Pang Iok Chan, médica de medicina tradicional chinesa: “Quis ajudar a minha família a sobreviver”

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] amor pela medicina apareceu em pequena e quase como uma necessidade. “Os meus pais estavam sempre doentes e eu queria poder ter conhecimentos para curar os males da minha família”, conta Pang Iok Chan. A médica de medicina tradicional chinesa não esconde que a escolha da profissão ficou marcada pela morte prematura do pai, quanto tinha apenas sete anos.

Ainda a frequentar o curso de medicina no Continente, Pang Iok Chan optou por abandonar os estudos e veio para Macau. “Não tinha um objectivo específico quando deixei tudo para vir para aqui.” A maior razão foi fugir à pobreza e, “já na altura, Macau aparecia como um local em que se poderiam encontrar mais oportunidades de emprego”. “Só pensava em poder ganhar dinheiro rapidamente para ajudar a minha família a sobreviver”, confessa.

Já passarem muitos casos pelo consultório de Pang Iok Chan. No entanto, há um, também na família, que não lhe sai da memória e que fez com que retomasse os estudos: um primo que sofria de um tumor congénito e que, após sete anos de tratamentos, não apresentava melhoras, “estava quase a morrer”, recorda.

Recorrendo aos conhecimentos adquiridos ainda na China Continental, Pang Iok Chan conseguiu mudar a situação e, um ano depois, o primo melhorou, tendo acabado por recuperar totalmente a sua saúde. “Foi quando decidi voltar à universidade, ter o meu diploma e realizar um sonho.”

“Comprei um apartamento na Taipa, perto da actual Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, que na altura estava em construção.” A proximidade, diz, foi mais um alento para continuar a estudar.

Depois de licenciada, Pang Iok Chan abriu a sua clínica e desde logo se assumiu como diferente dos seus colegas de profissão. “Em vez de passar receitas com os chás que os meus doentes devem tomar, prefiro apostar no incentivo a uma boa alimentação”, explica. Para a médica, os nutrientes presentes nos alimentos do dia-a-dia têm grandes propriedades de cura e “são o melhor tratamento para doenças”.

Outra inovação foi a criação de um método de massagem que, ao invés de usar a massagem tradicional, utiliza os dez dedos. Para a médica “é um método mais rápido e eficaz”.

Comprimidos em excesso

Relativamente à saúde no território, Pang Iok Chan tem algumas reservas, não deixando de responsabilizar o Governo pela atitude dos residentes em relação à saúde. “As pessoas não dão importância à sua alimentação o que, penso, tem tudo que ver com os produtos que estão disponíveis em Macau.”

O facto de muitos alimentos serem importados faz com que os produtos frescos sejam raros e o “Governo não fiscaliza de forma eficaz a higiene dos bens que chegam ao território”.

A médica não deixa de lamentar que, para as autoridades, os medicamentos ainda sejam prioritários em relação à alimentação. “Infelizmente, o Governo ainda dá mais importância à cura tradicional feita à base de remédios. Deveria promover mais a importância de uma boa alimentação.”

Pang Iok Chan considera ainda que, por usar métodos de tratamento alternativos, acaba por afastar alguns utentes do serviço de saúde público, até porque considera que tem procedimentos ineficazes. “Devido à falta de conhecimento e de coragem, o serviço de saúde não ajuda os utentes”, afirma.

Apesar da já longa estadia em Macau, Pang Iok Chan tem agora outro sonho: o regresso à China Continental. É lá que pensa encontrar mais pessoas com quem partilhar ideias e conhecimentos. “No Continente posso estar em contacto com colegas que pensam como eu e posso ser mais útil, enquanto aqui as pessoas dão cada vez menos importância à medicina tradicional chinesa.”

Para deixar um legado, a médica está agora a trabalhar num livro. O objectivo, diz, é poder dar a conhecer e divulgar os métodos que desenvolveu ao longo da carreira, “para que possam continuar a ser aplicados e aperfeiçoados”, remata.

24 Mar 2017

Yu Jiang, estudante, tradutor e intérprete | O exercício da descoberta

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá a dar os primeiros passos, ainda muito tímidos, no mundo da tradução, mas a paixão pela língua inglesa começou desde muito cedo. Natural de Yunnan, na China, Yu Jiang veio para Macau estudar uma segunda língua e, ao contrário de muitos jovens do seu país, a língua portuguesa não foi a sua escolha.

“Para mim, o português é mais difícil e percebi que não iria conseguir pronunciar certos sons. Mas agora comecei a estudar espanhol como terceira língua, porque me parecia um pouco mais fácil, e desde então tenho vindo a encontrar várias semelhanças com o português. Talvez aprenda português no futuro”, contou ao HM.

Ainda em Yunnan, Yu Jiang começou a interessar-se pela língua estrangeira que agora estuda na universidade. “Comecei a aprender inglês desde muito cedo, apesar de ainda não me considerar um falante bilingue de inglês e chinês”, afirmou. “Nessa altura, achava que era um língua muito bonita e que poderia ter um papel fundamental na construção de pontes entre culturas e comunidades. A comunicação, sobretudo se for entre diferentes grupos de pessoas, é um tema que me fascina e do qual gosto muito.”

Já no ensino superior, Yu Jiang espera que o curso lhe possa dar acesso, sobretudo, a um mundo fora da China. “Decidi então tirar um major em inglês, na esperança de conseguir estabelecer ligações com pessoas de diferentes comunidades no futuro, usando a língua. A tradução e a interpretação são os métodos mais importantes para atingir esse objectivo.”

Fora do mundo das palavras e dos caracteres, e da constante tentativa de ambos fazerem sentido, Yu Jiang assume “adorar ler romances”. E faz mesmo uma incursão por autores da nova geração literária da China, que contam histórias que originam reflexão sobre aquilo que o país foi um dia.

“O romance de que mais gosto, e que faz parte das minhas leituras recentes, é ‘To Live’, de Yu Hua. Através deste romance pude conhecer uma história dura onde os personagens sofrem de várias dores causadas pelo contexto especial da China naquela altura. Inspirou-me sob diferentes perspectivas, através da história, vida e seres humanos”, contou.

Outros mundos

Em Macau, cedo Yu Jiang percebeu a complexidade cultural desta sociedade e como pessoas de vários locais interagem umas com as outras. Ainda assim, o jovem acredita que os colegas da sua idade deveriam tentar ver mais vezes o mundo lá fora, para lá dos livros e das salas de aula.

“Em vez de os mais jovens estarem focados nos seus estudos na universidade, poderiam tentar ou ter a iniciativa de se exporem a mais coisas diferentes, como eventos culturais, questões sociais, projectos experimentais, por exemplo”, disse.

“Poderiam também expor-se a pessoas diferentes e a diferentes comunidades, para saírem da sua zona de conforto. Isso permitir-lhes-ia ter novas experiências onde pudessem explorar os seus interesses e paixões, e também experiências de vida diferentes”, acrescentou o estudante.

Yu Jiang defende que essa abertura pode ajudar a abrir portas, traçar caminhos. “Poderiam, com essas experiências, ter uma perspectiva mais clara do que vão fazer com o seu futuro e a sua carreira. Até porque a vida é um processo constante de exploração, em que vamos vivendo coisas que não esperamos e sem o valor esperado. Mas se não as vivêssemos nunca saberíamos o que são.”

Por ser uma sociedade “culturalmente muito diversa”, com “chineses, que são a maioria, mas também portugueses, filipinos e indonésios”, deveria ser feito mais do ponto de vista institucional para promover todas essas diferenças.

“Para lá da cultura chinesa local, virada para o cantonês, acredito que o Governo poderia promover mais a cultura no sentido de incluir mais as culturas das minorias, de modo a mostrar a imagem de Macau como um território onde não existe só uma indústria do turismo, que é próspera, mas também onde diferentes culturas coexistem.”

17 Mar 2017

Maria Ana Nascimento, estudante de tradução: “Macau é uma cidade sorridente”

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]aria Ana nasceu em Macau e por aqui viveu até fazer um ano. Como é natural, não tinha qualquer recordação da cidade. A imagem que foi construindo era baseada apenas nas estórias que os pais lhe contaram dos seus tempos asiáticos. Quis o destino que, 23 anos depois, a cidade regressasse à sua vida, e ela à cidade.

Apesar de ter crescido a meio mundo de distância, assim que chegou a Macau Maria Ana não sentiu a cidade como um sítio estranho, aliás, teve “uma sensação esquisita de familiaridade”. Não vai tão longe ao ponto de assumir o regresso como o retorno a casa, mas reconhece que se sentiu diferente quando, por exemplo, chegou a Pequim. Na capital chinesa, a estudante experienciou um maior choque cultural, uma avolumada diferença. “Macau é uma terra que não me é desconhecida no seu todo”, revela. Depois foi reconhecendo os locais das estórias dos seus pais, e estes sítios sentiu-os como algo familiar. De resto, o maior impacto que teve quando aqui chegou foi apreendido na pele: a humidade.

Outro aspecto que a fez sentir-se bem-vinda foi identificar “algumas réstias de Portugal” pela cidade. Assim como pedaços, obviamente, da China Continental. Neste contexto, Maria Ana considera Macau uma terra “com uma cultura e sociedade muito próprias”. Além disso, a estudante finalista de tradução de chinês acha que “é uma cidade muito amiga, sorridente, que sabe acolher”. Neste aspecto, Maria Ana alerta que é necessário saber morar aqui. Macau é um lugar que não aceita bem quem cá chega com manias de superioridade, quem desvaloriza a cultura do outro, quem não respeita. Mas com o respeito vem a amizade com que a cidade retribui, na opinião da estudante.

“Quando andas na rua ouves português, chinês, inglês, cantonês, é uma cidade muito multicultural, em todos os sentidos. Apesar de ser pequena em território, essa multiculturalidade torna Macau muito grande.”

Terra de oportunidades

Aos 24 anos, Maria Ana gosta de pensar que o seu futuro passará por Macau, até porque é uma terra onde vê oportunidades, em especial na sua área profissional. Em Portugal existem saídas para quem tira tradução de chinês, mas além de não serem satisfatórias, não são evidentes. “Vejo pelos meus colegas de curso que estão em estágios onde não fazem aquilo que gostam”, conta.

Em Macau, Maria Ana sente que “o português e o chinês estão em cooperação e a precisar muito de trabalhar juntos”.

Quando se candidatou ao estágio no Instituto Politécnico de Macau, uma das suas grandes motivações foi, precisamente, regressar à terra onde nasceu, “não foi uma decisão muito difícil”. Por cá estagia num laboratório de tradução onde se está a desenvolver um tradutor automático. No seu prato tem, essencialmente, trabalho de revisão, ou seja, avalia se as frases equivalem ao correspondente chinês e se estão bem escritas em português. “Estou a gostar bastante, não só pelo tipo de projecto que é, nem por ser uma oportunidade única, mas também porque nos está a dar uma grande bagagem de vocabulário e gramática em chinês”, conta.

No entanto, profissionalmente os horizontes da estudante não se limitam à tradução. Já com outro curso no currículo, Sociologia, Maria Ana tem o sonho de trabalhar nas Nações Unidas. Nesta organização gostaria de poder desenvolver pesquisa nas áreas do género, com relevo para o papel da mulher na sociedade, ou nas questões ligadas às desigualdades sociais. Outra área que a apaixona é a educação, em particular de crianças que precisam de cuidados especiais.

No que toca a sentir falta de casa, de Portugal do seu cantinho nas Caldas da Rainha, Maria Ana não alimenta sentimentalismos ou saudosismo. “Ultrapasso bem as saudades. Não sou uma pessoa que esteja sempre a pensar no fuso horário, nas horas que são em Portugal para conseguir falar com alguém”, diz. Também não é fria ao ponto de dizer que não tem saudades, em especial quando estas apertam durante as datas e as celebrações que normalmente passaria em família. Mas o facto é que, no dia-a-dia, todos têm o seu trabalho, e sabe que não ficaria em casa dos pais para sempre. Quando a saudade aperta, as redes sociais ajudam na ponte com Portugal e aproximam de quem mais gosta.

10 Mar 2017

Tam Kam Chun, construtor de barcos | O fazedor de pequenas memórias

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]as mãos de Tam Kam Chun a história não morre, não pode morrer. Onde outrora havia barcos grandes, feitos no seio de uma indústria bem-sucedida, há hoje barcos pequenos, que já não servem para transportar pessoas e mercadorias, mas sim para transportar memórias de um tempo que foi e já não volta.

Este artesão dedica-se a fazer barcos em miniatura, mas foi durante décadas construtor de juncos de madeira. Primeiro na península, junto ao Mercado Vermelho, e depois em Lai Chi Vun. Quis o destino que continuasse a trabalhar no ofício de uma vida, mas hoje as suas mãos trabalham pequenos pedaços de madeira que não são para vender, mas para contar histórias.

“Como já estou reformado e continuo a ter interesse por isto, então faço estas miniaturas, para que as pessoas possam conhecer um pouco desta indústria”, contou ao HM.

É na imensidão do vazio do estaleiro Son Weng, já sem actividade, que diariamente vai trabalhando nas suas peças. “Este estaleiro não é meu, mas de uma pessoa que conheço. Como os estaleiros ficam sem funcionamento, então um amigo emprestou-me este local.”

O trabalho com as miniaturas começou “há pouco tempo”, mas os barcos de grande dimensão começaram a sair das suas mãos quando ainda nem tinha 20 anos. Recorda de então tempos áureos, de quando havia trabalho e cada um aprendia as antigas técnicas como podia.

“Não trabalhava num lugar fixo, estava em qualquer estaleiro, onde fosse preciso. Não tive um mestre fixo e os que faziam os barcos comigo também não tinham. Aprendíamos uns com os outros. Perguntávamos sempre onde era precisa mão-de-obra e íamos aprendendo.”

O rigor acabaria por vir com o tempo. “Precisava de observar a técnica dos profissionais e com a passagem do tempo ia descobrindo a maneira correcta para fazer barcos. Só aí me tornei profissional.”

Na época, construir barcos era uma opção natural. “Antes não havia muitos trabalhos que pudéssemos escolher e tínhamos de ganhar dinheiro para a família. O meu pai também fazia barcos e tinha contacto com esta indústria. Então decidi começar.”

Igual ao original

Muitos dos que se deparam com Tam Kam Chun a trabalhar no estaleiro perguntam se ele pretende vender os pequenos barcos que faz. Mas para este antigo construtor naval o objectivo é mesmo contar um pedaço da história.

“Muitos perguntam-me se vendo as miniaturas, mas levo muito tempo, dez dias ou até meio ano. O objectivo é mostrar como era a indústria antes. A estrutura das minhas miniaturas é diferente dos barcos reais, mas tento esforçar-me e imitar a forma original. São as mesmas técnicas que usava para os barcos.”

Se as suas mãos enrugadas ainda são capazes de construir barcos, as mãos dos mais novos demorariam a aprender o ofício. Os tempos são outros e os interesses também, assegura.

“Não há muitos jovens que queiram aprender a fazer barcos, porque esta indústria já não garante o rendimento. Além disso são precisos vários anos para dominar esta técnica. Os jovens têm de estar mesmo interessados na indústria naval. Levei três anos a aprender as técnicas mais básicas, mesmo quem está interessado não tem hoje as condições suficientes para trabalhar”, aponta.

Ouvir primeiro

Anunciada a demolição dos estaleiros onde trabalhou uma vida inteira, Tam Kam Chun não aceita que o fim chegue de forma súbita. “Os estaleiros são a última amostra que existe sobre esta indústria, vou ter pena se o Governo decidir demolir tudo. O mais importante é que o Governo não fez qualquer planeamento ou consulta sobre isto, para que nós possamos saber se vale ou não manter isto.”

Mesmo que o Governo destrua e construa de raiz, “um novo estaleiro não vai ter história”, considerou. “Na sociedade há várias vozes contra a decisão do Governo e acho que não se pode manter essa decisão. Quero que Governo desenvolva a parte do turismo na zona de Lai Chi Vun.”

Para Tam Kam Chun, a população deveria ter a última palavra, mesmo que fosse contra a manutenção dos estaleiros. “A indústria naval tem uma grande história, que continuou até aos dias de hoje. Os cidadãos também precisam de avaliar se vale a pena manter. Se disserem que não vale a pena, então concordamos. Mas não queria que o Governo demolisse os estaleiros. O Governo diz sempre que quer salvaguardar a história e o património, mas agora quer destruir isto.”

5 Mar 2017

Carla Lourenço, Arquitecta | Macau, por acaso

[dropcap]C[/dropcap]arla Lourenço tem 28 anos e está há duas semanas em Macau, integrada no programa de estágios INOV. Arquitecta recente no território, tem nas descrições que faz desta sua mais recente experiência a surpresa de uma Ásia que ainda não sabe bem descrever, além da “diferença atroz” que sente quando comparada com outras paragens por onde já passou.

A arquitectura apareceu na vida de Carla Lourenço de uma forma “estranha”. As decisões que têm de ser tomadas “demasiado cedo” levam, por vezes, a escolhas que não seriam as de hoje. “Somos obrigados a decidir com 15 anos parte do nosso futuro e, hoje, acho que escolheria outra coisa: engenharia de ambiente, talvez”, diz ao HM. No entanto, apesar da ainda indecisão na carreira que um dia poderá escolher, recorda que a opção pela profissão que a traz a Macau agora teve na origem “o fascínio pelas artes, sobretudo pela escultura”. A engenharia do ambiente e o interesse pela área vêm da curiosidade que sentia, desde pequena, por cenários que a “intrigavam”. “Não entendia porque é que não existia mais reciclagem em Alcochete, porque é que nas idas para Lisboa cada carro apenas levava uma pessoa”, ilustra a natural da margem sul. Para Carla Lourenço, estas são “coisas absurdas” do dia-a-dia. 

A escolha da arquitectura mostrou ser uma possibilidade em juntar a arte e o ambiente. “Sentia que era uma mistura das duas coisas, podia mudar o ambiente em que vivo através do urbanismo.”

Foi com o desenho de casas e cidades que veio para Macau. Carla Lourenço integra o programa de estágios do INOV e Macau “não foi bem uma escolha, porque os candidatos não sabem onde vão parar, foi mais uma coincidência”. Dos cerca de três mil candidatos ao programa a arquitecta, foi dos pouco mais de 300 seleccionados.

A experiência em viver no estrangeiro não é nova. “Fui um ano em Erasmus para a Argentina, mas quando voltei já nada era a mesma coisa”, recorda. “Quando voltamos está tudo igual e nós é que mudámos.”

A experiencia na América Latina “foi incrível”. Com 21 anos foi para Buenos Aires, “uma cidade com mais gente que o meu próprio país e para uma faculdade com mais gente que Alcochete”. Foi viver num outro mundo. “É também uma cidade muito europeia.” 

Seguiram-se sete anos no Porto e chegada a hora de mudar. “O INOV era uma boa maneira de o fazer, porque alguém decide o destino por nós. É estranho, mas cómodo porque me alheio da responsabilidade e me limito a ir”, aponta.

Um feliz acaso

Macau foi a sorte que o INOV ditou. Quando chegou a altura de saber as colocações apareceu primeiro a bandeira da China. “Assustei-me, pensei que ia para Pequim ou uma outra grande cidade chinesa e, infelizmente, estamos cheios de preconceitos acerca do país”, refere. Depois da bandeira apareceu a cidade, “era Macau e fiquei em êxtase.” 

A chegada a Macau é, acima de tudo, cheia de estranheza e novidades. “A primeira coisa que estranhei foi entrar num autocarro e ver as coisas escritas em chinês e em português. Depois foi o sentir a humidade que, aqui, pesa. Socialmente foi sentir que as comunidades se dividem em grupos e eu fazia já parte de um, o dos portugueses. Foi muito estranho porque não pensei que existisse esta separação, pensei que fosse uma coisa mais integrada.” 

Os contrastes do território também marcaram e ainda são fonte de espanto para a recém-chegada. “Os edifícios enormes, as mega estruturas dos casinos com plantas naturais, aquilo parecia um cenário todo plástico e depois passamos nos jardins e as pessoas estão a fazer tai chi”, diz.

Há duas semanas em Macau, a arquitecta está “a adorar o desconhecido”, das comidas aos cheiros, o “ir ao mercado e ver o peixe vivo”. 

Em comparação com a América Latina, as diferenças são muitas, mas a linguagem marca o abismo. “Aqui não percebo o que se passa à nossa volta e não consigo comunicar”, afirma. 

Enquanto arquitecta, salvaguarda a “opinião de duas semanas em Macau” e, mais uma vez, são os contrastes que sobressaem. Um centro histórico muito consolidado e muito característico que, parece, estagnou no tempo, mas, de repente, surgem os grandes condomínios e casinos que constituem um grande paradoxo. “É demasiado diferente.” 

24 Fev 2017

Lídia Adelina Lourenço, artista de doçaria | Prémios de açúcar

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]ídia Adelina Lourenço nunca tinha feito um bolo daqueles que parecem verdadeiras obras de arte e que nem apetece comer, para não estragar. Contudo, foi lendo, experimentando, até se transformar na primeira artista de pastelaria em Macau a fazer bolos a três dimensões. Foi a descoberta de um talento que estava escondido.

Tudo começou em 2009, quando um problema pessoal a levou a experimentar um novo mundo. “Sentia-me triste, não tinha confiança”, contou Lídia Adelina Lourenço, que à época trabalhava na Teledifusão de Macau.

“Senti que, quando saía do trabalho, tinha de fazer outras coisas. Então comecei a fazer bolos com base em vídeos no YouTube e aí sentia-me contente. Era difícil sentir-me contente naquela altura. Comecei a levar bolos todos os dias para o trabalho, até que a minha chefe me sugeriu que abrisse uma página no Facebook para tentar vendê-los. Achei que não conseguia fazê-lo, porque nunca tinha estudado nesta área. Mas a verdade é que comecei a vender desde a primeira publicação que fiz, já há sete anos”, contou ao HM.

Começou por vender bolos comuns, até que surgiram as primeiras encomendas para bolos diferentes de todos os outros. A artista aprendeu tudo aquilo que sabe sozinha.

“Mandei vir livros do Reino Unido e comecei a ler sozinha como podia fazer bolos a três dimensões. Naquela altura mais ninguém fazia isso em Macau. Comecei a ter mais confiança em mim”, recorda.

Anos depois, Lídia Adelina Lourenço obteve o terceiro lugar a nível mundial na modalidade de arte em pastelaria, e conta com seis prémios, incluindo quatro medalhas de ouro em competições. Este ano, vai participar numa competição em Nova Iorque, em Maio, e noutra na cidade italiana de Milão, em Outubro.

Para esta artista, alinhar em concursos representa muito mais do que trazer troféus para casa. “Gosto de participar em competições porque assim posso adquirir mais experiências e conhecer mais pessoas, não é apenas para ganhar. É algo positivo. O facto de perdermos neste tipo de campeonatos não quer dizer que seja um mau trabalho, pois todos os trabalhos são bons”, explicou.

A arte de Lídia Adelina Lourenço já chegou à televisão, tendo protagonizado um programa de culinária de alguns episódios na TDM. O programa deverá regressar este ano ao pequeno ecrã, contou a artista.

Ensinar os outros

Lídia Adelina Lourenço também faz parte do Conselho das Comunidades Portuguesas, na qualidade de suplente, mas são os bolos que são o seu ganha-pão, apesar das horas de trabalho que representam. “Muitas vezes penso que deveria mudar de profissão e poderia ganhar mais, mas gosto de fazer isto”.

A artista recorda o momento, numa competição em Birmingham, no Reino Unido, em que despendeu 15 horas por dia a fazer duas esculturas, no período de duas semanas. O esforço, porém, compensou: ficou em terceiro lugar ao nível mundial, numa competição que recebe artistas de todo o mundo.

Lídia Adelina Lourenço abriu, em Maio de 2015, a sua loja, intitulada “Linalenço Dessert”, onde também promove workshops com outros artistas de renome mundial. Nestas sessões os interessados podem, por exemplo, aprender a fazer bolos iguais às famosas malas Birkin, da Hermés.

“Antes paguei as minhas deslocações para aprender esta arte em países como a Inglaterra e os Estados Unidos, então tive a ideia de começar a convidar estes artistas para que, assim, as pessoas possam aprender alguma coisa sem saírem de Macau. Todos os dias tenho encomendas e dou aulas.”

Apesar de reconhecer que ganha pouco tendo em conta as horas que gasta com cada obra de arte, Lídia Adelina Lourenço não se vê a mudar de profissão. “Adoro fazer isto porque cada bolo, para mim, é especial. Gosto de fazer bolos em forma de escultura, embora demore muito tempo.”

“Já fiz mais de mil desenhos para bolos, gosto que cada pessoa tenha o seu próprio desenho, um bolo diferente. Não sei muito bem o que me inspira. Só sei que todos os dias faço algo diferente, depende do que o cliente gosta ou deseja”, disse ainda. Atenta às últimas tendências em termos de alimentação, Lídia Adelina Lourenço admite criar receitas para quem é alérgico a ovos ou farinha. O açúcar, corantes e cremes especiais é que não podem faltar.

17 Fev 2017

Ryoma Ochiai, terapeuta e DJ | O japonês suave

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e existem pessoas que personificam aquilo a que se chama de “boa onda”, Ryoma Ochiai é, definitivamente, uma delas. Ar descontraído, sorriso sempre pronto a desatar em gargalhada, tudo atributos que já se podem ver no seu pequeno filho, Gil. Vive em Macau há quase seis anos. “Cheguei em Março de 2011 para ver como era o panorama dos cafés na cidade, vim apalpar terreno, conhecer esta área”, conta.

Chegou com um amigo que lhe pediu ajuda para abrir um café na cidade. Tudo começou assim, por acaso, com a leveza que o caracteriza. A sua natureza de ávido viajante foi a porta de entrada na região, esta abertura de espírito valeu-lhe o convite profissional. Tinha andado um pouco por toda a Ásia, no seu estilo, mochileiro, calcorreando a Índia e a Tailândia, por exemplo. Mas Macau sempre lhe escapou no itinerário. Em criança, Ryoma tinha visitado Hong Kong com os pais, mas nunca tinha passado para este lado que, na sua opinião, “é totalmente oposto”. Quando veio foi para ficar.

“Apesar de não saber chinês, gosto muito da cultura, mas não sabia absolutamente nada de Macau, não li, não pesquisei antes de cá chegar”, confessa o massagista. A chegada ao território fascinou-o mas também o deixou chocado. Toda a azáfama, a profusão de culturas, os excessos dos casinos. Principalmente a sensação de que os sítios mais tradicionais nunca são total e exclusivamente portugueses, ou chineses. Na sua opinião, aqui vive-se “uma mistura de culturas muito interessante”.

Partilhar felicidade

Uma das primeiras coisas que espicaçou os sentidos do japonês foi a comida. Apesar de gostar de tudo o que é gastronomia chinesa, e de em Macau esta ser um pouco diferente, já a conhecia. Mas a comida portuguesa era uma novidade. “É muito boa, e como vocês têm muitos pratos com arroz, para mim, enquanto japonês, é óptimo”, diz, com uma gargalhada sonora.

Quando veio para Macau, apesar de concentrado na abertura do café, fez alguns amigos DJs, da forma simples como as pessoas com interesses em comum se conhecem e juntam. Então, um dia, surgiu a oportunidade de organizar uma festa num local que já não existe: o Clube Lotus, no Hotel Venetian. “Foi muito bom, apareceu muita gente e a festa contou com muitos convidados e DJs internacionais.”

Nesta altura, a cidade era uma novidade para Ryoma. “Quando vim para cá tudo era novo, tudo era divertido, sempre a fazer novos amigos, a conhecer lugares novos, comida nova, era como estar em viagem”, lembra. Até que a dimensão de Macau o apanhou, mas nunca de uma forma opressiva, até porque esta cidade é especial, “é como um pequeno país, até tem leis diferentes”.

Em termos profissionais, Ryoma divide-se entre os pratos a passar música e as massagens que dá no Yoga Loft Macau. Enquanto estudava sociologia, Ryoma já fazia sets de DJ no Japão, ao mesmo tempo que trabalhava como recepcionista num centro de massagens tailandesas. As duas actividades continuaram ao longo da vida, assim como a intensa ligação à natureza e o prazer em viajar. Tudo se conjugou. Antes de se fazer à estrada pensou no que poderia fazer, em termos de trabalho, para arranjar dinheiro e esticar a viagem. Então, fez-se luz. Massagens! A resposta estava ao seu alcance. Aprendeu a massajar e foi mundo fora. “As massagens são boas porque, mesmo que não entenda a língua, posso sempre olhar para o corpo e ver o que se passa, tirar alguma lógica”, explica.

Voltando à vida de Macau, Ryoma sente que, como esta é uma cidade onde se pode fazer dinheiro, acaba por atrair pessoas que olham para o cifrão como a sua primeira prioridade de vida. Este não é o seu desígnio, “esteja no Japão, na Índia, ou aqui”. Claro que tem de fazer dinheiro para se sustentar, mas o seu objectivo “é tornar a vida excitante e partilhar com os outros”. Daí o prazer que sente em organizar festas, ou a fazer massagens. Seja à mesa, ou num clube de dança, o japonês quer partilhar algo fascinante, e tornar as pessoas em seu redor um pouquinho mais felizes.

10 Fev 2017

Ana Lara Clemente, professora: “Sou uma fã de Macau”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]na Lara Clemente chegou há quatro anos e meio e cedo se apaixonou pela cidade. Os cheiros, as pessoas, as vivências e as ruas fizeram da professora, criada em Santarém, uma apreciadora de Macau. Até passou a ver algum encanto na confusão.

“Sou uma fã de Macau, adoro cá viver, adoro o clima, adoro as pessoas, adoro tudo.” Ana Lara Clemente, professora do ensino básico, trabalha hoje com crianças de Jardim de Infância. Mas as facetas apaixonantes da região não se ficam por aqui. “Adoro os cheiros, adoro andar pelas ruas, até da confusão, por incrível que pareça, porque venho de uma cidade em que não há confusão”, acrescenta a professora.

Hoje em dia gosta do burburinho do território, assim como das pessoas que partilham as artérias de Macau. “Têm uma cultura muito diferente da nossa, são mais fechados, mas identifiquei-me com isso, porque era, também, uma pessoa reservada”, confessa. Era! Actualmente, comunica muito mais, está mais aberta aos outros, uma evolução pessoal que atribui a Macau.

A sua adoração pela região começou com umas férias de uma semana, preliminares a uma viagem à Tailândia. A sua impressão da cidade já tinha sido boa, apesar da confusão reinante que a baralhou um pouco. Ana Lara tinha cá família, os cunhados, e a sua vida mudou quando o marido veio para Macau trabalhar. Então, no Verão de 2012, veio de malas aviadas para a Ásia, com uma filhota pequena, Carolina, que foi a sua primeira alavanca social. “Foi óptimo para mim a minha filha entrar na escola, porque acabei por fazer muitas amizades com os pais das colegas dela, criei o meu grupo de amigos, que mantenho até hoje”, conta.

Macau continua a seduzir Ana Lara, em todos os mercados, nos passeios que dá com as filhas na zona dos Três Candeeiros, na vila da Taipa, nos monumentos que gosta de visitar. Mas quando se questiona sobre o sítio que a mais marcou, a resposta é fácil: o Alto de Coloane. Outro dos prazeres que tem é levar as filhas aos parques, dar longos passeios, fazer uma visita aos pandas. A família também disfruta a oferta que Macau proporciona: sempre que há um bailado aproveita para levar as filhas e não dispensam uma ida ao cinema. A cidade acolheu-as, mas Ana Lara nota uma diferença entre Carolina e a filha mais nova, que nasceu cá. “A Inês é muito filha de Macau”, conta. Enquanto a filha mais velha quer muito ir a Portugal, sempre impaciente com a chegada das férias, a mais nova, quando regressou de férias e chegou a casa, suspirou. Foi como se dissesse “esta é a minha terra, é aqui que tenho as minhas raízes”, recorda.

Professora mãe

Desde criança que Ana Lara quis ser professora, a sua vida profissional é impulsionada por um sonho de infância. Lembra-se de brincar às professoras desde tenra idade. Porém, a sua experiência na escola primária não foi a melhor, à excepção da professora Isabel que, ainda hoje, recorda com carinho. “O que me inspirou a seguir este caminho foi o azar de ter tido maus professores no primeiro ciclo.” A experiência compeliu-a a ser uma melhor educadora, a procurar ser diferente. Uma espécie de vingança pedagógica.

Criou uma empresa de centro de estudos e ocupação de tempos livres em Santarém, à qual se dedicou durante quatro anos, antes de vir dar aulas para Macau. Por cá encontrou alunos que são expostos a uma vida diferente, com mais facilidades, com um maior acesso a tudo, que tomam o mundo como um dado adquirido. Isso reflecte-se no comportamento na sala de aula. A diferença é maior, principalmente porque Ana Lara trabalhou em Portugal quando a crise económica rebentou. No entanto, esta é a profissão que a realiza, até porque trabalha com “um público muito honesto e aberto”.

Um dos factores que atribui ao seu crescimento profissional é o facto de ter sido mãe. Passou a compreender muito melhor as preocupações dos pais que, anteriormente, podia achar um pouco intrusivas. “Desde que fui mãe apercebi-me das razões pelas quais os pais querem participar. Querem estar atentos à educação dos filhos, saber o que se passa tanto na sala de aulas, como no recreio. A insistência não é porque se querem intrometer na vida dos professores.” O factor maternidade fez com que passasse a dar ainda mais atenção à comunicação com os pais, a criar uma boa relação que una a escola à família.

3 Fev 2017

Cristiano Cannata | De Manhattan à Praia Grande

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um longo caminho. Nascido e criado em Florença, Cristiano Cannata é um rookie de Macau com uma longa história de trabalho longe da sua terra natal. Começou a trabalhar no território a 1 de Outubro do ano passado e, para já, não podia estar mais satisfeito com a opção profissional e pessoal que fez. “Pela primeira vez em muitos anos, chego ao meu apartamento, fecho a porta e tenho a sensação de que estou em casa”, conta. “É a segurança, o ambiente, as pessoas que aqui vivem”, justifica.

O manager do Caffe B, um restaurante italiano junto ao Lago Sai Van, veio do Laos para Macau. Mas a história das viagens deste homem, que assume ter espírito nómada, começou em 2001. “Descobri que a Europa era um pouco apertada para mim e segui os meus sonhos. Mudei-me para os Estados Unidos, para Nova Iorque, com uns trocos no bolso.” Antes de entrar em detalhes sobre os anos norte-americanos, faz uma declaração: “Tenho de dizer que Nova Iorque foi a melhor escola possível em termos de trabalho”.

Até se abrirem as portas do universo da hospitalidade, Cristiano Cannata quis ser técnico de medicina dentária. Foi para isso que estudou, depois de ter começado a trabalhar, em tempo parcial, num laboratório. Tinha apenas 13 anos. “Ia à escola de manhã e depois aprendia uma profissão”, recorda.

A partir do momento em que a idade lhe deu a possibilidade de entrar em bares e clubes, surgiu mais um part-time. Foi então que apareceram novas perspectivas.

Os ataques de 11 de Setembro de 2001 adiaram a viagem para os Estados Unidos, mas em 2002 era trabalhador a tempo inteiro num bar em Nova Iorque. De empregado de bar passou a gerente, do bar saltou para o restaurante, foi empregado de mesa, tornou-se no responsável máximo pelo espaço onde trabalhava. O caminho fez-se até que, em 2006, aconteceu “a grande mudança” da vida do italiano, uma mudança ainda maior do que a ida para a América.

Maravilhosa Turquia

“Trabalhava no Paper Moon, em Manhattan, e tive a oportunidade de abrir um restaurante do mesmo grupo em Ancara, na Turquia. Precisavam de um gerente. Fui para a Turquia e descobri o país. Foi amor à primeira vista”, diz. Projecto em andamento, regressou a Nova Iorque em Junho de 2007, onde acabou por ficar mais três anos e meio. Questões familiares puseram um ponto final no sonho americano: voltou para Itália, mas o regresso a casa fez-se de forma temporária. Passados três meses tinha, de novo as malas feitas.

O destino que se seguia já era conhecido. Com contrato assinado com uma multinacional italiana, foi abrir um espaço na Turquia. Istambul, explica, tem muitos pontos de encontro com Itália. “É uma cidade muito cosmopolita. É Nova Iorque com 2000 anos de história.”

Dois anos depois desta nova mudança, a empresa pediu-lhe para ir para Miami. “Não gosto da Florida. Ofereceram-me um lugar em Ibiza, mas acho que já sou demasiado velho para ir para lá”, sorri.

A experiência que se seguiu foi a estreia na Ásia. “Fui para o Laos.” Cannata não esconde que sentiu um choque cultural e civilizacional, “vindo da civilização para um sítio que é, tecnicamente, terceiro mundo”. Mas o italiano, que sempre trabalhou em projectos com uma ligação ao seu país, acredita que “tudo acontece por uma razão”. A descoberta da Ásia permitiu-lhe perceber que, “às vezes, corremos em demasia”.

Macau do nada

Os três anos e meio no Laos – com um intervalo de oito meses entre os dois restaurantes que abriu no país – serviram para que a Ásia lhe ficasse “na pele”. Ainda tentou prolongar a estadia, mas pouco mais havia para fazer. “No meu trabalho, é preciso motivação. Vender o mesmo menu e ver os mesmos clientes durante três anos torna-se um pouco pesado. Não havia nada mais que pudesse desenvolver”, afirma.

Em Março deixou o Laos e, mais uma vez, era a Turquia que se perspectivava no horizonte, “para um projecto grande” que, lamenta o italiano, foi cancelado por causa da situação política no país. “Foi aí que dei por mim à procura de emprego. Macau surgiu do nada.”

O que Cristiano Cannata sabia de Macau era apenas “de filmes antigos e que era a Las Vegas da Ásia”. Mas veio até cá para uma entrevista e achou a empresa “muito sólida”. “É uma empresa japonesa. O projecto é muito interessante, há oportunidades de crescimento, e gosto muito de Macau”, resume. “Sinto-me muito seguro, é uma cidade limpa, multiétnica, com pessoas muito interessantes”, acrescenta o manager.

O facto de aqui existirem muitas nacionalidades agrada a um homem que já passou por contextos culturais muito distintos. “Os anos de Nova Iorque ensinaram-me a lidar com sociedades multiétnicas. Basta andar no metro e ir do sul para o norte que, dependendo da paragem onde se está, o sotaque pode ser completamente diferente, com comunidades diferentes. É preciso ter uma mente muito aberta”, observa. “Gosto desse lado em Macau, de ser multiétnico, mas sem o ritmo apressado de vida que se encontra em Hong Kong ou em Nova Iorque.”

O facto de ser um rookie faz com que ainda lhe seja difícil fazer uma avaliação justa do território. Mas já detectou uma falha: para certas coisas, é preciso ir a Hong Kong. “Ando à procura de uma livraria e ainda não encontrei. Mas não tenho muito tempo para explorar a cidade, por isso talvez a culpa seja minha.” Estas “pequenas coisas” não diminuem a sensação de paz que aqui encontrou. Macau dá a ideia de ser a casa.

1 Fev 2017

Oszkar Fulop: “Apaixonei-me por esta terra”

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]szkar sempre teve um fascínio com a Ásia, um continente que o aliciava e o chamava de forma surda, numa voz que chegou ao centro da Europa. Na altura, essa voz chegou através de uma proposta de emprego que não soube como recusar. Assim começava a expedição de um húngaro, oriundo da Transilvânia, a terra do Drácula. Antes da Primeira Grande Guerra, o território pertencia à Hungria, mas com a queda do Império Austro-Húngaro, seria anexado pela Roménia. Oszkar faz parte de uma família húngara numa região com apenas dois mil húngaros.

Oriundo de uma nação fracturada por múltiplos impérios, entalada entre blocos políticos, Oszkar desde criança que sentiu o chamamento dos países asiáticos. Com a queda do muro, e a chegada do capitalismo, as coisas melhoraram mas não tanto. “Tivemos um período difícil, e parecia impossível termos um trabalho e ganhar dinheiro que nos permitisse ser turistas”, recorda o segurança. Com a vida enleada num marasmo, em 2013 foi a uma agência de emprego e, por acidente, acabou por conseguir um trabalho na longínqua Macau. Seria um guarda imperial no Hotel Grand Emperor. “Apesar das condições salariais não serem espectaculares, esta era a melhor oportunidade que tinha para conseguir estar na Ásia, e Macau pareceu-me, desde logo, um bom sítio para começar”, lembra. Dessa forma o húngaro estaria a escassas duas ou três horas de voo de países que queria muito conhecer, tais como a Tailândia, o Japão, e a China interior.

“Cheguei ao aeroporto de Hong Kong e sabia zero sobre o que me esperaria, não sabia que Macau tinha sido uma colónia portuguesa”, confessa o segurança. Veio sozinho, e só tinha os representantes da empresa que o contratara à distância à sua espera no ferry. Depois de conhecer o sítio onde iria morar, de ter formação no trabalho que iria desempenhar, restava-lhe conhecer a cidade onde passou a morar. No entanto, o primeiro impacto foi difícil de encaixar. “Nos primeiros seis meses tinha a certeza de que ia apanhar o primeiro avião para deixar Macau para sempre, mas depois apaixonei-me por esta terra”, explica.

Primeiro estranha-se

Macau foi-se entranhado em Oszkar, lentamente. Levou tempo a perceber aquilo que não gostava. O principal problema a barreira da linguagem, a comunicação. Não tinha nada a ver com o local, nem com a cultura. Hoje em dia, o húngaro é feliz no território, vive num bairro tradicional, São Lázaro. Um dos episódios marcantes que mudou tudo aconteceu por acaso, foi uma feliz coincidência. Numa tasca tradicionalmente chinesa, conheceu um grupo de locais. “Comecei a passar mais tempo com eles, e aí conheci mais locais. Percebi que estava a fazer uma aproximação estúpida e que eu é que estava errado”, confessa Oszkar.

O húngaro percebeu que se demonstrasse que estava a aprender a língua, a fazer um esforço, os chineses gostavam de si, incondicionalmente. Foi aí que o amor lhe bateu à porta. “Conheci uma rapariga portuguesa que já vivia aqui desde 1994, com uma paragem pelo meio, e aí fui descobrindo a comunidade portuguesa, um grupo mais alternativo”, recorda. Essa foi mais uma porta aberta para mergulhar na vida da cidade, assim como para conhecer Portugal.

“No Verão de 2014 visitei Portugal, conheci o Algarve e o Alentejo, adorei os cenários naturais, as barragens e a comida”, explica.

Hoje em dia, Oszkar considera-se um cidadão do mundo. Apesar das saudades imensas da família, o húngaro olha para a Europa com imensa preocupação. “Existe muito racismo a vir à superfície na maior parte dos países europeus”, comenta com alguma tristeza. Tal facto, levou o segurança a sentir o velho continente como um território onde se espalha a ignorância, o medo, o que faz com que não se sinta seguro por lá. Porém, em Macau sente-se em paz.

20 Jan 2017

Teresa Fernandes, estudante: “Há muita coisa a mudar neste mundo”

 

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]eresa Fernandes tem 16 anos e a convicção de que um futuro melhor é possível. A adolescente, que frequenta o 11.º ano na área das Ciências Económicas, não anda a ver o mundo de longe. As acções e decisões que já toma reflectem um olhar atento para as necessidades, actuais e futuras. A escolha académica é também um exemplo disso. Se a prioridade seriam as humanidades, a “economia pode dar mais oportunidades”. “É também uma área que me interessa muito e fundamental na actualidade”, disse ao HM. O objectivo é possuir ferramentas capazes para, na medida do possível, “intervir no mundo e poder trabalhar, por exemplo, em organizações não-governamentais que se dediquem a ajudar quem precisa”.

Para a adolescente a saída é clara: “Um economista pode trabalhar em áreas além do universo financeiro e intervir activamente para a justiça”. Teresa Fernandes sublinha que “há muita coisa a mudar neste mundo porque roda tudo à volta do dinheiro”. “Gostava que não houvesse tanta injustiça social, gostava que acabasse o comércio de armas, por exemplo”, diz. No entanto, a esperança é maior que a desilusão: “O mundo é muito imperfeito mas, se houver mais controlo nalgumas áreas, poderá ser melhor. Isso parte muito de nós enquanto jovens, porque somos o futuro”.

E porque o dia de amanhã se prepara hoje, Teresa Fernandes embarcou, no Verão passado, naquela que foi a experiência da sua vida. A mais nova da equipa “Meninos do Mundo” passou uma semana em São Tomé e Príncipe, integrada numa missão de intervenção junto das escolas. A ideia foi dar a conhecer os direitos das crianças porque “elas muitas vezes não sabem que os têm e, se sabem, não sabem quais são”.

A experiência não foi a de umas férias num sítio bonito. Foi antes uma realidade que, apesar de mais ou menos esperada, “jamais será esquecida”. Antes de embarcar, fez o trabalho de casa. “Imaginei de tudo um pouco: como vivem as pessoas, o que comem, como me iriam tratar, como seria a pobreza, etc.”, recorda. No entanto, a realidade supera a imaginação, os livros ou os documentários televisivos. “Uma coisa é ver na televisão, outra é ver com os próprios olhos. Ver as coisas à nossa frente muda tudo, dá-nos a verdadeira noção da realidade e isso mudou a minha vida”, considera.

Das diferenças que nota do antes e depois de uma acção humanitária em São Tomé, a maior é o valor dado às coisas que possui. “Aprendi a valorizar o que tenho. Aquilo que as mães dizem desde que somos pequenas, para comer tudo porque há gente a morrer à fome, é verdade”. Na altura não entendia como é que a comida que deixava no prato poderia suprir as necessidades dos outros que, “tão longe”, não tinham com que se alimentar. Agora não tem dúvidas que, “acima de tudo, é uma questão de respeito”. “Depois de São Tomé, não faço questão de ter muitas coisas em casa e não compro por sistema aquilo de que não necessito verdadeiramente.”

A adolescente não deixou de fazer a analogia com Macau, “esta bolha que é tão rica”. “Aqui é tudo muito fácil. Viajo, vou a restaurantes, passeio, mas isto é um mundo à parte”, reflecte.

Esta, espera, foi a primeira de muitas missões que quer fazer no futuro porque acredita que, “mesmo com tão pouco, é possível mudar alguma coisa”.

Fotografias para contar histórias

Da missão ficou uma exposição de fotografia que Teresa Fernandes quer mostrar. “Já tinha ideia de fazer uma exposição depois da viagem para dar a conhecer a experiência de outra forma. Tive necessidade de guardar aquelas imagens que nos entraram pelos olhos”, recorda.

Depois de uma apresentação na Escola Portuguesa, a adolescente tem na mira a Fundação Rui Cunha, a Casa de Portugal ou o Consulado, em suma, “algum lugar visível para partilhar a experiência”.

A ideia da fotografia é, para a jovem, “importante para que se possa captar os momentos”. A experiência fica para sempre, “mas as imagens ilustram e comunicam com os outros: é como se fossem um livro”.

Mais do que momentos, a exposição foi concebida para criar uma linha de pensamento, para construir uma narrativa. Uma história que “retrate uma realidade distante e muito dura”. “Estamos a falar de pessoas que, apesar de muito pobres, conseguem ter em si a alegria.”

13 Jan 2017

Dennio Long, arquitecto e fotógrafo | Por entre esboços e detalhes

 

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um apaixonado pelo património da terra que o viu nascer e isso nota-se assim que se visita a sua página no Facebook com o seu nome. Trata-se de um espaço cheio de memórias, muitas vezes com rostos.

Dennio Long estudou Arquitectura no interior da China mas, nos tempos livres, gosta de fotografar os monumentos dos quais ninguém se lembra, que ficaram esquecidos nas velhas memórias de uma Macau que já não existe. Há ainda fotografias sobre Itália e Portugal.

São os detalhes que ele quer mostrar, para que nem tudo se perca com o passar do tempo. “Como estudei Arquitectura, estive sempre atento aos monumentos de Macau e reparei que as transformações são enormes, e parece que ninguém está a tomar atenção a isso. Por isso tiro fotos aos monumentos a que as pessoas não prestam muita atenção. Dou atenção sobretudo aos que não estão protegidos pela UNESCO, que têm um estilo mais moderno ou que são esquecidos pela população.”

Dennio Long dá como exemplo a zona do Porto Interior ou os pátios tradicionais chineses, a maioria deles em risco de ruína. O arquitecto fala ainda do exemplo da Escola Portuguesa de Macau ou das casas da zona de San Kio, um exemplo de Art Nouveau ao estilo chinês.

“Depois da transferência de soberania, o desenvolvimento económico da cidade foi rápido e as mudanças foram demasiado rápidas, muitas das quais não notamos. Espero que a nossa geração possa ser como a geração mais velha, ou seja, mais responsável, com a criação de memórias da nossa cidade. Esse também é o objectivo da fotografia.”

O interesse pela fotografia começou há dez anos e foi através dela que Dennio Long percebeu que, em Macau, há coisas que se perdem de um dia para o outro para nunca mais voltarem. “Notei uma grande diminuição de monumentos. Costumo andar pela rua, olho uma casa e, como não trago o meu equipamento, não tiro a fotografia. Um mês depois a casa já não está lá.”

O passado ignorado

Além das fotos que partilha nas redes sociais, Dannio Long pretende chamar a atenção do Governo para a forma como a cidade está a crescer e, ao mesmo tempo, a desaparecer.

“As pessoas elogiam os cenários bonitos mas, na prática, não querem voltar ao passado. As pessoas não querem morar nas casas velhas, sobre as quais o Governo não tem capacidade de gestão, por serem privadas. É difícil usar os cofres públicos para fazer algo. O Governo tem de pensar em métodos mais detalhados para proteger as zonas em separado.”

Quanto ao centro histórico, Dennio Long considera tratar-se de um “conceito vago”, onde se misturam vários estilos e temporaneidades. “Há dez anos ainda conseguíamos ver as ligações, mas tudo isso desapareceu. Acho que o que existe actualmente já não corresponde ao centro histórico.”

O arquitecto recorda-se, então, da Europa. “Em Itália há uma zona inteira com arquitectura antiga em várias ruas e isso em Macau não existe, está tudo misturado com outros tipos de arquitectura, quebrou-se a ligação.”

Dannio Long tira fotos da perspectiva de um arquitecto e são os detalhes que mais gosta de mostrar: aquela janela que enferrujou com o tempo, a cortina que ficou, o degrau que nunca mais foi limpo.

“Se olharmos com mais atenção, as fotos publicadas pelo Governo são falsas, são cenários que não correspondem à realidade. Quero apresentar cenários verdadeiros às pessoas, e espero que as minhas fotos possam gerar algum tipo de pensamento nos outros.”

O que faz, considera, é quase único. “Não há muitos fotógrafos profissionais em Macau, e os poucos que existem não gostam muito de tirar fotografias exclusivamente dos monumentos”, remata.

6 Jan 2017

Andrea Prado, visual merchandiser | Da Amazónia para a selva urbana

[dropcap style≠’circle’]“C[/dropcap]omo eu vim do Brasil, achava que a China ficava no fim do mundo.” As palavras são de Andrea Prado, que hoje recorda o quão Macau lhe parecia longínquo ao chegar. Algo com que não sonhava, quando saiu de Belém, no belíssimo estado do Pará. Tinha, na altura, 15 anos. Com laços familiares em Portugal, o pai de Andrea sempre acalentou mudar-se para a Europa. Assim foi, chegaram a Portugal, alugaram um carro e percorreram o país de norte a sul durante dois meses, com particular detalhe para o norte. Passaram vários dias em cada cidade para as experimentar, para as provar. Lisboa, Coimbra, Porto, Braga, Guimarães, as principais cidades, até porque o pai de Andrea “tinha de trabalhar e não dava jeito ir para uma aldeia”.

Quando chegou a altura de decidir, o Porto foi o sítio eleito por acharem que era mais fácil a integração. “Era uma cidade fácil de atingir, de conquistar e muito romântica. Além disso, conheci os filhos de uns amigos do meu pai, que eram meio artistas, e deram-nos CD dos Bandemónio e dos Delfins”, lembra. Lisboa não dava para Andrea, era muito dispersa, e tinha-se de usar mais o carro.

Entretanto, vieram os estudos de design de moda e o amor. Casou-se com Simão, arquitecto. Na altura começava a rebentar a crise em Portugal e, com um filho a caminho, a vida em Portugal começava a perder encanto. Uma situação complicada para um casal em que ambos são profissionais liberais. Ele no atelier de arquitectura, ela no atelier de design de moda. “Quando a crise começou, o mercado da moda foi o primeiro a ser afectado, as coisas supérfluas são deixadas mais à parte”, recorda. Estava na altura de fazer as malas outra vez.

Rumar a Oriente

A resolução estava tomada, restava saber para onde ir. Chegaram a ponderar o Brasil mas, como o marido de Andrea tinha residência de Macau, o casal pensou que seria mais fácil a mudança e integração.

Quando chegou, não tinha qualquer expectativa de Macau, até porque a Ásia era um mundo novo. Num ápice a distância para o Brasil aumentou consideravelmente. Tinha uma ligeira ideia de sujidade e desorganização, o que acabou por bater certo. Mas não conhecia o outro lado, o factor surpresa de um contexto cultural completamente diferente. “Acho piada às discrepâncias e às desigualdades de uma cidade tão confusa e descomposta. Já estive em muitos sítios, mas aqui as coisas são tão desreguladas, e têm um lado cómico que podemos achar exagerado ou mesmo excêntrico”, lembra a visual merchandiser.

Na adaptação, o facto de a cidade ainda manter a língua portuguesa nas placas das ruas e nos serviços foi algo que ajudou bastante, não é a mesma coisa que “ir para Zhuhai ou Shenzhen”, acrescenta.

Por outro lado, Andrea fala de um sentimento de clausura. “Para onde quer que vás tens de passar fronteiras, pagar vistos, dá um pouco a sensação de prisão.” Além disso, a designer não acha piada à forma como se “constrói e destrói sem a mínima consciência, plano ou organização, sem se pensar na população de forma coerente”.

Muito diferente dos anos da Macau romântica e charmosa que o seu marido conheceu, do glamour do Hotel Lisboa, e da cidade que parecia muito mais pequena, quando o Cotai não existia.

Mãos à obra

Nos primeiros tempos ficava muito em casa com o bebé e não foi fácil encontrar emprego. Primeiro surgiu-lhe uma proposta para o Studio City como técnica de guarda-roupa para espectáculos. Ficou na dúvida, até que lhe surgiu a possibilidade de trabalhar na Prada como visual merchandiser, onde está há dois anos.

Hoje em dia, o trabalho é das melhores coisas de Macau, onde trata das montras da Prada, assim como de todo o arranjo visual de produtos nas lojas, em coordenação com as vendas e distribuição.

Se o emprego é um mar de rosas, criar o filho de três anos em Macau não tem sido nada fácil. “É uma cidade suja, muito poluída, e uma criança que vá para um parque não pode brincar na relva, só no alcatrão”, comenta Andrea. Essa foi uma das razões que fizeram a família mudar-se para Coloane, para ter mais espaço, mais verde, mais liberdade.

Se por um lado, é fácil encontrar uma babysitter, a preços baixos, Andrea não vê nisso uma vantagem assim tão grande. “Se fosse em Portugal poderia deixar com a minha irmã, ou encontrar uma escola com a qual me identificaria mais em termos de métodos de ensino e pedagogia”, confessa.

 

30 Dez 2016

Rita Serafim | Uma mulher entre voos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]terrou pela primeira vez em Macau há 20 anos, ainda durante a administração portuguesa. Imagine-se, uma adolescente de 13 anos, arrancada do seu meio, dos amigos, da escola, e de tudo o que tinha conhecido até então, para vir morar para o outro lado do mundo.

“O meu pai foi convidado para trabalhar para a Air Macau e a família mudou-se para cá”, lembra Rita Serafim. Numa altura da vida em que tudo é um drama, vir morar para a Ásia foi aquilo que se espera. “Foi muito complicado no início porque, apesar de haver muita gente portuguesa aqui e de, na altura, termos três escolas, mudar de país foi muito difícil”, recorda. De repente, viu-se sem chão. “Senti que tinha tudo em Portugal, os meus amigos”, a vida a que estava habituada, tudo ficou para trás.

Mas o ser humano tem, de facto, grande capacidade de adaptação. Ao início não foi fácil, em particular nos dois primeiros anos, mas com o alargamento do ciclo social e integração, tudo passou a ser mais simples. Hoje em dia, Macau é a sua casa, “mais ainda do que Portugal”.

Para Rita Serafim, esta é uma cidade onde se consegue evoluir profissionalmente. Actualmente, a portuguesa trabalha numa empresa de jactos privados. A sua função é certificar-se de que tudo está em ordem antes de os aviões saírem, desde o tempo, lista de passageiros, bagagem, licenças, slots, etc..

A profissão que desempenha costumava ser quase exclusivamente feita por homens. “Há um bocado de preconceito, se calhar pelos horários e volume de trabalho, que é bastante pesado”, revela. Além disso, é um trabalho que precisa de constante actualização, que evolui ao sabor do avanço tecnológico. Rita aceita com prazer a aventura de estar nos bastidores do mundo da aviação, e da necessidade de constante adaptação. Algo em que se tem tornado perita ao longo da vida.

Vai e vem

Em duas ocasiões, e sempre para estudar, Rita Serafim viu-se na necessidade de regressar a Lisboa. Primeiro para terminar o ensino secundário de 2004 a 2007 e, mais tarde, para frequentar um curso de pastelaria de 2010 a 2013. “A ida foi mais uma questão de estudos, porque aqui não há, aqui o ensino é mais orientado para áreas como o Direito”, explica. No segundo regresso a Portugal, Rita foi estudar formação turística. Não gostou. Experimentou cozinha, com o mesmo resultado, até que acabou a tirar um curso em pastelaria tradicional portuguesa. O curso foi rápido mas, nessa altura, Macau estava a puxá-la com uma força irresistível: a sua filha. “Custou-me muito ter de deixá-la cá, foi a melhor opção na altura, mas assim que pude regressei”, lembra a operadora de voo.

Com uma vida em constante mutação, um pouco à imagem de Macau, Rita não esquece as suas raízes, em particular no que toca aos sabores. “Quando tive a minha filha decidi que em vez de comprar coisas deveria fazê-las e, como somos portugueses no estrangeiro, queremos comidas de Portugal”.

Duas décadas de Macau foram o suficiente para testemunhar a evolução tremenda no território. Rita considera que há algo a perder-se. “Acho que está cada vez pior, o nível de vida aumentou, e a cidade perdeu aquele estado de inocência que tinha, que fazia com que toda a gente que chegasse cá se apaixonasse”.

Na sua perspectiva existem demasiados casinos, e desapareceu a velha e romântica Macau, com aspecto de vila de pescadores. Não é contra a modernidade, mas considera que o progresso deixou a população para trás, atropelou a comunidade. O rápido crescimento parece ter sido “mais virado para fora do que para dentro”. Entre tanto progresso, Macau parecer ter-se esquecido do seu bem mais precioso: as pessoas.

16 Dez 2016

Teresa Correia: “Tenho muitas saudades do meu Macau antigo”

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]isou pela primeira vez o território em 1983 e trazia uma missão: organizar, juntamente com outros colegas, o sistema de conservatórias de Macau. Quando Teresa Correia, hoje reformada, foi convidada para vir para o sul da China, aceitou de imediato, quase como que por impulso. “Adelina Sá Carvalho, antiga secretária-adjunta, foi ter à nossa conservatória e pediu funcionários para vir organizar e montar todas as conservatórias em Macau. O meu chefe disse se estava interessada em ir para Macau e na altura estava farta de estar em Portugal, eram greves atrás de greves, já não podia mais com aquele ambiente. Disse logo: “ontem já era tarde”. O meu ex-marido também era funcionário da conservatória dos registos centrais e concordamos em vir com os miúdos.”

Aqui estava tudo no início: havia uma conservatória do registo predial, outra comercial e só uma do registo civil. Teresa Correia lembra com saudade os primeiros tempos em que, para fazer o trabalho, teve de andar com um dicionário de português-chinês na mão. “Foi um desafio, sem falar uma ponta de chinês, organizar todos os documentos necessários, andávamos com um dicionário na mão, à procura das coisas. Ao fim de um tempo dissemos que aquilo seria impossível, que tínhamos de ter um tradutor. O que nos valeu é que as pessoas de bastante idade falavam bem português.”

Tudo terminou em 1999, com a transição de Macau para a China, mas Teresa Correia já tinha criado laços em Macau. Não queria ir, tentou ficar, mas Rocha Vieira, à altura governador, não deixou. Em Portugal, a antiga funcionária pública voltou ao posto que tinha deixado, mas já nada era o mesmo: “não descansei enquanto não me reformei”.

“Macau já é a minha terra, e quando me fui embora nem queria acreditar, porque achei que ficava para sempre. Custou-me muito ir embora, fiz de tudo para cá ficar. Disseram-me erradamente que tinha de ir embora, mas afinal podia ter ficado, como todos os funcionários públicos portugueses.”

Falta de higiene

Teresa Correia acabou por voltar após a transição e é aqui que se sente em casa. Ainda assim, é do passado que tem saudades. “O meu Macau dos anos 80! Não tem nada a ver. Quando cheguei a Macau detestei, fiz uma ideia de uma coisa que não era.” A residente recorda um período em que não abundava a limpeza das ruas e a recolha do lixo não era algo permanente como é hoje.

“Tive amigas minhas que apanharam com sacos do lixo na cabeça. Os cheiros para mim foram o pior. Na zona de São Domingos tive quatro meses para conseguir entrar em algumas ruas. Fazia-se tudo na rua, a comida, a queima da pele do porco, a própria sujidade. Não havia higiene em Macau, não havia caixotes do lixo. Adorei tudo o resto. A Taipa era um descampado, não tinha prédios nenhuns. Coloane não tinha nada.”

À época, Teresa Correia sentia-se livre. “Era uma sensação de liberdade, de respirar, não digo ar puro, porque nunca houve. Respirava-se, e sentia-me completamente liberta. Aos poucos e poucos houve uma melhoria enorme na limpeza das ruas.”

Quase 17 anos passados desde a transferência de soberania, Teresa Correia vive no seu Macau, mas um território bem diferente daquele que conheceu a primeira vez.

“Tenho muitas saudades do meu Macau antigo. Também tenho muitas saudades das amizades que havia, do companheirismo.” E dá exemplos.

“Todos os meus colegas macaenses ficavam parvos comigo. Quando entrava num restaurante chinês, quando me sentava à mesa traziam-me sempre um prato com pão, ainda que não comessem pão, só arroz. Hoje já não fazem isso, não há essa preocupação. É disso que tenho saudades. Havia mais comunicações entre os chineses e nós, e hoje não noto tanto isso.” A comunidade portuguesa era bem diferente também. “Éramos muito unidos, e fizemos amizades cá. Havia uma união muito grande, o que não se sente hoje. É raro.”

9 Dez 2016

Leung Chon Kei, estudante de Direito | Coimbra é uma lição

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] o único aluno de Macau a estudar Direito na Universidade de Coimbra, enverga a tradicional capa e batina que todos os estudantes da cidade usam, mas apesar da experiência singular os desafios são muitos. Leung Chon Kei, aluno do terceiro ano, confessa que o primeiro sentimento que teve quando entrou na faculdade foi de abandono, sendo que ainda não conseguiu acostumar-se à sensação de solidão.

Leung é um dos bolseiros do projecto de continuação dos estudos em Portugal, lançado em 2004 pelo Governo, que tem o objectivo de formar profissionais bilingues na área jurídica.

Saído de Macau após a conclusão do ensino secundário, Leung Chon Kei começou a vida de estudante universitário em Lisboa onde, com outros bolseiros, fez um semestre no curso de língua portuguesa, sendo que o segundo semestre o ensino passou a estar focado em conteúdos jurídicos.

“Quando cheguei a Portugal não tinha muitas expectativas, porque já tinha no país estado uma vez. Não estava animado, nem nervoso”, recordou. Após um mês de frequência de um curso de Verão, a alegria sentida durante o processo de aprendizagem da língua não diminuiu, algo que o fazia não parar de aprender coisas novas da língua de Camões. “A minha paixão sobre o idioma continuou e decidi começar a fazer o curso de Português no Instituto Português do Oriente (IPOR)”, contou. As primeiras noites gastas a estudar a língua mostraram-lhe os desafios quando ainda andava no ensino secundário. “Depois isso vai-se tornando um hábito.”

O suporte que já tinha da língua inglesa acabou por ajudá-lo na aprendizagem. “É impossível associarmos o português com o chinês porque não há qualquer semelhança. Se pensarmos em chinês, a gramática vai ficar toda errada.” Chegado a Lisboa, e já com um nível elevado de português na bagagem, Leung Chon Kei ainda frequentou cursos nocturnos na Delegação de Macau em Lisboa para a preparação aos exames nacionais portugueses.

Lost in translation

A primeira aula em Coimbra trouxe ainda mais desafios ao jovem estudante, que descreve o momento como sendo uma “aula de ditado”. Leung Chon Kei só queria anotar tudo o que o professor estava a dizer. “No primeiro ano andei nervoso, e tive sorte que apanhei alguns alunos de Macau do quarto ano que me explicaram algumas dúvidas. Mas depois de dois a três meses comecei a perceber tudo o que os professores diziam nas aulas.”

Apesar de ter enveredado pelo Direito, esta área não foi amor à primeira vista. Depois, tudo mudou: “Há muitos raciocínios lógicos e posso aprender coisas sobre diferentes áreas sociais”.

A um ano de terminar a licenciatura na cidade dos estudantes, Leung Chon Kei diz que a maior desvantagem de estudar Direito em Portugal é o grande desconhecimento que continua a existir entre Portugal e Macau. Apesar de o Direito de Macau ser de matriz portuguesa, o jovem estudante fala das crescentes diferenças em ambas as jurisdições e teme dificuldades quando chegar ao território, onde terá de frequentar o curso de introdução ao Direito de Macau. Ainda assim, está confiante na carreira que o espera e pretende fixar-se em Macau, onde continua a existir carência de profissionais bilingues na área do Direito. A existência de muitas vagas são um chamariz para que regresse à terra que o viu nascer.

Em Coimbra, há tempo para estar com os colegas de curso, apesar da exigência do curso e da língua. Ao fim de três anos em Portugal, Leung Chon Kei já percebeu as diferenças em relação ao pequeno território do sul da China. “Macau é para trabalhar e Portugal é para passar férias, porque em Macau há poucos espaços onde podemos estar e tem uma elevada densidade populacional, o que faz com que pensemos em trabalhar, em ter uma vida mais ocupada. Em Portugal temos mais espaço, ar livre, praias e ambientes que são bons para descansar.”

2 Dez 2016

Marieta da Costa, arquitecta | A fazedora de mundos

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á conhecia Macau antes de vir para cá morar: o território era destino de férias por causa de ligações familiares. Há cinco anos, fez as malas e decidiu deixar Londres, cidade onde nasceu o primeiro filho, e mudou-se para a terra do marido. “O espírito de comunidade em Inglaterra não existe da mesma maneira que em Macau e foi também isso que nos fez voltar, além de que o meu marido tem cá família”, diz Marieta da Costa, arquitecta.

Um salto no tempo para o início do percurso que, feitas as contas, a fez chegar aqui. Marieta da Costa chegou ao final do 9o ano e, à semelhança de quase todos os miúdos com 14 ou 15 anos, não fazia ideia do que queria ser quando fosse grande. A mãe ainda lhe recordou que gostava de desenhar, tinha jeito e era criativa, mas a arquitecta não imaginava, na altura, que fosse possível colocar a criatividade ao serviço de uma profissão.

“A minha mãe decidiu pôr-me numa universidade a fazer exames psicotécnicos. Nessa altura, ainda não se ouvia falar muito disso. Estive um dia inteiro a fazer exames muito rigorosos e, quando vieram os resultados, dava tudo para Arquitectura, Design de Interiores, Design de Equipamentos, professora de Educação Visual”, conta. A mãe decidiu procurar “a melhor escola de Artes em Portugal, ao nível do secundário”, e foi assim que acabou por ir parar à António Arroio, onde estudou Design de Equipamentos, “com uma componente técnica muito grande”.

Curso terminado, quis ser arquitecta. “Não me adaptei, porque vinha de um ensino muito artístico e a universidade de arquitectura onde estive era muito ‘vamos copiar o Siza Vieira’, ‘porque é que ele é muito bom?’, ‘porque é o ‘Souto de Moura é fantástico?’. Queria fazer coisas à minha maneira”, explica.

Primeiro ano feito, esteve de férias em Inglaterra para melhorar o inglês. Ao final de um mês, voltou para Portugal, fez as malas e regressou a Londres. “Foi um grande choque para os meus pais, porque o ano lectivo em Inglaterra já tinha começado e normalmente prepara-se a entrada no ano anterior.” Os pais tinham medo que perdesse o interesse pelos estudos. “Disse-lhes que ia trabalhar e ver qual era a melhor universidade para fazer arquitectura, e assim fiz.”

Marieta da Costa começou a trabalhar, enquanto preparava as candidaturas às universidades de Arquitectura. Porque também se interessava por Design de Interiores, concorreu a um curso nesta área. Entrou em todas as instituições de ensino superior, mas a escolha foi para a Chelsea College of Arts. A licenciatura em Arquitectura exigia sete anos, um tempo que, à época, era em demasia. O Design de Interiores tinha vencido.

“No último ano conheci o meu marido, estávamos a fazer o mesmo curso, mas faltava-nos qualquer coisa. Eu sabia que me faltava arquitectura. Então acabei o curso e fui para a London Metropolitan University.” Foram anos “muito bons”, de “muito trabalho”. “Entretanto, engravidei. Tive de fazer a minha defesa de projecto enquanto o Lio ficava nos braços do pai à espera que a mãe acabasse. Foi um bocado complicado, mas correu tudo muito bem.”

A mudança para Macau foi fácil, mas ao nível profissional a integração foi “um pouco complicada”, sobretudo porque decidiu por um caminho alternativo. “Não queria ir trabalhar para casinos, nem no sector privado. Decidi abrir a minha empresa. Não andei à procura de trabalho. Ia fazendo muito design de interiores, fazia muito restauro. Há dois anos comecei com um projecto novo”, explica.

O “projecto novo” chama-se arquitectarte: aulas de arquitectura para crianças com idades compreendidas entre os três e os cinco anos. “Não é ensinar Arquitectura no verdadeiro sentido da palavra. É pegar numa forma, num objecto, e dar uma série de ideias para que percebam o que é habitar o sítio onde estamos, olhar em redor e ver as coisas de forma diferente”, descodifica. “É pegar num quadrado e explicar que dá para fazer uma coisa 3 D, um objecto. Trabalho muito a tridimensionalidade.”

Quanto a Macau, é uma cidade que a faz sentir-se em casa. Cinco anos depois de se despedir de Londres, as comparações continuam a ser inevitáveis. “Toda a gente diz que Macau é difícil e eu vejo muitas lacunas mas, comparando com outros sítios, existe imenso apoio”, aponta. Além do factor familiar, há “os amigos que se constroem e que se adoptam como parte da família”. Marieta da Costa encontra “um espírito de comunidade” que não existia no sítio onde viveu década e meia.

25 Nov 2016

Marta Pereira, locutora: “A rádio fala para as pessoas”

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde pequena que a rádio ocupa grande parte da vida de Marta Pereira. Da infância, recorda que os pais trancavam a porta da sala para não aceder à aparelhagem. Para evitar os discos riscados, eram-lhe oferecidos rádios que “atirava para o chão para tentar ver as pessoas que estavam lá dentro”. Desde essa altura que a paixão pela rádio não a larga “porque é uma magia e continua a ser uma companhia, a rádio fala para as pessoas”.

A locutora da Rádio Macau viu a vida mudar quando sentiu, na pele, o desemprego em Portugal e o avião rumo a Macau foi a solução, ao aceitar uma proposta de emprego no território. “Trabalhava como jornalista em Portugal e, em virtude da situação de crise económica que o país começou a atravessar, os órgãos de comunicação social começaram a definhar e acabei por ficar desempregada”, recorda ao HM.

Incapaz de “ficar parada”, decidiu investir num projecto pessoal e integrar um curso no Cenjor na área de jornalismo digital quando surgiu a proposta para vir trabalhar para Macau. Em registo de surpresa, Marta Pereira decidiu arriscar. “A proposta para vir para cá apanhou-me desprevenida, é certo. As primeiras questões que coloquei foram o que vou fazer e quanto vou ganhar para saber se, realmente, compensaria vir”, explica. Com as respostas na mão, a decisão não durou mais do que uma semana a ser tomada e passado um mês estava a chegar ao território. “Não foi uma decisão difícil, até porque gosto de aventuras e de desafios, e esta oportunidade pareceu-me mais um desafio que poderia colocar na minha carteira”.

Em vésperas de mudar de vida e de lado do mundo, Marta Pereira, que não conhecia Macau, tentou, pelos meios que podia, perceber o lugar que a esperava. “Quando aceitei a proposta comecei à procura de tudo o que dissesse respeito ao território mas não criei muitas expectativas, até porque já aprendi que o não devo fazer. Vinha com os pés relativamente assentes na terra.”

A chegada, há cerca de um ano, foi um misto de sensações em que as questões eram, essencialmente, “que luzes são estas, que cheiro é este?”.

Ninguém se entende

A grande dificuldade que encontrou foi a linguagem. “Sou uma pessoa, se calhar fruto da minha profissão, que gosta de comunicar. Chego a Macau e, de repente, tenho a barreira intransponível da língua.” Ingenuamente, Marta Pereira estava à espera que a língua portuguesa se falasse mais no território. “Queria comunicar e não conseguia, e isso foi muito difícil para mim”. No entanto, o problema “já está devidamente ultrapassado”. A exigência do entendimento atalhou e desenvolveu outros caminhos. “Aprendemos a desenvolver outras formas de comunicação e muitas vezes recorremos à mímica para nos fazermos entender”.

Mas Marta Pereira não cruzou os braços perante o muro linguístico e inscreveu-se na licenciatura de ensino da língua chinesa como língua estrangeira no Instituto Politécnico de Macau por achar que “poderia, de alguma forma, facilitar a comunicação e o conhecimento das vivências da comunidade chinesa, até porque é muito difícil entrar no meio deles, e o facto de falar a língua poderia abrir portas nesse sentido”. Por outro lado, e a pensar no futuro, o facto de conhecer a língua poderia ser uma mais-valia em termos profissionais futuros. A falta de tempo e a complexidade no estudo de um sistema linguístico muito diferente daquele a que estava habituada fazem com que “esteja a ser muito difícil a conjugação entre trabalho e aulas”.

Questões de linguagem à parte, Marta Pereira não sentiu dificuldades de maior. Para a locutora, “o ser humano é camaleónico e adapta-se muito facilmente às circunstâncias”. Hoje, sente-se “perfeitamente aculturada” apesar de existirem ainda algumas diferenças culturais que a perturbam. Mas é também na diferença cultural que encontra o fascínio. “Acho incrível poder conviver com comunidades tão diferentes”, afirma, salientando as particularidades de Macau, “uma cidade que não dorme e de contrastes”.

“Temos a cidade moderna, das luzes e dos casinos e, em contraponto, temos a Macau antiga, com prédios cinzentos, com os rituais de se comer na rua e dos mercados exteriores. Este contraste é absolutamente delicioso.” Entre um e outro, Marta Pereira não tem preferências: gosta de viver em ambos.

18 Nov 2016

Diana Barbosa, arquitecta: “Macau já é a minha casa”

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau era uma curiosidade desde os tempos de faculdade para Diana Barbosa. A arquitecta residente na RAEM há cerca de três anos recorda as referências ao território por parte dos professores que lhe foram beliscando a curiosidade. “Lembro-me de que comecei a ouvir falar de Macau na área da arquitectura ainda na universidade e já na altura este espaço, que me era dado como tão particular e longínquo me despertava a vontade de o conhecer”, explica ao HM. A vontade transformou-se em oportunidade. A recém licenciada em arquitectura candidatou-se ao programa de estágios Inovjovem, escolheu como destino a RAEM e meia volta ao mundo depois, aterrava no local que lhe veio dar, posteriormente, a  “oportunidade única no que respeita à construção em grande escala”.

Após os meses de estágio regressou a Portugal, mas a Ásia já se tinha instalado na sua vida e não tardou a regressar em busca da sua sorte. “Macau representava aquilo que queria viver profissionalmente. Os casinos são um universo muito rico, também em termos de arquitectura. Escondem um mundo, aquando da sua construção, que as pessoas na generalidade desconhecem, e eu queria aceder a ele”. Após venturas e desventuras, esperas de abertura de quotas em algumas das empresas para as quais se tinha candidatado, Diana Barbosa acabou por receber uma proposta à sua medida. Um gabinete internacional, dedicado aos projectos associados aos casinos apresentou-lhe uma oportunidade que a arquitecta não descurou e que “até hoje é fonte de realização profissional e muita aprendizagem”. “O que se faz em Macau não se faz em mais lado nenhum do mundo nesta área da arquitectura, e como tal, é o sítio certo para se estar”, afirma sem esconder a realização pessoal que o território lhe tem proporcionado.

Diana Barbosa recorda a segunda chegada a Macau como “um momento difícil”. Apesar de ir de encontro aos seus desejos, as maiores dificuldades sentidas foram na logística das mudanças, nomeadamente os problemas que teve de enfrentar para alugar uma casa. “Depois do Inov voltei a Portugal e quando regressei a Macau, em 2014, as rendas estavam a subir em flecha”, recorda.

Os tempos iniciais não foram fáceis neste sentido. O ter iniciado um trabalho recente não ajudava na conquista de um tecto onde ficar: “como ainda estava numa fase inicial de trabalho não tinha como alugar casa. O que me valeu foi que encontrei uma empresa à minha medida e o resto veio por acréscimo.”

Casinos vistos por dentro

Saber os meandros que envolvem as grandes construções associadas ao jogo em Macau, era um dos grandes objectivos de Diana Barbosa. “O que se faz aqui é muito diferente, mas também é muito aliciante”, explica. A razão é porque “permite oportunidades de intervir em questões que de outra forma nunca teríamos as portas abertas”.

Se agora os casinos são o mundo em que vive, Diana Barbosa não abandona uma paixão antiga que vai desenvolvendo por cá. O desenho, que sempre a acompanhou, está agora restrito aos tempos livres mas não deixa de marcar os cadernos de esboços que representam um projecto sempre em construção, a produção de um diário de viagem. A arquitecta pretende com esta iniciativa pessoal criar um registo do que tem sido “a vida aqui na Ásia” para um dia recordar. “Vou desenhado e escrevendo o meu diário destes anos, desde que cá cheguei porque um dia, quando regressar, não quero que nada fique esquecido” comenta.

Diana Barbosa recorda a chegada a Macau, terra a que hoje chama de casa, e não esquece que foram os odores, a primeira coisa que lhe chamou a atenção. Por outro lado “há aqui um sentimento de vizinhança que me faz sentir confortável”. “Lembro-me bem da primeira casa onde vivi, das ruas com luzes e sombras muito bonitas que me acompanhavam até ao trabalho, e da sensação de pertença a um bairro em que de manhã, por exemplo, no meu caminho passava pelas ruas e me cruzava com as pessoas que entretanto tomavam o pequeno-almoço aqui e ali, o que me fazia ter a sensação de proximidade e vizinhança”, comenta.

Para já os planos de regresso a Portugal estão longe dos objectivos a médio prazo. A maior dificuldade que ainda sente é a distância da família, mas a arquitecta está de mangas arregaçadas. “Macau já é a minha casa, já aqui tenho amigos e uma vida. O próximo passo é trazer os meus pais para cá”, explica. “Estou a trabalhar nesse sentido e sei que vou conseguir”, afirma com um sorriso de quem vê o futuro mais luminoso com a presença de todos os que estão dentro do coração.

11 Nov 2016

Joana Epifânio Lança: “Não trocava Macau por outro lugar”

 

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e cabelo negro e farto e sorriso contagiante, já para não falar do sotaque cerrado do Ribatejo, Joana Epifânio Lança conta com dez anos de residência em Macau e diz-se pronta para continuar. Casada, com dois filhos, Joana veio parar ao Oriente por amor e é por amor que continua cá. Mas esse amor já é também sentido pela terra que a acolheu.

“Sou uma pessoa que gosta de tudo. Gosto de pessoas, de cheiros, de luz, de barulho. E Macau tem isso tudo. Tem cultura, tem tudo o que eu gosto. Apaixonei-me [pelo território], se bem que tenho de admitir que não foi fácil. E o facto de estar completamente apaixonada pelo Miguel foi a essência de tudo isso. Foi o que me trouxe a Macau, vir atrás do grande amor.”

Após uma breve visita a Macau, em 2005, Joana veio definitivamente no ano seguinte para não mais sair de cá. Ao contrário da maioria das pessoas, esta portuguesa, que trabalha como técnica de contabilidade, gosta da confusão das ruas e da enchente de turistas que diariamente povoa o centro histórico.

“Não trocava Macau por outro lugar nenhum do mundo. Continuo a gostar, independentemente de tudo. É normal, fartamo-nos, mas há algo que nos agarra aqui. Não há explicação e, se perguntarmos a mais pessoas, ninguém te vai conseguir explicar.”

O lugar onde mais gosta de estar é a varanda da sua casa, da qual contempla o Delta do Rio das Pérolas. Fora de casa, todos os lugares preenchem Joana. “Sinto-me bem em qualquer lado. Nada me faz confusão. Gosto das confusões de Macau, o que me assusta é o silêncio. Não gosto do silêncio, nunca gostei de momentos calmos e monótonos e demasiado parados. Adoro andar no meio da multidão. Toda a gente evita ir para as Ruínas de São Paulo, eu tenho coragem de ir para lá em plena hora de almoço. Adoro toda aquela gente.”

Joana Epifânio Lança recorda-se da fase em que chegou, quando em Macau viviam pouco mais de dois mil portugueses. Nas suas idas aos lugares mais turísticos, a portuguesa lembra-se das fotografias pedidas pelos visitantes da China, com abraços e beijinhos à mistura. Ainda hoje Joana afirma que se insere em todas as comunidades que por aqui vivem.

“Sou uma mulher do mundo. Tanto me dou com chineses, com portugueses ou australianos. Não escolho e sou muito curiosa. Em Macau todas as pessoas têm histórias, coisas que nos ensinam e que nos ajudam a amadurecer. Não podes estar aqui restrito à comunidade portuguesa ou chinesa, porque esta é uma terra multicultural. Se queres ser feliz em Macau, tens de ter a mente aberta.”

Crescer na China

Dez anos depois, e após várias experiências profissionais, Joana Epifânio Lança garante que este território lhe ensinou muita coisa. “Macau foi essencial no meu processo de crescimento como pessoa e mulher. Aqui descobri que posso viver em qualquer canto do mundo. É a prova de fogo para tudo, desde questões profissionais até ao lado familiar, amoroso. Há o velho ditado de Macau que diz: ‘Vens solteiro, sais casado, vens casado, sais divorciado’. Estou casada há 13 anos, estou feliz e quero manter-me assim.”

Na área profissional, Joana Epifânio Lança garante que em Macau “não há limites”, usando mesmo um velho ditado português para explicar porquê. “Em terra de cegos quem tem olho é rei. Esta é uma terra de oportunidades. Vês uma e tens de agarrá-la. O único entrave é a língua. Falo o essencial de chinês, todas as minhas colegas são chinesas, mas não faço conversa fluente.”

Se Joana passou toda a vida a fugir dos números, a verdade é que foi a eles que veio parar. Mas nem isso a deixa infeliz. “Tenho um trabalho muito árduo que é ser mãe, mas também estou num escritório de contabilidade há três anos e gosto do que faço. É uma escola, porque sou licenciada em Marketing e Relações Públicas e vim parar a Macau a um gabinete de contabilidade. Toda a minha vida fugi da matemática mas, por ironia do destino, vim cá parar.”

Afirmando-se mais de Macau do que de Portugal, Joana Epifânio Lança até podia viver em Hong Kong, mas se fosse na China a adaptação já seria mais complicada, admite. “A China é completamente diferente, não sei se me adaptaria tão bem. Não acho que as pessoas sejam tão amistosas, são mais rudes e frias. Há certas coisas de que nós, ocidentais, gostamos. A higiene é essencial, lugares limpinhos. Não podemos dizer que a China seja realmente limpa. E os cheiros são de facto muito intensos. Aí já me fazem confusão.”

Caso fosse para a região vizinha, Joana Epifânio Lança ia ter saudades dos petiscos portugueses que se servem em Macau. Ainda que o marido com jeito para a cozinha iria consigo para resolver o problema. “Tenho sorte porque tenho um marido que tem mão para a cozinha. Casava-me com ele outra vez se fosse preciso só por causa disso. Eu sou um zero à esquerda na cozinha.”

4 Nov 2016

Cassia Schutt, designer de eventos | Querer que dê certo

[dropcap style≠’circle’]“V[/dropcap]amos? Então está, vamos.” Foi assim que aconteceu Macau na vida de Cassia Schutt, brasileira, carioca, menina do Rio. Já lá vão dez anos, “agora mesmo, no final deste mês”, e foi por acaso. Podia ter sido outro sítio qualquer, mas foi Macau, “uma vinda muito tranquila e uma mudança desejada” para dar início a mais um episódio na vida de uma mulher que procura ver o lado positivo dos locais por onde vai passando.

“A empresa do meu marido faliu”, recorda. “Era uma empresa grande de aviação no Brasil e Macau foi a primeira opção que apareceu. Não tínhamos a mínima ideia onde era”, confessa.

Cassia Schutt era, na altura, produtora de casting no Brasil e sair do país foi uma opção que nem todas as pessoas que a rodeavam conseguiram perceber quando receberam a notícia. “Tinha uma vida muito confortável. Tinha acabado a universidade, estava realizando um trabalho que adorava e que me dava frutos e rendimentos, tinha uma empresa no Brasil. As minhas amigas, quando falei que vinha, disseram ‘O quê, você está louca? Vai viver para a China? Está tudo certo aqui’”, relata.

O facto de estar “bem resolvida profissionalmente” no Rio de Janeiro não foi um obstáculo à adaptação a Macau, antes pelo contrário – permitiram-lhe encarar a pausa que iria fazer com mais conforto. E se, por um lado, esta licenciada em Comunicação Social, da área da Publicidade, gostava do que fazia, o tempo para a vida pessoal era pouco. Sem filhos à chegada ao território, decidiu então que era altura para parar, “curtir o casamento” e pensar em ter filhos. “Com o trabalho que tinha no Brasil, não me conseguia imaginar a ser mãe. Era uma coisa que me angustiava”, diz. “Os filhos vieram, os dois nasceram em Macau, foi planeado dessa forma.”

Depois do nascimento do primeiro filho, surgiu a vontade de voltar a trabalhar – Cassia Schutt é a responsável em Macau pela Meemo, uma empresa em que se juntam vários serviços prestados a quem quer fazer uma festa, da concepção do conceito à decoração temática do espaço, passando pela execução, venda e aluguer de acessórios. O projecto apareceu “naturalmente”: “As pessoas diziam ‘que legal que você faz isso, foi uma coisa que surgiu e que me preenche. Estou abraçada a um trabalho de que gosto”.

Cassia Schutt explica que há procura em Macau deste tipo de serviços, até porque há pouca oferta, mas identifica dificuldades. “Sinto muita falta de fornecedores, de materiais, apesar de a gente morar na China”. No Brasil, exemplifica, há empresas que se dedicam a fornecer produtos específicos para festas, “produz-se uma muito depressa, com alguns telefonemas de casa, ao computador, já se alugou e se entregou o material, aqui não existe isso”. É aqui que tem de haver criatividade em dose dupla: “Quando o cliente está disposto a fazer uma coisa mais bacana, tem de se comprar o material e fazer a produção”.

Nas vésperas de completar uma década longe do Rio de Janeiro, Cassia Schutt diz continuar a viver com a mesma tranquilidade com quem encarou a mudança. E analisa Macau com esse mesmo estado de espírito: “Várias pessoas reclamam do trânsito. Olho para Macau e penso ‘que bom que tenho cinema com pipoca, que bom que tenho restaurantes novos’. Acho que, em qualquer lugar, o crescimento vai trazer coisas boas e coisas ruins também. Consigo ver muita coisa boa”. Apesar de todas as transformações destes últimos dez anos, a designer de eventos encontra em Macau “um lugar tranquilo, que dá a facilidade de fazer as viagens que gostamos, onde se vive uma vida sem violência”. “Acho que quando a gente faz essa mudança, tem de querer que dê certo, tentar ver o lado positivo das coisas”, remata.

28 Out 2016

Rita Amorim O, psicóloga clínica | Uma mulher de família

[dropcap]R[/dropcap]ita Amorim O é psicóloga clínica mas, e acima de tudo, é uma mulher de família. Chegou a Macau há cinco anos. Casada com um designer com ligações ao território, foi opção conjunta, após o nascimento da primeira filha, tentar a vida neste lado do mundo. “O início foi muito complicado”, afirma Rita Amorim O, ao recordar a chegada com um bebé nos braços.

Apesar de já conhecer a cidade, “mas só de passar férias”, os primeiros tempos foram marcados principalmente pelas dificuldades enquanto jovem mãe. No entanto, e rapidamente, ambientou-se, até porque considera que “o ser humano tem uma capacidade de adaptação muito maior do que se imagina” e hoje vê Macau como sendo também a sua casa.

“É uma cidade muito generosa”, principalmente para quem tem filhos. Para a psicóloga, Macau é um lugar onde existe tempo. “Vinha de Lisboa, uma capital onde só se corre de um lado para o outro e com uma outra dimensão, enquanto aqui está tudo muito mais à mão.” Para ilustrar a qualidade de vida com que foi surpreendida, Rita Amorim O lembra que, “na altura, conseguia almoçar todos os dias em casa, aproveitava muito a bebé”.

A vida mudou e o tempo também mas Macau continua a ter mais-valias. “Continuo a achar que esta terra é muito generosa para quem tem filhos pequeninos, por exemplo”, apesar de muita gente ter o hábito de se queixar de que não há nada para fazer. “Claro que as actividades que fazemos dependem um bocadinho da rede social que nos envolve mas, por exemplo, em Portugal temos de partilhar o nosso tempo com a nossa família e o fim-de-semana por vezes é passado com almoços entre pais e sogros” e o tempo para os amigos escasseia. O mesmo não acontece em Macau. Com menos família a requisitar horas “conseguimos partilhar melhor o tempo com toda a gente”, explica Rita Amorim O. “Conseguimos combinar sempre coisas diferentes: uma ida ao parque ou mesmo a estes casinos todos que já contam também com espaços dedicados a quem tem filhos.”

Por outro lado, e para a mãe de família, o tempo pode passar-se muito bem por cá e mesmo a usufruir de actividades ao ar livre. “A Taipa tem agora uma marginal espectacular e, se quisermos, passa-se ali uma tarde com as crianças a andar de bicicleta, numa zona bonita e a aproveitar um programa de que todos gostamos”, ilustra, acrescentando que “isto são coisas que nos ajudam muito mais do que aquilo que possamos imaginar.

De mãe para mãe

Rita Amorim O não separa a vida pessoal da escolha profissional. A psicóloga é uma das fundadoras da “Moms”, um projecto ao qual dá o coração para ajudar as famílias da terra. A iniciativa surgiu da necessidade que a própria sentiu quando cá chegou relativamente ao apoio à parentalidade. “Temos vários projectos que vão desde a preparação para o parto ao apoio às rotinas do bebé. Também fazemos cursos de massagens a crianças e formação para quem dedica a vida a tomar conta dos mais pequenos.” Paralelamente, também dá consultas no âmbito da psicologia da família.

“A maternidade está realmente sempre presente, na vida e na profissão” conta, ao mesmo tempo que recorda que “acabou por acontecer naturalmente, apesar de sempre ter sido muito maternal”. No fundo, o projecto começou com o nascimento da segunda filha, “correu tudo muito bem mas, pelo facto de não falar chinês, senti-me pouco apoiada”. Juntou-se a Maria Sá da Bandeira, que é sua sócia, e optaram por trabalhar nesta área, de modo a ajudar as mães que não falam chinês. Com a iniciativa, a “Moms” acaba por ser pioneira neste tipo de iniciativas que cada vez mais recebem mulheres chinesas. Para já, são apenas casos cujo cônjuge é ocidental, mas já representa uma nova etapa.

Para o futuro é o sucesso da “Moms” que ocupa as preocupações de Rita Amorim O. Tal como ver um filho a desenvolver-se, o desejo da psicóloga é ver este projecto também a crescer. “Nem tudo acontece, por vezes, no tempo que queremos e há momentos em que as coisas não são fáceis, mas continuaremos a fazer tudo pelo sucesso da ‘Moms’”, remata.

23 Out 2016

Laurentina da Silva, produtora de eventos: “Já não se sonha em Macau”

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]aurentina da Silva é “orgulhosamente” macaense. Nascida e criada em Macau, lamenta nunca ter saído da terra para conhecer as suas raízes lusas. “Sempre vivi aqui, nunca daqui saí e tenho pena por não conhecer a terra do meu pai e as minhas origens portuguesas, pelo que a ideia que tenho daquele país é apenas das histórias que o meu pai contava”, explica ao HM.

Enquanto filha da terra, sente-se um verdadeiro fruto da mistura de culturas. “Também tenho a cultura chinesa muito vincada por causa da minha mãe e no fundo não sou nem uma coisa nem outra e ao mesmo tempo sou as duas.”
Laurentina da Silva festeja com a mesma intensidade as duas grandes festas da família, uma de cada cultura: “Festejo sempre o Natal e o ano novo chinês e nem podia ser de outra maneira. São duas datas muito importantes para mim, precisamente porque sou filha deste cruzamento.”

O dia-a-dia da macaense é passado a lidar com arte. Trabalha na Fundação Rui Cunha e faz a ponte entre linguagens, a chinesa e a portuguesa, no que respeita à produção de exposições e eventos. “Finalmente tenho um trabalho ligado à arte”, desabafa enquanto explica que na sua formação na Escola Portuguesa de Macau fez o secundário na área artística, mas a vida não permitiu o seguir dos estudos.

A paixão pelas “coisas bonitas” sempre a acompanhou e vem desde pequena. “Gosto de criar coisas”, explica Laurentina da Silva. Numa viagem às memórias, a jovem vai a um infância em que via a mãe a costurar e com o tempo e a proximidade começou a interessar-se pelo ofício. Na adolescência pediu para que lhe ensinasse os dotes da agulha e dedal e começou a fazer roupas para si e para quem quisesse. De tal forma que quando casou foi ela que fiz os vestidos das amigas.

As línguas aproximam

Paralelamente, Laurentina Silva é uma poliglota. Nasceu bilingue a comunicar entre o Português e o Cantonês. Apesar de nunca ter tido ensino oficial de Mandarim, a infância encarregou-se de a amestrar na escrita e leitura de caracteres por obrigação materna.

“A minha mãe obrigou-me a aprender caracteres e eu tinha que passar horas a fazer cópias, porque é a única maneira de os memorizar”, relembra ao pensar nos dias, não tão felizes, de calo no dedo. “Nas férias, por exemplo, tinha, diariamente, que decorar um número de caracteres que a minha mãe definia e não podia sair de casa sem os saber.”

Se na altura foi duro, agora Laurentina da Silva “agradece”. Na oralidade, percebe-se o sotaque de Taiwan, num Mandarim mais doce. “Gostava de ver programas daquela região e fui assim que fui aprendendo a falar”, confessa.
Mas a formação linguística continua, porque “falando em diferentes idiomas, não só as oportunidades de emprego se abrem, como as relações sociais também podem ser mais e melhores”, como explica. Foi assim que o Inglês, disciplina a que não era muito boa na escola, também foi desenvolvido e, recentemente, resolveu abraçar o Coreano, porque “conhecimento não ocupa espaço”.

Macau, a terra que a viu nascer e onde vive é, actualmente, sentida com um ligeiro amargo de boca. “Já não se sonha em Macau”, afirma com tristeza ao olhar para o crescimento do território e as suas consequências. Macau deixou de ser um sítio pequeno onde as pessoas são próximas, agora é um lugar em que os jovens se desinteressam porque pensam que têm o futuro assegurado com um trabalho no Governo ou nos casinos, ilustra a macaense com alguma tristeza.

Mas nem tudo são espinhos e o crescimento galopante da terra fez com que “mais pessoas conhecessem Macau”. Outro aspecto de relevo e que acompanhou a evolução da terra foi a criação de mais empregos e uma maior acessibilidade a determinados cargos por parte dos locais. “Antigamente quem não soubesse Português não tinha acesso a determinados empregos e agora isso já não é assim, o que faz com que as pessoas de cá tenham outras oportunidades.”

Mas Laurentina continua a sonhar e os desejos que tem não se desvinculam da sua própria identidade. “Gostava que Macau protegesse o Patuá por ser um dialecto de cá e porque transmite esta coisa do que é ser macaense”, remata.

14 Out 2016

Miguel Lança: “Recorri à pintura para aliviar o stress”

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m passeio com um dos filhos reavivou-lhe uma paixão antiga, quase como quem vai buscar algo ao baú das memórias. Miguel Lança costumava pintar na escola, mas acabou por deixar esse hobby de lado com o passar dos anos. Foi o filho mais velho que, tendo igualmente paixão pelas artes, o levou de novo ao mundo das telas e dos pincéis.
“Um dia passámos por uma loja, comprámos umas telas e umas tintas e começámos a aventurar-nos. Comecei então a pintar, sobretudo com acrílico, com técnicas mistas. Tenho algumas obras pintadas a óleo. Também gosto de usar tinta da china”, contou Miguel Lança ao HM.
Hoje mostra um pouco do seu trabalho através da sua página do Facebook, a Msv Art. Uma visita leva-nos a compreender que se tratam de obras dominadas pela cor e pelos traços fortes.
A trabalhar actualmente como chefe de sala no Instituto de Formação Turística (IFT), onde também dá alguma formação prática aos alunos, Miguel Lança pinta nas horas vagas para “aliviar o stress do dia-a-dia”. Apesar de não fazer dessa a sua profissão principal, Miguel já realizou duas exposições.
“As minhas experiências foram apenas duas exposições que fiz no Venetian, uma em que fui convidado por uns alunos que estavam a frequentar um curso no IFT e que precisavam de artistas locais para expor. A outra exposição foi através de um amigo que me convidou para expor os meus trabalhos.”
Inspirações não as tem, sendo o seu trabalho marcado pela espontaneidade, com base naquilo que vê. Aqui, a cultura chinesa também acaba por ter uma certa influência.
“Uma vez, para celebrar os dez anos de Macau, pintei um quadro com carpas, por ser um peixe que existe muito na Ásia. Às vezes inspiro-me em algumas fotografias que tirei, do Hotel Lisboa, do Jardim Lou Lim Ioc… as coisas vão surgindo naturalmente, não posso dizer que seja algo planeado. Agarro nos pincéis e nas tintas e é o que sai. Também gosto de usar tinta da china.”
Miguel Lança acredita que ser artista em Macau pode ser fácil, mas também difícil. “Há que reunir os contactos necessários, temos algumas facilidades. A Fundação Rui Cunha dá a possibilidade a artistas locais para exporem os seus trabalhos, bem como o Instituto Cultural e até a Macau Creative”, lembrou.

História com 11 anos

A história de Miguel Lança em Macau começou há 11 anos, quando veio por intermédio do pai, que já cá estava. Com um curso técnico-profissional, Miguel começou a trabalhar no restaurante Fernando, em Hac-Sá, lugar escolhido por inúmeros turistas de vários países. Daí, onde esteve quase uma década, guarda boas memórias.
“Foi uma boa experiência, é um restaurante com muitos clientes, alguns já de vários anos, passam por lá muitas pessoas, dá para fazer novas amizades. Foi uma experiência engraçada.”
Esteve oito anos como gerente, tendo passado depois para o Clube Militar, onde trabalhou como chefe de sala. “Sempre gostei muito da área da hotelaria, mas no início da minha carreira trabalhei mais em bares e discotecas”, revela ao HM.
Miguel Lança recorda o período em que 500 patacas chegavam para comprar toda a comida necessária para casa e onde um apartamento era bem mais barato. Onze anos após a sua vinda para o Oriente, Miguel destaca a segurança e o desenvolvimento de um território que teve um crescimento galopante.
Nunca trabalhou directamente na área de confecção de alimentos, mas defende que a variedade de pratos portugueses continua a não existir em Macau, apesar das inúmeras inaugurações de espaços que aconteceram nos últimos anos.
“Existem muitos restaurantes mas na maior parte dos menus a oferta é quase a mesma. Há restaurantes com uma boa feijoada, um bom leitão, mas não se pode dizer que haja um restaurante que reúna todas as condições e se possa dizer ‘aqui é tudo bom’. Há um bocado essa falha nos restaurantes portugueses, tudo é idêntico, a maneira de confeccionar a comida é muito semelhante. Não há muita diversidade”, concluiu.

7 Out 2016