. No entanto, os comentadores consideram-no o segundo favorito, depois de Yan Hui.
Para Zhu Xi, são os governantes que, atraídos pelo poder da virtude do Mestre, o procuram para discutir problemas de governação. Em todo o caso, a questão é que Confúcio “procura em si mesmo, não nos outros”, ou seja, “o sábio procura por meio da sua virtude, ao contrário das pessoas comuns que procuram as coisas com a mente”. Enquanto as pessoas comuns perseguem consciente e deliberadamente objectivos externos, o sábio concentra a sua atenção na sua própria virtude interior e permite que as coisas externas cheguem a ele naturalmente. Confúcio não se intromete activamente ou procura informação, mas é tão perfeito na sua virtude que tudo lhe chega sem que ele precise de agir.
12. Três anos é o período de luto pelo pai. Como Kong Anguo 孔安國 (156-74 a.E.C.) explica: “Quando o seu pai ainda está vivo, o filho não é capaz de agir como quer [porque tem de obedecer às ordens do pai, pelo que só se pode observar as suas intenções como meio de julgar o seu carácter. Só quando o seu pai tiver falecido, é que o filho pode aprender sobre o seu carácter através das suas próprias acções. Enquanto o filho filial estiver de luto, a sua tristeza e saudade são tais que é como se o pai ainda estivesse presente, e é por isso que ele não altera os caminhos de seu pai”. Yin Tun 尹焞 (1071–1142) esclarece: “Se os caminhos do seu pai estiverem de acordo com a Via, é perfeitamente aceitável que passe a sua vida inteira sem os mudar. Mas se não estão de acordo com a Via, porque há-de ele esperar três anos para os mudar? Mesmo neste último caso, o filho filial passa três anos sem fazer quaisquer alterações porque o seu coração está bloqueado por uma certa relutância”.
13. O respeito pelas regras na prática dos ritos, que finalmente perpassam praticamente todos os comportamentos sociais, assegura não apenas a harmonia mas a manutenção da posição social de cada sujeito e da ordem estabelecida. Através da observância das regras rituais, cada um sabe como manter um comportamento adequado. Se cada um mantiver um comportamento adequado, atinge-se a harmonia. É importante notar que aqui não se refere apenas os rituais propriamente ditos, como os sacrifícios, por exemplo, mas a ritualização de todos os comportamento, em todas as situações.
14. Mêncio diz: “O governante nem sempre é necessariamente fiel à sua palavra, porque só está preocupado com a rectidão.” Portanto, estabelece-se que se pode faltar à palavra dada se isso for necessário para implementar a justiça ou a benevolência. Uma historieta exemplifica esta situação, embora de modo leviano: Wei Sheng prometeu encontrar-se com uma rapariga debaixo de uma ponte. Infelizmente, houve uma grande tempestade no dia seguinte e a água do rio subiu desmesuradamente. A rapariga ficou em casa, mas Wei Sheng recusou-se obstinadamente a não cumprir a sua palavra e foi ao local do encontro onde morreu afogado. “Este é um exemplo de apego à palavra que não está de acordo com o que é adequado à situação. De facto, seria melhor não ter cumprido a sua palavra”, conclui o comentador.
15. O elogio da frugalidade, a desvalorização dos bens materiais e a crítica da ostentação, bem como a qualidade das companhias escolhidas e a acção eficaz perpassam neste ponto, que complementa as afirmações iniciais deste livro. Ao concluir que tal ser humano demonstra um verdadeiro amor pelo estudo, Confúcio sublinha a prioridade da ética e da eficácia sobre a mera aquisição de conhecimentos. Estudar, em si mesmo, não chega. É preciso saber como e quando aplicar os conhecimentos adquiridos. De algum modo, poder-se-á dizer que “estudar” significa aprender a aplicar os conhecimentos.
16. Zhu Xi comenta: “As pessoas comuns ficam atoladas na pobreza ou na riqueza, sem saberem como se comportarem em tais circunstâncias, conduzindo necessariamente a dois erros: obsequiosidade ou arrogância. Uma pessoa que é capaz de se libertar de ambas sabe como se comportar, mas ainda não atingiu o ponto de transcender completamente a pobreza e a riqueza… Quando uma pessoa é alegre, relaxa a sua mente e o seu corpo, esquecendo a pobreza; quando gosta dos ritos, está em paz onde quer que vá e segue os princípios de uma forma alegre e bem-humorada, não querendo saber da riqueza. Zigong era um homem de negócios, provavelmente começou pobre e depois tornou-se rico, e por isso teve de se esforçar para se controlar. É por isso que ele faz esta pergunta em particular. A resposta do Mestre foi provavelmente destinada a reconhecer o que Zigong já tinha conseguido e ao mesmo tempo encorajá-lo a continuar a lutar pelo que ainda não tinha alcançado.” Mais do que afirmar o valor intrínseco de alguém, independentemente da sua situação financeira, como pretendia Zigong, Confúcio sublinha a importância da prática, no caso do rico ou do pobre. Este poderá retirar satisfação da Via, enquanto o outro deverá, apesar da sua riqueza, cumprir os procedimentos rituais se quiser tornar-se numa pessoa exemplar.
17. Esta sentença final do primeiro capítulo realça a primazia do conhecimento sobre o reconhecimento social, da sabedoria sobre a vaidade pessoal ou mesmo a aquisição de poder político, pois os alunos de Confúcio, a quem se destina, procuravam geralmente cargos públicos onde poderiam aplicar a doutrina do Mestre e, concomitantemente, alcançar um estatuto social superior. Mas o que convém sublinhar é a alteração que, a partir de Confúcio, se processa no próprio conceito de 學 (xue). De facto, em língua portuguesa a palavra “estudar” não abrange o significado que os Analectos lhe dão, pois não se trata apenas de uma mera aquisição de conhecimentos nem da disposição interior de um sujeito que se compraz com meros acrescentos de saberes e de sentidos.
O caracter 學 (xue), na sua origem, representaria um salão de tiro ao arco, onde a aristocracia Zhou estudava e aprendia essa arte. Daí terá adquirido um sentido mais geral, passando a designar todo o tipo de estudo ou educação, eivado de um conteúdo cerimonial e religioso. O confucionismo, mantendo o seu sentido de aquisição de conhecimentos, elevou 學 (xue) à dignidade de um aperfeiçoamento moral e, ao mesmo tempo, de uma realização pessoal, na medida em que o define como o caminho para o cultivo de si e consequente recuperação da natureza original e única de cada indivíduo.

10 Mar 2023

Quarta viagem marítima de Zheng He (VII)

Malaca fundada em 1400 por o príncipe hindu Parameswara, quando o moribundo império de Majapahit (Java) e o Reino do Sião reclamavam suserania sobre a Península Malaia, era ainda uma aldeia de pescadores na altura da visita do eunuco Yin Qing nos princípios de 1404.

Parameswara, que procurava desenvolvê-la como centro comercial devido à posição privilegiada no Estreito de Malaca, logo aproveitou a oportunidade para pedir o reconhecimento da sua independência e colocar-se sobre a protecção do Imperador Ming. Malaca pagava então um anual tributo de 40 taéis de ouro ao vizinho Reino do Sião para ser protegida e estar a salvo dos ataques dos siameses e javaneses.

Yin Qing, que partira da China na 10.ª lua do primeiro ano do reinado do Imperador Yongle, (1403, ano Guiwei, 癸未) com a missão de ir à Índia, já visitara Java e Palembang quando chegou a Malaca, onde anunciou o reinado do novo Imperador e daí partiu para Calicute (Guli) e Cochim (Kezhi). No regresso fez uma nova paragem em Palembang, na ilha de Sumatra, onde embarcou um representante do rei, assim como de Malaca levou uma delegação para ir à corte Ming pagar tributo e ficar sobre protecção da China.

A segunda viagem de Yin Qing, iniciada na 9.ª lua do terceiro ano do reinado de Yongle (ano Yiyou 乙酉, 1405), trouxe de regresso os embaixadores de Palembang e de Malaca, onde foi deixada uma estela.

Assim, Zheng He na sua primeira viagem marítima em vez de ir a Malaca seguiu para o reino do Sião (XianLo, Tailândia) a fim de tratar da segurança do novo protecturado e avisar o rei do Sião estar Malaca sob protecção do Imperador da China.

Segundo alguns investigadores, o Rei de Malaca Parameswara terá visitado a China quando embarcou com Zheng He durante a terceira viagem marítima no final de 1410 e em Nanjing chegou no 6.º mês do 9.º ano de Yongle [ano Xin Mao (辛卯), 1411], sendo muito bem recebido por o Imperador Yongle. Após dois meses, na 9.ª lua embarcou de novo com Zheng He para o Reino de Malaca.

Mas Zheng He só partiria para a quarta viagem marítima nos finais do ano de Gui Si (癸巳), 11.º ano de Yongle (1413) e como os dois meses de estadia de Parameswara na China acertam com o período de chegada da segunda viagem no final do Verão de 1409 e a partida para a terceira viagem no nono mês (9 de Outubro a 6 de Novembro de 1409, ano Jichou, 己丑), daí resulta ser a hipótese mais acertada a da segunda viagem. Estando registado ter sido Zheng He a levar de volta Parameswara para Malaca, tal anula a hipótese de ter sido o eunuco Hong Bao, enviado em 1412 por o Imperador Yongle como embaixador ao Sião, expedição ocorrida entre a terceira e quarta viagem marítima de Zheng He.

Após a terceira viagem, não foi mais a razão que motivara as três primeiras expedições de procurar o deposto Imperador fugitivo Jianwen. Desde então estavam as rotas marítimas bem estudadas através da confirmação de anteriores conhecimentos como, o determinar geograficamente a latitude através da altitude das estrelas, o reconhecer-se de novo os locais dos baixios e rochedos, o confirmar das correntes e dos ventos sazonais específicos a cada zona daqueles mares.

A chegada à China de “inúmeros mercadores estrangeiros com produtos exóticos e de luxo, motivaram uma nova dinâmica económica, tanto em relação às viagens imperiais como, para a população, agora autorizada e estimulada a dedicar-se ao comércio, numa tentativa para resolver a crise financeira”, originada pelos gastos das dispendiosas viagens marítimas, da mudança da capital de Nanjing para Beijing com a construção do Palácio Imperial e o reparar do Grande Canal.

ATÉ À COSTA DE ÁFRICA

Os Registos Históricos da dinastia Ming compilados na dinastia Qing referem ter o Imperador, no dia 15 do 11.º mês lunar do décimo ano do seu reinado [Ren Chen (壬辰), 18 de Dezembro de 1412], dado ordem a Zheng He para realizar a sua quarta viagem marítima e visitar Malaca, Java, Champa, Sumatra, Aru, Cochim, Calicute, Lambri, Pahang, Kelantan, Kayal, Ormuz, Maldivas, Laquedivas e outros locais. Mas essa viagem só começaria no ano seguinte, no Inverno do 11.º ano de Yongle em 1413.

Antes de Zheng He partir, largara já em Fevereiro de 1413 uma pequena armada comandada por Wang Jinghong e Hou Xian, dois Grandes Eunucos (Tai Jian) subcomandantes das expedições anteriores, que seguiram para o Golfo de Bengala devido ao vassalo sultão Giyassudin Azam ter morrido em 1412. Estando o Sultanato de Bengala sem governante, vinham eles como representantes do Imperador Yongle para dar aval à sucessão do filho do sultão.

Depois, Wang Jinghong foi para Sumatra e daí navegou directamente seis mil quilómetros sem escalas até Mogadíscio, na costa Oriental de África, onde se juntou à armada, sendo acompanhado por Fei Xin, outro dos subcomandantes de Zheng He da primeira viagem. Já o eunuco Hou Xian ficou em Bengala onde conseguiu adquiriu uma girafa oferecida por um governante de Melinde, cidade-Estado na costa Oriental africana, ao Reino de Pegu, vassalo do Sultanato de Bengala, como prova de gratidão aos excelentes pilotos bengalis.

Nesse entretanto, Zheng He foi a Xian, província de Shaanxi, onde na mesquita Yangshi convidou o íman Ha San para ser tradutor, pois o destino final dessa sua viagem era os países da Arábia. Antes de partir, Zheng He pediu ao Imperador para mandar construir o Palácio Tian Fei em Changle, Fujian.

A armada de 63 barcos e 28560 homens capitaneada por Zheng He partiu do estuário do Rio Yangtzé no Outono do 11.º ano do reinado de Yongle, (ano Gui Si, 癸巳, 1413) e navegando pela costa de Fujian chegou a Vijaya (Qui nhon, porto no reino hinduísta de Champa, conhecido em chinês por Zhancheng, na costa central do Vietname), onde se dividiu. Uma frota partiu para Palembang (conhecida por os chineses por Jiugang, ou Jugang) e voltando-se a dividir, seguiu uma para Surabaya e outra para Malaca, onde se encontrou com a que tinha partido de Vijaya.

O eunuco Ma Huan (1380-1460) esteve em Malaca e reportou ao Imperador Yongle ter a cidade se convertido em 1413 ao Islão. De Malaca passou a armada por Samudra (Aché, na ponta setentrional de Sumatra) e Ceilão, e contornando as ilhas Maldivas foi a Calicute (Guli). De Angediva (ilha em frente a Goa, Índia) partiu para a península Arábica e para as costas Orientais de África. Outra frota navegou sempre junto à costa e chegou a Ormuz, na altura o porto principal de comércio na península Arábica.

Depois, dirigiu-se para Hadramout, na costa do Iémen, ancorando em Adem, após ter sobrevivido a uma enorme tempestade, a maior e mais violenta de todas as que foi confrontado. De Adem entraram pelo Mar Vermelho atingindo Jidda e depois um porto egípcio. Daí vão a Mogadíscio, onde se encontrou com a frota comandada por Wang Jinghong, e de Brava (Bu-la-wa, na actual Somália) chegaram a Kilwa, partindo para Sofala.

O eunuco Hou Xian, regressado da visita ao [antigo] Tibete (卫藏), fronteira com o Nepal, em 1415 passou por Bengala para agradecer a oferta da girafa, que só foi entregue ao Imperador Yongle a 16 de Novembro de 1416 e como esta se parecia com o mitológico animal chinês qilin, foi considerada um sinal do Céu e a aprovação para a transferência da capital de Nanjing para Beijing.

Na viagem de regresso, Zheng He ao passar pelo Sultanato Pasai de Samudera, porto muçulmano na costa Norte de Sumatra, encontrou no poder Sekandar, irmão mais novo do sultão Zain Al-Abidin, e estando o reino sobre protecção chinesa, o Almirante derrotou o usurpador e as suas forças, terminando com a revolta, levando Sekandar para a China a fim de ser presente ao Imperador.

A armada chegou a Nanjing na 7.ª Lua do 13.º ano de Yongle (Yi Wei, 乙未, 12 de Agosto de 1415), trazendo muitos embaixadores dos países visitados.

9 Mar 2023

O lugar onde Li Gongnian viu a chegada do Inverno

Wang Wei (701-761) concebeu uma situação descrita em dois versos cujo poder de sugestão perduraria como um desafio que se desdobrava na imaginação dos leitores, que podem ser traduzidos como:

Caminho até onde as águas terminam,
E sento-me a observar as nuvens surgindo.

Song Lizong (1205-1264), o imperador poeta dos Song do Sul, interpretaria esses versos, com os traços fluentes da sua caligrafia em cursivo (xingshu) de caracteres angulares bem espaçados, como solicitação de uma pintura que Ma Lin (1180-1256) executaria na página em frente de um álbum que se encontra no Museu de Arte de Cleveland (tinta sobre seda, 25,1 x 25,3 cm) com o título; Erudito reclinado a observar as nuvens surgindo.

A sugestiva suavidade e economia da reelaboração mental de cenários realmente vistos, além de característica do pintor, estão presentes noutras pinturas da mesma época, em particular em figurações que dialogavam com visões utópicas que se integravam no debate sobre a natureza do poema Fonte dos pessegueiros (Taoyuan) de Tao Yuanming (365-427). Se alguns privilegiaram representações fantásticas de aspecto invulgar, outros preferiam a serenidade despojada de lugares desertos.

Foi o caso de um pintor activo no início do século XII, de quem hoje só se conhece uma pintura; Paisagem de Inverno ao entardecer (c. 1120, rolo vertical, tinta e cor sobre seda,129,6 x 48,3 cm no Museu de Arte da Universidade de Princeton) chamado Li Gongnian. No tratado Xuanhe Huapu do tempo do imperador Huizong (r. 1100-1126) as suas pinturas são descritas como «semelhantes a formas de objectos que aparecem e desaparecem num vasto vazio, pairando entre a existência e o nada.» Entre altas montanhas, as minúsculas figuras de um pescador com o seu barco e um literato sentado com um criado junto dele serão meras alusões porque quem está realmente mergulhado naquela visão é o observador da pintura.

Li Gongnian consegue nessa pintura alcançar a sensação de imponderável leveza semelhante à que, como se diz no clássico Zhuangzi, Liezi experimentou ao viajar no vento e que no texto atribuído a Lie Yukou (c. séc V a. C.) diz:

Vadiei no vento Leste ou Oeste como uma folha de árvore ou uma casca seca sem nunca saber se era o vento que me levava ou era eu que arrastava o vento.

É possível que essa nova percepção dos pintores dos Song do Sul tenha sido influenciada pelo abandono forçado da antiga capital Kaifeng e o estabelecimento da dinastia em Hangzhou, onde o céu espelhado no Lago do Oeste rodeia o atento observador por todos os lados. Mas nem todos estavam atentos. No Xuanhe Huapu vem um aviso aos pintores eremitas e eruditos «perigosamente apaixonados por nascentes e pedras, com uma incurável fraqueza por névoas e nuvens.» As suas pinturas «não se conseguiriam vender na rua; não correspondem ao gosto da gente comum.”

8 Mar 2023

O Traço Único do Pincel – Shitao

Tradução de Paulo Maia e Carmo

Na mais alta Antiguidade não existiam regras; a Suprema Simplicidade ainda não se divisava.
Assim que se divisa a Suprema Simplicidade, a regra estabelece-se. Em que se fundamenta a regra? A regra fundamenta-se no Traço Único do Pincel.
O Traço Único do Pincel é a origem de todas as coisas, a raiz de todos os fenómenos; a sua função é manifesta para o espírito, e escondida no homem mas o vulgo ignora-o.
É por si própria que se deve estabelecer a regra do Traço Único do Pincel.
O fundamento da regra do Traço Único do Pincel reside na ausência de regras que engendra a Regra; e a Regra que assim se obtém abraça a multiplicidade das regras.
A pintura emana do intelecto; quer se trate da beleza dos montes, rios, personagens e coisas, ou se trate da essência e do carácter dos pássaros, dos bichos, das ervas e das árvores, ou se trate das medidas e proporções dos viveiros, dos pavilhões, dos edifícios e das esplanadas, não se poderá penetrar as razões nem esgotar os aspectos variados, se no fim de contas não se possuir essa medida imensa do Traço Único do Pincel.
Por mais longe que vás, por mais alto que subas, precisas de começar por um simples passo. Também o Traço Único do Pincel abraça tudo até ao longe mais inacessível e entre dez mil milhões de acções do pincel, não existe uma em que o começo e o acabamento não residam finalmente neste Traço Único do Pincel cujo controle não pertence senão ao homem.
Por meio do Traço Único do Pincel o homem pode restituir em miniatura uma entidade maior sem que nada se perca; a partir do momento em que o espírito se forma uma visão clara, o pincel irá até à raiz das coisas.
Se se pinta com um pulso livre, as falhas de pintura seguir-se-ão; e estas falhas, por sua vez, farão com que o pulso perca todo o seu à vontade. As voltas do pincel devem ser arrebatadas por um movimento, e a untuosidade deve nascer dos movimentos circulares ao mesmo tempo reservando uma margem para o espaço. Os finais do pincel devem ser trincheiras e os ataques incisivos. É preciso ser igualmente hábil nas formas circulares ou angulares, direitas ou curvas, ascendentes e descendentes; o pincel vai à esquerda, à direita, em relevo, em vazio, brusco e decidido, interrompe-se abruptamente, alonga-se, oblíquo, tal como a água, ele desce até às profundezas tão depressa como se levanta em altura tal uma chama e tudo isso com naturalidade e sem forçar o mínimo do mundo.
Que o espírito esteja presente em todo o lado e a regra enformará tudo; que a razão penetre em todo o lado e os aspectos mais variados poderão ser expressos. Abandonando-se à vontade da mão, com um gesto, agarra-se a aparência formal tão bem como o ímpeto interior dos montes e dos rios, de personagens e objectos inanimados, de pássaros e de bichos, das ervas e das árvores, de viveiros e de pavilhões de construções e de esplanadas, pintar-se á a partir da natureza onde se sondará a significação, exprimir-se-á o carácter e reproduzir-se-á a atmosfera, revelar-se-á na sua totalidade ou sugerir-se-á elipticamente.
Mesmo quando o homem não compreender a execução, tal pintura responderá às exigências do espírito.
Porque a Suprema Simplicidade se dissolveu também a Regra do Traço Único do Pincel se estabeleceu. Descobre-se a infinidade das criaturas uma vez estabelecida esta Regra do Traço Único do Pincel. É por isso que já foi dito: “ A minha via é a da Unidade que abraça o Universal”.

8 Mar 2023

Um poema de Li Bai

Tradução de António Izidro

把酒問月
青天有月來幾時
我今停杯一問之
人攀明月不可得
月行卻與人相隨
皎如飛鏡臨丹闕
綠煙滅盡清輝發
但見宵從海上來
寧知曉向雲間沒
白兔搗藥秋復春
嫦娥孤棲與誰鄰
今人不見古時月
今月曾經照古人
古人今人若流水
共看明月皆如此
唯願當歌對酒時
月光長照金樽裏

 

Bebo e pergunto à Lua
Poiso a taça e páro de beber para perguntar:
quando surgirás, ó Lua, ali no céu azul?
Sei que não te alcanço, trepando pelo luar,
a ti, que a todos guardas, seja a norte ou a sul.

Límpido espelho, sobre rubros palácios brilhas,
resplandecente, esvais o verde véu da neblina;
de um escuro mar, na noite ergues-te menina
p’ra na aurora te ocultares na névoa que polvilhas.

Primaveras e outonos, ano após ano, sem cessar,
no elixir dos imortais, está o Coelho a laborar,1
mas quem poderá a solidão de Chang E aliviar?2

Gente de hoje que a Lua de ontem não viram,
essa mesma Lua que os de ontem vislumbraram,
gerações escorrem como as águas de um rio
e, contudo, um dia houve em que todos te fitaram.

Só espero, enquanto bebo – e à Lua eu devoto o meu cantar –,
que na taça do meu vinho, branca Lua, nunca deixes de brilhar.

Notas
1. Coelho O animal inseparável da festividade de Outono. Na mitologia chinesa simboliza a Lua; os dois elementos presentes na milenar tradição das lanternas de papel, em forma de coelho, com que as crianças se divertem, e no bolo característico que se come na noite de Quinze de Lua. Segundo a mitologia, na Lua, o coelho esmaga com um pilão ervas medicinais para elaborar o elixir da imortalidade.
2. Chang-E Deusa que voou da Terra para a Lua, depois de se ter apropriado da pílula da imortalidade de um imperador.

8 Mar 2023

Quinta viagem de Zheng He (VIII)

Quando Zheng He regressou a Nanjing da quarta viagem marítima, o que ocorreu na 7.ª lua do 13.º ano de Yongle (ano Yi Wei, 乙未, que corresponde a 12 de Agosto de 1415), trouxe consigo muitos enviados dos países visitados, para além de Sekandar, o usurpador do poder no Sultanato Pasai de Samudera.

Mas o Imperador Yongle encontrava-se fora da capital, pois tinha ido ao Norte, à Mongólia, combater pela segunda vez no seu reinado os mongóis e apesar de ter saído vitorioso ainda não regressara, chegando apenas à capital a 14 de Novembro de 1416. À sua espera encontrou embaixadores de 18 ou 19 países e reinos, da Ásia [Champa, Pahang, Java, Palembang, Malaca, Samudera, Lambri, Ceilão, ilhas Maldivas, Cochim, Calicute, Shaliwanni (local indeterminado)], da Península Arábica [Ormuz, Las’ã, Adem] e de África [Mogadíscio, Brava (o porto de Barawa era a capital do Estado Sudoeste da Somália) e Melinde (actual Quénia, que na quarta viagem quando a frota chinesa aí passou em 1414, o governante enviara uma girafa)]. Foram recebidos trinta e cinco dias depois na corte Ming, com uma grande cerimónia realizada a 19 de Novembro de 1416, oferecendo o Imperador prendas a cada um.

O enviado do Raja de Cochim (Kezhi) teve um tratamento especial por ser esse reino tributário desde 1411 da China e o Raja requeria ao Imperador que o nomeasse ministro seu subordinado e o investisse como Rei, pedindo o selo oficial como representante de Yongle. O Imperador concedeu-lhe tais desejos e enviou-lhe uma carta onde atribuiu a Cochim o título .

Também Megat Iskandar Shah (母干撒于的儿沙, Mu-Gan Sa-Yu-De-Er Sha ou Xá Muhammad) aqui viera para comunicar ao Imperador ter o seu pai, o Rei de Malaca Parameswara, conhecido em chinês por Bai-Li-Mi-Su-La (拜里迷苏剌), falecido em 1414. Nesse mesmo ano de Jia Wu (甲午), 12.º ano do reinado de Yongle, embarcara para a China, segundo refere o Registo Histórico da dinastia Ming compilado na dinastia Qing, mas Fei Xin (费信) no seu livro Xingcha Shenglan (星槎 胜览) diz ter o Xá (Shah) ido à China no 13.º ano de Yongle. Quando foi recebido, o Imperador nomeou-o Rei de Malaca.

A despedida aos enviados realizou-se a 28 de Dezembro de 1416 seguindo todos para a corte onde receberam de Yongle túnicas de seda. No mesmo dia, Inverno do 14.º ano de Yongle (1416, ano Bing Shen, 丙申), o Imperador ordenou a realização da quinta viagem, instruindo Zheng He a escoltar os enviados de 18 estados asiáticos e africanos no regresso às suas terras. Tinham vindo à corte Ming apresentar tributos e aqui estavam há quase ano e meio. O Imperador entregou ao Almirante cartas imperiais e prendas para levar aos muitos governantes por onde a viagem iria passar.

Viagem entre 1417 e 1419

No 15.º ano de Yongle (ano Yi Wei 乙未, 1417) saiu do porto de Liujia, em Taicang, a armada capitaneada por Zheng He com a missão de se dirigir ao Oeste. Primeiro passou por Quanzhou, onde o Almirante visitou a cidade fundada em 711 no reinado da dinastia Tang. Fora um notável porto na costa de Fujian, ponto de partida da Rota Marítima da Seda e rapidamente se tornara na China um dos quatro mais florescentes no comércio com o estrangeiro.

Atingira o apogeu na dinastia Song, mantendo-se como principal porto durante a dinastia Yuan e contou com uma grande comunidade muçulmana até perder em dez anos toda a sua influência devido à rebelião muçulmana Ispah (1357-1366). O porto entrou em declínio e na dinastia Ming estava ligado exclusivamente às trocas com as Filipinas.

No 16.º dia do 5.º mês do 15.º ano de Yongle (31 de Maio de 1417) Zheng He em Quanzhou foi ao Templo da deusa Mazu, naquele tempo chamado Tian Fei Gong e hoje com o nome de Tian Hou, no monte Jiuri e queimando incenso pediu à divindade protecção para lhe conceder uma viagem segura. No monte Ling no Cemitério Islâmico (ShengMu) encontra-se a estela XingXiang “Orar para uma viagem segura de regresso”, mandada erigir por Pu Heri (蒲和日), oficial que viajava na armada e onde está referido ter o Imperador enviado Zheng He em missão diplomática a Ormuz e a outros países.

Com o mesmo dizer, outra estela (bei) ligada à quinta viagem marítima e agora desaparecida, encontrava-se na ponte Wuwei (无尾) onde se situava o porto Xunmei (浔美) junto ao monte Longtou e nela estava referido no 17.º dia do 5.º mês Tai Jian [Grande Eunuco] Zheng He ter aqui permanecido para segurança da armada devido aos ventos fortes. Nos anos 70 do século XX, o local do porto desapareceu devido aos aterros, tal como o bei, que também fora mandado fazer por Pu Heri.

Zheng He em Quanzhou embarcou muita porcelana para as trocas e prendas e seguiu viagem. Em Vijaya (Qui Nhon) a armada dividiu-se, uma frota foi à ilha de Java e a Palembang, em Sumatra, e a armada seguiu para Malaca.

Daí passou ao Ceilão onde novamente se separou, indo uma frota directamente para a costa africana, passando ao Sul das ilhas Maldivas e chegou à costa da Somália (no Corno de África). Já a armada navegou ao longo da costa indiana, passando por o importante porto de Cambaia (Khanbayat, actual Guzerate no Noroeste da Índia, cujos mercadores tinham então relações privilegiadas tanto com Adém como com Malaca) e já na Península Arábica foi a Ormuz, atingindo Oman.

Aí a armada voltou a dividir-se, rumando uma frota para o Mar Vermelho e ainda na costa Arábica visitou Las’ã [Ash-Shiher, um dos portos mais antigos e importantes do Iémen, ao qual Duarte Barbosa se referiu: “uma vila de mouros que chamam Xaer e pertence ao reino de Fartaque. Lugar em que há grandes quantidades de mercadorias, (…) muito bons cavalos que na terra há, os quais cavalos são muito maiores e melhores que os que vêm de Ormuz.

Também na terra nasce muito incenso e há muito trigo, carnes, tâmaras e uvas. É este porto de mui grande escala de muitas naus e nasce aqui tanto incenso que se leva para todo o mundo.” Shiher era a capital de um pequeno sultanato e o principal porto da costa de Hadramaut, a meia distância entre Adem e o cabo Fartaque, (actual Oman).] A frota chegou em Janeiro de 1419 a Adem e foi a Ta’izz [capital do Sultanato do Iémen na dinastia Rasulid] de onde saiu depois de 19 de Março e seguiu para Jedá, na costa do Mar Vermelho [actual Arábia Saudita].

A armada de Oman continuou para Mogadíscio, passando por a ilha de Socotorá (à entrada do Mar Vermelho), para se juntar à que tinha navegado directamente do Ceilão. De Mogadíscio chegaram a Mombaça, depois de ir a Melinde levar o embaixador.

A viagem terminou em Nanjing no 7.º mês lunar do ano 17.º de Yongle (ano Ding You 丁酉, 8 ou 17 de Agosto de 1419) e trouxe dezasseis embaixadas cheias de prendas e um grande número de animais enviados tanto da Ásia como da África, sendo recebidos um mês depois por o Imperador. Entre eles estava o Sultão de Malaca Megat Iskandar Shah, sua esposa e filho, que voltava pela segunda vez à corte Ming para pessoalmente apresentar tributo a Yongle e queixar-se da invasão de Malaca por o Reino do Sião.

Esta fora a maior de todas as viagens feitas por Zheng He e, em sinal de gratidão pelo envio dos seus representantes, os governantes ofereceram como tributos um grande número de animais exóticos. Mogadíscio deu um leão, mas morreu durante a viagem e Ormuz, um leão, um leopardo e rinocerontes, tendo Brava oferecido camelos dromedários e avestruzes e Adem uma girafa. Vieram também zebras e antílopes, além de muitos outros animais, mas poucos chegaram à China vivos.

7 Mar 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno
(continuação)

 

141.
Compartilhar com os outros o peso de suas faltas, e não dividir a glória de seus méritos: isso atrairá ciúmes mútuos.
Passar junto com os outros suas atribulações e dificuldades, mas não dividir com eles sua paz e alegria: isso leva a inimizade mútua.

142.
Um Educado que caiu na pobreza não pode ajudar os outros com bens materiais; mas ao encontrar alguém que perdeu o Caminho, pode lhe dizer algumas palavras boas e ajudá-lo; ao encontrar alguém que passa pela adversidade, pode dizer palavras amáveis e resgatá-lo.
Isso se constitui num bem incomensurável.

143.
Famintos, buscamos ajuda de alguém; satisfeitos, vamos embora. Frente ao poderoso, nos apressamos e aproximamos; frente ao pobre, o abandonamos.
A natureza das relações humanas tem seus problemas.

144.
Uma pessoa virtuosa aclara sua visão, de modo a ser sóbrio, e é cuidadoso em não ser apressado com sua conduta reta e justa.

145.
A virtude segue a tolerância, e a tolerância cresce com o conhecimento.
Assim, quem deseja aprofundar a virtude, não pode deixar de lado a tolerância; e se aspira à tolerância, não pode se contentar com pouco conhecimento.

146.
Quando a luz da lâmpada é tênue como um vaga-lume, e as dez mil flautas não produzem nenhum som; esse é o estado de ‘alegria e repouso’* que alguém pode alcançar.
No meio da madrugada, quando não há nenhum barulho; é como emergir no próprio caos original, antes da criação.
Se aproveitarmos esses momentos para refletir sobre nós mesmos, perceberemos que ouvidos, bocas e nariz não são mais que correntes e grilhões, e que nossos desejos e vontades nos desviam do verdadeiro entendimento.
*Serenidade, equilíbrio interno e desprendimento do ambiente advindos da meditação.

147.
Aquele que exercita a introspecção, converte as coisas em remédios e agulhas de pedra; o que critica e culpa os demais, faz com que o pensamento seja como uma adaga ou uma lança.
Uma atitude abre o Caminho para todos os bens; outra, para todos os males. Ambas estão tão separadas como o Céu e a Terra.

148.
As obras e os escritos perecem com seus criadores, mas o espírito delas permanece por dez mil anos.
Um grande nome e a riqueza podem mudar o mundo; mas para a sinceridade moral, mil anos são apenas um dia.
O Educado nunca deve trocar o valioso pelo vão.

149.
Ao jogar uma rede de pesca, às vezes cai nela uma folha; o louva-deus vem comê-la, mas vira presa de um pardal.
Existem engrenagens nas engrenagens, e mudanças nas mudanças; de nada vale a astúcia vã do ser humano.

150.
Uma pessoa sem pensamentos sinceros é como um adorno de vestir, superficial e vazio.
Uma pessoa que trata o mundo sem maleabilidade e atenção é como um boneco de madeira: duro, encontra obstáculos em todos os lugares.

151.
Águas tranqüilas não têm ondas; um espelho limpo não tem pó.
O coração não precisa ser limpo; apenas afaste os pensamentos impuros, e ele ficará puro.
A felicidade não pode ser encontrada; apenas afaste a dor do coração, e ela surge.

152.
Apenas um pensamento pode ir contra as proibições dos deuses e espíritos; apenas uma palavra pode acabar com a comunhão do Céu da Terra; apenas uma única ação pode desgraçar nossos filhos e netos.
Devemos ser cuidadosos e conscientes de nossos atos.

153.
Existem coisas que, quanto mais buscamos, mais nos escapam ao entendimento; do mesmo modo, quando não estamos mais ansiosos por elas, elas aparecem de modo natural a nossa frente.
Existem pessoas que recusam ajuda, mas ao deixá-las por si mesmas, elas abandonam seus interesses.
Não se deve pressionar, nem provocar, aqueles que são muito obstinados.

154.
Ainda que sua moralidade seja alta como as nuvens, e seus escritos puros como neve branca; se essas coisas não foram modeladas pela virtude, ao fim, todas as suas ações se basearam no egoísmo, e toda a sua técnica e capacidade serão Nada.

155.
Retire-se do seu posto de trabalho quando está no auge da prosperidade, e se transfira para um lugar tranqüilo e retirado.

156.
Quanto à virtude, seja atento e cuidadoso com as mínimas coisas;
Quanto à generosidade, exercite-a com quem não pode retribuir.

157.
Ser amigo de um mercador não é tão bom quanto ser amigo de um asceta; ser recebido nas portas vermelhas* não é tão bom quanto freqüentar casas brancas**; escutar as conversas nas ruas não é tão bom quanto ouvir o canto dos pássaros ou as canções dos pastores; e comentar os erros das pessoas de hoje não é tão bom quanto refletir sobre a virtude dos antigos.
*Portas Vermelhas: Casas de pessoas ricas ou importantes.
** Casas brancas: residências humildes ou pobres.

158.
A virtude é a base do sucesso; sem raízes não há frutos, sem alicerce não há casa que dure.

159.
Um bom coração é a raiz da prosperidade das gerações futuras; sem raiz, não há crescimento, folhas e plantas não florescem.

160.
Os antigos diziam: ‘abandone seu lugar sem guardar nada, e passe pelas portas com uma cuia de esmolas, como o filho de um pobre’.
Também diziam: ‘o filho de um pobre não deve dizer que é rico, como um louco sonhador; onde já se viu uma estufa com fogo, mas sem fumaça?’
O primeiro provérbio nos aconselha a conhecer a nós mesmos; o segundo, a nos guardar contra soberba. Ambos devem servir de guia em nossos estudos.

161.
Seguir o Caminho é algo para todos, mas cada um tem o seu próprio.
O estudo [do Caminho] é como cozinhar, ou fazer os trabalhos cotidianos; deve-se estar preparado e atento.

162.
Aquele que age de boa fé atua com sinceridade, mesmo que os outros não sejam sinceros;
Aquele que suspeita de tudo age com falsidade, mesmo que os outros não sejam falsos.

163.
Uma pessoa de pensamento generoso é como o vento da primavera que faz florescer a Terra, e que faz as Dez mil coisas se desenvolverem.
Uma pessoa de pensamento egoísta é como a neve do norte, sombria e gelada, que traz a morte a tudo que toca.

164.
Ao se fazer o bem não se vê os benefícios; é como um melão, que cresce no mato sem ser notado.
Ao se fazer o mal não se vê os danos; é como geada, que cai no pátio no fim da primavera, e quase não se nota o avanço da decadência.

165.
Ao encontrar um velho amigo, o afeto é maior do que antes;
Ao encontrar conhecimento oculto e secreto, a ansiedade deve ser controlada;
Ao tratar dos mais velhos e incapazes, nossa cortesia e respeito devem ser ainda maiores.

166.
Aquele que é realmente diligente se aprimora na virtude e na moral; mas existem aqueles que só são diligentes para escapar da pobreza.
Aquele que realmente é simples é indiferente a comodidades e riquezas; mas existem pessoas que utilizam a simplicidade para disfarçar sua obtusidade.
É uma pena que aquilo que o Educado usa pra se cultivar, as pessoas pequenas usam para suas mesquinharias.

167.
Quem se move, impulsionado pela animação, acaba ficando parado; uma roda não gira pra trás.
Quem se baseia apenas na percepção, acaba ficando confuso e nada compreende.
Guarde: uma lâmpada não ilumina para sempre.

168.
O apropriado é perdoar os erros alheios, e evitar cometê-los.
O apropriado é ter paciência com nossas adversidades, mas não com a que os outros sofrem.

169.
Aquele que evita as convenções é especial; mas aquele que as busca para se diferenciar é um excêntrico.
Aquele que não se contamina com coisas banais é puro; mas aquele que se desliga de tudo que é banal é um radical.

170.
Ao praticar o Humanismo, o apropriado é ir do pouco ao muito; do contrário, as pessoas se esquecerão rápido dos benefícios recebidos.
Ao exercer a autoridade, é apropriado ir da severidade a tolerância; do contrário, as pessoas se ressentirão amargamente.

171.
Sem pensamentos impuros, a verdadeira essência do coração aflora.
Buscar a verdadeira essência, sem um coração tranquilo, é como fazer ondas na água querendo ver o reflexo da lua.
Se os pensamentos são puros, o coração estará sempre limpo. Buscar um coração brilhante, sem pensamentos puros, é como buscar brilho em um espelho empoeirado.

172.
Se tenho fama e poder, as pessoas me saúdam; mas o que elas buscam, mesmo, é meu cinto de oficial e meus distintivos.
Se me acho na pobreza, as pessoas me desprezam; mas o que elas desprezam, mesmo, são minhas roupas gastas e humildes.
Assim, se de fato não meu saúdam, porque me sentir lisonjeado? Se não me desprezam, porque me sentir afrontado?

173.
Diz um provérbio: ‘Deixe um pouco de arroz pros ratos, e apague a lâmpada para os cupins’. Essa atitude compassiva dos antigos é o que faz com que a humildade prospere e floresça. Sem essa atitude, as pessoas não são mais do que uma casca vazia, um templo sem alma.

174.
A essência do coração é como a essência do Céu: um pensamento de felicidade, e aparecem estrelas e nuvens de bom auspício; um pensamento desagradável, e desatam trovões e chuvas violentas. Um pensamento bom traz ventos suaves e orvalho doce; um pensamento incômodo é como o sol ardente, ou o gelo do outono.
Como harmonizar os extremos? Seguindo as mutações do universo: depois que algo floresce, há a continuidade. Assim, de forma livre e sem obstáculos, se unem as essências do Céu e da Terra.

175.
Sem ocupação, a mente facilmente obscurece; então, é necessária a tranqüilidade para aclarar as idéias.
Ocupada demais, a mente facilmente se agita; então, é necessário aclarar a mente para devolver a tranqüilidade ao espírito.

176.
Quem contempla as coisas está fora delas, e compreende os ganhos e as perdas de suas possíveis ações.
Quem realiza as coisas está submerso nelas, e ignora as perdas e os ganhos de suas ações.

177.
Um Educado, com alto cargo, deve ser incorruptível, mas deve ser amável e modesto.
Não deve comprometer sua integridade de modo algum, nem buscar algo em proveito próprio. Não deve ser extremado, nem perder a centralidade, muito menos provocar enxames de insetos venenosos.*
*Literalmente: atrair gente corrupta.

178.
Aquele que alardeia moralidade atrai maledicência; quem se gaba de virtude e saber, receberá censura.
Por isso, o Educado se afasta tanto da má quanto da boa reputação; ele apenas preserva sua integridade e gentileza, e onde mora, sua conduta é tida como exemplo.

179.
Ao encontrar uma pessoa equivocada, use a sinceridade para mudar sua mente; ao encontrar uma pessoa violenta, use a calma e a gentileza para conquistá-la; ao encontrar uma pessoa malvada e egoísta, use seu bom nome e a energia moral para ensiná-la.
Assim, não haverá nada, debaixo do Céu, que você não possa mudar com sua influência.

180.
Um pensamento de bondade pode harmonizar o Céu e a Terra;
Um coração, sem manchas, estende a fragrância de sua pureza por cem gerações.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

6 Mar 2023

Nota sobre a Montanha da Vila de Pedra

Partindo de Sichuan, o caminho vai direto ao norte. Ao descer do porto da montanha, o caminho se bifurca; para oeste, não se encontra nada de interessante; e para o norte, logo se vira para o leste. A quatro léguas de distância, o caminho se vê interrompido por um rio. A beirada do rio tem rochas cujos tetos se assemelham a vigas e colunas. Ao lado, há uma espécie de muralha e algo parecido com uma porta.

Dentro, reina a escuridão. Se alguém lançar um grito, ouvirá apenas o burburinho da água, como em uma caverna; o eco ressoa algum tempo e depois cessa. Dando uma volta, se pode chegar ao alto; dali se descobre uma vista muito ampla. Sem que haja terra fértil, crescem lindas arvores e magníficos bambus profundamente enraizados.

As plantas, ora ralas, ora frondosas, ora inclinadas, ora retas, parecem haver sido dispostas por algum ser consciente. Há muito tempo venho me perguntando se há um criador de todas as coisas; aqui me inclino a pensar que sim.

O inseto chamado Fuban

O Fuban é um pequeno inseto capaz de levar cargas sobre o lombo. Quando encontra algo em seu caminho, colhe imediatamente e, levantando a cabeça, deposita em seu lombo e leva. Deste modo, o peso que transporta é cada vez maior; no entanto, quando está cansado a ponto de sucumbir, segue fazendo o mesmo até não poder mais.

Como seu lombo é rugoso, as coisas se acumulam ali sem cair nem se perder. No final, o inseto tropeça e cai no chão, e com tanto peso, não consegue mais levantar-se. Às vezes as pessoas tem piedade dele e tiram a carga de suas costas.

Mesmo assim, quando se vê livre, levanta e começa a fazer as mesmas coisas de antes. Como também gosta de trepar cada vez mais alto, com a carga nas costas, chega um momento em que ele se esgota, cai no solo e morre.

Hoje os homens anseiam por acumular bens; apenas o encontram e, no lugar de evitá-los, tomam-no e começam a aumentar seu patrimônio, sem perceber as consequências disso. Seu único temor é não acumular bastante.

Acabam exaustos e tropeçam, vendo-se então obrigados a abandonar tudo, pondo-se em marcha e se instalando em outro lugar. Tanto o fazem que, não raro, terminam doentes. mas quando conseguem se levantar, começam a fazer tudo igual, de novo.

Cada dia que passa, estes homens pensam em subir de posição, em aumentar sua fortuna; sua conduta e sua avidez crescem sem cessar e acabam levando-os ao perigo e a queda final. Mesmo vendo que muitos antes deles perderam tudo e morreram, não sabem aprender com o exemplo.

Por mais imponente que seja o seu aspecto, e quão eminente seja sua posição, estes levam o nome de “homens”, mas abrigam a mente de um inseto. Isso não é realmente triste?

Liu Zongyuan (773-819)
Tradução de André Bueno

3 Mar 2023

Chá de nuvens

I

Subi os dez mil degraus para beber um chá de nuvens com Han Shan, Li Bai e Mi Fu, mas no cimo da montanha somente o riso das nascentes me acolhia. Ainda assim, fiz arder o carvão e aqueci a água num bule de nevoeiro. Era tarde quando o vento separou as brumas e rios de nuvens tombaram avermelhados dos setenta e dois picos, verdadeiros mestres de horizontes e visões. Foi em vão que ascendi e em vão me procurei em Huangshan: nada havia para encontrar.

No vazio que transporto, remoinhavam ainda fantasmas e vozes incrédulas. Cansado, adormeci ou assim sonhei ter acontecido. No dia seguinte, pela friagem da aurora, de novo aqueci a água e as nuvens vieram dóceis ao meu bule. Bebi o chá e quando terminei as montanhas haviam partido. Ao meu lado, jazia um livro sem palavras. O vazio não estava em mim mas no mundo. Estar só era um inútil exercício.

II

Não aguentava, no entanto, a presença de ninguém. Pesava-me a gente, os desejos alheados, a conversa. Era por dez mil almas habitado. De que me serviriam os outros? De novo, me lancei ao caminho, seguindo as nuvens.

Precisava de reencontrar Huangshan, de repetir os degraus e, como Sísifo, sempre recomeçar. Creio ter chegado ao anoitecer, pois entre as árvores os cães latiam e os símios erguiam aos céus os seus lamentos. De tão espargida, a névoa perdera a densidade e houvera luz e talvez eu pudesse olhar Huangshan e nela encontrar os mestres ausentes. Mas também a lua se esquecera de comparecer e eu sentia ainda medo de cego subir tantos degraus.

No sopé da montanha, montei a minha tenda e no vinho ascendi a nuvens saturadas de imprecações. Ainda assim, funâmbulo no diâmetro das espirais, julguei encontrar algum sossego.

III

Nunca mais as nuvens se dignaram a repousar no meu bule, nem o riso das nascentes me alegrou os dias. Falava agora com o vento e o trovão. Em vertigens de relâmpagos, por instantes, cuidava vislumbrar Huangshan e tanto me bastava. Latia com os cães e uivava com os macacos, ignorando o bule e o sino. Por dez mil dias o fiz, por dez mil vezes olhei o céu sem nuvens.

Não sei se conseguirei voltar à cidade de meus pais; se a estrada conduz ao lago ou ao palácio. Bebi em todas as tabernas, dormi com todas as mulheres aquiescentes. Pegadas na bruma, não as segui. De nada me valeu procurar Huangshan, de nada me serviu beber o chá de nuvens: sob o céu, tudo era, doravante, um labirinto e eu, minotauro coxo e cego, tacteava impudente, sem guia e sem destino, orando baixo aos deuses surdos para que nunca me deixassem encontrar uma saída.

In O Comedor de Nuvens

3 Mar 2023

Segunda jornada à Falésia Vermelha – Su Dongpo

Tradução de António Graça de Abreu

No mesmo ano, na lua cheia do décimo mês, na companhia de dois amigos, parti de minha casa, a pé, em direcção ao pavilhão de Lingao. O orvalho já se havia transformado em geada gelada, as árvores tinham perdido todas as folhas. Na terra, distinguiam-se as sombras dos homens e, levantando-se a cabeça, aparecia uma lua brilhante.

Olhávamos à nossa volta e contemplávamos a paisagem, caminhávamos cantando, ou íamos conversando uns com os outros. Por fim, eu disse, suspirando: “Tenho amigos comigo, mas não temos vinho. Mesmo se tivéssemos vinho não haveria iguarias para acompanhar. O prateado da lua, a doçura da brisa, que fazer numa noite tão bonita?”

Um dos meus amigos respondeu: “Hoje, ao cair da noite recolhi a minha rede e a pesca foram uns tantos peixes de bocas grandes e escamas finas, uma espécie de percas. Mas onde encontrar vinho?”

Regressámos a minha casa e falei com a minha esposa. Ela disse: “Tenho uns potes de vinho que ficaram guardados já há algum tempo, esperando que um dia te recordasses deles.” Partimos de novo com o vinho rumo à Falésia Vermelha. Impetuosa a corrente do rio, as escarpas subiam a mil pés de altura. Enormes as montanhas, pequena a lua, baixo o caudal e as ondas, as pedras no leito rompiam as águas. Habitamos estes lugares há já tantos anos e ainda não conhecemos o rio e as montanhas.

Saímos da barca, levantei a cabaia comprida, trepei pela margem rochosa, caminhei sobre pedras afiadas, afastando, ao passar, as ervas selvagens. Sentei-me sobre penedos semelhantes a tigres ou leopardos, atravessei matagais, os arbustos pareciam dragões com cornos, no alto, havia ninhos de falcões. Levantando os braços procurei encontrar um poiso entre a ramaria, para passar a noite, baixando a cabeça, tentei descobrir o palácio solitário do deus das águas.

Não fui seguido pelos meus dois amigos. Dei então um enorme grito que perfurou o espaço e fez estremecer as ervas e as árvores. Sonoridades na montanha, o eco, o vale respondeu. Levantou-se vento, a água caía nas cascatas.

Em mim, alguma inquietação, tristeza, receio. Eu tremia, não queria ficar na margem do rio. Regressei à nossa barca que vogava ao sabor da corrente. Para satisfação de todos, era ela quem decidia por onde devia navegar.

Era quase meia-noite. À nossa volta, um imenso silêncio e calmaria. Apenas um grou solitário, vindo de leste, sobrevoava o rio. Asas grandes como as rodas de uma carroça, o corpo, negro em cima, branco, em baixo.

Grasnava, longos gritos que rasgavam a escuridão. Passou, rasando, por cima da nossa barca e seguiu para oeste.
Os meus amigos partiram e eu adormeci. Sonhei que um monge taoista, vestindo um manto de penas ondulantes, passava junto ao pavilhão de Lingao. Saudou-me e disse: “A vossa viagem à Falésia Vermelha foi ou não foi uma jornada de espantar?”

Perguntei-lhe como se chamava. Um leve aceno de cabeça e não me respondeu. Questionei-o, outra vez: “Não foste tu que ontem à noite sobrevoaste o nosso barco?” O monge sorriu. Sobressaltado, despertei por completo. Abri a janela da barca, olhei a paisagem, não se via ninguém.

3 Mar 2023

Zhuang Zi, a técnica e o fim do humanismo

Condenando toda a autoridade, toda a hierarquia, toda a vida em sociedade, Zhuang Zi, o maior pensador chinês da Antiguidade não cessa, ao longo da sua obra, de estigmatizar a bondade e os seus defeitos. Oferece-nos uma crítica do humanitarismo de extraordinário alcance.

Jean Levi*
Tradução de Rui Cascais

 

Todos conhecem os nomes de Confúcio, o santo patrono dos letrados, ou de Lao Zi, o sábio taoista, mas são poucos os que conhecem Zhuang Zi. E, no entanto, ele foi o maior pensador chinês da Antiguidade (início do século III A.C.). O leitor erudito ligará, sem dúvida, o seu nome à história do filósofo que sonhava que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia já se era um homem que tinha sonhado que era uma borboleta ou uma borboleta que sonhava que era um homem, invocada por Borges como prova da inexistência da coerência temporal na sua vertiginosa “Nova refutação do tempo”.

Zhuang Zi ficou assim associado a imagens de sonhos e borboletas, e firmemente enquadrado nessa evanescência que habitualmente atribuímos ao misticismo oriental. É certo que não falta encanto a esta visão e que ela permitiu popularizar o nome de Zhuang Zi no Ocidente. Porém, ela não lhe prestou nem serviço, nem justiça e instalou o lugar comum do sábio subtraído das contingências do mundo e da matéria, evoluindo como um insecto diáfano entre sonho e realidade, que foi utilizado para forjar a própria tradição filosófica chinesa afim de retirar a carga subversiva deste homem que Diógenes não teria hesitado em alistar na sua matilha de cães enraivecidos.

Pois, na verdade, se se tivesse de escolher um animal para Zhuang Zi este seria mais uma baleia que uma borboleta, uma baleia feroz do género Moby Dick, capaz de tudo destruir e de tudo quebrar. A tal ensina a obra que leva o seu nome, o Zhuang Zi, que, na abertura, invoca um gigantesco monstro marinho, o kuan, meio peixe meio ave e cujo vôo não é mais que a própria metáfora do texto de potente e irado sopro que se desenvolverá daí em diante.

Zhuang Zi viveu num mundo de ruído e furor em que sete grandes estados absolutistas disputavam a supremacia e procuravam realizar, em benefício próprio, a unificação totalitária de toda a terra sob o céu, levando-o a reagir com igual furor condenando, com tons de Rousseau, toda a autoridade, toda a hierarquia, toda a vida em sociedade.

Para ele, as invenções técnicas exercem uma tirania à qual não podemos fugir a não ser destruindo as máquinas e regressando à vida selvagem: “As máquinas criam actividades mecânicas. As actividades mecânicas mecanizam o coração. Quem tem no peito um coração mecânico perde a sua candura natural; quem tiver perdido a sua candura natural não saberá conhecer a paz de alma!”, colocará ele na boca de um dos seus porta-vozes, um velho jardineiro, num diálogo fictício que o opõe a um discípulo de Confúcio.

Zhuang Zi envolve-se num questionar radical desse modo de pensar próprio do homem social que conduz a considerar o mundo unicamente sob a forma de uma matéria a explorar, ou seja, a ver a vida apenas sob uma perspectiva de meios e fins sucessivos, de forma que, totalmente subsumido aos fins, o indivíduo não é ele próprio mais que um meio e como tal se perde no ambiente técnico que criou.

Mas a crítica do filósofo ultrapassa o terreno político para se colocar no duplo plano ôntico e epistemológico. Zhuang Zi ama os mitos. A maldição do homem enredado na especialização técnica e na dominação hierárquica graças a uma utilização indevida da sua consciência vai manifestar-se sob a forma de uma curta fábula cuja simplicidade – somos quase tentados a dizer indigência – ressoa de uma terrível profundidade. Trata-se da história do Caos morto por dois personagens demasiado ansiosos que julgaram adequado agradecer-lhe a hospitalidade fazendo-lhe orifícios.

O drama de Caos é o drama da psique. Abrindo-se, entrega-se às coisas que para ela não são mais que objectos de prazer e precipita o tema do paraíso da confusão no universo das relações humanas marcadas pela distinção entre um eu que coloca o outro como um exterior irredutível a si. Esta dicotomia entre interioridade e exterioridade conduz, por um lado, à servidão da consciência aos objectos e, por outro, à ruína da natureza – do elemental, como diria Lévinas – colocada como meio a conquistar afim de a transformar em bens capazes de satisfazer os seus apetites, de forma que ao escravizar o seu elemento, o sujeito é escravizado e reificado pelas coisas que produz. Finalmente, instalam-se a luta pela posse da riqueza e as relações de dominação. Assim, a consciência do separado inaugura o reino do conflito, um conflito que a justiça e a misericórdia não conseguem temperar, bem pelo contrário.

Zhuang Zi nunca cessa, ao longo da sua obra, de estigmatizar a bondade e de denunciar os seus erros. O homem bom é pior que o pior dos criminosos. Na verdade, a compaixão não é um defeito que possamos apontar a Zhuang Zi. Esta assumida insensibilidade, reivindicada mesmo, transparece nas maravilhosas e terríveis passagens em que ele se encontra confrontado com a morte, seja o falecimento da esposa, de velhos amigos ou ainda no seu diálogo com o crânio que lhe serve de almofada.

Uma vez que é um homem sem qualidades, ao modo de Ulrich, o herói de Musil, Zhuang Zi é um homem superiormente lúcido. A sua crítica do humanitarismo é de um extraordinário alcance. Diz-nos o seguinte: que virtude é essa que nos põe a calcar aos pés a nossa verdadeira natureza, de tal modo já nada temos para os outros? Inaptos no desembaraçar dos nossos próprios sentimentos, não conseguimos alimentar o nosso princípio vital e tornamo-nos vítimas da benevolência de gente incapaz de nos compreender, pois afastados de si e do mundo, não se conseguem colocar no lugar dos outros. Cada acto de bondade e de caridade é sinal da perda de identidade consigo próprio e com a espontaneidade e torna quimérica toda a tentativa de comunhão com o outro.

Zhuang Zi exige que estabeleçamos um contacto diferente com o mundo, que passa pelo corpo e pela sensação na sua imediatez absoluta, para instaurar relações mais humanas e mais justas, uma vez que mais animais. O que o conduz a interrogar-se sobre a relação da linguagem com o real. Decide atacar as distinções operadas pelo discurso no tecido homogéneo da totalidade vivida. Todo o juízo, na medida em que é juízo, é a expressão de uma subjectividade que opera um corte arbitrário. A linguagem, enquanto é simultaneamente produto e suporte da inteligência, não pode dar conta de uma realidade contínua e fluida senão em termos de descontinuidade.

O homem verídico de Zhuang Zi, ao contrário, mantém uma relação justa com a linguagem, da qual faz instrumento da sua acção sem sucumbir ao prestígio das palavras atribuindo um qualquer valor a um juízo expresso no modo discursivo:”Não há, diria ele, qualquer diferença entre a mais bela das mulheres e o pior monstro, entre um talo de erva e uma coluna de templo, porque gigantescas, belas, enganosas ou estranhas, todas as coisas obedecem a um principio comum que as reúne numa única e mesma unidade.” Tal atitude supõe o estar-se livre da ganga da linguagem e tudo o que o que ela comporta de determinações de tomada de controle, como o Tao que, abstraído do mundo dos fenómenos rege as coisas a partir do centro vazio do universo.

Coerente consigo mesmo, Zhuang Zi forjou uma língua que tenta escapar à maldição da linguagem humana que denuncia. O seu estilo é marcado por uma singularidade e alteridade que, num movimento mimético, zombam de um universo atingido de desmesura. O Zhuang Zi prodigaliza uma colecção de monstros de feira, exibe uma galeria de horrores: enfermos mutilados, desgraçados. Só existem homens disformes, tudo é barroco em Zhuang Zi, tanto a natureza como a música.

Compreendemos assim porque recorre tanto ao mito: o mito nunca recua perante o exagero; deleita-se no delírio e no excesso. Pelo desvio, pela dissonância que introduz no modo discursivo, o mito pode oferecer no plano da sintaxe narrativa a manifestação da deformidade. Está para o discurso filosófico como as figuras do enfermo ou do amputado estão para o homem normal: uma anomalia, um desvio. Mas, para os monstros, esta desgraça é uma graça: o mito permite regressar a uma forma mais alta e mais intuitiva da razão pois justamente, aniquilando as categorias da linguagem, aparece à razão como informe e não-conforme.

Dando um sentido mais puro às palavras da tribo, renova a indistinção primordial que põe em movimento e de onde provém. O recurso a tal forma literária não é um simples capricho de escritor; tem implicações políticas, perfeitamente entendidas pelo historiador dos Han, Sima Qian, o qual conclui a nota biográfica que lhe consagra nas Memórias Históricas com este reparo: “A sua linguagem transgride tudo, segue apenas a sua própria inspiração de forma a que os poderosos jamais possam fazer dele seu instrumento.”

*Sinólogo e tradutor

2 Mar 2023

Tomando vinho


Tao Yuanming (陶淵明, 365-427 EC)
Tradução de Leandro Durazzo

飲酒

結廬在人境,
而無車馬喧。
問君何能爾?
心遠地自偏。
採菊東籬下,
悠然見南山。
山氣日夕佳,
飛鳥相與還。
此中有真意,
欲辯已忘言。

moro em meio aos homens,
mas nenhum barulho me perturba.
“Como pode ser?”, você pergunta,
seu coração distante se confunde.
crisântemos colhidos dos arbustos,
montanhas bem ao longe.
a luz por suas névoas são brilhantes
e os pássaros voltando todos juntos.
em tudo há sentido verdadeiro,
mas não tenho palavras pra dizê-lo.

2 Mar 2023

Mentalismo com Características Chinesas (I)

Wang Yangming (王阳/陽明1472-1528), cujo nome pode ser traduzido por “Sol brilhante”, também é conhecido pelo seu nome de nascença, Wang Shouren (王守仁), que significa “Guardião da Benevolência”. Natural de Yuyao (余姚), da província de Zhejiang (浙江), perto de Hangzhou (杭州) , foi um importante pensador neo-confucionista ao qual é atribuído o desenvolvimento da Escola do Coração-Mente (心学/學 Xīn Xué), contra grande parte da sua tradição filosófica, a escola dos princípios (理学/學Xué Lǐ ), que defendia a existência basilar de princípios celestiais (天理 Tiān Lǐ), fundamentais para a explicação da realidade, separados do poder mental. Filho de um oficial, recebeu a melhor educação clássica, tendo acesso a todo o acervo da biblioteca confucionista.

Apesar de conhecer e defender bem a ortodoxia clássica dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos (四书五经/四書五經 Sì Shū Wǔ Jīng), ainda jovem sentiu-se atraído pelo Taoismo e pelo Budismo, o que o tornaria um verdadeiro neo-confucionista, já que esta filosofia se caracteriza por ser uma conjugação e ligação entre o Confucionismo, Taoismo e Budismo, regida e orquestrada pelos valores ético-morais da filosofia confucionista.

Também na sua vida filosófica e profissional os valores confucionistas estiveram sempre em primeiro plano, habilmente conjugados num “idealismo dinâmico”, como lhe chamou Wade Baskin em Classics in Chinese Philosophy, que sistematizou e desenvolveu na esteira de Lu Jiuyuan (陆九渊,1139-1193). Passou nos exames imperais e em 1499 alcançou o exame de topo. Seguindo as pisadas do pai, também ele serviu o seu governo, durante longos anos até ter ofendido um eunuco, o que lhe valeu uma sova enxovalhante na praça pública e o afastamento do centro do poder, tendo sido banido para à época pouco desenvolvida Província de Guizhou (贵州) em 1506.

Aí teve oportunidade de melhorar as condições de vida dos habitantes e, também, de aperfeiçoar o seu sistema filosófico. Foi reabilitado em 1510, regressando à corte, tendo-se distinguido não apenas como bom administrador e homem de estado, mas como um general de obra feita e várias vitórias no currículo. A influência da sua filosofia perdurou. E ele recebeu a honra póstuma de em 1584 lhe ser prestado culto no templo confucionista.

A sua linha filosófica afastava-o do maior neo-confucionista até então, Zhuxi (朱熹, 1130-1200). Distinguia-o não o louvor à Humanidade ou Benevolência (Rén仁), mas, por um lado, a defesa da indissociabilidade entre o conhecimento e a acção (知行和一Zhī xíng hé yī), em termos práticos e resumidos, a seus olhos não era possível ao sábio pensar uma coisa e fazer outra, porque formava um todo como uma árvore, cuja raiz já indicava os ramos, as flores e os frutos; por outro, a identificação dos princípios celestiais com o coração-mente e este, por seu turno, com o universo, formando um todo inseparável, mais uma vez como a árvore, imagem a que recorre frequentemente para explicar que os princípios são o coração e este os princípios. A união indica a mente correta, a divisão ou separação, o mau viver, ou seja, a mente egoísta. O coração-mente controla o corpo, e só é controlado pelas paixões deste, concretamente pelas suas sete paixões, quando deixa de ser o mestre que contém os princípios celestiais e virtuosos prontos a desabrocharem e frutificarem.

Há, portanto, ideias inatas, como a do bem que são alcançadas intuitivamente, pois estão dentro de nós. O coração-mente é um espelho que precisa de ser polido para compreender e empreender a união consigo próprio e com o universo. “A mente é una, no caso de não ter sido corrompida pelas paixões humanas, é então chamada a mente justa. Mas se é corrompida por intuitos humanos e paixões, denomina-se mente egoísta” (1974, Baskin: 578.) Neste neo-confucionista, o domínio do coração implica a relação com os princípios morais inatos. Só é benevolente quem compreende e atua de forma benevolente, porque teoria e prática, reitera-se, são uma e mesma coisa. O objetivo do sábio é que a sua mente esteja tão afinada ou polida que reflita perfeitamente a realidade que o rodeia. Para tal é fundamental tranquilizar a mente, como? Harmonizando as sensações e paixões num equilíbrio tão perfeito quanto possível.

Neste tipo de filosofia mentalista o que significa a natureza? Recordemos, antes de prosseguir, que estamos perante uma forma de idealismo, logo a natureza é, primeiro, quanto à substância, o Céu (Tian), impessoal, mas também pode assumir a figura popular de um deus personalista, O Senhor Supremo (上帝 Shàngdì); segundo, do ponto de vista funcional, o destino; terceiro, enquanto relação com a humanidade, é a disposição; quarto, é o coração-mente enquanto poder controlador do corpo, (Baskin, 1974: 593) porém, em quinto lugar, enquanto manifestação da mente ou princípio mental, é as suas próprias virtudes, que lhe vão permitir alcançar o equilíbrio ou o meio entre as paixões, suscitando os bons pensamentos, que são as raízes e radículas geradas pela mente altruísta (Baskin, 1974: 597).

A natureza, tal como é entendida por Wang Yangming, neste caso o coração-mente (心xin) é o bem maior, pelo que o filósofo nos aconselha a tratá-lo como se cultivássemos uma das suas imagens já nossa conhecida, a árvore, com calma e sem ansiedade, pois precisa de tempo para se desenvolver, não se deve esperar que o tronco surja antes das raízes e quanto a estas devem ser regadas parcimoniosamente, de modo a que cresça a seu ritmo, deixando surgir os ramos, as folhas, as flores e os frutos. Nesta filosofia, procura-se alcançar uma mente altruísta, tranquila, guiada por virtudes morais, pela justiça e serviço à humanidade, com o controlo atento das paixões e das vicissitudes da vida, em nome do caminho do dever, determinado pela mente. E os filósofos taoistas e budistas que não praticam esta via, vivem separados, mergulhados em ilusões e comportamentos desviados pelas suas personalidades egoístas, já que segundo Wang Yangming os taoistas se revelam incapazes de conhecer e praticar os princípios morais e os budistas de se exercitarem nos relacionamentos humanos.

A verdade é que este filósofo também foi poeta. Na excelente edição Quinhentos Poemas Chineses (2014), coordenada por António Graça de Abreu e Carlos Morais José, podemos ler dois poemas de Wang Yangming, traduzidos por Camilo Pessanha: “Ascensão ao Miradoiro do Kiang” e “À noite, no Pego do Dragão”, onde seguimos com emoção a luta do neo-confucionista pelo domínio do corpo e suas paixões, sobretudo no segundo poema, donde retiro os últimos versos “À borda da torrente, intento fazer versos aos viço das orquídeas. /Embargam-mo as saudades violentas, empolgando-me, do Kiang-Pei e do Kiang-Nan.” (Wang Apud Abreu, Morais José, 2014:271 )

Recorde-se com o Clássico Trimétrico que entre as sete paixões a controlar: a alegria (喜 xi), a fúria (怒nù), a tristeza(哀āi), o medo (惧/懼jù), o amor (爱/愛ài), o ódio(恶/惡 wù) e o desejo (欲yù), se encontra o amor . Este, na versão neo-confucionista de Wang Shouren, “Guardião da Benevolência”, assume-se como amor à humanidade (仁爱/愛 rén´ài), mas, ainda assim, deve ser sentido e expresso com contenção, equilíbrio e harmonia para que a mente egoísta não se sobreponha à altruísta.

Acompanhemos a exteriorização poética desta ideia, que ao ganhar corpo adquire forte sentimento em “Oração de invocação à Chuva” (《祈雨辞》), registada no reinado do Imperador Ming Zheng De, no Rio Gan na actual parte Sul de Jiangxi , no 11º ano, que corresponde ao ano de 1516 da era cristã (正德丙子南赣作):

Ó Céus! Há dez dias que não chove. O campo não tem colheitas.
Há um mês que não chove, o rio vai deixar de correr.
Ah, há um mês que não chove, o povo já está doente.
Se não chover no próximo mês, como vai a população sobreviver?
Que culpa tem a arraia-miúda para sofrer tamanho castigo?!
Se falhei no cumprimento do meu dever, que me seja ditada a sentença.
Ó Céus! Já não bastam os ladrões para às gentes dar aflição, é sobre eles que deve recair a ira, não sobre o povo inocente.
Por que se consomem mutuamente o bem e o mal?
Ó Céus! Que mal te fez o povo para tão pronta fúria!
Ergam-se velozes as nuvens no céu, caindo a chuva benfazeja sobre os campos.
Mais do que os roubos não terem sido travados a tempo, pesa-me a tristeza de ver à minha volta tanto sofrimento e pobreza.

(呜呼!十日不雨兮,田且无禾。
一月不雨兮,川且无波。
一月不雨兮,民已为痾。
再月不雨兮,民将奈何?
小民无罪兮,天无咎民!
抚巡失职兮,罪在予臣。
呜呼!盗贼兮为民大屯,天或罪此兮赫威降嗔。
民则何罪兮,玉石俱焚?
呜呼!民则何罪兮,天何遽怒?
油然兴云兮,雨兹下土。
彼罪遏逋兮,哀此穷苦!)

O mentalismo de Wang Yangming, porque é neo-confucionista, implica amor, respeito e atenção aos outros e ao seu contexto natural e social, tal como o ponto de chegada da sua filosofia requer, pelo que este tipo de mentalismo se na raiz se aproxima do budismo, distingue-dele, mesmo quando este último manifesta caraterísticas chinesas, como teremos oportunidade de ver num próximo texto.

O objectivo dos neo-confucionistas será grosso modo o de transformar a terra num paraíso benevolente, onde a humanidade possa viver em harmonia por acção directa de chefes empenhados e sérios, que muito se penalizam ao jeito dos governantes da antiguidade chinesa, como Yao (尧) e Shun (舜), quando o vento não sopra a favor da população, ou melhor, quando as condições não permitem que todos os seres desabrochem tão naturalmente como plantas regadas por bons agricultores.

Referências Bibliográficas

Baskin, Wade. 1974, Classics in Chinese Philosophy. New Jersey: Helix Books.
Graça de Abreu, António, Carlos Morais José (Coord.). 2014. Quinhentos Poemas Chineses. Lisboa: Nova Veja.
Wang Yangming. 2019.Stanford Encyclopedia of Philosophy. https://plato.stanford.edu/entries/wang-yangming/
Wang Yangming (王陽阳明) 2013《祈雨辞》璞如子(释注).http://www.ziyexing.cn/articles/article-37.htm
Xu Chuiyang.1990. Three Classic in Pictures. Ilustrações de Shang Liangxin. Singapura: EPB Publishers.

1 Mar 2023

Chen Qingbo e as senhoras que esperavam a Lua

Marco Polo (c.1254-1324), regressando das suas viagens entre 1271-95, relatou no terceiro Livro da narrativa Il Milione, o incontido espanto que lhe causou o modo inesperado e admirável como as pessoas desfrutavam de um lago junto de uma metrópole que encontrou no Extremo Oriente:

«O lago está repleto de grande número de navios e barcas, pequenos e grandes, nos quais as pessoas embarcam em agradáveis passeios… Tapados por cima com cobertas sobre as quais homens de pé empurram com varas até ao fundo do lago, fazendo assim mover as barcas de onde elas estão atracadas… E não há dúvida que uma viagem nesse lago é mais repousante e deliciosa do que qualquer outra experiência no Mundo.»

Esse lugar invulgar era o Lago do Oeste (Xihu), junto de Hangzhou, uma paisagem que guarda os sepulcros de beldades como Su Xiaoxiao ou Feng Xiaoqing e foi escolhida para morada de notáveis e acarinhados poetas como Lin Bu ou Zhu Xi e até modificada por alguns deles como Bai Juyi (772-846) ou Su Shi (1037-1101) quando governaram esse território.

E, se pintores Japoneses que nunca lá estiveram, como Kano Sunraku (155-1635) ou Ike Taiga (1723-1776) refizeram o aspecto do lago, reconhecido espelho de civilização, os que lá passaram ou viveram não cessariam de figurar o lugar. Desde o tempo em que Hangzhou foi a capital do império que o seu Lago do Oeste era também um cenário de pinturas feitas para a corte, chegando a ser desde Song Di no século XI, um constante objecto de estudo, dividido em dez panoramas canónicos. E imaginando a exuberante vida que se desenrolava dentro dos palácios, alguns encenariam situações que pareciam querer dizer algo misterioso. Foi o que fez um pintor que tomou o nome de uma das três portas de Hangzhou, quando se chamava Lin’an no tempo dos Song do Sul; Fengyu (actual Yongjin) Qiantang e Qingbo.

Chen Qingbo, cuja actividade é registada entre 1210 e 1260, é referido por Xia Wenyan, no tratado de 1365 Tuhua Baojian (Precioso espelho da pintura) como um pintor que trabalhou fora da corte e que, «nascido em Qiantang, pintou muitas vezes vistas panorâmicas do Lago do Oeste». E é isso que se pode ver em Manhã de Primavera no Lago Oeste, uma pintura para leque montada como folha de álbum (25 x 26,7 cm, tinta e cor sobre seda no Museu do Palácio, em Pequim) uma sua característica representação em ziguezague, semelhante ao caracter zhi, que indica uma pertença ou algo, alguém.

Uma outra pintura também em formato de leque, mostra um encontro nocturno e tem o título No terraço do palácio ao luar (25,6 x26,7 cm, tinta e cor sobre seda, no Museu do Palácio, Pequim) nela cinco mulheres, três senhoras e duas criadas subiram a um terraço para contemplar a lua. Uma das senhoras segura uma bandeja onde estão cinco figuras cónicas, reforçando o número cinco que no Yijing corresponde a «esperar».

28 Fev 2023

Quarta viagem marítima de Zheng He (VII)

Malaca fundada em 1400 por o príncipe hindu Parameswara, quando o moribundo império de Majapahit (Java) e o Reino do Sião reclamavam suserania sobre a Península Malaia, era ainda uma aldeia de pescadores na altura da visita do eunuco Yin Qing nos princípios de 1404. Parameswara, que procurava desenvolvê-la como centro comercial devido à posição privilegiada no Estreito de Malaca, logo aproveitou a oportunidade para pedir o reconhecimento da sua independência e colocar-se sobre a protecção do Imperador Ming. Malaca pagava então um anual tributo de 40 taéis de ouro ao vizinho Reino do Sião para ser protegida e estar a salvo dos ataques dos siameses e javaneses.

Yin Qing, que partira da China na 10.ª lua de 1403 com a missão de ir à Índia, já visitara Java e Palembang quando chegou a Malaca, onde anunciou o reinado do novo Imperador Yongle e daí partiu para Calicute (Guli) e Cochim (Kezhi). No regresso fez uma nova paragem em Palembang, na ilha de Sumatra, onde embarcou um representante do rei, assim como de Malaca levou uma delegação para ir à corte Ming pagar tributo e ficar sobre protecção da China.

A segunda viagem de Yin Qing, iniciada na 9.ª lua do terceiro ano do reinado de Yongle (1405), trouxe de regresso os embaixadores de Palembang e de Malaca, onde deixou uma estela.

Assim, Zheng He na sua primeira viagem marítima em vez de ir a Malaca seguiu para o reino do Sião (XianLo, Tailândia) a fim de tratar da segurança do novo protecturado e avisar o rei do Sião estar Malaca sob protecção do Imperador da China.

Segundo alguns investigadores, o Rei de Malaca Parameswara terá visitado a China quando embarcou com Zheng He durante a terceira viagem marítima no final de 1410 e em Nanjing chegou no 6.º mês de 1411, sendo muito bem recebido por o Imperador Yongle.

Após dois meses, na 9.ª lua embarcou de novo com Zheng He para o Reino de Malaca. Mas Zheng He só partiria para a quarta viagem marítima nos finais de 1413 e como os dois meses de estadia de Parameswara na China acertam com o período de chegada da segunda viagem no final do Verão de 1409 e a partida para a terceira viagem no nono mês (9 de Outubro a 6 de Novembro de 1409), daí resulta ser a hipótese mais acertada a da segunda viagem. Estando registado ter sido Zheng He a levar de volta Parameswara para Malaca, tal anula a hipótese de ter sido o eunuco Hong Bao, enviado em 1412 por o Imperador Yongle como embaixador ao Sião, expedição ocorrida entre a terceira e quarta viagem marítima de Zheng He.

Após a terceira viagem, não foi mais a razão que motivara as três primeiras expedições de procurar o ex-Imperador fugitivo Jianwen. Ficaram desde então as rotas marítimas bem estudadas através da confirmação de anteriores conhecimentos como, o determinar geograficamente a latitude através da altitude das estrelas, o reconhecer-se de novo os locais dos baixios e rochedos, o confirmar das correntes e dos ventos sazonais específicos a cada zona daqueles mares.

A chegada à China de “inúmeros mercadores estrangeiros com produtos exóticos e de luxo, motivaram uma nova dinâmica económica, tanto em relação às viagens imperiais como, para a população, agora autorizada e estimulada a dedicar-se ao comércio, numa tentativa para resolver a crise financeira”, originada pelos gastos das dispendiosas viagens marítimas e das batalhas a Norte contra os mongóis.

ATÉ À COSTA DE ÁFRICA

Os Registos Históricos da dinastia Ming compilados na dinastia Qing referem ter o Imperador, no dia 15 do 11.º mês lunar do décimo ano do reinado de Yongle (1412), dado ordem a Zheng He para realizar a sua quarta viagem marítima e visitar Malaca, Java, Champa, Sumatra, Aru, Cochim, Calicute, Lambri, Pahang, Kelantan, Kayal, Ormuz, Maldivas, Laquedivas e outros locais. Mas essa viagem só começaria no ano seguinte, no Inverno do 11.º ano de Yongle em 1413.

Antes de Zheng He partir, largara já em Fevereiro de 1413 uma pequena armada comandada por Wang Jinghong e Hou Xian, dois subcomandantes das expedições anteriores, que seguiram para o Golfo de Bengala devido ao vassalo sultão Giyassudin Azam ter morrido em 1412. Estando o Sultanato de Bengala sem governante vinham eles como representantes do Imperador Yongle para dar aval à sucessão do filho do sultão.

Depois, o Grande Eunuco Wang Jinghong foi para Sumatra e daí navegou directamente seis mil quilómetros sem escalas até Mogadíscio, na costa Oriental de África, onde se juntou à armada, sendo acompanhado por Fei Xin, outro dos subcomandantes de Zheng He da primeira viagem. Já o eunuco Hou Xian ficou em Bengala onde conseguiu adquiriu uma girafa oferecida por um governante de Melinde, cidade-Estado na costa Oriental africana, ao Reino de Pegu, vassalo do Sultanato de Bengala, como prova de gratidão aos excelentes pilotos bengalis.

Nesse entretanto, Zheng He foi a Xian, província de Shaanxi, onde na mesquita Yangshi convidou o íman Ha San para ser tradutor, pois o destino final dessa sua viagem era os países da Arábia.

A armada de 63 barcos e 28560 homens capitaneada por Zheng He partiu do estuário do Rio Yangtzé no Outono de 1413 e navegando pela costa de Fujian chegou a Vijaya (Qui nhon), onde se dividiu. Uma frota partiu para Palembang e voltando-se a dividir, seguiu uma para Surabaya e outra para Malaca, onde se encontrou com a que tinha partido de Vijaya. De Malaca passou a armada por Samudra (Aché, na ponta setentrional de Sumatra) e Ceilão, e contornando as ilhas Maldivas foi a Calicute.

De Angediva (ilha em frente a Goa, Índia) partiu para a península Arábica e para as costas Orientais de África. Outra frota navegou sempre junto à costa e chegou a Ormuz, na altura o porto principal de comércio na península Arábica. Depois, dirigiu-se para Hadramout, na costa do Iémen, ancorando em Adem, tendo sobrevivido a uma grande tempestade que só acalmou pelas orações do tradutor árabe, que seguiu com a armada até à China. De Adem entraram pelo Mar Vermelho atingindo Jidda e depois um porto egípcio. Daí vão a Mogadíscio, onde se encontrou com a frota comandada por Wang Jinghong, e de Brava chegaram a Kilwa, partindo para Sofala.

O eunuco Hou Xian, regressado da visita ao Nepal, em 1415 passou por Bengala para agradecer a oferta da girafa, que só foi entregue ao Imperador Yongle a 16 de Novembro de 1416 e como esta se parecia com o mitológico animal chinês qilin, foi considerada um sinal do Céu e a aprovação para a transferência da capital de Nanjing para Beijing.

Na viagem de regresso, Zheng He ao passar pelo Sultanato Pasai de Samudera, porto muçulmano na costa Norte de Sumatra, encontrou no poder Sekandar, irmão mais novo do sultão Zain Al-Abidin, e estando o reino sobre protecção chinesa, o Almirante derrotou o usurpador e as suas forças, terminando com a revolta, levando Sekandar para a China a fim de ser presente ao Imperador.

A armada chegou a Nanjing na 7.ª Lua do 13.º ano de Yongle (12 de Agosto de 1415), trazendo muitos embaixadores dos países visitados.

24 Fev 2023

Da tradução de poemas de Su Dongpo

Traduzir poemas de Su Dongpo (1037-1011) para língua portuguesa.

Quase nada sei, e contemplo o universo todo na arte abstrusa do tradutor. Uns pingos de clarividência, tentar conhecer umas resmas largas de caracteres, a sequência das palavras, passear pela língua chinesa, espreitar cuidadosamente traduções inglesas e francesas, movimentar-me nas assombrações da vida fantástica de Su Dongpo, o real com toneladas de sofrimento à espreita em cada esquina, mais os caminhos por alamedas plenas de alegria e humor. A estrutura da língua chinesa tão diferente e afastada das línguas ocidentais. Desbravar o infinito.

A tradução próxima e distante. Lá do Extremo Oriente, do rendilhado das margens do lago Oeste, em Hangzhou, da ilha de Hainan ou da província de Shandong lançam-me música, um erhu chinês, um violino, uma pipa, o guzheng a enobrecer sentimentos.

Acompanho Su Dongpo, com a sorte de tentar conhecê-lo, de ser seu amigo, de ter viajado por parte importante dos lugares do Império do Meio onde o poeta nasceu há mil anos atrás, desempenhou funções de mandarim, cruzou montes e vales, subiu e desceu rios, jornadeou pelos espaços do vazio, foi afastado para o outro lado do mar, para terras do degredo e do exílio.[1]

Em prefácios a traduções anteriores de grandes poetas da China, sobretudo Li Bai, de 1990, Han Shan, de 2009 e Du Fu, de 2015, debrucei-me, tanto quanto sabia e era capaz de explicar, sobre o trabalho de tradução. O tradutor assume-se como o feitor de uma tarefa diferente, que se abre a partir de um outro código linguístico, mas no português de chegada têm de estar a raiz original das palavras e um mesmo sentir. Em Su Dongpo, encontrar a delicadeza, a suavidade, o encanto, a frescura da grande poesia clássica chinesa. Depois, difícil de fazer bem feito, mas é por aí que caminho.

Yan Fu (1853-1921) um dos primeiros grandes tradutores de obras literárias inglesas e norte-americanas para língua chinesa falava nos três princípios fundamentais de uma tradução譯事三難:信 xin, ou seja fidelidade ao texto original, 達 da ou seja, fluência e legibilidade e 雅ya , ou seja, elegância e beleza, assim se harmonizando a língua de partida com a língua de chegada.

Min Xiaohong (1963-), professora na Universidade de Senzhen, especialista em Su Dongpo, diz que “Translation is an art of transforming everything in form while changing nothing in meaning.”[2]

Nuno Júdice, num texto brilhante sobre David Mourão Ferreira tradutor, refere George Steiner, no seu Depois de Babel onde o autor fala da tradução como “contrabando” processado a partir da língua e da cultura originárias para a língua e cultura de chegada. [3]

No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir do poeta chinês, mais a minha própria leitura poética, em língua portuguesa. Porque se o poema sínico parece intraduzível (por isso eu o traduzo!) tudo o mais é reinvenção, recriação, reimaginação, transcriação, retradução. E o poema contrabandeado já é outro poema. É de Su Dongpo, mas também é meu. Do grande universo da poesia da China clássica passou para o mundo da língua de Camões, Machado de Assis e Fernando Pessoa. Contrabandear, com certeza, considerando um produto poético em busca de qualidade literária também na língua de chegada. E, porque os conhecimentos de língua chinesa serão sempre reduzidos, a necessidade da viagem por traduções noutras línguas mais próximas do português, sobretudo as boas traduções inglesas e norte-americanas.

Vamos a um exemplo de um poema de Su Dongpo, conhecidíssimo na China, objecto de múltiplas traduções. É um 绝句 jueju, uma espécie de quadra, com sete caracteres por verso, assim:
Eis uma tradução portuguesa possível, caracter a caracter:

Meio Outono Lua

Anoitecer nuvem juntar excesso límpido frio
Via Láctea ausência silêncio tornar-se jade prato
Esta vida esta noite não extensa boa
Próximo ano brilho lua onde contemplar

Minha tradução

A lua do Meio Outono

Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu,
em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade.
Se esta noite, no nosso existir, não fruimos prazeres,
no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar?

Agora a tradução inglesa du professor chinês Xu Yuanzhong, com rimas emparelhadas que não existem no original de Su Dongpo. Recordo que o poema tem outras rimas tonais praticamente intraduzíveis, características dos jueju:

Evening clouds dispelled, a jade plate turns on high,
Pure, cold flood overwhelms the silent silver sky.
We can’t oft in this life have a mid-Autumn night,
Where shall we see next year a harvest moon as bright?[4]

A tradução do mesmo poema pela chinesa Wang Yun, há muitos anos radicada nos Estados Unidos da América:

Dusk clouds vanish as a crystal chill blooms
The moon’s jade plate turns against the soundless Milky Way
This life this night is a flower about to fade
Where will we see this lustrous moon next year[5]

Por último, a tradução do norte-americano Bill Porter, aliás Red Pine:
As evening clouds withdraw a clear cool air floods in
the jade wheel passes silently across the Silver River
This life this night has rarely been kind
Where will we see this moon next year[6]

Tenho tido como mestre no meu labor de tradutor, o velho Arthur Walley (1889-1966). O historiador Jonathan Spence (1936-), talvez hoje um dos mais brilhantes estudiosos e divulgadores da cultura e civilização chinesa no mundo da língua inglesa, e não só, referia-se a Arthur Waley como tendo aprisionado no seu peito o que de melhor existia nas literaturas chinesa e japonesa. Spence diz que nunca ninguém fez nada de parecido, embora “there are now many Westerners whose knowledge of Chinese or Japanese is greater than his, and there are perhaps a few who can handle both languages as well. But they are not poets, and those who are better poets than Waley do not know Chinese or Japanese.” [7]l

Waley era um bom poeta e muitas das suas traduções foram incluídas como poemas seus integrados na literatura inglesa, por exemplo no Oxford Book of Modern Verse 1892-1935, ou no Penguin Book of Contemporany Verse (1918-1960). Recebeu, em 1952, a condecoração de Commander of the Order of the British Empire e, no ano seguinte The Queen Medal for Poetry.

Su Dongpo é um poeta maior, atravessando os trinta e um séculos de poesia chinesa, amado e lido em toda a China, até hoje, não muito conhecido em Portugal, embora a modernidade da sua mensagem poética contemple o perpassar do tempo.

Talvez com alguma surpresa, o leitor de traduções de poesia chinesa para língua portuguesa descubra que Su Dongpo já foi objecto de umas tantas versões, recriações e traduções poéticas em português.

Foi António Feijó (1859-1917) quem, em finais do século XIX, no seu Cancioneiro Chinês, traduziu do francês quatro poemas atribuídos a Su Dongbo, que, na realidade, não saíram do pincel e da inteligência do nosso poeta. Feijó traduziu e reinventou setenta e um poemas aparentemente chineses que formam o Livre de Jade, de Judith Gautier e de Tin Tun-ling, de 1867, um sucesso literário na Europa culta da época. Ora os poemas chineses pretensamente traduzidos pela jovem filha de Theóphile Gautier, são, quase todos uma reinvenção absoluta. No que a Su Dongpo diz respeito cito as frases do estudo de Ferdinand Stocès: “Du poème de Su Dongpo Bloqué par le vent sur le lac Ci, qu’elle intitule Un navire à l’abri du vent contraire, sur les cinquante-six caractères de ce poème de huit vers, Judith Gautier et son tuteur — en ont identifié quatre, ce qui ne leur a point permis de saisir le message du poète chinois.” [8] As engenhosas traduções parnasianas de António Feijó são assim, quase todas traduções de não traduções.
Camilo Pessanha, em Macau, interessou-se pela poesia chinesa e chegou a traduzir, com a ajuda de um letrado chinês e do seu amigo José Vicente Jorge, pelo menos oito poemas chineses, de poetas menores da dinastia Ming (1368-1644).

Pessanha tinha admiração pela língua chinesa que, na sua opinião, era “a mais formosa e a mais sugestiva de todas as línguas literárias vivas ou mortas.” Pena os maiores poetas da China, homens como Li Bai, Du Fu, Bai Juyi, Su Dongpo ou a delicada Li Qingzhao terem passado ao lado da caneta de Camilo Pessanha. Existe a lenda de que na última vinda a Portugal, em 1915, trouxe de Macau sete mil páginas manuscritas com poemas que entretanto desapareceram. Não será de acreditar, dada a desorganização completa com que, nesta fase da sua vida, já afundado em ópio, Pessanha tratava os seus papéis.

Gil de Carvalho, no seu trabalho Uma Antolologia de Poesia Chinesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 2ª. Edição, 2010, traduziu sete poemas de Su Dongpo. Na primeira edição, de 1989, havia incluído apenas um poema do nosso poeta.
Adelino Ínsua, poeta e editor, publicou no ano 2000, na Pedra Formosa Edições, a primeira antologia de Su Dongpo em língua portuguesa, constituída por apenas 27 poemas e uma apresentação de duas páginas que intitulou A Flor da Ameixieira, Poemas de Su Dongpo.

Trata-se de um pequeno trabalho, deveras simpático. Na também pequena antologia de poesia chinesa que Adelino Ínsua publica em 2002, sob o título Pavilhão da Chuva, aparece um poema de Su Dongpo. Em 2013, com o apoio de Carlos Morais José, eu próprio organizei uma grande antologia que intitulámos 500 Poemas Chineses, com uma edição feita em Macau e outra da responsabilidade da Vega Editora, em Lisboa, 2014. Su Dongpo entra com 18 poemas, com traduções António Feijó, Alberto Osório de Castro, Jorge Sousa Braga, Adelino Ínsua, Gil de Carvalho e António Graça de Abreu. Eu tive a ousadia de traduzir cinco poemas de Su Dongpo.

No Brasil, tanto quanto sei, Su Dongpo não tem sido muito traduzido. Em 2022, foi defendida na Universidade de São Paulo, uma dissertação de Mestrado, da autoria de César Augusto Matiusso, intitulada “Meditação sobre o passado: tradução comentada da poesia de Su Dongpo.” Bom será que seja colocada na net ou editada em livro. Su Dongpo e os leitores de língua portuguesa merecem tudo.

 

[1] Nos dois volumes de Toda a China, Lisboa, Guerra e Paz, 2013 e 2014, ver os textos sobre as minhas jornadas pelas actuais províncias de Sichuan, Hunan, Hubei, Shaanxi, Shanxi, Henan, Shandong, Jiangsu, Zhejiang, Guangxi, Guangdong e ilha de Hainan, de quando em quando na companhia de grandes poetas da China Clássica, como Su Dongpo.
[2]Ambos os textos estão na net, onde é infindável a busca por Su Dongpo, com milhares e milhares de entradas e pistas de trabalho. Ver também o You Tube, tendo a vida e carreira de Su Dongpo sido na China objecto de uns tantos filmes e telenovelas.
[3] Nuno Júdice, in Jornal de Letras, nº. 1290, 11.03.2020, pag. 10.
[4] Su Dongpo – a NewTranslation,,(bilingue), Xu Yuanzhong (trad.), Hong Kong, The Commercial Press, 1982, pag 98.
[5] https://www.amazon.com/Dreaming-Fallen-Blossoms-Poems-Dong Po/dp/194568027X/ref=sr_1_2?crid
[6] Poems of the Masters, Red Pine (trad.), Port Townsend, Copper Canyon Press, 2003, pag. 319.
[7] https://site.douban.com/106369/widget/notes/134616/note/137774609/
[8] https://www.cairn.info/revue-de-litterature-comparee-2006-3-page-335.htm. E também de Ferdinand Stocès, O Livro de Jade, de Judith Gautier, características gerais das edições de 1867 e 1902, Revista Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, 2002, pags 3 a 20.

20 Fev 2023